COMO LER A Destaques da Agenda
Livros Novos títulos para a estante dos amantes das artes
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Resenhas
De Arte A Z O mundo da arte em pequenas notas
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Garimpo - Michele Martines
Paralelo - Proteção Cultural
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Vencedora do Concurso Garimpo, a artista problematiza o corpo masculino na sociedade
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Coluna do Meio
Capa - Piet Mondrian O pintor pelo pintor: Gonçalo Ivo discute a produção de Mondrian
ÍCONES DE NAVEGAÇÃO
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Destaque - Hélio Oiticica
Alto Falante
Megaexposição em Fortaleza apresenta o artista fundamental da arte brasileira
Alexandre Sá estreia na coluna cheio de poesia e arte
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Do Mundo - Frida Kahlo Entre o mito e a artista, Frida comove e faz sucesso em mostra itinerante
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DESTAQUES DA AGENDA
Destaques da Agenda
Sérgio Camargo: Luz e Matéria
Rubens Gerchman Espaço-Tempo
13ª Exposição de Verão “Sem saber quando virá o amanhecer...”
Um dos mais relevantes nomes das artes visuais da segunda metade do século 20 no Brasil. Com curadoria de Paulo Sergio Duarte e Cauê Alves e projeto expográfico da UNA Arquitetos, serão expostas mais de 60 obras de colecionadores privados e do espólio do artista, gerido atualmente pela galerista Raquel Arnaud.
Um recorte da obra de Gerchman poderá ser descoberto pelo público. A exposição reúne 20 obras raras, muito pouco vistas em décadas – entre gravuras, obras em papel, pintura e objeto –, em que o artista trata de sua poética visual. Um tema que teve início no fim dos anos 1960 e perdurou até pouco antes de sua morte, em 2008, aos 66 anos.
Nesta exposição apresenta-se um conjunto de obras de diferentes artistas que aludem, questionam e enaltecem a essência de um objeto corriqueiro tão carregado de significado, a porta. Obras de Nelson Leiner, Marilá Dardot, Leonor Antunes, Rodrigo Hernandez, Francesca Woodman, Alek O, Lúcia Koch e Tiago Tebet participam da coletiva.
Cerca de 60 fotografias das décadas de 1950 e 1960, período em que o artista realizou experimentos no campo da fotografia construtiva e da abstração geométrica. Além de pinturas que serão exibidas ao lado de obras de seu filho Hélio Oiticica e do artista visual Ivan Serpa, o que evidencia, segundo os curadores, como a obra de José Oiticica Filho dialogava com as novas radicalizações estéticas de seu tempo.
FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO PORTO ALEGRE / RS DE 03/03 A 12/06
MUL.TI.PLO ESPAÇO ARTE RIO DE JANEIRO / RJ ATÉ 17/03
GALERIA SILVIA CINTRA + BOX 4 RIO DE JANEIRO / RJ ATÉ 19/03
GALERIA RAQUEL ARNAUD SÃO PAULO / SP ATÉ 23/03
José Oiticica Filho
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DESTAQUES DA AGENDA
Temporada de Projetos 2016
Antônio Maluf
A Temporada de Projetos 2016 é um programa de fomento, apoio e difusão da jovem arte contemporânea brasileira. Esta edição reúne os trabalhos dos artistas Alex Oliveira, Anaisa Franco e Sergio Pinzón e do curador Philipe F. Augusto, selecionados pelo júri composto por Fernando Oliva, Priscila Arantes (diretora artística e curadora do Paço das Artes) e Thaís Rivitti.
A mostra contemplará 120 obras selecionadas cuidadosamente pelo ex-diretor da Pinacoteca, Fabio Magalhães. Um dos destaques é o primeiro cartaz do artista, intitulado “Equação dos desenvolvimentos”, criado para a 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951.
PAÇO DAS ARTES SÃO PAULO / SP ATÉ 27/03
GALERIA FRENTE SÃO PAULO / SP DE 02/04 A 28/05
DESTAQUES DA AGENDA
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De todas as maneiras
Hélio Oiticica Estrutura Corpo e Cor
A exposição coletiva conta com a participação dos artistas da casa Alberto Bitar, Anita Lima, Ana Mokarzel Bob Menezes, Danielle Fonseca, Ionaldo Rodrigues, Keyla Sobral, Mariano Klautau, Miguel Chikaoka, Octavio Cardoso e Pedro Cunha, que preenchem as paredes do casario histórico, onde está situada a galeria.
O artista, que revolucionou a arte mundial com suas obras criadas por um espírito que encontrava inspiração nas manifestações populares do Brasil. Com curadoria de Celso Favaretto e Paula Braga, são cerca de 60 obras que mostram a transformação do artista, que partiu da pintura para chegar ao além-da-arte (por ele denominado “invenção), saindo da bidimensionalidade para a múltipla experiência sensorial, dando corpo teórico e experimental à interação entre o público e a obra, unindo arte e vivência.
KAMARA KÓ BELÉM / PA ATÉ 08/04
ESPAÇO CULTURAL EDSON QUEIROZ – UNIFOR FORTALEZA / CE ATÉ 01/05
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De Arte A Z
Legenda:
Despina | Largo das Artes foi selecionada para integrar a rede de parceiros internacionais da instituição holandesa Prince Claus Fund, que já conta com outras 11 organizações de diversas partes do globo. Esta é a primeira vez que uma organização brasileira é convidada a compor o quadro de parceiros do Prince Claus Fund. Através desta parceria, Despina | Largo das Artes irá desenvolver o projeto “Arte e Ativismo na América Latina” pelos próximos três anos, que consiste em uma residência aberta a três artistas e um ativista cultural oriundos de várias comunidades na América Latina. A cada ano, a residência irá compreender uma serie de oficinas, uma palestra pública e uma exposição. Após os três anos de execução deste projeto, Despina | Largo das Artes permanece no comitê da rede do Prince Claus Fund com o intuito de aprofundar o conhecimento e a atuação da instituição na região.
