Revista Dasartes Edição 58

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JANNIS KOUNELLIS ABRAHAM PALATNIK ERWIN WURM CÍCERO DIAS PEDRO GANDRA SAMMLUNG BOROS




DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin PRODUÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com

Capa: Jannis Kounellis na Galeria Progetti no Rio de Janeiro em 2008. Foto: Vicente de Mello.

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Contracapa: Jannis Kounellis, Sem título, 2010.


SAMMLUNG BOROS

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ERWIN WURM

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08 De arte a z 64 Livros 66 Resenhas 68 Garimpo do 72 Coluna meio 74 Alto-falante

JANNIS KOUNELLIS

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CÍCERO DIAS

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ABRAHAM PALATNIK

PEDRO GANDRA

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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte

PREFEITURA DE HAIA NA HOLANDA RECEBE INTERVENÇÃO DE PIET MONDRIAN A réplica de uma peça gigantesca, feita pelo Studio VZ, marca o início de uma iniciativa de cultura de um ano, marcando o centenário do movimento holandês de arte abstrata conhecido como o “Movimento de Stijl”, liderado pelo próprio Mondrian. Outros locais em Haia passarão por uma "mondrianização", dizem os organizadores. E isso não é tudo - pela primeira vez, o Gemeentemuseum mostrará todas as 300 obras de Mondrian em sua coleção no grande show “The Discovery of Mondrian”. De 3/6 a 24/9.

PROTESTO DOS MUSEUS

NOVO TÚMULO DE ESCRIVÃO

ARTISTAS GREGOS EM KASSEL

Nos Estados Unidos

Às margens do Rio Nilo

Na Documenta 14

O Museu Davis de Wellesley no estado de Massachusetts removeu 120 obras de arte de imigrantes em protesto ao governo Trump. Algumas obras foram retiradas e outras cobertas por um lençol preto. Já o MoMA em Nova York, substituiu obras de artistas como Picasso e Picabia por obras de Zaha Hadid , de origem iraquiana, e do pintor sudanês Ibrahim El-Salahi. 8

Os arqueólogos dizem ter descoberto o túmulo de um escrivão egípcio real na necrópole vasta de Tebas, há 3.000 anos. Ricamente decorado com imagens de deuses, babuínos e mortais, a câmara funerária remonta ao período Ramesside, por volta de 1200 AC. Na imagem, pintura em uma parede do túmulo que mostra Khonsu e sua esposa que adoram os deuses Osiris e Isis.

Artistas gregos estarão presentes no Fridericianum, principal local de exposições da Documenta 14 em Kassel, onde a mostra internacional será inaugurada em 10 de junho. O Fridericianum, o museu mais antigo da Europa continental, acolherá uma parte da coleção de artistas gregos e internacionais do Museu Nacional de Arte Contemporânea da Grécia (EMST) desde a década de 1960 até o presente.


MUSEU DO PRADO RECEBE PRÊMIO DE MELHOR EXPOSIÇÃO

GIRO NA CENA

Em Nova York O Museu do Prado recebeu o Prêmio Belas Artes Globais 2016 por "El Bosco” Hieronymus Bosch. A exposição do V centenário do artista foi patrocinada exclusivamente pela Fundação BBVA. Este prêmio foi concedido por um grupo de júri de mais de 30 profissionais nas categorias renascentista, barroco e youniversal. A concessão deste prêmio coincidiu com um reconhecimento singular dos esforços feitos pelo Prado durante o ano passado: a eleição do Museu do Prado como a instituição cultural espanhola mais valorizada em 2016 pelo Observatório da Cultura, publicada pela Fundação Contemporânea onde participaram 361 profissionais.

Caos no Museu do Louvre Doze pinturas de Vermeer, um terço de sua obra, são emprestadas da América e da Europa para a exposição “Vermeer e os Mestres da Pintura de Gêneros” no Museu do Louvre. Mas desde a sua abertura em 22 de Fevereiro, a exposição causou mais dores de cabeça do que celebrações, levando a segurança ameaçar uma greve em 10 de março, se a situação não for melhorada. Todo o caos se dá um sistema de reserva falho de compra de bilhetes e longas filas com milhares de visitantes frustrados.

Para declarar “planejar uma mostra tão importante na China sem a contribuição do artista é desrespeitoso” Declaração das galerias ocidentais que representam Anselm Kiefer sobre sua mostra na Academia Central do Museu de Belas Artes (CAFAM) em Beijing.

Obra-prima de Guercino é reencontrada A pintura de Guercino “Madonna com os santos João Evangelista e Gregório o Maravilhoso” de 1639, roubada de uma igreja em Modena em 2014 está no seu caminho de volta para casa, depois de um colecionador experiente reconhecer a obra no Marrocos em uma tentativa de venda. Avaliada em US$ 6 milhões o quadro pertence à igreja italiana de San Vincenzo.


GIRO NA CENA

Novidades ArtRio 2017 As inscrições para os programas Panorama, Vista e Solo da 7ª edição da ArtRio iniciaram no último dia 6/3 e terminam dia 7/4. A feira também anunciou seu novo endereço: a Marina da Glória. “Nosso foco principal, continua sendo estimular o mercado de arte no Brasil” diz Brena Valansi, presidente da feira. A edição de 2017 acontece de 14 a 17/9.

HERDEIROS DE EDITORA JUDAICA SE JUNTAM COM MUSEUS ALEMÃES PARA RASTREAR A ARTE NAZISTA O governo da Alemanha, museus e institutos de pesquisa estão se unindo aos herdeiros de um magnata da mídia judaica para localizar milhares de pinturas, livros, esculturas e antiguidades roubadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Um esboço do óleo “O banquete da família de Mosse” de Anton Von Werner retornou aos herdeiros do coletor pelo museu judaico em Berlim.

Literatura e Design no Itaú Cultural Com curadoria de Felipe Scovino e projeto expográfico de Marcus Vinícius Santos, “Narrativas em Processo: Livros de Artista na Coleção Itaú Cultural” apresenta 70 obras que abarcam 150 anos de história da confecção de livros de artista, em diversos formatos, como livros-objeto e poemas concretos. Entre os trabalhos são apresentadas, ainda, as mais recentes aquisições assinadas por Sérvulo Esmeraldo, Arthur Luiz Piza, Sandra Cinto e Antonio Dias.

10 DE ARTE A Z

VISTO POR AÍ

Ação pede que a pintura de Wassily Kandinsky “Das bunte Leben” de 1907 seja devolvida aos herdeiros. O processo afirma que a obra foi roubada de uma família judaica durante a Segunda Guerra Mundial.



E O BUNKER VIROU GALERIA…

12 OUTRAS NOTAS


Desde o final de outubro, a nova exposição do Berlin History Bunker, que tem como principal atrativo a reconstrução do escritório de Adolf Hitler no Führerbunker, esconderijo do líder nazista nos momentos finais da II Guerra Mundial, tem sido alvo de polêmicas. A coisa é meio tétrica mesmo. Afinal, foi nesse esconderijo subterrâneo que Hitler e sua recém-esposa Eva Braun cometeram suicídio e tiveram seus corpos queimados nos jardins antes de as tropas soviéticas invadirem e explodirem o lugar. O exército nazista, na II Guerra Mundial, construiu um complexo de abrigos subterrâneos chamados "'bunkers' do Atlântico", especialmente nas fronteiras do Antigo Reich alemão, mas Berlim não ficou para trás: no seu subsolo, a cinco metros de profundidade com cerca de trinta salas e dois andares, estavam o Vorbunker (pavimento superior) e o Führerbunker (nível mais baixo).

À esquerda: Obra de Danh_Vo. Todas as fotos: © NOSHE. Cortesia Sammlung Boros.

