Revista Dasartes Edição 61

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WANDA PIMENTEL YVES KLEIN BIENAL DE VENEZA CARLOS FAJARDO ARTHUR PIZA MARIA LEONTINA


DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin PRODUÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com DESIGNER Arruda Arte & Cultura SUGESTÕES E CONTATO dasartes@dasartes.com APOIE A DASARTES Seja um amigo Dasartes e receba a revista impressa em casa em recorrente.benfeito ria.com/dasartesdigital Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ redacao@dasartes.com

Capa: Yves Klein, Sem título (Alívio planetário azul), 1961.

Contracapa: Wanda Pimentel, Série Envolvimento, 1968. Foto: Marco Terranova.


04 De Arte

72 Coluna do meio

08 Agenda

76 Notas de Mercado

68 Resenhas

78 Alto Falante

MARIA LEONTINA

20 WANDA PIMENTEL

YVES KLEIN

50

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ARTHUR PIZA

BIENAL DE VENEZA

16

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CARLOS FAJARDO

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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte

A UMA SEMANA DE SUA ABERTURA, ARTBASEL PROCESSA ADIDAS Os organizadores da Feira de arte suiça Art Basel apresentaram uma ação judicial contra a Adidas por usarem o nome do evento e a marca sem autorização em um par de tênis de edição limitada. O processo de 24 páginas, arquivado na Flórida, argumenta a violação da marca registrada em referência a um par de tênis Adidas apresentado na feira Design Miami, em dezembro de 2016. O termo procura impedir que a Adidas use o nome ArtBasel e destruia todos os pares restantes e ainda paguem danos pela diluição da marca registrada. Os tênis foram e ainda são vendidos pelo site e-Bay pelos visitantes que ganharam um exemplar durante uma performance na feira.

Encontrada tela de Pollock de US$ 10 milhões

Documenta 14 abre em Kassel

As impressões de Andy Warhol

No Arizona, EUA

Na Alemanha

Cultura Pop

Foi encontrado em uma garagem do Arizona uma possível tela do artista abstrato Jackson Pollock. O leiloeiro Josh Levine garante a autenticidade da pintura depois de uma minuciosa avaliação e relatório forense à pedido do proprietário não identificado. A peça de Pollock será leiloada em 20 de junho na casa de leilões Scottsdale Ariz, EUA, e tem estimativa de venda ente US$ 10-15 milhões.

Documenta foi originalmente fundada para criar a unidade cultural entre a Alemanha oriental e ocidental durante os anos tensos e frágeis da Guerra Fria. Este ano, a mostra foi dividida entre dois locais — Atenas e Kassel — e o passado e o presente das duas cidades estão habilmente entrelaçados ao desenraizar elementos dessa exibição historicamente carregada da tranquila cidade provincial de Kassel e colocálos no ambiente relativamente instável de Atenas. Até 17/9.

A exposição intitulada “Andy Warhol: Impressões das Coleções da Jordan D. Schnitzer e sua Fundação Família”, em exibição no High Museum of Art, em Atlanta, traz uma retrospectiva abrangente com mais de 250 impressões efêmeras do artista americano Andy Warhol (1928-1987), incluindo carteiras de serigrafia icônicas como “Marilyn Monroe” (1967), “Campbell's Soup I” (1968) e “Mao” (1972). Até 3/9.

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SEMANA DE ARTE DE SÃO PAULO

Novos espaços

De 14 a 20 de agosto

Vem aí, em agosto, a Semana de Arte de São Paulo. A nova feira propõe celebrar, discutir e ampliar um mercado que vem crescendo de forma ímpar nos últimos 15 anos, na cidade que se consolidou como seu epicentro. Capitaneado pelos galeristas Luisa Strina e Thiago Gomide, pelo curador Ricardo Sardenberg e pelo empresário cultural Emilio Kalil, o evento se organiza em torno das artes visuais, mas vai muito além: a Semana começa com uma série de espetáculos exclusivos de teatro, música, dança e literatura, passa por um ciclo de debates com convidados nacionais e internacionais, por uma série de passeios arquitetônicos, e culmina em uma feira de arte com conceito curatorial inovador, que reunirá um seleto time de 35 galerias do Brasil e do exterior.

A GALERIA BASE inaugura seu espaço expositivo em São Paulo com nova coletiva incluindo obras de nomes como Mira Schendel (imagem acima) Antonio Dias, Lygia Pape, Montez Magno, Anna Bella Geiger (imagem abaixo), Ana Maria Maiolino e José Rufino. A exposição “[co]existências” com curadoria de Douglas de Freitas tem questões ligadas ao desenho, como a linha e a geometria e apresenta obras da década de 1960 até os dias atuais. Até 1/7. RUA NOVE DE JULHO, 5593/11 JD. PAULISTA, SÃO PAULO

Ouvido por aí “Olhem o que está por trás ...”. “Atrás do palco estão minhas obras de arte, que foram tiradas e cobertas em virtude de sua presença.” Palavras do artista e ativista chinês Ai Weiwei ao publicar uma imagem da visita do presidente dos EUA Donald Trump ao Museu de Israel. Em seguida, o artista divulgou, em forma de protesto, uma nova representação do afogamento do refugiado sírio Alan Kurdi.

Em Fortaleza, a Galeria Contempoarte passa atender em seu novo escritório situado à RUA DONA FEDERALINA AUGUSTO LIMA, 111 GUARAPARES, CAMPUS VIA CORPUS, FORTALEZA

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Novos espaços

A FACE GABINETE DE ARTE surge com a intenção de resgatar o olhar de Pietro M. Bardi sobre a produção artística brasileira. Ao revisitar artistas que por ele foram revelados ou incentivados, o novo espaço pretende compartilhar a experiência de Eugênia Gorini Esmeraldo durante décadas ao lado do fundador do MASP, reativando, com mostras e debates, a presença desses nomes na cena contemporânea. A exposição inaugurativa “Montanha, Céu e Mar” do artista Taro, acontece até 15/7. RUA CUNHA GAGO, 208 PINHEIROS, SÃO PAULO

São Paulo ganha outro novo espaço dedicado à arte contemporânea, a TEMPORÁRIA GALERIA. O espaço busca aproximar o público à arte contemporânea por meio de exposições, encontros, performances e também do projeto de ateliê temporário, em que o artista selecionado estará por um período de um mês produzindo no espaço e promovendo encontros, conversas com curadores e workshops. A mostra de abertura, “Presença de Impulso” fica em cartaz até 15/7. RUA PEIXOTO GOMIDE, 1789 JD. PAULISTA, SÃO PAULO

6 DE ARTE A Z

ESCULTURAS DESAFIADORAS DO ESPAÇO DE JOEL SHAPIRO NA PACE DE LONDRES Ao longo de uma carreira que abrange mais de quatro décadas, Joel Shapiro desenvolveu uma reputação como um dos artistas mais influentes e inovadores do mundo. Nascido e baseado em Nova York, Shapiro é mais conhecido por sua contínua exploração das possibilidades de forma escultural, em particular esculturas geométricas em larga escala que desfazem os limites entre abstração e figuração. Suas obras mais famosas são compostas por blocos regulares pintados vibrantemente, que ele organiza para criar formas maravilhosamente evocativas que aludem à figura humana, no processo questionando a própria natureza da abstração.

VISTO POR AÍ

“Swale” é um parque flutuante da artista Mary Mattingly que está ancorado no Pier 6 do Brooklyn Bridge Park de Nova York, EUA. Segundo a artista, o projeto piloto de pequena escala pode permitir que os parques da cidade se tornem locais sustentáveis para produzir alimentos frescos e acessíveis.



VICENTE DE REGO MONTEIRO “NEM TABU, NEM TOTEM”, APRESENTA UM RECORTE COM OS PRINCIPAIS MOMENTOS DESSA FIGURA INSTIGANTE, MUITAS VEZES PRETERIDA, APESAR DE TER SIDO UM DOS PRECURSORES DOS IDEAIS DA SEMANA DE 22

Com a curadoria de Denise Mattar, a mostra reúne 38 obras do artista, mesclando trabalhos de diferentes períodos agrupados por analogia de linguagem, pondo em relevo a excepcionalidade do artista. O recorte foca em sua produção plástica das décadas de 1920 a 1940, apresentando trabalhos da série “Lendas Amazônicas”, um conjunto de obras art déco, a breve influência surrealista, as naturezas mortas perspectivadas, além do seu interesse pela arte sacra. “Vicente do Rego Monteiro queria ser escultor, mas foi como pintor que 8 AGENDA

impregnou sua obra de intensa expressão tátil. Produziu um surpreendente indianismo de vanguarda, mas nunca foi um ‘antropófago’. Criou um caminho inteiramente original na pintura, miscigenando o art déco e a cerâmica marajoara, mas nele enveredou para uma religiosidade cristã”, destaca a curadora.