DE ARTE A Z
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Paralelo NOVOS ESPAÇOS Os sócios Ana Elisa Cohen e Felipe Pena inauguraram a Cavalo, galeria de arte contemporânea localizada num belo casarão de 130 metros quadrados com duas salas expositivas, em Botafogo - RJ. A Cavalo abre suas portas com a coletiva “ExFelipe Pena e Ana Elisa Cohen posição Inaugural”, que reúne 25 obras, entre fotografias, pinturas, esculturas, instalações, objetos e vídeos de sete artistas: Adriano Motta, Alvaro Seixas, Felipe Cohen, Marina Weffort, Pedro Caetano, Vijai Patchineelam e Wagner Malta Tavares, todos representados pela galeria. A galeria pretende promover debates públicos, encontros com artistas e curadores, performances, projeções de vídeo, e lançar publicações artísticas próprias. “Estamos assumindo um compromisso com a cena cultural da cidade”, garantem os sócios. O novo edifício da galeria Casa Triângulo, projetado pela Metro Arquitetos Associados, tem aproximadamente 500m² e uma forte presença urbana. A arquitetura tem traços retos, como uma enorme caixa branca suspensa com planos Legenda: translúcidos e opacos, dando a impressão de flutuar. O piso do salão principal se estende para o exterior da galeria criando uma praça junto à calçada, permitindo o uso dos agradáveis espaços ao ar-livre. O desenho e os materiais contemporâneos estão alinhados à personalidade da galeria, em total sintonia entre estrutura e conteúdo, arquitetura e arte. A inauguração oficial será no dia 05 de Março de 2016, com a exposição individual de Sandra Cinto, intitulada Acaso e Necessidade.
POR PIERRE MOREAU
Legenda:
CULTURAL EM ÉPOCA DE BARBÁRIE
A criação de uma obra de arte é uma fusão de elementos que promovem emoção aos sentidos. Uma obra não só enriquece o cenário artístico, mas também toda a humanidade. É que a arte reflete história, cultura, traços de uma civilização, ou seja, ela reflete identidade e memória, pois é uma constante releitura feita pelo passado, presente e futuro, e, dessa forma, as obras, principalmente aquelas consideradas bens culturais, devem ser garantidas e protegidas. Para tanto, instrumentos legais foram criados. Podem-se citar a criação de leis internacionais que proíbem a destruição da propriedade cultural, como a Convenção de Haia, responsável por enriquecer a legislação da proteção da propriedade cultural mundial por meio de seus protocolos e estatutos, e a formação de organizações como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura), que tem a responsabilidade de monitorar e ajudar a preservação da propriedade cultural.
PARALELO
Contudo, mesmo diante dessas políticas e legislações de proteção ao patrimônio cultural, ainda nos vemos ameaçados por perdas culturais. Vale lembrar que esses ataques culturais vêm ocorrendo de forma frequente ao longo dos anos. No começo do século 20, por exemplo, a coleção de arte da Cidade Proibida na China foi transferida para Taiwan pelo líder nacionalista Chiang Kai-Shek, como um esforço de salvá-la da destruição causada pela guerra, primeiro pelas forças armadas japonesas, e, depois, pela guerra civil chinesa. Chiang Kai Shek recuou-se em Taiwan, deixando Mao Tse Tung no controle do comunismo no continente, e assim levou consigo inúmeras obras de arte da antiguidade chinesa. A coleção foi futuramente exposta no Museu do Palácio Nacional, aberto em Taipei, em 1965, ao mesmo tempo em que a Revolução Cultural Chinesa estava em ebulição no continente, onde milhares de obras chinesas foram destruídas. Tal ato é considerado controverso. Enquanto muitos taiwaneses acreditam que os tesouros artísticos chineses foram salvos da guerra, os chineses consideram a ação como furto, pois, atualmente, o Museu do Palácio Nacional de Taipei é considerado um dos maiores dos que abrigam antiguidades chinesas, independentemente de proteger o patrimônio cultural de uma nação.
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PROTEÇÃO CULTURAL
Atualmente, pode-se citar o vandalismo cultural conduzido pelo ISIS, a que fomos expostos recentemente. Com o objetivo de uma “limpeza” cultual , o grupo extremista tem causado não só a destruições de obras, como por exemplo, a da estátua do rei de Hatra, mas também a propagação de saques de artefatos considerados históricos, que gera, depois do petróleo, a segunda maior fonte de recursos do grupo, arrecadando cerca de dez milhões de dólares por ano. Para combater essa prática, o conselho de segurança da ONU apresentou uma resolução que bane a venda de antiguidades vindas da Síria, e os governos dos Estados Unidos e de alguns países da Europa reforçaram leis que combatem o contrabando. Contudo, tais medidas são insuficientes para frear o mercado negro, haja vista que a maioria das obras de arte de alto valor é vendida diretamente a compradores privados e não por intermédio de um agente.
Disposições, como as da Unesco, que expõem medidas e condutas legais que garantam a proteção do patrimônio histórico da humanidade, estão começando a serem observadas com mais atenção depois desses ataques. Tanto é assim que o presidente francês, François Hollande, após os ataques cometidos em Paris no dia 13/11/2015, discursou na Unesco no dia 17/11/2015, que a herança cultural deve ser protegida do terrorismo. O presidente disse que 70 bilhões de euros (R$ 283 bilhões) foram destinados para resguardar a herança cultural da Idade Média e ainda propôs a criação de um fundo internacional
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PARALELO
que permita ajudar a preservar as construções artísticas que podem ser alvos de ataques. A ONU, por sua vez, também aprovou recentemente uma medida em que dispõe que as tropas de paz protegerão sítios localizados em zonas de guerra ou que estão ameaçados por ataques de grupos extremistas. O processo de globalização influencia todos os aspectos da vida humana. Dessta forma, com o aumento das conferências internacionais, Governos, organizações não-governamentais e, também, a própria comunidade internacional, reconhecem, valorizam e preservam o patrimônio cultural de forma mais ativa ao levantarem questionamentos sobre o atual cenário mundial, pressionando assim Poderes Públicos locais a dispor de instrumentos legais para tanto, como por exemplo o estabelecimento de acordos transnacionais ou convenções que estipulam os tipos, categorias, o regime de proteção, o uso do patrimônio cultural, direitos e obrigações dos signatários, etc.
Esse processo de aprofundamento internacional das relações econômicas, sociais, políticas e culturais, combinado com a promoção de políticas públicas pode por fim despertar e promover a valorização da cultura mundial. Asseguraria, assim, sua devida proteção legal e o tratamento que lhe é devido, resguardando o sentimento de pertencimento a um lugar, a um povo, a uma história, a qualque nunca serão esquecidos.
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Capa POR GONÇALO IVO
Legenda:
CAPA
A ideia de evolução e progresso em arte, tão difundida pelo modernismo do século 20 e engastada de forma profunda no pensamento e no discurso de preclaras vanguardas históricas, pode parecer um útil instrumento a ser aplicado a análises de obras seminais, como as de Wassily Kandinsky, Piet Mondrian, Kazemir Malevitch, Joseph Albers e muitos outros. Esse conceito de triunfo e sobrepujança está presente não só no discurso, mas também nas obras de boa parcela da arte ocidental na aurora do século 20.
