Revista Dasartes Edicao 60

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JOHANNES VERMEER ANSELM KIEFER CANDIDA HÖFER GIANGUIDO BONFANTI ANA ELISA EGREJA CAROLINA MARTINEZ


DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin PRODUÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com DESIGNER Arruda Arte & Cultura SUGESTÕES E CONTATO dasartes@dasartes.com APOIE A DASARTES Seja um amigo Dasartes e receba a revista impressa em casa em recorrente.benfeito ria.com/dasartesdigital Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ redacao@dasartes.com

Capa: Pieter de Hooch, A enfermeira, a criança e o cão, 1658-1660. © Fine Arts Museums of San Francisco.

Contracapa: Johannes Vermeer, A Leiteira, 1658-1659. © Amsterdam, The Rijksmuseum.


04 De Arte a Z

66 Coluna do meio

08 Agenda

64 Notas de Mercado

60 Resenhas

68 Alto Falante

CAROLINA MARTINEZ

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22 JOHANNES VERMEER CANDIDA HÖFER

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ANSELM KIEFER

ANA ELISA EGREJA

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GIANGUIDO BONFANTI

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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte

CARLOS FAJARDO CRIA OBRAS INÉDITAS PARA MOSTRA NO INSTITUTO LING Carlos Fajardo é um dos mais atuantes artistas brasileiros, desde o final dos anos 60 até os dias atuais. Sua nova mostra traz oito obras - entre fotografias, esculturas e instalações - criadas especialmente para o Instituto Ling em Porto Alegre. Nessa mostra, que tem a curadoria de Henrique Xavier, Fajardo trabalha com materiais como vidros, espelhos e superfícies reflexivas, transparentes e coloridas, combinadas entre si e também associadas a fotografias de grandes dimensões, delicados tecidos, caixas e estruturas tridimensionais. Até 5/8.

Vito Acconci morre aos 77 anos

Acusação de violação de legado

Fundação Cultural Montblanc

Nos EUA

No Guggenheim

Novo time de curadores

Sua carreira ganhou destaque no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Um dos pioneiros da performance, Acconci escandalizou o circuito de arte de Nova York em 1977 com a obra "Seedbed", em que se escondia abaixo de um palco de madeira e se masturbava proferindo fantasias sexuais sobre os visitantes caminhando acima dele. Leia entrevista exclusiva à Dasartes em dasartes.com.br.

Três bisnetos de Peggy Guggenheim estão acusando a Fundação Solomon R. Guggenheim em Nova York de desafiar os desejos do colecionador. Segundo eles, as obras doadas pela colecionadora ao museu, e expostas em sua mostra atual, deveriam estar presentes na alta temporada de Veneza, de acordo com a vontade de sua avó, falecida em 1979. Sua coleção inclui nomes como Duchamp, Picasso e Brancusi.

A Fundação Cultural Montblanc, sob a nova presidência dos curadores Sam Bardaouil e Till Fellrath, anuncia um novo time de seu “Curatorium” internacional, dando as boas-vindas a Anne Barlow, Sunjung Kim, Jean de Loisy, Franklin Sirmans e Jochen Volz, que atualmente é o novo diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo e curador do Pavilhão do Brasil na 57ª Bienal de Veneza 2017.

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RESULTADO DO FESTIVAL SESC_VIDEOBRASIL 20ª edição acontece ainda em 2017

Ao todo, 1.922 artistas de 109 países inscreveram obras no Open Call do 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Os brasileiros Ana Pato, Beatriz Lemos e Diego Matos e o português João Laia trabalharam ao lado da curadora geral, Solange Farkas, e foram responsáveis pela seleção dos 50 artistas de 25 países que apresentarão seus trabalhos nesta nova edição. Veja em nosso site (dasartes.com.br), a lista completa dos selecionados que participarão do festival na Associação Videobrasil, que acontece entre outubro de 2017 a janeiro de 2018, em São Paulo.

Novos espaços INN GALLERY ARTE & DESIGN chega a São Paulo como o mais novo espaço de arte e design e estreia com uma lista de artistas renomados com um novo conceito em um ambiente exclusivo para artistas e designers, propondo o melhor de cada segmento e suas conexões. Os principais objetivos da galeria são direcionar, inserir e promover artistas no mercado nacional e internacional, oferecendo a galeria virtual (inngallery.com.br) e promovendo ações especiais ao longo do ano. RUA DR. MELO ALVES, 138 JARDINS, SÃO PAULO

Para protestar “Minha arte é geralmente social e política independentemente de quem está na Casa Branca, mas minhas preocupações e frustrações são amplificadas pela eleição de Trump”. Palavras do artista Shepard Fairey que, em conjunto com Ai Weiwei, lançou peças de plataformas de skate com intervenções artísticas incluindo árduas críticas ao aniversário de 100 dias de Donald Trump como presidente.

A GALERIA DE ARTE IBEU muda de endereço e abre suas portas em uma casa do Jardim Botânico com uma nova exposição que marca a comemoração dos 80 anos do Ibeu, “A Insistência Abstrata, nas coisas”, com curadoria de Cesar Kiraly. Para a coletiva, foram selecionadas ao todo 11 obras emblemáticas dos artistas Anna Maria Maiolino, Bruno Belo, Claudia Hersz, Eloá Carvalho, Gisele Camargo, Lena Bergstein, Manoel Novello, Paula Huven, Raul Leal, Rosângela Rennó e Ubi Bava. RUA MARIA ANGÉLICA, 168 RIO DE JANEIRO 5


GIRO NA CENA

Anunciado os indicados ao Turner Prize Tate Britain anunciou Hurvin Anderson, Andrea Büttner, Lubaina Himid (foto) e Rosalind Nashashibi como finalistas ao Prêmio Turner 2017. Suas obras estarão na Galeria de Arte Ferens em Hull de 26/9/2017 a 7/01/2018. Para o vencedor do prêmio, serão concedidas 25 mil libras, além de 5 mil libras a cada um dos outros artistas selecionados. O prêmio final será anunciado em 5/12.

OPAVIVARÁ! FAZ PERFORMANCE EM MUSEU DE NOVA YORK No dia 5 de maio, o Museu Guggenheim apresentou três obras recém-adquiridas, dos artistas Amalia Pica (1978, Neuquén, Argentina), Naufus RamírezFigueroa (1978, Cidade da Guatemala) e do coletivo OPAVIVARÁ! (Rio de Janeiro). Com ferramentas básicas de cozinha montadas no corpo que se tornam instrumentos de percussão, a performance funde celebração e protesto evocando desfiles de carnaval, bandas marchando e demonstrações antigoverno locais. A noite marcou o primeiro evento público apoiado pelo recém-formado Círculo LatinoAmericano do Guggenheim, um grupo de patronos e colecionadores dedicados à conscientização e apoio à arte contemporânea latino-americana.

Coleção do MoMA em Paris O Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) está emprestando 200 obras de arte para a Fundação Louis Vuitton em Paris. A exposição “Etre Moderne: Le MoMA em Paris” apresentará obras-chave de todos os seis departamentos do MoMA, incluindo exemplares de Paul Cézanne, Marcel Duchamp, Pablo Picasso e Ellsworth Kelly. Algumas obras, como as 32 latas de sopa Campbell de Andy Warhol (1962), nunca foram mostradas antes na França. De 11/10/2017 a 5/3/2018.

