DIRETORA
Liege Gonzalez Jung
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EDITORIAL
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Guilherme Bueno
Marcelo Campos
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Leandro Fazolla dasartes@dasartes.com
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REVISÃO
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Doe ou patrocine
Capa: , Dr. Pozzi at Home, 1881. © The Armand Hammer Collection, Los Angeles.
pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou CMS/RJ financeiro@dasartes.com
12 JOHN
SARGENT MARCEL DUCHAMP 52 ANNA MENEZES 6 8 32 Agenda De Arte a Z 68 ANNIE LEIBOVITZ RESENHAS 90 10 Livros
SINGER
Exposição inclui trabalhos da série , na qual o artista José Bechara criou obras de pequenos formato e superfícies que exploram cores altas e sólidas e que insistem em um transbordamento para além da métrica a que estão limitadas. A mostra também traz peças tridimensionais da série , em alumínio e pintura fluorescente e Super Oxy em aço SAC. São esculturas constituídas por elementos geométricos de diferentes massas e medidas, ordenados por gravidade e que propõem reflexão sobre o vazio na medida em que, combinando sólidos cheios e vazios, sugerem "desenhar" no espaço real.
A exposição reúne um conjunto de pinturas nas quais a tradição geométrica, que usualmente afirma um mundo ideal, cede lugar a uma crise de certezas e elogia outros aspectos, mais ligados à condição humana: as imperfeições desse mesmo mundo constituído por dúvidas, receios e falhas. "Minha relação com a geometria guarda a vontade de revelar defeitos do mundo real, de corroer certezas e danificar as matemáticas", detalha José Bechara.
JOSÉ BECHARA: LAMPEJAR •
INSTITUTO ARTIUM DE CULTURA • SÃO PAULO • 24/3 A 19/5/2023
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Agenda
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de arte ,AZ
PELO MUNDO • Mural estudantil de Gerhard Richter é recuperado na Alemanha. O mural foi pintado em 1979, quase duas décadas depois de Richter ter fugido da Alemanha Oriental. A obra pode ser uma das peças mais importantes na obra do artista, ajudando-o a garantir uma bolsa de doutorado de três anos e um espaçoemumestúdionaUniversidade.
CURIOSIDADES • Uma nova exposição foiinaugurada30metrosabaixodonível do mar. Campina de Cima, a mina de sal-gema debaixo da cidade de Loulé, em Portugal, traz programas sobre a crise climática e a padroeira da mineração. Recentemente, assumiu um novo papel como espaço expositivo com Oceano: Mar é Vida, incluindo obras de artistas da Associação Portuguesa David Melgueiro, que faz campanha pela limpeza dos oceanos.
MERCADO encontrado um Van Gogh em sua casa. Mas, infelizmente, era uma farsa. A pintura,muitosemelhanteaoutraexposta naNationalGalleryofArt,emWashington, foi descoberta atrás do isolamento de umaparedequeestavamderrubandoem um reforma. Pesquisadores da Universidade local descobriram evidências de pigmentos que surgiram somenteapósamortedopintorholandês.
GIRO NA CENA • Pinacoteca de São
Paulo abre a temporada de exposições 2024 com uma das artistas brasileiras mais relevantes do século 20. Lygia ClarkocupaassetegaleriasdaPinaLuz, com mais de 150 obras que demonstram o legado dos mais de 30 anos de carreira da artista e comemora o seu centenário, com obras como Projetoparaumplaneta (1960)–dasérie
Bichos, que dá nome à exposição.
De 2/3 a 4/8/2024
PELO MUNDO • O rapper portoriquenho Bad Bunny se tornou uma escultura de Giacometti em uma nova campanha publicitária do estilista Jacquemus. De pé sobre uma coluna de pedra tendo como pano de fundo a Riviera Francesa, o músico emula a elegante obra de arte do escultor suíço Alberto Giacometti. Jacquemus também se inspirou em artistas como Joan Miró, AlexanderCaldereGeorgesBraquepara a nova coleção.
• DISSE FRÉDÉRIC JOUSSET, fundador da Art Explora, projeto em parceria com o Tate que viajará em turnê pela Inglaterra em um museu móvel montado em um caminhão. A mostra incluirá obras da coleção Tate como Damien Hirst, David Hockney, Andy Warhol e Roy Lichtenstein.
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é nova edição do cultuado trabalho de Frida Kahlo, que ficou mantido em segredo por cerca de 40 anos no México. Apresentada ao público brasileiro em capa dura, a obra reúne fac-símile impresso em cores, a transcrição dos escritos originais, além de três textos introdutórios inéditos: da editora responsável pelo projeto original, Claudia Madrazo; da historiadora da arte Karen Cordero Reiman; e do escritor Eduardo Casar. Todos são conterrâneos de Frida e nos convidam a sentir, ouvir e apreciar as formas visuais e literárias do diário.
O DIÁRIO DE FRIDA KAHLO: UM NOVO OLHAR • 232 páginas • Grupo Editorial Record • R$ 159,90
O coletivo Floresta de cristal, concebido pela artista Rivane Neuenschwander em colaboração com a cineasta Mariana Lacerda, participou de nove manifestações públicas na cidade de São Paulo para, por meio de uma performance política, reivindicar os direitos da natureza e denunciar o risco de uma ruptura democrática naquele momento político crítico do país. Para alertar sobre a urgência do problema climático, criaram e vestiram-se de plantas, fungos e animais, com roupas, máscaras e cabeças.
REVIRAVOLTA DE GAIA • Mariana Lacerda e Rivane Neuenschwander • Cobogó • 240 páginas • R$ 168,00
Organizado pela curadora Ana Paula Cohen, o livro apresenta uma ampla abordagem sobre a obra do artista Rodrigo Cass. Na primeira parte, é introduzida a obra (2021-2023), instalação em que esculturas de concreto foram criadas para que diferentes vídeos fossem projetados em suas superfícies. Na segunda parte, é oferecida uma extensa seleção de obras que perpassa toda a carreira do artista.
RODRIGO CASS: LIBERA ABSTRAHERE • Cobogó • 232 páginas • R$ 160,00
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Livros,
SINGER
Flashback
Lady Helen Vincent, Viscountess d'Abernon, 1904.
© Collection of the Birmingham Museum of Art, Alabama.