Vicente de Rego Monteiro • Galeria Almeida e Dale • São Paulo • 5/6 a 29/7



MARCELO SOLÁ PRIMEIRA EXPOSIÇÃO DO ARTISTA GOIANO EM BRASÍLIA, COMPOSTA POR OBRAS INÉDITAS EM GRANDE DIMENSÃO

A exposição reúne obras inéditas e recentes do artista goiano Marcelo Solá, um conjunto de 12 desenhos e pinturas com técnica mista em grandes formatos sobre papel fabriano. Menos centrado no preto e branco, o artista evolui em seu desenho irreverente agregando cores vibrantes e liberdade gestual, marcada pela influência da poética urbana. Seus planos e sobreplanos se multiplicam, a tinta espessa aparece mais em grandes manchas ou escorre no plano que se multiplica progressivamente. Cria-se um caos harmonioso, pulsando entre o traço, a cor, o texto e o grafismo. 10 AGENDA

Seu universo é denso e amplo, sua língua livre, sua linguagem própria. As composições ora suaves, ora explosivas, são plenas de potência criativa, envolventes e sedutoras, trazendo elementos lúdicos ou dramáticos, muitos pontos de luz que se alternam. Há ironia, há humor, há tensão. Há um exercício contínuo em busca da liberdade na pintura, que ele consegue expressar como poucos.

Marcelo Solá • Gabinete de Arte K2o • Brasilia • 6/6 a 30/6





MARIA LEONTINA “Todo o nosso ser se comunica com o real, partindo do irreal” Maria Leontina Maria Leontina iniciou sua produção na década de 1940 com trabalhos feitos em tela e papel. Seus desenhos e pinturas apresentam uma linguagem figurativa que rapidamente se direciona a uma abordagem expressionista. Naturezas-mortas e retratos, na década de 1950, deixam espaço às paisagens urbanas e construções geométricas. Ao longo de 14

sua vida, Leontina flertou com diversas linguagens artísticas proeminentes no país (expressionismo, construtivismo, concretismo) sem por isso abandonar sua subjetividade; por nunca aderir a dogmas, sua obra tem como cerne a geometria sensível. Quando se trata de suas naturezas mortas, pode-se perceber a dicotomia entre realidade e materialidade: os limites vão se borrando para entrelaçar as cores: nada é exato. O sensível - quase místico - permeia sua


obra: desde a série das Sant'Anas até os "Estandartes" (interpretação dos tecidos que cobrem andaimes), passando, é claro, pelos "As Orantes" (inspiradas nos vitrais triangulares para a Paróquia da Santíssima Trindade), mas não para por aí: utilizando a cor como veículo primordial das coisas indizíveis, a série "Os Jogos e os Enigmas" (paisagens geométricas e fragmentadas regidas por signos cubistas) e ainda os quadros sem título mostram como as formas podem se desdobrar sem se revelar. O mistério, em Leontina, transcende.

Quando tratamos das suas naturezas mortas, podemos perceber a dicotomia entre realidade e materialidade…

Maria Leontina • Galeria Bergamin & Gomide • São Paulo • 1/6 a 15/7

Todas as imagens: Ding Musa.

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ART HUR PIZA 16 ATELIÊ DO ARTISTA


ARTHUR LUIZ PIZA FALECEU EM MAIO AOS 89 ANOS EM PARIS. EM HOMENAGEM À SUA LONGA E CELEBRADA PRODUÇÃO, DASARTES RELEMBRA A ENTREVISTA CONCEDIDA EM SEU ATELIÊ EM 2014

POR SYLVIA CAROLINNE Produção plena, organização parisiense, alma brasileira. Pouca cor na arte, mas muita na alma deste incansável inventor. Como começou sua carreira artística e quando resolveu vir para Paris? Já faz muito tempo. O que me fez entrar nas artes quando eu era menino foi Van Gogh. Ganhei um livro desse artista e eu ficava copiando. E, desde então, queria muito vir à Europa, para conhecer e também para aprender gravura em metal, já que no Brasil tínhamos muito xilogravura, mas pouco metal. No início, fiquei muito atraído pela Itália, mas havia a guerra naquele tempo, pontes destruídas, passava-se frio dentro dos museus. Fiquei um tempo aqui, comecei a fazer gravura com o Johnny Friedlaender, que foi uma figura muito importante, tanto pelo ensinamento da gravura quanto no sentido cultural e artístico mais amplo. Depois voltei ao Brasil e levei uma prensa de gravura, mas as coisas não deram certo e eu e minha mulher preferimos voltar para cá. Fotos e Entrevista: Sylvia Carolinne.


E não voltou mais ao Brasil? Quisemos no início, mas então houve o golpe em 1964 e desistimos. Já era outro Brasil. Esta coisa terrível foi útil, em certo sentido, para vermos um Brasil maior. As pessoas que fugiam ou queriam escapar eram do Brasil inteiro, não só o paulista. Antes era tudo muito regional. Como funciona seu processo criativo? São muitas pesquisas, uma coisa se liga a outra. Isso para mim é muito importante, excita-me, mexe com a cabeça e é uma maneira de provocar o que já foi. Eu não sou determinadamente de uma época, mas uma mistura: pego coisas lá de trás e depois lá da frente. Imagino que com a maioria dos artistas seja assim. Os meus desenhos, eu começo sempre dos olhos, depois vem a figura, e não corrijo. Quando algo sai como não deveria, crio outra coisa. É muito interessante a forma como este processo se passa na cabeça, gera outras intenções. Como funciona a rotina do ateliê? Eu venho de manhã. É quando estou mais lúcido e vêm as ideias, a criação. A tarde reservo para resolver as coisas. Tenho dois rapazes que me ajudam. Continuo com minhas exposições e estou muito contente.

Sylvia Carolinne é artista visual, graduada em engenharia civil e moda e correspondente internacional da Dasartes.

18 ARTHUR PIZA



WANDA PIMENTEL A vida dos objetos


RARAS E BELAS, AS OBRAS DA SÉRIE "ENVOLVIMENTO" DE WANDA PIMENTEL TORNARAM-SE ÍCONES DO POP BRASILEIRO E OBJETO DE DESEJO DE COLECIONADORES. O MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO REVERENCIA A ARTISTA REUNINDO 30 DELAS EM UMA EXPOSIÇÃO DE PURO EMPODERAMENTO

POR CAMILA BECHELANY A realidade não é aqui uma cópia do que se vê, mas uma construção do sentimento de realidade na sociedade de consumo. A busca de Wanda Pimentel é pela expressão de certo estado de espírito da época em que ela estava produzindo, a partir da profusão de objetos "úteis", da ascensão da indústria do cotidiano. Em entrevista ao crítico Frederico Morais, quando indagada sobre como chegara aos temas da série de pinturas "Envolvimento", Pimentel responde: "Nem por acaso, nem por influências externas. Tampouco foi uma decisão abrupta, apenas para estar em dia com certos temas que começaram a aflorar nos debates sobre a sociedade de consumo, as novas tecnologias e principalmente a postura mais reivindicativa da mulher moderna. (…) Em 1970, escrevi: 'Preocupa-me a contradição entre a natureza do homem e o seu caminho cada vez mais curto para o artificial desumanizador. Porém, como o avanço tecnológico é irremediável, procuro, transfundindo a alma no objeto, conciliar os dois'”. Ao "transfundir a alma no objeto", Pimentel promove a sua humanização e a consequente desumanização do corpo. A partir de seu envolvimento com o corpo feminino, os objetos parecem ser animados e conviver de igual para igual com as pernas, os pés e dedos brancos da pintura, por outro lado, não são mais reduzidos à sua funcionalidade ou utilidade. Segmentos do corpo e partes de objetos se encontram no mesmo plano e se diferenciam somente pelas cores de cada um. 21


22 CAPA

Todas as imagens: Wanda Pimentel, Série Envolvimento, 1968. Fotos: Marco Terranova.

Em conversa com a artista, ela fala de uma pintura sua que aprecia particularmente. Trata-se de uma obra de 1968, que retrata uma cena no interior de um banheiro. Como é comum na série "Envolvimento", objetos do cotidiano e partes do corpo feminino se confundem em meio a um interior bem delimitado por linhas e formas geométricas. Nessa obra, vê-se ao centro uma perna e pés brancos que se destacam, levantados, despontando de uma banheira, sugerindo movimento. Outros elementos circundam a banheira de maneira um tanto desorganizada e compõem um espaço em que objetos e arquitetura se fundem. Descrevendo a pintura, Pimentel diz: "aqui fica claro que algo iminente vai se passar na cena com estas pernas neste banheiro, um evento, um acontecimento, um envolvimento". Três elementos — as pernas, uma toalha listrada e o creme dental que escapa do tubo — merecem nossa atenção. Eles não somente se destacam pela cor branca que sobressai às cores vivas do fundo (o vermelho, o amarelo e o verde), mas também por serem formas curvas. As sinuosidades das listras verdes e brancas da toalha se repetem nas nas



curvas do pé esquerdo a seu lado e logo abaixo nas ondulações da pasta branca que escorre. Esses elementos trazem movimento e dinamismo à composição e contrastam com a arquitetura retilínea do espaço pictórico. Outros objetos aparecem representados de forma mais ou menos realista. Seu tamanho desproporcional, se comparado ao dos outros elementos na composição, imprime um ar onírico e certamente bem-humorado ao trabalho. A torneira vermelha, por exemplo, tem o tamanho de uma perna e parece ocupar mais espaço que o aquecedor a gás, que, em proporções reais, poderia ter cinco vezes o tamanho da torneira. A água que não vemos, mas imaginamos, envolve o corpo dentro da banheira; a toalha que aparece ao lado envolverá o corpo e, em seguida, a roupa vestirá o corpo, etc. A convivência íntima das coisas com o corpo da mulher não é revelada claramente, mas insinuada sempre. É também sobre uma ideia de corpo feminino a que se refere a série de pinturas, e insinuar mais do que revelar é despertar o desejo pela imaginação, pela ideia de um acontecimento iminente, de um contato íntimo de corpo e objeto.

