JAIDER ESBELL LOUISE BOURGEOIS MARIO CRAVO NETO NIKI DE SAINT PHALLE SHEILA HICKS LUCAS QUINTAS
Almeida Junior, O importuno, 1898.
EM ABRIL E MAIO DE 2021 A ESCOLA DASARTES APRESENTA NOVOS CURSOS DA SÉRIE 20 ARTISTAS:
20 ARTISTAS: ACADÊMICOS NACIONAIS ACADÊMICOS INTERNACIONAIS
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Capa: Foto: Filipe Berndt/Galeria Millan.
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Contracapa: Mario Cravo Neto, Clyde Morgan, 1993. © Mário Cravo Neto
MARIO CRAVO 10 NETO NIKI DE SAINT PHALLE
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Agenda
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De Arte a Z
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LOUISE BOURGEOIS
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Notas do Mercado Resenhas
SHEILA HICKS
Livros
JAIDER ESBELL
LUCAS QUINTAS
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AGEnda
Na individual que ocupa espaço no Centro Cultural Correios RJ, a artista Carla Carvalhosa deu asas à , nome da exposição. Literalmente. As asas se fazem presentes em algumas obras apresentadas, bem como na grande instalação construída com embalagens de detergente líquido reaproveitadas, o ápice da mostra, que convida o público a interagir. Sob curadoria de Márcia Costa, foram reunidas ao todo 30 telas de estilos variados – realismo, hiper-realismo, impressionismo, cubismo, abstracionismo e modernismo – e técnicas diversas, além de duas esculturas compostas, tridimensionais, 6
de papietagem em jornal e papel machê. “Ministro cursos de pintura há 30 anos. A meu ver, tenho uma performance bastante eclética, em parte, talvez, pela diversidade de artistas que venho acompanhando durante todas essas décadas. Gosto dessa liberdade de pintar e modelar o que me emociona e não encaro apenas como uma obra, mas sim como uma parte de mim que se materializa em forma de reflexão”,
CARLA CARVALHOSA: LIBERDADE • CENTRO CULTURAL CORREIOS • RIO DE JANEIRO • 3/2 A 21/3/2021
de arte
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AZ
PELO MUNDO • éa primeira retrospectiva do MET Nova York da artista americana Alice Neel (19001984) em 20 anos. Esta ambiciosa pesquisa de carreira, posiciona Neel como uma das pintoras mais radicais do século, uma defensora da justiça social cujo compromisso de longa data com os princípios humanistas inspirou sua vida, bem como sua arte, como demonstrado nas aproximadamente 100 pinturas, desenhos e aquarelas. De 22/3 a 1/8/2021.
CURIOSIDADES • A bienal de Coachella Valley conhecida como Desert X cancelou obra de Judy Chicago. A escultura de fumaça e performance deveria acontecer em abril em mais de 4.800 metros no Living Desert Zoo and Gardens. A organização de Palm Desert, que havia aprovado o trabalho, o cancelou depois que a ativista e residente local de longa data, Ann Japenga, levantou preocupações sobre os efeitos da obra de arte sobre os animais da região.
GIRO NA CENA • Sesc 24 de Maio, em São Paulo, recebe a Printa-Feira na Rede em sua 3ª edição de 19 a 21 de março em seu canal do Youtube. A feira de arte impressa apresenta produções de 15 editoras e artistas gráficos independentes, trazendo ao público artes em quadrinhos, serigrafia, impressão de zines e outros produtos com transmissões ao vivo diretamente dos estúdios dos artistas, além de bate-papos sobre o fazer gráfico. 8
LEILÃO • No início de sua carreira, Yayoi Kusama deu a seu médico 11 obras de arte para atendimento médico gratuito. Agora, elas podem render US$ 14 milhões em leilão. As três pinturas e oito obras em papel chegarão ao leilão de Bonhams em maio. Kusama procurou o médico pela primeira vez em 1960, quando ele a consultou gratuitamente. Como forma de agradecimento, a artista presenteou-o com pinturas e desenhos. Eles serão exibidos no Bonhams Hong Kong de 7 a 22 de abril e novamente em Nova York de 30 de abril a 12 de maio de 2021.
VISTO POR AÍ
NOVO ESPAÇO • Localizado na Praça Benedito Calixto, ponto de referência intelectual, e cultural, a casa se identifica como um bastião da inclusividade, onde pessoas de todas as cores, idades, gêneros e inclinações sexuais são benvindas para aproveitar o que a vida tem de melhor, na comida, na música e na arte. Durante o dia, o primeiro andar é dedicado a exposições de arte com curadoria da Dasartes. Praça Benedito Calixto, 103, Pinheiros, São Paulo.
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• DISSE A ESPECIALISTA de mercado de arte global, Clare McAndrew, ao divulgar o relatório de mercado global de arte que revela queda de 22% nas vendas de 2020 mas com alcance de US$ 50,1 bilhões em belas-artes e antiguidades. 9
PANorama The Eternal Now, Salvador, 1989 Acervo Instituto Mario Cravo Neto
MARIO
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cravo neto
FOTÓGRAFO, ESCULTOR, DESENHISTA E CINEASTA, MARIO CRAVO NETO (1947-2009) CRIOU IMAGENS VIBRANTES, NAS QUAIS INVESTIGOU TEMAS COMO A RELIGIOSIDADE, A NATUREZA, O GESTO E O SAGRADO. SUA OBRA É EXIBIDA NA MOSTRA ESPÍRITOS SEM NOME, EM BREVE, NO IMS PAULISTA, E INCLUI AS PRINCIPAIS SÉRIES PRODUZIDAS ENTRE AS DÉCADAS DE 1960 E 1990
Em meados dos anos 1990, Carybé me dizia, na casa dele de Brotas, Salvador: “Eu registro o candomblé porque isso vai acabar. Na África, mesmo, quase não tem nada, mandaram agora o filho do Mario Cravo Júnior para registrar, mas não há quase nada”. As imagens que Mario Cravo Neto produziu durante a carreira, de certa maneira, servem como resposta a essa situação. O fotógrafo se empenhou em mostrar diversas maneiras de se recriar uma África mítica, fonte das riquezas e das curiosidades ocidentais, da sexualidade, dos orixás, dos ritos de matança, de sagração pelo sangue e pela celebração. Tais imagens foram estimuladas por nossa herança afro-brasileira. Filho de Mario Cravo Júnior, escultor principal da geração baiana dos anos 1950, Cravo Neto teve um importante núcleo modernista para se inspirar e superar. A Bahia era recriada, desde a onda regionalista que começou na década de 1930. Portanto, uma tarefa árdua aguardava Mario Cravo Neto, que persistiu em criar originalidade na busca 12
Luciana, 1994.
POR MARCELO CAMPOS
Laroyé, Salvador, década de 1990. Acervo Instituto Mario Cravo Neto/Instituto Moreira Salles.
por uma brasilidade baiana. Ele mesmo dizia: “considero-me mais baiano do que brasileiro”. É difícil superar uma geração que inventou o Brasil e a Bahia. É difícil fazer ilações sobre a religiosidade sem cair nas mesmices, na fábula das três raças, no primitivismo colonialista, no folclore estéril. Hal Foster explica que, durante as primeiras décadas do século 1920, “o corpo humano e a máquina industrial eram vistos como apartados entre si”. A tecnologia era uma espécie de “suplemento demoníaco”. Figuras do primitivismo e a máquina, então, tornaram-se os dois principais fetiches modernistas. Mario Cravo Neto usava a máquina para fotografar o corpo e suas extensões naturais e transcendentes. Assim, criou certa comunhão entre a frieza cientificista da técnica, mostrando-nos os enigmas do sagrado e do corpóreo. Evidenciava certa animalidade em determinadas torções do corpo. Dorsos de cabras se assemelham aos ombros humanos. Essa busca aparece eminentemente nos retratos em preto-e-branco. Ali, o fotógrafo desenhou toda a sua originalidade. Com seu empenho no contraste, o fotógrafo afirmava: “gosto atualmente dos tons e da densidade baixa da foto escura mais do que da normal. Minhas cópias em 14
Salvador, década de 1970. Acervo Instituto Mario Cravo Neto/Instituto Moreira Salles.