JOHN SINGER SARGENT COMBINOU ESTÉTICAS MODERNAS COM TRADIÇÕES DO PASSADO. SUA NOVA EXPOSIÇÃO EXPLORA SUA PAIXÃO PELA MODA E COMO ELE A TRANSFORMOU EM UMA FERRAMENTA PODEROSA PARA EXPRESSAR IDENTIDADE E PERSONALIDADE, MANIPULANDO AS ROUPAS PARA COMPOR A IMAGEM DE SEUS RETRATADOS
POR REDAÇÃO
John Singer Sargent foi, segundo o escultor francês Auguste Rodin, “o van Dyck de nosso tempo”, creditando-lhe a habilidade e o estilo do muito admirado mestre flamengo do século 17. Homens e mulheres procuravam Sargent não apenas para um retrato, mas por uma obra de arte, algo atemporal que se tornaria – como observou um crítico – “uma relíquia para passar adiante”.
Sargent fazia com que seus retratados fossem apresentáveis, mas ele não estava à mercê deles. Uma de suas ferramentas era a vestimenta. Ao observarmos seu trabalho no contexto da moda, descobrimos seu poder sobre os retratados. Sargent frequentemente lhes ditava o que vestir, com escolhas que revelavam aspectos da personalidade, gênero ou posição social. Após selecionar o traje, às vezes o manipulava na pintura, deixando de fora detalhes decorativos, posicionava as mulheres de forma que um elegante babado fosse revelado, drapeava e prendia tecidos para criar efeitos pictóricos interessantes. Aqui temos a oportunidade de ver os retratos formais de Sargent e suas pinturas tardias de familiares e amigos ao lado de exemplos de moda da época, algumas roupas realmente usadas pelos retratados de Sargent. O que é igual e o que é diferente? Em nossa era de redes sociais, videoconferências e , essa exposição nos faz pensar sobre a criação de imagem e se uma representação é verdadeira, aspiracional ou imaginativa. Quem cria e quem controla sua imagem?
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Ena and Betty, Daughters of Asher and Mrs Wertheimer, 1901. Tate. Photo © Tate (Joe Humphrys).
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Madame X, 1883-84.
© The Metropolitan Museum of Art/Art
Resource/Scala, Florence.
O ESTÚDIO EM PRETO E BRANCO
Quando as pessoas posavam para Sargent, geralmente o faziam em seu estúdio, primeiro em Paris e depois em Londres. Às vezes, ele pintava os retratados em suas casas ou em estúdios improvisados em ambientes domésticos. Onde quer que a ação ocorresse, Sargent a dirigia, dizendo a seus clientes onde ficar ou como se sentar, decidindo quais objetos deveriam ser incluídos na imagem e, frequentemente, o eles deveriam vestir. Ele era um observador perspicaz e tinha preferências distintas para roupas: quase dois terços de seus retratados masculinos vestiam ternos escuros simples, e a maioria de suas retratadas femininas, apesar da vasta gama de cores e estampas disponíveis, usava preto ou branco. A vestimenta branca era tradicionalmente associada a imagens de inocência, mas, também, representava luxo. Cada estágio de sua produção e manutenção era custoso, desde as origens dos tecidos (seda, linho e algodão) até o alvejamento, acabamento, construção e lavagem contínua que exigia, muitas vezes, mão de obra mal remunerada. Roupas pretas também podiam ser caras. Novos corantes anilínicos desenvolvidos na década de 1860 produziram não apenas cores vibrantes, mas também um preto puro e intenso que rapidamente infiltrou a moda. Vestidos pretos eram estilosos para mulheres de todas as idades e não se limitavam a roupas de luto. Preto e branco também são neutros e atemporais. Permitem que um retratista destaque a cabeça e as mãos, os elementos mais distintivos de um retrato. Pintar preto sobre preto ou branco sobre branco é difícil, oferecendo um desafio artístico que Sargent particularmente apreciava. O artista incorporava muitas cores em seus pretos e brancos, fazendo com que suas superfícies planas e monocromáticas saltassem para as três dimensões e vibrassem com intensidade.
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Lady Sassoon, 1907. Private Collection. Image © Houghton Hall.
Opera cloak worn by Lady Sassoon, c.1895. Private Collection. Image
© Houghton Hall.
A ARTE DO VESTIR
Para as mulheres abastadas nas Américas e na Europa, vestir-se envolvia navegar por um campo minado de etiqueta para usar a coisa certa na hora certa para a ocasião certa. Havia vestidos para a manhã, vestidos para o chá, vestidos para passeios, roupas especiais para andar a cavalo ou jogar tênis, vestidos adequados para uma matinê à tarde e diferentes para a noite. Havia chapéus e luvas, leques para coordenar e o certo a escolher. Paris era o epicentro da moda, onde várias casas de moda ofereciam altacosturapersonalizada.Entreelas,estava a Casa Worth, uma das maiores e mais populares, que empregava mais de mil pessoas até a década de 1870. Seu fundador, Charles Worth, descrevia-se não como um alfaiate, mas como um artista, afirmando: “Eu tenho o senso de cor de Delacroix e componho. Uma [um conjunto completo, da palavra francesa , tecido] pode ser tão boa quanto uma pintura.”
Se a vestimenta era fundamental para a forma como uma mulher construía sua persona pública, o que acontecia quando ela tinha seu retrato pintado por Sargent? Era o artista quem decidia o que suas retratadas vestiam. Ele podia registrá-las em suas próprias roupas, mas, às vezes, pedia para mudarem. Escolhia roupas que achava refletirem a suaspersonalidadesouquefossemmais adequadas às necessidades composicionais. Ele prendia e drapeava, mudava ou ignorava detalhes decorativos, e, às vezes, simplesmente inventava. Como Sargent escreveu uma vez a um amigo, ele estava “no meio da confecção de roupas e pintura”.
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Portrait of Ena Wertheimer: A Vele Gonfie, 1904. Tate. Photo © Tate (Oliver Cowling).
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Pozzi at Home, 1881. © The Armand Hammer Collection, Los Angeles.
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Embora as roupas fossem estritamente diferenciadas por gênero no final do século 19 –calças e paletós para homens, saias e blusas ou vestidos para mulheres –, as pessoas que as usavam não eram. As escolhas de vestuário refletem a fusão de características que outrora definiam o masculino e o feminino. A sociedade estavamudando,eospapéistradicionaisdossexos estavam sendo cada vez mais desafiados. Os retratos de Sargent revelam esse terreno em transformação.