POR ALECSANDRA MATIAS


O abrigo subterrâneo estava localizado embaixo dos edifícios e dos jardins da Chancelaria do Reich, na esquina das ruas Gertrud-KolmarStraße com a In den Ministegärten (a sudeste do Memorial do Holocausto). Hoje, tudo isso foi recoberto por um restaurante chinês, um supermercado e um estacionamento com uma discreta placa, colocada em 2006, durante a Copa do Mundo, indicando que ali era o "cafofo" do Führer. Já o "bunker" que ficava na rua Reinhardt, a um quilômetro da antiga Chancelaria de Hitler, teve outra história e vibração. Para início de conversa, o edifício foi construído "a toque de caixa" em 1942 e, por essa razão, não está no subsolo, mas no 14 SAMMLUNG BOROS

Já o "bunker" que ficava na rua Reinhardt, a um quilômetro da antiga Chancelaria de Hitler, teve outra história e vibração.


Felipe Cohen na Galeria Cavalo e Lucas Simões na Luciana Caravello. À esquerda: Obras de Ai Weiwei e Tomas Sacarareno. Acima: Obra de Cerith Wyn Evans.


Abaixo: Obra de Thomas Scheibitz e à direita faixada do Bunker e obra de Michael Sailstorfer.

nível da rua, com cinco andares. As paredes têm dois metros de espessura e o telhado tem três metros de puro concerto e ferro. Quando os soldados aliados tomaram Berlim, o "bunker" ficou na parte oriental dominada pelos russos. No início, serviu como prisão para os prisioneiros de guerra, armazém para tecidos e, entre 1957 e 1989, era conhecido como "Banana Bunker", isso porque suas condições climáticas eram boas para conservar frutas 16 OUTRAS NOTAS

tropicais. Nos anos de 1990, o "bunker" se transformou no "The hardest club in the world", especializado em balada eletrônica. Em 2003, o colecionador Christian Boros resolveu comprar o "bunker" para abrigar sua coleção de arte contemporânea. Foram cinco anos de reformas: 3.000 m2 e 80 salas em diferentes formatos e tamanhos - uns mantêm os 2,3 metros de altura e outros têm o dobro ou o triplo de altura (Boros decidiu morar na cobertura do edifício).


E o "bunker" virou galeria de arte Sammlung Boros... especializada em obras datadas dos anos de 1990 até o presente. A coleção de Boros é muito bacana. Na galeria, você pode encontrar trabalhos do artista alemão Joseph Beuys, de Ai Wei Wei, de Oulafour Eliason, de Wolfgang Tillmans, dentre outros. As obras dos artistas contemporâneos surgem ao longo das paredes do "bunker"; são retratos, instalações sonoras, esculturas e fotografias. Sinto em dizer que a experiência de ver a Boros Collection e seu "bunker" de perto é para poucos. As visitas, com cerca de 90 minutos, faladas em alemão ou inglês, somente são possíveis se agendadas previamente pelo site da Sammlung Boros. O grupo é formado por 12 pessoas no máximo. Então, organização é tudo! A reconstrução do "bunker", onde Adolf Hitler passou seus últimos dias,

desperta um grande fascínio (é fato!), mas conhecer um desses esconderijos que hoje serve à arte contemporânea é uma experiência de outra vibração.

Galeria de Arte Sammlung Boros Rua Reinhardtstraße 20, 10117 • Berlim • Alemanha Atualmente a galeria está fechada para novas reformas e voltará suas atividasdes no mês de maio com novas exposições.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais - ECA USP e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte ABCA.


ERWIN WURM O corpo é a casa


Intervenção externa. Todas as imagens: Carol Quintanilha. Cortesia Centro Cultural Branco do Brasil.


MOSTRA ITINERANTE APRESENTA UM CONJUNTO DE OBRAS INTERATIVAS E CONCEITUAIS QUE DESAFIAM E DISTORCEM COM HUMOR FORMAS TRADICIONAIS PRESENTES NO DIA A DIA

POR MARCELLO DANTAS São Paulo é palco de mais uma grande exposição que deve atrair a atenção tanto daqueles que gostam de arte conceitual quanto interativa: o trabalho de Erwin Wurm, artista contemporâneo austríaco, está sendo exibido pela primeira vez no Brasil por meio da mostra "Erwin Wurm - O corpo é a casa". Erwin Wurm utiliza mídias variadas esculturas, vídeos, instalações, performances e intervenções - para 20 ALTO RELEVO

desafiar formas tradicionais presentes no dia a dia. Nesse sentido, objetos como carros, casas e sofás ganham aspectos distorcidos e expandidos. O humor permeia sua obra, que também é sustentada por uma crítica feroz à sociedade de consumo e à cultura contemporânea. Segundo ele, o humor leva as pessoas a olharem para as coisas com mais cuidado. Wurm também coloca a interação do espectador como o ingrediente mais importante de sua arte.


Um dos destaques da mostra, com cerca de 40 obras, é a "Fat House" (Casa gorda), que - com dimensões gigantescas e pesando cerca de duas toneladas - foi remontada no térreo no CCBB. Na série "The Artist Who Swallowed the Word" (O artista que engoliu o mundo), há uma seleção de trabalhos que discute a presença do artista em sua obra; já nas "One-Minute Sculptures" (Esculturas de um minuto), os visitantes seguem as instruções do artista e se tornam, por um minuto, a própria obra. "Dentro de casa" e "Comida" são outros núcleos que fazem parte da exposição e também deslocam o espectador ao confrontá-lo com elementos triviais distorcidos. Treze vídeos do artista estão espalhados pelo espaço, em lugares inusitados como banheiros, corredores e elevadores. E até a fachada do prédio recebeu uma grande intervenção com móveis que instigam os passantes.

os visitantes seguem as instruções do artista e se tornam, por um minuto, a própria obra.

À esquerda: Fat House. Acima: Dodge.


a matéria-prima de qualquer escultura é energia e a unidade de medida de energia, que é a caloria, é o mesmo elemento que irá alterar a forma, o volume e a densidade dos materiais..

22 ERWIN WURM

Ao percorrer o conceito de corpo e elementos domésticos e do cotidiano, o conjunto de cerca de 40 obras explora tanto noções arquitetônicas, para as quais o artista olha a partir do ponto de vista escultórico, quanto "a natureza transformativa da escultura em suas muitas encarnações". Além de “Fat House” (Casa gorda) de 2003, integra o conjunto as famosas esculturas corpulentas, a inflada Ferrari brilhante vermelha "Fat Convertible" (Conversível gordo), de 2004 e peças da série "The Artist who Swallowed the World" (O artista que engoliu o mundo), de 2006. Esse conjunto antropomórfico e obeso sugere algumas atribuições biológicas ao objeto artístico, como o ato de consumir, tornando-o capaz então de "preencher" o seu próprio interior. Seguindo essa lógica, obras envolvendo comida também estão presentes como as roliças salsichas que mimetizam atividades humanas da série "Abstract Sculptures" (Esculturas abstratas) ("Sitting Big"/Sentando grande), de 2014 e "Big Kiss" (Grande beijo), de 2015; a instalação de 37 pepinos de acrílico pintado sobre pedestais "Self-Portrait as Pickles" (Autorretrato como Picles), criada em 2008 e apresentada em diversos países desde então, e "Spit on Someone's Soup" (Cuspa na sopa de alguém), de 2003. Entendo que a matéria-prima de qualquer escultura é energia e a unidade de medida de energia, que é a caloria, é o mesmo elemento que irá alterar a forma, o volume e a densidade dos materiais. E esses explorarão a ressignificação da nossa própria energia corpórea em obras de arte simbólica, desafiando a noção de performance, escultura e arte.


Sem tĂ­tulo, 1957.


24 ALTO RELEVO


À esquerda: Psycho 7 (blue). Acima: Angst. Lache Hochgebirge.

Como desdobramento das investigações das estruturas arquitetônicas, Wurm olha também para seu interior e nele o universo de objetos domésticos os quais ele deforma e redimensiona. Exemplos desses são obras como a prateleira derretida feita de bronze e pátina "Dodge" (2012), a cadeira prensada em um bloco "Angst / Lache Hochgebirge" e o vaso sanitário comprimido de madeira e resina "Toilet" (Vaso sanitário), ambos de 2014; o relógio agigantado "Lost" (Perdido), de 2015, o armário que parece ter sido esmurrado em "First Ascent - North Wall" (Primeira ascenção - parede norte), de 2016, entre outras.