preto-e-branco são sempre mais escuras”. , fotografia de 1994, mostra o quanto Cravo Neto deixava os retratos no limite da luz. A linha contorna o rosto de Luciana, como a , de Lygia Clark. Assim, o fotógrafo demonstra o interesse em buscar imagens em situações as mais adversas. Este olhar fica evidente diante dos ritos que ele fotografou. Observando os rituais do candomblé, Cravo Neto também fez imagens diretas dos terreiros. Mas, no retrato, traz homens e bestiários para o estúdio. Salpicava os corpos dos modelos com pó branco, fazendo alusão a pinturas sagradas, ritualísticas executadas nos corpos dos iniciados no candomblé, aproximando-se do Brasil de Debret e Rugendas. Porém, em Cravo Neto, tais marcas eram feitas com talco, absolutamente ficcionais. Com essas fotos de estúdio, o fotógrafo baiano se aproximou da poética de Mapplethorpe, fotografava os negros e suas valorizações musculares, eróticas e religiosas, assim como fez também Pierre Verger. Colocavaos como alegorias, aceitando a artificialidade das poses combinadas, de elementos cênicos planejados. Em , vemos a fotografia em preto-e-branco recortar a parte superior do cabelo da menina, dividido em tranças. As tranças da imagem 15
nos revelam caminhos, mapas, lugares a seguir. A África trouxera, para o século 20 e, no caso brasileiro, principalmente para a Bahia, uma fonte inesgotável de referências culturais e imagéticas. Nina Rodrigues, médico baiano e um dos primeiros a escrever sobre os negros no Brasil, antes de Picasso conceber , destacava, em 1904, a “capacidade artística” dos negros para a escultura. Os corpos de Cravo Neto adquirem valores escultóricos. Enquanto Pierre Verger mergulhara no se fazendo olhar etnográfico mensageiro entre mundos, Cravo Neto aceitava e assumia a farsa, aproveitava as frestas, o olhar de ladrão da imagem. Os rituais de candomblé foram assuntos de diversos fotógrafos. José Medeiros, em 1951, tem suas fotos publicadas na revista , em reportagem intitulada “As noivas dos deuses sanguinários”. Poucos meses antes disso, publicou, na França, “Os possuídos da Bahia”, em que o cineasta Henri George Clouzot escreveu um texto pejorativo sobre os rituais de sangue. Tais imagens escancaravam com maestria momentos secretos, causando polêmica aos que tentavam preservar a proibição da fotografia no candomblé. Mario Cravo Neto tratava, em suas imagens, de outra noção sobre o mesmo uso do sangue no candomblé, como vemos na série . Segundo Walter Benjamin, apesar de toda a perícia do fotógrafo, o observador “sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem”. Mario Cravo Neto manipulava o acaso. Interrompia o chamuscado da imagem encenando processos rituais em falsos cenários. Na série , empenhou-se em colocar no estúdio imagens em que aves e cágados 16
África, 1992.
Asphalt Air and Hair, 2017, ARoS Triennial THE GARDEN, Dänemark © Katharina Grosse und VG Bild-Kunst, Bonn, 2019. Foto: Nic Tenwiggenhorn.
Eterno agora, 1988. Série Sacrificio Odé.
aparecem com cabeças seccionadas pelo ângulo fotográfico, mas ainda vivos, com o corpo mantendo sua integridade. Ativa-se o sentido liminar da imagem, momentos antes do sacrifício. Benjamin afirmava que o modelo posando durante horas crescia dentro da imagem fotográfica, diferente da fotografia instantânea. Em uma das , o fotografias da série corpo da criança se situa entre o corpo do adulto e o corpo de uma pata branca, bicho predileto de Iemanjá. Genialmente, o fotógrafo posiciona o olho do bicho bem próximo ao olho da menina, como se os dois corpos se unissem, aguardando a metamorfose. Em , Cravo Neto empreendeu uma série de fotografias, onde os terreiros são clicados em diferentes situações, as pernas de um adepto são cobertas por talos de dendezeiro desfiados, chamados de . Na publicação das fotos, aproximam-se as tonalidades daquele verde novo da palmeira às cores da pena de pavão, produzindo uma espécie de díptico. Aqui, aceita-se a beleza, congregando o observadoretnográfico ao fotógrafo-pintor. Em 19
outras fotografias dessa série, por entre as frestas, vemos uma cena ao centro, onde sangue e os corpos de uma cabra ou de um galo decapitados iluminam a imagem, mostrando que Cravo Neto não fazia parte dos autorizados a se aproximar da oferenda. Tal qual nas estratégias de Edgar Degas nas pinturas sobre bailarinas, o olhar se faz voyeurístico, furtivo. Cravo Neto aceitava empecilhos visuais, deixava o primeiro plano da imagem embaçado, mostrava que o fotógrafo estava por trás das pessoas, como um estrangeiro, um intruso. Mas mirava o ocorrido. Como acontecera às fotografias de Atget, as imagens ganhavam a atmosfera de um crime. Philippe Dubois afirma que, para fazer um retrato, é preciso iluminar o sujeito, mas “é necessário que o mesmo irradie, que a luz emane dele para atingir e queimar essa película sensível”. A busca de Mario Cravo Neto pela luz fotográfica percorreu este limiar, no qual o ofício do fotógrafo assume a ficção diante da luz que emana dos sujeitos e dos rituais: exageros nas torções do corpo, negritude em penteados propositadamente desgrenhados, imagens chocantes de bichos decepados e sangue escorrendo pelo chão dos terreiros. Ali, Cravo Neto vai em busca do “roubo da alma”, eterno temor do primitivo diante da imagem. Faz da fotografia o que Dubois chamou de “verdadeiro processo de ‘fantasmização’ dos corpos”. A fotografia lida com um “objeto fantasma por excelência”, como é o exemplo do Santo Sudário, a primeira fotografia de crime. Diante do Sudário, quase nada se vê. A arte de Mario Cravo Neto é a tentativa de não sucumbir a essa decepção do “nada se vê”, criando 20
Acima: Série Tigre do Dahomey, a serpente de Whydah, 1993 a 2003. À esquerda: Baba Egum. Série Territórios em transe, década de 1990. Fotos: Acervo IMCN.
Deus de cabeça, 1988. Acervo Instituto Mario Cravo Neto.
visibilidade para o invisível dos rituais, mostrando que os fantasmas jamais posam para fotografias, só nos restando a ficção, a imaginação, o estúdio e, sobretudo, a crença. Aqui, depois de mais de dez anos, aceitando o convite para escrever sobre Mario Cravo Neto, saio da minha letargia diante da citada afirmação desencantada do argentino-baiano que iniciou esse texto e respondo carinhosamente a Carybé: o candomblé ainda resiste, reunindo milhares de adeptos em cerimônias por todo o Brasil e em outros países. O cotidiano das casas continua o mesmo, continua errático, emulando e escapando de regras e modelos: banhos de erva com água gelada, rezas, cânticos varando as , , à madrugadas, matanças, noite. E as roupas e a dança e a graça e as joias para “ficar odara”. Restando dúvidas, consultemos os momentos de êxtase e comunhão nas fotografias do menino Cravo Neto, que você viu nascer. Todas as declarações de Mario Cravo Neto, no texto, foram retiradas do livro , de Joaquim Paiva, a quem agradeço muitíssimo por me mostrar sua coleção, com 27 fotografias de Cravo Neto, e por gerar informações preciosas para minhas reflexões.
Marcelo Campos é crítico de arte, curador e professor adjunto do Departamento de Teoria e História da arte do instituto de artes da UERJ.
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The Eternal Now, Salvador, 1990 Acervo Instituto Mario Cravo Neto .
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.” Luiz Braga
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.” João Castilho
MARIO CRAVO NETO: ESPÍRITOS SEM NOME • IMS PAULISTA • SÃO PAULO • ABERTURA EM BREVE
DEStaque
NIKI
,
de saint phalle
Falls, Pratfalls and Sleights of Hand, 1993.
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POR DRIKA DE OLIVEIRA
On Fire at 80. © Judy Chicago
De março a setembro de 2021, o Museum of Modern Art (MoMA) apresenta a primeira retrospectiva da obra de Niki de Saint Phalle (1930-2002) em Nova York. Sob a curadoria de Ruba Katrib, com assistência de Josephine Graf, reúne mais de 200 obras da trajetória multifacetada da artista, entre desenhos, gravuras, filmes e materiais de arquivo pouco conhecidos. A obra de Saint Phalle é marcada por uma veia experimental e ficou bastante conhecida pelas esculturas monumentais e multicoloridas, várias delas situadas em espaços públicos. E é através desses mesmos espaços que tantas obras de Niki permanecem vivas, expostas ao redor do mundo inteiro. Nascida na Paris dos anos 1930, Niki foi criada em uma família aristocrata e, ainda muito jovem, foi modelo de revistas famosas, como a ea . Ela casou aos 28
La Main Gauche. Pág. Anterior: Tarot Garden. 1991. © 2020 NIKI CHARITABLE ART FOUNDATION. Photo: Ed Kessler.