E se tomamos como via de serviço o pensamento darwiniano de evolução, ideias e questões plásticas intercorreriam em um movimento contínuo de superação.
PIET MONDRIAN UMA SÍNTESE PESSOAL DA PAISAGEM
A construção desse modelo altera substancialmente a ideia e o sentimento da passagem do tempo. Transita-se da fruição à negação da atemporalidade. O tempo passará à condição de matéria. Se a experimentação não tem o poder de metamorfosear a essência da arte, pois somente cobre temporariamente com camada de tinta “nova e fina” o que o tempo, amanhã, revelará de forma inexorável, como estabelecer mecanismos de compreensão e juízo para obras e trajetórias complexas com capacidade de entrever e espiar caminhos próprios, como a de Piet Mondrian?
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CAPA
Pinturas como “A Nuvem Vermelha”, “A Torre da Igreja de Domburg”, “Duna n°5”, e mesmo suas abstrações planares, as “Composições”, não ocultam esse gosto particular de evocação afetiva a lugares e experiências sensitivas.
Piet Mondrian, 1906 – 1907. FOTOS: Cortesia Gemeentemuseum, Den Haag, Holanda
A paisagem, a luz local e o “lugar” estão sempre presentes na obra de Piet Mondrian. Os acontecimentos da natureza, fenômenos fugidios como nuvens, dunas, reflexos e árvores em constante serpenteamento, não são fatos registrados de forma arbitrária. Mondrian enfatiza nesses eventos suas profundas raízes na paisagem e na história da pintura de seu país natal. A sensação que nos faz intuir a inefável existência do vento que vem do mar do Norte, através da luz cristalina que perpassa toda a extensão do céu baixo da Holanda na “Vista de Delft”, de Johannes Vermeer, ou mesmo nas suas inúmeras cenas de interior, evoca o mesmo “pathos” e elevação espiritual em Mondrian.
Podemos distinguir também a manifesta presença da personalidade artística de Vincent Van Gogh como baliza ou guia na obra de Mondrian. O uso das cores puras, a luz intensa, o contorno em negro das linhas ou a frenética vibração cromática de “Brodway” e “Victory Boogie-Woogie” primam esse chamamento. No caminho percorrido por Mondrian, há misteriosas inflexões que nos fazem inquirir a passagem doce, racional e tranquila rumo à abstração. Um autorretrato datado de 1918, tendo ao fundo uma pintura abstrata, testifica essa observação. Encontro no poema de João Cabral de Melo Neto, “No Centenário de Mondrian” –- primeira versão, revista “Colóquio Letras”, 1972, Lisboa, Portugal – indicações e mesmo pistas que conduzem ao que o construtivismo, o racionalismo e suas derivações escolásticas consideram e conceituam como qualidades: rigor formal, concretude, economia de meios. Esses axiomas são postulados fundamentais para engendrar uma arte limpa e racional capaz de eliminar vestígios de elementos supérfluos.
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CAPA
E, nessa operação de subtração do que seja emocional, apontar para o futuro de uma arte do Não e do Menos:
... e chegar entre as poucas à coisa-coisa e ao miolo dessa coisa, onde fica seu esqueleto ou caroço; ... então, só esse objeto de cores em voz alta, cores em linha reta, despidas, cores brasa, só teu objeto claro, de clara construção, desse construir claro, feito a partir do não,...
A meu ver, o curioso nesse revelador e engenhoso poema é o último verso citado: “feito a partir do não”. Ao trocarmos a negação pela palavra mão, estabelecemos um sentido diverso não só ao poema, mas para outra compreensão da obra de Mondrian. Piet Mondrian, “Campanário de Zelândia”, 1911
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CAPA
E mesmo quando em seu apartamento da rue du Départ, em Paris, experimentava cambiantes recortes de cor pelas paredes de seu ateliê, travava um lúcido e profundo diálogo com a arte que o precedeu.
Piet Mondrian, “Autorretrato”, 1918
Pintor de ofício e com pleno domínio técnico, desde seu início na Holanda, à derradeira e proclamada “Victory Boogie-Woogie”, de 1944, Mondrian sempre primou por resultados plásticos estreitos e paralelos à tradição da pintura e à grande arte.
Piet Mondrian, “Composição com Oval em cores planas II”, 1914
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CAPA
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Entendo Mondrian como um artista que foi capaz de abrir muitas das várias vias na densa e contraditória floresta da arte do século 20. Suas inquietações artísticas foram a semente e a causa de inúmeros movimentos e tendências; entretanto, o corpo de sua obra será sempre maior do que a suposta paternidade dessas sendas. Afinal, artistas são instrumentos catalisadores das coisas do mundo e da própria natureza e história de seu ofício. Nesste processo entre ideias eletivas, afetividades, escolhas e decisões, nós nos movemos. E tudo conspira para dar sentido e existência à obra. A arte de Mondrian deve ser libertada de toda carga premonitória atribuída a ela e, como as de Morandi ou Klee, voltar a habitar o misterioso espaço da subjetividade, suspensão e imobilidade, qualidades secretas da contemplação. Piet Mondrian, “Moinho à noite”, 1917
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Destaque POR LIEGE GONZALEZ JUNG
DESTAQUE
da moldura, usando para isso a participação do público. O percurso começa com seus primeiros guaches geométricos, feitos a partir de 1954, quando tinha apenas 17 anos. Ainda que apresentem notável execução e composição, são pinturas que pouco destoam do que era feito por artistas consagrados na época, sem indícios da ruptura que viria pela frente.
Oiticica entendia que a geometria e o construtivismo poderiam ser um ponto de partida, mas que se quisesse deixar ‘o ovo do novo’, teria que inová-los.
HELIO OITICICA ESTRUTURA CORPO COR “Passagem da estrutura para o comportamento”. Com essa frase, o curador Celso Favaretto definiu o conceito por trás da exposição “Helio Oiticica: Estrutura Corpo Cor”, no Espaço Cultural Airton Queiroz, na Unifor. Ao todo são 60 obras, dispostas de modo a mostrar o caminho trilhado pelo artista para libertar suas obras de arte
São palavras de Paula Braga, que, junto com Favaretto, assina a curadoria da mostra. A busca pela quebra com os dogmas vigentes fez parte de sua formação sob a tutela de Ivan Serpa, líder do Grupo Frente e um dos grandes defensores da ruptura na arte. Nos escritos de Helio, há várias referências a Mondrian, Malevitch e Tatlin, artistas de movimentos que, quando aportaram no Brasil, nas primeiras edições da Bienal de São Paulo, já eram parte do passado em seus países natais e referências temporais muito distantes para um adolescente dotado da efervescência típica da juventude. O primeiro passo em direção ao “novo” são os “Metaesquemas”, pinturas produzidas entre 1957 e 1958. Nas palavras de Paula Braga, os “Metaesquemas” liberaram a geometria da grade. As estruturas geométricas estão perturbadas, pedem para sair do quadro.
