Revista Dasartes 138

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DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO . REDAÇÃO André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA Leandro Fazolla dasartes@dasartes.com DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br REVISÃO Angela Moraes PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou CMS/RJ financeiro@dasartes.com

Capa: , Big Hypnosis, 2008. Installation view at Yorkshire Sculpture Park, 2023. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.


CAMILLE CLAUDEL 12

AMADEO MODIGLIANI 32

6 Agenda 8 De Arte a Z

FRANS HALS 50

10 Livros

ERWIN WURM 68

RESENHAS 86


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Agenda

A artista Aline Bispo apresenta uma exposição que se desdobra em múltiplas formas de expressão. A série de seis pinturas inéditas destaca-se por ser a primeira vez em que a artista incorpora aplicações em ouro, criando imagens únicas. Essas obras de arte foram inspiradas por cenas e personagens que Aline encontrou durante suas viagens, capturando momentos significativos. Além das pinturas, a exposição também abriga sua primeira instalação: um altar composto por 10 figuras de gesso, cada uma delas cuidadosamente envolta em tecido e fios de contas. O altar inclui outros objetos com o propósito de conferir uma roupagem renovada a elementos que, ao longo dos anos, foram usados pelas religiões de matrizes 6

africanas, incorporando símbolos católicos e cristãos para expressar sua fé. A intenção aqui é resgatar essa tradição, não necessariamente do ponto de vista ritualístico, mas como um testemunho histórico. Cada figura no altar é adornada com fios de contas, alguns envolvendo todo o corpo, enquanto outros se concentram apenas na cabeça, evocando rituais populares em que as expressões comuns incluem a raspagem da cabeça em homenagem aos orixás.

ALINE BISPO: A LINHA DÁ O PONTO, A LINHA DÁ O CAMINHO • MAC RS • PORTO ALEGRE • 24/11/2023 A 3/3/2024



de arte

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AZ

CURSOS • A plataforma de EAD Magnólia Costa.Art lança o curso Arte e cultura no Brasil. A partir da indagação "O que é o Brasil?", Magnólia Costa busca investigar o legado visual e literário construído junto com a invenção do país; a reverberação dessa herança na sociedade brasileira contemporânea a partir de perspectivas étnico-culturais diferentes. Inscrições para vagas gratuitas pode sem feitas em www.magnoliacosta.art

CURIOSIDADES • Um incêndio em uma

galeria de Seattle, nos EUA, destruiu obras de Picasso, Rembrandt e Goya. Outras obras não danificadas agora estão guardadas com segurança em um novo local da galeria. Investigações posteriores determinaram que a causa foi acidental, provavelmente por alguém ter acendido fogo para se manter aquecido em um beco atrás do prédio.

GIRO NA CENA• O Museu de Arte do Rio hasteou sua nova bandeira produzida pelo artista visual californiano Emory Douglas e representa a luta pela democracia e a igualdade racial. A imagem traz um jovem negro com um jornal na mão, onde a manchete que se lê é Todo Poder para o Povo. O artista foi responsável pela concepção estética e publicitária do Partido dos Panteras Negras, um dos principais movimentos antirracistas dos EUA. 8


RESIDÊNCIAS • O Corredor 14, ateliê e espaço expositivo de Pelotas-RS, abre inscrições para a 4ª edição da Residência Zero. Nesta edição, o foco recai sobre a relação sociocultural da região do porto da cidade de Pelotas, envolvendo o trabalho portuário, práticas religiosas de matriz africana, a história econômica e social da cidade, entre outros elementos. Inscrições abertas a partir de 29 de janeiro até 15 de fevereiro de 2024 em www.corredor14.com.br.

PELO MUNDO • Duas pinturas de Marc Chagall e Pablo Picasso foram recuperadas de um porão na cidade belga de Antuérpia, 14 anos depois de terem sido roubadas de um colecionador de arte em Israel. As duas telas foram roubadas em fevereiro de 2010 de uma vila em Tel Aviv, de propriedade da família Herzikovich. Na época, as duas pinturas foram avaliadas em US$ 900 mil. No mesmo assalto, os ladrões também retiraram jóias no valor de US$ 680 mil de um cofre, que nunca foi recuperado.

“ ”

• DISSE KHADYG FARES, curadora da exposição no Museu da Diversidade Sexual de São Paulo, que promove reflexão sobre intolerância religiosa. A mostra fica aberta até 11 de março, no Centro de Referência e Empreendedorismo do MDS. 9


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Livros

A publicação reúne pinturas feitas pelo artista Luiz Zerbini ao longo da última década em viagens e momentos de lazer. Nessas obras feitas fora do ateliê, em pequenas telas que cabem nas malas de viagem, e sem retoques posteriores, lagoas, rios, vegetação, rochas e animais se apresentam recriando vestígios da transformação diária da natureza e da atividade humana. LUIZ ZERBINI: SÁBADOS, DOMINGOS E FERIADOS • Org. Luiz Zerbini e Tiago Mesquita • Editora Cobogó • 224 páginas • R$ 145

Nascida e criada no bairro de Vila Valqueire, Zona Oeste da cidade, a artista Ana Hortides lança a publicação inédita e bilíngue sobre os seus trabalhos artísticos desenvolvidos na casa em que cresceu e lhe serviu como primeiro ateliê nos últimos anos. A pesquisa da artista, como ela mesma costuma dizer, se dá no encontro com o mundo, mas pela órbita da casa, através de seu repertório, com a utilização de suportes de trabalho como sacos de lixo que se tornam bandeiras e cabos de vassouras que as hasteiam, por exemplo. ANA HORTIDES: BATE LAGE • Org. Ana Hortides e Joana Nantes • Atelier Editora • 64 páginas • Gratuito

O livro reúne mais de 80 esculturas criadas nos últimos anos, revelando o universo conceitual, lírico e cativante da artista Maria-Carmen Perlingeiro. Como as notas de uma composição musical ou mesmo personagens de uma peça de teatro, as esculturas sugerem ressonâncias e diálogos com os quais o espectador, na sua contemplação, pode criar as suas próprias associações e, portanto, a sua própria magia. MARIA-CARMEN PERLINGEIRO: PEDRAS SOLTAS • Silvana Editoriale • 132 páginas • € 50,00 10



Destaque

Camille Claudel


The Implorer (large model), modeled about 1898–99, cast about 1905. © Camille Claudel. Private collection. Image courtesy of Turner Carroll Gallery, Santa Fe.


POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA

É possível enlouquecer por amor? Toda vez que se conta a história de Camille Claudel (1864-1943), essa pergunta fica em suspenso. À sombra do relato de paixão, desprezo e internação perpétua, ficam suas esculturas – sempre colocadas como pano de fundo de sua relação amorosa e profissional com o mestre François-Auguste-René Rodin (1840-1917). Sua volúpia, abandono e loucura chegam primeiro. É inegável que a história da arte tenha sido movida por grandes casos de amor, entre eles, a misteriosa relação entre Édouard Manet e Berthe Morisot; as aventuras de Pablo Picasso e suas musas e, ainda, o vínculo tóxico de Frida Kahlo e Diego Rivera. Porém, ver Claudel pelas lentes de Rodin foi uma das violências mais naturalizadas da história da arte. A originalidade das esculturas de Camille Claudel sempre ocupou lugar delicado: elo frágil entre a figura de Rodin e a de seu irmão, Paul Claudel, famoso poeta de sua geração. Apesar de restarem somente 90 obras, sua produção ganhou reconhecimento quase três décadas após sua morte. A exposição , que acontece até 19 de fevereiro de 2024, no Art Institute of the Chicago, tem o desejo de mudar essa leitura: ver, de fato, sua produção escultórica, sem os subterfúgios da crítica patriarcal – sem ofuscar suas obras com a evocação do deprimente abuso. Algo que não aconteceu, por exemplo, em 2005, quando o trabalho da escultora foi exibido pela última vez nos EUA, na mostra no Detroit Institute of Arts. 14

The Waltz (Allioli), about 1900. © Camille Claudel. Private collection. Photo courtesy of Musée Yves Brayer .

NÃO VIVAS DE FOTOGRAFIAS AMARELADAS



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The Waltz (Allioli), about 1900. © Camille Claudel. Private collection. Photo courtesy of Musée Yves Brayer .

A exposição que ocorre em Chicago tem, então, um enorme desafio: reposicionar as 55 esculturas de Claudel, coletadas em mais de 30 instituições e colecionadores, a partir de seus “próprios termos”. E, talvez, o tempo da “revanche” de Claudel seja agora, quando há um forte movimento de revisão sobre as narrativas de artistas-mulheres, colocadas em um segundo plano pela escrita da História. Evidentemente, o curador da mostra , em Chicago, admite que “Rodin é inescapável”, mas ele registra o exercício sincero de não eclipsar o trabalho da escultora com os relatos lascivos que cercam a aluna e o mestre. Permitam-me aqui a referência a Brancusi, outro aluno: “recusei [estudar com Rodin] porque nada cresce sob a sombra de grandes árvores”. Para Claudel, o vulto de Rodin permaneceu por longo tempo. A nova exposição explora as potencialidades de Claudel a partir de suas obras, consideradas, simultaneamente, realistas e expressionistas, assim como são trabalhos no – um movimento estilo internacional que valorizava, sobretudo, a arte produzida a partir de processos manuais e criativos, colocando-se como a tentativa de trazer a beleza às estruturas industriais, opondo-se aos padrões acadêmicos e, ao mesmo tempo, correspondendo à nova dinâmica da sociedade. As curvas incomuns empregadas por Claudel, em suas grandes e pequenas peças, buscam referências no mundo natural; são assimétricas e orgânicas; preocupam-se com as linhas dos corpos, mas ainda mostram que as formas nasceram da pedra, sendo traduzidas ao mármore ou ao bronze. Como na cena de , filme de 1988, protagonizado por Isabelle Adjani e dirigido por Bruno Nuytten, uma criança perguntou à escultora: “Como você sabia que dentro da pedra havia um homem?” De verdade, ela parece libertar as formas humanas de dentro dos cubos rochosos; ela 17



Crouching Woman, about 1884–85. © Musée Camille Claudel, Nogent-sur-Seine. Photo by Marco Illuminati.



Torso of a Crouching Woman, 1913. © The J. Paul Getty Museum, Los Angeles.

nos mostra o rastro de seu trabalho na base da escultura; vemos a rugosidade da matériaprima e o polimento ditando as formas. Para a compreensão de sua obra, voltemos as atenções aos aspectos biográficos. Filha de uma família burguesa francesa – aliás, o pai, Louis-Prosper Claudel, era seu principal incentivador –, Camille estudou na Académie Colarossi. Ela não pôde cursar a École des Beaux-Arts, a escola mais importante da França, porque a instituição não aceitava mulheres em seu corpo discente, em grande parte devido ao preconceito de gênero e à crença de que mulheres não eram aptas a produzir arte de qualidade. Consideradas intelectualmente inferiores, as mulheres não eram capazes de “aprender a boa arte”, bem como era um escândalo as aulas de modelos vivos para essas moças, em função do estigma do “corpo nu” nos estudos de qualquer um dedicado a ser “um artista”. Sendo assim, a formação em escultura era inusual – a escultura, a terceira das artes clássicas, demanda observação do corpo humano, força física e, sobretudo, recursos materiais e financeiros. Nada era menos amigável às mulheres do século 19. Em 1883, a jovem Camille Claudel era um talento junto ao ateliê de Alfred Boucher que, após ganhar uma bolsa de estudos para Florença, recomendou-a para Auguste Rodin, iniciando um relacionamento que se estendeu até 1889. Nesse ínterim, o trabalho conjunto rendeu um período criativo, surgindo esculturas, assinadas por Rodin, reconhecidas pela história da arte, entre elas, ( s.d) e (1888-1889), ambas ligada à produção dos (1880-1917) – obra inspirada na de Dante Alighieri e encomenda que Rodin recebeu para as portas de bronze do Museu de Artes Decorativas de Paris. 21


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Auguste Rodin, Le Baiser (O Beijo, 1888 - 1889. © Museu Rodin, Paris.