O MOMA PS1 APRESENTA A PRIMEIRA EXPOSIÇÃO EM MUSEU DE NOVA YORK DA OBRA DA VISIONÁRIA ARTISTA FEMINISTA NIKI DE SAINT ABORDAGEM A DESTACANDO PHALLE. INTERDISCIPLINAR DE SAINT PHALLE E O ENVOLVIMENTO COM AS PRINCIPAIS QUESTÕES SOCIAIS E POLÍTICAS, A EXPOSIÇÃO SE CONCENTRA EM TRABALHOS QUE ELA CRIOU PARA TRANSFORMAR AMBIENTES, INDIVÍDUOS E A SOCIEDADE
Acima: Daddy, 1973. À esquerda: Un rêve plus long que la nuit , 1976.
19 anos e foi mãe aos 21. Aos 23 anos de idade, sofreu um surto psicótico e foi diagnosticada como esquizofrênica. Niki passou por tratamentos de terapia com uso de insulina e eletrochoques. Ela também foi vítima de incesto, abusada sexualmente pelo pai quando tinha apenas 11 anos de idade. Toda essa violência que sofreu durante a juventude encontrou um ponto de fuga e libertação no mundo da arte. Niki de Saint Phalle produziu desenhos, pinturas, esculturas, litografias, promoveu performances, além de atuar em várias áreas do cinema. Enquanto diretora, ela fez filmes como (1973), uma fantasia sobre as tentativas de uma mulher de exorcizar a influência de seu pai sexualmente dominador. Como roteirista, fez (1976), a história de Camélia, uma menina prisioneira de 11 anos, que acorda em um mundo estranho e fabuloso e tenta fugir. Enquanto diretora de arte, Niki usou a conhecida obra (1966) como cenário para o filme ( ), que conta a história de uma mulher que subverte os jogos sádicos aos quais é submetida por um homem rico que a sequestrou. 30 29
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A esquerda: La mort du patriarche, 1972. Abaixo: Autel noir et blanc, 1962 e Vênus de Milo, 1962. © 2018 NIKI CHARITABLE ART FOUNDATION.
(Novo Realismo), movimento artístico que se É por meio do iniciou na França em 1960, que Niki de Saint Phalle adentrou ao mundo da arte. No manifesto do , há uma proposta de interpretação do real por meio da colagem e dos ready-mades: a partir do uso de materiais desperdiçados, retirados de um contexto cotidiano, os artistas criavam objetos poéticos, irônicos, críticos – em um forte paralelo com a . Entre os artistas que integraram o movimento estão Yves Klein, Jean Tinguely, François Dufrêne, entre outros. Niki era a única mulher do grupo. Em sua conhecida obra (1961), que significa “tiro” em francês, a artista usava espingardas no lugar de pincéis. Suas telas brancas eram formadas por uma espécie de conglomerado de objetos: lâminas, armas, itens religiosos, etc. Junto a esses objetos-tela, ficavam escondidos pequenos sacos de tinta e latas de que explodiam ao serem acertados pelos tiros da espingarda. Entre os alvos, ela atirou em políticos ( , de 1963), em patriarcas ( , de 1972), no mito da beleza feminina ( , 1962). foi realizada ao longo de três anos e acontecia em espaços abertos com a participação ativa do público. 33
Tir (Shooting Altar), 1970.
Hon, 1966. Foto: © Hans Hammarskiöld.
Em meados dos anos 1960, Saint Phalle se dedicou inteiramente às esculturas monumentais, tão célebres na obra dela. Ela construiu parques fantásticos, jardins, casas, tudo sempre muito carregado de cores e formas – uma espécie de banquete visual em celebração à própria arte. Entre o lúdico e o fantasmagórico, o colorido externo brilhante e o escuro misterioso do interior de suas peças, as esculturas de Niki têm em si um caráter profundamente feminista. A representação da mulher, do corpo e da identidade estão presentes em séries como e , com suas figuras femininas imponentes. Em 1966, no Museu de Arte Moderna de Estocolmo, a instalação foi apresentada ao público pela primeira vez: a famosa e gigantesca escultura, que tem a forma de uma mulher grávida, deitada de costas com as pernas abertas, tinha 25 metros de comprimento, 9 metros de largura e pesava cerca de 6 toneladas. Ao entrar na escultura, o público passava por meio de uma abertura vaginal que 36
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Tarot Garden, Garavicchio, Italy. © 2021 FONDAZIONE IL GIARDINO DEI TAROCCHI.
tem o tamanho de uma porta. Por dentro, um corpo feminino quente e escuro, funcionando como uma espécie de parque de diversões. Entre várias “atrações”, há uma galeria com obras de arte “falsas”, um aquário, um “leite-bar” dentro de um dos seios, uma máquina de vender sanduíches, um filme antigo de Greta Garbo, um cinema. Hoje, as podem ser vistas em vários lugares do mundo: Paris, Nova York, Bruxelas, Hamburgo, Genebra, Tóquio, Amsterdã. Além das , Niki trabalhou , um imenso jardim de esculturas localizado na região por 20 anos no da Toscana, considerada uma das obras mais importantes da trajetória de Niki. , inaugurado em 1998, tem 22 esculturas baseadas no baralho de tarô e teve como uma de suas inspirações o Parque Guell, um parque urbano em Barcelona concebido pelo arquiteto Antoni Gaudí. 37
Lili Ou Tony, 1975.
À esquerda: Musical Chairs, 1983. Abaixo: Anthro/Socio (Rinde Spinning), 1992.
Salut Picasso from Homage to Picasso (Hommage à Picasso), 1973.
Niki foi uma artista pioneira. O trabalho dela influenciou nomes como Chris Burden, Marina Abramović, Carolee Schneemann, Hannah Wike, Simone Forti e William Burroughs. Suas obras em grande escala inventaram novos espaços e a possibilidade de uma arquitetura visceral e afetiva. Em contraposição às utopias racionalistas e “maquínicas”, esses lugares se apresentam como heterotopias corpulentas e curvilíneas. Assim, Niki formou mundos inteiros de alteridades possíveis, vislumbres concretizados, apresentando obras cheias de mitos próprios e criaturas fantásticas envoltas pelo universo feminino.
Drika de Oliveira é diretora de conteúdos audiovisuais na Redes da Maré. Atua como fotógrafa e é preservadora audiovisual voluntária na Cinemateca do MAM-Rio. É graduada em Comunicação Social-Cinema pela PUC-Rio. Membra da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).
NIKI DE SAINT PHALLE: STRUCTURES FOR LIFE • MOMA PS1 • NOVA YORK • 11/3/2021 A 6/7/2021 39
Maman, 1999.
PELO mundo
LOUISE bourgeois ,
A VASTA E SINGULAR OBRA DE LOUISE BOURGEOIS LIDA COM TEMAS INDELEVELMENTE ASSOCIADOS A VIVÊNCIAS E ACONTECIMENTOS TRAUMÁTICOS DA SUA INFÂNCIA – A FAMÍLIA, A SEXUALIDADE, O CORPO, A MORTE E O INCONSCIENTE – QUE A ARTISTA TRATOU E EXORCIZOU ATRAVÉS DA SUA PRÁTICA ARTÍSTICA. NOVA RETROSPECTIVA NO MUSEU DE SERRALVES, EM PORTUGAL, COBRE SEU ARCO TEMPORAL DE SETE DÉCADAS
Por sete décadas, Louise Bourgeois deslaçou tormentos. Uma das figuras mais influentes da arte do século 20, ficou conhecida por trabalhar de forma terapêutica, assimilando memórias traumáticas em complexas obras que transformaram a forma como a escultura era até então pensada. Na infância, encontrou uma mina fértil de onde pôde prospectar imagens poderosas para seu trabalho. Transfigurou suas lutas emocionais em arte, encontrando no processo uma “garantia de sanidade” e um espaço onde era possível não só enfrentar a própria vulnerabilidade, mas desafiá-la constantemente. Sua singular prática artística foi marcada por uma vasta experimentação de materiais, pela manipulação vertiginosa da escala dos objetos e pela constante oscilação entre a figuração narrativa e a abstração deliberada. Em 1982, tornou-se a primeira mulher a ter uma retrospectiva no MoMA, em Nova York, uma chancela da imensa estatura que a artista havia alcançado nos círculos artísticos. Como bem apontou Mignon Nixon, Bourgeois se tornou uma artista canônica, mas seu lugar no cânone permanece indeterminado. Isto porque de uma forma radicalmente inventiva, fundou um idioma próprio no interior de uma língua 42
Cinque, 2007.