Completam o conjunto as "One-Minute Sculptures" (Esculturas de um minuto), criadas nos anos 1990, nas quais são os espectadores que se tornam as esculturas a partir de instruções deixadas por Wurm. Essas sugerem que o sujeito permaneça em diferentes posições por um minuto, seja vestindo uma peça de roupa ou posicionando a própria cabeça dentro de um armário, criando, assim, formas efêmeras que logo em seguida se desfazem, como uma espécie de performance não programada. Também serão apresentados 13 vídeos - espalhados em espaços inesperados do CCBB como banheiros, corredores e elevadores -, 25


26 ERWIN WURM


À esquerda: Abstract Scultures (Sitting Big). Abaixo: Adorno as Oliver Hardy in the Bohemian girl and the burden of desperation e Abstract Sculptures (Big Kiss).

além de uma grande intervenção na fachada do prédio. A experiência das obras de Erwin Wurm extrai do espectador deleite e senso de humor. Esse último, segundo ele, leva o sujeito a olhar para as coisas com mais cuidado e, portanto, com maior engajamento, por isso ambos (humor e espectador) acabaram se tornando os ingredientes mais importantes do seu gesto artístico. "Por um período de tempo, tentei encontrar a forma mais rápida de me expressar. E isso se reflete na minha crença na franqueza. É o mesmo tipo de franqueza que você encontra nos quadrinhos, elemento que eu frequentemente uso em meu trabalho", resume Wurm. Enquanto muitos artistas se concentram em dificultar a

banalidade, o austríaco está interessado em fazer da dificuldade algo leve e acessível.

Erwin Wurm - O corpo é a casa • Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo • 25/1 a 3/4 Brasília • 21/4 a 26/6 Belo Horizonte • 11/7 a 18/9 Rio de Janeiro • 11/10 a 8/1/2018

Marcello Dantas é curador de arte contemporânea, diretor artístico e documentarista, além de curador do OiR (Outras ideias para o Rio).


JANNIS KOUNELLIS

Sem título, 1989. Foto: Claudio Abate. © Jannis Kounellis.


UM DOS ÚLTIMOS REMANESCENTES DO MOVIMENTO DA ARTE POVERA, O ARTISTA GREGO-ITALIANO JANNIS KOUNELLIS MORRE AOS 80 ANOS EM ROMA. EM GRANDE HOMENAGEM AO ARTISTA A DASARTES REPUBLICA A ENTREVISTA EXCLUSIVA FEITA EM 2008 POR NOSSO EDITOR ADOLFO MONTEJO NAVAS

Sem título, 2001. (Saco com Z).

Como pioneiro da Arte Povera no final da década de 1960, Kounellis criou esculturas espetaculares a partir de objetos considerados pobres e mundanos pedaços de madeira, carvão, sacos, aço e chumbo - arranjados em justaposições surpreendentes nas paredes da galeria ou empilhados sem cerimônia no chão. Com isso, o artista fez uma contribuição altamente distintiva para um dos movimentos artísticos mais provocativos na Europa do pós-guerra. Seus últimos anos foram marcados por importantes retrospectivas. Sua exposição no Tate Modern em 2009 incluiu reproduções de seus trabalhos a partir do final dos anos 1960, com materiais orgânicos - sacos, feijões e legumes necessariamente renovados. Em 2015 contribuiu para a “Codice Itália”, o pavilhão italiano na 56ª Bienal de Veneza e no ano passado expôs na White Cube, em Londres, com “Alfabeto”, uma de suas primeiras séries.

Poema Enterrado no Espaço Cultural BNDES. Foto: Odir Almeida

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Todas imagens: © Jannis Kounellis

POR ADOLFO MONTEJO NAVAS A visita de Jannis Kounellis ao Rio de Janeiro em 2008 teve algo de acontecimento e de celebração, como exemplo do que a arte ainda pode dizer e significar. Um dos artistas mais emblemáticos da arte povera nos anos 1960/1970 - quando o movimento italiano contestava a riqueza do imaginário pop utilizando materiais primários e naturais ao invés dos industriais - o grego-italiano Kounellis sempre distinguiu-se pelo apurado equilíbrio entre sensibilidade e estrutura, como também pelas associações poéticas e, até mesmo, espirituais de seu trabalho. A sua lendária mostra com doze cavalos em 1969 30 ENTREVISTA

causando sensação na época- apostava numa nova sensorialidade, de implicações lingüísticas e ideológicas e menos elitista: uma valorização da potência do orgânico, da matéria, que no Brasil somente se sintonizava com a obra de Artur Barrio. A sua produção posterior, de essência sempre poética e trágica, possuidora de uma dramaturgia própria, vem ganhando há décadas dimensões reconhecidamente humanistas e uma abrangência cultural de peso ainda maior, numa obra que promete ser transtemporal. A entrevista com o artista mediterrâneo foi uma conversa de palavras densas, líricas e necessárias, sintonizadas com a história de nossa época. Um encontro na Galeria Projetti, no centro do Rio, na véspera da inauguração de sua mostra.


O senhor nasceu na Grécia e aos 20 anos de idade, movido pelo amor ao Renascimento, se mudou para Roma, onde vive até hoje,. É interessante saber qual é o lado grego que o senhor conservou, na medida em que a Grécia e a Itália representam uma continuidade histórica, cultural e artística. O império romano era bilíngue, ali se falava o latim e o grego. O que eu fiz foi uma pequena viagem, um deslocamento muito curto, de poucos metros. Poucos metros. Concordo, mas, o que resta de genuinamente grego na sua concepção artística? A idéia do trágico, que é algo ligeiramente diverso da idéia do dramático. Talvez, um pouco disto me tenha sobrado. Quando o senhor diz que é quase necessário criar uma dramaturgia em cada exposição, se refere a algo diferente da idéia de dramático que existe no teatro?

A sua produção posterior, de essência sempre poética e trágica, possuidora de uma dramaturgia própria, vem ganhando há décadas dimensões reconhecidamente humanistas…



Armoire


Falando da Itália, nas mais antigas pinturas renascentistas, o aspecto dramatúrgico é muito importante. As marcas de dramaticidade estão em todo lugar. A cabeça decepada de São João, por exemplo, é um forte indício disto, é categórica. Se Mondrian tivesse ouvido teria virado a cabeça para o outro lado, assim [Kounellis gira a cabeça]. Mas, eu sou um daqueles que fazem assim [Kounellis estende o braço e simula o ato de pintar]. Existe este forte senso de identidade. Nas pinturas italianas, a identidade destes momentos dramáticos permanece impressa em você como idéia fundamental e expressão de liberdade. É quase uma obra libertária? O ensinamento destas obras liberais é fundamental. E esta liberdade eu a carrego comigo. Tudo aquilo que eu fiz aqui em uma semana, eu o fiz porque sou livre. Fundamentalmente seria a razão de ser do artista? Isto mesmo. A liberdade, a independência e a dialética. A propósito desta última, eu não posso esconder de mim mesmo que o outro existe, e que existe na sua diversidade. Eu aceito e abraço este comportamento. O trabalho artístico deve ter certa respiração de fraternidade? Uma relação. Dá-se algo ao outro, que lhe retribui. 34 JANNIS KOUNELLIS

A dramaturgia é uma forma de iniciação da linguagem? Veja bem: aquilo que está aqui dentro é dramatúrgico. Não é absolutamente decorativo. A galeria, o espaço público, é desde sempre uma cavidade teatral. Sob este ponto de vista, as mostras pessoais que nascem na década de 1920, mudaram o destino do artista.


Um outro detalhe que tem a ver com a noção de cavidade é a relação com a arquitetura, com o espaço, a importância de gerenciar o espaço. Já na antiguidade aconteciam coisas dentro das cavidades das montanhas. Depois veio a idéia de labirinto e de verticalidade, mas antes não era assim. O teatro é uma cavidade, uma coisa que

contém e que determina o discurso, também social. É um espaço privilegiado. E o espectador como se posiciona nesta cavidade? O espectador entra para ver. Não está certo dizer que a galeria, pelo menos, inicialmente, era impulsionada por uma idéia comercial. A galeria é um espaço 35


público administrado por um particular. É um espaço laico. Também a mensagem é influenciada por isto. Caso contrário tudo se torna penoso, como vender sapatos. Naturalmente na galeria também se vende, mas, com liberdade. Quem compra algo é um amador, não pode ser um especulador.