6 DE ARTE A Z

VISTO POR AÍ

“Infinity Mirrored Room - Todo o amor eterno que eu tenho pelas abóboras", 2016, é uma das obras recentes de Yayoi Kusama que estão expostas no museu de Hirshhorn e no jardim da escultura em Washington, EUA.



JAPAN HOUSE PRIMEIRA EXPOSIÇÃO DA NOVA INSTITUIÇÃO EM SÃO PAULO REVELA UMA COLEÇÃO DE OBRAS QUE FORMAM UMA CRONOLOGIA VISUAL DE MAIS DE 150 ANOS DE ARTE EM BAMBU

Rico pelas suas múltiplas aplicações como recurso natural, o Japão utiliza esse elemento simples como um ingrediente secreto que permeia os meandros da vida cotidiana do país. Para revelar a leveza, a flexibilidade e a força características da planta, poderão ser apreciadas esculturas de Chikuunsai IV Tanabe, Hajime Nakatomi, Shigeo Kawashima e Akio Hizume, principais nomes da arte do bambu no Japão hoje. Os quatro artistas apresentam obras no contexto da arte contemporânea, em vertentes e escalas diversas, mostrando as muitas possibilidades de trabalho com o material. Outro destaque refere8 AGENDA

se à importância do bambu como coadjuvante no cotidiano da produção rural do país, representada aqui pela seleção de peças de Kazuo Hiroshima, artesão rural que orientou sua vida por um forte sentido de dever social ligado a seu trabalho artesanal. A exposição retrata ainda histórias do Japão que reforçam a onipresença do bambu na gastronomia, design de objetos, artes marciais, cinema e música.

BAMBU, Histórias de um Japão • Japan House • São Paulo • 6/5 a 9/7





CAROLINA MARTINEZ POR ELISA MAIA Para compor seus trabalhos, Carolina Martinez se debruça sobre elementos que definem e estruturam espaços arquitetônicos e superfícies urbanas, como paredes, tetos, pisos, ou, ainda, pontes, empenas, muros e fachadas. Por meio de pintura, fotos Polaroid, "assemblages" ou instalações "sitespecific", seus trabalhos exploram as relações entre presença e ausência, entre o que é visto e o que se mantém invisível ou escondido nesses espaços, enfatizando os vazios e apontando para o que se encontra 12 GARIMPO

para além dos limites concretos do visível, em lugares que só podem ser alcançados por meio da imaginação ou da especulação. "Procuro por conexões que existem entre espaços urbanos invisíveis, arquitetura e cenas da vida cotidiana que muitas vezes passam despercebidas." Para estimular esse olhar mais atento e demorado, que vai de encontro ao olhar do espectador contemporâneo apressado e saturado de informações visuais Carolina propõe deslocamentos sutis e distorções sugestivas em lugares vazios, geralmente negligenciados pelo olhar


cotidiano. Um exemplo disso é quando investe algum elemento ordinário da arquitetura, geralmente imperceptível, como um rodapé, de um "status" escultórico, propondo novas perspectivas e, consequentemente, formas alternativas de percepção do espaço. Para isso, seu trabalhos se beneficiam de uma estética sutil e delicada cuja potência deriva da escassez de elementos. Por meio de suas imagens silenciosas, percebe-se que muitas vezes, quanto menos há pra se ver, mais nos empenhamos em olhar. Para saber mais, acesse www.carolinamartinez.com.br

Elisa Maia é doutoranda do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

Seus trabalhos exploram as relações entre presença e ausência, entre o que é visto e o que se mantém invisível ou escondido nesses espaços…

À esquerda: Sem Título III, (díptico), 2016. Acima: Instante I, (políptico), 2016.


Foto: Paulo Jabur

ANSELM KIEFER POR ELE MESMO

EM HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE AUGUSTE RODIN, MUSÉE RODIN DE PARIS DÁ LIBERDADE AO ARTISTA CONTEMPORÂNEO ANSELM KIEFER PARA RECRIAR, CONECTAR E CELEBRAR SUAS OBRAS EM COMUM

“Minha percepção da obra de Rodin mudou ao longo do tempo. Marcou-me sobretudo sua atitude, seu processo criativo. Rodin foi um iconoclasta. Gosto de sua maneira de fragmentar, Ele tinha esse ritmo de artista que me reconsiderar suas obras, reutilizá-las, e o agrada, um ritmo da atualidade em ritmo com que ele direção ao infinito. consegue criar. Ele tinha esse ritmo de artista que me agrada, um ritmo da atualidade em direção ao infinito. Se você destrói algo, é agora, é um ato no presente, que você vai reutilizar e recombinar em outro momento também no presente. Mas a distância entre esses dois momentos é o ritmo. O instante que separa a destruição da ressurreição. Essa é uma percepção muito católica, da morte e da ressurreição.” 14 REFLEXO


Anselm Kiefer, Auguste Rodin: Les CathÊdrales de France. ŠAnselm Kiefer. Foto: Georges Poncet.


“Eu descobri Rodin com Rilke e o livro que dedicou a ele em 1903. Revi o livro este verão, há passagens muito bonitas e outras muito patéticas. Em seguida, vi imagens de suas esculturas. Não conhecia seus desenhos, descobri-os mais tarde por meio de Beuys. Alguns deles eram muito semelhantes aos de Rodin. Lembro-me especialmente de que o museu era muito diferente do de hoje. No novo Museu Rodin, após sua reforma e reabertura, acho especialmente interessante a nova forma de expor as obras do acervo e a apresentação dos fragmentos, muitas vezes de reexposição com obras dele e, especialmente, a apresentação de fragmentos de esculturas, até de refugos. Dão-nos uma visão mais moderna do artista e revelam mais sobre seu processo criativo.”

16 ANSELM KIEFER


…acho especialmente interessante a nova forma de expor as obras do acervo e a apresentação dos fragmentos, muitas vezes de reexposição com obras dele e, especialmente, a apresentação de fragmentos de esculturas.

Auguste Rodin, Absolution, 1900. Foto: P. Hisbacq.


Anselm Kiefer, Sursum corda, 2016, ©Anselm Kiefer. Foto: Georges Poncet.

Perfeição não é sempre triste. Ela pode ser o momento em que algo alcança o êxito.

18 REFLEXO


“Há uma preocupação semelhante à de Rodin, especialmente no processo criativo, a relação com a natureza e a busca por uma verdade. Para Rodin, não é tanto a perfeição que mais lhe interessa, mas a verdade. Perfeição não é sempre triste. Ela pode ser o momento em que algo alcança o êxito. Mas o que motiva o artista é o processo, o fluxo permanente. Por exemplo, na série de palheiros de Monet, o que é interessante este é a etapa, a hora, o instante que falta entre dois quadros, e esta ausência também gera um processo, um ritmo.”