POR ELISA MAIA E BEATRIZ COSLOVSKY
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Abaixo: Arch of Hysteria, 1993. À direita: The Good Mother, 1991.
predominantemente masculina e, por mais de sessenta anos, produziu trabalhos que conseguiram resistir ao impulso taxonômico de domesticação de sua prática e escapar das categorias onde a sua obra poderia ter encontrado abrigo. Nascida em Paris, em 1911, Louise Bourgeois foi a segunda de três crianças em uma família que se dedicava à venda e ao restauro de tapeçarias antigas. Sua adolescência foi profundamente marcada pela doença da mãe, que faleceu em 1932, e pela infidelidade de seu pai, que por uma década manteve um relacionamento com a governanta inglesa da família, um segredo que a artista conta tê-la mortificado por muito anos. Em 1938, aos 27 anos, casou-se com o historiador da arte americano Robert Goldwater, deixando a França para trás e se mudando para Nova York, cidade onde viveria até o fim de sua vida. Nos Estados Unidos, encontrou um terreno fértil para a criação, porém, como jovem mãe de três crianças, viu-se presa às funções domésticas enquanto o marido atendia às exigências de sua carreira. A escrita nesse momento assumiu uma função salutar – “conseguimos aguentar tudo se o passarmos a escrito”, 45
A nova escultura Salome, 1893. Foto: © InGestalt / Michael Ehritt.
À esquerda: Couple I, 1996. Abaixo: He Disappeared into Complete Silence. Plate 7, 1947.
anotou em seu diário. Escritora compulsiva, Bourgeois escreveu constante e copiosamente – notas, listas, sonhos, entradas de diários e fragmentos narrativos. Em uma fase mais tardia da vida, passou a usar fragmentos de seus textos antigos em bordados, placas e gravuras. Tomados em conjunto, seus escritos constituem um extraordinário corpo de trabalho que rivaliza com sua produção visual. Entre os textos publicados, está o álbum (Ele desapareceu no mais completo silêncio), de 1947, composto por nove ilustrações acompanhadas de curtos parágrafos, em sua maioria iniciados por variações da frase “era uma vez...”. A gravura 7, por exemplo, conta brevemente a história de um homem que se enfurece com a mulher e resolve fazer um guisado com pedaços do corpo dela para servir aos amigos em uma festa. Nessa imagem, as figuras são metade corpo, metade edifícios, uma metáfora que Bourgeois explorou de forma bastante engenhosa ao longo de sua prática. A série (1945-47) aborda de forma irônica a relação ambivalente entre o corpo feminino e a arquitetura por meio de imagens em que a mulher se encontra fusionada à sua casa. Décadas mais tarde, a artista retorna ao tema, mas dessa vez trocando os desenhos por pesadas esculturas de mármore, que sugerem a ambiguidade entre propriedade e prisão e enfatizam a ideia da casa como uma inquietante extensão do corpo. 47
Avenza, 1968-69.
Sabe-se que, à morte de seu pai, em 1951, seguiu-se uma debilitante depressão que mergulhou a artista em um longo período de introspecção e retiro. Durante esse tempo, ela se dedicou a um intenso processo de psicanálise que influenciaria profundamente a sua obra, seu discurso e seus escritos até o final da vida. Em 1964, depois de um hiato de 11 anos, uma exposição na Stable Gallery, em Nova York, marcou seu retorno ao mundo da arte. Sua linguagem escultórica havia se tornado então mais visceral e seu repertório visual permeado de formas abstratas e orgânicas que flertavam com o antropomorfismo – dentes, testículos, seios, úteros, vaginas, casulos, membranas, ovos, conchas e ninhos. Nesse momento, Bourgeois ainda lança mão de materiais tradicionais, como mármore, bronze e madeira, mas 48
Janus Fleuri, 1968.
também experimenta novos suportes como o látex e a resina, que lhe permitiam dissolver as formas rígidas em estruturas mais ambíguas. Essas novas paisagens compostas por erupções e coagulações evocam um corpo distorcido, seccionado, um corpo sem romantismo, sem contornos claros, quase irreconhecível, que transborda para além dos limites normativos do corpo anatômico. Em (1968-69), múltiplas protuberâncias fálicas se erguem do solo confluindo em formas arredondadas que evocam colmeias ou lavas. (1968), que Bourgeois apontava como sua escultura favorita, e cujo título faz referência ao deus romano de duas faces que representa as transições, apresenta a fusão andrógina de seios e falo – “às vezes me volto completamente para as formas femininas, uma 49
A Crucificação de Cristo, 1890.
Torso – Autorretrato, 1964.
aglomeração de seios como nuvens – mas em geral fusiono as imagens – seios fálicos, masculino e feminino, ativo e passivo”. É também na década de 1960 que Louise começou a usar a gravidade em seus trabalhos. Penduradas no teto do espaço expositivo por fios de aço, suas esculturas parecem ter sido “capturadas”. Capazes de girar em tono do próprio eixo, assumem uma perturbadora qualidade animada e passam a dialogar com toda uma tradição de artistas que exploram o tema das carcaças, entre os quais estão Rembrandt, Soutine e, posteriormente à Bourgeois, Francis Bacon. A dissolução da forma empreendida em trabalhos da década de 1960, como (1964), (1965), (1969), aponta ainda para as relações entre o corpo humano e 50
The Quartered One, 1965.
a paisagem. “Nosso próprio corpo pode ser visto de uma perspectiva topográfica, um terreno com montes e vales, cavernas e buracos”, escreve Louise. Se esculturas como e se caracterizam pela ambiguidade das formas, (1968) é, de maneira inequívoca, a representação de um pênis superdimensionado. O falo realista de Bourgeois não é esculpido em pedra lisa e rija, como nos acostumamos a ver esculturas de nus masculinos, mas moldado com látex pigmentado, conferindo ao trabalho uma qualidade envelhecida e repulsiva. Há humor no título – , em francês, seria algo como “garotinha”. Suspenso por um fio, o falo desce do trono simbólico para ser exposto em toda sua vulnerabilidade. A obra se tornou uma de suas peças mais conhecidas, muito em 51
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razão da fotografia icônica que Mapplethorpe tirou em 1982 da artista segurando de forma debochada a escultura debaixo do braço. O sorriso irreverente e provocador é o detalhe que desarma a cena, mas não sabemos do que a artista está rindo. Poderia bem ser da supervalorização do falo em nossa sociedade ou da relação entre a castração e a maternidade teorizada pela psicanálise. A conturbada relação com o pai inspirou de forma direta o seu trabalho. A artista recorda um jantar de família na infância em que pegou um pedaço de pão, misturou com cuspe e modelou a silhueta do pai – “Quando a figura estava pronta, eu comecei a cortar seus membros com uma faca. Eu vejo esta como a minha primeira solução escultórica” Essa vingança imaginária anos mais tarde daria origem à 52
Robert Mapplethorpe, Louise Bourgeois, 1982. © Robert Mapplethorpe Foundation. Abaixo: Fillette, 1968.
The Destruction of the Father, 1974.