Agora a globalização alucinante leva às galerias gente com muito dinheiro, disposta a pagar sem problemas.

Mas, hoje o mercado é dominante. Como o senhor entende este conflito? Eu penso que não existe mais a burguesia, que já foi uma classe revolucionária. Agora a globalização alucinante leva às galerias gente com muito dinheiro, disposta a pagar sem problemas. Você não pode dizer que uma obra sua custa 10.000 euros, porque seria muito pouco. Então é melhor não dizer nada ou que a sua obra não está à venda, que é uma coisa própria. Ou então, que custa um absurdo. Lembrando eventos do seu passado, a inserção dos cavalos na galeria de Roma em 1969 representou um momento importante na sua vida artística? Aquilo foi uma intuição para afirmar o papel do artista - que deve ser dominante. Recordo-me que àquela época em Roma, ou existiam quadros ou existia apenas um ponto vermelho [se refere ao ponto que se coloca nas obras vendidas]. Os cavalos anulam esta relação e confirmam o protagonismo do artista. Pensando na nossa história, Raffaello está sepultado no Pantheon junto aos Reis da Itália. Esta é uma relação que a civilização humanística e do Renascimento nos deixou, e não pode ser diferente, não existem compromissos neste sentido. Este pensar na liberdade e no humanismo, é próprio de uma pessoa enamorada pelo Renascimento.

36 ENTREVISTA


Sem título, 1979.

O Renascimento para o Ocidente é um destino. Na realidade ninguém pode fazer o belo, caso contrário acaba que você entra em uma confusão em que tudo vale. Pensemos no Partenon: quando se fala de Ocidente, as medidas de avaliação são aquelas. Isto é também uma boa explicação para o peso da história, da História da Arte. O passado nunca existiu. O passado é a última coisa que é igual à primeira. Parece um paradoxo: considerar o passado como algo que não existe e neste ínterim fazer trabalhos que representam uma ruptura do ponto de vista artístico. O extremo é igual ao início. Ao vir para cá - e é a primeira vez que venho ao

Brasil - pensei no matrimônio hebraico de Delacroix e no seu significado. Ele viaja à Argélia e assiste a este matrimônio, tem a liberdade de vê-lo. Existem muitos tipos de liberdade. Até mesmo o quadrado [se refere ao minimalismo, construtivismo] é uma idéia de liberdade, mas monoteísta, enquanto a outra posição [ referindo-se a arte povera] é politeísta e democrática. Isto me faz recordar um trabalho seu: uma vela com a frase "liberdade ou morte" Marat e Robespierre". Trata-se de um auto-retrato seu com uma vela, que é um auto-retrato da arte. Não sabia, naquele momento, o que me impulsionava a fazer algo assim. Talvez a emoção de ser ainda único enquanto sabemos que esta civilização é


multiplicada, e que os quadros que nos fizeram crescer são únicos, não são múltiplos. Eu também gostaria de repetir aqui uma idéia de unicidade. No momento atual, este é um desafio, porque nos encontramos diante de uma civilização antidialética. Diante de uma poesia de amor, o que significa a globalização? Existe a liberdade de um viajante, destas viagens que não tem fim, que reviram também a idéia de si mesmos. Por isto antes eu falei do matrimônio hebraico de Delacroix, porque é indicativo. Não é como o de David, como aqueles que roubam as Sabinas. E existe a liberdade de maravilhar-se perante um matrimônio. Eu penso que, hoje, como hoje, esta é a verdadeira modernidade. O artista deve manter esta ortodoxia do profundo, esta busca? Penso que, a partir da primeira mostra pessoal da década de 1920, o artista adquiriu um grande poder, como aquele dos literatos no século 19. Este era um precursor (iniciador) da liberdade, do mesmo modo em que o era a Mademoiselle de Avignon. A perturbadora personalidade de um personagem, como por exemplo Picasso,muda a história, a faz saltar, diante da visão pequeno-burguesa da paisagem impressionista. É da problemática que nasce a própria 40 JANNIS KOUNELLIS

dignidade, porque a alternativa é um lago imóvel, sem vitalidade, um cosmopolitismo maneirista. E nós estamos nos habituando a estar neste teatro de morte. Qual é a afinidade com Samuel Beckett, que surge em alguns trabalhos seus? Em Beckett existe a idéia de morte e uma revisão do conto. Ele procura mobilizar a idéia da língua: aquilo me agrada sem dúvida. Mas não me agrada menos Brecht. São duas coisas diversas. Talvez Beckett tenha em si a modernidade anglo-saxônica. Mas em Brecht existe pathos, energia, beligerância. O seu trabalho é muito enxuto, quase uma ferida. De qualquer modo o meu trabalho é uma ferida, mas isto está na nossa tradição. Incluindo Cristo. Também ele é cheio de feridas, que entram em toda a dramaticidade iconográfica. Nós estamos habituados a ela. Existe um quadro de Caravaggio no qual se coloca o dedo dentro da ferida. E se pode tocar tudo: não basta a identidade, serve o peso, que determina a realidade. Este peso está fora da órbita da mensagem televisiva, mediática, porque o peso tem suas propriedades, gera a sombra. E nós - italianos, espanhóis - somos fruto desta identidade portadores desta transformação que nasce das sombras.


Labirinto 27




eu me identifico mais nesta segunda definição, que denota pintor não como uma profissão, mas como uma disponibilidade.

O peso parece ser o ponto de partida do seu trabalho. O peso (o carvão) polariza o espaço, você faz algo como um afresco, sem uma iconografia. Ele determina o espaço e é extremamente indicativo como obscuridade, como moralidade. O peso contém uma indicação própria de moral e também uma literatura. Falando de seu trabalho no Rio, muitas coisas estão suspensas. Geralmente é a carne suspensa, aqui o que está suspenso são os tambores.. Isto é categórico, dominante e amoroso. É uma violência sem vítimas. È necessário apossar-se também do humor popular, que hoje é fora de moda.. Enquanto penso que é necessário que o povo volte à cena. Você considera que a cultura popular tenha um peso importante para o artista? O conceitualismo deixou tudo mais frio. No entanto, devemos considerar os 42 ENTREVISTA

outros como seres que respiram. Esta é a beleza, a sinfonia, como no teatro, onde todos respiram, os atores e o público. Curioso, pois Cildo Meirelles diz, mais ou menos, a mesma coisa em relação ao teatro. Para ele também a arte, como o teatro, é um lugar onde o público deve ir para assistir algo. Certamente, porque é um local. No cinema é diferente: você respira enquanto o outro é uma sombra. Existem sombras, fantasmas. Essa é a idéia fundamental da tradição: os fantasmas que respiram. As obras de arte povera tem uma lição de contemporaneidade viva, respeito a certo domínio da tecnologia. E também respeito ao minimalismo, que tem um manifesto. A arte povera não possui uma visão totalitária. É uma geração de artistas italianos do pósguerra tardio, que viu a abertura, a superação dos confins, uma crítica e uma


Sem título, 1969.

autocrítica. A saída do quadro faz parte da crítica e nos trouxe uma grande idéia de simbiose. Nos deslocou para observar os vizinhos - os franceses, os alemães, etc. - e viu-se que às vezes o outro tem razão. Esta é uma idéia de liberdade, como no Renascimento. Isto não me surpreende porque o conceitualismo anglo-saxão é muito diferente do conceitualismo sulamericano, que é mais contaminado, tem mais vida, não é tautológico. É evidente: existem vários tipos de conceitualismo. A única coisa boa que produziu o conceitualismo foi a superação do artesanato: o artista é livre e exatamente por isto é artista. Não é um artista porque é um grande pintor, mas porque é um pintor. Ao invés do maneirismo do pintor, valoriza-se a liberdade do pintor, a liberdade da imagem.

