Revista Dasartes Edição 49

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HIERONYMUS BOSCH FRANCISCO BRENNAND GABRIELA MACHADO HUANG YONG PING IOLE DE FREITAS VIVIAN CACCURI


49 DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin PRODUÇÃO André Fabro

Capa: Hieronimus Bosch, detalhes de O Jardim das Delícias, 1500-1505. Museu Nacional do Prado, Madri.

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Página 2 e capa traseira: Hieronymus Bosch, detalhes de O Carro de Feno, 1515, Museu Nacional do Prado, Madri.


IOLE DE FREITAS

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HIERONYMUS BOSCH

06 De arte a z 40 Livros 44 Resenhas

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FRANSCISCO BRENNAND

do 52 Notas mercado do 54 Coluna meio 58 Alto-falante

GABRIELA MACHADO

VIVIAN CACCURI

HUANG YONG PING

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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte

ESCULTURA DE HITLER BATE RECORDE DE PREÇO Na semana de leilões de maio em Nova York, mais de US$1 bilhão em obras de arte trocou de mãos. Entre os resultados, o que mais chamou atenção foi a venda da escultura “Him”, do sempre polêmico Maurizio Cattelan, por US$17,2 milhões em leilão da Christie’s, recorde de preço para obras do artista. Outras obras de Cattelan incluem uma escultura do papa Bento XVI tomando um tombo e a recente instalação com um burro vivo na feira londrina Frieze.

ADEUS A FRANÇOIS MORELLET

PLAJAP EM NOVA SEDE

FINALISTAS DO TURNER PRIZE

Instituto ganha espaço

Prêmio mantém ousadia

Pioneiro do neon

Jacqueline Plass, a “Peggy Guggenheim” carioca, inaugurou em maio a nova sede do Instituto Plajap em Ipanema, com exposição de Marcelo Jácome (foto de Paulo Jabur). A mostra é fruto da parceria com o Escritório de Arte Martha Pagy e parte da missão do Instituto de apoio a artistas.

Michael Dean, Helen Marten, Anthea Hamilton (foto) e Josephine Pryde são os finalistas do Turner Prize, um dos mais prestigiosos do mundo para arte contemporânea, dado pelo Tate. Os quatro participam de uma mostra de setembro a dezembro, quando o ganhador é anunciado.

Aos 90 anos, o artista plástico francês François Morellet faleceu em maio, enquanto ainda estava em cartaz na Dan Galeria uma mostra celebrando seu jubileu. Morellet foi um dos pioneiros no uso do neon e fundador do grupo Grav de arte cinética e ótica nos anos 1960, com Julio le Parc e outros.

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LOUVRE E D’ORSAY AMEAÇADOS POR ENCHENTE Dois dos mais importantes museus do mundo fecharam as portas no inicio de junho para proteger seu acervo de enchentes. Situados à beira do Sena, ambos têm planos extensos para proteção contra interpéries e acidentes e rapidamente embalaram, suspenderam e transportaram boa parte das obras de arte expostas em áreas de risco. A França passa por um dos períodos mais chuvosos de sua história.

GIRO NA CENA

Picasso erudito e selvagem O Instituto Tomie Ohtake traz uma vasta seleção de arte da coleção particular de Pablo Picasso. Às obras de sua autoria, somam-se fotografias feitas por amigos para propor um percurso íntimo pela vida do artista, evidenciando o peso que momentos pessoais - como a paternidade, os amores e a guerra - tiveram em sua produção. De 22/5 a 14/8.

NOVA REDE SOCIAL PARA AS ARTES VISUAIS Iniciativa quer ligar profissionais Foi lançada em maio a Emerge, uma rede social voltada para artistas, curadores, produtores, pesquisadores, estudantes, professores, galeristas, marchands, colecionadores e outros envolvidos com artes visuais. Em emerge.art.br, o usuário se cadastra, convida amigos, estabelece ligações com outros usuários e mostra seu trabalho ou busca parcerias. “É como um LinkedIn das artes visuais”, explica Wenderson Fernandes, artista plástico e um dos criadores da iniciativa. De acordo com os interesses indicados no cadastro, a Emerge avisa o usuário dos editais, prêmios, residências, cursos e outras oportunidades compatíveis com seus objetivos. O serviço é gratuito. 8

Burle Marx em Nova York O brasileiro tem sua primeira grande retrospectiva nos Estados Unidos, no Jewish Museum. São 100 obras, incluindo projetos de paisagismo e cenografia, pinturas, joias e uma tapeçaria, além de obras de outros artistas inspirados por ele, como Dominique Gonzalez-Foster e Arto Lindsay. De 6/5 a 18/9.



GIRO NA CENA

Daniel Feingold no MON Com curadoria da conselheira Dasartes Vanda Klabin, a mostra Acaso Controlado estabelece uma linha entre os trabalhos mais conhecidos do artista, onde a cor é explorada dentro de uma organização geométrica rígida e ao mesmo tempo acidental, com sua novas pinturas em preto e branco. Traz ainda uma séria de fotos de 2007. De 2/6 a 25/9.

DANIEL JABLONSKI DÁ AULAPROTESTO NO PARQUE LAGE Como parte da exposição com curadoria de Marta Mestre, o artista plástico Daniel Jablonski ministra uma aula condensando todo o conteúdo de seu curso semestral “A fotografia e seus fantasmas” em uma única aula de 21 horas. De acordo com o artista, a aula-performance vale-se do contexto de uma exposição de arte para dar acesso gratuito a um curso que tem um custo restritivo e lembrar ao público do Parque Lage a vocação fundamental do lugar, a de ser não um museu, mas uma escola livre de arte.

Antonio Bokel em Vitória O jovem carioca ganha mostra na Matias Brotas, que com ela comemora seus 10 anos como a principal galeria de arte da cidade. Entre as obras selecionadas pela curadoria de Daniela Name, estão algumas pinturas em escala monumental e, pela primeira vez, uma intervenção na fachada. De 16/6 a 4/8. 10

VISTO POR AÍ

Seven Magic Mountains, grupo de esculturas de Ugo Rondinone nos arredores de Las Vegas, ao lado da rodovia Interstate 15, reveladas em maio.



LEVEZA E PESO FAZEM CONTRAPONTO NA EM SUA OBRA, IMPREGNADA PELA VIVÊNCIA EM DANÇA COTEMPORÂNEA POR MARC POTTIER Antes de mais nada, gostaria de relembrar que Iole de Freitas é mulher e artista. Ela foi casada com um artista. Ela é brasileira nascida em 1945. Esta constatação é longe de ser banal. Não posso deixar de pensar naquele retrato liliputiano (nas suas próprias palavras ao ver a imagem) dela em frente da 12 DESTAQUE

escultura gigante de mais de cinco metros de altura pela mesma largura que ela produziu em 1991 na Capela do Morumbi em São Paulo. Contrariando as tendências dominantes "falocêntricas" que mencionou Jacques Derrida, inclusive no mundo da arte, e considerando também que Iole é uma artista que faz parte de uma geração para a qual o Brasil, apesar da


instauração da Bienal de São Paulo, ainda não estava inserido nos itinerários traçados pelos profissionais da arte, esta fotografia consegue resumir a incrível energia e criatividade que ela vive. A produção de uma obra que não podia existir, exceto por ela. Esta foto é uma entre tantas outras. Basta folhear a sua biografia para ver como esta artista sempre enxergou de uma forma grandiosa e generosa. Ela expôs instalações-obras onde a matéria vive e respira, onde as paredes dos museus que a tinham convidado ficavam incapazes de as conter e terminavam às vezes sendo atravessadas. Na sua última exibição no MAM

do Rio de Janeiro, em 2015/16, suspendeu os seus grandes desenhos (como se pode também pensar as suas esculturas) e nos revelou aquela nova escritura do movimento que ela inventa, parecendo ignorar as restrições tanto do peso das matérias que ela utiliza quanto do espaço monumental do museu. Iole de Freitas parece lançar-se sem barreiras na sua obra de uma forma que nos libera de qualquer engajamento feminista militante, sexual, conceitual ou imaterial. Ela não tem raiva. Mas há uma força, um tipo de força que parece impossível contrariar.