“Minha obra precisa partir de um choque, sem o qual eu não me torno ativo. Pode …eu coloco a tela na minha frente ser um poema e começo a me fazer perguntas. que eu de repente compreendo, um Um diálogo é travado entre mim e trecho de música o ainda-não-quadro. que me anima, uma paisagem que nunca tinha visto… É preciso haver primeiro uma agitação, eu tenho que ser subjugado por algo, como Jacob quando luta contra o anjo. Então eu experimento algo que pode corresponder a isso, eu mergulhar na matéria, na cor. No primeiro momento, faço de forma quase inconsciente, produzo algo que eu não sei bem o que é. Então eu coloco a tela na minha frente e começo a me fazer perguntas. Um diálogo é travado entre mim e o ainda-não-quadro. Depois de ter entendido provisoriamente o que o quadro quer me dizer, eu continuo, após certo tempo o interrogo novamente, e isso se repete algumas vezes, mas pode parar após alguns anos. Lá fora, no depósito, eu tenho muitos quadros começados, alguns já há 40 anos, que estão esperando. Eles descansam, o depósito é seu túmulo, eles precisam dele para ressuscitar.”

Kiefer – Rodin Musée Rodin, Paris, França - 14/3 a 22/10/2017 The Barnes Foundation, Filadélfia, EUA - 17/11/2017 a 12/3/2018

20 ANSELM KIEFER



VERMEER E OS MESTRES DA PINTURA DE GÊNERO

Acima: Gabriel Metsu, Jovem mulher lendo uma carta, 1664-1666. © Dublin, National Gallery of Ireland. À direita: Johannes Vermeer, A rendeira, 1669-1670. © RMN-Grand Palais (musée du Louvre) / Gérard Blot.


EM COLABORAÇÃO COM A GALERIA NACIONAL DA IRLANDA E DA GALERIA NACIONAL DE ARTE, EM WASHINGTON, O MUSEU DO LOUVRE APRESENTA UMA MEGAEXPOSIÇÃO ORGANIZADA EM TORNO DA FIGURA HOJE TÃO FAMOSA DE VERMEER. REUNINDO 12 PINTURAS DO ARTISTA PELA PRIMEIRA VEZ DESDE 1966, A EXPOSIÇÃO EXPLORA A REDE FASCINANTE DE SUAS RELAÇÕES COM OS OUTROS GRANDES PINTORES DO SÉCULO DO OURO HOLANDÊS

POR BLAISE DUCOS, ADRIAAN E. WAIBOER E ARTHUR K. WHEELOCK JR. A lenda de um artista isolado em seu mundo, inacessível e silencioso, desaparece sem que Vermeer seja visto como um mero pintor entre outros. Ao contrário, ao entrar em contato com o outro, seu temperamento artístico é individualizado. Muito mais que um pintor de gêneros, Vermeer aparece como um pintor de metamorfoses. Vermeer tem o apelido de "Esfinge de Delft". Essa expressão famosa foi lançada pelo francês Théophile Thoré-Bürger quando revelou o pintor ao mundo no final do século 19 e solidificou grande parte de sua personalidade artística. O mito do gênio solitário fez o resto. Johannes Vermeer (1632-1675), contudo, não atingiu o seu nível de maestria e criatividade permanecendo escondido da arte de seu tempo. Esta exposição compara sua obra à de outros grandes artistas da "Idade de 23


Ouro", como Gérard Dou, Gerard ter Borch, Jan Steen e Pieter de Hooch, Gabriel Metsu, Caspar Netscher ou Frans van Mieris, inserindo-o em uma rede especializada na representação de cenas elegantes e refinadas - esta representação aparentemente inócua do cotidiano, um verdadeiro nicho mesmo dentro do mundo da pintura de gênero. Esses artistas inspiraram uns aos outros e competiam entre si. A segunda metade do século 17 marcou o pico do poder econômico global das Províncias Unidas. Os membros da elite holandesa, que viviam a glória em seu estatuto social, exigiam uma arte que refletia essa imagem. A "nova onda" da pintura de gênero nasceu no início dos anos 1650: os artistas começaram a se concentrar em cenas idealizadas e muito bem montadas, em encenações da privacidade, com homens e mulheres em situações de civilidade orquestrada. Embora esses artistas tenham atuado em diferentes cidades, suas obras mostram fortes semelhanças no estilo, temas, composição e técnica, como veremos no percurso por obras selecionadas a seguir. Essa rivalidade artística dinâmica contribuiu para a qualidade excepcional de seus trabalhos. A PESAGEM "A mulher na balança", de Vermeer, extrai a sua beleza do movimento suspenso de uma jovem ricamente vestida em um interior de iluminação suave. Equilíbrio e graça: qualidades presentes também em 24 CAPA


Pieter de Hooch, A balança de ouro, 1664. © BPK, Berlin, Dist. RMN-Grand Palais / Jörg P.Anders.


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"Balança de ouro", de Pieter de Hooch, um pintor muito ativo em Delft. As semelhanças entre as duas pinturas parecem inexplicáveis sem que um conhecesse o trabalho do outro. Vermeer parece contar com a representação prosaica de seu colega - uma mulher pesando moedas -, transformando esse tema em objeto de reflexão, com a figura feminina agora em destaque sobre "O Juízo Final" (a pintura dentro da pintura). A qualidade moral da luz - uma forma de envolver as pessoas e coisas em mistério e criar um abismo de pensamento - é típico de Vermeer.

A qualidade moral da luz - uma forma de envolver as pessoas e coisas em mistério e criar um abismo de pensamento…

CARTAS DE AMOR No país mais urbanizado no século 17 da Europa, não é surpreendente encontrar muita gente que saiba ler e escrever. Esse não era o cenário na França de Luís XIV, especialmente na área rural. Os pintores das elegantes cenas de gênero, no entanto, mostram uma variedade de personagens lendo ou escrevendo o que seriam cartas de amor. Não se pode superestimar o desafio para um pintor de representar a escrita ou leitura: silêncio, concentração e tempo. Uma das técnicas foi distribuir os indivíduos em dois planos separados e assim enriquecer a história. Vermeer 42 VERMEER VERMEER E E OS OS MESTRES MESTRES DA DA PINTURA PINTURA DE DE GÊNERO GÊNERO 26


Johannes Vermeer, A carta, 1670. © Dublin, National Gallery of Ireland.


…a juventude, uma sábia distância, a reflexão que fica à vontade apenas em belos interiores.

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introduz, à frente de sua tela, uma carta amassada, jogada ao chão: dado o valor econômico do papel na época, é este objeto simples que irradia a narrativa contida nesse quadro. MÚSICA O tema da tocadora de cravo ou de virginal traz as graças da arte de Vermeer: a juventude, uma sábia distância, a reflexão que fica à vontade apenas em belos interiores. A música (harmonia, duo ou solo) é propícia às alusões amorosas. Vermeer não tenta escapar delas. Ele promove uma psicologia limitada, negligenciando os detalhes e colocando seu personagem - assim como seu espectador - no cruzamento das interpretações. Talvez seja essa a contribuição de Vermeer à representação da música. Seus


À esquerda: Caspar Netscher, Jovem com papagaio, 1666. © Washington, National Gallery of Art e Jan Steen, Mulher em seu toalete, 1663. © Royal Collection Trust / Her Majesty Queen Elizabeth II 2016. Acima: Frans Van Mieris, O Dueto, 1658. © BPK, Berlin, Dist. RMN-Grand Palais / image Staatliches Museum Schwerin.