Em a modelo é Camille Claudel. Nesse trabalho, Claudel representa uma das filhas do rei Dânaos de Argos, condenada pela morte de seu marido à infinita pena de encher com água os vasos , motivada por sua sem fundo. Já relação amorosa com Claudel, conta sobre o infortúnio de Francesca e Paolo, , que personagens da chegaram ao Inferno depois de serem mortos pelo irmão de Paolo (no caso, o marido de Francesca – mais um caso de traição). Em 1886, Rodin decidiu que a escultura não se encaixava no tema dos . Ele só concordou em exibi-la em 1898. Percebe-se, então, que a proximidade de Claudel gerou reflexos na obra do mestre Rodin e, não tão somente o contrário, como se perpetuou na escrita da história da arte. Por algum tempo, ela foi aluna, musa, amante, parceira e confidente. Mas não se pode ignorar a dinâmica de poder existente entre os dois: Claudel tinha 19 anos, Rodin 42; por mais de uma década, a jovem esteve em um relacionamento com um homem casado e o julgamento social pesou em seus ombros; e, acima de tudo, ele era um dos artistas mais famosos da França e, ela, para os padrões da época, era “apenas uma mulher”. A transgressão de Camille Claudel provocou críticas, como, “Claudel era uma gênia, apesar de ser mulher”, ou, ainda, dizia-se que “ela tinha o talento artístico tal qual o de um homem”. Não bastasse tudo isso, o reconhecimento público não acontecia. Claudel era acusada de imitar seu mestre. Igualmente, ela o acusava de não creditar suas obras feitas no período em que produziram juntos e, ainda denunciava, nas suas palavras, “Rodin e sua quadrilha” de roubo de ideias e de prejudicá-la no mercado de artes.


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Study of Left Hand, 1889. © Art Institute of Chicago.



“ ”

The Mature Age (L'Âge mûr), 1913. © Musée Camille Claudel e Musée Rodin.

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Todos os dilemas pessoais eram matériaprima no seu “fazer arte”. Camille se inspirou em seus sentimentos, ressentimentos, relatos míticos e na observação cotidiana das pessoas ao seu redor. Enfatizou sutilezas e nuances; sublinhou drapeados e ondas. Suas obras são marcadas pelo movimento e pela expressividade corporal. Em (presente na mostra, em quatro versões) os corpos se encontram em movimento e, embora haja um eixo inclinado, a estabilidade é dada pelo contato dos corpos. Observa-se a marcação do centro espacial com a união das mãos. (também chamada Em de , c. 1894–1900), emprestada pelo Musée d´Orsay para a mostra norte-americana, uma figura feminina se encontra ajoelhada e pende a cabeça para um dos lados; ela alonga os braços em sinal de súplica retratando o abandono. São três figuras: um homem dividido entre duas mulheres. De um lado, ele se desprende da jovem que está em posição de súplica, do outro, é acolhido por Clotho, a mulher mais velha. O conjunto do braço da figura masculina e o posicionamento das três cabeças (Clotho, homem e jovem) formam uma diagonal, dando a sensação de níveis espaciais alto, médio e baixo. Na mitologia grega, Clotho é uma das filhas de Zeus, a mais jovem das três ceifadoras que regiam o destino humano. Por isso é interpretada como a personificação do destino. No fundo, a obra também é autobiográfica. Clotho é Rose Beuret, companheira de Rodin, ao passo que a jovem suplicante é Camille. A escultura foi encomendada pelo governo francês, em 1895, mas a incomoda dubiedade entre alegoria e vida real, talvez, tenha sido o motivo do cancelamento, em 1899, antes da fundição do bronze – será 27


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Young Roman, 1881–1886. © The Art Institute Chicago.

que aqui vemos o “dedinho de Rodin”? De qualquer modo, uma versão em gesso da escultura foi exibida em 1899 e, em seguida, fundida em bronze em 1902 – esta última é o exemplar do Musée d´Orsay. Uma segunda fundição foi feita em 1913 e se acredita que a versão em gesso tenha sido destruída naquela época. O ano de 1913 foi dramático na vida de nossa escultora – 14 anos após o rompimento com Rodin –: seu pai, seu maior admirador, morreu. A cronologia dos eventos é rápida: três dias depois, seu irmão, o poeta Paul Claudel, obteve um certificado médico dentro das leis francesas da época que permitia que uma pessoa fosse internada contra sua própria vontade; passados cinco dias, o estúdio de Camille foi invadido por enfermeiros, que a levaram, em uma ambulância, para um asilo, onde ela permaneceu por 30 anos, até sua morte em 1943. Ela nunca mais esculpiu! Camille viveu em um mundo misógino e conservador. Sua vida “desregrada” e seu temperamento raivoso foram vistos como histeria feminina e, assim, ela foi tratada. Seus restos repousam na vala comum do asilo Ville-Évrard. Outros alunos de Rodin, tais como Charles Despiau e Antoine Bourdelle, tiveram sua produção reconhecida, este último, então, foi professor de Henri Matisse e Giacometti. Camille foi apagada. Até os anos de 1970, seu nome não constava em nenhum livro de história da arte.




Giganti (Head of a Bandit), 1885. © Art Institute of Chicago.

O jogo virou na década seguinte: envoltos pelo interesse na estatuária do século 19 e na presença de artistas mulheres, historiadores da arte redescobriram a obra de Claudel. Apesar de ser bem-vinda essa projeção, todas as leituras (quase sempre machistas) sobre a escultora recaíam sobre as vicissitudes biográficas, sua relação tumultuada com Rodin e o declínio de seu estado mental. Na tentativa de mudar essa interpretação viciada sobre a artista, em 2017, foi aberto o museu Camille Claudel, em Nogent-surSeine, cerca de 100 km a sudeste de Paris. Parece irônico, mas o edifício foi inaugurado em meio às celebrações do centenário de morte de Rodin, que incluíram grandes exposições na capital francesa e o lançamento de uma cinebiografia. Agora, a deseja ver a exposição escultora “e não mais as fotografias amareladas” que retratam sua vida e obra.

Alecsandra Matias de Oliveira é Doutora em Artes Visuais (ECA-USP). Pósdoutorado em Artes Visuais (Unesp). Curadora independente. Professora do CELACC (ECA-USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). Membro da Associação Internacional de Crítica de Arte (AICA). Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da Resistência (MCSP, 2022).

CAMILLE CLAUDEL • THE ART INSTITUTE OF CHICAGO • EUA • 7/10/2023 A 19/2/2024 31


Do Mundo


Portrait de Paul Guillaume 1916. © Archives Alinari, Florence, Dist. RMN-Grand Palais / Mauro Magliani.