Você se considera um pintor e a pintura mudou muito nos tempos. É preciso ver o que se entende por pintura. O termo medieval de pintura servia para indicar aqueles que faziam afrescos. O termo grego -geógrafoindicava o pintor como um desenhista da vida, e eu me identifico mais nesta segunda definição, que denota pintor não como uma profissão, mas como uma disponibilidade. Durante a entrevista o senhor falou de emotividade perdida, de busca de afeto, de fraternidade. É como um espeleólogo que busca no fundo uma coisa perdida, que pode ser uma cidade perdida, um castelo perdido, mas também um continente perdido. E esta é a realidade da emotividade e do fazer arte, do fazer poesia: descobrir o quanto se perdeu. De fato, se diz "revolução" não evolução, ou seja, busca daquilo que foi perdido. 43


Sem tĂ­tulo, 1988


Sem título, 1989.

A idéia de evidenciar coisas pertencentes a mundos diferentes também faz parte da poesia? Não creio que exista muita diferença entre a poesia e a arte. O resultado da poesia é fonético, àquele da arte é visual. A diferença que existe é a mesma da distância entre a boca e os olhos: pouquíssima. A relação com a arquitetura que surge no seu trabalho: portas, materiais de construção, etc., depende também do peso, que a arquitetura tem na Itália? É preciso ver. Picasso dizia que as novas coisas são exatamente os velhos edifícios. É preciso ver uma nova arquitetura, e se pode colocar uma coisa dentro que pode ser uma nova decoração. Enquanto ao antigo, estes ambientes vividos como a fábrica, as igrejas, a sua relação é emotiva, dramática, e nunca decorativa.

espiritual. Também em sua reflexão existe um componente espiritual. Como é o seu relacionamento com os outros artistas povera? Ótimo, diria. Os artistas italianos são todos amigos, este é o bem e o mal. Quanto à espiritualidade, o Papa outro dia disse que nossa religião se toca, ou seja, é espiritual, mas precisa dizer também que a Madonna de Tiziano é uma bela mulher. É feita de pele e a atração da carne é alguma coisa de espiritual. Algo que sempre nos toca é quando o senhor fala sobre a liberdade, isto é, de que a liberdade tem fronteiras e ai de quem as ultrapasse! A liberdade não tem fronteiras, mas, para cada um de nós existe um nascimento diferente. A fronteira é um fato político. O resto é o nascimento, a disponibilidade deste nascimento. Se não és livre, é difícil ser artista, porque você não é confiável, ninguém acredita no que você faz.

Penso no seu trabalho e ele sempre tem - como em Pistoletto - uma forte carga 45



CÍCERO DIAS (1907-2003) - Um percurso poético

Bagunça, 1928. Coleção Particular.


EM FORMATO RETROSPECTIVO, O ARTISTA PERNAMBUCANO GANHA GRANDES MOSTRAS NAS PRINCIPAIS CAPITAIS DO PAÍS

POR DENISE MATTAR Em 1938, quando Cícero Dias realizou sua primeira exposição em Paris, o crítico de arte francês André Salmon o chamou de "selvagem esplendidamente civilizado", parafraseando um poema de Verlaine dedicado a Rimbaud. A definição continuou adequada a todo o percurso do artista, desde sua surpreendente aparição no cenário nacional, em 1928, até o sereno falecimento, em 2003. Na sua longa 48 FLASHBACK

carreira, o artista manteve, como poucos, a fidelidade a si próprio. Sempre foi inteiramente livre, fazendo o que lhe dava vontade, sem medo de críticas. Cícero Dias nasceu em 1907, no Engenho Jundiá, município de Escada, em Pernambuco. Saiu de lá ainda na adolescência para estudar no Colégio São Bento, no Rio de Janeiro. Em 1925, ingressou no curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, mas logo percebeu que


preferia a pintura. Em 1928, fez uma exposição de aquarelas na Policlínica, prestigiada por toda a intelectualidade carioca. Lírico, agressivo, caótico, sensual e poético, seu trabalho era muito diverso de tudo o que se produzia na época. A mostra sacudiu os nossos modernistas, estonteados pela força, estranheza e espontaneidade de sua obra. Em 1931, por ocasião da realização do Salão Revolucionário da Escola Nacional de Belas Artes, Cícero surpreendeu novamente com a convulsão criativa do painel "Eu vi o mundo...ele começava no Recife". Profuso, confuso e dramático, o trabalho, de 15 metros de

Lírico, agressivo, caótico, sensual e poético, seu trabalho era muito diverso de tudo o que se produzia na época.

À esquerda: Nostalgia, 1950, coleção Instituto São Fernando. Foto: Jaime Acioly. Acima: Família de luto, 1929, coleção Fundação Gilberto Freyre e Canavial, 1927, coleção Flavia e Waldir Simões de Assis Filho.


comprimento, mesclava memórias do engenho, do carnaval, imagens de cordel, lembranças românticas e devaneios eróticos, tudo simultâneo e onírico, real e irreal. A obra perturbou o público e deixou seus pares aturdidos. Depois dessa catarse, a produção de Cícero Dias tornou-se mais lírica. A mudança da aquarela para o óleo, interferiu na sua dinâmica, tornando-a mais narrativa, estática e bem construída. Ele nos faz respirar a pesada atmosfera das casas grandes, em um realismo mágico aparentado a Garcia Marques. As memórias do ar livre, entretanto, são luminosas. As plumas verdes do canavial abrindo-se em leques, as palmeiras confrontandose às casas multicoloridas, a musicalidade singela de um baile no campo. E por baixo dessa inocência, as descobertas do corpo e do sexo: o 50 CÍCERO DIAS

…recomposto no código do sonho, que é onde a vida, revivida em símbolo, ganha mais liberdade e espessura.


encontro no canavial, a moça nua lavando a roupa no rio. Tudo, segundo Roberto Pontual, "recomposto no código do sonho, que é onde a vida, revivida em símbolo, ganha mais liberdade e espessura". No mesmo período, quase como um contraponto às lembranças rurais, Cícero produziu um conjunto excepcional de obras com suas recordações do Recife. São crônicas visuais das casas debruçadas para o mar, dos sobrados e seus interiores, dos jardins com casais românticos, e das alcovas - com amores mais carnais... Em 1937, Cícero Dias foi para Paris, incentivado por Di Cavalcanti. Sua integração à cidade foi imediata e a já citada exposição na Galerie Jeanne Castel, um sucesso de público, de crítica e de vendas. O artista tornou-se amigo de Picasso e do poeta Paul Éluard e frequentou a intelectualidade parisiense. A eclosão da II Guerra veio descontruir esse momento precioso. Em 1943, ele se casou com Raymonde Voraz e decidiram morar em Lisboa. Nessa estadia, a obra de Dias sofreu uma mudança radical. Foi o momento de um artista eufórico e selvagem, exorcizando os fantasmas da guerra, ainda não terminada. Cícero pareceu saltar sobre nós e nos sacudiu em telas que fariam inveja aos "fauves", pela audácia, pela novidade das buscas cromáticas, dos traços ousados e dos temas irreverentes e irônicos. Ele simplificou o desenho, usou pinceladas brutas, cores inusitadas e estridentes, e tonalidades intensas e brilhantes. Tudo gritava e desafiava! Essa exacerbação da cor levou Cícero a se despedir da figuração e, aos poucos, ele alcançou sua fase abstrata. Bem longe do concretismo e de sua proposta de supressão da subjetividade, o abstracionismo de Dias é vibrante, quente e luminoso, mais próximo de Kandinsky. Em 1948, o artista fez os primeiros painéis abstratos da América Latina, na sede da À esquerda: Sem título, 1951. Acima: Galo ou Abacaxi, 1942-1944, coleção Flávia e Waldir Simões de Assis Filho.



O Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. Goleiro, 1920. Todas as fotos: Divulgação. Cortesia Centro Cultural Banco do Brasil.


Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco. Mais uma vez, sua obra causou intensa polêmica no Brasil, mas, na Europa, seu trabalho foi acolhido com entusiasmo. Cícero participou do Grupo Espace, e integrou o seleto elenco da galeria Denise René. No final da década de 1950, Cícero Dias começou a namorar, sem qualquer pejo, com a figuração. Retornou às suas origens trazendo de volta o imaginário lírico, permeado de memórias e referências de sua terra natal. Mas o fez em outro diapasão, incorporando suas descobertas ao longo da vida. Resgatou a delicadeza das mulheres sonhadoras e esvoaçantes dos anos 1920, manteve os traços largos e a audácia colorística dos anos "fauves", e apoiou essas imagens na estrutura geométrica de sua abstração. Essa vertente, que pintou até o final de sua vida, tem sabor mais doce, como fruta madura. A exposição "Cícero Dias - Um percuso poético", apresentada de fevereiro a setembro no Centro 54 FLASHBACK

Cultural Banco do Brasil, nas unidades de Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, recompõe a trajetória desse artista múltiplo, curioso e atrevido - que jamais teve medo de ousar. Um selvagem esplendidamente civilizado, civilizando negligentemente... por toda a sua longa vida!

Cícero Dias - Um percurso poético • Centro Cultural Banco do Brasil • Brasília • 8/2 a 3/4 São Paulo • 21/4 a 10/7 Rio de Janeiro • 1/8 a 25/9

Denise Mattar é curadora e crítica de arte. Foi coordenadora do Museu da Casa Brasileira (1985-1987), diretora técnica do MAM-SP (19871989) e coordenadora de artes plásticas do MAM-Rio (1990-1997).


Constant, 1962.


Foto: Paulo Jabur

ABRAHAM PALATNIK POR ELE MESMO

“Em 1949, comecei a pesquisar sobre luz e movimento até criar/fabricar os "Aparelhos Cinecromáticos". Em um dia de falta de eletricidade, a imagem da luz de velas se movendo nas paredes me deu inspiração para os cinecromáticos - caixa com lâmpadas cujo deslocamento era acionado por motor, criando imagens de luzes e cores em movimento. Foi com o cinecromático "Azul e roxo em seu primeiro movimento" que participei da I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951. O trabalho foi inicialmente recusado por não se encaixar Em um dia de falta de eletricidade, a nas categorias imagem da luz de velas se movendo tradicionais de nas paredes me deu inspiração para pintura ou escultura. Acabou entrando os cinecromáticos… porque a delegação do Japão deixou de vir. No final, acabou ganhando Menção Honrosa pelo júri internacional da Bienal.”

56 REFLEXO


Foto: Vicente de Mello

Cinecromรกtico, 1969.


“"Progressão", feita com jacarandá, surgiu da observação de sobras de toras da madeira que uma serraria jogava fora. São "pinturas" formadas por sequências de lâminas finíssimas de jacarandá montados ritmicamente, aproveitando a materialidade dos veios, nós e outras marcas naturais da madeira. Usei o mesmo sistema com cartão cortado. Esse traço inventivo e experimental aparece na série de pinturas com barbante e tinta acrílica de meados dos anos 1980. A pintura ganhou um volume sutil que produziu um efeito ótico e equilibrou o recurso precário do barbante com uma pesquisa sensível sobre o cinetismo e a possibilidade de expansão da forma e da cor através do movimento das linhas e do espectador em torno da obra.”

58 ABRAHAM PALATNIK


Progressão Jacarandá

…e a possibilidade de expansão da forma e da cor através do movimento das linhas e do espectador em torno da obra.

Foto: Vicente de Mello


Considero a intuição meu impulso inicial. A sensação de que algo artístico pode ser feito com uma situação não artística.

60 REFLEXO


W-432 Foto: Vicente de Mello

““Conheci em 1948, os artistas doentes mentais do Museu do Inconsciente por meio do pintor carioca Almir Mavignier que, junto com a Drª Nise da Silveira, implantou o ateliê no manicômio. A partir dessas visitas ao hospital, abandonei tintas e pincéis e não voltei mais aos figurativos que pintava até então. Esses artistas não tinham aprendido nada na escola, não frequentavam ateliês, e, de repente, surgem imagens tão preciosas. Dedici não mais pintar porque minha pintura não valia nada, era uma porcaria. Considero a intuição meu impulso inicial. A sensação de que algo artístico pode ser feito com uma situação não artística. No meu caso, esse caminho passa pela intuição, depois pelo pensamento/raciocínio junto com intensa experimentação, e, finalmente, por um processo atento e cuidadoso de construção.“


“Em 1964, criei os "Objetos Cinéticos", um desdobramento dos Aparelhos cinecromáticos. Participei da Bienal de Veneza de 1964, o que deslanchou minha carreira no circuito internacional. Os “Objetos Cinéticos” embutem a relação arte…Os “Objetos Cinéticos” embutem tecnologia, novas a relação arte-tecnologia, novas conquistas da ótica, virtualidade da imagem e conquistas da ótica, virtualidade a insatisfação com a da imagem e a insatisfação com a técnica pictórica do técnica pictórica do pincel. pincel. São aparelhos construídos por hastes ou fios metálicos que têm nas extremidades discos de madeira de várias cores. Hastes e placas são movimentadas por um motor, com variação de velocidade e direção.”

Abraham Palatnik – A reinvenção da pintura Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro 1/2 a 24/4/2017

62 ABRAHAM PALATNIK


Objeto CinĂŠtico


LIVROS lançamentos Gonçalo Ivo - Métrica da Cor Entrevista por Julie Karabenick Editora Contra Capa - 120 p. - R$ 75,00 O livro parte da entrevista que Gonçalo Ivo concedeu em inglês a Julie Karabenick, promotora do projeto curatorial Geoform, desenvolvido para a internet e dedicado à arte abstrata geométrica contemporânea. No diálogo que deu vida ao livro, descortinam-se novas cores da trajetória do artista, cujas inter-relações se nutrem tanto da geometria quanto da música e da poesia. Além da entrevista, o livro apresenta uma recensão bibliográfica sobre a obra de Gonçalo Ivo e a lista de suas exposições individuais. “Como se poderá observar, sua continuidade revela tanto uma polifonia insubmissa à tonalidade de partida quanto a influência de ambiências geográficas diversas no que se avoluma em solo próprio”, analisa o editor Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos.

Lucia Koch Dan Cameron e Lucia Koch Editora APC - 200 p. - R$ 120,00 A publicação traz uma seleção de trabalhos emblemáticos no contexto da produção de Lucia Koch, oferecendo ao público uma profunda análise sobre seus processos artísticos. O texto de apresentação da publicação, intitulado “Luz Ambiente” é escrito por Dan Cameron - curador da 13ª edição da Bienal de Cuenca (Equador, 2016) e Diretor Artístico da 8ª Bienal de Istambul (2003), nas quais Koch participou. O livro ainda conta com uma entrevista da artista com Jochen Volz, atual diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo e curador da 32ª Bienal de São Paulo (Brasil, 2016).


Marcia de Moraes Texto de Camila Belchior, Paulo Miyada Editora Cobogó - 152 p. - R$ 95, 00 Em Marcia de Moraes, realizado a partir de uma bolsa concedida à artista pela Fundação Pollock-Krasner, em Nova York, estão reunidas imagens de cerca de 60 obras, além de textos de Paulo Miyada e Camila Belchior. O livro bilíngue, em português e inglês, também apresenta uma entrevista feita por Lourenço Egreja sobre o processo de trabalho de Marcia. A artista, representada pela Galeria Leme, costuma fotografar o que a surpreende pela vida e depois usa isso em seus trabalhos nada convencionais. “São línguas, unhas, gargantas, peitos, folhas secas, pedras, ossos e cacos de vidro, entre outras coisas. E essas formas se dão nos espaços vazios, que deixo em branco, que não são preenchidos pela cor.

Sonia Gomes Texto de Solange Farkas, Ricardo Sardenberg e Paulo Nazareth Editora Cobogó - 144 p. - R$ 90,00 Com ensaios dos curadores Solange Farkas e Ricardo Sardenberg, e texto do artista Paulo Nazareth (no qual faz um perfil poético de Sonia e uma visita ao tempo através do trabalho da artista), o livro reúne obras produzidas entre 2004 e 2016. Em 2015, Sonia foi a única brasileira a participar da Bienal de Veneza. “A arte de Sonia Gomes amarra movimentos e tradições culturais que, de uma forma ou de outra, se relacionam à afirmação da memória, da identidade e do poder transformador da criação frente a situações de vulnerabilidade e invisibilidade. Pela própria natureza, remete à arte feminina da costura, que produziu um legado incomensurável — e, ainda assim, anônimo — de tramas, urdiduras e desenhos”, afirma Solange Farkas.


