Revista Dasartes 137

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DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO . REDAÇÃO André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA Leandro Fazolla dasartes@dasartes.com DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br

Capa: , Standard Station, Ten-Cent Western Being Torn in Half, 1964. © Ed Ruscha.

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ANA MENDIETA 12

HIROSHI SUGIMOTO 28

6 Agenda

JARBAS LOPES 62

8 De Arte a Z

46 Chaïm Soutine

ED RUSCHA 78

VERIDIANA LEITE 100


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Agenda

A exposição dedicará grande parte de seu espaço aos trabalhos do cartunista Cau Gomez como cartuns, charges e caricaturas publicadas em importantes jornais como o A Tarde, o Estado de São Paulo, o Courrier International de Paris, Le Monde Diplomatique e dezenas de revistas, sempre retratando com humor e crítica a realidade social, política e cultural do Brasil e do mundo. São 36 anos de uma carreira muito bem sucedida, com reconhecimento internacional e nacional, mais de 70 prêmios no currículo e muitas exposições individuais e coletivas mundo afora. Para ele, radicado em Salvador desde 1993, fazer uma exposição na cidade 6

para comemorar os seus 30 anos de Bahia será uma oportunidade de mostrar um pouquinho de sua produção em cada época, como uma linha do tempo que mescla trabalhos com muitas nuances, em preto e branco, em poucos tons e poucas tintas, e de um período em que ele coloria muito.

A ARTE E O HUMOR GRÁFICO DE CAU GOMEZ - 30 ANOS DE BAHIA • CAIXA CULTURAL • SALVADOR • 12/12/2023 A 4/2/2024



de arte

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AZ

ARQUEOLOGIA • Os artistas brasileiros Vivian Caccuri, Lúcia Koch e OSGEMEOS iluminam a capital saudita como parte do Noor Riyadh, o maior festival de arte de luz do mundo. O evento conta com mais de 120 instalações de arte de luz em grande escala, projeções em edifícios e mais de cem artistas de mais de 35 países. A exposição que acompanha o festival, intitulada Identidades Refratadas, Futuros Compartilhados, estará aberta até 2/3/2024.

CURIOSIDADES • Um casal doou uma escultura rara do século 16 a um museu do Reino Unido para cobrir sua conta de impostos sobre herança. O presente veio da coleção de Cecil e Hilda Lewis, colecionadores de arte e filantropos entusiastas. O esquema permite que obras sejam doadas em vez do imposto sobre herança e, nos últimos dez anos, foram repassados ao país itens avaliados em £ 479 milhões.

CURIOSIDADES • Pesquisa Datafolha e Fundação Itaú diz que consumo de cultura (exposições e museus) cresce 26% em 2023. Foram ouvidas 2.405 pessoas em todo o país. Nesse período, 96% dos brasileiros disseram ter realizado alguma atividade do gênero este ano. No período anterior, o índice era de 89%. O material traz também dados sobre motivações, locais de vivência de cultura e gastos com atividades do gênero. Leia mais em www.dasartes.com.br. 8


POLÊMICAS • Professores franceses abandonaram uma escola de Paris, após rumores de estudantes de 11 e 12 anos de que outro professor tinha feito insultos racistas e islamofóbicos a estudantes quando estes se recusaram a olhar para uma pintura renascentista de mulheres nuas durante uma aula de história da arte. Em uma reunião, as autoridades da escola Jacques Cartier, na cidade de Issou, concluíram que as acusações de racismo dos alunos haviam sido inventadas.

PELO MUNDO • Uma famosa coleção de esculturas de Alexander Calder foi transferida para o Museu de Arte de Seattle. A grande doação do casal Jon e Kim Shirley, que incluem mobiles e stabiles estão atualmente na mostra Calder: In Motion. O casal também presenteou o museu com uma doação de US$ 10 milhões, um adicional de US$ 1 milhão para apoiar a exposição, além de uma doação anual de US$ 250 a US$ 500 mil para programação familiar, visitas escolares e pesquisas acadêmicas sobre o trabalho, a vida e o legado de Calder.

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• DIZ O SITE DO MINISTÉRIO DA CULTURA ARGENTINO em processo de atualização para se adequar ao novo decreto feito pelo novo presidente, Javier Milei, ao fechar a pasta. O presidente fundiu várias agências em um único departamento denominado Ministério do Capital Humano. 9


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Livros

A trajetória ímpar de Mário Pedrosa é analisada por pesquisadores, artistas e familiares em 23 ensaios, sete depoimentos e textos introdutórios de Maria Amélia Bulhões e dos organizadores. O leitor também encontra uma parte dedicada às artes visuais, com uma seleção de imagens de duas exposições que o homenageiam. MÁRIO PEDROSA: REVOLUÇÃO SENSÍVEL • Org. Everaldo de Oliveira Andrade, Francisco Alambert e Marcelo Mari • Edições Sesc São Paulo e Fundação Perseu Abramo • 468 páginas • R$ 75

A obra reúne textos do crítico de arte, curador e pesquisador Paulo Sergio Duarte, percorrendo toda a sua produção, dos anos 1970 à atualidade. O volume inclui um escrito de publicação inédita em português ( , sobre a obra de Antonio Dias, escrito originalmente em italiano) e abrange textos sobre artistas formativos brasileiros — como Antonio Dias, Tunga, Iole de Freitas, Waltercio Caldas, Lygia Clark, Jorge Guinle, Carlos Vergara, Nelson Felix, entre outros. NO MUNDO SEM CHÃO: ESCRITOS SOBRE ARTE • Org. Sérgio Martins • Editora Cobogó • 472 páginas • R$ 84,00

O livro compartilha insights valiosos sobre a misoginia modernista e a invisibilidade da mulher artista, oferecendo abordagens alternativas ao cânone masculinista que moldou a história da arte. Ainda destaca artistas femininas pioneiras como Dame Laura Knight, Leonora Carrington e Baronesa Elsa e desafia preconceitos, redefine nossa compreensão da arte moderna. MISOGINIA MODERNISTA E A INVISIBILIDADE DA MULHER ARTISTA • Editora Panorama Crítico • 274 páginas • R$ 94,90 10



ANA

Anima, Silueta de Cohetes (Firework Piece), 1976. MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.

Alto Relevo


MENDIETA


POR MATTEO BERGAMINI

ALMA EM CHAMAS: ANA MENDIETA “ARDE” NO SESC POMPEIA

é a sensacional exposição dedicada à Ana Mendieta, em cartaz no SESC Pompeia, até o próximo 21 de janeiro de 2024. Os motivos para relatar esse acerto são vários: em primeiro lugar, não é frequente a possibilidade de contemplar simultaneamente um conjunto de 21 filme-performances da artista cubana, naturalizada estadunidense, que faleceu em 1985, em circunstâncias nunca completamente esclarecidas. Segundo: porque as ações que Ana Mendieta realizou há mais de cinquenta anos não perderam nem um pouco da potência expressiva, poética e política que carregam nelas. Aliás, hoje em dia, parecem gritar mais alto que outrora. Última nota, não menos importante, é sobre a expografia realizada pelo Estúdio GRU, valorizando de uma maneira exemplar todas as obras, quer vídeos quer fotografias, e, além disso, criando um diálogo aberto e perfeito com os elementos arquitetônicos da Área de Convivência ideada por Lina Bo Bardi. Eis que a penumbra, a iluminação refletindo nas bacias de água e nas pedras, utilização de telas de madeira compondo esse labirinto aberto – onde, ao nosso olhar, é permitido abranger cada esquina e cada “silhueta” – formalizam um ambiente que tudo tem a ver com os elementos recorrentes da prática artística de Ana Mendieta: a própria origem, o amplexo com a terra, o utilizo do seu corpo no espaço. 14

Untitled: Silueta Series, Mexico / From Silueta Works in Mexico, 1973-1977, 1976. MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.