Amadeo Modigliani


POR CÉCILE GIRARDEAU

Quase cem anos depois do encontro desses dois homens, em 1914, é interessante olhar de novo para um momento superimportante na vida de Modigliani: quando Paul Guillaume se tornou o homem que vendeu as obras de Modigliani, nos anos 1910. E como a relação dos dois pode ajudar a entender a carreira do artista italiano. Quando Amedeo Modigliani (1884-1920) chegou a Paris, em 1906, ele era pintor. Mas, em 1909, depois de conhecer Brancusi, começou a esculpir, dedicando quase todo o tempo a isso até 1913. De repente, em 1914, ele largou a escultura de vez e voltou para a pintura, fazendo centenas de quadros e muitos desenhos, focando só em retratar pessoas. E é essa mudança para a pintura que é o coração da relação dele com o . Paul Guillaume deu uma força, arrumou um lugar em Montmartre para ele trabalhar, divulgou as obras em círculos artísticos e literários em Paris. Ele comprou, vendeu e colecionou as obras, garantindo uma vida melhor para o artista e fazendo a fama dele crescer, até mesmo fora do país. 34

Elvire assise, accoudée à une table, 1919. © Saint Louis Art Museum Image Courtesy of the Saint Louis Art Museum.

NOVA EXPOSIÇÃO DE AMEDEO MODIGLIANI RESGATA ALGUMAS DE SUAS OBRAS-PRIMAS ICÔNICAS E EXPLORA OS LAÇOS ENTRE O PINTOR E PAUL GUILLAUME, SEU JOVEM MECENAS E MARCHAND NO RELUZENTE CENÁRIO ARTÍSTICO E LITERÁRIO DE PARIS NOS ANOS 1910




Paul Guillaume, Novo Pilota, 1915. Foto: © RMN-Grand Palais (Musée de l'Orangerie) / Hervé Lewandowski.

Dizem que foi o poeta Max Jacob que apresentou Modigliani para Guillaume, em 1914. Provavelmente, de Modigliani no ano ele começou a ser o seguinte, como mostra a correspondência entre Paul Guillaume e o mentor dele, o poeta e crítico de arte Guillaume Apollinaire, que estava na frente de batalha durante a Primeira Guerra Mundial. Foi nesse contexto de Paris que o pintor eternizou o em uma série de retratos, tanto pintados quanto desenhados, que ficaram famosos. Entre 1915 e 1916, Modigliani fez quatro retratos pintados do seu mecenas. O primeiro deles, que está guardado no museu de l’Orangerie, mostra a relação especial entre e o artista. Guillaume, que tinha só 23 o anos na época, aparece vestido como um piloto visionário da vanguarda, todo chique, com luvas e gravata, e em cima está escrito “Novo Piloto”. Isso era uma fonte de dá a entender que o grande esperança para o pintor. Os relatos de Guillaume também mostram um lado mais pessoal de Modigliani, que tinha afinidades artísticas e literárias com o . Os dois gostavam arte africana, literatura e poesia. Paul Guillaume lembra que Modigliani “gostava e julgava a poesia, não de um jeito frio e incompleto de um professor universitário, mas com uma alma misteriosamente sensível e aventureira”. Além das cinco pinturas de Modigliani do acervo do l’Orangerie, mais de cem quadros, cinquenta desenhos e cerca de dez esculturas do artista passaram pelas mãos do marchand. Isso mostra que ele não só ajudou a promover Modigliani, mas tinha um apreço pessoal por seu trabalho, que ele exibia abundantemente nas paredes de seus vários apartamentos. Eram retratos das figuras marcantes de Paris na época, como Max Jacob, André Rouveyre, Jean Cocteau, Moïse Kisling, além de modelos desconhecidos e conjuntos lindos de retratos das mulheres que compartilharam a vida do pintor. 37



Femme au ruban de velours, vers 1915. Foto: © RMN-Grand Palais (Musée de l'Orangerie) / dr.


Modigliani dans son atelier, rue Ravignan Vers 1915. Foto: © RMN-Grand Palais (Musée de l'Orangerie) / Archives Alain Bouret, Dominique Couto.

PARIS: ENTRE MONTMARTRE E MONTPARNASSE No início do século 20, Paris era um ímã e um caldeirão para artistas da vanguarda. Uma variedade de artistas de partes completamente diferentes do mundo se mudou para a cidade, entre eles Amedeo Modigliani, que chegou da Itália em 1906. Dois bairros na capital francesa – Montmartre e Montparnasse – destacaram-se por seu sentido abrangente de competição artística, e Modigliani se movimentava constantemente entre os dois. Quando o artista se uniu ao galerista Paul Guillaume, ele alugou para ele um ainda famoso estúdio na rue Ravignan, em Montmartre.

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Portrait de Moïse Kisling, 1915. Foto: SCALA, Florence - Courtesy of the Ministero Beni e Att. Culturali e del Turismo, Dist. RMN-Grand Palais.

ABORDAGEM FIGURATIVA Ao longo de sua carreira, Modigliani se dedicou quase exclusivamente à representação da figura humana. Os personagens ao seu redor, modelos e até figuras anônimas formaram a base de seu trabalho. Suas pinturas estão repletas das características únicas das pessoas que ele retratou, incluindo suas companheiras Beatrice Hastings e Jeanne Hébuterne. No entanto, sua arte também é impregnada de uma forma de estilização e minimalismo que confere uma qualidade sintética aos seus retratos, que às vezes se assemelham a máscaras com pupilas em branco. Guillaume, que buscava reunir grupos de maneira clássica, moderna e sintética, naturalmente ficou impressionado com o trabalho incomum de Modigliani. 41


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À esquerda: Artiste fang, Gabon, Masque anthropomorphe Ngon Ntang, século XIX. © Musée du quai Branly - Jacques Chirac / Claude Germain. Acima: Artiste fang, Gabon, século XVIII © Fondation Angladon-Dubrujeaud.

ATRAÇÃO PELA ARTE NÃO OCIDENTAL Assim que abriu sua galeria, em 1914, Guillaume começou a expor esculturas africanas e pinturas modernas lado a lado. Enquanto isso, Modigliani frequentava o Musée Éthnographique du Trocadéro desde 1909 e mostrava um interesse inicial pela arte não ocidental. Embora ele tenha parado de fazer esculturas em pedra no início da Primeira Guerra Mundial, há paralelos a serem traçados entre suas cabeças pintadas de 1914 e 1915 e essas formas angulares e alongadas, que também evocam certas inovações estilísticas semelhantes ao Cubismo. 43



Diana, Princess of Wales, 1999. Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.