Johannes Vermeer, Menina com um colar de pérolas, 1663-1664. © BPK, Berlin, Dist. RMNGrand Palais Jörg P. Anders.


predecessores contribuíram com outras combinações, como a figura de um pajem, serviçal ou portador de instrumento, que circula de um quadro a outro por diferentes pincéis, ou da solista às vezes em pé, outras sentada, de joelhos ou de perfil, e o mestre de canto em sua ocupação. Ter Borch e Dou parecem ter sido os pioneiros, mas o auge do refinamento é alcançado por Van Mieris. DIA E NOITE A opção de Vermeer por pintar seu "Astrônomo" e seu "Geógrafo" à luz do dia é particular a ele? É apenas vendo outros estudiosos em ação, mergulhados na escuridão, que percebemos sua originalidade. Quando Gerard Dou, seu antecessor no tema, revelava um erudito dedicado, mais próximo de um pitoresco alquimista em uma vã missão, Vermeer mostra um Moderno. É a luz da razão que ilumina a cena. Os instrumentos (astrolábio, globo, compasso), assim como o manto derivado do quimono, atestam a abertura cosmopolita da Holanda. Exemplos pouco habituais de uma variação dentro do trabalho de Vermeer, "O Geógrafo" e o "Astrólogo podem ser compreendidos em sua distância em relação à tradição. Nenhum deles é um retrato: representam um arquétipo profissional e até mesmo um tipo social. O interior e as vestimentas definem o personagem como um membro da elite. 32 VERMEER E OS MESTRES DA PINTURA DE GÊNERO


Johannes Vermeer, O geógrafo, 1669. © Städel Museum - ARTOTHEK. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.


O jogo artístico é criar maneiras de distinguir aquela para a qual todos os olhares convergem.

SILHUETAS Vermeer não é alheio à atração ou ao prestígio de uma figura feminina vista de costas - sempre misteriosa. Ele não é o único. Gerard Ter Borch, Pieter de Hooch ou Jacob Ochtervelt poderiam inserir em um ou outro quadro uma jovem, às vezes como parte de um grupo, outras em conversa, mas no fundo sempre sozinha. O jogo artístico é criar maneiras de distinguir aquela para a qual todos os olhares convergem. Às vezes varrida para o canto da tela, outras firmemente situada em seu centro ou cristalizando a atenção com seu caríssimo vestido. O temperamento de cada artista se revela: De Hooch aprecia as narrativas francas; o trovador Ochtervelt toca poesias lânguidas; Ter Borch destila em sua pintura o paradoxo de uma dignidade atravessada por ambiguidades. É compreensível, portanto, que, entre os colecionadores holandeses, a conversa sobre a arte tenha se transformado na arte da conversa. DUAS DAMAS "A Rendeira do Louvre" e "A Moça com jarro de leite" do Rijksmuseum são objetos de frequentes contrassensos e más interpretações. A primeira é vista como uma serviçal no trabalho; a segunda seria uma discreta sedutora.

Gerard Ter Borch, Mulher em seu espelho, 16511652. © Amsterdam, The Rijksmuseum.

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Nicolas Maes, Jovem em sua costura, 1655. Š Guildhall Art Gallery, City of London/Harold Samuel Collection / Bridgeman Images.


Na verdade, "A Rendeira" é uma jovem da elite ocupada com uma atividade comparável à música. E bem parece que a criatura robusta, destacando-se sobre o fundo da parede caiada, absorvida na preparação de um pão, seja uma figura maternal, uma espécie de alegoria da saúde e integridade, uma Virtude profana exaltada pela graça da luz. Em ambos os casos, Vermeer deve ser entendido em relação a outras obras. As aproximações aqui propostas falam sobre a genialidade de Vermeer. Suas pinturas se desenvolvem mais pela subtração que pela compilação a partir de seus modelos.

Blaise Ducos é curador do Depto. de pinturas do Musée du Louvre, Paris.

Johannes Vermeer, Alegoria da Fé Católica, 1670-1672. © The Metropolitan Museum of Art, Dist. RMN-Grand Palais / image of the MMA.

Adriaan E. Waiboer é curador do National Gallery da Irlanda, Dublin.

Arthur K. Wheelock Jr. é curador da Galeria Nacional de Arte, Washington.

Vermeer e os mestres da pintura de gênero • Museu do Louvre • Paris • 22/2 a 22/5

36 VERMEER E OS MESTRES DA PINTURA DE GÊNERO



ANA ELISA EGREJA Uma casa e uma história

POR JÚLIA LIMA "Jacarezinho 92", a exposição de Ana Elisa Egreja na Galeria Leme conta a história da casa de seus avós. Conversando com a artista, ela me perguntou se falar de arquitetura não seria falar da cidade, algo distante de sua pesquisa. Lembrei-me então de uma história. Platão acreditava que a cidade era como uma casa muito grande - não existia distinção entre uma casa enorme ou uma cidade 38 OUTRAS NOTAS

pequena. Já Aristóteles diferenciava os dois, a casa como espaço privado e a cidade como lugar distinto e, portanto, público. Nessa separação, filósofos e arquitetos se debatem entre definições e hierarquias, mas a casa, para mim, é mais importante que a cidade. E toda casa conta uma história. Egreja sempre retratou ambientes internos de construções genéricas inexistentes inventadas pela colagem de imagens e sentidos, mas agora, pela primeira vez, escolheu um


Existe algo de nostálgico nessa série, uma melancolia de um tempo talvez nem vivido, mas marcado simbolicamente na habitação...

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À esquerda: Banheiro rosa com polvos, 2017. Abaixo: Closet revoada, 2016. Todas as imagens: Filipe Berndt.

contexto real para desenvolver uma série nova de pinturas. No entanto, essa narrativa não trata do passado de seus ancestrais ou sequer de sua infância; não são os natais ou datas comemorativas que ela celebra com essas obras, memórias que, de alguma forma, todos nós poderíamos evocar. A relação mais íntima com a construção modernista começou muito mais tarde, já em 2008, quando seu pai ofereceu a casa praticamente abandonada para servir como seu ateliê. Ali, Egreja passou a ocupar um pequeno cômodo debaixo da escada e atrás da garagem, um quarto de pé direito meio baixo e com uma grande janela que dá ao jardim dos fundos. Com o passar do tempo, o lugar se tornou essencial ao seu trabalho e, agora que a artista se muda para outro espaço, faz uma espécie de homenagem final à residência-ateliê. São sete pinturas de grande dimensão - em uma escala que quase nos permite entrar nas telas - que nos deixam acessar os diferentes aposentos que foram completamente


Copa (Natureza morta), 2017.



Poça II, 2017.

Com o mesmo virtuosismo e técnica realista já tão marcantes em sua produção, o procedimento criativo de Egreja mudou radicalmente...