MOSTRA DA ARTISTA CUBANA ANA MENDIETA, NO SESC POMPEIA, APRESENTA, PELA PRIMEIRA VEZ NO BRASIL, UM VASTO PANORAMA DA VIDA E DA OBRA DE UMA DAS ARTISTAS INTERNACIONAIS MAIS EMBLEMÁTICAS DO ÚLTIMO SÉCULO



Nascida em Cuba, em 1948, o pai conseguiu embarcá-la a volta dos Estados Unidos com a irmã mais velha, “salvandoas do comunismo” como reporta Karina Bidaseca no livro : Ana Mendieta, refugiada com 12 anos de idade, começou a sua nova existência em Iowa City, conseguindo rever a mãe somente cinco anos depois. Naquele canto da América do Norte, a artista se graduou em pintura e logo foi se matricular no Programa de Arte de Meios Múltiplos e Vídeo, na mesma Universidade do Iowa, descobrindo a potência das imagens em movimento: a sua primeira obra, de fato, foi uma película abstrata obtida arranhando um filme 35 mm. O aprendizado da artista, porém, corria: de repente, foram as violências vivenciadas e sofridas devido à política e à necessidade de se adaptar em um país estrangeiro e colonialista a marcar sua poética singular. Ana Mendieta, com a cerca 15 anos de carreira, formalizou um conjunto de duzentas obras, entre as quais mais de cem vídeos, relatando a condição de exílio pela própria identidade física, utilizando o próprio corpo e seus rastros como meio de expressão, escolhendo aparecer em seus trabalhos, mesmo atuando como puro molde. “Eu tenho criado um diálogo entre a paisagem e o corpo feminino (baseado em minha própria silhueta). Acredito que tenha sido resultado direto de atormentada pátria durante minha adolescência. Minha arte é a maneira que eu restabeleço os ossos que me unem ao universo. É o retorno à procura material”, escrevia a artista sobre seu mesmo trabalho, em 1981. 16


Ocean Bird (Washup), 1974. MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.

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Untitled: Siluete Series (detail), 1978/2023. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.


Quem não chora não mama. © Alex Červený. Foto: Isabella Matheus.


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Sandwoman, 1983. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Foto: Pauline Rosen-Cros.

Contudo, dir-se-ia que as paisagens encenadas por Ana Mendieta são ricas em elementos e pobres em detalhes: mais que um panorama sossegado, de reflexão, trata-se de uma jornada escavando na ancestralidade, na cova do primórdio, trabalhando em feridas nunca saradas. São recorrentes, ao longo de toda a sua carreira, alguns materiais: a pólvora queimando os escassos retratos traçados no solo, na areia, na grama; as penas de aves que Ana vestiu em (1974), onde a artista se deixa levar do mar até à beira da praia polvilhada de plumas, assim como acontece no vídeo (1974), reconectando-se e homenageando também os ícones religiosos de matriz africana que em Cuba compõem a Santeria, prática cujos saberes e conhecimentos ficam bem longe da cultura ocidental do Norte, a que Ana abraçou por uma vontade externa, aquela que a tinha rasgada do útero materno. Entre as várias etapas da carreira de Mendieta, juntamente a viagens de volta a sua ilha natal, houve também uma profunda aproximação com o México, onde a artista encontrou mais uma vizinhança geográfica e cultural com a própria terra de origem, proporcionando o nascimento de vários trabalhos: a natureza ofereceu ao corpo de Mendieta a oportunidade de se transformar em instrumento total de vida infinita; em (gravado nos arredores de Oaxaca, em 1974), o respiro ganha a tamanha potência de derrubar as pedras do próprio enterro.


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Ñañigo Burial, 1976. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros.

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Como fênices as silhuetas da artista se incineram, logo ressurgindo, continuando ressaltando a vida, mesmo que o universo esteja assombrado pela presencia constante da morte, da aniquilação. Ana Mendieta oferece ao corpo e aos seus sentidos a chance de gritar a própria diferença, para mostrar a dificuldade em se encaixar e se conformar na normatividade do império americano, chegando também – logo no começo, em 1972 – a abraçar as que estava explodindo formas da na Europa com os violentos recursos, conectados também a uma feroz crítica social, do Acionismo vienense, e com as experiências de artistas como a francesa Gina Pane, tornada célebre com (1973), performance na qual ficava com espinhos de rosa presos no braço direito, tentativa poética e desesperada de um pedido de amor, como escreveu a crítica italiana Lea Vergine. Ana Mendieta, nesse caso, adiantando os tempos, trabalhou – como os colegas Urs Lüthi e Pierre Molinier – nas filas da troca de identidade: em , cuja série fotográfica está em mostra no Sesc, a artista colou no seu rosto o que sobrou da barba cortada de um amigo, problematizando com a identidade sexual e os cânones de beleza que a sociedade comprime na dualidade masculino/ feminino. 23





Pág. anteriores: Anima, 1982. Exhibition view, “Ana Mendieta. Aux commencements”, MO.CO. Panacée, Montpellier, 2023. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Courtesy The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC and Galerie Lelong & Co./Adagp, Paris, 2023. Photo: Pauline Rosen-Cros. À esquerda: Vista da exposição terra abrecaminhos no Sesc Pompeia. Foto: Renata Armelin.

Mais um motivo atual para não perder esse relâmpago que ainda arde e segue inspirando inteiras gerações de artistas, como se vê perfeitamente na coletiva – articulada a mostra de Ana Mendieta –, composta por centenas de obras herdeiras dos rumos percorridos pela artista cubana, molhados de sangue e água, queimando carne e espírito.

Matteo Bergamini é jornalista, crítico e escritor especializado em Arte Contemporânea. Colabora com a revista italiana ArtsLife e com a portuguesa Umbigo Magazine.

ANA MENDIETA: AUX COMMENCEMENTS • MO.CO MONTPELLIER CONTEMPORAIN • FRANÇA • 23/6/2023 A 10/9/2023 ANA MENDIETA: SILHUETAS EM FOGO E TERRA ABRECAMINHOS • SESC POMPEIA • SÃO PAULO • 19/9/2023 A 21/1/2024 27


Hiroshi

Do Mundo


Sea of Buddha 049 (Triptych), 1995. Foto: Courtesy of the Artist.© Hiroshi Sugimoto.

Sugimoto


DESDE SUAS PRIMEIRAS FOTOGRAFIAS FEITAS EM NOVA YORK NOS ANOS 1970, HIROSHI SUGIMOTO AMPLIOU E REMODELOU NOSSA NOÇÃO DE COMO AS FOTOGRAFIAS REGISTRAM TEMPO, LUZ E ESPAÇO. ENCARANDO A CÂMERA COMO UMA ESPÉCIE DE “MÁQUINA DO TEMPO”, ELE CRIOU IMAGENS QUE EVOCAM PAISAGENS PRIMORDIAIS E O FIM DA CIVILIZAÇÃO, REGISTROS ÚNICOS DA HISTÓRIA E EVOCAÇÕES DA ETERNIDADE

POR REDAÇÃO

Em sua maioria produzidas com sua antiquada câmera de visão de madeira, as imagens de Hiroshi Sugimoto (Tóquio, 1948) destacam o caráter misterioso de um meio no qual os mortos podem parecer desconcertantemente vivos, enquanto marcos modernistas podem adquirir a forma de antigas relíquias. Inspiradas por experimentos e temas da história inicial da fotografia, algumas de suas fotos abordam preocupações relacionadas à ciência óptica e matemática; outras se baseiam em tradições de pintura e arquitetura. A maioria delas também reflete sobre a natureza escorregadia da própria fotografia. Contando principalmente com técnicas e tecnologia do século 19 e início do século 20, Sugimoto é um artesão meticuloso. Graças à sua gama tonal matizada, clareza impressionante e composições elegantes, suas fotografias recompensam uma análise minuciosa. Ao desacelerar nosso processo de visualização, elas silenciosamente nos lembram de que olhar para si pode ser um ato criativo de descoberta. Ao mesmo tempo, seu trabalho nos instiga a sondar além da superfície. Para Sugimoto, a fotografia é um meio de levantar questões fundamentais sobre como percebemos o mundo. Suas fotos não documentam simplesmente assuntos específicos, mas parecem impregná-los com significados alternativos. “Normalmente, os fotógrafos capturam algo”, observou Sugimoto. “Eu uso a câmera para projetar minha ideia interna de realidade.” 30

Manatee, 1994. Foto: Courtesy of the Artist.© Hiroshi Sugimoto.