A convivência íntima das coisas com o corpo da mulher não é revelada claramente, mas insinuada sempre.

42 WANDA VERMEER E OS MESTRES DA PINTURA DE GÊNERO 24 PIMENTEL




…porque acho que hoje em dia é diferente. As mulheres se colocam muito mais, tem muito mais coragem. Naquela época você ficava muito arredia.

O CORPO FEMININO E O ESPAÇO As cenas cotidianas representadas por Pimentel revelam sempre o espaço doméstico e a presença do corpo feminino em contato com objetos da casa. Pernas, joelhos, pés e dedos do pé aparecem misturados, combinados e às vezes fundidos a mesas, camas, roupas, chaleiras e todo um arsenal de utensílios e coisas. As cenas acontecem sempre em interiores, reveladas em sobreposições de cores e formas geométricas. Aqui a representação do corpo, a partir do olhar de uma mulher, não deixa de nos mostrar um desejo de questionar o lugar do feminino na arte daquele momento no Brasil. O corpo feminino aparece no trabalho de Pimentel de forma clara, mas ela hesita em falar sobre liberação da mulher. A artista afirma: "Eu sempre achei que a coisa tinha que ser mostrada de uma maneira sensível e ao mesmo tempo discreta. Falei o que eu deveria falar. Mas foram anos difíceis, porque acho que hoje em dia é diferente. As mulheres se colocam muito mais, têm muito mais coragem. 27


Naquela época, você ficava muito arredia." O interesse por temas do cotidiano a partir dos anos 1960 abriu um vasto campo exploratório para a produção artística e, no que tange a artistas mulheres próximas da geração de Pimentel, parece que não interessava circunscrever sua produção em uma questão abertamente feminista. No entanto, obras com esse viés, mobilizadas por inquietações e poéticas pessoais, vieram à tona no trabalho de Sonia Andrade, Letícia Parente (1930-1991) e Teresinha Soares, por exemplo. Nas pinturas da série "Envolvimento", o caos do espaço doméstico sugere também uma perda de controle, mas na pintura há uma tensão, algo que está para acontecer ou acaba de acontecer. Como um sentimento de angústia não expresso. Os gestos banais que são fornecidos como evidências revelam o que não aparece à primeira vista. TORNAR-SE A CASA Na série "Envolvimento", pode-se ver a representação do corpo feminino como objeto de desejo reificado pelo olhar masculino dominante. A fragmentação do corpo mutila a subjetividade da mulher e intensifica sua condição de objeto de desejo/doméstico/de uso do próprio corpo na pintura de Pimentel. Principalmente as pernas, os pés e os dedos dos pés 28 CAPA



mesclados a objetos podem sugerir também um desejo de deslocamento do lugar da mulher e dos objetos. O uso do corpo da artista ou de objetos referentes ao corpo é o instrumento pelo qual a experiência feminina pode transpor, de forma mais direta possível, a passagem do lugar da mulher na vida comum para a mulher na arte. Em diferentes estratégias de empoderamento por meio da imagem — sendo autora ou autora e protagonista do próprio trabalho —, mulheres artistas manipulam a imagem do corpo feminino para desviá-la da objetificação e para criar mecanismos de desconstrução e crítica da imagem midiática da mulher. Por meio do deslocamento corpo/objeto, Pimentel opera uma possibilidade de resistência à coisificação. A artista, mediante autorrepresentação, torna-se

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soberana, controlando e deslocando a imagem do corpo da mulher e de si mesma.

Trechos do catálogo da exposição escritos por Camila Bechelany. Leia o texto completo em nosso site.

Wanda Pimentel: Envolvimentos • Museu de Arte de São Paulo MASP • 18/5 a 19/9

Camila Bechelany é curadora, pesquisadora e mestre em arte e política pela NYU. Atualmente é curadora assistente no MASP e doutoranda na EHESS, Paris.


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Autorretrato, 2010.

ELEGIA

BIENAL DE VENEZA GIANGUIDO BONFANTI


Claudia Fontes, The horse problem no PavilhĂŁo da Argentina. Foto: Italo Rondinella.


LeonorAntunes, Then We Raised The Terrainso That I Could See no PavilhĂŁo Portugal. Foto: Lucio Salvatore.


A 57ª Bienal de Arte de Veneza intitulada "Viva Arte Viva" inaugurou no início do mês de maio, curada por Christine Macel. "A arte não muda o mundo, mas é o lugar onde é possível reinventá-lo", declara Christine. Para "Viva Arte Viva", ela construiu um percurso em direção ao descobrimento do universo dos artistas e de sua vitalidade, que os permite reinventar o mundo. Ao todo são também 86 participações nacionais dando vida ao pluralismo de vozes típico da Bienal, além de 23 eventos colaterais. Em um mundo cheio de conflitos e choques, a arte é testemunha da parte mais preciosa do que nos torna humanos. A arte é o terreno ideal para exercitar a reflexão, expressão individual, liberdade e para pensar as questões fundamentais. Este ano, a Bienal é dedicada à celebração e à gratidão pela existência da arte e dos artistas, cujos mundos expandem nossas perspectivas e o espaço da nossa existência. É uma exposição inspirada pelo humanismo. Nas palavras da própria curadora, "'Viva Arte Viva' é uma afirmação, é um clamor apaixonado pela arte e pelo papel que o artista tem no mundo. "Viva Arte Viva" é uma Bienal desenhada com os artistas, pelos artistas e para os artistas."

Todas as imagens: Cortesia La Biennale di Venezia

POR CONSTANÇA BASTO

Ivan Capote no Pavilhão Cuba. Foto: Lucio Salvatore.


Olafur Eliasson, Green Light. Foto: Francesco Galli.

Em vez de abordar um único tema, "Viva Arte Viva" oferece uma rota que dá forma aos trabalhos dos artistas e um contexto que favorece o acesso e a compreensão, gerando conexões ressonâncias e pensamentos. A jornada se desdobra no curso de nove capítulos, ou famílias de artistas, começando com duas regiões introdutórias no Pavilhão Central: o Pavilhão dos Artistas e Livros e o Pavilhão das Alegrias e Medos, seguidos por sete outros capítulos através do Arsenale e do Giardino delle Vergini: o Pavilhão do Espaço Comum, Pavilhão da Terra, Pavilhão das Tradições, Pavilhão dos Xamãs, Pavilhão Dionisíaco, Pavilhão das Cores e o Pavilhão do Tempo e do Infinito.

36 DESTAQUE

Não existe, na verdade, separação física entre os pavilhões, que fluem juntos como capítulos de um livro. Cada um conta uma história que muitas vezes é discursiva e em outras ilógica com desvios que refletem a complexidade do mundo, a multiplicidade de abordagens e a ampla variedade de práticas. Esta Bienal foi pensada como uma experiência, um movimento de extroversão do eu para o outro, em direção a um espaço comum além das dimensões predefinidas. Veneza este ano estava ainda mais cheia de visitantes que o normal, a ansiedade para a inauguração da Bienal era enorme e se percebia nas ruas. A arte, cada ano que passa, vai tomando um lugar mais


importante na vida de um número sempre maior de apreciadores e isso fica bem claro em um evento desse porte. Essa Bienal foi especial, foi mais alegre, mais positiva como o tema propunha, e o clima nos pavilhões refletia isso. Eram filas enormes para visitar cada pavilhão e uma grande agitação tanto nos Giardini como no Arsenale. Começando pelos "Giardini", no Pavilhão Central ficam dois dos capítulos importantes desse percurso proposto por Christine: o Pavilhão dos Artistas e Livros e o Pavilhão da Alegria e do Medo. A ideia para o primeiro pavilhão era convidar os visitantes a se perguntarem como vivem os artistas seu mundo material e espiritual. Aqui entre muitas obras encontramos o trabalho "Green Light", de Olafur Eliasson, ocupando uma sala inteira bem na entrada, segundo o artista, seu trabalho é um ato de boas vindas dirigido aos que fugiram de guerras, dificuldades e instabilidades em seus países de origem e aos moradores das cidades que os recebem. "Green Light" é

Cada pavilhão conta uma história que muitas vezes é discursiva e em outras ilógica com desvios que refletem a complexidade do mundo, a multiplicidade de abordagens e a ampla variedade de práticas.

Erwin Wurm, One minute sculpture no Pavilhão da Áustria. Foto: Lucio Salvatore. Pavilhão do Japão com Turned Upside Down, It's a Forest. Foto: Francesco Galli.