Iole entende bem os efeitos desta continuidade e simultaneidade e este tipo de abstração que integra a figura no espaço.

Iole de Freitas avança sem limites, imperturbavelmente. Mesmo impregnando a obra de sua presença, o que ela reivindica do corpo é sempre metafórico, sutil, restrito às sensações. O corpo, sempre presente, fica, entretanto, invisível. Esta nova escritura original do movimento, esta dança inaugural por ela proposta, suas esculturas-desenho são obras de uma escultora incrível do espaço, onde ela banca tudo que ela é. Quase vinte anos de dança contemporânea deixaram um traço indelével na obra de Iole de Freitas. Mesmo se ela não fala da dança de uma maneira literal, a dança fica sempre presente. Para mim, isso não é "o movimento" mas sim "a dança". Para Nietzsche, escrever era dançar. A dança é uma metáfora do pensamento, uma escritura para conquistar a sua liberdade. Iole de Freitas, como já vimos, não tem limites; ela quer uma liberdade absoluta. Pode-se também citar Alain Badiou quando fala da "metáfora da infixação" ou da "intensificação" de Paul Valéry. É exatamente isso que está em jogo na obra de Iole de Freitas. Uma embriaguez, uma intensidade da metamorfose que nos oferece o poder que nos liberta e permite a interpretação do mundo. Iole dança com as ideias, dança com as matérias e nos envolve com ela numa explosão de vida dionisíaca. Só ela sabe como nos propor um milagre ao expor a sua dança. Ela pega o corpo dançante para inventar novas encarnações plásticas. A abstração do

Acima: Instalação na Capela do Morumbi. À direita: exposição no MAM Rio em 2015.


corpo é levada ao seu extremo. Ela acredita na vida, em todas as formas vivas, nas suas metáforas, na "síntese móvel", como a chamava Stéphane Mallarmé, a quintessência da sugestão. Iole de Freitas soube traçar novas perspectivas, mesclar temas transversais, novas formas dinâmicas do real que levam à abstração. Claramente, isso lembra os artistas do Futurismo, especialmente Umberto Boccioni. Ele é o artista que soube ir mais longe em termos de incorporar tudo por unificar "as transformações que o objeto sofre nos seus deslocamentos em relação ao ambiente móvel ou imóvel". Iole entende bem os efeitos desta continuidade e simultaneidade e este tipo de abstração que integra a figura no espaço.

Em Iole, cabe ao espectador imaginar as possíveis transformações. Suas obras vivem no movimento imperceptível da imaginação dos observadores. Inconscientemente continuamos a sua dança dentro das nossas cabeças e dos nossos deslocamentos enquanto andamos ao redor das suas esculturas ou as acompanhamos com os olhos. Em Iole de Freitas, a obra domina o espaço. Porém, por dominá-lo, ela nos envolve na sua dança. Não há escolha.

A escrita do Movimento • Roberto Alban Galeria • Salvador • 18/5 a 19/7 Marc Pottier é curador e autor francês baseado no Rio de Janeiro, idealizador do programa 'Olhar Estrangeiro' no canal Arte1.


Mesa dos pecados capitais, 1505-1510. Museu do Prado

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ANIVERSÁRIO DA MORTE DO PINTOR HOLANDÊS É COMEMORADO COM GRANDES EXPOSIÇÕES NA EUROPA

BOSCH 500 ANOS


POR JOS KOLDEWEIJ E MATTHIJS ILSINK Hieronymus Bosch revela-se, em igual medida, um habitante padrão de 's-Hertogenbosch e um intelectual singular. Um artesão que, graças à sua educação humanista, seu casamento com uma mulher de família rica e sua associação com cidadãos influentes, pôde desenvolver uma linguagem visual apreciada por príncipes, nobres e intelectuais de seu tempo. Um artista que trabalhou com assistentes e membros de sua própria família, alguns dos quais também foram pintores, com certo isolamento artístico - praticamente intocado pelas tendências artísticas em cidades como Antuérpia, Bruges, Veneza,

Roma ou Paris. Isso explicaria por que ele foi capaz de desenvolver um conjunto de imagens tão individual quanto original, e uma obra que não perdeu nada de sua eloquência após quinhentos anos. O aniversário de sua morte é comemorado com exposições nos museus Het Noordbrabants (em sua cidade natal Den Bosch, na Holanda, já encerrada) e Prado (Madri, até 11/9), em 2016. São raras oportunidades para ver um número significativo de suas obras reunidas, já que apenas 25 painéis e trípticos, e uma quantia ainda menor de desenhos, são tidos como de autoria inquestionável de Bosch nos dias de hoje, todos eles produzidos entre 1480 e sua morte, em 1516.

Acima: O último julgamento. À direita: A tentação de Santo Antônio. Fotos: Photo Rik Klein Gotink / Robert G. Erdmann para Bosch Research and Conservation Project.


O MUNDO E A RELIGIÃO Hieronymus Bosch deve ter vivido em dois mundos diferentes: o real, ao seu redor, e o universo de sua imaginação. O mundo real tinha sido criado e foi governado pelo Deus cristão. Não importa o quão ruim, violento ou ameaçador esse mundo fosse; ao ver de Bosch e seus contemporâneos, tudo o que acontecia era decidido por Deus e vigiado por anjos, santos e demônios. Era um mundo onde Deus tinha colocado a humanidade para labutar: seres humanos criados à sua imagem, cuja inteligência os diferencia dos animais; seres humanos com a responsabilidade de escolher entre o bem e o mal. Bosch - que nasceu artesão e evoluiu para ser um grande artista - cresceu nesse mundo e nele abriu seu próprio caminho. Seu talento como pintor e desenhista lhe permitiu subir a escada social e se juntar à elite da sua cidade e região. Ele observava a realidade e criava seu próprio mundo paralelo a ela: um universo onde viviam criaturas inexistentes; pessoas-árvore e árvores humanas; quimeras e monstros. Esse mundo alimentava as visões de um gênio, pois ele foi capaz, como artista, de visualizar essa realidade desenhada no papel ou pintada sobre painéis de madeira. 'S-Hertogenbosch era uma cidade comercial ascendente e um centro regional - quarta capital do ducado de Brabant. Jeroen van Aken, como era chamado originalmente, nasceu em 1450 e mais tarde mudou seu nome para refletir suas origens. Em termos artísticos, no entanto, essa cidade era um remanso. Hieronymus Bosch trabalhou lá em esplêndido isolamento, em peças nas quais combinou tradição e realidade com o mundo de sua própria imaginação. Os resultados não passaram despercebidos. Registros mostram uma série de comissões de prestígio fora de sua cidade, incluindo um grande altar - que não sobreviveu - para o altar-mor da abadia Dominicana em Bruxelas e um tríptico da tentação de santo Antônio, comprado em

Não importa o quão ruim, violento ou ameaçador esse mundo fosse; ao ver de Bosch e seus contemporâneos, tudo o que acontecia era decidido por Deus e vigiado por anjos, santos e demônios.