MÁQUINA DO TEMPO



Polar Bear, 1976. Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.


DIORAMAS Pouco tempo depois de chegar a Nova York, em 1974, enquanto explorava o American Museum of Natural History, Sugimoto descobriu os dioramas da era de animais. Foi uma revelação: “Os animais vitoriana que ilustravam empalhados posicionados diante de cenários pintados pareciam completamente falsos, mas, ao dar uma espiada rápida com um olho fechado, toda a perspectiva desaparecia e, de repente, pareciam muito reais”. Ele começou a fotografar as exibições em suas vitrines, esperando “trazer a natureza morta de volta à vida”. (1976). Usando uma O primeiro tema de diorama de Sugimoto foi o antiga câmera de grande formato e filme preto e branco, ele configurou seu aparelho como um fotógrafo do século 19, fazendo ajustes cuidadosos de iluminação durante a exposição de 20 minutos para capturar texturas sutis e pequenas diferenças tonais entre o urso branco e o fundo polar. “Minha vida como artista começou no momento em que vi que tinha conseguido trazer o urso de volta à vida na película”, observa ele. Ao longo das quatro décadas seguintes, Sugimoto fez visitas adicionais ao museu, além de outros museus dos EUA. Em suas primeiras cenas, ele via ecos da vida (1976), cuja “festa sombria dos abutres moderna, como em transmite a atmosfera da cena artística de Nova York”. Mais tarde, com imagens (1994), na qual um casal de hominídeos como passeia por uma paisagem desolada, ele queria retratar o mundo antigo como algo tangível e real.


TEATROS Em 1976, Sugimoto montou sua câmera nos bastidores de um cinema em Nova York, ajustando o tempo de exposição para coincidir com a duração do filme que estava prestes a começar. A fotografia resultante comprimiu a duração do filme em uma única imagem fixa de uma tela branca brilhante. “Assistir a um filme de duas horas”, comenta o artista, “é simplesmente olhar para 172.800 imagens fotográficas posteriores. Eu queria fotografar um filme, com toda a sua aparência de vida e movimento, para pará-lo novamente.” As telas brilhantemente brancas no centro dessas fotografias funcionam como sua única fonte de luz, iluminando a imponente arquitetura dos cinemas americanos 34

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UA Playhouse, New York, 1978. Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.

construídos no início do século 20. Em meio a teatros estranhamente vazios, elas parecem alternadamente constituir um vazio fulgurante ou uma presença luminosamente radiante, como se aludindo a um aspecto espiritual do ritual coletivo de ir ao cinema. Sugimoto continuou a explorar essa abordagem em uma variedade de ambientes cinematográficos e teatrais: (1993) captura as trilhas de luz de aviões e estrelas atrás de telas ao ar livre durante a longa exposição das fotografias; (2014) retrata os teatros europeus históricos que inspiraram a decoração grandiosa de suas imitações americanas; mais recentemente, (2015) expõe o destino infeliz e a lenta ruína dos clássicos cinemas americanos. 35


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Salvador Dali, 1999 Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.

RETRATOS Muitos fotógrafos capturaram os rostos famosos em seu momento cultural. Mas Sugimoto apresenta realeza, políticos, escritores e artistas ao longo de 500 anos. Para esse empreendimento de viagem no tempo, o artista fotografou modelos de cera do Madame Tussauds em Londres, usando sua câmera para reviver um elenco de personagens famosos. Os sujeitos dessas fotos não são pessoas, mas figuras de cera – no entanto, como essas imagens revelam, as figuras de Tussauds podem parecer estranhamente realistas quando fotografadas com todos os elementos do retrato convencional. Trabalhando à noite, quando o museu estava fechado, o artista retirava as figuras escolhidas de suas exibições encenadas e as isolava contra um fundo preto. A iluminação de estúdio realça ainda mais sua aparência inquietantemente realista, suavizando a pele brilhante e enfatizando os trajes elaborados. Enquanto as figuras de cera de Tussauds são criadas 2% maiores que a vida, permitindo a lenta contração da cera, Sugimoto aumentou o tamanho de seus retratados em cerca de 20%, reforçando a impressão de retrato na grandiosa tradição histórica e criando uma sensação de incerteza sobre a natureza exata de quem – ou o quê – estamos olhando. 37



Diana, Princess of Wales, 1999. Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.


FORMAS CONCEITUAIS Sugimoto afirma que “nunca foi muito bom em matemática”. Ele explica: “Eu entendo com meus olhos e preciso verificar as coisas visualmente. Simplesmente não conseguia ver a beleza em equações”. Mas, em 2002, após ver e manusear os modelos matemáticos de gesso na coleção da Universidade de Tóquio, suas formas surpreendentes despertaram seu interesse pelo pensamento matemático. Fabricados na Alemanha, no final do século 19, esses objetos curiosos são representações físicas de conceitos matemáticos, construídos como auxílios de ensino e exportados para todo o mundo. Aos olhos de Sugimoto, “a beleza dessas formas matemáticas puras era uma maravilha, ofuscando em muito a escultura abstrata”. Na década de 1930, eles foram celebrados por artistas surrealistas em Paris, incluindo Man Ray, que os fotografou. Mas, enquanto Man Ray enfatizava as qualidades antropomórficas dos objetos, Sugimoto visava “remodelá-los”: “Sinto como se estivesse esculpindo isso a partir de uma forma conceitual... como se estivesse moldando as formas, usando uma câmera em vez de um cinzel”. Fotografados de baixo, a uma distância muito próxima, os pequenos modelos de gesso parecem monumentais, suas bordas levemente lascadas e arranhadas transmitindo uma sensação de pertencimento a “antigas civilizações: grega, romana, asiática oriental, indiana”. 40


À esquerda: Conceptual Forms 0003 Dini’s surface a surface of constant negative curvature obtained by twisting a pseudosphere, 2004. Acima: World Trade Center, 1997. Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.

ARQUITETURA Desde 1997, Sugimoto fotografou mais de 90 edifícios modernistas ao redor do mundo. Essas estruturas foram projetadas por renomados arquitetos do século 20, como Le Corbusier, Mies van der Rohe e Luis Barragán. “Eu comecei a traçar o início de nossa era por meio da arquitetura”, explica Sugimoto. “Aumentando o comprimento focal da minha antiga câmera de grande formato para o dobro do infinito – [de modo que] a visão através da lente fosse um borrão total –, descobri que a arquitetura superlativa sobrevive ao ataque da fotografia desfocada. Assim, comecei a testar a resistência da arquitetura à erosão, derretendo completamente muitos dos edifícios no processo.” “O ponto de partida para um arquiteto”, observa Sugimoto, “é imaginar a forma ideal de um prédio." Ao obscurecer deliberadamente seus objetos, o artista busca transmitir uma sensação da visão original desses edifícios, como poderiam ter aparecido na mente de seus designers. Em aparente paradoxo, Sugimoto também sugeriu que essas formas sombrias evocam “arquitetura após o fim do mundo”. 41


Bay of Sagami, Atami, 1997. Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.