Em sentido horário, Desenho de Kiki Smith, pinturas de Hajra Waheed e Marwan no Pavilhão da Alegria e e do Medo. Foto: Lucio Salvatore.

uma estratégia modesta de abordar os desafios e as responsabilidades decorrentes da situação atual e coloca em foco o valor do trabalho e pensamento colaborativo. Assim 80 participantes de uma ampla gama de países - incluindo Nigéria, Gâmbia, Síria, Iraque, Somália, Afeganistão e China participam do programa, trabalhando ao lado do público para fabricar lâmpadas de luz verde, que funcionam sozinhas ou em conjunto, criando estruturas mais complexas. A sala logo depois dedicada aos livros queimados de John Latham é imperdível! A seguir, no Pavilhão da Alegria e do Medo, encontramos trabalhos marcantes como os da artista canadense Hajra Waheed. Em seguida, uma sala dedicada a Kiki Smith, com seus belíssimos desenhos e pinturas em vidro, os intrigantes retratos do siriano Marwan, as meias-calça de 38 BIENAL DE VENEZA

Senga Nengudi, a série "DNA Series", de McArthur Binion, que de longe parecem abstrações, mas na realidade são interferências sobre peças autobiográficas como sua certidão de nascimento, documentos pessoais, etc., entre muitos outros artistas e obras bárbaras... Ainda nos Giardini, partindo para os pavilhões nacionais, o Pavilhão Brasileiro era parada obrigatória, com a instalação "Chão de Caça", desenvolvida pela artista Cinthia Marcelle e curado por Jochen Volz. Nosso pavilhão foi um ponto marcante da Bienal e muito elogiado. A obra é forte e causa uma sensação de desconforto e insegurança. Está imperdível e ganhou o prêmio de Menção Especial. Logo depois, dirigimo-nos ao pavilhão da Alemanha, com a instalação "Faust", de Anne Imhof, que já era o mais comentado e acabou por ganhar o Leão de Ouro


Anne Imhof, Faust no Pavilhão Alemanha. Fotos: Nadine Fraczkowski.

pela melhor participação nacional. Chegando lá, percebemos as grades em volta de todo pavilhão com cachorros dobermans dentro que andam impacientes de um lado para o outro e vemos placas que anunciam: "essa área é protegida por cães de guarda treinados, não se aproxime!". A obra trata de exclusão e inclusão, quem pode entrar e quem é deixado de fora, pensamos nos limites das fronteiras nacionais em um cenário macro, da mesma forma que associamos à exclusão por grupos e camadas socias. A obra trata também da vida contemporânea cada vez mais vivida por meio das mídias sociais. A performance mostra como expomos nossas vidas em tempo real nas redes, quase como animais em gaiolas de vidro simbólicas, onde podemos ver e ser vistos, mas estamos presos. Sem dúvida, é perturbador!

A performance mostra como expomos nossas vidas em tempo real nas redes, quase como animais em gaiolas de vidro simbólicas, onde podemos ver e ser vistos, mas estamos presos.

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Ernesto Neto, Um Sagrado Lugar. Foto: Andrea AvezzĂš.


…universos estéticos complexos que se apoiam sobre rituais, mitos, crenças e contos de fadas e transitam entre o real e o imaginário, o ambiente é escuro, confuso e misterioso, algumas obras são verdadeiramente repulsivas.

É importante visitar o Pavilhão dos EUA, com a exposição "Tomorrow is Another Day", de Mark Bradford, que trata das questões encaradas pelo grupo de pessoas marginalizadas pelo sistema, fala de suas vulnerabilidades e de sua resiliência. O Pavilhão da Áustria, com trabalhos dos artistas Erwin Wurm e Brigitte Kowanz, expõe o que chama de "One Minute Sculptures", esculturas que fizeram grande sucesso e foram muito fotografadas na Bienal e nascem da interação entre objetos comuns e os visitantes da exposição. Ela expõe belíssimas esculturas feitas de luz e material reflexivo. O Pavilhão da Grã-Bretanha também causa impacto com a instalação "Folly", da artista Phyllida Barlow, que apresenta esculturas colossais feitas de materiais baratos e reciclados. O pavilhão da Dinamarca tem concepção da artista Kirstine Roepstorff, que removeu suas janelas e paredes e reprojetou seu jardim de forma que este invadisse as galerias da construção. A ideia é a remoção das barreiras entre o território nacional demarcado pelo pavilhão e os elementos externos, entre o "dentro" e o "fora", cultura e natureza, arte e mundo. No Arsenale, onde continua a grande mostra de Christine Macel, o impacto visual é grande. Dividido em pavilhões, 42 DESTAQUE

como dito antes, que procuram contar uma história em partes, já na entrada somos envolvidos em uma grande viagem por realidades e mundos de artistas bem diferentes e com trabalhos muito interessantes. Uma viagem muito cativante! Como pavilhões nacionais no Arsenale, precisamos falar do Pavilhão Itália, cujo título este ano é "Il Mondo Magico" e foi curado por Cecilia Alemani. O título é uma referência direta ao livro de mesmo nome de Ernesto de Martino, publicado em 1948. Os artistas escolhidos são Giorgio Andreotta Calò, Roberto Cuoghi e Adelita Husni-Bey. Para os três artistas, a magia não é um escape para a irracionalidade, mas uma nova maneira de experimentar a realidade e, segundo eles, a magia pode ser uma poderosa ferramenta para habitar esse mundo e compreendê-lo em toda sua riqueza e multiplicidade. O que experimentamos como visitantes no pavilhão são obras representadas em narrativas, com universos estéticos complexos que se apoiam sobre rituais, mitos, crenças e contos de fadas e transitam entre o real e o imaginário, o ambiente é escuro, confuso e misterioso, algumas obras são verdadeiramente repulsivas, especialmente as de Roberto Cuoghi. O Pavilhão da Tunísia, com o título "A Ausência de Caminhos", que está oficialmente localizado no Arsenale, mas


Em sentido horário: Phyllida Barlow com Folly no Pavilhão Grã Bretanha, Roberto Cuoghi, com Imitação de Cristo no Pavilhão Itália e Mark Bradford com Tomorrow is Another Day no Pavilhão EUA. Fotos: Lucio Salvatore.

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se expande para três quiosques em torno de Veneza, dos quais são emitidos falsos documentos de viagem chamados "Freesas", como uma espécie de "Free Visas". Para validar o documento, os visitantes o marcam com a sua impressão digital e, simultaneamente, concordam em "endossar uma filosofia de liberdade universal de movimento sem a necessidade de sanção arbitrária baseada no estado", como avisa uma página no folheto do tamanho do passaporte. O projeto trata, por um lado, da grave crise dos refugiados e por outro faz uma paródia com o privilégio dado aos eventos mundiais culturais e artísticos. Atualmente, os quiosques são tripulados por jovens homens tunisianos que tentaram atravessar o Mediterrâneo várias vezes para se tornarem migrantes, mas não alcançaram o outro lado. Em virtude das circunstâncias especiais da Bienal de Veneza, os homens

receberam vistos de turista de um mês. Os migrantes bengaleses sem sucesso os seguirão nos próximos meses e um grupo da África Subsaariana chegará a Veneza por último. No Pavilhão da Geórgia, o artista Vajiko Chachkhiani apresenta a instalação "Living Dog among Dead Lions", uma visão poética de recentes eventos traumáticos na Geórgia e ao redor do mundo. Para a instalação, o artista desmantelou um casebre de madeira do interior da Geórgia e remontou essa casa dentro do pavilhão com móveis, quadros, utensílios e outros objetos cotidianos de uma vida simples. Com um sistema de irrigação, chove sem parar dentro da casa. É uma imagem perturbadora que cria uma forte metáfora para a condição humana. O Pavilhão da África do Sul apresenta os artistas Candice Breitz, com seu trabalho "Love Story", e Mohau Modisakeng, com

Acima: Pavilhão Tunísia, com a Ausência de Caminhos. Fotos: Lucio Salvatore. À direita: Obra de John Latham no Pavilhão dos Artistas e Livros.

44 BIENAL DE VENEZA


seu "Passage". Ambos abordam a questão da migração forçada. É como sempre uma Bienal marcante que não sai fácil da cabeça, que cria novas conexões, novas percepções do mundo e dos imensos conflitos que estamos envolvidos. É um percurso que nos emociona, faz sentir e refletir sobre questões que estavam lá o tempo todo, mas, ao vê-las representadas pelos olhos de um artista, parece que ficam mais nítidas. A arte é isso, uma alternativa evidente ao individualismo e à indiferença. Em uma época de desordem global, a arte abraça a vida. O papel, a voz e a responsabilidade do artista são mais cruciais do que nunca no âmbito dos debates contemporâneos. É dentro e

através dessas iniciativas individuais que o mundo de amanhã toma forma, que, embora certamente inseguro, é muitas vezes melhor intuído por artistas do que outros.

Veja em nosso site essa matéria completa e uma lista de eventos paralelos em Veneza.

Constança Basto é carioca que mora na Itália, designer de moda e pesquisadora de arte.