Era importante para Bosch conscientizar seu público da forma como eles erram pela vida, ansiando por coisas terrenas. 1505 por Filipe, o Belo, duque de Borgonha, como um presente para seu poderoso pai, Maximiliano da Áustria. INOVAÇÃO E MODERNIDADE Aprendemos na escola que a Idade Média na Europa ocidental durou do ano 500 até por volta de 1500. Então veio a Renascença, quando o indivíduo passou a ser figura central na visão de mundo ocidental, diminuindo a importância de Deus e abrindo caminho para a nossa cultura individualista moderna. É uma análise simplista, difícil de se sustentar intelectualmente. E, no entanto, quando olhamos para a obra de Hieronymus Bosch, somos constantemente lembrados desse mesmo modelo simplista do desenvolvimento histórico. Bosch era ativo no período em torno de 1500 - os anos da história que os livros dizem ter formado a transição entre a velha era e a nova. E foi nesses mesmos anos que Bosch produziu um número de pinturas altamente incomuns, tanto naquela época

quanto agora. "O Viajante" e "O Carro de Feno" são dois bons exemplos disso. Cada tríptico tem uma figura semelhante, no verso de suas abas fechadas, de um homem idoso transportando todos os seus bens em uma mochila de vime. Ele não é o santo que se esperaria encontrar no exterior de um tríptico nesse período. Homens como este eram, sem dúvida, uma visão comum nos arredores de 'sHertogenbosch nos anos 1500. É um viajante, traçando seu caminho pelo mundo. Desgastado por essa vida, ele é constantemente tentado a fazer as escolhas erradas - basta ver as ações dos que o rodeiam. Isso é o que Bosch escolheu mostrar ao espectador, o que era um tanto incomum e inovador. Bosch faz da arte algo pessoal, em diferentes níveis, e isto faz dele um moderno. Ele foi um dos primeiros artistas nos Países Baixos a assinar suas pinturas: "Bosch Jheronimus". Isso mostra claramente como era importante para ele que as obras que deixaria para trás pudessem ter sua autoria identificada. "O Carro de Feno" é tão famosa hoje em dia

Acima: Painel frontal de O Peregrino. À direita: Detalhe do tríptico A tentação de Santo Antônio Abad.



que é difícil imaginar que, quando ele a criou, não existia nenhuma outra pintura com esse tema ou outro remotamente semelhante. Bosch criou nesse momento uma imagem que é totalmente contemporânea - arte hipermoderna de cerca de 1510-1515. Apesar de seu conteúdo moralizante, "O Carro de Feno" e "O Viajante" não são pinturas dogmáticas; elas seguram um espelho aos seus observadores, para ensiná-los a se enxergar melhor. Era importante para Bosch conscientizar seu público da forma como eles erram pela vida, ansiando por coisas terrenas. Ele lhes oferecia uma maneira pessoal, exploratória de perceber que, se quisessem evitar o inferno e a condenação, tinham que se voltar para o bem. Isso é também uma mudança importante na ênfase da abordagem do que significa ser um bom cristão. Nesse aspecto, a obra de Bosch está intimamente relacionada à mensagem do "Devotio Moderna". De acordo com esse movimento espiritual, que era particularmente forte nos Países Baixos naquela época, seres humanos são

responsáveis por suas ações: eles têm de refletir e fazer escolhas e serão responsabilizados por elas pessoalmente. "Devoção Moderna" também acreditava que todos devem ler a Bíblia em sua própria língua, para que possam realmente compreender a mensagem cristã. Bosch pintava de tal forma que suas obras também têm que ser "lidas". Somos convidados a olhar, refletir, relacionar a imagem a nós mesmos e levar ao nosso coração sua lição moral. Juntamente com os exemplos positivos então familiares, Bosch introduziu "exempla contraria" aqueles a serem evitados. Nesses casos, virar-se para o bem era uma questão de se afastar do mal: uma longa e árdua estrada, e uma peregrinação que dura toda a vida. Jos Koldeweij é professor de história da arte medieval e presidente do Bosch Research and Conservation Project. Matthijs Ilsink é doutor em história da arte e coordenador do Bosch Research and Conservation Project.

Acima: Visões do Além. Foto: Photo Rik Klein Gotink / Robert G. Erdmann - Bosch Research and Conservation Project.



FRANCISCO BRENNAND SENHOR DA VÁRZEA, DA ARGILA E DO FOGO A VIDA E OBRA DO EXCÊNTRICO E QUERIDO CERAMISTA GANHA RETROSPECTIVA EM PORTO ALEGRE


Foto: Helder Ferrer

POR EMANOEL ARAÚJO O título dessa exposição nos espaços do Santander Cultural, sobre a obra desse monumental escultor pernambucano até parece um título nobiliárquico. Francisco Coimbra Brennand me parece ser o único artista que eu conheço que nasceu,

cresceu e se fez homem nessas terras verdejantes da Várzea do Recife em Pernambuco, e nessas terras permanece inabalável, envolto no grande templo de sua criação; sua família ali se estabeleceu desde sempre fabricando cerâmica e porcelana, daí veio naturalmente o ofício e, em seguida, a arte que o tornou


célebre internacionalmente. E no arcabouço da antiga fábrica de seu pai, transformado por ele em um espaço com características extraordinárias, uma grande instalação que cobre os muros, as colunas e os espaços onde seus grandes murais, entre jardins, lagos e paredes escritas com pensamentos de sua filosofia de vida. No interior do grande galpão onde são construídas e queimadas suas obras, no famoso forno de nome Apolo, de alta temperatura, transformando a argila em matéria tão rígida quanto o bronze e ainda criando uma camada vidrada que reveste a obra como pele de sutis tons de

ocres, vermelhos e brancos opacos. Também em seu atelier propriamente dito, fechado como num casulo, acontece a pintura, os desenhos, os projetos de obras monumentais e como não poderia deixar de ser, seu famoso diário ganha mais vida dia a dia. Transpor todo esse universo mágico da obra e do ateliê de Brennand para o Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, é o principal desafio dessa exposição, pois essa obra escultórica se amalgama de tal forma e intrinsecamente - como a "Porta do Inferno" criada por Auguste Rodin, inspirada na obra de Dante Alighieri - que

Acima: Ovo da Serpente, 1975, foto Fred Jordão. À direita: Árvore da vida, 1980, foto João Liberato.


propõe um enfrentamento, pelo muito de extraordinário que representa todo esse mistério criador, obra e público agindo e interagindo como em um bailado que propicia a criação de novos sentidos. Por isso a exposição tenta induzir o espectador a uma viagem dionisíaca por aquela atmosfera, para que então possa entender o mundo interior desse artista e sua obra, na esperança de que essa concepção museográfica seja eficiente para transmitir a quem visite a exposição, mais do que a criatividade do artista escultor, sentir nesse extraordinário espaço a mesma intensidade e energia com que ele impregna sua atmosfera de vida, de trabalho e que tão generosamente abre à visitação pública no Recife. Mostrar a escultura de Brennand em outro espaço que não seja o seu próprio, de Pernambuco, será sempre um desafio, diante do complexo diálogo criado por ele entre a escultura e o espaço em que ela se desenvolve, ora com a arquitetura, incluindo os antigos galpões da antiga fábrica de cerâmica, e ora se incorporando às ruínas deixadas pela ação dos anos e do passado da fábrica onde nasceu esse grande cenário. Um diálogo que prossegue ainda, ora com os jardins que as emolduram, ora na repetição das obras como em um coro grego, ora na interação com os fragmentos de um pensamento erudito escrito nos muros, uma forma de metáfora tão própria de alguém como ele, que convive com a erudição dos grandes pensadores clássicos da humanidade. Ele planta essas esculturas nos mais diferentes espaços do magnífico cenário que espontaneamente se apresenta a quem chega ao lugar, prenhe de uma atmosfera profana e ao mesmo tempo quase sagrada. Procuro pensar nessa obra de Brennand, construída com profundas raízes arcaicas e ancestrais, para tentar, como em um passe de mágica, fazê-Ia se deslocar para um espaço museográfico com o mesmo ambiente ou