Pág anteriores:: La Belle irlandaise, en gilet et au camée, 1917-1918 e Le Jeune Apprenti,1917-1919. A direita: Antonia, 1915 e La chevelure noire, dit aussi Jeune fille brune assise, 1918. © RMNGrand Palais (Musée de l'Orangerie).

O PERÍODO NO SUL Em março de 1918, com a saúde de Modigliani deteriorando, sua companheira Jeanne Hébuterne grávida e bombas caindo sobre Paris, o segundo negociante de arte do artista, Léopold Zborowski, enviou-os para morar no Sul da França. Essa estadia no Sul deu origem aos retratos mais belos de entes queridos e de estranhos, todos claramente inspirados por Cézanne e marcados pela paleta de cores e toque do artista. Algumas fotos também mostram Paul Guillaume com Modigliani na Promenade des Anglais, em Nice, ilustrando a contínua relação entre os dois. Assim como antes, Guillaume comprou pinturas desse período, mesmo após a morte do artista, em 1920, e continuou a circulá-las e vendê-las tanto na França quanto no exterior. 46


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Bay of Sagami, Atami, 1997. Foto: Courtesy of the Artist. © Hiroshi Sugimoto.

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Anonyme, Paul Guillaume assis dans un fauteuil en rotin 16, av. De Villiers, Non daté. © RMN-Grand Palais (musée de l'Orangerie) / Dominique Couto.

MODIGLIANI NOS INTERIORES DE PAUL GUILLAUME As várias residências de Guillaume foram vitrines para sua coleção. Desde sua modesta casa de três quartos no início de sua carreira – que servia como e permitia experimentação genuína – até o magnífico apartamento na Avenue du Maréchal Maunoury, no 16º andar, onde ele se instalou, em 1934, ano de sua morte, o negociante deu destaque às obras de Picasso, Matisse, Renoir, Cézanne e Derain, ao lado de peças não ocidentais. O trabalho de Modigliani, entretanto, sempre teve destaque.

Cécile Girardeau é curadora e conservadora do Museu de L'Orangerie, em Paris, França.

AMADEO MODIGLIANI: UN PEINTRE ET SON MARCHAND • MUSÉE DE L’ORANGERIE • FRANÇA • 20/9/2023 A 15/1/2024 49


Flashback

FRANS

The Laughing Cavalier, 1624. © The Wallace Collection, London.


HALS


POR REDAÇÃO

. (Vincent van Gogh para Emile Bernard Arles, 30 de julho de 1888) Entre seus contemporâneos, a habilidade de Frans Hals (1582/84– 1666) com o pincel só era igualada por artistas como Rembrandt, nos Países Baixos, ou Velázquez, na Espanha. Ele pintava com tanta confiança que, aparentemente, nunca fazia desenhos preliminares. Em vez disso, trabalhava principalmente de primeira, aplicando a tinta sobre camadas anteriores ainda úmidas em uma única sessão. Em vida, Hals foi elogiado por sua caracterização excepcionalmente vívida das pessoas, tanto retratando clientes pagantes quanto inventando personagens baseados em uma combinação de observação e imaginação. Conseguia representar pessoas sorrindo, um desafio evitado pela maioria de seus contemporâneos. No entanto, sua estrela perdeu brilho até a segunda metade do século 18, quando seu trabalho foi redescoberto pelo crítico de arte e colecionador francês Théophile Thoré (que também redescobriu Vermeer), passando a ser admirado inclusive por pintores como Manet e Van Gogh. Hals nasceu em Antuérpia, na Bélgica, no início dos anos 1580. Pouco depois da queda da cidade para os espanhóis, em 1585, a família Hals se mudou para Haarlem, no norte dos Países Baixos. Em 1610, Hals se matriculou na Guilda de São Lucas de Haarlem para estabelecer seu ateliê como pintor. Sua habilidade como retratista lhe rendeu muitas encomendas de pessoas ricas, casais, famílias e companhias de militares. Apesar de seu sucesso, Hals e sua numerosa família enfrentavam problemas financeiros. Nos últimos anos de sua vida, a cidade de Haarlem reconheceu as realizações ilustres, fornecendo-lhe uma pensão. Ele faleceu em 1666, com mais de 80 anos de idade. 52

Portrait of Catharina Hooft with her Nurse, 1619-20. © Photo Scala, Florence / bpk, Bildagentur für Kunst, Kultur und Geschichte, Berlin.. Foto: Jörg P. Anders.

UM DOS MAIS POPULARES ARTISTAS HOLANDESES DO SÉCULO 17, FRANS HALS PINTOU ALGUMAS DAS OBRAS MAIS MEMORÁVEIS DA ÉPOCA. SUA TÉCNICA RÁPIDA DE PINTURA LHE RENDEU A REPUTAÇÃO DE VIRTUOSO



Portrait of a Woman standing,1612. The Devonshire Collections, Chatsworth. Reproduced by permission of Chatsworth Settlement Trustees. Portrait of a Man holding a Skull, 1612. © The Henry Barber Trust, the Barber Institute of Fine Arts, University of Birmingham.

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PRIMEIROS TRABALHOS A carreira inicial de Frans Hals permanece envolta em mistério. Seus retratos mais antigos sobreviventes são do início da década de 1610. Quando os pintou, já estava perto dos 30 anos, não mais um artista iniciante. Eles são habilidosos demais para serem suas primeiras tentativas de retratos. O que os precedeu é desconhecido para nós. Suas obras iniciais também têm influência de seu aprendizado com o artista de Haarlem, Karel van Mander (1548-1606), que pintava principalmente temas bíblicos. Há um traço distintamente flamengo nas pinturas de Hals, em sua dignidade e gosto pela vida. Seus tons luminosos de pele têm uma qualidade semelhante à de Rubens, especialmente em seus primeiros trabalhos. No entanto, o que o diferencia é sua habilidade incomparável em destacar o caráter de uma pessoa. RETRATOS COMO ARTE Na época de Hals, os retratos tinham uma função dinástica. Eles preservavam o lugar do retratado na linha familiar para a posteridade. Os retratos também e riqueza, expressavam frequentemente derivados do império colonial da República Holandesa. Para o professor de Hals, Karel van Mander, a arte do retrato era inferior à representação de figuras humanas em histórias bíblicas ou mitológicas. Ele a desprezava como um “caminho lateral da arte”, exigindo apenas uma imitação desprovida de imaginação. No entanto, com Hals, a arte do retrato toma um rumo definido em direção ao caminho principal. 55