As mulheres estavam cada vez mais ativas e visíveis no discurso público, fazendo campanha pela abolição, sufrágio, direitos de propriedade, temperança, reforma do vestuário e inúmeras causas humanitárias. Elas falavam em público, embarcavam em carreiras profissionais na educação, ciência, medicina, assistência social e nas artes. Em 1894, o termo “Nova Mulher” foi cunhado para descrever esse tipo moderno de mulher: altamente educada, orientada para a carreira, fisicamente ativa e politicamente engajada. Aspectos do traje masculino foram incorporados ao guarda-roupa feminino, como alguns retratos de Sargent demonstram.
Os conservadores temiam que, com as demandas de igualdade das mulheres, os homens se tornassem cada vez mais feminizados, sendo atraídos para a esfera doméstica da qual muitas mulheres buscavam escapar. Ambos os sexos foram alvo da nova e crescente cultura de consumo de grandes lojas e publicidade, incentivando os compradores a acompanhar a moda. Para os homens, um forte interesse pela moda poderia definir um ,umhomemelegante e sofisticado que prestava atenção especial à sua aparência, às vezes quebrando as normas de gênero da masculinidade. Caricaturados na imprensa, os eram criticados como efeminados, importando-se demais com a arte e atividades culturais como música e teatro em vez de se envolverem em esportes e atividades físicas exigentes associadas à virilidade.
BRINCANDO COM GÊNERO
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La Carmencita, 1890. Photo © Musée d'Orsay, Dist. RMN-Grand Palais / Patrice Schmidt.
Costume worn by La Carmencita, c.1890. Private Collection
© Houghton Hall.
Colorado
USA).
RETRATO E PERFORMANCE
Retratos são performances, negociadas entre o retratado e o artista, muitas vezes com uma audiência em mente. Figurinos são escolhidos, poses são criadas, e os resultados são julgados por familiares, amigos e, às vezes, visitantes de exposições e críticos de arte. Sargent também retratou artistas reais: dançarinos, atores, músicos e cantores, mostrando-os durante uma apresentação ou posando como se estivessem no palco. Muitas dessas pinturas não foram encomendas, permitindo que Sargent satisfizesse seu gosto por espetáculos visuais. Ele próprio era um ávido espectador, frequentemente comparecendo a concertos, óperas, peças de teatro e, mais tarde, ao cinema.
Na época de Sargent, vestir-se com roupas diferentes das habituais não se limitava aos atores profissionais no palco. Também era uma forma popular de entretenimento: para bailes de fantasia, , bailes de máscara, desfiles, reuniões de fraternidades, teatro amador e muito mais. A inspiração vinha da arte, história, mitologia, tradições populares e culturas não europeias. Revistas e livros populares ofereciam ideias e instruções.
Hoje, tais imagens podem gerar diálogo sobre o significado de usar o traje de uma cultura que não é a sua própria. O termo “apropriação cultural” descreve a apropriação das tradições de uma cultura por outro grupo historicamente dominante. Uma de suas formas mais persistentes e visíveis envolve roupas, como membros da sociedade europeia ou americana vestindo trajes de populações que eles controlaram politicamente, economicamente ou culturalmente. Intencionalmente ou não, tais ações refletem dinâmicas de poder desiguais e podem reforçar histórias de opressão.
Há alguns retratos de Sargent de pessoas se vestindo –tanto no palco quanto fora – dentro de suas próprias tradições, bem como retratados usando roupas de outras culturas. Cada exemplo apresenta uma história diferente, às vezes bastante complicada, sobre identidade. Para ele, todos eles proporcionaram uma oportunidade de explorar efeitos pictóricos dramáticos.
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Portrait of Miss Elsie Palmer (A Lady in White), 1889-90.
Springs Fine Arts Center (Colorado Springs,
CONSTRUINDO PODER
O vestuário pode comunicar posição e poder. Fardas de estado, uniformes militares, ternos feitos sob medida e vestidos de estilistas fornecem sinais sobre quem alguém é ou como desejam ser vistos. Pode-se escolher se vestir de forma mais formal ou mais casual, para se integrar ou se destacar. Cada decisão pode revelar aspectos do de uma pessoa. Como o escritor americano Mark Twain escreveu em 1905, expandindo uma máxima da Grécia antiga, “não há poder sem roupas”.
Alguns retratos mostram pessoas com influência, seja ela herdada, conquistada, assumida ou desejada. Alguns, como o marquês de Londonderry, herdaram títulos. Outros, como John D. Rockefeller, fizeram fortuna nos negócios. Amélie Gautreau cultivou sua beleza para obter posição social. Sargent os retratou de maneiras diferentes, transmitindo tanto a posição social quanto as personalidades distintas por meio do vestuário. Cada retratado está especialmente vestido para projetar uma identidade sob medida, seja por meio de um vestido elegante, um uniforme ou uma escolha consciente de roupas mais simples. Sargent também revelava aspectos de sua própria autoridade. Ele fez retratos da vida moderna, sempre mantendo a tradição em mente. Muitas vezes, evocava, mas nunca imitava, artistas famosos do passado. Esses ecos deliberados dos mestres antigos, cujas pinturas eram então avidamente colecionadas e exibidas, conferiam tanto a ele quanto aos seus retratados. O espetáculo dramático também atraía Sargent, pois a queda de uma saia de seda cintilante e o brilho de insígnias eram mais interessantes de retratar. Esses elementos da moda permitiam a ele demonstrar seu próprio poder como pintor.
Resource/Scala, Florence.
The Metropolitan Museum of Art/Art
Mrs Hugh Hammersley, 1892. ©
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Mrs Carl Meyer and her Children, 1896. Tate.
Photo © Tate.
FORA DA MODA
Sargent tinha suas próprias intenções e nem sempre seguia a moda. Ao longo da carreira, adorava pintar tecidos, especialmente os brancos. As maneiras como eles podiam ser manipulados –dobrados, torcidos e drapeados – pareciam infinitas. Suas texturas variadas e reflexos constantemente lhe proporcionavam oportunidades artísticas inspiradoras. Ele não podia rearranjar as características de um retratado, mas podia tomar conta de suas roupas. Dentro de suas dobras e pregas, ele podia explorar luz e sombra, usando pinceladas amplas e espessas de tinta para um destaque, ou toques mais curtos e secos para capturar o brilho do sol.