Como se pode imergir nesse emaranhado de soluções formais e teóricas de um mundo povoado de insólitos seres?


com a mesma magia transcendental que habita seus espaços da Várzea na cidade do Recife, cercada pela florestal tropical, possivelmente um resquício magnífico da Mata Atlântica. Como mostrar então a obra de Francisco Brennand sem as acumulações das formas que se entrelaçam, das cores ferrosas, cujo irisado nasce no forno que as queima a temperaturas inimagináveis? Como se pode imergir nesse emaranhado de soluções formais e teóricas de um mundo povoado de insólitos seres? Como extasiar o público visitante da exposição com a mesma tensão, provocada pelas superposições de cabeças e corpos marcados pelo frenesi das paixões e pela sensualidade que aflora como carne viva, dessas figuras que povoam esses espaços e muros enormes

Suas obras monumentais são a prova inconteste da capacidade desse grande criador de unir talento artístico, formação intelectual e um profundo conhecimento técnico do manuseio do barro,

Acima: Partênope e Palas Atenea, 1987, fotos Helder Ferrer. À direita: foto Orlando Azevedo.


que compõem esse ambiente cenográfico do ateliê de Brennand, no clima verdejante da Várzea no Recife? Armada dentro e fora de espaços abertos ou fechados, a obra escultórica de Francisco Brennand sugere permanência, nesse diálogo profundo e transcendente da alma humana com a natureza tropical e luminosa da paisagem que envolve a sua criação. A construção desse ambiente, soberbamente idealizado, partindo das grandes paredes dos velhos galpões, abriga figuras, bichos, monstros arcaicos, deuses clássicos. São os temas do artista. Traduzir essas formas na matéria da cerâmica é o maior desafio dele, enfrentando uma técnica sofisticada e altamente precisa e paciente. Francisco Brennand é um artista de prestígio

nacional e internacional consolidado no panorama das artes brasileiras. Entretanto, os desafios são uma constante em seu percurso de escultor. Suas obras monumentais são a prova inconteste da capacidade desse grande criador de unir talento artístico, formação intelectual e um profundo conhecimento técnico do manuseio do barro, sua matéria-prima, com a qual ele constrói e dá vida a esses seres da sua prodigiosa imaginação, transformados em esculturas sólidas e perenes. Muito se tem escrito sobre sua personalidade e sua obra, e é uma constante nesses textos analíticos e provocativos a referência a uma marca obsessiva pela sexualidade no seu temperamento, expressa em certos símbolos que facilmente seriam 29


reconhecidos como eróticos. Não suponho que suas obras não tenham uma dose bastante evidente de sensualidade, mas longe estão de fazer dele um obsessivo e um transgressor. Claro que Brennand é um homem sedutor e um artista provocador. Sua criação age independentemente do seu intelecto na abordagem de certos temas que são mesmo densos dessas formas de representação, mas não admitem que a elas se possa colar o rótulo de coisa vulgar ou pornográfica.

Brennand é, sobretudo, um homem esotérico, como um místico que transforma todas as suas expressões criativas em símbolos não desprovidos de sentidos de sensualidade e erotismo, mas também próximos de alcançar uma forma de religiosidade.

Sem dúvida, há, sim, uma organicidade que se apresenta explícita, moldada pela matéria orgânica do barro, em sua flexível ação de ocupar espaços, nessa intrincada linguagem da escultura. Entretanto, devese considerar que a escultura se fundamenta em princípios plásticos que lhe são essenciais: sua linguagem, volume, espacialidade, espaços negativos e positivos, certa busca formal no espaço, de frontalidade, de desequilíbrio ou de construção verticalizada e totêmica.

Quero dizer que a obra escultórica de Francisco Brennand pode ser muito mais instigante do que seus intérpretes têm salientado até agora. É preciso chamar a atenção para um reducionismo sintético, quase abstrato, no empilhar ou acumular formas geométricas primárias, assim como no estancamento rítmico, na confirmação de volume, plano ou área espacial em negativo, em formas fechadas ou abertas. Todos esses são procedimentos da arte paleoafricana que

Acima: Serpente, 2015. Á direita: Adão e Eva, 2015. Fotos Fred Jordão.


vêm sutilmente se acrescentar à sedução de sua obra. Que Brennand é mesmo um grande sedutor, não tenha dúvidas. Mas ele é também, e, sobretudo, um homem esotérico, como um místico que transforma todas as suas expressões criativas, do desenho à pintura da cerâmica e à escultura, em símbolos que não estão desprovidos de sentidos de sensualidade e erotismo, mas estão também muito mais próximos de alcançar uma forma de religiosidade que expressa um sentimento de certa perplexidade diante desses temas. Por todas essas razões, esta exposição foi organizada pensando em algumas vertentes que, de certa maneira, pudessem passar em revista as muitas metáforas criadas pelo artista para compor o seu imenso repertório de um grande criador: o teatro das representações mitológicas; o corpo em transmutação interior; os frutos da terra e as vítimas históricas. Francisco Brennand, como todo artista, é um grande solitário. Na busca de transformar a história em elementos para criar livremente seu repertório artístico, ele poderia ser um renascentista, no sentido de descobrir a nova representação do homem. Ele poderia ser um grego entre os deuses do Olimpo, traduzindo seus desígnios e suas vontades. Ele poderia ser também um africano cujos deuses são homens guerreiros, caçadores, mensageiros e as mulheres são também deusas das águas doces e salgadas da maternidade, das intempéries, da sensualidade e, porque não também, da sexualidade. Ele poderia ser um homem da terra nordestina, como de fato o é, identificado com suas raízes brasileiras.

Francisco Brennand: Senhor da Várzea, da Argila e do Fogo • Santander Cultural • Porto Alegre • 7/6 a 4/9

Emanoel Araújo é artista plástico e curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo.

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“Na minha mais recente exposição, "Things that fit in my hand", no MAM Rio de Janeiro, pude experienciar uma vivência do espaço até então inédita para mim. A montagem foi realizada em cima de uma grande mesa e me permitiu estabelecer relações entre materiais, bases, cores, alturas e medidas de uma forma diferente, em que, em certos momentos, questionamentos como o que seria uma base tomaram dias de reflexão. A instalação foi feita com a produção de três anos de trabalho, possibilitando-me ter uma experiência meditativa sobre o tempo, buscando captar e entender detalhes em uma relação de 1 x 1 do meu corpo com a escultura.”

A instalação foi feita com a produção de três anos de trabalho, possibilitando-me ter uma experiência meditativa sobre o tempo.

Thinsg that fit in my hand • MAM Rio • 21/5 a 3/7 A artista também está em cartaz em Monotipias -Phoenix • Mul.ti.plo Espaço Arte • RJ • 24/5 a 16/7

Vibrato, no ateliê da artista em 2015, foto Pat Kilgore.

32 REFLEXO


Foto: Christina Ruffato



“As pinturas da "Série Vermelha" apareceram através da convivência com um trabalho feito com linhas que comecei a fazer dentro do meu ateliê, onde ocupava todo o espaço com elas. Com o tempo, essas linhas passaram a ser entrelaçadas com papel higiênico. As pinturas vermelhas foram desenhadas a partir da observação das relações que essas linhas faziam dentro do espaço. O vermelho foi escolhido não como uma cor, mas como um veículo de pulsação. Quando mostrei esse trabalho no CCBB Rio de Janeiro, em 2002, pude realizar na rotatória do prédio uma grande instalação que se chamava "A Sala dos Fios", que foi a conclusão desse olhar para o espaço.”

O vermelho foi escolhido não como uma cor, mas como um veículo de pulsação.

Ateliê da artista, Rio de Janeiro, 2002, foto Vicente de Mello.