RESENHAS exposições

Galerias, feiras e estratégias ARCOmadrid • Madri • 22 a 26/2 POR SYLVIA CAROLINNE A ARCOMadrid, em sua 36ª edição, juntamente com a ZonaMaco, inicia a sequência anual de feiras do primeiro time para o qual toda galeria, seja ela jovem ou experiente, deve estar preparada para seguir. Já há algum tempo, os espaços das galerias foram expandidos não só com galpões, filiais e parcerias, mas passou a contar também com a "obrigatoriedade" de participação em eventos de arte para internacionalizar seus artistas e carteira de colecionadores. Isso sem falar na busca por projetos institucionais que tragam visibilidade ao time representado. Certamente, toda nova galeria, que está sendo pensada atualmente, já surge no papel com a linha do orçamento "feiras" incluída na planilha de custos para sedimentação do negócio. Lembrando que esse é um item que deverá sempre ser pensado como investimento em médio/longo prazo, já que o retorno normalmente demora um pouco a se ver mesmo que a galeria faça tudo absolutamente certo. Será menos frustrante quando perceber que o resultado final

imediato não será positivo. Aliás, raras as vezes que as vendas são concretizadas nas primeiras participações. Quando se encontra uma feira com organização e disposição como esta edição da ARCOMadrid, sente-se que o primeiro passo foi bem dado e com certeza a galeria já inicia com o primeiro item corretamente suprido. Caminhando pelos corredores largos e confortáveis, topa-se com algumas velhas conhecidas obras de arte com data de validade vencida no quesito "apresentação em feira" mas, continuando, vê-se de volta à feira boas propostas de obras pensadas a pessoas mais "pé no chão", isto é, que alinham na compra de obras de arte mas, por falta de lugar ou conhecimento, não querem comprometer nem orçamento nem espaço com peças monumentais que talvez não lhes apeteçam conviver daqui a alguns anos. Tirando as


grandes coleções e os bancos de investimentos profissionalmente preparados, vê-se a febre de comprar arte por puro investimento se dissipar e voltar um público, na maioria jovem, que sente simplesmente gosto em adquirir arte por paixão e por deleite. Enfim, seres normais, mas nem por isso menos interessados em aquisições, atingindo assim o objetivo final de toda galeria participante. Com pequenos formatos voltando às feiras, é possível aumentar ou iniciar suas coleções com Anish Kapoor, Dali, Julian Opie ou apostar em jovens artistas vindos de outras partes do mundo como Johno Ho, Veronika Kellndorfer, Carme Nogueira e AnneMarie Schneider. Dentre os brasileiros artistas, como Tulio Pinto e Marilá Dardot, vão sedimentando suas carreiras internacionais e se colocando em coleções mundo afora, com bons contatos institucionais para sacramentar o que demonstram as vendas. Ponto para as galerias que optaram pelos artistas certos. Enfim, no lugar certo e com os artistas certos, agora só falta as galerias contarem com a passagem das pessoas certas e assim fechar o circuito com "chave de ouro" e bons retornos. Tudo em apenas cinco dias! Simples, não?

Se você, por acaso, encontra-se no grupo de futuros galeristas, pense nisso e... boa sorte!

Sylvia Carolinne é artista visual e graduada em engenharia civil e moda. Atua como correspondente intenacional da Dasartes.


Em 2016, nosso concurso para jovens artistas recebeu número recorde de participantes. Foram mais de 400 inscrições vindas de todas as regiões do Brasil e até algumas estrangeiras. A alta qualidade das obras recebidas tornou a decisão muito difícil e foram dias antes que o Conselho Editorial e nossa equipe pudessem selecionar os 15 finalistas, que foram publicados na edição de Janeiro de 2017. Com mais de 8 mil votos aos finalistas pelas redes sociais e em nosso site, o público selecionou Pedro Gandra como o segundo vencedor, desta vez pelo voto popular. A primeira vencedora foi Leonora Weissmann indicada pelos críticos e Conselho Editoral Dasartes (Veja matéria na edição de Fevereiro). Nas páginas seguintes, destacamos alguns dos artistas mais votados no site e facebook e a matéria com o jovem artista de apenas 21 anos. Em breve anunciaremos um novo concurso para jovens autores. Fiquem atentos as mídias sociais e site Dasartes. 68 GARIMPO


Transbordação, 2015, 2016.

“Muito lindo Dora, parabéns!“ Pedro Costa no Facebook

DORA SMEK

Identidade nº 02

“Maravilhoso!!!“ Gabriela Burdmann no Facebook

Sem Título, 2013.

TATIANA CIPOLI

“Vou compartilhar! Que lindo“ Eliana de Macedo no Facebook

As extrativistas de sempre-vivas, 2014.

“muito consistente. técnica única e conceitualmente forte.“ Paprika no Facebook

ANGELA OD

“…ótima técnica e profunda e afetiva observação da natureza. Nila põe a alma em seus trabalhos.“ Maria Tereza Lemes no Facebook

NINA NONATO NEVES

O cara da espada em ação promissora., 2016.

ALBERTO OLIVEIRA


PEDRO GANDRA Índigo, 2017.

POR ELISA MAIA

O carioca Pedro Gandra é o vencedor pelo voto popular do concurso Garimpo, que na edição de fevereiro teve Leonora Weissmann como a escolhida pelo conselho editorial. Com apenas vinte e um anos, Pedro apresenta uma produção de pintura que traz como temática recorrente paisagens inventadas, "ambientações sem identificação precisa", que não são descritas, mas apenas insinuadas. Habitando esses espaços sugeridos e sugestivos, surgem formas simples de

figuras humanas deslocadas, cujos traços indefinidos às vezes parecem ser apagados, dissolvidos ou absorvidos pelo entorno. "Os vazamentos de tinta, as áreas que ultrapassam e entram em outras quebrando uma situação de perspectiva não são intencionais, mas criam ruídos que impulsionam o trabalho e me instigam criando sugestões de interpretação." Índigo (2017), um de seus trabalhos mais recentes, evidencia essas e outras questões marcantes em suas


pinturas - a intensidade cromática, uma atmosfera que aponta para um universo onírico, de figuras espectrais e paisagens de contornos fugidios, e a celebração do acaso que acolhe os ruídos e vestígios do processo. Índigo recebeu o primeiro tratamento em 2012 e de lá pra cá já foi retrabalhado inúmeras vezes - "as várias camadas de tinta sobrepostas encobrem ideias que são refeitas inúmeras vezes. Não são desmanchadas, permanecem ali encobertas na pintura, como indícios visíveis." A escala é pensada por Pedro como outro elemento importante em sua pesquisa. Há uma descontinuidade intencional entre a escala das paisagens e das figuras humanas, que às vezes aparecem mínimas no espaço da tela, "criando, assim, uma soberania da paisagem em relação à representação da figura".

…uma atmosfera que aponta para um universo onírico, de figuras espectrais e paisagens de contornos fugidos, e a celebração do acaso que acolhe os ruídos e vestígios do processo.

Atualmente o artista participa da exposição coletiva Somos Todos Clarice, que estará aberta ao público até abril de 2017, na Galeria do Lago no Museu da República, e ainda este mês o artista inaugura exposição no Martha Pagy Escritório de Arte, ambos no Rio de Janeiro. Elisa Maia é formada em direito e letras e mestre em literatura, cultura e contemporaneidade. Interessa-se especialmente pelas relações entre literatura e artes visuais.

Ponto e vírgula ou pregadora, 2015.