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HELIO OITICICA
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Seria o primeiro passo em direção à sua completa libertação, que viria com a criação dos “Núcleos”, em 1959, e, posteriormente, dos “Relevos Espaciais”. Como nota Favaretto:
Se projetamos os “Núcleos” no plano bidimensional, temos uma pintura de Mondrian ou a grade da qual os “Metaesquemas” queriam se libertar. Nos “Relevos Espaciais”, a grade desaparece por completo e as obras se libertam inclusive das paredes, pendendo livres no espaço. A cor é trabalhada não em suas variações de tom, mas de sombras, criadas pelos ângulos dramáticos dessas esculturas monocromáticas. Sombras essas que mudam a obra à medida que o observador a contorna, um primeiro passo rumo a uma arte mais interativa. Essa busca pela transformação de uma obra física, estruturada, para uma experiência pessoal, vivida com o corpo, inspirou o nome da exposição. É em 1963 que essa passagem se dá de forma mais concreta, com o início dos “Bólides”, suas primeiras peças manuseáveis. O título “Bólide” vem de tipo de meteoro. Nas palavras do superlativo Helio, “bolas de fogo, meteoros, os ‘Bólides’ são focos de energia que envolvem seus exploradores e o espaço circundante em modulações de cor.” As peças permitem que o indivíduo manuseie terra e pigmentos contidos em gavetas, recipientes de vidro ou plástico, ou que mexa nas partes que compõem as caixas, em um conceito análogo ao dos “Bichos”, que sua amiga e companheira no grupo Neoconcreto, Lygia Clark, vinha criando desde 1960. Metaesquema, 1958, Coleção César e Claudio Oiticica. FOTO: Jaime Acioli
DESTAQUE
Uma de suas obras mais célebres, “Homenagem a Cara-de-Cavalo” (1966), é parte dos “Bólides”. O bandido Cara-de-Cavalo havia sido exterminado pela polícia, em um episódio amplamente divulgado pela mídia e aplaudido pela sociedade. Sua homenagem sinaliza o desejo de transgressão que fazia parte do espírito daquela época, marcada pelo momento conturbado na política brasileira e pela disseminação das ideias de superação e desobediência que permeavam as obras de muitos escritores então em voga, como Nietzsche e Antonin Artaud, dos quais Helio era leitor dedicado. No extremo da busca pela quebra com o comodismo e o “status quo”, ser marginal era ser herói.
Parangolé P17, Capa 13 FOTO: Ares Soares
B32 Bólide vidro 15, 1965-1966, Coleção César e Cláudio Oiticica. FOTO Jaime Acioli
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Visitante veste e dança com Parangolé FOTO: Nely de Carvalho
Os Parangolés se situam no cruzamento entre as intenções da interação com público, da ruptura e da liberdade. Ao se aproximar da escola de samba da Mangueira, encantara-se com o relacionamento visceral com a música, uma paixão que inspirava as alegorias mais exuberantes e uma forma de arte marginal ao circuito erudito. O episódio de sua primeira apresentação ao público ficou para a história: Helio trouxe passistas e músicos da Mangueira, vestidos com Parangolés, para participar da mostra “Opinião 65” no MAM Rio e todos foram expulsos. Terminaram sambando e cantando embaixo da marquise do prédio, atraindo ainda mais atenção para sua cruzada pela desintelectualização da arte. Os Penetráveis são o próximo passo na busca por uma arte ativada pelo público, labirintos de sensações e experiências criadas pelo próprio visitante. O mais famoso deles, a “Tropicália”, introduzia ainda outro elemento: areia e araras e plantas, ícones de uma brasilidade plebeia com a qual daríamos identidade à nossa vanguarda. Na mostra da Unifor, um dos dois Penetráveis expostos também remete à música. Macaleia foi criado em homenagem ao músico Jards Macalé, grande amigo do artista. A última obra da exposição é uma montagem das Cosmococas, que Oiticica criou em parceria com o cineasta Neville d’Almeida
Penetrável Macaleia FOTO: Ares Soares
quando os dois moravam em Nova Iorque, nos anos 1970. A dupla queria oferecer uma experiência suprassensorial, afogando os sentidos em estímulos ao mesmo tempo em que ofereciam um ambiente de relaxamento. O suprassensorial abriria as portas para o desenvolvimento de uma consciência interior mais apurada e criativa, um ponto mais profundo da interação com uma obra de arte. Oiticica morreu poucos anos após seu retorno de Nova Iorque, ainda jovem e irreverente em sua criação e espírito, fiel à sua busca pela ruptura tanto em sua arte como em seus escritos, essenciais para a compreensão de sua genialidade.
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Do Mundo POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA Frida Kahlo no hotel Barbizon Plaza FOTO: Photo Gerardo Suter
FRIDA KAHLO ALÉM DO FENÔMENO Cercada pela polêmica e pela originalidade, Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, ou simplesmente Frida Kahlo, é um ícone pop. Sua vida já foi contada pela literatura, pelo cinema e, mais recentemente pelo teatro. Todas as narrativas evocam os acontecimentos de sua vida: a poliomielite infantil; o trágico acidente aos
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FRIDA KAHLO
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Na mostra, Frida é a inspiração subversiva. São cerca de 100 obras, sendo 20 telas e 13 desenhos de autoria da artista. Os demais trabalhos são de 15 artistas mexicanas ou radicadas naquele país que conectam Frida Kahlo ao seu contexto – é exatamente nesse momento que a obra ganha do ícone. Remedios Varo, Rosa Frida Kahlo, “Autorretrato com colar”, 1933 FOTO: Gerardo Suter
DO MUNDO
Rolanda, Alice Rahon, Jacqueline Lamba, Maria Izquierdo, Lola Álvarez Bravo e Lenora Carrigton são algumas das artistas que integram o círculo intelectual de Frida e que tem obras na exposição. Elas compartilham em seus trabalhos das mesmas preocupações da artista: o resgate das raízes populares mexicanas e as dores do universo feminino. Além disso, Frida foi modelo para muitas pinturas e fotografias dessas artistas. Tudo traduzido pela linguagem surrealista, pelo onírico e pela subjetividade. Os trabalhos que não são de mulheres recriam o mundo de Frida, como por exemplo, as fotografias de Nickolas Muray (por sinal, seu amante por quase uma década) e a litografia de Diego Rivera, Nu (Frida Kahlo), 1930. Completam o ambiente suas roupas cheias de cores e ricas em elementos florais. Entre pinturas, esculturas, fotografias, catálogos, vestimentas e documentos que integram a mostra descobre-se um universo inquietante que contextualiza o ícone Frida Kahlo e onde se revelam outras personagens tão intensas quanto ela. Acima de tudo, a exposição traz uma densa reflexão sobre a estética que emerge dos trabalhos de Frida e de suas contemporâneas.