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As cores cítricas e florescentes são propositais, para que a cor venha para o espaço fora da tela, assim é possível ter uma relação a mais da escala do corpo com a pintura.

“As pinturas que fizeram parte da exposição na Galeria Simões de Assis são trabalhos que dialogam diretamente com a forma como eu lido com as bases das minhas esculturas. As cores estão no plano bidimensional da mesma forma que as bases das esculturas estão empilhadas e relacionadas entre si. As esculturas juntas formam um todo, assim como as pinturas, todas podem ser uma só. As áreas de cor são dadas através do gesto, mas também são unidas pela geometria; as cores cítricas e florescentes são propositais, para que a cor venha para o espaço fora da tela, assim é possível ter uma relação a mais da escala do corpo com a pintura.”

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Dendê, 2016. foto Pat Kilgore.



“A série de pinturas Alindina, Alecrim e Doralina se formaram através das aguadas, como se fossem grandes aquarelas em escala pública. Vieram através da ocupação de um espaço fluido no campo bidimensional, onde a construção se dá totalmente interligada nas relações que a natureza possui ao se conectar com elementos tão diversos, como se fosse uma grande floresta onde tudo que está dentro se conecta e vive daquele habitat. A escala dessas pinturas e os elementos aguados 38


…uma construção que vem através da água e das surpresas que ela vai revelar no momento em que secar.

falam disto, uma construção que vem através da água e das surpresas que ela vai revelar no momento em que secar. Essas pinturas me mostraram o quanto elas entram no espaço arquitetônico não em uma escala de pintura, mas em uma escala de mural. “

Exposição Alindina, Alecrim e Doralina, Galeria Laura Marsiaj, 2013, foto Mario Grisolli


LIVROS lançamentos Aurora Lêdo Ivo, ilustrado por Gonçalo Ivo Conracapa • 184 p. • R$ 57,50 O poeta e imortal Lêdo Ivo faleceu em 2012, tendo deixado com seu filho, o pintor Gonçalo Ivo, um manuscrito com 31 poemas para que fossem ilustrados com pinturas suas. Este livro foi publicado postumamente, primeiro na Espanha e agora no Brasil. A coletânea reforça o poder das palavras de Lêdo Ivo e sua posição como um dos grandes poetas da língua portuguesa, em um lirismo alegre, que transforma os fatos mais banais em temas filosóficos. O pareamento com as cores fortes e bem pensadas de Gonçalo Ivo dá o equilíbrio e o respiro para que cada poema seja aproveitado em toda sua potência. Uma leitura que leva a lamentar a morte súbita de Lêdo Ivo e enxergar melhor as pinturas de seu filho.

Arte-veículo: intervenções na mídia de massa brasileira Ana Maria Maia Editora Aplicação • 332 p. • disponível no Issuu Neste estudo, laureado com a Bolsa de Estímulo à Produção da Funarte, a crítica e curadora Ana Maria Maia cataloga e analisa as intervenções de artistas plásticos nos veículos de mídia do Brasil. O livro tenta estabelecer casos paradigmáticos - como as colunas de Flávio de Carvalho no Diário de São Paulo ou as Inserções em Jornais de Cildo Meireles - e articular suas leituras dentro de contextos que extrapolam os limites entre arte, imprensa e sociedade. A publicação contém um levantamento documental e cinco ensaios inéditos, baseados em recortes de tempo sugeridos pelas intervenções e suas estratégias em comum 40



Desenho da Utopia Jayme Vargas e Ruy Teixeira Editora Olhares • 180 p. • R$140,00 O livro revisita o móvel moderno brasileiro, situando-o no contexto em que algumas de suas peças icônicas habitam hoje, em coleções públicas e privadas. Cada móvel de Tenreiro, Zsalzupin, Sergio Rodrigues e outros é fotografado em seu ambiente, ao lado das obras de arte com as quais convive e dialoga. Estão presentes como cenário criações de Di Cavalcanti, Iberê Camargo, Tunga e Cildo Meireles, no total de 130 imagens, acompanhadas de textos dos autores.

Indio da Costa: Ar como arquitetura Ana Borelli (org.) Tix Edições • 408 p. • R$150,00 A obra reúne alguns dos principais projetos dos últimos dez anos, entre os mais de 50 de carreira do arquiteto, com descrições detalhadas, croquis e fotografias, além de ensaios assinados por Lauro Cavalcanti e Augusto Ivan Pinheiro de Freitas. O livro inclui projetos não realizados, como o da Marina da Glória, escolhido em um concurso internacional e não executado devido à mudanças na concessão. Com fotos de Renan Cepeda e Mario Grisolli.

Vestes, Vestígios, Rastros do Tempo Adriana Fontes Editora Philae • 100 p. • R$70,90 A Instalação 'Vestes Vestígios Rastros do Tempo', que gerou este livro, foi um site specific desenvolvido a partir de estímulos sensoriais e poéticos do Palácio do Catete, com curadoria de Isabel Portella. Ao longo de 12 meses, Adriana capturou imagens e sons do museu numa "conversa" imaginária com o espaço. A pesquisa transformou-se em dois vídeos projetados em tecidos fluidos que pendiam do teto. O livro reúne uma série de fotografias feitas para essa instalação. 42



RESENHAS exposições

Oswaldo Vigas: Antológica 1943-2013 MAC USP • São Paulo • 2/4 a 3/7 POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA "Arte é liberdade. Não concebo vida sem arte". Oswaldo Vigas A exposição "Oswaldo Vigas: Antológica 1943-2013" - com curadoria de Bélgica Rodríguez, organizada pela Fundação Oswaldo Vigas, já esteve no Museu de Arte Contemporânea de Lima e depois com itinerância no Museu Nacional de Belas Artes do Chile, no Museu de Arte Moderna de Bogotá e, agora, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo -, é integrada por 70 pinturas e cinco esculturas do artista. Ao lado de Fernando de Szyszlo, Oswaldo Guayasamín, Wifredo Lam, Roberto Matta e Rufino Tamayo, o artista venezuelano Oswaldo Vigas (1923-2014) é um dos pioneiros da arte moderna latinoamericana. Formado em medicina pela Universidade Central da Venezuela, sem nunca exercer a profissão, Vigas tem uma vasta produção artística realizada entre França e Venezuela. São poemas, pinturas (incluem-se aqui óleos e murais), esculturas, desenhos, gravuras, cerâmicas e tapeçarias. Nesses trabalhos, as tradições indígenas venezuelanas se aliam às vanguardas europeias, acres44

cidas por figuras de deusas-mães précolombianas e pela inspiração na escultura africana e na pintura dos mestres espanhóis do século 17. Transitou entre a figuração e a abstração com bastante ousadia e autonomia, passando pelo surrealismo, cubismo, construtivismo e por aproximações com o CoBrA, com o expressionismo abstrato e o neoexpressionismo. A liberdade para a criação era sua primeira proposição. Aos 20 anos de idade, criou a bruxa, arquétipo feminino de fertilidade que surge constantemente em suas produções. Nos anos 1950, viajou para a França e conheceu Pablo Picasso, Fernand Léger e Max Ernst. Em 1964, retornou à Venezuela. Dizia que não queria se sentir para sempre como um "pintor estrangeiro". Nesse sentido, adotou um vocabulário paralelo de sinais e símbolos que se referem com frequência às turbulências política e econômica da América Latina nos anos de 1960 e 1970. Uma década depois, seus trabalhos mostram uma iconografia pessoal com animais mitológicos, demônios, pássaros e mulheres. Nos anos 1980, depois de uma fase informal construtivista, adotou a Nova