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CINTHIA MARCELLE CHÃO DE CAÇA: UMA METÁFORA CONCRETA

POR REBECCA MOCCIA A intervenção chamada "Chão de caça", da artista Cinthia Marcelle, com curadoria de Jochen Volz e encomendado pela Fundação Bienal de São Paulo, é composta principalmente por uma escultura de grelha de ferro inclinada que ocupa todo o pavilhão modernista do Brasil, na parte interna dos jardins. A partir da própria arquitetura do pavilhão, a obra divide o espaço em três partes: o chão, o que tem embaixo e o que tem em cima. Algumas coisas vivem, animam-se, na superfície, no branco, como um tronco de madeira isolado que forma três sombras paralelas, uma floresta de bandeiras decoradas com motivos lineares pintados, brancos sobre tecido branco, ou um vídeo, criado 46 DESTAQUE

especialmente para a obra, em colaboração com o cineasta Tiago Mata Machado, que retrata homens de vermelho que trabalham sobre telhados como se estivessem colados em um cenário sem profundidade; outras coisas afundam no escuro embaixo e se cobrem de um tempo negro, serpentes e pedras cobertas de cadarços; e outras, ainda, telhas provenientes dos mesmos jardins, ficam encastradas no meio do cinza, suspensas como resíduos de uma catástrofe. Esses elementos vão formar o micromodo, ao mesmo tempo metafórico e físico, que a autora mineira de 42 anos põe diante do homem decidido a entrar para ver o pavilhão brasileiro da bienal de Veneza hoje, no contexto histórico e social preciso de hoje: de fato, a artista não propõe uma realidade nova, nem


…o que interessa a Marcelle é criar uma grande metáfora da situação brasileira, mas uma metáfora muito concreta.

fotografa o existente em modo documentarista; o que interessa a Marcelle é criar uma grande metáfora da situação brasileira, mas uma metáfora muito concreta. Talvez porque a realidade seja difícil de contornar, talvez porque os fracassos, o passado e a condição política não parecem deixar espaço para criar uma nova realidade, uma nova utopia: e é exatamente aqui que o olhar da artista se move para contribuir com o nosso cotidiano, com os fatos do dia a dia, com o desconforto social, fazendo fluir ao lado uma legenda, pondo um filtro poético, uma história subjacente àquilo que vivemos, a fim de recuperar a beleza, a fragilidade através da qual se infiltrariam a liberdade, a subversão, a imaginação. 47


O ÓCIO NAS OBRAS DE FRANZ WEST E MLADEN STILINOVIC A RESPONSABILIDADE NA PRODUÇÃO

POR REBECCA MOCCIA "A sagacidade é, para os empreendedores e para os dirigentes, como uma poltrona no cantinho ou um lugarzinho perto de um aquecedor, riem sob os bigodes" Já na entrada do pavilhão, vemos uma sala dedicada ao austríaco Franz West (1947-2012), vencedor de um Leão de Ouro em 2011 e falecido recentemente. Na sala, é apresentado um grupo de obras como: um trabalho sobre o texto "Otium" (1995, "ócio" em latim); uma versão da "Chaise Longe" que faz parte do corpo de suas célebres instalações 48 BIENAL DE VENEZA

dos anos 1990 com sofás e tapetes; e um autorretrato no qual o artista aparece deitado sobre um sofá no seu estúdio, obra que faz referência a uma série análoga de fotografias na sala ao lado, "Artist at work" (1978/2017), fotos que retratam o artista polonês Mladen Stilinovic revirando-se em sua cama. Seguindo a proposta de Christine Marcel, curadora da Bienal, de chamar a atenção para a responsabilidade do artista na conflitiva realidade contemporânea, analisemos estes trabalhos avaliando o "Otium", a não produtividade, não apenas como parte do universo da intimidade do artista, como curiosidade sobre a sua prática


(como sugere a legenda), mas também como exercício social compartilhável, como o engajamento político que o artista carrega em si mesmo, justamente porque é parte fundamental do seu trabalho acrescentar algo a mais ao já existente. Agir em modo autônomo e cheio de significado, em relação àquilo que a sociedade deseja, pode significar também não agir, ser improdutivo, arrancar o tempo do consumo, pensar sobre o que é certo e errado colocar no mundo e é isso que o público deveria querer de um artista no mundo consagrado ao capital.

O que aconteceria se também os artistas, os avalistas do senso do fazer, fossem tomados pela ansiedade da produção? Quem vai ficar para lutar contra a extinção, em todos os âmbitos, da sociedade da noção de necessidade?

57ª Bienal de Veneza • Giardini e all’Arsenale • 13/5 a 16/11 Rebecca Moccia é artista plástica e atua em crítica e eventos de arte. Vive e trabalho em Milão e Rima e se interessa pelo cenário artístico no Brasil.

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yves klein RETROSPECTIVA

Escultura de esponja azul, sem título, 1960. Todas as imagens: Yves Klein Archives © Succession Yves Klein, ADAGP, París / SAVA, Buenos Aires, 2017.



20 DESTAQUE


POR ADRIANA ROSENBERG Em finais de 1988, Pierre Restany fez sua última viagem à Argentina e, no jantar no qual se despediu de Jorge Romero Brest, lembraram juntos dos artistas que admiravam. Foi o último ato de uma longa relação em que revisou as exposições e os momentos intermináveis que tinham compartilhado. Yves Klein era admirado por ambos, mas cada um tinha suas preferências: Romero Brest acreditava que a invenção da cor blue garantia a Klein um lugar privilegiado na história da arte do século 20, enquanto Restany resgatava sua imaterialidade, o vazio e as performances do artista. Era uma admiração genuína e compartilhada, que lhes permitiu prolongar o adeus. A participação direta de Restany em algumas mostras de Yves Klein e seu contato pessoal com o artista foram incorporados em seu livro "O outro lado da arte". Foram Romero Brest e esta publicação que me mostraram a importância dos "novos realistas", do diálogo entre Paris e Nova York e do trabalho de Klein. Hoje, quase três décadas depois daquele adeus, tive muitos anos de reflexão com Daniel Maquay sobre a oportunidade de apresentar o trabalho de Klein na Argentina e itinerá-lo na América do Sul. O trabalho de Klein exige um grande começo, e assim, por meio de 76 obras e mais de uma centena de documentos, os visitantes podem conhecer a breve, mas excelente, produção de Klein: a invenção

À esquerda: Pintura de fogo, 1961.

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da cor, os primórdios da performance, os monocromos, a "antropometria", o domingo com seu salto ao vazio, sua floresta de esponjas, vídeos e o enorme enigma que sempre se apresenta quando estamos em frente à sua obra. Em um dos textos contidos no catálogo da Fundação Proa, Denys RIout escreve: "Depois de ter materializado o azul, superado a problemática da arte, pode-se ir mais longe? Certamente não, mas ir a outros lugares, isso sim, com certeza. E isso é precisamente o que fez Klein. Paralelamente ao eixo monocromia/ sensibilidade pictórica imaterial, nunca deixa de explorar outros caminhos, conquistar domínios até então desconhecidos e inventar possíveis territórios." Da parte de Klaus Ottmann, a importância de Klein pode ser resumida em uma única afirmação: "ter reinventado o papel da arte na sociedade da forma mais radical, uma forma que consegue honrar sua promessa utópica, mesmo que signifique o fim da própria arte." A exposição Yves Klein na Fundação Proa vem acompanhada de um extenso programa de atividades: um concerto onde se interpretará a Sinfonia Monótona, um simpósio internacional, um desfile de jovens estudantes de design de moda da Universidade de Buenos Aires inspirado no trabalho de Klein e uma série de performances dedicadas ao artista.

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Sem tĂ­tulo (Monocromo vermelho), 1955.


Acima: Pintura de fogo colorida, 1962 e Victoria de Samotracia, 1962. À direita: Alívio planetário rosa "Luna II", 1961.

Superando os problemas da arte POR YVES KLEIN Não o suficiente para dizer ou escrever: "Eu superei o problema da arte". Ele deve ter. E eu fiz. Para mim, a pintura já não é baseada no olho. Baseia-se a única coisa que não pertencem a nós: a nossa vida. Foi assim que as coisas aconteceram: "Em 1946, eu já pintava e estava sob a influência de meu pai, pintor figurativo, paisagens com cavalos ou cenas de praia; e sob a influência de minha mãe, pintora abstrata, composições de formas e cores. Ao mesmo tempo, a 'cor', o espaço sensível puro, agarrouse ao meu olho, de maneira irregular, porém obstinada. Essa sensação de liberdade total do espaço sensível puro teve sobre mim tal poder de atração que eu pintava minhas 56 DESTAQUE

Ao mesmo tempo, a "cor" o espaço sensível puro, agarrou-se ao meu olho, de maneira irregular porem obstinada.


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Acima: ExpressĂŁo do Universo da cor mina de laranja, 1955 (maio); CalifĂłrnia, 1961 e Monocromo Verde, 1954.