Sargent usava uma variedade de tons em seus brancos. Estava ciente dos desenvolvimentos em óptica e teoria das cores que haviam empolgado artistas na segunda metade do século 19, e de suas implicações para os pintores. O branco, como sir Isaac Newton provou na década de 1660, não é a ausência de cor, mas a presença de todas as cores do espectro. Era cheio de possibilidades. Na metade da década de 1880, Sargent posou sua irmã Violet e amigos da família em vestidos brancos ao ar livre sob a luz solar brilhante, registrando destaques e sombras com tons delicados de azul e rosa. Na década de 1890, em seu estúdio onde podia controlar a luz, fazia retratos opulentos de mulheres usando seda branca e cetim, definindo transparência e brilho com tons de lavanda e cinza. Depois de parar de fazer retratos formais, por volta de 1907, o artista continuou a pintar família e amigos em ambientes informais, envoltos em xales ou usando saias brancas volumosas. No final de sua carreira, deixou a moda de lado, concentrando-se ao invés na essência dos materiais. Se deleitava na abundância tanto de tecido quanto de tinta, transformando roupas em paisagens imaginárias feitas do zero.
FASHIONED BY SARGENT • TATE BRITAIN • REINO UNIDO • 21/2/2024 A 7/7/2024
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Ma rcel Duchamp,
Do Mundo
Roda de Bicicleta, 1913. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
CONHECIDO POR CRIAR PROBLEMAS PARA O MUNDO DA ARTE, HENRI-ROBERT-MARCEL DUCHAMP ESTEVE ASSOCIADO A DIVERSAS VANGUARDAS EUROPEIAS, ENTRE ELAS, O DADAÍSMO, O CUBISMO E O SURREALISMO. SUAS PROPOSIÇÕES ABRIRAM O CAMINHO PARA A ARTE POP, O MINIMALISMO E A ARTE CONCEITUAL
POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA
AS ESTRIPULIAS DE DUCHAMP
É difícil explicar a Arte Moderna e Contemporânea sem passar pelas estripulias de Duchamp. E, a hora é agora de falarmos sobre essas traquinagens, isso porque está acontecendo, em Veneza, a exposição (algo como Marcel Duchamp e a atração da cópia com curadoriadePaulB.Franklin,naPeggyGuggenheimCollection – aliás, a mostra tem chamado a atenção porque é a primeira individual dedicada a Duchamp naquele lugar. São 60 obras, entre 1911 e 1968, que contam sobre o relacionamento do artista com a colecionadora Peggy Guggenheim, mas, acima de tudo, no campo da arte, os trabalhos selecionados mostram como Duchamp lidou com questões que envolvem o original e a cópia; evidenciam as técnicas, os materiais e diferentes propostas do artista – quase todas as suas produções esgarçaram os parâmetros da obra de arte. São diabruras que alteraram a concepção do que é arte, do que seria o artista e qual sua conexão com o mundo. Peggy Guggenheim conheceu Marcel Duchamp por volta de 1923, quando ela vivia em Paris com o primeiro marido, Laurence Vail. Aqui, vale dizer quem eram os Guggenheim, nesses dois primeiros decênios do século 20: eram judeus que trocaram a Suíça pelos EUA no século 19. Fizeram fortuna sobretudo em mineração. Solomon, sim, aquele mesmo do Solomon R. Guggenheim Museum de Nova York, era tio de Peggy. O pai dela, Benjamin, morreu com uma amante no naufrágio do Titanic. Florette, a mãe, vinha da ainda mais abastada família de banqueiros Seligman. Foi nessa família aristocrática nova-iorquina que Peggy nasceu Marguerite e decidiu se tornar mecenas e colecionadora de arte.
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Caixa de alerta: Missivas lascivas. Exposição Internacional do Surrealismo, 19591960. Paris, Galeria Daniel Cordier, 1959.
Marcel Duchamp or Rrose Sélavy, Box in a Valise, 1935–41. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
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No seu livro de memórias, (1960), Peggy confessou: “Precisei de muita ajuda e conselhos, que recebi de um velho amigo, Marcel Duchamp… não sei o que teria feito sem ele… tenho que agradecê-lo por minha introdução ao mundo da arte moderna.” De fato, em 1937, Duchamp foi um dos seus conselheiros na escolha de obras para a formação da Guggenheim Jeune, galeria inaugurada em Londres, em 1938, e, logo depois, na constituição da coleção de arte moderna de Peggy. Em 1948, a coleção de arte moderna foi instalada no palácio no Grande Canal veneziano – sua sede atual.
Alguns cronistas da época contavam que Peggy Guggenheim teve um breve caso amorosocomDuchamp.Elaodescreveucomo “meio Deus, meio camponês”. Na verdade, Duchamp foi casado duas vezes e teve uma amante de longa data (a escultora brasileira Maria Martins). Além disso, também tinha um feminino, Rrose Sélavy – de Maria e Rrose, podemos falar mais adiante. Mas, de fato, ele ensinou a Peggy as diferenças entre arte abstrata e surrealismo. Ela também foi uma de suas primeiras patrocinadoras, adquirindo o primeiro exemplar da edição de luxo de , em 1941 – obra selecionada pela curadoria para ser eixo de interpretação da mostra. Essa obra é uma construção ousada. Traz reproduções em miniatura de algumas criações de Duchamp. A edição de luxo de 20 malas de viagem – a primeira das quais está marcada como Louis Vuitton – apresenta uma inscrição dedicada a Peggy Guggenheim. é o resumo mais convincente de Duchamp de sua paixão pela réplica. Ele via a cópia como um modo de expressão criativa. Para o curador, essa obra mostra como a produção era híbrida e como ela perturbava as classificações e as normas artísticas.
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Marcel Duchamp, Par de aventais de lavadeira, 1959. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
está dividida em núcleos: ; ; ; ; ; ; e . A partir dessa organização, percebe-se o trabalho de Duchamp dinamizado pela pintura, escultura, colagens, arte corporal e peças encontradas – neste último item, ele empregou diversos materiais e objetos, às vezes colados, às vezes prontos (os famosos, ).
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Pente, réplica de 1964.
© Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
Para suas obras, Duchamp atribuiu nomes desafiadores ou banais. Ele transformou em arte objetos de outras esferas da vida. Usou materiais estranhos à arte até aquele momento. Retirou a função do objeto cotidiano para lhe dispor sentido estético. Questionou a obrigação da manufatura. Estava à procura de uma arte mais cerebral.