icônica instalação (A destruição do pai), de 1974 – uma cena de violência primária em que Louise e seus irmãos desmembram e devoram o pai na mesa do jantar de família presidido por ele. Sobre o trabalho, que a artista chamou de um , ela escreve: “O pai está a dissertar para um público cativo sobre sua grandeza, as coisas extraordinárias que fez, as más pessoas que arrasou hoje. Mas isso sucede dia após dia. Cresce nas crianças uma espécie de ressentimento. E, um dia, zangam-se. A tragédia paira no ar.” Nós, espectadores, chegamos à cena do crime tarde demais. A violência já foi consumada e restam apenas as sobras do ritual. Dentro de uma espécie de caverna teatralmente iluminada por uma soturna incandescência avermelhada, encontramos resquícios do corpo esquartejado do pai pairando sobre uma mesa de jantar. O espaço é repleto de saliências bulbosas de látex combinadas com gesso e tecido, que brotam ao mesmo tempo do chão e do teto. Louise afirma que esta foi uma forma de exorcizar a raiva que o pai, mesmo depois de morto, ainda lhe inspirava. Trabalhos como esse evidenciam a maneira como a artista traz a agressividade feminina para o primeiro plano em uma cultura onde a cólera e um temperamento dito mercurial sempre foram monopólio de artistas do sexo masculino, nos quais esses impulsos eram celebrados como sinais de virilidade artística. Em 1951, a artista já havia escrito: “quando você não trabalha, fica reduzida às dimensões de 54
Mamán, 1999
um inseto, sua energia vira ódio”. A prática artística lhe permitia canalizar sua agressividade contra os outros e contra si própria em ações simbólicas que lhe conferiam um alívio momentâneo dos tormentos que a assolavam – “na arte, sou a assassina” escreve. A cerimônia de canibalismo onde Louise devora o pai (junto com suas palavras e seu discurso presunçoso) cai como uma luva à crítica feminista que vê nessa destruição violenta uma desmontagem da autoridade patriarcal, ou ainda um ataque ao Minimalismo – o movimento ostensivamente masculino que dominou a cena artística norte americana na década de 1970. A maternidade também é alvo de Bourgeois, que a desloca do lugar romantizado de idealização idílica, para apresentá-la de forma crua e visceral. Sobre o nascimento do primeiro filho, ela escreveu, em 1940: “Sou levada para a sala de parto numa cama com grades a toda volta, estou com dores diabólicas, põem-me a dormir, também me atam os braços e as pernas. Estão cinco pessoas à minha volta, glaciares a olhar pra mim, chega o Jean Louis Thomaz.” Como emblema da maternidade, Bourgeois esculpiu e desenhou aranhas pequenas, grandes, imensas. Tecelã, protetora e habilidosa, mas também predadora temida e capaz de deslaçar ansiedades, a aranha é eleita por Louise a metáfora para representar a mãe dela e os sentimentos que esta lhe inspirava. (1999) – a mais emblemática das aranhas monumentais de Bourgeois – extravasa os limites do teto do museu para 55
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assumir a escala arquitetônica dos prédios (a ideia da casa insiste em retornar). As pernas finas e alongadas se tornam colunas que equilibram o peso de seu corpo sobre extremidades pontiagudas. Seus ovos a tornam um corpo feminino e pontuam a ideia de maternidade. Realista na forma, hiperbólica no tamanho, , a um só passo, seduz, acolhe e intimida o visitante miniaturizado. Em 1989, Bourgeois deu início à série de mais de sessenta instalações intituladas (em português, celas ou células: há ambiguidade no jogo de palavras), que de são pequenos espaços gradeados construídos a partir de objetos arquitetônicos recuperados pela artista, como portas, janelas e painéis de vidro. Com as ,a escultura se torna arquitetura, a arquitetura se torna escultura e não é mais possível diferenciar os dois domínios. Caracterizadas por narrativas individuais e funcionam como microcosmos habitados por suas autossuficientes, as memórias e experiências. Objetos encontrados – um relógio de bolso, espelhos quebrados, carteiras escolares, vidros de perfume antigos, pedaços de tapeçaria – dotam os espaços de uma atmosfera de nostalgia e mistério. Por entre as brechas das grades, somos convidados a espiar o teatro privado de suas recordações, mas os mesmos objetos que seduzem o espectador servem de barreiras visuais que dificultam o acesso à obra, tornando o ato de olhar um esforço e, o visitante, um . Em uma delas, (1990-1993), uma lâmina de guilhotina pende na iminência de cair sobre uma réplica em mármore rosa da casa de sua família em
Cell (Choisy), 1990-93. 56
Choisy-le-Roi, nos arredores de Paris, onde ficava também a oficina de restauro de tapeçarias dos pais, enfatizando a proximidade entre a cela e a célula familiar. Nesses espaços domésticos encapsulados, Bourgeois parece manter uma proximidade controlada com o passado que sempre ameaça engolir inteiramente o sujeito – “as pessoas guilhotinam-se a si mesmas dentro da família”, escreveu. A partir da década de 1990, Bourgeois começou um intenso trabalho com tecidos, resgatando técnicas aprendidas com a mãe na oficina da família. Em (1996), a artista criou aparições fantasmagóricas ao pendurar algumas de suas roupas (uma camisola, um vestido de lantejoulas) em cabides feitos com ossos comprados em um mercado de carnes local. Em outras obras, a artista reutilizou toalhas e panos de prato para criar cabeças e silhuetas anatômicas. Em (2003), um tecido de tapeçaria cobre uma velha poltrona que abriga um pequeno corpo feminino, também feito de tapeçaria, do qual se desdobram oito patas aracnoides. A artista lança mão mais uma vez da aranha como avatar materno, criando uma fricção produtiva entre as noções de teia, tecido, tecer e costurar. Nesse momento, vemos Bourgeois, então já na sua décima década de vida, apresentando um trabalho de enorme densidade emocional e inovação do ponto de vista da linguagem formal da escultura. Nada mais tentador do que interpretar por um viés psicanalítico o trabalho de uma artista que se declarou tantas vezes atormentada por suas reminiscências e no qual a experiência autobiográfica da
Lady in Waiting, 2003.
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infância tem um lugar tão preponderante. A obra de Bourgeois é saturada de referências freudianas – o assassinato do pai, a ameaça da castração, a analogia entre o inconsciente e a casa, a associação entre o filho e o falo na célebre fotografia de Mapplethorpe. Quem percorre este caminho, entretanto, depara-se com dois obstáculos importantes. O primeiro está no fato de que a própria Louise já o trilhou de forma brilhante e prolífica. A artista foi uma porta-voz eloquente da própria obra e uma narradora fictícia de sua própria vida. Contadora de histórias extremamente articulada e sagaz, demonstrou grande habilidade em enredar o leitor/ouvinte na teia narrativa de suas anedotas e de seus traumas do passado. Em seus escritos e entrevistas, chama atenção a fluência do idioma psicanalítico no qual Bourgeois era versada. O segundo obstáculo neste caminho está no caráter redutor que essas interpretações assumem quando se propõem a “decifrar” uma obra que extrapola em muito o discurso racional e organizado da crítica biográfica. Em seu trabalho, a vida não precede a arte, mas mantém com ela laços mutuamente constitutivos. A vitalidade e a potência que acompanham a obra dela derivam em grande parte de uma estranheza que não se deixa amortecer pela crítica ou tampouco se organizar pelo discurso. Por meio de imagens exuberantes e narrativas incrivelmente densas e delicadas, Bourgeois afirmou seu compromisso absoluto com o poder da arte, sua irreverência e liberdade. Com espantosa coragem, enfrentou as próprias memórias pessoais e as exibiu para o mundo costurando uma teia de descoberta emocional coletiva.
Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.
Beatriz Coslovsky é formada em História da Arte e Curadoria pela University of Essex e atua como pesquisadora no Instituto Tunga.
LOUISE BOURGEOIS: DESLAÇAR UM TORMENTO • MUSEU DE SERRALVES • PORTUGAL • 4/12/20 A 20/6/2021 58
Le Trani Episode, 1971.
ENTREvista
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SHEILA hicks
OS TÊXTEIS E AS INSTALAÇÕES DA ARTISTA AMERICANA SHEILA HICKS (1934), UMA DAS MAIS EXPRESIVAS ARTISTAS INTERNACIONAIS EM ATIVIDADE HOJE E VIVE EM PARIS DESDE MEADOS DOS ANOS 1960, FOGEM ÀS IDEIAS TRADICIONAIS DA ARTE TÊXTIL E DAS TÉCNICAS DE NÓ E TECELAGEM
Dinâmicos, sensualmente atraentes, infinitamente coloridos, delicadamente íntimos e muitas vezes monumentais e definidores de espaço: os tecidos, esculturas e instalações da artista Sheila Hicks desafiam noções tradicionais de arte e exploram novos territórios. Hicks é uma virtuosa em vocabulários têxteis e suas tradições históricas, , as artes entrelaçando as artes plásticas com o aplicadas e a arquitetura para criar objetos e ambientes nos quais a materialidade, tatilidade, forma e cor - variando do sutil ao vibrante luminoso tornam-se uma fascinante linguagem própria. Na exposição no MAK, , sua primeira mostra solo na Áustria, a artista apresenta duas obras recentes e esculturas de encher uma sala, relacionando-as com a arquitetura. Nascida em Nebraska (1934), Sheila Hicks, formada como pintora, vê as fibras e os têxteis como mais do que apenas materiais de trabalho, considerando-os arcaicos e contemporâneos ligando campos interdisciplinares ao redor do globo. Explorando e trabalhando em diferentes culturas desde a década de 1950, ela tem sido uma das figuras mais significativas da arte, e suas criações multifacetadas são caracterizadas por um incrível senso de cor e por intenso envolvimento com arquitetura e fotografia. Confira entrevista com a artista que completará 87 anos em 2021, feita pelo curador da mostra em Viena, Itai Margula. 62
© Bildrecht, Viena, 2020. Foto: Mak/Georg Mayer.
POR REDAÇÃO
Fotos: © E. Sander
POR ITAI MARGULA
Deixe-me começar colocando “pintura” no início da sua frase, porque comecei com a pintura antes de expandir para os têxteis e a escultura. Não há segredo; é apenas uma questão de desenvolver sua sensibilidade individual e a atração magnética que os materiais exercem sobre você à medida que os descobre e começa a experimentá-los. Você sente essa atração assim que se torna consciente e, então, amplia sua perspectiva indo à escola e ouvindo os outros. Tive a sorte de encontrar no meu caminho escolas muito boas. Não porque eu fosse inteligente o suficiente para procurá-las; foi simplesmente uma série de acidentes e imprevistos. Uma vez, nessas diferentes situações de aprendizagem, eu era ingênua - e sincera e inexperiente o suficiente - para tirar o máximo proveito delas. Ser jovem me incentivou a enfrentar os desafios de assistir a aulas pensadas principalmente para homens. Como eu tinha dois irmãos, entendi o que era ser competitivo, e isso me serviu bem nas escolas que frequentei. Eu também sabia ser tortuosa e permanecer anônima. Naquela época, era normal empurrar as mulheres para coisas como economia doméstica, culinária ou costura, mas as escolas que frequentei não tinham 64
nada disso. Só tinha o que os homens estudavam. Então tive que me ajustar: comecei com pintura e tive aulas de tipografia, escultura, bidimensional e tridimensional e também de cor. As aulas principais eram artes gráficas e belas artes.