PERSONAGENS INVENTADAS As encomendas de retratos para pessoas abastadas exigiam certo decoro. Nas cenas que retratam pessoas comuns das décadas de 1620 e 1630, Hals se permitia mais liberdade. Aqui, ele aplicava sua pincelada solta de maneira ainda mais vigorosa. Hals representava “tipos” sociais com características individualizadas, mesclando (estudos elementos de retratos, expressivos de cabeça) e temas “gênero” do cotidiano. Suas personagens incluem músicos alegres, tolos risonhos e bêbados barulhentos. Ele baseava essas personagens em pessoas reais, possivelmente até em seus próprios filhos, além de personagens convencionais de peças satíricas. Hals era membro de uma sociedade de dramaturgia que encenava tais performances. 56

The Lute Player, about 1623. © Musée du Louvre, Paris, Department of Paintings.

Reconhecemos instantaneamente as pessoas que conhecemos por meio de uma compreensão inata de sua expressão, postura e comportamento. É diabolicamente difícil converter essa sensibilidade em tinta que flui de um pincel. Mas Hals realizou o feito de criar no espectador um momento visceral de reconhecimento, mesmo que não tenhamos como conhecer o retratado. Sua pincelada solta o ajudava, assim como sua habilidade em captar a atitude de uma pessoa. Isso encontra sua manifestação mais brilhante e complexa em seus retratos de grupo de companhias militares. O riso também é uma das expressões mais difíceis de serem capturadas por um pintor. Hals obteve sucesso ao transmitir uma sensação de movimento espontâneo por meio de sua pincelada solta. Ele capturou suas personagens no meio da risada, nunca presos em uma careta. Alguns de seus retratados até mostram os dentes enquanto sorriem, o que os espectadores da época perceberiam como sinal de falta de delicadeza e frivolidade, ampliando seu efeito cômico.


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Young Man holding a Skull (Vanitas), 1626-28. © The National Gallery, London.



Portrait of a Couple, probably Isaac Abrahamsz Massa and Beatrix van der Laen, about 1622. © Rijksmuseum, Amsterdam

LAÇOS FAMILIARES A sensibilidade de Hals para capturar a personalidade e a presença fez dele um observador brilhante das relações humanas. Uma grande parte de sua obra consiste em retratos individuais – ou em pares – de casais. Muitos foram separados ao longo do tempo. Mas os individuais são melhor compreendidos e apreciados como uma única obra de arte. Apenas um retrato duplo de Hals sobrevive. Essa obra calorosa e íntima provavelmente representa Isaac Abrahamsz Massa e sua esposa Beatrix van der Laen. Hals e Massa eram amigos. Ele é visto em mais duas pinturas. Ocasionalmente, Hals pintava uma família inteira. Assim como nos retratos em grupo, ele coordenava coreografias complexas com aparente facilidade. O cuidado que ele tinha ao organizar os retratados é disfarçado por uma impressão geral de simplicidade. 60


Family Group in a Landscape, about 1645–8. © Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, Madrid.

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Girl Singing, 1625–30. © Virginia Museum of Fine Arts.

DE PERTO Mais conhecido por suas obras em tela em grande escala, Hals também pintava em uma escala muito menor ao longo de sua carreira. Ele preferia pintar essas obras de dimensões reduzidas em uma superfície lisa, geralmente uma placa de madeira. Usando pincéis menores, Hals empregava a mesma técnica livre e expressiva de suas obras maiores.

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Boy Playing the Violin, 1625–30. © Virginia Museum of Fine Arts.

Esses retratos proporcionam uma experiência de visualização mais íntima. Alguns devem ter sido destinados aos aposentos privados da residência do retratado, para serem vistos apenas pela família e amigos mais próximos. Outros, principalmente de estudiosos e clérigos, foram copiados em escala pelos mais proeminentes gravadores de Haarlem. As gravuras resultantes seriam usadas para ilustrar livros ou circular a semelhança do retratado. Nem sempre sabemos se Hals criou as pinturas como modelos para o gravador ou se foram concebidas como obras independentes que foram posteriormente gravadas. 63


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La Liseuse, ca 1940. Centre Pompidou, Paris, Musée national d’Art moderne / Centre de création industrielleBanquet of the Officers of the bpk / CNAC-MNAM / Jacques Faujour. St George Civic Guard. © Frans

Hals Museum, Haarlem. 69


ÚLTIMAS OBRAS Nessa fase final de sua carreira, a técnica de pintura de Frans Hals entrou em sua fase mais audaciosa. Ele tinha cerca de 80 anos quando pintou algumas dessas obras. Nessa idade, o olho humano raramente vê tão claramente como antes, mas não devemos atribuir o estilo tardio de Hals à diminuição da visão. Sua tendência para uma aplicação cada vez mais ousada de tinta foi uma escolha artística deliberada. No final do século 17, houve uma tendência geral em direção a um estilo suave na pintura holandesa. No entanto, Hals decidiu se apegar aos seus próprios métodos. Havia patronos que preferiam sua pincelada dinâmica e caracterização poderosa ao que estava na moda. Assim como Ticiano, antes dele, e Rembrandt, por volta da mesma época, Hals deve ter decidido que um estilo de pintura audacioso, até mesmo áspero, era uma culminação adequada de sua prática ao longo da vida. 66


Regents of the Old Men’s Alms House, 1664. © Frans Hals Museum, Haarlem.

FRANS HALS • THE NATIONAL GALLERY • LONDON • 30/9/2023 A 21/1/2024 • THE RIJKSMUSEUM • AMSTERDAM • 16/2 A 9/6/2024 • GEMÄLDEGALERIE • BERLIN • 12/7 A 3/11/2024 67


Alto Relevo

Step Big, 2021. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.