Yves Klein e suas esculturas.

superfícies monocromáticas com meus próprios olhos de tudo que via. Naquela época, eu não considerei essas tentativas como uma possibilidade pictórica, até que um dia, um ano depois, eu disse: 'Por que não?'. Na vida de um homem, "por que não" decide tudo, é o destino, o sinal para o criador, indicando que o arquétipo de um novo estado de coisas está pronto, que já amadureceu, que podem aparecer ao mundo. No entanto, não mostrei coisa alguma ao mundo imediatamente. Eu esperei. "Estabilizei" a coisa. Sou contra a linha e todas as suas consequências: esboço, formas, composição. Todas as imagens, quaisquer que fossem, figurativas ou abstratas, eu tenho o efeito de janelas de prisão cujos bares são precisamente aquelas linhas. Muito

pelo contrário, na cor, o dominante, é grátis! O leitor de um quadro com linhas, formas, composição, torna-se preso aos seus cinco sentidos."

Veja em nosso site, a cronologia das principais obras do artista.

Yves Klein: Retrospectiva • Fundacion Proa • Buenos Aires • 18/3 a 31/7

Adriana Rosenberg é sóciafundadora e presidente da Fundacion Proa em Buenos Aires, Argentina.

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CARLOS FAJARDO Por através de um “Espelho no Espelho”

POR HENRIQUE XAVIER “Vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu...” Jorge Luis Borges Olho meu rosto no espelho para saber quem sou, o espelho é um mecanismo para checar a realidade, em muitas correntes interpretativas o "realismo" é tido como um espelhamento literal do mundo. Porém, quando nos deparamos com os espelhos e as demais superfícies 60 ALTO RELEVO

reflexivas da exposição "Espelho no Espelhos", de Carlos Fajardo (que apresenta a curadoria deste que escreve estas linhas), temos a delicada experiência estética de estar diante de superfícies espelhadas que não devolvem a realidade, o mundo e nós mesmos tal como somos, mas, sim, transformados em outro, transformados irrevogavelmente em arte. São um total de sete obras em sua maioria compostas de grandes superfícies de placas de vidro com variações de transparência, reflexão e cor. Todas as obras foram


originalmente criadas para reconfigurar esteticamente a galeria do Instituto Ling em uma espécie de instalação que nos coloca em meio a um jogo de infinitas reflexões, sendo algo da mesma ordem do abismo ótico de quando temos um espelho diante de outro espelho. As grandes dimensões das superfícies de vidro, que tomam conta das paredes, produzem reflexos que multiplicam uma obra no interior de outra obra, abrindo, então, estranhas passagens que de forma ilusória perfuram o espaço da galeria. Há na exposição alguns poucos e significativos materiais não reflexivos: a) uma esfera de glicerina verde que tinge o ar com um delicado perfume que provém da sua cor; b) uma série de nove fotos que compõem uma enorme superfície que sensualmente evoca, sem muita definição, a partes do corpo humano e c) uma espessa camada de feltro branco que se inclina sobre o seu peso, porém esta já se

…um jogo de infinitas reflexões, sendo algo da mesma ordem do abismo ótico de quando temos um espelho diante de outro espelho.

À esquerda: O artista Carlos Fajardo. Acima: Vista da exposição. Todas imagens: Fábio Del Re.


62 CARLOS FAJARDO



…o artista é capaz de criar espelhos que "fantasticamente" deslocam o mundo para o interior da arte.

64 ALTO RELEVO

encontra por trás de uma superfície de vidro amarelo, com a qual voltamos ao universo de reflexões. Por meio da meticulosa sobreposição entre camadas de vidro - superfícies que são cuidadosamente reclinadas a partir de leves e diferentes angulações e, também, apresentando cores, transparências e reflexões de intensidades variadas -, o artista é capaz de criar espelhos que "fantasticamente" deslocam o mundo para o interior da arte. São espelhos cujos belíssimos e estranhos reflexos se bifurcam no interior de si, são fantásticas superfícies que produzem reflexões partidas e sobreposições de imagens que se deslocam de si


mesmas. Jamais temos uma imagem comum ao nos colocarmos diante de tais obras. Por exemplo, uma caixa quadrada com dois metros de lado e 20 centímetros de altura que está apoiada no chão, torna-se, através do jogo de reflexos, uma espécie de profunda piscina de um líquido vermelho reluzente. Como no mito grego de Narciso, os espectadores se perdem fascinados pelos belíssimos reflexos que parecem flutuar e submergir entre os vidros, como se tivessem adquirido vida própria. Neste espaço especularmente líquido é como se as imagens virtuais que se multiplicam procurassem deixar de reproduzir os nossos movimentos, rebelando-se contra a tarefa de imitar todos os atos que produzimos diante da obra.

Quando nos encontramos frente às obras de Fajardo, temos uma fascinante experiência estética que nos faz recordar que o espelho não apenas vem simbolizar o realismo, mas, ao mesmo tempo, é um dos elementos mais constantes e misteriosos da arte e literatura fantástica.

Carlos Fajardo • Espelho no Espelho • Galeria do Instituto Ling • Porto Alegre • 10/5 a 5/8

Henrique Piccinato Xavier atua nas áreas de filosofia do século 17 e contemporânea; curadoria, crítica e história de arte; produção audiovisual; concepção e design de livros de arte; além de ministrar cursos em tais áreas.

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RESENHAS exposições

Lugares do Delírio - Museu de Arte do Rio - MAR POR CHANDRA SANTOS Com obras dos artistas Cildo Meireles, Laura Lima, Anna Maria Maiolino, Arthur Bispo do Rosário, Fernand Deligny, Raphael Domingues, Gustavo Speridião, Fernando Diniz, Cláudio Paiva e Geraldo Lúcio Aragão (entre outros), a exposição "Lugares de Delírio" traça uma reflexão sobre política, ética, loucura e arte. Apresenta uma trama de experiências e artistas que atuaram no território da saúde mental no Brasil, especialmente a partir da década de 1940, com o 68

trabalho da Drª Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Nacional, atual Instituto Municipal Nise da Silveira, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Idealizada por Paulo Herkenhoff e com curadoria da psicanalista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Tania Rivera, a mostra apresenta mais de 150 trabalhos em variados materiais e suportes, como instalações, mapas, performances, pinturas e objetos. O título da mostra, no qual se utiliza a palavra "delírio", evoca aquilo que está fora do padrão e reconfigura a realidade. A mostra apresenta obras tanto de artistas que foram diagnosticados com algum


Todas as imagens: Chandra Santos.

transtorno psíquico, quanto aqueles que recusam as vias tradicionais de representação ou, ainda, que questionam de certa forma o que é taxado de loucura. Já outras obras são resultado do trabalho de artistas visuais em parceria com pacientes de instituições psiquiátricas. Todas elas estão dispostas de forma a conversar entre si e se entrelaçarem. Entre as obras da exposição estão "Camisa de Força" (1969), de Lygia Clark, e "Razão/Loucura" (1976), de Cildo Meireles. Ainda do artista, estão expostas 42 imagens da série de fotografias "Cottolengo", feitas no hospital Vila de São José Bento Cottolengo, em 1976. A curadoria organizou a exposição com uma grande diversidade de gêneros e linguagens baseada no questionamento sobre o que há de delirante na arte e o que há de reflexão sobre a loucura na arte.

Chandra Santos é bacharel em Comunicação Social e especialista em Marketing e Design Digital. Como jornalista escreve para Dasartes e a Obvious (blog: Pela Janela). Faz assessoria de comunicação e imprensa para artistas e instituições culturais.

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RESENHAS exposições

Vik Muniz, Quantum Lip, 2017. Foto: Francesco Allegretto.

Glasstress 2017 - Veneza, Itália POR LICA CECATO No mundo de hoje, é quase ofensivo falar em beleza, mas é inevitável, morando em Veneza, atraída diariamente por seus prismas, reflexos, translucidezes e mistérios. O enlace entre o vidro e a cidade é perfeito e revela séculos de história. Adriano Berengo ressuscitou a ideia da colaboração entre o artista, o "maestro di vetro" (mestre de vidro), e a concepção do projeto, ideia explorada nos tempos da Peggy Guggenheim, por meio da fábrica de vidro de Egidio Costantini, que tinha a ambição, nos anos 1950, de levar o vidro de Murano à 70

estatura artística da pintura ou escultura e consegue apoio de artistas como Pablo Picasso, Alexander Calder, Jean Arp, dentre outros. Adriano Berengo abre o Studio Berengo em 1989, em 2009, criou Glasstress incorporada à 53ª Bienal de Veneza. Na quinta e atual edição, participam 40 artistas da Europa, EUA, Oriente Médio e China, em uma exposição ambiciosa que explora as infinitas possibilidades da criação de obras de arte em vidro. Ocupando dois lugares históricos de prestígio, uma antiga fábrica de vidro de Murano e o Palazzo Franchetti, em Veneza, a exposição nos delicia com um Ai WeiWei de delicadeza inédita, mesmo mantendo o típico contexto de protesto


de sua obra. Seu braço, antebraço e dedo médio, indicando "Fuck you", é de uma beleza angélica. Contrastes convivem. Karen LaMonte, no átrio de ingresso, usa um elegante vidro cinza translúcido, em esculturas clássicas de mulheres acéfalas que remetem à Vitória de Samotrácia. A Fundação Berengo hospeda artistas, oferecendo tempo/espaço para que realizem suas obras. Glasstress 2017 causa impacto, como a instalação do francês Loris Gréaud na ilha de Murano, "The Unplayed Notes Factory", mais de 800 peças de vidro, representando uma noite de temporal, com raios e trovões. A delicadeza e certo niilismo de Jan Fabre; as lâminas de vidro, obsessivamente aglomeradas de Josepha Gasch-Muche, ou ainda o espelho que retrata e esconde um rosto de mulher, de Halim Al-Karim, relembrando seu exílio no deserto. Em 2017, recebemos a Menção Honrosa ao Pavilhão Brasil na 57ª Bienal de Veneza pela instalação de Cinthia Marcelle. O artista Vik Muniz, faz mostra individual no Palazzo Cini e participa do Glasstress. Inspirado em Lewis Carrol, cria taças de vidro soprado, do tamanho do homem, colocadas em gigante cristaleira. Lúdico, questiona se engolimos a cidade ou o contrário. A boa novidade que acaba de ser confirmada é que a curadoria de Glasstress 2018 será de Vik Muniz, que neste ano conta com Dimitri Ozerkov (Hermitage Museum, St. Petersburg). Herwig Kepinger (Association of Visual Arts, Viena) e Adriano Berengo. "The

Unplayed Notes Factory", de Loris Gréaud, tem curador independente, Nicolas Bourriaud.