Quando me formei na Escola de Arte e Arquitetura de Yale, em 1957, fiz amizade com arquitetos e aprendi com eles ouvindo suas aulas. Ouvir envolve simplesmente entrar furtivamente nas aulas e se sentar atrás. Essa estratégia funcionou bem: eles me viram como alguém que poderiam convidar para ajudar a construir seus modelos. Para modelos físicos, você precisava de muita ajuda prática e eu era uma voluntária disposta. Isso me ajudou a entender conceitos e ambientes espaciais. Fiquei muito mais ciente da luz e das diferentes fontes de luz artificial e natural. Isso determinou como escolho e trabalho com meus materiais. Sempre começo com luz. 65
Sempre começo trabalhando em escala pequena - o tamanho de uma página de caderno - e então fecho meus olhos e penso em termos de espaço, projeção, clima exterior. Às vezes desenvolvo minhas ideias em uma escala imensa, e interior pensando de forma multidimensional - não apenas em duas dimensões, como um desenho em uma página - mais como uma rocha, pedra ou bolha. Então a escala fica maior, maior do que uma cabeça ou uma pessoa inteira, até que é realmente muito grande. A funcionalidade vem um pouco abaixo na lista. Porque se você se interessa por arte, tem que se fazer ser apreciado e necessário de uma forma poética, nem sempre claramente funcional, mas psicologicamente vital.
Uma coisa emocionante aconteceu comigo em Viena: subi este lance de escadas e caí no imenso espaço da entrada do museu - as arcadas e arcos do MAK. Eu vaguei pelos caminhos labirínticos do espaço e subi as escadas novamente. Caminhei ao redor do átrio e espiei através dos arcos para este espaço imenso como o corredor de uma enorme piscina - e tentei me situar. É complicado tentar se sentir em casa em tal ambiente.
... ou para o que você veste: a cor de suas roupas e como você se move. Um objeto no espaço parece muito grande. Você percebe como ele flutua ou cai ou como e onde está ancorado. Agora estamos entrando em algo muito complexo: como estruturar, ancorar e suspender instalações. Suas ideias devem ser óbvias, intencionalmente transparentes ou misteriosas? Devem ser impossíveis de entender? Você tem medo de que algo caia sobre você? As exposições são assustadoras ou amigáveis - elas ameaçam você? Grande parte da arte que é feita hoje é bastante ameaçadora.
Na verdade, ele o tenta a desobedecer às convenções do museu e a tocá-lo apesar de você mesmo - mesmo que sub-repticiamente se apoie nele e o toque inocentemente.
Minha experiência é que é inevitável e não há por que fingir o contrário. 66
“
La sentinelle de Safran, 2018. © Bildrecht, Viena, 2020. Foto: Mak/Georg Mayer.
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Asphalt Air and Hair, 2017, ARoS Triennial THE GARDEN, Dänemark © Katharina Grosse und VG Bild-Kunst, Bonn, 2019. Foto: Nic Tenwiggenhorn.
Apprentissages de la Victoire, 2008-2016. © Bildrecht, Viena, 2020. Foto: Mak/Georg Mayer.
Você tem que passar muito tempo ouvindo as pessoas se for um espaço público. Muito disso tem a ver com o elemento de perigo: segurança, condições climáticas, instabilidade política, inflamabilidade e vida útil de uma exibição - quanto tempo ela tem que durar em todos os tipos de condições imprevisíveis. Há considerações financeiras: diminuirá ou aumentará de valor com o tempo? O clima, o espaço e o tempo - para não mencionar a composição social da comunidade - mudarão de modo que o trabalho se torne uma praga na paisagem ou um problema? Veja quantas esculturas estão sendo retiradas hoje porque simbolizam algo com o qual a comunidade não se relaciona mais. Definitivamente, há um fator de negatividade. Quando você anda e trabalha em espaços públicos, está realmente se abrindo para muitos problemas estranhos. Especialmente se sua arte for representativa, se você estiver criando símbolos ou imagens realistas e reconhecíveis. Como sua arte atende a todos esses requisitos e permanece durável?
Por isso escolhi uniformes militares israelenses. Tive um trabalho de três anos indo e voltando de Israel. Pediram-me para vir e fazer coisas em Israel - não como outros museus onde eles dirigem um caminhão, pegam coisas do seu estúdio e as transportam de Paris para Viena ou Milão. Eles disseram: “Nós pagamos pela sua passagem; você vem para Israel. Venha com sua família, amigos, o que quiser. Mas trabalhe em Israel com o povo daqui; faça com que compartilhem a criação de coisas.” Então, trabalhei em e assentamentos árabes, usando o meu conhecimento de têxteis, fazendo coisas à mão e, ao longo de dois anos e meio, fiz coisas suficientes para encher o andar térreo do Museu de Israel, em Jerusalém. Mas a sala mais impressionante foi aquela onde pendurei as camisas de manga comprida do exército. Onde quer que olhasse, você via varais cheios delas. Quando os soldados chegam à casa no fim de semana, despejam suas malas de roupa suja no chão e tudo é lavado. Então você vê essas lindas camisas esvoaçantes em todos os lugares do varal. Dentro do museu, pendurei um varal em um belo espaço em cubos com claraboias. Pedi que abrissem as janelas para que o varal pudesse alcançar o pátio. Penduramos as camisas dentro e fora de casa, cruzando a sala de canto a canto e saindo para o pátio. 69
Usei materiais e motivos dos tecidos íntimos que os envolvem diariamente. O clima permite que eles usem roupas mínimas, mas as camisas militares também são parte importante do guarda-roupa deles. Na cultura árabe palestina, as pessoas se envolvem em tecidos fluidos e abundantes. Mas, para o trabalho, usam roupas muito simples, como camisetas. Considere as mulheres que cuidam das crianças, empurrando carrinhos de bebê e outras coisas à noite. Você pode ver três ou quatro delas caminhando juntas em Jaffa. Você vê um enorme pacote de sete ou oito tipos de tecidos, agrupados e aparentemente caminhando no espaço. Tentei recriar esse tipo de escultura na exposição. Onde quer que eu esteja, tento pegar algo daquele lugar e trabalhar com ele.
O MAK quer montar uma sala com meus tapetes de oração marroquinos. Eles são todos geométricos e não têm nada a ver com arte ou Têm a ver com a sensação de passar por um arco, por uma porta sem maçaneta. Você não precisa de uma chave ou maçaneta para passar de nossa existência para o próximo mundo ou para se mover para frente e para trás entre existências paralelas. Conhecemos um motorista de táxi tunisiano há cerca de uma semana que nos levou pelo Boulevard Saint-Germain e nos deu uma palestra sobre uma porta sem portada e um portal sem porta.
Sim, porque faz a cultura muçulmana repensar a função dos tapetes. Os muçulmanos os usam nas mesquitas para sentar e ouvir sermões ou para orar. Mas pendurá-los na parede cria uma entrada para outra dimensão espiritual, outro mundo. Fiz isso na Arábia Saudita em uma sala de conferências em Meca. Pendurei 72
sete tapetes de oração que tinham uma função. Os tapetes ajudaram os delegados a encontrar seus assentos, indicados por cores diferentes, à medida que entravam e saíam por portas diferentes...
Incompreensible Yellow Space, 2020. Foto: Claire Dorn.
Quando vou a uma cultura, ouço, olho e converso com as pessoas; é para isso que existe a cultura deles. Você dá a eles o que eles são, não o que você é. Mas você tem que se adaptar aos dados.
Vejo que você tem senso de humor, então vou reservar um tempo para cavar mais fundo. Por que pré-colombiano? Todo mundo diz "pré-colonial", mas estou interessada no período pré-inca, o tempo antes da uniformidade cultural criada pelo avassalador monopólio político do Inca nos Andes - que, por sua vez, matou o tipo de independência cultural que prevalecia entre as várias tribos da Colômbia até a Terra do Fogo. Todos trabalharam de forma diferente e independente, seguindo a própria curiosidade e determinados pelos ambientes locais. E então os Incas tentaram unificar todas essas tribos, dominá-las e organizá-las politicamente sob a própria visão do Inca de como as coisas deveriam ser feitas. Minha estratégia sempre foi saber como deve ser feito e fazer de outra forma. Gosto muito do pensamento livre que existia antes de os Incas governarem os Andes, com sua enorme variedade de técnicas, cores e estruturas. 74
Monumental, 2018-2020. © Bildrecht, Viena, 2020. Foto: Mak/Georg Mayer.