Figuração. No final de sua vida, definiu: "minha obra não é estética, mas emoção". Fez, assim, a série chamada de "Crucificação" - para o artista, uma clara evocação da dor e do sofrimento. Falecido aos 90 anos de idade, Vigas deixou um legado capaz de retratar sete décadas do modernismo latinoAlecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais - ECA USP e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte ABCA

Antonio Maluf: Construções de uma equação Galeria Frente • São Paulo • 29/3 a 4/6 POR LIEGE GONZALEZ JUNG Em vida, o papel principal de Antonio Maluf na arte foi o de marchand, à frente da Galeria Seta, peça importante no mercado de arte a partir dos anos 1960. Isto explica sua pequena produção e valoriza ainda mais esta ampla exposição da Galeria Frente, que não seria possível sem a ajuda da família do artista e seus esforços para catalogar sua obra. Maluf iniciou seus estudos em engenharia, passando para artes visuais posteriormente. Seus anos de formação

são retratados por duas pinturas figurativas do início dos anos 1950, realizadas no ateliê de Samsor Flexor, com linhas que lembram as deste artista e pelas quais, retroativamente, é possivel entrever o futuro enveredamento pelas caminhos do formalismo geométrico. Sua intenção adolescente de tornar-se engenheiro é uma pista da atração pela matemática e ajuda a entender o encantamento com o contrutivismo e a adesão ao movimento concreto, do qual foi um dos pioneiros, tendo inclusive vencido o concurso para autoria do cartaz da primeira Bienal de São Paulo em 1951. A maior parte das pinturas presentes na exposição deixa visível esta linha de pesquisa e explora a linearidade e as formas geométricas, criando efeitos por vezes hipnóticos e de uma sedutora elegância formal. Outras, especialmente no início dos anos 1960, anos de surgimento da nova figuração, mostram tentativas de inserir elementos figurativos, sem nunca conseguir abandonar a rigidez e a regra da geometria que dominaram sua produção. Estão na exposição ainda algumas surpresas, como roupas - um blazer e um colete - e dois panneaux em veludo com estampas de sua autoria, além de uma peculiar luminária de chão. O catálogo da exposição talvez seja o mais completo livro já publicado sobre a obra de Antonio Maluf, iniciando com um relato íntimo de seu filho, que ilustra de forma carinhosa e humorada a vida deste artista silencioso. Liege Gonzalez Jung é fundadora e diretora da Dasartes desde 2008.

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VIVIAN CACCURI POR ELISA MAIA Por um período de oito horas, os participantes atravessam em absoluto silêncio ruas, avenidas, viadutos, passarelas, museus, prédios históricos, aeroportos, canteiros de obra, igrejas, montanhas, florestas e praias, em um tempo ditado pela velocidade da caminhada. Não a caminhada individual, do passante que, sem tempo, precisa chegar a algum lugar, mas uma caminhada coletiva na qual os participantes são convidados a investigar a forma como circulamos em espaços públicos e privados, deixandose afetar pelo entorno e desacelerando sua percepção da cidade. Desde 2012, a artista multimídia Vivian Caccuri vem realizando periodicamente sua "Caminhada Silenciosa", projeto 46 GARIMPO

que já passou por diferentes cidades dentro e fora do Brasil. Os itinerários são sempre únicos, pois se adaptam à geografia e às características específicas de cada lugar, mas em todos se mantêm as exigências de que os participantes caminhem juntos e em silêncio, dispostos a perceber a cidade para além de seus aspectos visuais. Vivian comenta que o silêncio cria uma intimidade muitas vezes indesejada entre as pessoas - "talvez seja esse o motivo de falarmos tanto, para construir com a linguagem um muro que nos separe dos outros", conta a artista. Além do aspecto social, o silêncio abre caminho para novas formas de apreensão da cidade, que incluem uma escuta mais intensa e uma Acima: Caminhada silenciosa, 2012-2014, foto Darragh Reeve. À direita: Pagode Blue, 2014. DubRoom, 2012.


Vivian agora se dedicará à estrutura material em torno da música popular e pop, dando continuidade à sua pesquisa sobre as relações entre o som, o corpo e a coletividade.

percepção mais minuciosa de seus desenhos, seus fluxos e dos milhares de estímulos que costuram de forma caótica o tecido urbano. A experiência funciona ainda como um laboratório onde Vivian desenvolve outras ideias artísticas. Utilizando materiais que foram recolhidos nas ruas, ela cria instalações, objetos e performances sonoras. Apesar do reconhecimento que tem recebido, este será o último ano da Caminhada. Vivian agora se dedicará a outros projetos ligados às aparelhagens sonoras, a estrutura material em torno da música popular e pop, dando continuidade à sua pesquisa sobre as relações entre o som, o corpo e a coletividade. Vivian também acaba de lançar um projeto musical que atende por "Homa". Na Bienal de São Paulo deste ano, será possível conferir os novos rumos que sua pesquisa vem tomando: a partir de uma expedição a Accra, capital de Ghana, Vivian construirá um grande "soundsystem" no qual África e Brasil estarão em um diálogo interatlântico por meio da música. Elisa Maia é formada em direito e letras e mestre em literatura, cultura e contemporaneidade. Interessa-se especialmente pelas relações entre literatura e artes visuais.

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Š Adagp, Paris 2016 / cortesia do artista e kamel mennour, Paris. Foto Didier Plowy para RMN-GP


PARA A MONUMENTA 2016, ARTISTA CHINÊS OCUPA O GRAND PALAIS DE PARIS COM UMA ENORME SERPENTE POR LEONARDO IVO "O que sempre procuro é a grandeza: o que é grande é sempre belo". Essas são as palavras de Napoleão Bonaparte, imperador que marcou a história mundial por suas conquistas. "Em meus sonhos imaginava Paris a verdadeira capital da Europa. Eu a idealizava uma metrópole de dois, três, quatro milhões de habitantes, algo de fabuloso, colossal e desconhecido até hoje". As citações de Napoleão Bonaparte indicam sua vontade de criar algo que espelhasse a monumentalidade de seu poder. A construção do Grand Palais, em 1900, por ocasião da Exposição Universal, é um exemplo dessa monumentalidade, herança do pensamento de Napoleão que serve como cenário ideal para o artista franco-chinês Huang Yong Ping para sua instalação por ocasião da exposição Monumenta bem como para seus antecessores Boltanski, Kiefer, Richard Serra e Anish Kapoor. Esta é a sexta edição da Monumenta. A obra de Huang Yong Ping é eminentemente política. O artista se coloca à frente do movimento artístico chinês de 1985,

"Xiuamen Dada" onde a arte se corresponde diretamente à política e à essência da vida. Huang Yong Ping aborda igualmente temas relativos à coabitação entre diferentes grupos, dilemas religiosos e às diferentes histórias civilizatórias. A imagem resultante da intervenção de Huang Yong Ping é um gigantesco esqueleto que atravessa o espaço do Grand Palais desenhando volutas por uma extensão monumental que se coaduna com sua arquitetura. A serpente é imagem e presença recorrente na obra desse artista. Sua simbologia conhece variantes dependendo da cultura que a ilumina. Porém, há uma grande ancestralidade no seu conteúdo: exemplo de ameaça ou fecundidade, de tentação carnal ou antropopaica; essas dimensões interessam a Huang Yong Ping, que a integra em várias de suas obras. Nessa obra, a imagem da serpente escorrega entre os contêineres da empresa CMA - CGM, fundada em 1978 e principal mecenas desta exposição, que se elevam como montanhas. A serpente, DO MUNDO 49


com sua capacidade de trocar sua pele, encontra aqui um significado maior que a simples mutação, é o símbolo do poder. De fato, a serpente envolve a exposição; sua cauda e sua cabeça quase se tocam, induzindo a refletir sobre a imagem arcaica do sentido da vida e o desejo do artista em explicitar o ciclo da vida, simbolizado pela ascensão e queda do império. A imagem gigantesca do chapéu de Napoleão também nos indica a falaciosa ideia da eternidade do poder. Tudo muda. Há uma grande ironia na utilização dos contêineres que simbolizam o mundo contemporâneo, Acima: foto Leonardo Ivo. À direita: instalação Circus, 2012., na Galeria Gladstone Nova York. © Huang Yong Ping / cortesia Gladstone Gallery.