COLUNA DO MEIO Fotos: Paulo Jabur

Quem e onde no meio da arte

José Tannuri, Elvis Almeida e Vandinha Klabin

Lucas Lins e Maria Lynch

Projeto Arte Pública Oi Futuro Flamengo Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Machado e Floriano Romano eGabriela Gina Elimelek

Manoel Novello e Cláudia Leite

Rodrigo Andrade, Paola Colacurcio e Lucas Lins

Fotos: Paulo Jabur

Cláudia D'Arcy e Fábio Szwarcwald

Lucas Pessoa, Adriano Pedrosa e Mauro Saraiva

Marcos Chaves e Anna Bella Geiger

Entre Nós - A figura humana no acervo do MASP CCBB RJ Rodrigo Moura e Vandinha Klabin

Fábio Cunha e Karen Machado

Malu Fatorelli e Roberto Carneiro

Danon Lacerda, Raquel Iantas e Gisele Fróes


Fotos: BriefCom

Hans Blankenburgh, Zyan Zein, Katia Wille, Eduardo Guise e Felipe Van der Haagen

Katia Wille, Antoine Powels e Laurence Neveau

Katia Wille Centro Cultural Justiça Federal Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Valerie Beaubeau e Oriana Cavaleros e Gina Elimelek

Jacinema, Jean Pascal Chalard e Nadja Pimentel

Joao Sobral, Soraya Albuquerque e Katia Wille

Katia Wille e Ricardo Melo

Inauguração Galeria Clima em Miami e mostra de Miguel Rio Branco


ALTO FALANTE

Por Guy Amado

Literartimos 2 Na coluna anterior, falei das relações entre a literatura e as artes visuais, tema que retomo agora para enfocar um caso singular e razoavelmente paradigmático desta dinâmica, agora ambientado no Modernismo. Trata-se do conto "A obra-prima desconhecida", de Honoré de Balzac, escrito em 1831, e, posteriormente, revisado para incorporar sua "A comédia humana" (1846), e de sua repercussão e influência posterior no meio artístico. Nele, o autor descreve a saga - situada no início do século 17 - de um velho mestre pintor, Frenhofer, que se debate há coisa de uma década na execução daquela que se pretende sua obra-prima, um retrato de sua amada Catherine Lescault, uma cortesã. Sempre à espera de ser finalizada, o pintor considera que sua empreitada seja a mais perfeita tradução mimética da realidade já alcançada, almejando a intransponível passagem do visível para o tangível. Frenhofer se recusava a mostrar sua pintura a qualquer pessoa enquanto não a considerasse terminada. Entram em cena o também artista e amigo de Frenhofer, Porbus, pintor da corte de Henry IV, e um jovem que viria a se revelar como ninguém menos que (o então aprendiz) Nicolas Poussin. Após visitas mútuas aos ateliês, um dia Porbus e Poussin, acompanhados de Gillette, namorada deste último, visitam Frenhofer na expectativa de que o ancião finalmente consinta em lhes mostrar sua "magnum opus". O velho se encantou com a beleza de Gillette e acabou por permitir que os convidados pudessem contemplar a famigerada tela. Mas qual não é sua surpresa - e decepção - quando se defrontam com o quadro: não há ali "nada", ou ao menos nada que sejam capazes de vislumbrar claramente. O que se lhes apresenta aos olhos é apenas uma massa confusa de cores e grafismos bizarros. Após atenta observação e ainda atônitos, os visitantes percebem um pequeno detalhe emergindo em meio ao "caos de cores, tons, nuanças indecisas" que tomava a tela; a ponta de um pé, magnificamente pintado, como flutuando na profusão de manchas e formas disparatadas que compunham aquele "muro de pintura", nas palavras de Poussin. Tornava-se claro o que sucedera: pintado, retocado e corrigido "ad nauseam" por seu autor, a tão perseguida obra-prima acabara por se dissolver em uma espécie de nebulosidade informe e dispersa resultante do afã do pintor em atingir a ansiada "carnalidade tátil". No processo interminável da busca pela mais perfeita completude, o artista fizera o quadro sucumbir aos próprios excessos. A partir da reação desalentadora de seus visitantes, o velho mestre desconcertou-se e entrou em choque; no dia seguinte, Porbus é informado que Frenhofer perecera durante a noite, após atear fogo em suas telas e em seu estúdio. O que essa breve novela apresenta em registo alegórico é a narrativa de um processo criativo marcado pela obsessão, a saga desventurada de um pintor confrontado com a impossibilidade de finalizar aquela que seria, supostamente, sua obra-prima. Quando finalmente considerada terminada, revela-se não mais que uma massa amorfa de tinta; a busca excessiva pela perfeição acabou por desfazer a representação. O que chama a atenção, no entanto, é o quanto este conto viria a repercutir posteriormente no meio artístico, em sua dimensão mítica e alegórica. Talvez por sua qualidade atemporal de trazer à baila um tema sempre inquietante e inerente a práxis artística, "A obra-prima desconhecida" se revelou fortemente influente para gerações posteriores de autores e artistas, sendo evocada mais e menos explicitamente em Zola (que a reinterpretou em "L'œuvre", baseando metaforicamente seu protagonista em seu outrora muito amigo Cézanne), Henry James, Paul Valéry e Picasso, dentre muitos outros. Cézanne chega


Em busca de uma "obra-prima" ou simplesmente em busca daquilo que levará à próxima peça e dará sentido à atividade artística, é este um vetor a conduzir sempre o ato criativo. mesmo a afirmar famosamente (e, certamente, em tom angustiado) "Frenhofer ces't moi!". Picasso se mudaria para a rua parisiense onde supostamente se localizava o ateliê de Porbus (onde, aliás, produziria seu "Guernica"), além de ilustrar uma reedição especial do conto. Houve também uma saborosa adaptação cinematográfica, operada por Jacques Rivette em 1991, "La belle noiseuse". A narrativa de Balzac representa um de seus esforços mais intensos na análise da condição de ser um artista (ele próprio, diga-se de passagem, também iniciado formalmente nas belas-artes), antecipando questionamentos que, se por um lado assombraram desde sempre esta práxis, mostravam-se naquela altura em especial sintonia com os desígnios turbulentos da arte moderna que emergiria um pouco mais tarde, no quarto final do século 19 e é curioso notar que tal influência se estendia também a personalidades não diretamente ligadas às artes, como é o caso de ninguém menos que Karl Marx, leitor contumaz do francês; consta que ele teria instado seu parceiro Engels a ler "A obra-prima desconhecida", enfatizando o que via como uma "carga irônica fascinante" naquela peça literária. O conto se prova assim dotado de uma enorme capacidade de identificação no meio artístico então emergente e em gerações posteriores, fosse pela potência arquetípica da personagem de Balzac como pela problematização do "métier" pictórico (e por extensão artístico) sutilmente desenvolvida ao longo da narrativa. Já consagrada, a lendária saga de Frenhofer seguiu alimentando profundas questões entre artistas de diversas gerações posteriores, até a atualidade. O aspecto que mais interessa destacar, para além do tensionamento alegórico em torno do que seria o fator de êxito ou "sucesso" - no caso, a "perfeição" buscada pelo artista - reside no fato de Balzac centrar seu foco, de modo seminal, nas já referidas lacunas ou intervalos existentes entre intenção do artista, expectativas (do artista e do público receptor) e realização. Fatores que serão posteriormente enunciados e explorados de maneira mais sistemática por inúmeros artistas, como Duchamp, Sol LeWitt, Kippenberger ou John Baldessari - embora movidos por diferentes pulsões. Também a ansiedade obsessiva que consumia e impelia a personagem balzaquiana pode ser vislumbrada no processo de criação de diversos grandes autores modernistas e atuais, não raro identificada como uma instância muito próxima do sentimento do "fracasso": essa pulsão inescapável, inerente ao processo artístico e de resto fundadora dessa práxis. Uma pulsão a ser encarada também como um vetor de potência, como assinala a acadêmica Sara Jane Bailes (em seu "Performance Theatre and the Poetics of Failure"): ao discorrer sobre a "marca do imperfeito" no processo artístico, insiste sempre - e muito acertadamente - na possibilidade de que "o fracasso possa ser intencionalmente produtivo", que nada mais é do que ecoar a lucidez negativa de Samuel Beckett, que via o falhanço como "elemento constituinte da condição existencial que torna a expressão possível". Em busca de uma "obraprima" ou simplesmente em busca daquilo que levará à próxima peça e dará sentido à atividade artística, é este um vetor a conduzir sempre o ato criativo. Guy Amado é crítico de arte e curador independente. Vive atualmente em Portugal, onde realiza doutorado em Arte Contemporânea.


Lançada em 2008, a Dasartes é aprimeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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