Confusão e curiosidade.
Itai Margula é um arquiteto baseado em Viena e curador na área de Belas Artes. Como curador e consultor de arte para colecionadores privados, ele desenvolve diversos formatos de mostras, bem como publicações, livros de artista e edições.
SHEILA HICKS: THREAD, TREES, RIVER • MAK • VIENA • 9/12/2020 A 18/4/21 75
REFLexo
JAID esb
,
DER bell
Mereme’ -
A origem do arco-íris e seus mistérios, 2021.
PARTINDO DA NOÇÃO DE ARTIVISMO — NEOLOGISMO CONCEITUAL QUE ABRANGE TANTO O CAMPO DA ARTE QUANTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS — O ARTISTA E CURADOR INDÍGENA DA ETNIA MAKUXI JAIDER ESBELL COMBINA PINTURA, ESCRITA, DESENHO, INSTALAÇÃO E PERFORMANCE PARA ENTRELAÇAR DISCUSSÕES INTERSECCIONAIS ENTRE COSMOLOGIAS, NARRATIVAS MÍTICAS ORIGINÁRIAS, ESPIRITUALIDADE, CRÍTICAS À CULTURA HEGEMÔNICA E PREOCUPAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS. EM EXPOSIÇÃO ATUALMENTE NA GALERIA MILLAN, CONVIDAMOS O ARTISTA PARA DESCREVER O PROCESSO DE INSPIRAÇÃO PARA CRIAÇÃO DE SUAS OBRAS
POR JAIDER ESBELL
O ATAQUE DO KANAIMÉ, 2011 “ é uma espécie de demônio se olharmos para a questão como cristão, mas, se você for um antropólogo ou artista, verá que é um ser fantástico e ao mesmo tempo humano e não humano. Foi uma das primeiras obras que produzi com tinta sobre tela. Pintei algo, alguém muito temido, muito respeitado entre nossos povos, os Karibe e Arawak. Eu o coloquei dentro de uma igreja e ninguém sabia, naquela realidade, o que isso significava. Hoje já temos mais ar para respirar e mergulhar e emergir nessas questões. Tem 120 x 134 cm e foi produzida em 2011. Em 2021, estará na 34ª Bienal de São Paulo. Kanaimé não deixa de ser um assassino, um justiceiro, um feiticeiro, um metamorfo. Ataca de várias formas em vários corpos e mesmo no invisível ele está. Pertence ao acervo do artista Jaider Esbell.” 78
Todas fotos: Cortesia da artista.
Todas Fotos: Filipe Berndt/Galeria Millan.
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A ÁRVORE DE TODOS OS SABERES, 2013
“Foi em 2013, na UFMG, na MIRA! – Artes Visuais dos Povos Indígenas, onde estavam reunidos vários artistas mulheres e homens de vários lugares das Américas. Eu cheguei bem cedo no prédio, tomei um bom rapé e me pus a escutar. Em silêncio, naquele friozinho de BH, eu pude escutar: Filho, tem aí um tecido, pegue esse tecido, estenda aqui na tapiri, faça e um esboço, chame de chame seus irmãos e irmãs que estão aqui e os convide a pintar um pouco de seus universos. Essa obra deve andar no mundo e uma hora vai ser exposta na ONU para que todos saibam, mais uma vez, que vocês nunca serão apagados. Assim foi feito. Meus colegas e minhas colegas ficaram pensativos, uns riram e outros imediatamente começaram a pintar o que chamamos de “assinaturas culturais”. Foi um momento alto da minha carreira, ver artistas pintando e chorando diante de tamanha delicadeza. Tem 200 x 200 cm e é feito em acrílico sobre lona de algodão cru. A obra já circulou desde a mais densa floresta até universidades nos Estados Unidos. Pertence ao acervo do artista Jaider Esbell.” 81
Pág. Anteriores: A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade, 2021.
, 2019
“Pintei essa obra sobre uma base de tinta natural, lonita de algodão cru e foi a primeira obra minha a integrar o acervo de uma instituição, a Pinacoteca de São Paulo. Decidi que a arte que faço deve servir, antes de tudo, para respaldar meu povo e esse “respaldo” deve ser por meio da garantia de nosso território ancestral. Eu nasci e sou de lá, a porção de terra que hoje está demarcada e homologada, é a Raposa Serra do Sol. Com o dinheiro da venda dessa obra, eu pude comprar um carro e assim posso hoje andar por todo o nosso território falando por meio das artes sobre a nossa origem e continuidade. é um campo de ação que nele nos desenvolvemos muito bem, enfeitiçamos a vida para que ela não fuja de nós. Enfeitiçamos os nossos amigos e inimigos para que eles nunca se percam de nossa vida de nosso alcance. É uma obra que veio para dar uma dimensão maior a tudo que somos e ainda seremos. Tem 160 x 186 cm.“
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ESTUDO PARA INVERSÃO
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“
”
, 2019
“Esse trabalho acaba se tornando um divisor de águas sobre o meu trabalho no campo estilístico. É que as pessoas têm medo da escuridão e eu tenho tentado dizer que da escuridão nada mais pode vir senão a luz. Que esse medo do caos ou do vazio deve nos levar à leveza de conceber que podemos recriar os mundos. Que os mundos são nossos mais íntimos interiores. Essa obra, tanto quanto a foram exibidas na França. Elas foram como entidades vivas e paradinhas, expostas na parede fizeram seus trabalhos ao se colocarem no mundo, o mundo dominante, o mundo das tristezas e caos. A obra foi adquirida por um dos maiores colecionadores de arte do mundo e foi vista por tantos e tantos outros comedores de arte que agora me vejo na gostosa missão de servir mais e mais esse povo quase sem alma. Tem 200 x 200 cm. Pertence a um acervo particular.”
JAIDER ESBELL: RUKU • GALERIA MILLAN • SÃO PAULO • A REABRIR 87
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LUCAS
GARimpo
Ilusão 28, Série Ilusão, 2020.
,
Quintas
ENTRE CAMPOS DE COR E CÁLCULOS MATEMÁTICOS, CONHEÇA A OBRA DO ARTISTA LUCAS QUINTAS, O SEGUNDO VENCEDOR DO PRÊMIO DASARTES 2021 PELO VOTO POPULAR
Como o título de uma série de seus trabalhos sugere, Lucas Quintas é um ilusionista. Por meio de diversos mecanismos em sua produção, o artista, bacharel em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM – SP), confunde o espectador, subverte materialidades, fazendo parecer simples e leves materiais densos, ou o contrário. Um dos vencedores do Prêmio Dasartes 2021 pelo voto popular, Quintas participa desde 2019 do acompanhamento artístico Hermes Artes Visuais, ministrado por Carla Chaim e Nino Cais. A produção dele traça relações com cálculos, ângulos e conceitos matemáticos, além de criar estreitos vínculos com noções como composição e perspectiva, entre outras. Composta por uma grande quantidade de fios coloridos presos próximos uns aos outros em um chassi, apesar de lidar constantemente com uma aparente rigidez, através de linhas retas e muita exatidão, há algo de singelo na série . Algo de poético subverte as lógicas matemáticas tais quais são concebidas pelo imaginário popular, que constantemente relaciona a disciplina a algo oposto ao campo do emocional. Talvez pela escolha de suas cores, fortes, contrastantes, que se relacionam e complementam na criação de novos campos de cor, Quintas cria diversas formas pela sobreposição e 90
Ilusão 13, Série Ilusão, 2020.
POR LEANDRO FAZOLLA
aproximação dos fios, em um delicado trabalho que promove uma espécie de encontro entre desenho, pintura e escultura. Ainda que possa haver no trabalho de Lucas um flerte com a ideia de ilusão, há, ao mesmo tempo, uma profunda honestidade em sua composição, dualidade completamente bem-vinda na produção do artista. Se as linhas esticadas, em uma primeira visão, tornam-se campos de cores sólidas que se fundem na criação de outros campos de cor, o artista permite que algumas poucas linhas “sobrem”, atravessem os limites do chassi, confrontando o público diretamente com sua materialidade maleável, contrastando com a forma rígida criada pelo tensionamento de tais fios. Ao mesmo tempo em que Lucas confunde a retina do espectador pela forma como usa o material, o artista também não se furta de revelá-lo em sua forma natural. 92
À esquerda: Ilusão 33, Série Ilusão, 2020. Abaixo: Ilusão 36, Série Ilusão, 2020.