Veja a resenha na íntegra em nosso site, na sessão “Dasartes viu”.

Lica Cecato, paulista que vive entre Veneza, Rio de Janeiro e Kamakura, trabalha no mundo como música e artista multi-meios culturais.

Acima: Halim Al-Karim, Dust 12b, 2015/2017. Foto: Francesco Allegretto. Loris Gréaud, The Unplayed Notes Factory, 2017. © Loris Gréaud, Gréaudstudio.


COLUNA DO MEIO Fotos: Celina Germer

Quem e onde no meio da arte

Douglas de Freitas, Beth da Matta, Daniell Maranhão e Fernando Ferreira de Araujo

Os sócios Daniel Maranhão e Fernando Ferreira Araújo

Galeria Base Inauguração [co]existências São Paulo Fernando Ferreira de Araújo e Tamara Perlman

Cecilia Taioli, Eduardo Climachauska, Wanferlei Lopes e João Romantini

Anthony Aldea, Raquel Tribone , Breno Dunkan e Ivy Santana

Fotos: Paulo Jabur

José Henrique Fabre Rolim Eduardo Oliveira, Cesar Fragae Pedro ePaulo GinaMendes Elimelek

Carlos Alberto Gouvêa Chateaubriand, Jaildo Marinho, Max Perlingeiro e Jacques Lennhardt

Beatriz Milhazes e Jaildo Marinho

Jaildo Marinho MAM Rio de Janeiro Max Perlingeiro Filho, Márcia Oliveira e Luciano Figueiredo

Fernando Cochiarale, Bia Perlingeiro, Fernanda Lopes e Victor Perlingeiro

Adriana Cataldo e Camila Perlingeiro

Maria Carmen Perlingeiro, Jacques Leenhardt e Vanda Klabin



Fotos: Paulo Jabur

Ângelo Venosa, Gabriela Moraes e Marco Maggi

Renato Bezerra de Mello, Brígida Baltar e Ricardo Pessoa de Queiroz

Marco Maggi Galeria Nara Roesler Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Venosa e Marco Maggi eÂngelo Gina Elimelek

Franklin Pedroso - Raul Mourão

Miguel Pinto Guimarães, Paula Marinho e Alexandre Roesler Fotos: Silvia Balady

Nadia Nightingale e Lucca Malta

Romildo Campello, José Luiz Penna, José Carlos Marçal, Cardeal Dom Odilo Scherer, Dom Damaskinos Mansur e Mestra e Monja Budista Miao Yen

Lorian von Fürstenberg, Bubby e Graziella Leonetti

Doutores e Doutoras da Igreja Museu de Arte Sacra de São Paulo Ana Célia Monteiro e Alessandra Ferrari

José Luiz Penna, José Carlos Marçal e Cardeal Dom Odilo Scherer

Vanessa Bortulucce e Marcos HorácioDias

Padre Luiz Baronto e José Luiz Penna



NOTAS DO MERCADO Fatos, valores, curiosidades e tendências LEILÕES BRASILEIROS de maio foram animados. No James Lisboa, o destaque ficou com uma tela de Burle Marx, com estimativa a partir de R$ 130 mil, vendida a R$ 270 mil. Na Bolsa de Arte, dois belos Cícero Dias avaliados a partir de R$ 240 mil foram vendidos por R$ 200 mil e R$ 230 mil. Na mesma noite, Dagmar Saboya dividiu a atenção de "marchands" e colecionadores oferecendo duas obras antológicas de Guignard e Portinari com preços-base convidativos. O Portinari, que agentes do mercado estimam em até R$ 10 milhões, foi vendido a R$ 5,5 milhões. Com isso, confirmamos nossa percepção pós-SP-Arte: o mercado está bom para obras de médio valor, mas poucos compradores estão investindo em obras caras, resultando em ótimas oportunidades para quem tem dinheiro para investir. Em geral, a percepção dos marchands e leiloeiros é positiva no momento, com muitas obras sendo disputadas em todos os principais leilões.

WARHOL E BASQUIAT trocam de posição no topo do "ranking" internacional. Após o "boom" em 2013-2014, quando dezenas de telas de Warhol foram vendidas em leilão por valores cada vez maiores, a demanda para obras do artista parecia estancada, ao mesmo tempo em que os valores para obras de Basquiat disparavam. Os comentários do mercado se confirmaram em maio: uma tela de Basquiat foi vendida por US$ 110 milhões pela Sotheby's, tornando-o o artista mais caro dos Estados Unidos e segundo do mundo, posição antes ocupada por Warhol. Simbolicamente, um dos dois únicos lotes não vendidos neste leilão da Sotheby's foi uma tela de Warhol. Mas nem tudo foi ruim para o artista nesta temporada: no leilão da Phillips, dos dez lotes de sua autoria oferecidos, nove encontraram compradores, quatro deles por valores acima da estimativa alta. De acordo com os rumores e comentários, Gerhard Richter será o próximo "queridinho".

A colecionadora de arte Agnes Gund confirmou os rumores de que teria vendido uma tela de LICHTENSTEIN por US$ 156 milhões. Parte do valor será destinado a criar um fundo de justiça criminal. Se não descontarmos a parcela de filantropia do comprador e se fossem consideradas as vendas privadas, Lichtenstein seria de fato o artista mais caro dos EUA.

RESULTADOS DOS LEILÕES da temporada de Nova York registraram alta em relação ao ano passado, com as principais vendas das três maiores casas somando quase US$ 1,5 bilhão. As análises desse resultado se dividiram: para uns, a consolidação da recuperação do mercado de arte; para outros, vendas mornas empurradas por alguns lotes extraordinários. Seja qual for o chute mais certeiro, momentos de pura emoção esquentaram as salas de leilão, com lances milionários se alternando acirradamente na disputa por obras raras. Veja na página ao lado, alguns resultados dignos de nota: 76


LATINO-AMERICANA PHILLIPS

Lygia Pape Acrílica e têmpera sobre madeira, 8 partes de 16 x 16 x 1,6 cm, 1963-1976 Estimativa: US$ 300 mil - US$ 500 mil Venda: US$ 430 mil

Lothar Charoux Guache sobre madeira, 100x34 cm, 1971 Estimativa: US$ 15 mil - US$ 20 mil Venda: US$ 21.250,00

Pedro Motta Fotografia, 40 x 50, ed. 3/5, 2016 Estimativa: US$ 2 mil - US$ 3 mil Venda: US$ 2,5 mil

Pablo Atchugarry Mármore carrara, 75 x 40 x 25 cm, 2016 Estimativa: US$ 40 mil - US$ 60 mil Venda: US$ 56.250

SOTHEBY’S

Antonio Dias Acrílica sobre tela, 50 x 150 cm, c.1971 Estimativa: US$ 125 mil - US$ 175 mil Venda: US$ 137,5 mil

Sandú Darié Plaka sobre tela, 121 x 79, c.1953 Estimativa: US$ 120 mil - US$ 180 mil Venda: US$ 100 mil

PÓS-GUERRA E CONTEMPORÂNEO

Yayoi Kusama Acrílica sobre tela, 194 x 194 cm, 2008 Estimativa: US$ 350 mil - US$ 450 mil Venda: US$ 670 mil

CHRISTIE’S

Damien Hirst Cera caseira sobre tela 125 x 150 cm, 2002 Estimativa: US$ 250 mil - US$ 350 mil Venda: US$ 607 mil

Vik Muniz Fotografia 116 x 240 cm, ed. 2/6, 2008 Estimativa: US$ 40 mil - US$ 60 mil Venda: US$ 40 mil

SOTHEBY’S

PHILLIPS

Carlos Garaicoa Fotografia em cibrachrome, 50 x 60 cm, ed. 4/5, 1998-2001 Estimativa: US$ 5 mil - US$ 7 mil Venda: US$ 7,5 mil