42 ANA ELISA EGREJA

transformados em grandes instalações feitas pela artista, fotografadas e filmadas, e finalmente pintadas. Existe algo de nostálgico nessa série, uma melancolia de um tempo talvez nem vivido, mas marcado simbolicamente na habitação. O corredor lembra uma cena típica dos anos 1980, com os adesivos holográficos que colecionávamos e grudávamos nos armários, janelas e portas. O banheiro todo rosado é a epítome das tendências de decoração dos anos 1950. Os azulejos portugueses na lateral da escadaria são indício de um século outro. Mas Egreja também escolheu e inseriu elementos temporais em suas intervenções em


Escada galinhas, 2016.

cada cômodo, como o "graffiti" colorido e caótico da pintura "Closet"; ou os ladrilhos de Athos Bulcão na pintura "Hall", trazendo a década de 1960 com todas as suas implicações políticas e estéticas. Essa pintura, inclusive, não cita apenas Bulcão, mas apresenta também obras de pintores relevantes na história da arte repintadas pela artista, que enfrentou o desafio de se reproduzir uma aquarela ou a tinta acrílica com a pintura a óleo, e mais, de aprender a pintar como esses artistas. Com o mesmo virtuosismo e técnica realista já tão marcantes em sua produção, o procedimento criativo de Egreja mudou radicalmente, e ela agora toma um caminho quase performático: cada objeto, cada animal, cada intervenção

na arquitetura estavam presentes de fato, foram verdadeiramente realizados, abrindo uma nova dimensão da pintura externa à tela e à tinta. E para a montagem da exposição manteve essa mesma vocação, instalando um carpete bege similar ao que se encontra na casa localizado na rua Jacarezinho, 92.

Ana Elisa Egreja • Jacarezinho 92 • Galeria Leme • São Paulo • 30/3 a 20/5 Julia Lima é curadora independente e pesquisadora. Formada em Arte: História, Crítica e Curadoria. Atualmente escreve textos críticos e traduções, faz curadorias independentes, e ministra cursos livres de História da Arte.


CANDIDA HÖFER

Real Gabinete Português de Leitura Rio de Janeiro III 2005. Todas imagens: Copyright Candida Höfer/ VG Bild-Kunst Bonn.


DiĂĄlogos possĂ­veis na Pinacoteca


CANDIDA HOFER

Obra do artista brasileiro Henrique Oliveira. Foto: Éric Sander.

46 DESTAQUE 16 DO MUNDO


POR MARIANO KLAUTAU FILHO As obras fotográficas de Candida Höfer exibidas na Pinacoteca permitem experiências e relações diversas. Proponho olhar especialmente as duas que foram captadas em instituições culturais brasileiras: o Real Gabinete Português de leitura e a Biblioteca Nacional, ambos no Rio de Janeiro. Tratando o patrimônio público nacional enquanto assunto, destaco um aspecto nitidamente factual da obra. Esse tipo de fotografia, filiada à escola alemã e cujo rigor técnico se soma ao ângulo frontal parece fazer o seu objeto transparecer limpidamente, manifestar-se em toda sua inteireza. É justamente da visão objetiva, direta e sem apelos formais arrebatadores que emergem tão claramente os elementos de um monumento cultural. A suntuosidade e a eloquência do espaço arquitetônico nos provocam uma dupla experiência. Estar diante de uma representação grandiosa de um patrimônio brasileiro, portanto uma experiência de forte teor simbólico, e na mesma medida ter certo arrebatamento - enfático - provocado pela sensação espacial que a imagem evoca em seu preciosismo técnico. Tal lance atrai o espectador para dentro do ambiente que ele representa, e também lhe oferece uma visão distanciada e necessária. Os planos e as geometrias que surgem do desenho das escadarias e colunas da Biblioteca Nacional são reforçados pelo grande formato do quadro fotográfico,

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro V 2005.

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assim como os volumes e a luz difusa do Gabinete Real Português conferem à fotografia uma nobreza pictórica. Estar diante dessas obras dentro do prédio da Pinacoteca é a oportunidade de perceber como suas presenças remetem ao próprio espaço físico, ampliando o caráter simbólico da arquitetura e o diálogo com as pinturas daquele andar. A duas salas dali, encontramos dois quadros do acervo da instituição que poderiam compartilhar, com as fotografias de Höfer, essa eloquência, espacial, simbólica, pictórica. Trata-se das telas "Sala de Saturno do Palazzo Pitti", de 1920, de Santi Corsi, e "Interior da Catedral de Amiens", de 1842, de Jules Victor Genisson. Em ambas, experimentamos o preciosismo técnico da representação figurativa, a mesma suntuosidade do patrimônio cultural e a experiência espacial dos planos, volumes e luzes. No quadro de Corsi, em particular, vivenciamos um aspecto muito contemporâneo do jogo das representações: as imagens estão dentro das imagens na medida em que estamos em uma sala repleta de quadros e na qual um deles representa uma sala repleta de pinturas. O sentido de estar diante da tela de Corsi, em conexão com os elementos percebidos nos quadros de Höfer, convoca-nos para uma experiência física com o lugar tal a sensação espacial estabelecida nas relações entre as imagens e os objetos - quadro pictórico e quadro fotográfico - representados na fotografia e na pintura.

48 CANDIDA HÖFER


Opera Bastille Paris XIV 2004.


Candida Höfer. Foto: Ralph Müller.

Obra de Túlio Pinto na Baró Galeria. Rebecca Louise Law, Beauty of Decay. Foto: Rachel Warne.

No quadro de Genisson, o aspecto monumental do espaço é tão evidente quanto nas fotografias de Höfer, e as cores e luzes filtradas pelos vitrais que se projetam nas paredes laterais da catedral são um tipo de beleza cromática e pictórica encontrada na imagem do Gabinete Real Português. Se consideramos que as famosas estruturas urbanas fotografadas com precisão pela dupla Bernd e Hilla Becher nos levam fortemente para a escultura e seus elementos tridimensionais, podemos observar o quanto - somadas ao caráter simbólico e objetivo - as imagens de Höfer nos transportam para a eloquência e beleza da pintura. A presença dessas imagens nas salas da Pinacoteca 50 DESTAQUE

permite que os diálogos possam ser experimentados em seu espaço arquitetônico e que o discurso da obra artística se multiplique.

Diálogos com o acervo: Candida Höfer • Pinacoteca do Estado de São Paulo • 18/2 a 22/5

Mariano Klautau Filho é artista, pesquisador em arte e fotografia e curador independente. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Doutor em Artes Visuais pela ECA/USP.





Autorretrato, 2010.

ELEGIA

GIANGUIDO BONFANTI


POR GONÇALO IVO Poucos acontecimentos nos tornam tão tangíveis quanto a morte. Oculta em tudo que existe, engastada no passar das horas ou no lento arrastar do verme que fecunda e marca a terra, surge repentinamente como um vertiginoso voo de pássaro anunciando mistérios. Raramente, desejamos sua presença de aparência múltipla, sólida e fria como pedra. Na manhã azul, um besouro é levado pelo vento incerto. E ondas do mar repetem-se de forma incessante. Precipitam-se sobre as agudas rochas do litoral. Tudo passa. Na solidão do ateliê, a mão do pintor ganha movimento e induz o pincel a macular a alvura do linho. E o que antes era matéria e espessura, transmuta-se e oscila entre o inefável e o perene. Aprendemos muito com a morte. E aprendemos a entendê-la melhor, quando estamos diante de obras como a de Gianguido Bonfanti. Espécie de guia que se manifesta em nossa realidade física, material e psíquica, esta arte inquieta nos conduz a sendas estreitas, passagens escuras, sensações incômodas. Vivenciamos a degradação moral e física dos corpos e almas. Suas pinturas são como espelhos. Contemplamos o que em nós é inacabado e imperfeito.