Frida sempre negou o surrealismo, dizia que não retratava sonhos, mas sua própria realidade cercada pelas angústias e pelas dificuldades de sua própria condição.
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FRIDA KAHLO
Porém, mais uma vez ela subvertia o cânone e assinalava sua pisque na criação de telas carregadas de símbolos e mitologias pessoais. É justamente esse o ponto que une suas obras e as das demais artistas. Todas elas dedicam-se a muitos autorretratos e retratos simbólicos fronteiriços entre o público e o privado. Não há dúvidas que a estética surrealista foi apropriada por essas mulheres para narrar seus dramas e reafirmar sua identidade. Em todos os trabalhos percebe-se a absorção da tradição artística ocidental e, posteriormente a busca de autonomia e de especificidade própria. Frida Kahlo, “Minotauro”, 1959
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Balada para Frida Kahlo,1956-66 Cortesia de Oscar Roman Gallery
Outra conexão entre Frida e suas companheiras está na demanda por identidade. Filha de mãe católica, mestiça de índio espanhol e de pai judeu alemão, Frida ocupou seu imaginário temático a partir de sua origem mestiça. Ela sempre reafirmou sua identidade, seja a partir de seus trajes, seja em sua obra. O resgate do passado pré-colombiano e a valorização das culturais indígenas do México estão entre as conexões existentes entre essas artistas. Para todas elas, a procura por suas origens (mesmo as estrangeiras que compõem o grupo) representa um gesto político em período de grandes revoluções e guerras. Por último, a exposição Frida Kahlo – Conexões entre Mulheres Surrealistas no México, ao desvelar as conexões entre Frida e o grupo de artistas que a cercavam, tornou-se um fenômeno de público em São Paulo, com filas consideráveis. Porém foi além, conseguiu contextualizar a produção artística de Frida. Deu-lhe um atributo na história da arte do século 20. Sim, o ícone Frida se fez presente. O público foi (e irá) atraído por ele à exposição, porém, sairá conhecendo sua vida, obra e influências no cenário artístico do qual foi protagonista.
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LIVROS
Livros - Lançamentos
Tropicália + Verdes Correntes Bansky - Por trás das paredes Will Ellsworth-Jones Nossa Cultura – 325 p. – R$45,00
Esta “biografia”desvenda a arte do grafiteiro Bansky, já que ninguém sabe ao certo quem ele é. Artista cuja identidade nunca foi revelada, ele permanece como uma incógnita para o público e para a crítica desde 1990. O desafio do autor foi reunir peças e mostrar como alguém cujo trabalho era considerado por muitos como mero vandalismo, tornou-se uma espécie de tesouro da Grã-Bretanha. Para escrever o primeiro relato completo da carreira de Bansky, o autor conversou com conhecidos e adversários grafiteiros. Nas entrevistas, não solicitou nenhuma revelação sobre a identidade do artista, que, segundo o jornal The Observer, “faz questão de manter e preservar seu próprio mito”.
Roberta Camila Salgado Azougue Editorial - 23 p. e 80 p.
Poucos sabem, mas os “poemobjetos” apresentados por Hélio Oiticica na obra “Tropicália” são de Roberta Camila Salgado. Os poemas, pinçados para a emblemática exposição Nova Objetividade, são lançados em livro pela primeira vez. A edição reúne em um só volume dois livros da autora: “Tropicália” (com poemas de 1965 a 1967) e “Verdes Correntes” (com poemas de 1965 a 2015). Segundo Roberta, a ideia de escrever sobre suportes diversos, elementos industrializados ou não, era levar a poesia para o dia a dia das pessoas, de forma a quebrar a aridez das cidades, distensionar, levar esperança, alegria e despertar o interesse pela poesia.
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LIVROS
Pacto Visual 2 Luisa Duarte ID Cultural – 204 p. – R$ 80,00
O livro concentra sua atenção no depoimento de sete artistas e seus respectivos processos de formação e interlocução com as referências que forjam suas obras. A premissa do livro é a seguinte: um nome já conhecido, com uma trajetória madura, indica um artista que ainda se encontra no começo ou no meio de sua carreira, sublinhando a importância de um olhar sobre a obra do outro. Assim, Antonio Dias elegeu Fabiano Gonper; Iole de Freitas, Mariana Manhães; Luiz Zerbini, Marina Rheingantz; e Adriana Varejão escolheu fazer uma homenagem, indicando um artista in memoriam, Ivens Machado (1942-2015). Nas páginas da publicação, saem de cena as vozes do cr’tico e curador e entra em pauta o próprio artista falando sobre o seu trabalho.
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LIVROS
Elementos do Design Tridimensional Gail Greet Hannah PUC Rio de Janeiro e Cosac Naify – 192 p. – R$35,00
O livro apresenta um método elaborado pela professora Rowena Reed Kostellow no Pratt Institute, em Nova Iorque, para o ensino e a prática das relações visuais no espaço. O corpo principal da publicação é o registro do programa de ensino. As informações teóricas são acompanhadas por exercícios das relações no espaço tridimensional, - ilustrados por fotografias dos objetos desenvolvidos com os alunos - e concluídas com exemplos do trabalho de ex-alunos que se tornaram destaques na área.