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“ ”

PAISAGENS MARINHAS “Alguém hoje pode ver uma cena da mesma forma que o homem primitivo poderia?” Sugimoto remonta sua fascinação pelo mar à infância. “Minha primeira memória pessoal é uma paisagem marinha”, explica. “O mar mudou muito menos do que a terra, então, quando os seres humanos ganharam consciência pela primeira vez, passando de um estado animal para um estado humano, a paisagem marinha pode ter causado uma forte impressão em suas mentes. Posso compartilhar essa visão. Posso comparar minha própria memória com a primeira visão do mundo.” de Iniciadas em 1980, as Sugimoto se tornaram um “projeto de vida” – e um dos mais desafiadores tecnicamente. “Cada onda tem que ser nítida e clara.” Para criar suas vistas marítimas atemporais, Sugimoto eleva sua câmera de filme de grande formato em um penhasco ou em uma área elevada de terreno, e arranja seu ponto de vista para que a imagem resultante seja uniformemente dividida entre o mar e o céu. Desprovidas de quaisquer elementos distrativos (como pássaros, barcos ou margens distantes), as composições de Sugimoto se concentram exclusivamente na interação entre água, ar e a luz do Sol ou da Lua. Com sua composição uniforme, as podem parecer pinturas abstratas. “Não representando o mundo em fotografias, eu gostaria projetar minhas paisagens marinhas internas na tela do mundo”, reflete o artista. 43


A inspiração de Sugimoto para os Campos de Relâmpagos veio, inicialmente, de um problema técnico na fotografia. Ao retirar uma folha de filme de seu suporte, ocasionalmente, o atrito produz eletricidade estática, podendo gerar faíscas, danificando o filme e destruindo uma imagem. “Eu sempre odiei isso”, explica Sugimoto, “mas, em certo momento, decidi amar isso... fazer acontecer de propósito. Então, criei um palco para fazer isso acontecer.” A série resultante lança luz para o trabalho de William Fox Talbot (1800-1877), um dos inventores da fotografia, e sua pesquisa sobre eletricidade estática. Sugimoto comprou um gerador Van de Graaff de 400 mil volts, que ele usou para enviar uma rajada de correntes elétricas por uma grande folha de filme não exposto apoiada sobre uma placa de metal aterrada. Os resultados são fotografias dramáticas tiradas sem câmera. Algumas obras parecem retratar um raio atingindo o solo. Outras imagens se assemelham mais a formas orgânicas vistas sob um microscópio. Em contraste com suas outras séries que envolvem exposições longas e a desaceleração do tempo, aqui Sugimoto captura a liberação instantânea de energia recriado em seu estúdio ou, como ele –o descreve, “a câmara escura da minha própria mente”.

HIROSHI SUGIMOTO: TIME MACHINE • SOUTHBANK CENTRE • REINO UNIDO • 11/10/2023 A 7/1/2024 44

Lightning Fields 225, 2009. Foto: Courtesy of the Artist.

CAMPOS DE RELÂMPAGOS



Chaïm

Flashback Le Groom, 1925. Musée national d’art moderne bpk | CNAC-MNAM | Philippe Migeat.


Soutine


AS EXPRESSIVAS PINTURAS DE CHAÏM SOUTINE LANÇAM LUZ SOBRE SUA VIDA COMO UM JUDEU EMIGRANTE E, AO MESMO TEMPO, TESTEMUNHAM UMA EXISTÊNCIA INSTÁVEL À MARGEM DA SOCIEDADE. SUAS PRIMEIRAS OBRAS-PRIMAS RESSOAM A EXPERIÊNCIA DE FUGA E MIGRAÇÃO QUE MOLDARAM PROFUNDAMENTE SUA VIDA E CRIAM, ASSIM, UMA PONTE COM OS DIAS ATUAIS

Chaïm Soutine (1893-1943) foi um artista com uma vida extraordinária. Criado em uma cidadezinha perto de Minsk, mudou-se para Paris em 1913. A metrópole artística se tornou seu segundo lar. No entanto, Soutine nunca se juntou a vida a um grupo de artistas e permaneceu um toda. Ele pintava de maneira figurativa e expressiva, “nadando contra a corrente”. Nunca foi atraído pelos movimentos de arte abstrata, tendências da moda dos anos 1920 ou convenções sociais. Suas pinturas são únicas: sensíveis, vigorosas, belas e , drásticas ao mesmo tempo. Ele retratava mensageiros, coroinhas e acólitos com explosões de cor tremendas e altamente emocionais. Eram pessoas que, como ele, muitas vezes eram negligenciadas pela sociedade. Em retratos e imagens de paisagens ondulantes e animais abatidos, ele criou imagens comoventes que capturam uma era inteira e uma geração definida pela guerra, males sociais e o antagonismo implacável de várias ideologias religiosas e políticas. Suas pinturas são feitas com camadas espessas de tinta e em um frenesi energético de cores. Seu estilo de pintura e temas são muito tocantes, pois sua força e vulnerabilidade expressam os medos existenciais de nosso tempo. Elas sugerem o contexto social de Soutine e sua vida como imigrante, sendo também testemunhas de uma existência à margem da sociedade. Soutine teve uma influência significativa na pintura após 1945. Na França e na América do Norte, é considerado um dos principais representantes do modernismo, enquanto na Alemanha é muito admirado por artistas. A nova exposição, no Museu Kunstsammlung, em Düsseldorf, na Alemanha, concentra-se especificamente nas primeiras obras-primas do artista e apresenta mais de 60 trabalhos de séries pintadas entre 1918 e 1928. 48

Femme entrant dans l’eau, 1931. Foto: © Museum of Avant-Garde Mastery of Europe (MAGMA of Europe).

POR SUSANNE MEYER-BÜSER



Nature morte au faisan, 1919. © Chaïm Soutine.

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La Place du village, Céret Village square in Céret, 1920. © The Israel Museum, Jerusalem

Les Maisons Houses, 1920/21. Musée de l'Orangerie, Collection, RMN - Grand Palais | Hervé Lewandowski.

LA RUCHE E A ÉCOLE DE PARIS Em 1913, Soutine viajou de Vilnius para Paris, seguindo o mesmo caminho que Marc Chagall havia feito dois anos antes. A viagem de trem foi de dois mil quilômetros e levou vários dias, passados na quarta classe. Soutine falava apenas ídiche. Ele encontrou um lugar para ficar em La Ruche, uma colônia de artistas com cerca de cem estúdios, que oferecia pouco conforto e estava localizada perto dos matadouros de Vaugirard. Como o aluguel era barato lá, o bairro atraía principalmente estrangeiros em situação financeira precária. Muitos artistas judeus do Leste Europeu estavam entre eles: Marc Chagall, Henri Epstein, Léon Indenbaum, Michel Kikoïne, Moise Kisling, Pinchus Krémègne, Jacques Lipchitz, Jules Pascin, Ossip Zadkine, e muitos outros. Eles vinham de lugares como Varsóvia, Cracóvia, Lodz, Odessa e Vilnius. La Ruche era um lugar de transição entre o mundo que os artistas haviam deixado para trás e a vida em Paris, da qual eventualmente fariam parte. Após alguns meses, Soutine, que era um pouco solitário, mudou-se para a colônia de artistas Cité Falguière em Montparnasse, onde o escultor russo Oscar Miestchaninoff o acolheu. Lá, ele também conheceu o italiano Amedeo Modigliani, que se tornou seu melhor amigo. Artistas estrangeiros como Pablo Picasso, Max Ernst, Sonia Delaunay e Piet Mondrian, além dos já mencionados, tiveram uma influência significativa na cena artística parisiense da época. Essa cena era chamada de (Escola de Paris), e incluía todos os artistas e figuras culturais não franceses que continuavam a tradição da Escola Francesa, cada um à sua maneira única.

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O galerista de Soutine, Léopold Zborowski, enviou-o para Céret, uma vila perto da fronteira espanhola, em 1919. Esperava-se que ele pintasse e enviasse suas obras em troca de comida e moradia baratas, longe da Guerra. Céret era uma vila lendária de artistas, onde Henri Matisse e os cubistas Georges Braque e Pablo Picasso tiveram seu sucesso inicial. Soutine, que passou três anos solitários por lá, também experimentou um período de notável criatividade artística. Quando voltou a Paris, no final de 1922, trouxe consigo cerca de duzentas telas. Isso era apenas uma parte do que ele havia produzido, pois tinha o hábito de destruir obras com as quais estava um pouco insatisfeito. Entre as obras que seu ( galerista salvou, estava ), pintado em 1919, que se tornaria uma das obras centrais na carreira de Soutine. Durante o inverno de 1922-23, o colecionador de arte americano Alfred C. Barnes (1872-1951) também estava em Paris. Ele estava procurando pinturas adequadas para sua coleção de impressionismo europeu, que planejava estabelecer na Filadélfia. Aparentemente, Barnes viu por acaso em um café em Montparnasse. Outra versão da história afirma que seu agente, o negociante de arte Paul Guillaume (1891-1934), mostrou a ele o retrato do confeiteiro. De qualquer forma, Barnes ficou encantado e procurou Soutine. Quando o encontrou, comprou 52 obras do artista imediatamente. Essa história extraordinária, que quase parece um conto de fadas, rapidamente se espalhou, especialmente depois que Guillaume escreveu sobre isso em sua revista . Soutine passou de desconhecido e sem dinheiro para famoso da noite para o dia. 54

Le Pâtissier,1919. The Barnes Foundation, Philadelphia, Pennsylvania, USA.