Poema Enterrado no Espaço Cultural BNDES. Foto: Odir Almeida

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Todas imagens do artista: Foto: Marcelo Magalhães.

Na noite escura, percebemos o ruído do jato que, em sua passagem, afasta o brilho dos astros. Tudo nos cativa e distrai. O prenúncio da aurora nos seduz. Há um sentimento frenético no movimento das coisas do mundo, e o cotidiano com sua nova luz volta a conferir cadência às nossas vidas. Mas a arte de Gianguido Bonfanti, como maré vazante, viaja em sentido contrário numa via sem volta. Causa espanto e nos desperta do estado de inércia, torpor e letargia, como a lembrança da fúria de uma tempestade de verão. Arrasta-nos para sonhos desconexos. Fazer do corpo e seu sofrimento a razão central de uma obra não me parece casual ou aleatório. Este 56 GIANGUIDO BONFANTI

assunto recorrente se evidencia e floresce desde trabalhos de meados dos anos 1970. Deparamo-nos com a crueza das imagens rudes criadas por Gianguido Bonfanti nas terríveis Doenças Tropicais. Em seu trabalho, o corpo humano é o motivo gerador de quase todas as imagens e indagações. São figuras que estão a nos mirar impiedosamente, a nos inquerir como testemunhas da dor, da degradação, do envelhecimento e da ruína final. O autorretrato é outra obsessão do artista. Há centenas deles: ora desenhos a bico de pena, ora pinturas a óleo em variadas palhetas - ocres, terras, negros, esverdeados, todas em misturas entrópicas - ou sua mais


recente produção escultórica em argila e bronze. E mesmo quando representa o rosto de outros personagens, Gianguido Bonfanti parece retratar a si mesmo. O artista está sempre reivindicando sua singularidade e lugar neste mundo. Há um raro vigor e até mesmo um sentimento irracional e narcisista em toda sua produção. E essa característica esquecida, deixada de lado pela prática e fabricação usual de uma arte que quer ser tutelada, igual, ansiosa em falar a linguagem da tribo e se submeter aos dogmas e normas vigentes na contemporaneidade, unicamente para ser aceita e institucionalizada, nos faz perceber quão livre e autêntico o artista Gianguido Bonfanti é em seu processo criativo. Interessa-me a repetição obsidente com que trata as figuras, seus rostos violentos, barrocos, patéticos, carcomidos por um tempo implacável. Em uma dessas pinturas - um suposto autorretrato datado de 2011 - como num sonho desconexo, o torso de um homem

…a arte de Gianguido Bonfanti, como maré vazante, viaja em sentido contrário numa via sem volta. Causa espanto e nos desperta do estado de inércia, torpor e letargia…

À esquerda: Esculturas em argila e bronze. Acima: Nanquim sobre papel, 2017.


emerge de uma espécie de pântano. Sua expressão imantada de força me faz pensar em uma figura mitológica, sem que eu saiba precisar a que mitologia pertenceria. Seu olhar se perde em algum ponto borrado no futuro. Em segundo plano, há uma sequência de árvores sumárias, secas e retorcidas. Em uma delas, vê-se um personagem recostado à espera da incerteza. Ao cabo, toda cena se vinca de melancolia e incômodo. Interrogome sobre a razão de tanta tristeza. Em nosso último encontro, em seu ateliê arraigado entre as enseadas do Flamengo e de Botafogo, a manhã azul e limpa de fins de maio contrastava com a gravidade da pintura. Nessa ocasião, Gianguido Bonfanti me confidencia que seu foco, seu único interesse agora é por uma pintura "pura, expressiva, potente e essencial". A meu ver, o artista passa a perseguir a simplicidade. Em seus mais recentes óleos, há um frescor semelhante às 58 ALTO RELEVO

garatujas de nossa infância, quando, ainda meninos, brincávamos e rabiscávamos para imprimir no tempo sem tempo ou medida a nossa felicidade. E esta nova "caixa de lápis de cor" a sujar novamente a superfície branca da tela desvela a eterna usina da criação em seus dias de redescobertas e liberdade adormecidas.

Gianguido Bonfanti: Bonfanti, esculturas e pinturas, 2010-2017 • Paço Imperial • Rio de Janeiro • 17/3 a 21/7

Gonçalo Ivo é artista plástico, com ateliês em Paris e Teresópolis e tem fascinação pelos museus de Madri.


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LIVROS lançamentos Rosangela Rennó, Espírito de tudo Texto: Evangelina Seiler Editora Cobogó - 168 p. - R$ 90,00 A edição bilíngue, com textos da curadora Evangelina Seiler, da própria artista e com citações de autores consagrados como Walter Benjamin, Marcel Proust e Ítalo Calvino explora, nesse grupo de trabalhos, a sutileza que existe entre o mundo concreto e o místico, além das possibilidades sensoriais evocadas pela memória de cada indivíduo. Foi a partir desse desejo de provocar um mundo de conexões, lembranças embaralhadas e ressignificação de objetos e ideias que a mineira, radicada no Rio de Janeiro, concebeu as obras da exposição ‘Espírito de tudo’, que ficou em cartaz entre novembro de 2016 e janeiro de 2017, no Oi Futuro Flamengo, e agora se transforma em publicação pela editora Cobogó.

Odires Mlászho Entrevista: Ana Paula Cohen Editora Cobogó - 240 p. - R$ 125,00 Em Odires Mlászho, o leitor encontra mais de 110 imagens produzidas nos últimos 20 anos, além de um glossário escrito pelo próprio artista, com procedimentos e técnicas usados na elaboração dos trabalhos. Há também uma longa entrevista conduzida pela curadora Ana Paula Cohen. Em parte das séries, Odires utiliza a representação do corpo humano disponível nas ilustrações e fotografias e reflete sobre o processo de construção de identidades nas sociedades contemporâneas. Seu trabalho, muitas vezes, põe em questão a autoimagem baseada em padrões de beleza, coragem, poder, masculinidade e feminilidade. 60


Pacto Visual III Texto: Luisa Duarte ID Cultural - 284 p. - R$ 80, 00 Obra encerra projeto iniciado em 2014 pela ID Cultural e traz entrevistas com os artistas Carlito Carvalhosa, Lucia Koch, Marcos Chaves, Vik Muniz, Antonio Malta, Leticia Ramos, Luiza Baldan e Abraham Palatnik. Durante nove meses a autora e crítica de arte Luisa Duarte mergulhou no universo de importantes artistas brasileiros. Em entrevistas realizadas nos ateliês, Luisa guiou as conversas tendo como foco o processo de criação, os anos de formação, e o repertório de influências que irrigam os trabalhos. A obra estimula a troca entre gerações, influências e afinidades. As imagens que compõem o livro foram realizadas pelo fotografo Vicente de Mello.