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Resenhas Legenda:
QUANDO O TEMPO APERTA por Luisa Nóbrega
Cigarras, Formigas e Mariposas “A mesma gente que passa o tempo nas redes, quando o tempo aperta, constrói em três anos, no deserto, uma capital”, escreveu Lucio Costa no texto do catálogo da Trienal de Arquitetura de Milão, que lemos através de uma mesa de vidro em uma das salas da exposição “quando o tempo aperta”, de Raphael Fonseca, em cartaz no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. No pavilhão brasileiro da trienal de 1961, diversas redes convidam os visitantes a se deitar e dedilhar um violão, enquanto uma fotografia de Brasília faz contraponto, ao fundo. Nas entrelinhas do texto do catálogo, podemos ler, se quisermos, sinais de fadiga do projeto modernista: as redes estão ali para “acolher o inevitável cansaço dos visitantes da exposição”. Já começavam os anos 60, combatendo a sisudez do pós-guerra, revirando as estruturas do avesso, rebatendo-as com experiência múltipla, singular e oscilante que evocava pelos penetráveis de Helio Oiticica, as canções da Tropicália e os impulsos
RESENHAS
de maio de 68 – vontade de formas híbridas, que intercalassem preguiça e desejo, transgredindo a lição severa do funcionalismo e o raio x metálico da geometria. Cinquenta e cinco anos depois, Raphael nos chama atenção para o nó apertado que assombra nosso sossego: depois de nos deitar (algo apressadamente) na cama-bólide de Hélio, damo-nos conta de que a única rede disponível no espaço está ocupada por uma bola áspera de cimento: arquitetura que expulsa em vez de acolher. A rede-armadilha de André Komatsu e Marcelo Cidade nos faz pensar nas rampas pontudas instaladas nos viadutos de São Paulo, que impedem os mendigos caírem no sono. No texto “Comrades of times”, Boris Groys contrapõe o presente eterno da arte contemporânea ao futuro do das vanguardas: para os modernistas, o presente era apenas etapa provisória, estilingue para um tempo por vir.
Hábitos e pessoas deveriam ser descascados para abrir espaço para a cidade do futuro, universal e reluzente, que prometia instaurar na Terra um paraíso industrial luminoso. “Camaradas, durmam mais depressa!”, insistia o slogan de Ilf e Petrov, uma dupla de escritores russos, parodiando essa vontade exaltada de pular etapas, fazer o tempo saltar. Anos depois, quando o concretismo russo havia dado lugar ao realismo socialista, quando ainda se sentia no ar o cheiro de gás e os resíduos de cabelos deixados pelos fornos da Segunda Guerra Mundial, a poetisa polonesa Anna Kamienska anotaria em seu caderno: “Dormir é a coisa de que eu vou sentir mais falta quando eu morrer”. Talvez os dorminhocos das fotos
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QUANDO O TEMPO APERTA
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de Pierre Verger, descendentes da nossa sociedade escravocrata, concordassem, sonâmbulos. Uma correia circula veloz em torno de dois eixos paralelos na ampulheta mecânica de Gabriela Mureb, que gira sozinha, perpetuando o próprio movimento compulsivo. Seu som permeia toda a exposição, como o ruído de um enxame de cigarras mecânicas – não conseguimos deixar de pensar na fábula cruel de La Fontaine, que ilustra perfeitamente a lógica protestante que moveria as correias dos primórdios capitalismo: quem não produz morre no inverno, quando as formigas fecham as portas. O tema da Trienal de Milão que abrigava o pavilhão de Lucio Costa, “tempo livre”, aludia à esperança modernista de que as máquinas pudessem produzir tempo em abundância – sem desconfiar de que a tecnologia se revelaria um “comedor de tempo” entorpecente e hipnótico, e não uma prótese eficiente e dócil para formigas. Em meio às canções das cigarras eletrônicas, enfeitiçados pela luz branca da tela do computador e os apelos constantes dos aplicativos de celular, rodopiamos como mariposas: a diferença entre atividade produtiva e atividade inútil parece mais e mais impossível de identificar. Um quadrado vibra constantemente no outro artefato de Mureb, como um despertador sem horas sempre em estado de alerta: “é Legenda:
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tarde, é tarde, é sempre tarde”. Cada e-mail respondido é apenas mais um em meio a uma corrente compulsiva de mensagens que nunca se interrompe; cada projeto concluído dá lugar a um novo projeto, em um eterno retorno compulsivo. O quarto se tornou de certo modo um espaço em negativo, parece dizer Laís Myrra, com sua planta arquitetônica rasurada e os resíduos/escombros de um quarto demolido. Entre os objetos anacrônicos e kitsch das fotografias de Rochelle Costi, os quartos sobrevivem como colagens improváveis de aposentos, estilos e tempos que já se foram, mas que seguem existindo, como em um álbum de figurinhas. Raquel Stolf empilha silêncios campestres com grilos e abelhas e silêncios de quartos de hotel com ar-condicionado: silêncio maquinal e silêncio orgânico se tornam inseparáveis – todo sono é intermitente, todo o quarto é provisório. Diante das forcas metálicas reluzentes de Ana Maria Tavares, parece difícil criar estratégias para tentar para afrouxar o nó da gravata, da garganta. Em “Encomenda para José”, Leandra Espírito Santo faz circular um enorme barco de papel pelas ruas do Rio de Janeiro, interpelando o gelo derretido de Francis Alys: será que fazer nada leva a alguma coisa? Na sequência de fotos de Sara não tem nome, uma garota realiza um atentado lúdico contra um homem-colchão Ortobom, interrompendo sua performance-encomenda, invertendo as promessas da publicidade: “não quero comprar os colchões da loja, quero descansar na imagem, quero descansar em você”. No papelão depositado no chão, trabalho de Adriano Costa, lemos, em letras maiúsculas, entre letreiros de marcas: “Berço esplêndido”.
Impossível não reconhecer na frase do Hino Nacional certa morbidez e ironia: um mal-estar ansioso e afoito parece contaminar a preguiça amoral do herói sem caráter.