A imagem gigantesca do chapéu de Napoleão também nos indica a falaciosa ideia da eternidade do poder. Tudo muda.


suas contradições, sua ânsia por otimizar mercados e gente. Napoleão Bonaparte, em seu tempo talvez jamais pudesse pensar em épocas tão pragmáticas quanto a nossa. Em nosso mundo não há mais fronteiras, o que rege a arte é a economia de mercado. Napoleão Bonaparte, figura ambígua, igualmente sanguinário, visionário, sintetiza bem a metáfora dessa exposição. Huang Yong Ping imprime a imagem do poder, glória e alucinação da ausência de limites, do despotismo esclarecido ou não. Afinal, todas as ditaduras se parecem. Para caracterizar a exposição Monumenta de uma aparição marcante, o artista utiliza a imagem de Napoleão através do chapéu de duas pontas. Apesar de sua pequenez diante de impérios como o bizantino, o chinês ou ainda o império romano, Napoleão ilustra a figura de herói civilizador que organiza e universaliza o mundo, mas é também um déspota que precede os tiranos sanguinários do século 20 como Stalin, Hitler, Mao Tse Tung, Mussolini e muitos outros. O chapéu de Huang Yong Ping evoca a ambição, a luxúria do poder, considerada pelo artista o motor da evolução do mundo. Essa monumental obra serve como clarão que ilumina contradições e certezas. Como afirmava Napoleão Bonaparte, "os homens de gênio são meteoros destinados a queimar e iluminar seu tempo".

Monumenta 2016 • Grand Palais • Paris • 8/5 a 18/6 Leonardo Ivo é estudante em história da arte na Sorbonne, em Paris, e colaborador de mídias sociais do artista Gonçalo Ivo.

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NOTAS DO MERCADO Valores, curiosidades e tendências por Liege G. Jung LEILÕES DE MAIO EM NOVA YORK foram o assunto quase único do mercado de arte nas últimas semanas. Começando com a escultura de Hitler ajoelhado, de Maurizio Cattelan (foto), vendida por US$17,1 milhões em venda curada da Christie’s. Poucos dias depois, no leilão de arte contemporânea da mesma casa, o bilionário japonês Yusaku Maezawa gastou quase US$100 milhões em cinco lotes, incluindo o Basquiat mais caro já vendido em leilão, por US$57.3 milhões. Ainda que as estatísticas acusem retração no mercado chinês, compradores asiáticos responderam por 20% do total movimentado. Alexander Calder, um dos raros artistas a prova de crise, foi uma das presenças fortes, com 9 obras oferecidas apenas neste leilão, 8 das quais foram vendidas por uma soma de mais de US$25 milhões.

MODERNOS E IMPRESSIONISTAS apresentaram os piores resultados, chegando a ter apenas 66% dos lotes vendidos no leilão da Sotheby’s. Como estas vendas são as primeiras da semana, levantaram especulações sobre um mercado em resfriamento. No entanto, um olhar mais cuidados pode identificar um padrão: grandes nomes como Picasso e Leger tiveram obras medianas com preços questionáveis e não encontraram compradores, enquanto obras-primas com preços corretos fora disputadas - como a escultura em mármore de Rodin “A Primavera Eterna”, comprada por US$20,4 milhões, muito acima da estimativa alta.

MERCADO EM RETRAÇÃO OU EM AJUSTE? A semana de leilões em Nova York fechou com pouco mais de US$1 bilhão em negócios, resultado morno se comparado aos US$2,7 bilhões do ano passado. Não foi por falta de compradores, já que as principais vendas tiveram poucos lotes nãovendidos. Há muitas possíveis explicações: um mercado mais maduro e menos especulativo, uma oferta menor de boas obras, seja porque muitos aproveitaram o boom do mercado internacional em 2014-2015 para vender as suas ou por consequência no corte em garantias de preço mínimo, algo que as principais casas de leilão costumavam oferecer para seduzir vendedores. Mas vale ter em mente que a percepção negativa é uma questão parâmetros de comparação: US$1 bilhão em vendas em uma semana é de fato um resultado ruim? A retomada pós-recessão americana criou um pico, este momento passou, e é natural que ocorram ajustes.

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LEILÕES DE ARTE LATINO-AMERICANA tiveram resultatos pífios: o total das vendas das três principais casas de leilão foi de pouco mais de US$40 milhões. Reflexo em parte da crise no Brasil, um dos grandes players deste nicho, mas também um lembrete de quão mal inseridos no mercado internacional nossos artistas ainda estão. Esperamos que a presença crescente das galerias brasileiras em feiras internacionais mude lentamente este quadro nas próximas décadas, para alegria dos nossos colecionadores e artistas. Alguns lotes de destaque (valores incluem comissões):

CHRISTIE’S • total: US$ 19.145.750 • Vik Muniz, Diana and Endymion, da série “Pictures of Trash”, p.a 1/4 de tiragem de 6, 127x101 cm, 2007, est. US$25 -30mil, vendido por US$27.500. • Daniel Senise, “Galeria”, acrílica e linho sobre madeira, 213x213 cm, 2004. est. US$12-18mil, vendido por US$21.250. SOTHEBY’S • total: US$ 16.266.875 • Antonio Dias, “Mirage”, acrílica sobre tela, 95x95cm, 1971, est. US$100-150mil, vendido por US$298.000.

• Alfredo Volpi, Bandeirinhas em fundo azul, têmpera sobre tela, 72x36cm, c.1970, est. US$250-350mil, não vendido. • Luis Tomasello, “Atmosphère Chromoplastique n.696”, madeira e acrílico, 85x85cm, 1990, est. US$4060mil, vendido por US$50.000. PHILLIPS • total: US$4.646.750 • Roberto Burle Marx, óleo e guache sobre tela, 52x78cm, 1974, est. US$1015mil, vendido por US$12.500.

• Anna Maria Maiolino, nanquim sobre papel, da série “Outras Marcas”, 73x34 cm, 1990, est. US$30-50 mil, vendido por US$35.000.

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COLUNA DO MEIO Fotos Paulo Jabur

Quem e onde no meio da arte

Laura Burnier, Beatriz Milhazes e Analu Nabuco

Barrão, Gabriela Machado e Luiz Camillo Osório

Gabriela Machado na Mul.ti.plo Espaço Arte Rio de Janeiro Paulo Sérgio Duarte e Gabriela Machado

Maritza Caneca e Vandinha Klabin

Dedina Bernardelli e Antonio Dias

Ana Fasano e Antonio Mendesa

Demian Jacob, Bruno Carvalho Alves, Klaus Mitteldorf, Roberto Moura, Peu Mello, Rafael Uzai e Paula Rocha

Exposição Superfície Líquida na Fauna Galeria São Paulo Gustavo Lenhani e Cris Lopes

Michele Novak, Camila Guimaraes e Caru Magano_

Richard Harrison

Jorge Falletti, Ricardo Martins e Claudio Falletti

Fotos Gabriela Krieger

Ângelo Venosa e José Bechara


Fotos Paulo Jabur

Marcela Marsiaj e Laura Marsiaj

Martha Pagy e Jacqueline Plass

Abertura de nova sede do Instituto Plajap Rio de Janeiro Lica Cecato e Flávio Colker