O visível e o invisível na arquitetura brasileira Organização: Reinaldo Botelho Editora DBA - 304 p. - R$ 75,00 A edição constitui uma abordagem nova na análise da Arquitetura Moderna Brasileira por meio de 16 obras projetadas por diferentes arquitetos em distintas regiões do Brasil, entre as décadas de 1930 e 1960, que são tombadas ou estão em processo de tombamento. Escrito pelo historiador da arquitetura e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-SP), José Tavares Correia de Lira, com ensaios fotográficos produzidos por Leonardo Finotti e organizado pelo pesquisador Reinaldo Botelho, o livro associa as obras à acontecimentos da sociedade, da cultura e da arquitetura, mostrando suas projeções simbólicas, políticas e disciplinares, a fim de representa-las no tempo e na memória, por escrito e visualmente. 61


RESENHAS exposições

Leonilson: arquivo e memória vivos - Fundação Edson Queiroz, Fortaleza-CE POR JAQUELINE MEDEIROS A exposição "Leonilson: arquivo e memória vivos" reúne obras de acervos, na sua maioria privados, que, segundo a curadoria, pouco foram apresentadas. Idealizada para comemorar a publicação do catálogo raisonné patrocinado pela Fundação Edson Queiroz, a mostra é uma demonstração de continuidade do apoio a arte cearenses que já é consagrada mundo afora. O catálogo não está concluído, mas um dos frutos da pesquisa pode ser visto na exposição com a presença de mais de 120 obras de um universo de 3.800 registros levantado na pesquisa. As obras estão dispostas em ordem cronológica decrescente e agrupadas por décadas, permitindo o acesso a um grande número de trabalhos de todo o período da atuação de Leonilson, uma individual abrangente jamais vista desse porte em 62

Fortaleza. Por ser oriunda de coleções, paga o ônus de apresentar trabalhos comprimidos em molduras de madeira e de acrílico que nunca foram criados pelo artista para serem emoldurados, como pontua o curador em seu texto, onde afirma que Leonilson deixava de propósito lonas e tecidos sem chassis para que ficassem soltos, dependurados na parede, de maneira que adquirissem a corporeidade das transformações do tempo e do peso da matéria. Curioso é que esse fato acontece também com a obra do acervo da patrocinadora do evento, a Fundação Edson Queiroz. A exposição inaugura um novo espaço expositivo que, apesar de difícil localização no labirinto do edifício do Espaço Unifor, é mais amplo e adequado à arte contemporânea. A expografia permite ao visitante conhecer as principais características da obra de Leonílson, orientado por pequenos textos curatoriais sobre cada uma das três décadas da sua produção. A falta de uma temática, ressaltada pela curadoria, nada prejudicou o entendimento do percurso do artista. Um ponto difícil de


Em sentido horário: O que ele está fazendo de 1986; O peão, 1987; O canivete, 1983; O ventilador, 1983.

articular no ambiente expositivo é em relação à série de pequenos desenhos dispostos em uma única parede que reivindica um ambiente intimista para uma aproximação maior do visitante, em contraponto à iluminação aberta requerida pelas demais obras no mesmo ambiente. Nada curioso comprovar que a obra de Leonilson alcança o mundo, uma vez que o seu universo pessoal trata de questões universais, exigindo mais do que querer saber quem é Leonilson. Sua obra pode ser pensada como um jogo da arte e da vida. Tal como um pião tão presente em seus trabalhos, ora como simples brincadeira de criança, ora na tentativa de adivinhar e interpretar presságios ou ainda como uma recriação do movimento dos astros e da vida. De um lado a forma e a cor, um time de cores puras quase sempre sumárias nas suas simples, flexíveis e alegres formas soltas no ar a desafiar bordas e a geometria perfeita. De outro, o personagem saindo por todos os poros de suas telas, o terror e o afago, ossos como pedaços de gente podadas de gozo e de glória, mas resistente a entregar os pontos e com o desejo de parar o tempo ou de que do sonho não acordasse e ter o pequeno pião, sempre a girar, a girar.

Jacqueline Medeiros é doutoranda de História e Crítica de arte na UERJ e coordenadora de artes visuais do CCBNB Fortaleza e do espaço de arte autônomo Sem Título Arte.

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NOTAS DO MERCADO Fatos, valores, curiosidades e tendências

SP-ARTE 2017 rendeu resultados melhores que os de 2016, mas ainda mornos, de acordo com a maior parte dos expositores dos setores de arte moderna e contemporânea. As vendas ficaram dentro da expectativa, com maior concentração em obras de médio valor. As galerias estrangeiras se mostraram também satisfeitas com as vendas, em parte porque as expectativas eram baixas, dada a presença constante de notícias desfavoráveis sobre o Brasil nos noticiários internacionais. A presença de muitos compradores de grandes coleções privadas e institucionais foi um dos pontos positivos citados por várias galerias.

PHILLIPS entra com tudo no Brasil, anunciando sua chegada com um jantar disputado no Baretto do Hotel Fasano durante a SP Arte. Nos último anos, a casa de leilões sediada em Nova York se destacou por focar suas vendas de arte latino-americana em obras contemporâneas, cujo mercado é mais internacional. Sua chegada ao Brasil já vinha gerando burburinho desde meados de 2016, quando recrutou Candida Sodré para coordenar sua operação no país. Cândida representou a Christie's por mais de 25 anos no Rio de Janeiro e é uma das figuras mais charmosas e prestigiadas do circuito.

A TEMPORADA DE LEILÕES DE NOVA YORK promete ser animada. As expectativas foram aquecidas pelo sucesso da 1ª edição da feira TEFAF na cidade, cujos bons resultados foram notícia no circuito internacional. Na página seguinte, alguns dos destaques dos principais leilões:

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LATINO-AMERICANA PHILLIPS

PÓS-GUERRA E CONTEMPORÂNEA CHRISTIE’S

Leonora Carrington, OST 53 x 74 cm, 1950. Est. US$ 500.000 - 700.000

Jean-Michel Basquiat Acrílico e oiltick em madeira, 180 x 120 cm, 1981. Est. US$ 22 - 28 mi.

Mira Schendel, Tipografia sobre acrílico, 22 x 22 x 8 cm, 1971. Est. US$ 120.000 -

Roy Lichetenstein Óleo e magna s/ tela, 120 x 170 cm, 1965. Est. US$ 25 - 35 mi.

Beatriz Milhazes Acrílico s/ tela, 42 x 32 cm, 2001. Est. US$ 200.000 - 300.000

MODERNA SOTHEB’YS

Francisco Toledo Técnica mista em papel, 57 x 77 cm Est. US$ 40.000 - 60.000

Ricardo Martínez Óleo s/ tela, 115 x 85 cm, 1961. Est. US$ 40.000 - 60.000

PHILLIPS

CHRISTIE’S

Roy Lichtenstein Bronze, 1/6, 35cm, 1996 Est. + US$10 mi

Constantin Brancusi Bronze patinado com folha de ouro, 26 cm, 1913. Est. US$ 25 - 35 mi.

SOTHEB’YS

Omar Rayo Acrílico s/ tela, 67 x 66 cm, 1974. Est. US$ 40.000 - 60.000

Carlos Cruz-Diez Acrilico e elementos de plastico s/ tela, 2008. Est. US$ 60.000 - 80.000

Peter Doig OST, 199 x 239cm, 1991 Est. + US$25 mi.