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SILÊNCIO IMPURO
por Liege Gonzalez Jung
As quatro obras do salão principal da Galeria Anita Schwartz parecem se perder no imenso pé-direito do ambiente. A iluminação dramática, que lança sombras bem delineadas no chão e nas paredes, colabora com esta sensação. Á direita de quem entra está uma escultura intrigante de Carla Guagliardi, “O lugar do ar” (2015). São esferas de espuma de diferentes tamanhos presas por placas de madeira articuladas. Temos que segurar o impulso de mexer nas placas, a escultura parece pedir que o façamos: as placas são presas na parede por dobradiças! Mas freamos, sabemos que as bolas cairão, que a beleza tênue da escultura se desfará. Calo-me, baixo a cabeça, me afasto em silêncio (impuro?). Á esquerda está “Partitura”, também da artista, uma pauta musical de grade assimétrica. Nas palavras de Felipe Scovino, “a escolha dos materiais (borracha, madeira, espuma) envolve um repertório
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de fragilidades e um equilíbrio precário”. “Tudo parece ruir ou estar prestes a desabar, mas por outro lado as obras evidenciam uma dinâmica que é própria da natureza do som: querem o ar”. Os metais de Otavio Schipper, familiares na sua semelhança com trompetes e cornetas, pendem do teto como que pra reforçar esta ideia. Ao fundo, uma instalação de Waltercio Caldas une molduras de metal com fios, demarcando o vazio, outro território do silêncio. No andar de cima, outra “Partitura”, esta de Artur Lescher, uma série de imagens que à primeira vista parecem retratar constelações. O título nos orienta a enxergar esta música, pronta para ser tocada todas as noites em que não há nuvens. No centro da sala, no chão, Nuno Ramos inseriu em duas rochas de pedra-sabão, meio brutas e meio polidas, um par de baquetas e uma batuta, como fósseis pré-históricos preservados no sedimento. Sua música está presa na pedra. Das duas obras de Cadu que ocupam as outras paredes, “Fuer Elise” é, obviamente, a mais musical. Partiu de uma caixinha de música que toca esta melodia de Beethoven, que deve ser a mais usada em
Pode haver música mais silenciosa que a das estrelas? caixas de música ao redor do mundo, e por um processo complexo transformou-se em um desenho plano, uma canção desconstruída. A outra obra usa o sol para “pintar” blocos de papel por meio de uma lente de aumento. De acordo com Scovino, “Não há som, apenas o seu caráter indicial e o processo de excluir ou escavar a matéria para revelar uma outra possibilidade de aparecimento ou ação poética da obra”. A exposição finaliza com um registro em vídeo do trabalho de Tatiana Blass “Metade da fala no chão – Piano surdo” (2010), Nele, um pianista executa uma melodia enquanto uma miistura de cera e vaselina é derramada sobre o piano, aos poucos impedindo que ele produza sons. Assim termina em silêncio também a exposição.
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Garimpo POR ELISA MAIA
Legenda:
MICHELE MARTINES “Tobias”, “Renato” e “Miguel” pertencem à série de pinturas intitulada Abuso (2015/16), de Michele Martines. Cada uma das telas, batizada com um nome próprio, exibe uma figura masculina em uma situação que remete aos anúncios publicitários. Para compô-las, Michele parte de imagens fotográficas pesquisadas na internet, mesclando-as e as manipulando de forma a alterar as legendas, as cores e padronagens de acordo com a proposta de cada trabalho. Com a referência em mão, a artista parte para a pintura, meio que define como um “amor verdadeiro” – “sempre senti prazer no fazer manual, em misturar cores, arrastar o pincel sobre a tela e vencer o desafio da imagem”, conta. Ao pintar corpos de homens, Michele parece inverter a lógica da extensa iconografia na qual a mulher figura como objeto do olhar masculino. Desde as pinturas renascentistas até as campanhas publicitárias do século 20, que lançam mão de corpos atraentes como
GARIMPO
elementos centrais de persuasão, predominou uma relação na qual o homem participa como o sujeito que olha, enquanto a mulher, cuja imagem foi associada às noções de beleza, graça e suavidade, comparece como objeto desse olhar. A artista conta que a série Abuso foi então motivada por um questionamento – “por que a beleza física do corpo masculino ainda é tão pouco explorada na pintura?”
A linguagem publicitária explora a mercantilização do corpo para produzir uma excitação voyeurística. Em alguns casos, a imagem da mulher é equiparada ao próprio produto anunciado, ou pelo menos ao prazer ou à sensação proporcionados pelo seu consumo, como ocorre no caso emblemático dos anúncios de cerveja direcionados ao público masculino. Michele se apropria dessa linguagem e parodia essa estratégia ao retratar o torso nu sexualmente atraente de um homem negro em um anúncio de chocolate, popularmente conhecido como um fetiche feminino. Dessa forma, sua série explora a capacidade de reificação das imagens, mas, ao eleger corpos masculinos, desafia o repertório hegemônico – “Quero expor esses homens lado a lado, para que sejam admirados, comparados e escolhidos. Como se o espectador estivesse diante de um catálogo”, conta Michele. Para saber mais, acesse www.michelemartines.blogspot.com
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COLUNA DO MEIO
Coluna do Meio Studio de ideias
Abertura da exposição dos fotógrafos Paulo Greuel e Carlo Alberto Rusca Fotos: Angelo Santos
Ricardo Duarte e Sylvia Carolinne
Walter Goldfarb e Edson Thebaldi
Alexandre Murucci
Museu Nacional de Belas Artes
Abertura da mostra “Roberto, um Certo Rodrigues”
Panorâmica
Fotos: Divulgação
Centro Cultural dos Correios
Abertura da exposição Ela Não Gostava de Monet, de Walter Goldfarb Fotos: Paulo Jabur
Monica e Pedro Xexéo com o colecionador Morris Braun Fernanda Terra e Roberto Padilla
Vandinha Klabin e Walter Goldfarb
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Pedro Xexeo e as curadoras da mostra Claudia Rocha e Daniela Matera
Inauguração da Gabriel Wickbold Studio & Gallery Exposição de Christy Lee Rogers Fotos: Paulo Otero
Sara Alonso Gómez e Bruno Devos Nara Reis e Ricardo Duarte
Roberto Padilla e Marcelle Pithon Bruno Van Enck e Paula Brofman
Carolina Pirajaú e Juan Morales
Cecilia Madureira
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COLUNA DO MEIO
Alto Falante POR ALEXANDRE SÁ
Donna Piedade e Catharina Suleiman
Karla e Marcelo Felmanas
Felipe Rezende e Gleeson Paulino
Pedro Barbosa e Bruna Benatti
Gabriel Wickbold e Grazzi Ferraz
Rebeca Gasperini e Rodrigo Nicolau
Museu Nacional de Belas Artes
Passagem da Trezena de São Sebastião Fotos: Divulgação
Luigi Parisi
Monica Xexeo, Dom Orani, Riccardo Battisti, Luigi Parisi
UM TEXTO BEM IDIOTA Um respeitável artigo da revista Piauí de janeiro de 2016, resolve ir à busca de Nathaniel Leff, professor da Escola de Negócios da Columbia University entre o fim dos anos 1960 e meados de 1990. Para além do esforço absoluto de Rafael Cariello e de sua equipe de encontrar o tal professor desaparecido, ou pelo menos conseguir obter informações sobre seu paradeiro, houve algo que me chamou a atenção. Percebe-se, ao longo do artigo, o quão inegável são as contribuições que o tal Leff, apaixonado pelo Brasil, por nossa história e economia, promoveu, quando resolveu investigar, por mais de uma década, a nossa formação e as razões de uma perceptível deficiência econômica. Nathaniel Leff termina indo contra algumas teorias – como as de Caio Prado Jr. e Celso Furtado –, defendendo que parte da pobreza que nos acompanha historicamente não pode ser responsabilidade absoluta do período colonial, já que existem muitas questões que foram potencializadas no século 19 e, segundo ele, as mais lúcidas razões para o nosso degredo viria de uma “falta de integração interna da economia brasileira – e o alto custo de transporte no país”. . Podemos perceber, por um detalhamento minucioso, que a disparidade galopante começa a se estabelecer posteriormente à Revolução Industrial, pela inexistência de investimentos estruturais que abrem o abismo entre nós e o mundo. Ali, naquele momento, ainda apostávamos na força do jegue. E tal dificuldade de circulação culminará no nosso atual sistema de transporte (de gente, de carga, de esperança) que já sabemos bem o quê é.