ASCENDENDO DE LA RUCHE


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“ ”

Pág. anteriores: Le Petit Pâtissier, 1922/23 e La Vieille Actrice, 1922. Paris, Musée de l'Orangerie, Collection Jean Walter et Paul Guillaume bpk | RMN - Grand Palais | Thierry Le Mage. À esquerda: Porträt von Madeleine Castaing, ca. 1929. The Metropolitan Museum of Art, New York bpk / adoc-photos.

IMIGRANTES JUDEUS EM PARIS Quando Soutine foi a Paris, em 1913, para começar de novo, ele não sabia que seria uma jornada sem retorno. Isso foi um destino compartilhado por cerca de cem mil judeus da Rússia que se estabeleceram na França entre 1880 e 1925. Havia diferentes motivos para deixarem seus países, como antissemitismo, acesso restrito à educação e a rejeição da arte visual em seus países de origem. Na família de Soutine, a pintura também era considerada como um passatempo inútil. Seus pais teriam preferido que ele se tornasse um rabino ou artesão. Para artistas que chegavam a Paris, a capital era um lugar cheio de energia e novas formas artísticas de expressão. Eles podiam se desenvolver e emancipar como membros plenos da sociedade e da cultura. Os judeus viam a França como um país hospitaleiro desde a Revolução Francesa, pois oferecia acesso a todas as áreas da vida política, econômica e cultural. Como diz um ditado em ídiche, eles podiam (“viver como deus na França”). Soutine frequentemente mudava seu estúdio para novos locais, e os diferentes endereços traçaram um mapa de como ele subiu na escada social: desde sua chegada a Paris até seu sucesso econômico. Esse progresso pessoal foi manchado pelo antissemitismo e nacionalismo francês expresso nos jornais das décadas de 1920 e 1930. Por exemplo, Soutine foi descrito como o arquétipo do “judeu eterno” ou “judeu errante”, ou como uma encarnação do “artista cosmopolita”. As obras de Soutine não representam motivos ou temas diretamente ligados ao judaísmo. Foi apenas devido ao seu sucesso que as pessoas o invejaram. 57


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La Liseuse, ca 1940. Centre Pompidou, Paris, Musée national d’Art moderne / Centre de création industrielle bpk / CNAC-MNAM / Jacques Faujour. 69


Poulet et tomates, 1924, Staatsgalerie Stuttgart bpk / Staatsgalerie Stuttgart.

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INFLUÊNCIA DE SOUTINE Após a Segunda Guerra Mundial, as obras de Soutine se tornaram acessíveis a um público mais amplo na Europa e nos Estados Unidos por meio de exposições em grupo e mostras monográficas. No entanto, mais do que qualquer outra exposição, a retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1950, permitiu que uma nova geração de artistas descobrisse o trabalho dele, após o qual o declararam um visionário e pioneiro da pintura gestual. A abordagem única de Soutine em relação às suas pinturas confirmou a crença da nova geração de pintores do Expressionismo Abstrato e da Escola de Londres de que a base da arte não estava apenas nos resultados de seu trabalho, mas também no evento do próprio processo criativo da pintura. Willem de Kooning, por exemplo, ficou fascinado com a relação muito corporal que Soutine cultivava com suas telas e cores. Especialmente a tinta aplicada livremente por ele e todos os gestos e rituais que acompanhavam seu trabalho o impressionaram. Kooning também apreciava o respeito com o qual Soutine representava seus modelos, observando sobre seu uso de distorções, uma vez que “Soutine distorcia as imagens, mas não as pessoas. (...) A pintura é a pintura, mas ele nunca destruiu as pessoas”. 71 de A influência de Soutine se estende desde Willem Kooning, Francis Bacon, Jackson Pollock, Jean Dubuffet, Georg Baselitz, Marlene Dumas, Anish Kapoor, até muitos outros. Seu efeito ainda é visível nas obras de pintores figurativos e abstratos até hoje.

Susanne Meyer-Büser é curadora do Kunstsammlung NordrheinWestfalen e autora de livros de Piet Mondrian e Chaïm Soutine e outros.

CHAÏM SOUTINE: AGAINST THE CURRENT • KUNSTSAMMLUNG NORDRHEIN-WESTFALEN • ALEMANHA • 2/9/2023 A 14/1/2024 61


Destaque

JARBAS LOPES


O Bem e o Mal Entendido, 2006. Foto: Cortesia A Gentil Carioca. © Jarbas Lopes.


MOSTRA RETROSPECTIVA DE JARBAS LOPES, NA PINA ESTAÇÃO, PROCURA ENFATIZAR O CARÁTER PROPOSITIVO E SENSORIAL DO ARTISTA, QUE SE DESTACA ENTRE OS PIONEIROS NA REFLEXÃO SOBRE ARTE E MEIO AMBIENTE

A natureza expande suas formas nas percepções dos que se aproximam dela. O artista Jarbas Lopes, com seu semblante de contemplação, admira-se com as interações das pessoas com seus trabalhos. Um misto de riso, espanto e curiosidade. Durante a abertura de sua mais nova exposição na Estação Pinacoteca, em São Paulo, os que passavam pela entrada do prédio, a partir da saída da estação de trem da Luz, em um vasto estacionamento que conecta também os visitantes à Sala São Paulo, a mais importante casa de concertos clássicos da cidade, depararam-se primeiro com dois fuscas atados um ao outro pelos chassis, sendo o primeiro virado de ponta cabeça e o segundo precisamente sobre o outro veículo, em cima deste. Um na cor preta e o outro na cor branca. A obra (2006) propõe esse embate entre duas condições estabelecidas e contraditórias, tal qual um e , o símbolo chinês. A mostra é dividida em quatro eixos, e essa obra representa o primeiro destes, nomeado . O jogo com as cores representa a dualidade que há na relação própria dos seres, o confronto que resulta em um conflito incessante sobre tempo e espaço, provocando inseparáveis aproximações. 64

Revistas, 2013. Foto: Edouard Fraipont. © Jarbas Lopes.

POR JOÃO HENRIQUE ANDRADE


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Pintura Shock, 2017. Foto: Beppe Giardino. Cortesia A Gentil Carioca. © Jarbas Lopes.

Eixos é uma exposição retrospectiva da longeva carreira do carioca Jarbas Lopes, com a presença de mais de cem obras do artista. O projeto curatorial é assinado pelo curador da Pinacoteca Renato Menezes. O quarto andar do prédio da Estação Pinacoteca e a parte de fora, no já mencionado estacionamento, são ocupados pela sua ousadia de se apropriar de elementos da natureza e criações humanas sob a ótica social das interações entre os sujeitos, para além de uma simples redução de espaços urbanos e rurais. Com trabalhos que vem realizando desde os anos 1990, sua métrica busca se aproximar dos artistas neoconcretos dos anos 1960 e 1970, sobretudo da geração disruptora de Hélio Oiticica e Lygia Clark. As experiências dos penetráveis e dos bichos foram a realização máxima de criação para se aproximarem até o limite do contato com as pessoas fora do cubo , temos as branco. No eixo denominado obras e , de Lopes, onde podemos perceber esse contato com a quebra dos limites impostas pela arte até o surgimento do neoconcretismo durante aqueles anos: sob cordas elásticas estreitamente conectadas a uma grande tela de ferro que vaza, apoiadas sob uma parede, surge o convite para se lançar sobre a obra e saltar para trás com o impulso que ela dará. O mesmo contato acontece com as obras (1997-2023) e (2001), nas quais os penetráveis ganham formas mais viscerais do que das de Hélio: a arte aqui é feita para dialogar com as condições inerentes do ser humano, por melhores habitações, na imagem de barracos e construções inacabadas, cenários vistos pelos subúrbios das grandes cidades do país. 66


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Pintura Refletiva, 2023. Foto: Pedro Agilson. Cortesia A Gentil Carioca. © Jarbas Lopes.