Além disso, Duchamp explorou a relação entre cópia e matriz. Suas obras não são tão somente cópias; para ele, eram matrizes conceituais. Ele questionou a ideia de autenticidade e repetição, afrontando os limites entre trabalho manual e industrial.
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Em uma época em que o fazer artesanal era visto como habilidade livre e criativa, Duchampmostrouqueatémesmooque era industrial poderia ser inovador. Ao pensar sobre os sentidos de original e cópia, ele demonstrou que não apenas o gesto manual, mas também a escolha mental, é passível de repetição. Assim, ele impactou a cena artística, em 1917, ao trazer um urinol ao Salão dos Artistas Independentes de Nova York, cunhando o conceito de . Sem poder recusar o objeto porque a exposição não era seletiva, o júri decidiu exibi-lo atrás de uma divisória, após longo debate sobre sua autoria –Duchamp assinou a obra como R. Mutt, o fabricante da peça industrial. Esse objeto em particular levava um nome feminino, , para algo estrito do mundo masculino, o urinol.
A Fonte, 1917. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
Nessa trilha de dualidade entre o “eu” e o “outro”, ou, ainda, entre o masculino e o feminino, surgiu sua personalidade alternativa, Rrose Sélavy, em 1920. Seu nome era um trocadilho do ditado francês “ ” (Eros, é a vida), uma metáfora para dizer que o sexo atravessa a existência humana ou, também, “ ” (Água é vida), um eufemismo para dizer “úmido” – uma referência sexual.
‘O segundo “r” no nome só foi adicionado em 1921, quando ela assinou a colagem (O olho de crocodilo), de Francis Picabia Em março de 1921, sofrendo de herpes oftálmico que inspirou diversas obras, Picabia pintou um único olho. Em torno desse olho, ele convidou seus amigos a escreverem uma frase de sua escolha. Man Ray, Jean Cocteau e Rrose Sélavy estavam entre os signatários dessa obra coletiva que colocava em dúvida a ideia de artista e de obra-prima.
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Le Surréalisme en 1947. [Paris], Éditions Pierre à Feu, Galerie Maeght, 1947.
© Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
Rrose inspirou tudo, desde coleções de poesia surrealista até um bar de ostras em Manhattan. Logo depois, ela começou a aparecer em fotografias de Man Ray, artista e companheiro de Duchamp. Como personagem duchampiano, Rrose deu vida à ludicidade e à ironia do dadaísmo, além de ter um apelo erótico inegável. Nas fotografias, ela se manifestava sob vários disfarces, às vezes com fortes traços masculinos; outras vezes, elegante e decididamente feminina. Duchamp foi um mestre da subversão. “Eu não acredito em arte. Eu acredito em artistas”, é uma de suas frases mais célebres. Ele afirmou que o artista não é um fazedor de objetos, mas um pensador que se interroga sobre a arte. Com Rrose e outras propostas, questionou a tradição e flexão de gênero na arte; provocou a reflexão sobre identidade, representação e autorrepresentação. Antes de Rrose, Duchamp já tinha evocado a desenhando bigodes em um cartão-postal da pintura de Da Vinci e o nomeou de – a sigla em francês parece dizer “Elle a chaud au cul”, que em português seria “Ela tem um rabo quente”. Como adendo à temática da exposição , não é possível deixar de mencionar a convivência entre Maria Martins, escultora brasileira, e Duchamp, no período entre 1944 e 1966. Eles se conheceram na primavera de 1943, em Nova York. Em 1946, o romance ficou mais intenso. Nesse mesmo ano, Duchamp fez (feita de líquido seminal em cetim preto esticado sobre uma moldura de madeira. Hoje, o trabalho integra o Museu de Arte Moderna de Toyama. Na verdade, a obra se tornou uma tórrida declaração de desejo de um homem por uma mulher.
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L.H.O.O.Q., 1964. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
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Do lado de Maria, a convivência com Duchamp parece ser o motivo da obra (1942), que tem como título uma provocação – a lembrar de onde veio a escultora. Em (1944), duas figuras opostas (ou ainda o masculino e o feminino) estão frente a frente com seus tentáculos, uma sobre a outra – como se existisse um jogo de poder e submissão entre as formas orgânicas. Nessas duas esculturas, a paixão se tornou tema central e, ao seu redor, a sensualidade e as dores de natureza feminina fornecem intensidade às peças.
Já do lado de Duchamp, alguns críticos apontam que Maria seria a mulher nua do seu último trabalho, a (1946-1966). Essa obra foi descrita pelo artista por Jasper Johns como “a obra de arte mais estranha vista em qualquer museu”. Instalada permanentemente no Museu de Arte da Filadélfia desde 1969, é um misto entre bidimensional e tridimensional, oferecendo uma experiência incrível a quem espia pelos dois pequenos orifícios da maciça porta de madeira. Foram 20 anos reconstruindo o corpo e as formas de Maria Martins em um cenário fantástico.
Acima: Maria Martins, Impossível, 1944. Acervo Banco Itaú,. Foto: Vicente de Mello.
Abaixo: Marcel Duchamp, Dado: 1. A Cachoeira, 2. O Gás Iluminador, Francês: Dado: 1° a cachoeira / 2° o gás de iluminação. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
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Marcel Duchamp com Valise. © Association Marcel Duchamp, by SIAE 2023.
Por último, deixo o comentário sobre as cartas trocadas entre os dois amantes. Em um poema, a escultora o instigou: “Mesmo depois da minha morte/ Muito depois da sua morte/Eu quero te torturar (...)”. E noutro trecho: “Para você quero longas noites de insônias”. De sua parte, Duchamp escreveu à amante durante anos, implorando que ela fugisse com ele – mas, essa é daquelas histórias submersas dentro do percurso da arte moderna e contemporânea – não está entre as estripulias exibidas na mostra em Veneza.
AlecsandraMatiasdeOliveiraédoutora em Artes Visuais (ECA USP). Pósdoutorado em Artes Visuais (Unesp). Curadora independente. Professora do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA USP). MembrodaAssociaçãoInternacionaldeCríticadeArte (AICA). Articulista do Jornal da USP e colaboradora da Revista da USP e Revista Dasartes. Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da resistência (MCSP, 2022).