ERWIN WURM


POR REDAÇÃO “

” (Erwin Wurm) Erwin Wurm (1954) é um dos artistas mais proeminentes da Áustria, bastante conhecido pela sua exposição no Pavilhão Austríaco na Bienal de Veneza de 2017. Ao longo de três décadas, desafiou as regras da escultura, as limitações do corpo humano e a sua relação com os espaços que habitamos. Wurm pondera o que é a escultura e o que pode ser, ampliando os seus limites e questionando o valor e a importância que atribuímos aos objetos do cotidiano. Ele é ao mesmo tempo lúdico e político, usando cenários ridículos para criar trabalhos que abordam como nos adaptamos às demandas da sociedade e como a escultura pode derrubar crenças culturais. Apresentando-nos a esta contemplação filosófica de Wurm, o título da nova exposição , no YSP (Yorkshire Sculpture Park) – a primeira mostra em museu do Reino Unido – refere-se ao pensamento do influente filósofo francês do século 17, René Descartes, que se propôs a interrogar a subjetividade da verdade. Este questionamento da realidade está imortalizado na frase “Penso, logo existo”. 70

Big Mutter, 2015. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.

O CORPO DE TRABALHO DO ARTISTA ERWIN WURM PERTURBA AS PERCEPÇÕES DO FAMILIAR E DO SENSÍVEL. EM UM PROCESSO REPLETO DE HUMOR E EXPERIMENTAÇÃO, ELE FREQUENTEMENTE REIMAGINA OBJETOS COMUNS, CONFERINDO-LHES CARACTERÍSTICAS HUMANAS


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Big Kastenmann, 2012; Big Disobendience, 2016. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.

Ao ar livre, 19 esculturas ocuparão a paisagem patrimonial do YSP, incluindo obras novas e inéditas. exploram a Três esculturas da série cultura de consumo e objetos de . Entre elas (2021), em azul pastel, com cinco está a metros de altura, que é uma bolsa de alta costura personificada, com pernas longas e elegantes e botas (2021) e (2021) – pasta e mala da moda. respectivamente – completam a série, com suas pernas longas e dinâmicas dando uma sensação de vida humana na paisagem. (2012), que se traduz como 'homem da caixa grande', tem cinco metros de altura, com uma grande caixa no torso e vestindo um paletó formal rosa e cinza. Este foi o primeiro projeto de arte pública em grande escala de Wurm, exibido fora do The Standard Hotel na cidade de Nova York em 2012. (2023), outra escultura de bronze de 3,2 metros de altura será mostrado pela primeira vez – a majestosa forma humana criada por camadas elaboradas de vestes que lembram estátuas clássicas antigas e fazem referência à escultura de Rodin de mesmo nome. Baseando-se na identidade histórica e cultural de seu país, Wurm interpreta alimentos populares austríacos, o mais icônico deles é o maxixe, ou pepino em conserva, pelo qual tem um fascínio de longa data. É apresentado aqui com o bronze de quatro metros de altura (2016), enquanto outros três gigantes da série (2014-18), são salsichas de bronze antropomorfizadas que fazem referência à salsicha do cachorro quente, que em alemão e inglês se chama ou de Viena, capital da Áustria. Ambos os alimentos se prestam à monumentalização como escultura e propõem leituras contemporâneas de totens, dorsos, obeliscos e outras formas escultóricas antigas. 73



Installation view of Trap of the Truth at Yorkshire Sculpture Park, 2023. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.


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Vista da exposição de Erwin Wurm no Centro Cultural Bando do Brasil São Paulo, 2017. Foto: Carol Quintanilha.

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A escultura de Erwin Wurm é uma profusão de expressão e cor contra a paisagem verde do YSP e suas galerias. Seus poderes imaginativos são ilimitados e os visitantes podem se sentir inspirados, energizados, confusos e divertidos com esculturas que retratam objetos familiares, mas de uma forma totalmente inesperada. As bolsas de alta costura têm pernas e braços longos que garantem a elas uma atitude real; uma bolsa de água quente de quatro metros de altura torna-se uma mãe grandiosa e calorosa; um caminhão de verdade se curva e sobe na parede de uma galeria; enquanto o pepino gigante parece estar orgulhoso. Wurm chama a atenção para a forma como os humanos se adaptam às exigências da sociedade, para o impacto psicológico da cultura contemporânea e para a forma como usamos a história e a tradição para estruturar as nossas vidas. Na Underground Gallery, uma seleção de mais de 50 esculturas desvenda as complexidades da prática de Wurm, ao lado de 60 obras bidimensionais que ilustram a prolífica prática de desenho do artista com caneta, giz de cera e aquarela. (1991), um carro Renault 25 adaptado A primeira obra da galeria é o em tamanho real que foi inclinado, como se estivesse distorcido pelas curvas em alta velocidade. Esta referência à animação, à ilustração de histórias em quadrinhos e à cultura popular prepara o cenário para a tendência de Wurm para o absurdo e o desejo de minar a conformidade.

Renault 25, 1991. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.

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Pintura Circular, 2017. Foto: Edouard Fraipont. © Jarbas Lopes.

Trip, 2021; Dance, 2021. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.


Na Galeria Um, obras da série fazem referência a filósofos, psicólogos e pensadores de meados do século 19 a meados do século 20, incluindo Friedrich Nietzsche, Karl Marx e Ludwig Wittgenstein. Esses intelectuais são frequentemente homenageados por suas casas ou cabanas e Wurm dá continuidade a essa noção de celebrizar espaços de solidão, representando seu próprio espaço de trabalho com a escultura em alumínio ( ) (2005), uma obra irracional e autodepreciativa, representação de sua casa e estúdio em Limberg, Áustria. As esculturas de concreto de 2022 pegam o que parecem ser fragmentos de estruturas demolidas, incluindo arame de ferro, madeira e pedra, e os fundem com formas de concreto moldado de casas e (2022) são edifícios e carros. carros de bronze e alumínio que foram esmagados por salsichas e bananas enormes de uma forma humorística, mas desconfortável. Um caminhão Mercedes de 5,6 metros de comprimento mostra a grande variação de escala com que Wurm trabalha, e o vermelho brilhante (2011) parece ter invertido a parede da galeria onde ele repousa, precariamente. Wurm ganhou destaque na década de 1990 com suas – uma série contínua de trabalhos onde o artista dá instruções escritas ou desenhadas para os participantes posarem com objetos comuns, como baldes, frutas ou cadeiras, por um tempo limitado. Ele documenta essas interações fugazes, onde o espectador se transforma na obra de arte, com fotografias e vídeos, cuja seleção era exibida ao lado de vários objetos.