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Tensão 15, Série Tensão.
é o título de outra importante série de Lucas, ainda mais matemática que a mencionada anteriormente. Por meio de elementos como fios, bolinhas de chumbo e placas de madeira, Lucas cria circuitos de tensão, que muito se assemelham a imagens encontradas em fórmulas matemáticas e cálculos geométricos. Em tais obras, os jogos de peso, contrapeso e equilíbrio se dão pela criação de cada mecanismo, do estudo de cada medida. Ainda assim, junto a todo esse conceito inerente à obra, o que Lucas apresenta ao público com suas linhas, pontos e planos, são delicados desenhos que ganham tridimensionalidade e se deslocam da parede. A obra do artista se expande ainda para além dos limites da moldura, em um encontro direto com a arquitetura, relacionando-se intimamente com os espaços onde são inseridas. Em suas instalações, linhas se tornam pontos de fuga que – mais uma vez – criam outro tipo de ilusão de ótica, 75
Tensão 1. Série Tensão. 96
distorcendo o que o espectador vê, dando aparente profundidade em imagens que, na verdade, são bidimensionais. Ou será que, uma vez que os fios têm espessura, ainda que mínima, o trabalho pode ser considerado tridimensional? Até no campo dos conceitos e definições, Lucas subverte e brinca com a retina e a compreensão do espectador. No jogo proposto pelo artista, a cada vez que contemplamos sua produção, algo novo parece saltar – quase literalmente – diante de nossos olhos.
Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa História, Teoria e Crítica de Arte. Bacharel em História da Arte. Ator e produtor da Cia. Cerne, com a qual foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural.
GARlimpo
,
NOTAS do mercado
POR LIEGE JUNG @dasartesmercado
Tendo em vista que o assunto da criptoarte e NFTs decolou no circuito internacional no último mês e que para muitos é nebuloso, dedicamos nossa seção ao tema.
É uma espécie de livro contábil, compartilhado por várias entidades e empresas ao invés de apenas um banco ou instituição. Seu objetivo é facilitar o registro de transações e o rastreamento de ativos em uma rede de negócios. O blockchain é imutável, ou seja, uma vez registrada nele uma transação, ela não pode ser modificada ou apagada. Existem vários blockchains e os mais conhecidos são Ethereum e o blockchain utilizado para geração da criptomoeda bitcoin. Beeple, Illestrater, 2020.
Sigla para non-fungible token, ou token não-fungível. Um bem fungível é algo que pode ser substituído por outro, por exemplo, uma cédula de dinheiro. Um token é um código único que identifica um item digital. Portanto, um NFT é uma espécie de documento de identidade de um bem digital único, registrado em um blockchain. Tem sido usado para identificar colecionáveis de todos os tipos, como "figurinhas" de basquete digitais lançadas pela NBA.
É uma obra de arte digital (uma imagem em Jpg, um gif, um vídeo, etc..) à qual foi atrelado um NFT, o que garante sua autenticidade. Toda vez que esta obra trocar de mãos, uma nova transação será registrada no blockchain, o que também garante sua rastreabilidade. 98
Há diversas plataformas pelas quais um artista pode lançar uma obra de criptoarte, a maior parte delas ligadas ao blockchain Ethereum. Algumas, como Rarible, são abertas a qualquer criativo, enquanto outras aceitam artistas por convite ou indicação. Estas plataformas permitem que o artista "deposite" sua obra e gere para ela um NFT.
Obra de Grimes.
Porque, em menos de um mês, obras de criptoarte de artistas até então desconhecidos passaram a valer milhões de dólares. Apenas em fevereiro, a Nifty Gateway vendeu US$6 milhões em obras de arte da cantora Grimes. Atenta a este movimento, a Christie's anunciou de Beeple e, no dia o leilão da obra seguinte, obras de Beeple apareceram na Nifty Gateway e os valores dispararam. O lance era US$100. Em 11 de inicial de março, ela foi arrematada por US$69 milhões, colocando Beeple entre os artistas vivos mais caros do mundo.
Beeple, Everydays, 2021.
Primeiro, é necessário entender que já existia uma comunidade de usuários de blockchains negociando criptomoedas e outros tipos de tokens e que, nos últimos anos, muitos fizeram fortuna com estas transações. Por exemplo, alguém que recebeu US$10 em bitcoins em 2010 hoje teria US$50 milhões. Outros colecionáveis e criptomoedas tiveram valorizações repentinas, o que trouxe muitos investidores para este universo. Nos últimos meses, este mercado começou a negociar obras de arte, que são ativos únicos, com valor subjetivo e que, no mundo físico, já tem uma tradição em transações milionárias, somando mais força a este boom.
Seguindo a lógica do mercado de arte, temos artistas desconhecidos, que nunca expuseram em um museu ou galeria e que, no espaço de um mês, passam a valer mais que artistas de importância histórica. Quando olhamos para a estética de gosto duvidoso de algumas das obras, a desconfiança é ainda maior. No entanto, pela ótica dos NFTs, os parâmetros para avaliar os investimentos são outros, muito complexos e ainda em definição. 99
GARlimpo
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Resenhas
POR SYLVIA CAROLINNE
ZAALOPNAME SURINAAMSE SCHOOL: PINTANDO DE PARAMARIBO À AMSTERDÃ O OLHAR DE GERAÇÕES
Em tempos de pandemia, toda exposição que nos permita uma experiência imersiva em sua expografia é bem-vinda. Mais ainda quando conseguimos perceber as escolhas curatoriais e as mensagens codificadas das obras, através de um excelente painel sobre o momento histórico em que tais obras foram executadas. Este é o caso da exposição que está acontecendo atualmente no Stedelijk Museum, Amsterdã – . Já no nome a exibição se posiciona de forma ampla, reivindicando ao Suriname a multiplicidade da educação na arte, do grupo para o indivíduo. Com 35 artistas em mais de 100 obras expostas, datadas majoritariamente entre o período de 1910 e meados dos anos 1980, a exposição foi pensada originalmente para abranger trabalhos da artista de origem holandesa Nola Hatterman e os estudantes dela. Na década de 1950, quando se mudou para Paramaribo, Hatterman realizou finalmente o sonho de criar uma escola de arte, cujos alunos se tornaram notáveis artistas. Por esse motivo, a exposição acabou por crescer dentro do próprio material, incluindo muitos dos alunos de Hatterman, e se converteu em um projeto muito mais amplo: o de cruzamento entre a arte holandesa e a surinamesa e de resgate 100
de uma parte da história da arte, até o momento, pouco explorada pelas instituições holandesas. A costura histórica apresentada pela exposição somente foi possível com a participação de curadores externos convidados, que enriqueceram o debate através de seus conhecimentos do cenário artístico surinamês, passado e atual. O acesso a materiais de pesquisa e obras a expor foi viabilizado pela colaboração de coleções privadas, captação de histórias orais, buscas nos arquivos e fundações locais, além de contatos com organizações especializadas na preservação e disseminação desse conhecimento.
O corpo maior da mostra são as pinturas. Trata-se do suporte artístico mais comumente utilizado, uma vez que, somente a partir dos anos 1980, os artistas surinameses ensaiaram obras fora desse tipo de suporte. Para além das pinturas, pode-se também ter acesso ao trabalho das irmãs Curiel, Augusta e Anna, com fotografias que captavam imagens, não só da sociedade colonial local, mas também de viagens por regiões do Caribe e da Europa. Além de Hatterman, temos a possibilidade de conferir o trabalho de Gerrit Schouten, considerado o primeiro artista autônomo surinamês, profissionalmente ativo no país. Seguimos com obras de Armand Baag, aluno brilhante de Hatterman e criador do seu próprio movimento, o . A mostra prossegue com obras de Erwin de Vries, um dos poucos artistas a terem sido inseridos à coleção do museu desde as primeiras produções, e Guillaume Lo-A-Njoe, que em 1959 se tornou o único artista surinamês, até os dias atuais, a receber o Prêmio Real (Holandês) de Pintura Moderna. Com um passado recente de colonização entre Holanda e Suriname, a exibição, para além de marcar os 45 anos de independência do Suriname e reivindicar o seu lugar na história da arte, oferece a visão do país por seus próprios artistas e curadores. Esta exposição não deve ser vista apenas como uma exibição de artistas selecionados, mas uma plataforma de apresentação das correlações existentes entre os dois países e da dinâmica de trabalho de inúmeras gerações de artistas. Segundo as novas diretrizes, o Stedeljk Museum, através
da mostra Surinaamese School, deixa uma clara mensagem para o futuro. Este é um tema em andamento e, quanto a novas exibições nesta linha: .
Sylvia Carolinne é artista visual, graduada em Engenharia civil, Ilustração, Moda e correspondente internacinal da Dasartes.
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