Henriqueta Heilborn e Andrea Granja

Marcelo Jácome, Francisca Lessa Bastos e Renata Beczkowski

Fotos Lucas Malkut

Cândida Sodré, Martha Pagy e Franklin Pedrosoa

Claudia Jaguaribe e Heloisa Amaral Peixoto

Camila Soato, Valeria Donato e Lúbia Duarte Barbosa

Exposição Flávio Cerqueira na Casa Triângulo São Paulo Gina Elimelek e Tiago Santos

Deolinda Aguiar, Sergio Romagnolo e Nino Cais

Lucas Cimino e Ricardo Trevvisan

Ricardo Trevisan, Flavio Cerqueira, Bia Yunes Guarita e Rodrigo Editore


Fotos Udo Kurt e Murillo Tinoco

Gisele Valente e Marcelo Moura

Camila e Piti TomĂŠ

CIGA Circuito Integrado das Galerias de Arte Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Carlos e Gina Vergara Elimelek e Brenda Valansi

MĂĄrcia Barrozo do Amaral

Dominique Valansi, Isabel Portella e Sani Guerra

Fotos Paulo jabur

Juliana Debasse e Artur Fidalgo

Lucas Lins, Rodrigo Andrade e Alberto Saraiva

Julliana Santos, Rodrigo Andrade, Hugo Bianco e Vicente de Mello

Oi Futuro inaugura obra de Cezar Bartholomeu em sua fachada Bitty e Marc Pottier

Rodrigo Andrade, Felipe Barbosa, Alberto Saraiva, Lucas Lins e Cezar Bartholomeu

Cezar Bartholomeu e Suzana Queiroga

Daniel Feingold e Rodrigo Andrade



ALTO FALANTE

Por Berna Reale

Vestígios Indeléveis... uma aranha de covinha, gorda e branca...

Quando a revista Dasartes me ofereceu o Direito de Resposta, relutei a aceitar, pois acredito que palavras indignas proferidas diretamente a alguém, por mais que sejam contraditas, já deixaram sua ação cruel e indelével, mas, devido aos últimos acontecimentos, que se tornaram graves, é necessário deixar registrada minha indignação, mesmo porque sempre fui de ação e não de omissão. Tenho recebido agressões textuais, injúrias e difamação em redes sociais e em publicações, simplesmente por eu não fazer, não participar, não ecoar o que muitas pessoas do campo das artes fazem ou escrevem, nesse momento político que passa o Brasil; e, muitas vezes, por eu questionar e contrapor os que, agora, se organizam para reivindicar politicamente o que nunca reivindicaram como agentes participantes. Meu trabalho tem sido rebaixado e, dele, tem se dito e escrito aberrações, até mesmo, por quem, um dia, recebeu de terceiros a tarefa de escrever sobre ele, e agradeceu a oportunidade como dádiva. Outros, até mesmo, querem editar a história e, agora, se omitem, para desvincular seu nome ao desta artista que, em algum momento, já lhes foi oportuna. Entre todas as palavras pobres e de desqualificação a meu trabalho imputadas, a que mais me chamou atenção foi a menos baixa, a mais "inofensiva", mas a que, em uma cena de crime, qualificaria os criminosos. Trabalhei mais de uma década como artista, até ter meu primeiro trabalho visto fora de Belém e ele recebe, agora, a alcunha de "meteórico"; como se pode ver, os criminosos pouco sabem sobre a vítima, talvez ela tenha sido ou o alvo oportuno ou o acerto de contas tardio. Aproveito esse espaço, a mim apresentado, para registrar que o trabalho que desenvolvo não é político-partidário e ele não está a serviço de uma classe, ou de artistas, curadores, nem de museus, galerias ou sequer de mim mesma; ele é, muitas vezes, fruto daquilo que no social me incomoda, do que me aflige ou do que, se modificado, me traria paz; sobre ele, podem falar o que quiserem, ele não se legitima pela palavra do outro ou pela vontade do outro, ele está para todos e para nada, é arte e não é politica, mesmo que alguns o vejam como uma arte política. Ser coerente, não significa reproduzir o pensamento ou a ação de alguém ou de uma grande massa, ou fazer o que lhe é mais favorável, mas seguir sem desvio de princípios e fazer o que acredita, e não deixar que o particular se sobreponha ao todo ou que a ânsia por visibilidade, aplausos e muitos amigos, o desvie da retidão de conduta. A criação do meu trabalho não está em negociação, não está a leilão e jamais estará a serviço de uns em detrimento de outros, ele é feito de tudo, e não é daqui, não é dali, ou de acolá.

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Ser coerente, não significa reproduzir o pensamento ou a ação de alguém ou de uma grande massa, ou fazer o que lhe é mais favorável, mas seguir sem desvio de princípios. Os que, com ele, se importam, ou a ele se debruçam, podem denominá-lo como quiserem, podem dizer o que quiserem; ele pode ser, até mesmo, destituído ou desconstruído, ele já foi construído e está público, e não só a mim pertence mais. Já eu, como mulher, artista e perita criminal, não posso ser agredida, vilipendiada e desqualificada, nenhuma deveria ser, muito menos sem bases verdadeiras e legais. Tento agir dentro do que penso ser correto, tento resistir sobre o que me é violento e da forma como posso; tenho tido atitudes para coibir tais atos, principalmente a violência silenciosa, aquela que é, muitas vezes, mascarada pelo poder corrupto e ausente, e não vou ser objeto de violência sem denunciar, por isso, aceitei escrever este texto. Lamento que pessoas que se dizem do campo das artes, democráticas e politicamente corretas, cometam atos violentos, com quem nada lhes fez, e que, a mim, disparem sua ira, somente pelo fato de não suportarem o diferente de suas verdades ou, simplesmente, por eu não estar de qualquer lado, o que lhes faria sentir melhor. O que não se domina, perturba, amedronta e ameaça suas certezas, logo deve ser abatido. Eu não vou, aqui, elencar minhas atitudes e virtudes pessoais, pois as negaria se assim o fizesse; não estou preocupada em ser amada, somente me bastaria ser respeitada, mas isso está difícil de ser praticado por muitos hoje, e quanto a isso, pouco posso fazer, e o que posso estou fazendo. As evidências estão em custódia. Termino este Direito de Resposta com a sátira de Mark Twain (Stephen Jay Gould, “Os dentes da Galinha”, 1996, p.46) chamada "A pequena Bessie ajudaria a Providência" - a filha insistindo que um Deus benevolente não teria permitido que seu amiguinho Billy Norris contraísse tifo e que outros injustos desastres se abatessem sobre gente decente e a mãe lhe assegurando que deveria haver alguma razão para aquilo tudo. Bessie diz em sua última fala que abruptamente termina o ensaio: "- O senhor Hollister disse que os marimbondos aprisionaram as aranhas e empurraram à força para o próprio ninho delas, debaixo da terra. Viva Mamãe! E lá elas vivem e sofrem dias e dias e dias, com os pequenos marimbondos famintos mastigando suas pernas e roendo sua barriga durante todo o tempo, para fazê-los bons, religiosos e capazes de louvar a Deus por suas infinitas misericórdias. Eu acho que o senhor Hollister é simplesmente adorável, e sempre muito gentil, pois quando perguntei a ele se trataria uma aranha assim, ele respondeu que esperava ser condenado ao Berna Reale é artista plástica e inferno caso o fizesse. E... Querida Mamãe, perita criminal em Belém-PA. você desmaiou?" Foto: Pablo Saborido.

ESTE TEXTO FOI PUBLICADO PELO DIREITO DE RESPOSTA À COLABORAÇÃO DE GUY AMADO PARA A EDIÇÃO ANTERIOR DESTA SEÇÃO. OS TEXTOS AQUI PUBLICADOS NÃO REPRESENTAM A OPINIÃO DA DASARTES.

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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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