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Acima: Installation view of Trap of the Truth e Truck II, 2011 at Yorkshire Sculpture Park, 2023. Abaixo: Crash Long, 2022. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photos © Jonty Wilde, courtesy YSP.

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Balzac, 2023. Courtesy Studio Erwin Wurm and Thaddaeus Ropac Gallery. Photo © Jonty Wilde, courtesy YSP.



Ampliando a ideia do espectador como artista, objeto de arte e participante, (2017) é um trailer adaptado com a qual os visitantes podem interagir colocando suas cabeças, mãos, nádegas ou pés através de aberturas, incentivando a perturbação e a desordem no normalmente sagrado ambiente do museu. Esculpidas em mármore, as esculturas dos imortalizam o pão, as salsichas e um grão de café – dando-lhes literalmente o status de estatuária clássica, colocando-os num pedestal. Ao lado estão , sete esculturas de cerâmica da série que Wurm começou a fazer em 2018 em uma tentativa de regressar ao ato físico e direto de esculpir. Incluindo trabalhos intitulados , e , eles incorporam partes do corpo associadas aos sentidos humanos, continuando a consideração de Wurm sobre o corpo e como vivenciamos o mundo ao nosso redor. Completam a exposição seis – óleo sobre tela que o artista começou a pintar em 2020. Trabalhando principalmente com escultura, Wurm traduz noções de forma e volume para as telas pintadas com cores vivas, que têm letras esticadas e distorcidas soletrando seus respectivos títulos em quase formas irreconhecíveis.

ERWIN WURM: TRAP OF THE TRUTH• YORKSHIRE SCULPTURE PARK • REINO UNIDO • 10/6/2023 A 28/4/2024 84


Desembolaembola, 1996. Foto: Edouard Fraipont. © Jarbas Lopes.

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Resenhas

UMA AURORA “A FRESCO”: THIAGO ROCHA PITTA NA DANIELIAN

POR MATTEO BERGAMINI pertence ao universo da poesia e da inquietação. E não, não é somente o título desta exposição de Thiago Rocha Pitta na Galeria Danielian, no Rio de Janeiro, a marcar a beleza de paisagens que rememoram os devaneios do amanhecer, quanto um conjunto de pinturas – na maioria inéditas – que vão além da tela a se transformarem em sonhos, em visões, em espantos. É o Rio o sujeito maravilhoso a surgir de vários quadros, sob nuvens roxas e céus pingados de ouro, avistado em noites que se dissolvem em amanheceres irreais. Vão-se as imagens da cidade das praias e do sol, da malandragem e da floresta; entra no imaginário um “império das luzes” relembrando, sim, uma ideia surreal – onde o foco que atravessa essas superfícies pictóricas para permitir a observação da cidade lá embaixo é mínimo: uma fotografia tirada de uma janela de avião subindo no ar, cruzando a turvação. 86


À esquerda: Eclipse total do Sol, 02/07/2019. Abaixo: Vênus e a Rocha, 2020 e O olho do ciclope, 2017. © Thiago Rocha Pitta.

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Tudo o que vem depois são impressões e essa é, também, mais uma ideia que carregam consigo as pinturas de Thiago Rocha Pitta, combinando a maravilha da antiga técnica “a fresco” com a química, aproximando o contemporâneo da aparente falha ) com o encanto. tecnológica (o Isso acontece, de forma proeminente, na obra , complexo de 24 imagens realizadas com a ajuda do ambiente, onde a cor do pigmento utilizado no afresco se altera pela sua exposição ao ar livre: o resultado interliga abstratamente o azul e o amarelo, a água e a areia, a praia e o mar, transformando-se metaforicamente no arranjo da identidade carioca. Aliás, esse é o somente um dos pontos de contemplação pelos quais podemos mirar essa exposição cuja riqueza e cujo requinte técnico não reprimem a leveza desses “panoramas” alheios. Escreveu o curador Paulo Azeco: “Rocha Pitta abordou recorrentemente temáticas ligadas à ecologia, oscilando entre um bucolismo onírico e a iminência apocalíptica”. De fato, quem sabe a estrela cadente que aparece em uma das visões da aurora não seja, na realidade, um asteroide pronto a acabar com o mundo conhecido? Mais do que isso: os morros a despontar entre a névoa e as nuvens desvendam todos os estereótipos que se reservam à paisagem de Copacabana, alcançando com o a imagem bem real de uma cidade até cinzenta onde, novamente, o foco da vida da metrópole está para além da nébula, silencioso e longe. 88


Cetácea Vingança, 2022. © Thiago Rocha Pitta.

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Se , de Guimarães Rosa, é o livro-guia que o curador escolheu para investigar “A aurora de um dia seguinte” a respeito da “constante fluidez que nos envolve a cada instante”, entrelaçando as pinturas de Thiago com as palavras faladas pelo protagonista Riobaldo, podemos também indagar esse texto sacro da literatura lusófona contemporânea pela sua imensa capacidade de criar o cenário perfeito da travessia, palavra-chave que permeia o volume todo: as abordagens de uma pintura suspensa no ar doam à produção de Thiago Rocha Pitta o fascínio de uma viagem além do pressentido, ecoam o sentimento de estranheza que se reserva ao mundo de amanhã. Será que a pintura de Thiago se dispõe à conclusão da jornada, momento no qual – conforme as palavras de Rosa – se começa a compreensão do que se passou? Eis o surgimento das reflexões que as “pinturas atmosféricas” de Thiago Rocha Pitta querem levantar: qual é o nosso papel nos riscos ambientais da época moderna, aliás, qual é o efeito das nossas ações – e daquelas que já cometemos – no quadro da mudança da natureza? A resposta é complexa, especialmente observando as maravilhas e as inquietações vindas por um deslumbrante céu roxo: a travessia corre em todos os lugares.

Abaixo: Pássaros, 2019. À direita: Nevoa de Cal, 2019. © Thiago Rocha Pitta.

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Matteo Bergamini é jornalista, crítico e escritor especializado em Arte Contemporânea. Colabora com a revista italiana ArtsLife e com a portuguesa Umbigo.

THIAGO ROCHA PITTA: A AURORA DE UM DIA SEGUINTE • DANIELIAN GALERIA • RIO DE JANEIRO • 10/12/2023 A 17/2/2024 91


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