Revista Dasartes Edicao 62

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TOULOUSE-LAUTREC ANDRÉ GRIFFO IRMÃOS CAMPANA WALKER EVANS BIENAL SUR ALESSANDRA REHDER


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Capa: Henri de Toulouse-Lautrec, Moulin Rouge (La Goulue), 1891.

Contracapa: André Griffo, Impressões sobre arquitetura fria, 2017. Foto: Everton Balladin.


04 De Arte

68 Coluna do meio

08 Agenda

70 Notas de Mercado

64 Resenhas

72 Alto Falante

ALESSANDRA REHDER

12

IRMÃOS CAMPANA

14

22 TOULOUSELAUTREC

WALKER EVANS

48

ANDRÉ GRIFFO

34

BIENALSUR

58


DE ARTE A Z Notas do circuito de arte

QUAL A OBRA DE ARTE MAIS CARA DO MUNDO? US$ 210 milhões é o valor pago pela pintura "Nafea Faa Ipoipo?" (Quando vai casar comigo?, 1892), de Gauguin (foto), e não US$ 300 milhões, como divulgado em 2015. Na época, a notícia falsa deu à pintura o título de obra de arte mais cara do mundo. De acordo com o jornal "The New York Times", a cifra corrigida consta em um processo movido por Phillip de Pury para cobrar a comissão pela venda. Como ocorre em muitas transações no mundo da arte, enormes somas são esperadas em comissões por acordos verbais, apertos de mão, muitas vezes sem que o valor exato seja ao menos verbalizado, nem escrito em contrato. De acordo com o réu do processo, o vendedor da obra e ex-executivo da Sotheby's Rudolf Staechelin, de Pury teria perdido direito à sua comissão quando o enganou sobre outras ofertas, em uma tentativa de elevar o preço. Com as novas informações, o título de obra de arte mais cara do mundo passa a ser mais uma vez de Willem de Kooning, com uma tela comprada em 2016 por US$ 300 milhões, seguido de Cézanne, com tela vendida por US$ 250 milhões em 2011, ambas compradas por, claro, membros do poder ou instituições do Qatar.

O selfie de 6 milhões de libras

O templo dos sonhos na Tailândia

Tintoretto de Bowie vai a Veneza

Em Londres

Incrível e bizarro

Novas descobertas

A Sotheby's vendeu o primeiro “selfie” de Andy Warhol por £ 6.008.750 contra uma estimativa de £ 5 milhões - 7 milhões durante o leilão da noite de arte contemporânea. Aparecendo pela primeira vez em leilão, 30 anos depois de sua morte, o trabalho é da primeira série de autorretratos de Warhol. Esta é uma obra de imensa importância histórica da arte que marca o momento decisivo quando Warhol se juntou ao cânone dos maiores autorretratistas.

A 15 quilômetros ao sul da cidade de Chiang Rai, o templo budista é a obra-prima do artista tailandês Chalermchai Kositpipat, que começou a construí-lo em 1997. Fabricado a partir de gesso, o “Templo Branco”, ainda em andamento, pode levar mais de 50 anos para ser concluído. Na entrada do templo, centenas de mãos de estuque atingem os transeuntes enquanto cruzam. Algumas tigelas vazias agarradas em mãos, estão todas grudadas em agonia, como se fossem transportadas de uma pintura Bosch.

O retrato de Santa Catarina de Alexandria, de Jacopo Tintoretto, antes pertencente a David Bowie e vendido em novembro passado por £ 191 mil, foi emprestado ao museu Rubens House. Em meio a essa mudança de mãos, a análise descobriu, no retábulo, uma pintura subjacente sugerindo que a obra é uma década mais antiga do que se acreditava. A pesquisa ainda sugere que a obra foi pintada inteiramente por Tintoretto e não no estúdio. Essas descobertas inspiraram a inclusão da pintura em uma futura exposição na Bienal de Veneza 2019.

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GIRO NA CENA

PRÊMIO BRASIL FOTOGRAFIA A partir de 17/8 Mais de mil trabalhos foram inscritos para o Prêmio Brasil Fotografia 2017. Durante uma semana, os jurados selecionaram as obras, em uma sala especialmente preparada para tal, na Funarte (Fundação Nacional de Artes). A abertura da exposição será no Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, dia 17 de agosto. O museólogo e curador Fábio Magalhães foi um dos cinco jurados neste ano, ao lado de Angélica de Moraes, Rubens Rewald, Evandro Teixeira, coordenados pelo artista visual Cildo Oliveira. Para Fábio, o prêmio é o mais importante do Brasil, pois é um dos poucos que têm curadoria com pensamentos e propósitos bem definidos. Magalhães faz um comparativo muito peculiar: “Todos falam que nosso país é do futebol e do carnaval, mas na verdade é o da fotografia”.