ALTO FALANTE
Fiquei com tudo aquilo na cabeça e com a tal falta de integração interna como um fantasma que eventualmente me surgia pedindo reflexão. Lembrei-me do vídeo em que o Cazuza afirmava que somos, desde o começo, um país do saque.
Que temos o saque e a lógica do roubo como elementos genéticos que atravessam nossas constituições e se estabelecem como hábitos sem culpa alguma. A essa linda fórmula de cordialidade, talvez eu tenha somado sem querer as últimas imagens das escavações políticas e a quantidade absurda de injustiças que nortearam as últimas décadas da história política e econômica do Brasil e que tive a (in)felicidade de acompanhar. Mas voltando ao Nathaniel Leff, talvez o que me surpreendeu foi a ousadia de repensar o legado da desestruturação operacional que carregamos desde muito e a coragem de, na contramão de certo pensamento corrente, provocar outras possibilidades de compreensão, culminando com a sutil afirmação de que nossos dirigentes (e talvez os cidadãos, “why not?”) tenham sido os verdadeiros responsáveis por tudo aquilo que somos. Que, provavelmente, a ânsia de cuidar unicamente de seus projetos pessoais de salvaguarda de uma tradição financeira, amparada em uma lógica inóspita de economia feudal, foram fundamentais para a manutenção de tantas
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UM TEXTO BEM IDIOTA
famílias, tantos nomes e tantas pessoas em seus confortáveis lugares de origem. Da mesma forma que os desconfortáveis lugares de sofrimento e de alguma falta de oportunidade. E, meio Pequeno Príncipe, relembro a sutil sentença que agora soa fatídica: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Antes que o leitor pense que se trata de alguma postura melancólica ou cega, obviamente sei que também existiram coisas louváveis e os últimos anos puderam mostrar que um pouco de boa vontade não faz mal a ninguém. Contudo, acredito que a pequena falácia que retumba ao defender que somos um país jovem e com uma história curta não pode vir a ser uma justificativa plausível para tanta desgraça que assola o país com sua lamas, barreiras e impunidade histórica/política/divina. A impressão que tenho é que as coisas parecem pouco críveis e talvez estejamos ligeiramente cansados. Além de aturdidos com uma quantidade considerável de juros e dívidas a pagar. Sem contar todo o conjunto de impostos que aumentam a responsabilidade da produção infinita de trabalho e dinheiro (Mudando um pouco de assunto, nós quem?). Talvez por isso, a mísera questão política parece ser mais um simples elemento de assombro que norteia as reações faciais na leitura dos jornais, dos sites e no compartilhamento incólume das informações. Um expressão de surpresa que, quando verídica e mordaz, revela uma mais antiga e geracional: aquela do “já sabia”, “eu imaginava”, “meu corpo acostumou-se com algum chicote vale-tudo”. E então eis que surge a arte. Aqui. Agora. No texto. Por certo, seria pertinente que eu não desviasse o fluxo para falar de arte. Inclusive porque a tal relação arte e vida parece útil e utilizável enquanto conceito banguela quando interessa a quem a cita.
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ALTO FALANTE
Originalmente, arte não tem nenhuma relação com política. Originalmente, arte não tem nenhuma relação com política?
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pientíssimas para um novíssimo programa de formação ou de curso, seus conselhos gentilíssimos sobre a parcimônia da crítica de arte no jornal, sua perseguição ferrenha a tudo que é vital e pulsa, sua pressuposta preparação de artistas para o mercado, sua curadoria que não consegue levantar nenhuma questão sólida, seu tom de voz doce e comedido e todo o resto, não me servem de nada.
Eu não o amo mais, Beltrano. Talvez precisasse então fazer um corte. Como um cão andaluz. Mudando todo o rumo. E, ainda menino, pudesse lançar uma pergunta sobre o que pode a arte dentro desse panorama hospitalar que invade as notícias e os iates. Mas, além disso, talvez fosse importante fazer um novo recorte. Parando tudo e correndo para pegar um microscópio instalativo qualquer que fosse capaz de aproximar a questão e a pergunta que talvez me aflija de maneira não menos estúpida: O que pode a arte brasileira? Sim, querida. Eu sei que tudo anda bem e as vendas não tão surpreendentes ainda não nos causam toda a preocupação necessária. Sim, meu amor, eu sei. Você sabe que eu sei que a arte brasileira vem ganhando força e respeitabilidade. Lógico. Ainda bem. Menos mal. Claro que eu não posso discordar de você ao defender que a arte é um artigo-fetiche e talvez isso seja fundamental para sua constituição e circulação. Sim... Eu adoro vernissages e uma bebida boa e uma gargalhada leve e despreocupada enquanto exibimos nossas agendas cheias de compromissos. Essa é parte que nos cabe neste latifúndio da nossa política pouquíssimo pedagógica de editais, patrocínios e “petits fours”. Mas não me obrigue, querido. Não agora, dentro da noite veloz a concordar inteiramente com todo o jogo de entretenimento pseudo-altruísta que nós construímos como o fundo de alguma verdade que jamais existirá. Aqui de onde lhe escrevo, suas indicações sa
(Silêncio de 2 minutos. Pare de ler. Volte em 120 segundos) Inspire Expire Inspire Expire Inspire Expire Prometo que em breve tento escrever com alguma dignidade “Laranja Mecânica” para abrir seus/meus olhos que, de maneira são Tomé, só acreditam em uma infindável lista de autores. Este texto é para os que não sucumbiram. E para Nathaniel Leff.
Revista Piauí, n. 112, v. 10, p. 20, jan. 2016.
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