“ ”

Abaixo: Faixas 2, 2015. À direita: Faixas, 2015. Foto: Edouard Fraipont. © Jarbas Lopes.

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Sob uma enorme faixa onde se lê “NATUREZA É SABIÁ”, surge a obra que ocupa o centro da galeria, ainda no eixo . Uma esteira de palha ao lado de um suporte de MDF com centenas de folhas aromáticas se estende paralela a uma extensa máquina de rolagem, como as de um aeroporto para checagem de , obra inédita feita para a exposição, pede para que o visitante bagagens. fique descalço e caminhe sobre as folhas enquanto deixa os sapatos na esteira. Os pés então saem do espaço higienizado e cheio de regras do museu e tocam as folhas que emanam um forte cheiro de vegetação. O artista insere o rigor do controle dos espaços sobre os cidadãos e propõe o inverso, a liberdade de sentir com os pés descalços as folhas da natureza onde os pássaros cantam e habitam um mundo sem regras. A disrupção do ambiente para dialogar sobre as razões pelas quais os ambientes existem está no cerne dessa ousadia de se apropriar de elementos da natureza e criações humanas sob a ótica social das interações, mencionadas anteriormente.

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Pintura Circular, 2017. Foto: Edouard Fraipont. © Jarbas Lopes.


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Eu Sol, 2023. Foto: Cortesia A Gentil Carioca. © Jarbas Lopes.

Jarbas ressignifica o mundo com os mesmos instrumentos que o todo nos impõe em seus significados. Na sala onde , é possível se insere o eixo observar um gigantesco cubo branco. O visitante inicialmente percebe que o grande objeto parece flutuar sobre o espaço: a base do cubo inexiste e, assim, sua estrutura fica comprometida. Afinal como conceber tal realização? Não há portas para adentrar o cubo, dessa forma pouco se sabe o que ele esconde. , obra concebida em 2017, ganha uma escala muito maior do que a primeira. É um tratado sobre a própria concepção sobre o objeto escultórico e uma reflexão sobre a própria história da arte com seus espaços quadriculados medidos de forma encerrada para abrigar obras, em sua maioria pinturas. Na frente do cubo, na entrada do visitante, na sala, vemos seu , diferentes das trabalho que realizou em 2021, no Museu de Arte do Rio, em sua individual por lá; essa foi feita especialmente para a exposição. Ao redor do cubo e da pintura circular, temos mais de sessenta desenhos feitos com caneta esferográfica da série (2002), grande parte deles do acervo do Instituto Inhotim. São referências ao próprio trajeto entre espaços no tempo, sempre de bicicleta, próximos de lugares oníricos, ora reais, ora tomados de crítica social, ora levantando bandeiras de causas urgentes, como as da emergência climática e o desmatamento da floresta Amazônica.



Imbuída de um choque causado por interações constantes com os ambientes dados e pela interferência sob nossos corpos e nossos sentidos, a exposição revela na última sala a mais monumental de suas obras. Dentro do eixo , vemos o trabalho denominado (2022-2023), composto por uma rede de fios de arame queimado, galhos de madeira e argila. Os fios de arame tramado sustentam o peso de um conjunto enorme de galhos secos e troncos. No centro do espaço, a grande imagem de uma fogueira tensionadas sob os fios. No canto da , de 2022, surge parede, a obra como canoas cujo propósito é tampar qualquer iluminação. Inserida nos dois lados da grande , fogueira, a obra manuseável, de 1996, convida o visitante a retirar das caixinhas um novelo de linhas coloridas, em meio a resíduos de folhas e gravetos. O foco é perceber as linhas como desenhos e os desenhos como linhas. O artista, nascido em Nova Iguaçu e morador da cidade de Maricá, na região da Grande Niterói, no Rio de Janeiro, transpira liberdade e alegria em suas criações artísticas. No dia da abertura dessa exposição em São Paulo, Lopes era só felicidade, enquanto o grupo Pagode na Lata, abria com batuques sua grande retrospectiva. Nem as chuvas que caíam na cidade naquele dia foram capazes de tirar o ânimo dos visitantes e do próprio anfitrião em sambar. Suas obras, assim como o próprio gênero do samba, são convites para se usar da alegria como meio de se pensar a vida, mesmo em meio às agruras vividas pela nossa gente.

João Henrique Andrade é técnico em museologia, curadoria e montagem de exposições pela EAV Parque Lage.

JARBAS LOPES: EIXOS • PINACOTECA ESTAÇÃO • SÃO PAULO • 25/11/2023 A 31/3/2024 76


Desembolaembola, 1996. Foto: Edouard Fraipont. © Jarbas Lopes.

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Ed

Capa


Our Flag, 2017. © Ed Ruscha. Collection Jimmy Iovine and Liberty Ross.

Ruscha


POR CHRISTOPHE CHERIX

Ed Ruscha deixou Oklahoma City em 1956 para estudar arte comercial no Chouinard Art Institute (hoje CalArts), em Los se concentravam Angeles. Enquanto seus cursos de em precisão e equilíbrio, suas aulas de belas-artes enfatizavam espontaneidade e gesto. “Eles diziam, ‘Encare a tela e deixe acontecer’”, lembra Ruscha. “Mas eu sempre tinha que pensar em algo primeiro.” O artista acabaria mesclando essas abordagens, organizando com precisão texto, imagens e materiais encontrados dentro de composições pintadas. Uma série de viagens – uma viagem de carona pelo país, em 1954, e uma longa turnê europeia, em 1961 – aguçou sua atenção para sinalização, arquitetura e objetos cotidianos. De volta à Califórnia, Ruscha começou a representar palavras únicas e exageradas em empasto, destacando a forma das letras com camadas espessas de tinta. Esses “enunciados guturais”, como ele os chamava, incluem exclamações onomatopeicas (como “ ” ou “ ”), gírias populares e nomes de marcas. Originadas de quadrinhos e prateleiras de supermercados, as frequentes referências do artista à cultura do consumidor o alinhavam com o florescente movimento Pop Art. 80

Rancho, 1968. © Ed Ruscha. The Museum of Modern Art, New York. Gift of Steven and Alexandra Cohen.

EM SUA EXPRESSÃO PARTICULAR DA CULTURA POP, ED RUSCHA TIROU INSPIRAÇÃO DE SEU ENTORNO COTIDIANO, ENALTECENDO O PODER VISUAL DAS PALAVRAS E DA ARQUITETURA. SUAS EXPERIMENTAÇÕES AO LONGO DAS DÉCADAS FORNECEM UM PANORAMA DA DAS MUDANÇAS ESTÉTICAS NA SOCIEDADE, MOSTRANDO SUA AFINADA PERCEPÇÃO E CONVIDANDO-NOS A OLHAR MAIS DE PERTO E MAIS DE UMA VEZ



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À esquerda: OOF, 1962 (reworked 1963). The Museum of Modern Art, New York e Large Trademark with Eight Spotlights, 1962. Whitney Museum of American Art, New York. © Ed Ruscha.