MARCEL DUCHAMP AND THE LURE OF THE COPY • PEGGY GUGGENHEIM
COLLECTION • NOVA YORK • 14/10/2023 A 18/3/2024
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Menezes Anna
Garimpo
Menezes Anna ,
Um fotógrafo do cotidiano é, antes de tudo, um observador, que deve estar atento ao mundo que o cerca e apto a enxergar e retirar do prosaico, imagens únicas. No caso de Anna Menezes, vencedora do 14º Prêmio Garimpo Dasartes 2024 pelo voto do júri, esse processo se dá em meio às várias caminhadas ela que faz em busca do que está nas frestas do mundo. Preocupada em não esgotar seu olhar para as paisagens cotidianas por onde circula, Anna constantemente se desafia a enxergar o mundo como estrangeira, buscando na paisagem já familiar algo que a movimente. Pág. anteriores: Corpo-pedra: Encontro de terras, 2021. Foto: © Anna
A JOVEM ARTISTA ANNA MENEZES EXPERIMENTA DO TRIDIMENSIONAL EM SUAS OBRAS. IMPRIMINDO SUAS FOTOGRAFIAS CONCEITUAIS EM PEDRAS ELA BUSCA INSERIR MOVIMENTO NO OBJETO ESTÁTICO. A BRASILIENSE FOI SELECIONADA PELA ESCOLHA DO JÚRI DO PRÊMIO GARIMPO DASARTES 2024
POR LEANDRO FAZOLLA
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Corpos Sedimentares, 2021. (Detalhe). Foto: © Anna Menezes.
Em seu processo, a artista não se mantém atenta apenas com seus olhos e lentes da câmera. Mais do que isso, todo o corpo de Anna está implicado em seu trabalho, um corpo em constante procura. Nessa busca, Anna está particularmente atenta às pedras em seu caminho. E sem metáforas. Enquanto caminha olhando o horizonte, a artista olha constantemente para baixo, para o chão. E é a partir do solo em que pisa que surge o suporte para suas impressões: Anna alia seu ofício de artista a seu interesse pela geologia em um complexo e delicado trabalho de impressão fotográfica sobre pedras, garimpando na paisagem texturas e relevos ideais para cada uma de suas propostas artísticas. Um corpo de artista que às vezes se faz pedra, para fazer, das pedras que encontra, corpos, arte.
Corpos Sedimentares, 2021. Foto: © Anna Menezes.
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É a partir da união desses dois suportes, tidos como rígidos, as pedras com sua materialidade bruta, e a fotografia, conhecida por capturar instantes, que a artista encontra fluidez para a produção de um jogo de ideias que se materializa diante do espectador. Graduada em Teoria, Crítica e História da Arte pela Universidade de Brasília, esta brasiliense de 27 anos também alia seu trabalho mais formal a uma busca conceitual em um delicado jogo entre imagem e suporte. Quando opta por imprimir as imagens de uma criança preta em pequenas pedras portuguesas, a artista traz à tona todo um histórico de colonização no Brasil. Na relação entre imagem e suporte, estão implícitas não apenas a origem das pedras provenientes do país que invadiu o Brasil há mais de quinhentos anos e todo seu passado escravocrata, mas também sua forma de
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Foto: © Anna Menezes.
Pág. anteriores: Brasil é terra indígena, 2021. À esquerda: Corpos Sedimentares, 2021.
colocação nas ruas e calçadas, aliada a um meticuloso trabalho manual, remontando a todo um histórico de trabalho e invisibilização de pessoas pretas no país. Estampado nas pedras portuguesas de Ana, aquele menino que se diverte nas águas do mar parece questionar o quanto as crianças de hoje estão gravadas nesse histórico de crueldade. Ao mesmo tempo, há alegria e esperança no gesto da criança que brinca livremente nas ondas do mar. Há beleza e poesia em uma pedra retirada de uma calçada qualquer para ser contemplada em uma galeria. Novos imaginários são possíveis de serem criados. E novos futuros.
Aformacomoaobradaartistaécolocada no espaço expositivo também provoca no público uma sensação de deslocamento e intimidade. Muitas vezes, as pedras de Anna são apresentadas sem qualquer tipo de suporte, no chão, em fileiras ou de forma alternada, levando o espectador a olhar para baixo, a realizar na sala de exposição o mesmo movimento que a artista faz em suas caminhadas. Enquanto se abaixa quase ao nível do chão para se aproximar da obra, o espectador se aproxima também dos fotografados, observa de perto, cria uma relação de intimidade com aqueles anônimos fotografados em um dia qualquer.
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Corpos Sedimentares, 2021. Foto: © Anna Menezes.
Pág. Anteriores: Quitéria, Presente!, 2023. À esquerda: Rastros edificados, 2020. Foto: © Anna Menezes.
Talvez a ideia de movimento que a artista tanto buscava no início de seu processo e, , parecia não se completar em sua obra(umavezque,tantoafotografiaquanto aspedras,sãoreconhecidamenteelementos tidos como estáticos), esteja exatamente nos corpos que Anna põe em contato uns com os outros. Há movimento entre o corpo do fotografado e o corpo do espectador. Há o movimento do fotografado no momento em que sua imagem é capturada. Há o movimento do espectador para ter um contato íntimo com a obra. E há, ainda, outro movimento, um pouco menos óbvio, aquele gerado pelo encontro entre esses dois corpos. Interno. Um movimento oculto que faz lembrar aqueles das placas tectônicas, que se deslocam silenciosamente, sem que a gente perceba, mas são capazes de gerar terremotos.
Leandro Fazolla é ator, historiador e crítico de arte. Doutorando em Artes Cênicas. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa de História, Teoria e Crítica de Arte. Diretor Geral do Instituto Cultural Cerne.