CHRISTIE’S

Tunga Bronze e cobre, 63 x 23 x 3 cm Estimativa: US$ 60 mil - US$ 80 mil Venda: US$ 60 mil

Vik Muniz Fotografia, 1/6, 180 x 233 cm, 2006Estimativa: US$ 40 mil - US$ 60 mil Venda: US$ 100 mil

Gerhard Richter Impressão sobre alumínio, 100 x 100 cm, ed. 205/500, 2014 Estimativa: US$ 7 mil - US$ 10 mil Venda: US$ 43.750

Roy Lichtenstein Óleo e magma sobre tela 147 x 152 cm, 1995 Estimativa: sob demanda Venda: US$ 24 milhões

Mira Schendel Papel de arroz, 67 x 26 x 16 cm, 1966 Estimativa: US$ 1,2 - US$ 1,800 milhão Venda: US$ 1.512.500,00


ALTO FALANTE

Por Guy Amado

Cavalo de Troia É possível divisar na produção artística e cultural contemporânea um espectro heterogêneo, mas consistente, de correntes de pensamento interessadas em analisar a dinâmica que rege estas práticas e adotar um posicionamento crítico frente ao estado de coisas. Adota-se um conjunto de táticas que conjuga o aspecto formal, estético, conceitual e mesmo logístico a uma lógica propositiva e efetiva, levando a cabo propostas calcadas em conteúdos sociopolíticos e em uma crítica da representação em geral mirando nos limites do circuito da arte. Nesse tipo de ações tende a convergir um tipo de prática voltado para a capacidade de emular o mesmo código formal do modelo original, mimetizar sua linguagem e estrutura para então produzir o ruído, o descompasso de expectativas que gera o almejado efeito crítico. Seguem-se dois casos paradigmáticos nessa dinâmica: a trajetória peculiar do (suposto) artista sérvio Darko Maver, que no decorrer de um ano sai do total anonimato à participação na 48ª Bienal de Veneza (1999), e uma performance emblemática da artista norte-americana Andrea Fraser. O caso Darko Maver A polêmica envolvendo o artista sérvio-esloveno Darko Maver e sua trajetória meteórica e singular no circuito artístico europeu, culminando com o convite para participar da Bienal de Veneza de 1999, segue provando-se ainda atual e passível de ser rememorada. Das mais enigmáticas figuras a surgir no mundo da arte, os rumores sobre as atividades deste artista começaram em 1998, em circuitos de arte "underground" do leste europeu que reportavam suas instalações com bonecos de cera em perturbadores arranjos sanguinolentos. Acusado de atividades "antipatrióticas" e "propaganda hostil" - dado o teor polêmico de seu trabalho -, teria sido encarcerado em uma penitenciária em Kosovo. Prisão à parte, a trajetória ímpar do artista seguia despertando o interesse internacional e, no ano seguinte, Darko Maver foi oficialmente convidado a participar da 48ª edição da Bienalle, um dos dois mais prestigiosos eventos do mundo nessa área. Em maio do mesmo ano, contudo, veio o primeiro choque: é anunciada a morte do artista no cárcere, em circunstâncias nebulosas. Organizou-se uma "retrospectiva" em Roma em sua homenagem. Um grupo de

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representantes do finado decidiu então montar, postumamente, uma exposição de Maver na Bienalle, consistindo em uma instalação-réquiem apresentando o documentário "Darko Maver - The art of war". No início de 2000, veio a bombástica e definitiva notícia acerca daquela persona misteriosa: uma dupla de artistas, então conhecidos como 0100101110101101.ORG (hoje Eva e Franco Mattes), afirmava "ter inventado a vida e as obras do artista Darko Maver". O artista que instigara a Europa pelo radicalismo mórbido e visceralidade de suas ações artísticas era uma farsa. As imagens de "suas obras" eram na verdade fotos de crimes reais, imagens nauseantes disponíveis gratuitamente na internet. Frente ao embaraço público, diz-se que o curador-geral daquela edição da Biennale e da seguinte, o mítico Harald Szeemann, teria convidado o duo subversivo para participar da 49ª como "artistas oficiais" (que aceitaram). A "ação-projeto" Darko Maver certamente suscita algumas outras indagações sobre seu significado e desdobramentos. Os responsáveis pelo construto afirmam ter tentado "explicitar os mecanismos que gerenciam o sistema da arte contemporânea, para evidenciar que críticos e curadores estão aptos a criar um artista, independentemente do valor ou qualidade de suas obras", pondo em xeque alguns paradigmas que regem a obscura dinâmica de legitimação de papéis no circuito da Grande Arte. Em outra medida, é também tensionado o papel fundamental da grande mídia na dinâmica mais e mais difusa do processo de atestar a "realidade" aos olhos do cidadão-consumidor. Destaques do Museu Já Andrea Fraser é uma artista real, atuante desde finais dos anos 1980 e um expoente da "performance art" voltada para a chamada crítica institucional. Em suas performances e trabalhos em vídeo, Fraser assume com frequência personagens, em sua investigação crítica acerca dos lugares da arte e políticas oficiais e premissas não declaradas que apoiam essa atividade, revelando as

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camadas de contexto e construção (de classe, gênero, política, etc.) que fundamentam sua própria existência. Na sua clássica peça "Museum Highlights: A Gallery Talk" (1989), Fraser tomou emprestadas a forma e as convenções de uma visita guiada de museu, assumindo o papel de Jane Castleton, uma fictícia monitora da instituição. O "tour" foi inteiramente composto de citações de fontes variadas, incluindo brochuras dos arquivos do museu, excertos de resenhas críticas e fragmentos de textos de autores díspares entre filósofos, sociólogos e teóricos políticos. Em vez de conduzir os visitantes ao longo de uma mostra no Museu de Arte da Filadélfia, Castleton/Fraser salienta elementos "menores" da infraestrutura tipicamente ignorados (como bebedouros e sistema de ventilação), chamando atenção para questões relacionadas à pedagogia, critérios estéticos e outros sistemas de juízo em funcionamento em museus. Trajando um conjunto formal em tons de cinza, "Castleton" fala diretamente para a câmera à medida que se desloca pelo museu. Paralelamente aos dados convencionais de uma visita guiada - como a história da instituição e de sua coleção -, Castleton lança comentários sobre espaços "off" do prédio como os banheiros, o bengaleiro e a loja de souvenires. Ela também se pronuncia - em estranhas digressões, e com grande entusiasmo - sobre temas mais vagos e generalistas como a política e questões sociais. A linguagem empregada por Fraser em sua performance é claramente paródica das descrições comumente fornecida pelos monitores de museu, com o guia lançando extensos e exagerados elogios a itens banais com que o grupo se depara. Ocorrem várias vezes uma esquisita disjunção entre as palavras da mulher e os objetos que ela descreve, como quando olha para uma placa sinalizando a saída e exclama: "esta foto é um exemplo brilhante de uma escola brilhante". Ao longo do trajeto, "Castleton" volta seguidamente a questões de gosto pessoal e às noções de graça, dignidade e ordem que ela sente que obras de arte, museus e visitantes deveriam incorporar. "Museum Highlights", em suma, documenta o uso que Fraser faz de uma persona inventada para apresentar "outra" versão da história social do museu de arte, com ênfase nas "relações entre classe e gosto, políticas públicas e privadas". Essa peça foi a primeira em seu gênero e segue como uma obra de referência na história da "performance art".

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Conclusão Há quase 35 anos, Cildo Meireles realizava sua seminal série Inserções em circuitos ideológicos, onde adotava como mote estratégico a infiltração nas engrenagens do sistema para então, valendo-se do fluxo natural de circulação deste mesmo sistema, produzir um deslocamento simbólico e atingir um maior grau de efetiva funcionalidade e contundência para suas proposições. Era movido pela pulsão de insuflar um sentimento de resistência no imaginário coletivo, incitando à reflexão e a um posicionamento crítico acerca do contexto de opressão política que vigorava à época. Os casos aqui comentados alinhamse conceitualmente com tais premissas, ainda que mirando - cada um à sua maneira - objetivos talvez mais específicos. A pulsão transgressora ou subversiva do projeto Darko Maver e seu peculiar corolário na Biennalle é certamente diferente das aspirações em jogo na proposta de Fraser, que de saída já conta com o aval institucional para sua realização (o que não tira sua força). São trabalhos que tentam posicionar-se na contramão de uma cooptação por mecanismos institucionais, embora. Compartilham também - assim como a citada obra de Cildo - de um modus operandi que se aproxima do cavalo de Tróia da narrativa clássica: a crença de que desenvolver modos ou técnicas de inserção ou infiltração no território adversário, para só então proceder ao combate "de dentro", pode ser a via mais efetiva para se levar a cabo as aspirações em jogo. Para isso, como se sabe, é necessário assimilar e emular o código original do sistema, para então introduzir o ruído, a dissonância, a partícula de caos ativadora de uma nova ordem que caracteriza a pulsão transgressora ou libertadora.

Guy Amado é crítico de arte e curador independente. Vive atualmente em Portugal, onde realiza doutorado em Arte Contemporânea.

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