Alexander Calder Metal, 101 x 137 x 50, 1958 Est. US$ 2,5 mi. - 3 mi.

Pablo Picasso Óleo s/ tela, 73 x 60 cm, 1939. Est. US$ 35 - 50 mi

Philip Guston Óleo s/ tela, 172 x 203 cm, 1979. Est. US$ 8 - 10 mi.


COLUNA DO MEIO Quem e onde no meio da arte

Candida Sodre, Guilherme Teixeira, Silvia Cintra e Joao Avelar

Luiz Roberto Sampaio e sua esposa Lucia, Cecilia Ribeiro, Ricardo Remensnyder e Thomaz Saavedra

Jantar Phillips Baretto - Hotel Fasano São Paulo Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Klabin e Fabio Szwarcuwald eVanda Gina Elimelek

Henrique Miziara e Jean Paul Seelman

Vivian Pfeiffer, Carmo Sodré, Clara Choveaux e Candida Sodré

Lucas Lins, Cláudia Bakker, Floriano Romano e Rodrigo Andrade

Nara Reis, Cláudia Bakker e Simone Michelin

Fotos: Paulo Jabur.

Paulo Petrarca, Vivian Pfeiffer e Alexandra Mollof

Claudia Bakker e Floriano Romano Oi Futuro Flamengo Rio de Janeiro Léa Klabin e Márcio Doctors

Neville D'Almeida e Patrizia D'Angello

Elisa de Magalhães e Marcos Chaves

Wilton Montenegro e Elisa de Magalhães


Fotos: Paulo Jabur

Antonio Pedro Camargo, Ralph Camargo e Max Perlingeiro

Vandinha Klabin, Rodrigo de Castro e Cássia Bomeny

Rodrigo de Castro Um Galeria Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Queiroga e Cássia Bomeny eSuzana Gina Elimelek

Anna Maria Tornaghi e Daniel Feingold

Roma Drummond eManfredo de Souzanetto

Artur Fidalgo e Cássia Bomeny

Fotos: Paulo Jabur

Ângelo Venosa, Sérgio Sister, Waltercio Caldas e Daniel Feingold

Beny Palatnik, Gabriela Moraes e Vandinha Klabin

Sérgio Sister Galeria Nara Roesler Rio de Janeiro Ângelo Venosa, Marcos Chaves e Sérgio Sister

Nelson Félix, Marcos Chaves, Sérgio Sister, Gabriela Machado, Daniel Senise e Ângelo Venosa

Evandro Salles e Nelson Félix

Carlos Zílio, Suzana Queiroga e Ana Linnemann


ALTO FALANTE

Por Alexandre Sá

O que pode a Arte? São inúmeros os teóricos que se debruçaram sobre a lógica em colocar em crise a própria subjetividade no mundo contemporâneo, intercalando estratégias muito específicas que envolvem e produzem a mais absoluta impotência, o cansaço inevitável, o endividamento e o fracasso sendo uma responsabilidade única de quem o vive. Em certo sentido, tal processo de desterro e desamparo do sujeito é um elemento primordial para a própria manutenção do sistema capitalista e espetacular que estamos vivendo. E que alimentamos inevitavelmente por estarmos amalgamados a ele, principalmente em épocas de crise. Sendo óbvio e nada inovador, o próprio processo de crise é inerente a tal sistema, já que um não consegue viver e gerir a si próprio sem o outro. Por outro lado, são inúmeros os exemplos históricos (e por que não atuais?) que conseguiram e conseguem fraturar tal lógica de operacionalização, criando pequenos meandros, fissuras e implosões cotidianas nesse universo construído de maneira sagaz. São ações pequenas, propostas de rompimento que apesar de conseguirem uma dobra na potência-vácuo do capital (entendido aqui de maneira muito menos ingênua que possa parecer), terminam ainda sendo amparadas por uma fé curiosa naquilo que conhecemos como micropolítica. Aliado a isso, podemos adicionar indicativos de posturas que acreditam em um refluxo à gestão monopolizadora e vertical: o rizoma de Deleuze, as constelações de Safatle, o radicante de Borriaud. De todo modo, e para além de um discurso que parece já cansado e atravessado (inevitavelmente?) por um conjunto de modismos, legitimado pela própria academia e por alguns pensadores ligeiramente mais confortáveis, talvez seja importante nos perguntar se tais propostas de ações mais atmosféricas ou mesmo mais íntimas não estariam já, também cansadas de um solapamento constante e de uma decrepitude inevitável. Ou ainda, se tais propostas perceberam nos cinco últimos anos que a potência geradora de seus devires, precisava desaguar em um fluxo outro, maior e não menos potente, em certo tipo de conglomerado de desejo que, vez por outra, se refletia nas ruas, onde e como fomos vitoriosos? Melhor dizendo, entre o cansaço íntimo de uma ação mínima e a violência descomunal das ruas em fogo, haveria outras opções?

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Em que medida é possível pensar em uma arte que consiga dobrar a lógica política…? Talvez, as alternativas sejam muitas e caiba aqui uma resposta tão díspar quanto a reflexão merece: existem casos e casos, países e países, governos e governos. Mas antes que isso nos faça sucumbir à relativização, cabe-nos perguntar em que medida é possível fraturar uma lógica de dominação que inseriu dentro da operacionalização democrática (e de seus pseudoagentes) um desejo de radicalidade que tem produzido vagarosamente ondas absolutistas em muitas partes do mundo. Especificamente no caso do Brasil, a situação talvez se revele ainda mais grave: um governo pouco legítimo, um descontentamento considerável de grande parte da população, reformas feitas à revelia do povo (como sempre), uma polícia assassina, um sucateamento das instituições e uma estratégia muito clara de levar todos nós a um limite de insatisfação, sofrimento e doença que talvez não sejamos mais capazes de aguentar. Se a gestão democrática produziu a radicalidade "impensante" que frutificou em grande parte dos políticos eleitos que temos, seria esta a possibilidade antídoto? E mais, se o antídoto for suave o suficiente, será então capaz de reverter essa lógica provinciana de dominação e angústia? Para além de todas as respostas possíveis, resta uma dúvida: e a arte? Qual arte? Quais artistas? Essa que vemos todos os dias. Nos museus, galerias, revistas, sendo comercializada, discutida, defendida nas academias e em tudo o mais. Em que medida é possível pensar em uma arte que consiga dobrar a lógica política que também, por sua vez, parece exausta e enclausurada em um processo de suvenir que atende a uma demanda operacional e não menos alegórica em algumas exposições? Haveriam possibilidades de pensar o binômio arte e vida sem que tais eixos fossem atravessados por um processo de pasteurização inevitável? Para além da ingênua e obsoleta ideia de originalidade, existe algo ainda que caiba ao artista enquanto sujeito propositor, mediador e elemento de uma sociedade despedaçada? Alexandre Sá é pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF; Doutor e mestre em Artes Visuais pela UFRJ; Diretor do Instituto de Artes da UERJ; Coordenador do curso de Artes Visuais da Unigranrio; Professor do Programa de Pósgraduação em Artes da UERJ; Editor-chefe da revista "Concinnitas"; Professor da Casa França-Brasil; artista; curador; crítico de arte.

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Lançada em 2008, a Dasartes é aprimeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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