14º PRÊMIO GARIMPO DASARTES PARA NOVOS ARTISTAS • REVISTA DASARTES • 10/10/2023 A 15/2/2024
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ANNIE
Reflexo
Bruce Springsteen on tour, Paris, 2016. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
LEIBOVITZ
ANNIE LEIBOVITZ É UMA DAS FOTÓGRAFAS MAIS INFLUENTES DE NOSSO TEMPO. SUAS IMAGENS DE PESSOAS E EVENTOS FICARÃO GRAVADAS PARA SEMPRE EM NOSSAS MENTES E MEMÓRIAS. ELA É UMA
MESTRA DO USO DA COR, DA COMBINAÇÃO DE LUZ ARTIFICIAL E NATURAL, E DE INSERIR, DE ALGUMA FORMA, UMA RICA NARRATIVA EM UMA IMAGEM ESTÁTICA
O olhar de Annie Leibovitz, seus instintos teatrais e sua genialidade são lendários, mas ela não é conhecida por um estilo ou uma estética específica. Com mais de cinquenta anos de experiência fotográfica, ela explorou muitas formas de capturar momentos. Uma das coisas mais surpreendentes ao ver suas imagens juntas é como a intimidade de seus primeiros trabalhos, que incluíam familiares e amigos, está enraizada em seus retratos icônicos de figuras públicas. As fotografias são, ao mesmo tempo,emblemáticaseverdadeiras,umacrônicadacultura americana e, de certa forma, também pessoal. A reputação de Annie como fotógrafa se solidificou na década de 1970, quando ela trabalhava na Era um momento volátil nos Estados Unidos, tanto politicamente quanto culturalmente; a revista era nova e a maioria dos que trabalhavam nela eram jovens, ousados e irreverentes. A representava uma revolução geracional impulsionada pelo . Na primavera de 1970, Annie ainda estava estudando no Instituto de Arte de San Francisco quando uma foto dela tirada em um protesto contra a Guerra do Vietnã foi publicada na capa da revista. Pouco depois, ela começou a aceitar trabalhos e a colaborar com escritores, baseando seu enfoque no que havia estudado e praticado na escola: o fotojornalismo pessoal, inspirado nas fotografias de Henri Cartier-Bresson e Robert Frank. As imagens eram capturadas em preto e branco com uma câmera de 35 mm. Em 1973, o nome de Annie já estava na capa como chefe de fotografia da Self
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Portrait, Brooklyn, New York, 2017. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
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American Soldiers And The Queen Of The Negritos, 1968. Photo courtesy of the artist © Annie
“ .” 73
Leibovitz.
Golden Gate Bridge, 1977.
Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
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Rolling Stone
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Driving Series, 1970–1984, 2019.
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Photo: Genevieve Hanson. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
” 79 “
James Turrell, Flagstaff, Arizona, 2019. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
Cindy Sherman, East Hampton, New York, 2022.
Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
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Robert Smithson’s Spiral Jetty, 2011. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
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Rabbi Angela Buchdahl Warren, Connecticut, 2023. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
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Keith Haring, 1986. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
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Amy Sherald, Columbus, Georgia, 2022. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
Double Fantasy
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.”
John Lennon and Yoko Ono, The Dakota, New York, December 8, 1980. Photo courtesy of the artist © Annie Leibovitz.
ANNIE LEIBOVITZ AT WORK • CRYSTAL BRIDGES MUSEUM OF AMERICAN ART • EUA • 16/9/2023 A 29/02/2024
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EXPLOSIVO, TUMULTUOSO, DESMEDIDO, MOVEDIÇO, CAMALEÔNICO: FUNK
POR MATTEO BERGAMINI
A exposição dedicada ao “grito de ousadia e liberdade” acompanhará o público do Museu de Arte do Rio de Janeiro até agosto de 2024, investigando profundamente aquela corrente musical e cultural que seria absolutamente menosprezável colocar na prateleira dos gêneros musicais ou, pior ainda, na subcultura metropolitana, inclusive porque o pertence tanto aos morros quanto as litorais, de norte ao sul, investindo o mundo inteiro, embora Anitta recentemente tinha oferecido uma “aula” relatando a identidade favelada do : “Nunca no houveram barquinhos saindo para ver a tardezinha”!
“Rio dança”, escreveu há mais de um século, em 1906, o poeta, jornalista e cronista carioca Olavo Bilac, relatando os bailes dos negros que surgiram naquela época na cidade toda, porém, distinguindo: “Botafogo não dança como o Catumbi, a Tijuca não dança como a Saúde”, relatava com espirito de antropólogo, apurando todas as peculiaridades que formariam os mais diferenciados sentidos comunitários e identitários de cada canto da metrópole. Mas, enfim, de onde veio esse ?
90 Resenhas,
O surgimento, em via oficial, ocorreu na década de 1960, nos Estados Unidos, quando os músicos afro-americanos chutaram a bola de um novo ritmo que misturava , e & : James Brown (cantor de músicas de sucesso tais como e ), junto ao trompetista e compositor Miles Davis, foram os primeiros a se conectar a nova onda, criando um bem mais forte, colocando em primeiro lugar bateria e baixo.
Em seguida, o chegou ao Brasil e, inicialmente, na cidade maravilhosa, tomou conta da zona Sul, conquistando o coração e os movimentos das novas gerações que, todavia, logo substituíram a moda americana com o gosto para a MPB. Porém, como as ondas e as ideias batem também muito além do conhecido, eis que foi a periferia a resgatar o , oferecendo-lhe uma segunda possibilidade que o tornou, talvez, o maior movimento sociocultural da época contemporânea ou, pelo menos, o mais igualitário.
Na cidade da baía de Guanabara que, no seu enredo de morros e avenidas abriga mais de setecentas comunidades, no país cujas dez mil favelas dariam à luz o terceiro Estado do Brasil por número de habitantes (conforme Pesquisa Data Favela de 2023), o é a real demonstração de uma arte que escancara seu desejo de liberdade e autoafirmação, isto é, abaixo do seu imenso chapéu, o abriga o mundo sem distinções de raça e religiões, existindo como nicho de resistência e representando a cara do Brasil mais autêntico, contudo, vale ressaltar, um “Brasil autêntico” que representa uma contradição pela tamanha variedade geográfica e cultural do país.
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Todas fotos: Thales Leite.