PALAVRAS Para Ruscha, as palavras “vivem em um mundo sem tamanho”. Infinitamente escaláveis, pode haver em uma fonte de oito pontos nas páginas de um livro ou dominar o espaço em . Em 1962, intrigado por sua monumentalidade imponente, Ruscha recriou o dinâmico logotipo do estúdio cinematográfico 20th Century-Fox em tela. A composição diagonal dramática da imagem – que ele chamou de “impulso horizontal” – se tornaria um dispositivo pictórico útil para o artista. “Eu podia ver que muitos temas poderiam se encaixar nesse formato”, refletiu. “Era como transmitir algo de um ponto minúsculo, expandindo-se além dos limites das coisas.” Semelhante à forma como essa pintura evoca a fanfarra que acompanha o logotipo na tela, outras obras desse período exploram as possibilidades sonoras da imagética visual. “A arte tem que ser algo que faça você coçar a cabeça”, disse Ruscha uma vez. De fato, seu trabalho do meio da década de 1960 aborda temas familiares – palavras isoladas, objetos comuns, arquitetura à beira da estrada – e os transforma por meio de composições inovadoras ou intervenções surpreendentes. Uma estação de gasolina da Standard Oil, em Amarillo, Texas, por exemplo, é ampliada a partir de uma pequena fotografia em preto e branco no primeiro livro de artista de Ruscha e ampliada diagonalmente pela tela de uma grande pintura a óleo. O tratamento gráfico audacioso, o ponto de vista baixo e a perspectiva exagerada se tornaram parte de uma estratégia formal que o artista usava para monumentalizar o mundano. À medida que Ruscha se inspirava em seu entorno, Los Angeles começava a impregnar seu trabalho em várias mídias. Um de seus livros de artista captura os estilos arquitetônicos de prédios de apartamentos locais; outro apresenta uma fotocolagem contínua da Sunset Strip. Pontos de referência próximos são representados, mas em circunstâncias incomuns: o popular restaurante Norms, na La Cienega Boulevard, está em chamas, enquanto o icônico letreiro de Hollywood paira sobre uma paisagem aparentemente deserta. 83


LINGUAGENS Em 1966, Ruscha iniciou um “romance com líquidos”. Continuando sua exploração material da linguagem, ele começou a representar palavras como poças viscosas. “Gosto da ideia de uma palavra se tornar uma imagem”, afirmou. “Quase saindo de seu corpo, depois voltando e se tornando uma palavra novamente.” Salpicadas em fundos degradê, as palavras são capturadas em um momento de legibilidade antes de sua suposta dissolução. Durante esse período, o artista também experimentou novas mídias, incluindo pólvora, que ele descobriu como alternativa superior ao grafite em pó, em 1967. Ele usou o material em desenhos de fitas dobradas em formas de letras cursivas, estreando mais um método para representar palavras. Elementos de ambas as séries – uma fluida, a outra inflamável – convergem espetacularmente nas poças e chamas que cercam o Museu de Arte do Condado, de Los Angeles, em uma pintura concluída em 1968. A composição dramática nasceu do desejo de Ruscha de retratar uma “coisa furiosa e ativa que está acontecendo em um pano de fundo muito tranquilo e pacífico”.

À direita: Self, 1967. The Museum of Modern Art, New York. Abaixo: Los Angeles County Museum of Art on Fire, 1965-1968. © Ed Ruscha.

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Standard Station, Ten-Cent Western Being Torn in Half, 1964. © Ed Ruscha.



Double Standard, 1966-1969. © Ed Ruscha.


MATERIAIS No final da década de 1960, Ruscha momentaneamente “parou de pintar quadros” para experimentar materiais orgânicos e não convencionais. “Em vez de aplicar uma camada de tinta em um suporte de tela, eu manchava a superfície”, explicou. “Era outra maneira de sair dessa caixa em que eu mesmo me pintei”. Abraçando a imprevisibilidade inerente a esse processo, ele aplicava desde goma-laca até seu próprio sangue no tecido e esfregava pétalas de rosa e tabaco mascado no papel. Quando Ruscha se comprometeu novamente com a pintura a óleo no final da década de 1970, ele exagerou as proporções horizontais de trabalhos anteriores. De acordo com o artista, as imagens panorâmicas resultantes “tornaram-se mais do que pinturas, tornaram-se objetos”. Ao incentivar os espectadores a caminhar ao lado delas para apreciar todos os detalhes, essas pinturas chamam a atenção para as dimensões dos suportes de tela, assim como obras anteriores exploraram as propriedades formais de substâncias incomuns. 90


Hollywood, 1968. The Museum of Modern Art, New York.© Ed Ruscha.

Após um período de experimentação com materiais não convencionais, Ruscha voltou a usar meios tradicionais, como óleo e pastel, para pintar e desenhar fundos prismáticos cada vez mais complexos e coloridos. Eles evocam a grade cintilante de uma cidade à noite, a refração da luz em uma piscina e pores do sol brilhantes no Oeste dos Estados Unidos. No entanto, apesar de suas imagens sugestivas, Ruscha nega qualquer significado mais profundo, referindo-se a eles simplesmente como “cenários anônimos para o drama das palavras”. Nesse período, o uso da linguagem por Ruscha em seu trabalho também evoluiu. Em vez de palavras isoladas, o artista começou a retratar sequências mais longas de texto, tiradas, segundo ele, “da memória, às vezes dos sonhos, às vezes ao ouvir rádio”. Expandindo o repertório de fontes de Ruscha, essas obras apresentam frases da literatura e do cinema, conversas ouvidas e terminologia encontrada em livros de ciências. Em outros exemplos, sua linguagem é mais autorreferencial, fazendo alusões humorísticas à sua ocupação como artista. 91


The Music from the Balconies, 1984. Artist Rooms Tate and the National Galleries of Scotland. York. © Ed Ruscha.


Twentysix Gasoline Stations, 1962, printed 1969. Franklin Furnace Collection. The Museum of Modern Art Library, New York. © Ed Ruscha.


À direita: Jumbo, 1986. The Museum of Modern Art, New York. Brother, Sister, 1987. UBS Art Collection. © Ed Ruscha.

“ ”

SÍMBOLOS O clima mudou no trabalho de Ruscha em meados da década de 1980, à medida que seu uso de cor e linguagem se tornou mais contido. A transição de tinta a óleo para acrílica, aplicada com aerógrafo, levou o artista a criar uma série de “quadros sem pinceladas”. Restringindo-se a uma paleta em grande parte preto e branca, o artista retratou temas retirados da história e da fantasia, como navios e elefantes, como silhuetas indistintas. Em vez de representações fiéis, esses motivos funcionam como símbolos. “O navio é minha interpretação de uma imagem de um navio, em vez de um navio”, disse Ruscha. “É como uma pintura de uma ideia sobre um navio.” As superfícies em tons de cinza dessas obras lembram a fotografia e o cinema primitivos, que Ruscha explorou ainda mais ao pintar projeções de filmes em detalhes minuciosos, recriando o efeito de celuloide degradado por meio de arranhões simulados e pontos de poeira. Assim como essas marcas interrompem as composições, retângulos em branco ocasionalmente aparecem em outras obras desse período. Semelhantes a texto censurado, esses vazios representam tanto a linguagem quanto, como o artista sugeriu, “sugerem um espaço para um pensamento”. 94


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MEMÓRIA Um impulso para registrar a transformação de nosso ambiente construído ao longo do tempo fundamenta o Streets of Los Angeles Archive de Ruscha. Desde 1965, o artista e sua equipe têm fotografado continuamente várias avenidas e ruas em Los Angeles. Agora composto por 750 mil imagens, o arquivo foi adquirido pelo Getty Research Institute, em 2012, e tem sido um recurso importante para estudiosos que exploram temas que vão desde mudanças demográficas até a cena musical local. As ideias frequentemente ocorrem a Ruscha na estrada, seja dirigindo nas congestionadas autoestradas de Los Angeles, ou pelas extensas montanhas e desertos do Sul da Califórnia. Inspirando-se nessa geografia variada, Ruscha 96


À esquerda: Blue Collar Trade School, 1992. Acima: Blue Collar Tech-Chem, 1992. The Broad Art Foundation. © Ed Ruscha.

introduziu novos motivos em relação a temas familiares em seu trabalho das últimas duas décadas e meia. Por exemplo, picos altos e cobertos de neve surgem nos fundos de suas pinturas com palavras – uma abordagem inovadora para sua contínua preocupação com linguagem e paisagem. Ruscha também representou meticulosamente detritos descartados e marcos à beira da estrada em obras que meditam sobre a passagem do tempo por meio de suas representações de acumulação e decomposição. “Sempre operei com uma espécie de método de recuperação de resíduos”, disse ele. “Recupero e renovo coisas que foram esquecidas ou desperdiçadas”. Mais do que uma mera descrição de seu objeto, essa declaração captura as maneiras como certas ideias foram revisitadas e reimaginadas por Ruscha ao longo de sua carreira de seis décadas.