O grande engajamento da mostra – como hoje em dia deveriam ser as exposições querendo abranger a vastidão de movimentos históricos – é a possibilidade de entrar nela, aproveitando-a de inúmeras formas possíveis: curtindo ritmos e coreografias ou observando cores e figuras, relembrandosonoridadesjáultrapassadas ou apurando a crônica das festas. Demais fácil, porém, seria relatar essa mostra seguindo somente sua complexa e ciclópica expografia, concebida por sobreposições de materiais, entrelaçando memórias e informações, pondo em conversas arriscadas pinturas e vídeos, objetos e fotografias: o , aqui, aparece-nos como um encontro colorido de presenças; as salas do MAR metaforicamente transformadas em comunidade, os espectadores convidados a subir e a descer imaginárias escalas onde poder encontrar cantores, dançarinos, , roupa, turmas armadas de caixas de som, afinal, chegando a lajes transformadas em pistas de baile, exatamente como a da favela Santa Maria, teatro do vídeo de Michael Jackson ( ), dirigido por Spike Lee em 1995, cercado pela multidão e pelo calor do povoado. Essa premissa fica necessária para tentar olhar de uma forma mais aguda esse movimento-contramão da cultura oficial; o que nos acompanha por esse passeio variegado e vivaz é uma multidão de artistas cujas vidas são definitivamente conectadas às vivências do , com os seus momentos de lazer e os rituais dos desafios dos bailes coletivos, entre história de costume e paredão do som. Para começar, merece uma visita zelosa a “discoteca” da mostra, em cujas estantes
FUNK no MAR
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mostram centenas de vinis dos cantores do americano e daqueles que deles pegaram a própria inspiração, a exemplo o grande Tim Maia, com a sua produção da década de 1970. Do cantor, encontrase também a capa do álbum de 1976, que leva o mesmo nome do músico, disco de longa duração que continha a canção , uma melodia cuja letra estava focada nos temas do preconceito e da neocolonização: “ ”.
Já vinha à tona a mensagem que o carregava consigo, indo bem além dos bailes e “tocando” tanto a política quanto as problemáticas sociais irresolutas.
Falando em artes visuais, JOTA, Bruno Lyfe, Malvo, Paty Wolf, entre os outros pintores, relatam no MAR cenas e cores de um “movimento” que, além de ser cultural, é completamente político: a exemplo, enquanto no passado as mulheres negras foram despidas, exploradas e expostas ao público, hoje em dia a ousadia de hábitos e movimentos, tais como rebolar a bunda, existem transfigurados, ou seja, tapas na cara daquela classe burguesa que ainda existe no país e que mal aceita as demonstraçõesdelibertaçãodasminorias.
Maxwell Alexandre, com a grande tela (2019), apresenta plenamente a galera do balé e do rolé : mulheres e homens dançando quase despidos ou vestindo moletom, de cabelo platinado ou capuz, com casacos coloridos e pulseiras, colares e anéis dourados, de chinelo ou sapatos Nike, Vans ou Redley; figuras soltas, sem linhas marcantes nos rostos nem conexões entre elas, colocadas por diante de um fundo completamente escuro: resgate social que atravessa também a individualidade.
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Continuando a falar desse assunto, Panmela Castro oferece aos visitadores a possibilidade de interagir com os muros e o espelho de um dos banheiros que se encontram no andar da mostra. Trata-se uma instalação ambiental, com trilha sonora e luzes-neon, tal como qualquer banheiro de bar ou discoteca , que a artista comenta assim: “A obra trabalha em cima do dilema ético: ao escrever no espelho, diante do seu próprio reflexo, o que você deixa para o outro também serve para você”.
Desse jeito, eis que o se posiciona bem além de ser um “ponto de vista” sobre a realidade: é a cara do Brasil, primeiro ator na constelação solta e viva dos demais gêneros; aqueles que se espalharam pelo mundo cavalgando infinitas ondas e levando os mais diferentes nomes, contudo, bombando em busca da liberdade em milhares de paredões. Porém, como as ondas e as ideias batem também muito além do conhecido, eis que foi a periferia a resgatar o , oferecendo-lhe uma segunda possibilidade que o tornou, talvez, o maior movimento sociocultural da época contemporânea ou, pelo menos, o mais igualitário. Aliás, já que o é a música da favela, conforme as palavras de Anitta, poderia se considerar propriamente a partitura oficial do Brasil, pois, se juntarmos os moradores das dez mil favelas brasileiras registradas, teríamos o terceiro Estado do país por número de habitantes (de acordo com a Pesquisa Data Favela de 2023).
Por isso, o é a real demonstração de uma arte que escancara seu desejo de liberdade e autoafirmação; abaixo do seu imenso chapéu, o abriga o mundo sem distinções de raça e religiões, existindo como nicho de resistência e representando a cara do Brasil mais autêntico, ainda que relatar de um “Brasil autêntico” represente uma contradição pela tamanha variedade geográfica e cultural do país.
Matteo Bergamini é jornalista, crítico e escritor especializado em Arte Contemporânea. Colabora com a revista italiana ArtsLife e com a portuguesa Umbigo Magazine.
FUNK: UM GRITO DE OUSADIA E
LIBERDADE • MUSEU DE ARTE DO RIO: MAR • 29/9/2023 A 25/8/2024
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, Coluna do meio
Polo Cultural ItalianoRio Rio de Janeiro
Líquen Tenso
Galatea Galeria
São Paulo
Alê
São Paulo
Alessandra Tirone, Flavio Cenciarelli e Francesca Menegon
Giorgio Ferraguto, Mariza Colafemia e Chico Vartulli
Flavia Fabbriziani, Nicola Siri e Alessandra Venditti
Maria Dora e Everaldo Mourão
Erico Marmiroli
Rita Holcberg
Alice e Kiki Scabello
Teodora e Iasmine Novais
Antonia Bergamin, Tomás Toledo e Conrado Mesquita
Abilio Mott Diniz e Gabriela Malzer
Riccardo Scafati e Aristides Correa Dutra
Alexandra Ungern, Laura Garimberti e Isabel Villalba
Silvio Fischbein
Espaço de Arte
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Fotos: Leda Abuhab
Fotos: Denise Andrade
Thatiana Cardoso
Alê Espaço de Arte
São Paulo
Fabio Benetti
Galeria Tato
São Paulo
Luiz Aquila Galeria
Patrícia Costa
Rio de Janeiro
Aline Moreno e Andrea Cabrini
Alexandra Ungern, Thatiana Cardoso, Laura Garimberti e Isabel Villalba
João Hirama e Rogério Barbosa
Luiz Fernando e Patricia Costa
Ana Pose, Adriano Mangiavacchi e Karin Cagy
Glaucia Lobo e Bia Sampaio e amiga
Fotos: Tatiana Mito.
Paulo DA´lessandro, Daniela Bousso, Zel Campos e Adriano Casanova
Iago Calegari, Andre Higa, Murilo Campestrini e Bruno Freire
Fabio Benetti, Rejane Cintrão e Tato DiLascio
Caligrapixo e Panmela Castro
Julia Pereira, Thatiana Cardoso e Johanna Oizumi
Luiz Aquila
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Fotos: Leda Abuhab
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