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The Old Trade School Building, 2005. Whitney Museum of American Art, New York. © Ed Ruscha.


Christophe Cherix é curador-chefe de desenhos e gravuras da Fundação Robert Lehman.

ED RUSCHA: NOW THEN • THE MUSEUM OF MODERN ART • NOVA YORK • 10/9/2023 A 13/1/2024


VERIDIAN

Alto Relevo


NA

LEITE


A ARTISTA VERIDIANA LEITE APRESENTA SUA NOVA SÉRIE SUPERNOVA, UMA COLEÇÃO DE PAISAGENS LÍQUIDAS E NOTURNAS QUE REMETE AO FENÔMENO QUE OCORRE QUANDO UMA ESTRELA CHEGA AO FIM DE SUA VIDA E PRODUZ UMA EXPLOSÃO DE BRILHO E CORES

POR CRISTINA TEJO

Olhar para o céu é olhar para dentro de nós, pois comprovações científicas apontam que a maioria dos elementos que compõem o corpo humano, e quase tudo que nos rodeia, foi formado em processos estelares. Ou, mais especificamente: do oxigênio que respiramos aos minerais essenciais para a vida, como magnésio e potássio, tudo é resultado do que é lançado no espaço por supernovas. Como se sabe, chama-se de supernova a explosão de uma estrela gigante, com uma massa de pelo menos 10 vezes do que a do Sol, quando a temperatura no centro de uma estrela atinge vários milhões de graus e gera a fusão do hélio ao carbono, carbono e hélio dando origem ao oxigênio. Dizer que tudo está interligado é pouco. Tudo e todos são feitos da mesma matéria. Nomeamos de esta exposição que arregimenta as pinturas mais recentes de Veridiana Leite. Em todas elas, o fundo tem a cor da noite e do cosmo e os demais elementos parecem explodir, incandescer, reverberar. São corpos celestes, terrestres, humanos, vegetais e minerais em comunhão, movimento, fusão e relação. No entanto, as paisagens são estruturadas e vistas a partir do plano terreal, com horizontes marcados pela dualidade entre água (seria o mar ou um rio?) e o céu. Importante ressaltar que a água não espelha somente, mas é uma espécie de continuação, um reflexo transformativo, que acaba por nos remeter a uma sensação de paisagem em fluxo. 102

Estou triste vou para o mar, 2023. © Veridiana Leite.

"Somos feitos de poeira de estrelas. Nós somos uma maneira de o cosmos se autoconhecer”. (Carl Sagan)



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Dança, 2023. Foto: Duda Las Casas. © Veridiana Leite.

Em sua última individual , Veridiana não apenas ressaltava a importância da dança em sua prática pictórica, mas o gesto inaugural de sua ocupação espacial partia de uma coreografia e a marca a partir da relação de seu corpo com a parede da galeria. de Leonardo da Vinci, a artista À semelhança do demarcava um círculo amarelo com a extensão de seus braços. Este passou a ser o centro de irradiação da exposição que carregava um acento solar, veranil. Quase dois anos depois, parece que chegamos ao inverno. A dança fica mais evidente nos corpos e silhuetas femininos inseridos na paisagem soturna, não menos esfuziante do que as anteriores. Leva um tempo para sujeitos nascidos e criados em terras tropicais entenderem a beleza do inverno e seus dias curtos quase sem sol. A luz que acende é a interna, seja das casas ou das pessoas. É um período de introspecção, de mergulho e de hibernação. É preciso morrer para se voltar a viver. Veridiana Leite endereça justamente este momento de transição e de transformação, quando a noite ainda não se foi e o dia ainda não chegou. Neste ínterim é que talvez resida a eternidade. Ao menos é quando podemos nos conectar visualmente com aquilo que nos gerou, com os elementos mais primevos de todos os mundos e de todos os tempos: o pó de estrelas, as explosões, a supernova.

Cristiana Tejo é doutora em Sociologia (UFPE) e cogestora do projeto e espaço NowHere. É conselheira do Museu de Arte Moderna de São Paulo. 105



Revolução lunar, 2023. © Veridiana Leite.


Entrevista

Flutuo no abismo, 2023. © Veridiana Leite.

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POR LUIZ ALBERTO ÓSORIO

VL: A Exposição , apresentada na Galeria Referência, traz dez pinturas em óleo sobre tela. A escolha do nome se dá porque a Supernova é uma explosão estelar poderosa. Esses eventos astronômicos transitórios ocorrem durante os últimos estágios evolutivos de uma estrela. Acho que tem a ver com essa explosão do corpo e das emoções que passamos nos ciclos de vida e morte. Os trabalhos foram pensados para que os espectadores se movimentem no espaço expositivo, aproximem para ver os detalhes e se afastem para perceberem a totalidade. Das dez telas, três são de grandes , traz a dimensões e representam portais. Essa série, possibilidade de imersão do espectador nas imagens.

VL: Minhas influências não ficam só na pintura, a música e a literatura me influenciam fortemente. No momento, o livro , do filósofo e poeta francês Gaston Bachelard, por exemplo, me inspirou para pintar essa série. Essa publicação, que faz uma meditação sobre a imaginação da água, foi essencial. E, na verdade, as águas também representam os sentimentos e as emoções, e isso está bem presente neste trabalho.

VL: Foi em uma aula de dança africana que eu me inspirei nessa obra. Morando em Portugal, no momento, claro que também isso me influencia, o deslocamento diário, da casa para o ateliê, o caminho do rio Tejo e do mar fizeram parte desse processo. Essa sensibilidade que temos e o movimento do corpo, os ciclos hormonais e da lua também influenciaram nessas pinturas. A vibração, os sons, as emoções, os ciclos do corpo e da natureza, as mortes e os renascimentos. Esses trabalhos estão ligados a essa busca da ancestralidade e à conexão espiritual. Como viver essas alterações nos nossos corpos? Essa busca da ancestralidade, das fases da lua, dos fenômenos da natureza e de que forma influenciam fortemente nosso viver. E como o próprio José Saramago, escritor português, diz: “A pior cegueira é a mental, que faz que com que não reconheçamos o que temos a frente”. Eu penso que essa busca pelo autoconhecimento e espiritualidade está presente na condição de artista mulher. 109



Ainda havia um pedaço de céu, 2022. Foto: Duda Las Casas. © Veridiana Leite.


Néctar, 2023. Foto: Duda Las Casas. © Veridiana Leite.

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VL: Essas telas refletem a noite, mas, junto a isso, são também o espaço de tempo entre o pôr do sol e o amanhecer. A esperança dos começos e, de certa forma, até de enxergar uma luz nessa escuridão. Eu quis ressaltar os reflexos e as luzes que saem da pintura, por isso, dessa vez, a escolha do fundo escuro. A dança também foi essencial, ajudou a dar densidade a essas pinturas, sendo ora transparentes ora entre linhas e gestos que ajudam a compor esse ritmo e movimento das composições. Os reflexos e o espelho, o olhar para dentro, e olhar de frente para as sombras que fazem parte da nossa essência. Colocar a luz e a sombra nesse lugar mais de normalidade. Como diz o filósofo Bachelard: “o ser que sai da água é um reflexo que, aos poucos, se materializa: é uma imagem antes de ser um ser, é um desejo antes de ser uma imagem”.

VL: Quando eu começo a pintar, não sei qual vai ser o resultado. Isso já é um movimento do inconsciente, não planejado, o traço e a linha que formam as figuras podem ter continuidade ou não. O que está ali é o sentir, a intuição. Em princípio, pode até ter imagens identificadas, que são como um ponto de partida, mas o que acontece depois dali eu não controlo. Essas paisagens são mais sentimentais do que reais, lugares imaginários do inconsciente. Na verdade, não é somente sobre os sonhos que estou trabalhando, mas sobre as transformações que vou vivendo, mesmo que, às vezes, sejam de magia e outras perturbadoras.

Luiz Alberto Osório é assessor de imprensa de projetos de artes visuais, teatro, arquitetura e design.

VERIDIANA LEITE: SUPERNOVA • REFERENCIA GALERIA • BRASÍLIA • 10/9/2023 A 13/1/2024 113


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