Fábio Magalhães 10 anos A nova exposição “Além do Visível, Aquém do Intangível”, que reúne a produção artística mais significativa de Fábio Magalhães, desenvolvida entre 2007 e 2017, abre no dia 29/7 na Caixa Cultural São Paulo. As obras do artista baiano são marcadas por distorções da realidade e contornos perturbadores, apresentados em metáforas visuais. O evento de abertura conta ainda com lançamento de um livro que reúne obras produzidas ao longo de dez anos, e uma visita guiada pelo próprio artista. Até 24/9.

Ouvido por aí

“A única coisa que me falta é um bigode”. “Sou estranha como meu pai”. Declarações de Pilar Abel. A cartomante espanhola que tenta há 10 anos provar que é a única filha e herdeira de Salvador Dalí. Recentemente, um tribunal espanhol ordenou que os restos de Salvador Dalí fossem exumados na tentativa de extrair DNA para a reivindicação da paternidade.

Burle Marx Pioneiro modernista Após sua estreia no The Jewish Museum de Nova York em 2016, a mostra “Roberto Burle Marx: modernista brasileiro” está agora em exibição no Deutsche Bank KunstHalle, em Berlim. A exposição ilustra a gama completa de sua produção artística, vista pela Alemanha pela primeira vez, e apaga as fronteiras entre as diferentes mídias e disciplinas. Até 3/10. 5


GIRO NA CENA DOSSIER GURLITT: O ROUBO DE ARTE NAZI E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Retrospectiva Hélio Oiticica em NY “Hélio Oiticica: To Organize Delirium” é a primeira retrospectiva dos EUA em grande escala em duas décadas do artista brasileiro. Oiticica fez arte que nos desperta para nossos corpos, nossos sentidos, nossos sentimentos sobre estar no mundo: arte que nos desafia a assumir um papel mais ativo. A exposição no Whitney Museum, em Nova York, inclui algumas de suas instalações em grande escala, como Tropicalia e Eden. Até 1/10.

Uma representação da cinzenta Londres industrial no início do século 20 em azuis etéreos e cinzas verdes de Claude Monet, uma mulher agachada em mármore de Rodin e dois esboços de nus de Aristide Maillol. Estas obras estão entre as 1.200 peças encontradas na residência de Cornelius Gurlitt, muitas delas suspeitas de serem saqueadas pelos nazistas. Quase quatro anos depois dessa descoberta, a notícia atordoou o mundo da arte e provocou indignação com o fato de que as autoridades alemãs esconderam essa informação até hoje. Agora, finalmente, o público poderá ver 250 obras selecionadas em uma exposição que está sendo preparada para novembro no Museu Bundeskunsthalle, na Alemanha.

Berna Reale nada é em “Vão” Com curadoria de Agnaldo Farias, “Vão” reúne três trabalhos inéditos da artista, produzidos exclusivamente para a edição especial do CCBB “Música.Performance”, evocando questões sobre vulnerabilidade, violência, gênero e abuso de poder. A exposição contém videoarte e instalação fotográfica, construídas a partir das performances realizadas pela artista em Belém-PA, sua cidade natal. De 15/7 até 28/8.

6 DE ARTE A Z

VISTO POR AÍ

Os grafiteiros curitibanos Rimon Guimarães e Zéh Palito desembarcaram na Síria para levar arte e esperança para a população. Após semanas de muitas atividades, a dupla finalizou a maior pintura feita na Síria: um painel urbano com quase 270 m, em Damasco.



Roberto W. Andrade. Galeria Arte 57. © Arte 57.

SP-ARTE FOTO A SP-ARTE/Foto completa 11 edições e reúne em um só local cerca de 30 galerias com obras de alguns dos mais importantes fotógrafos da contemporaneidade brasileira e mundial. Importante linguagem da arte contemporânea, a fotografia ganha protagonismo no mês que abriga o Dia Mundial da Fotografia. Este ano, estream a DOC Galeria e Janaina Torres, ambas de São Paulo, e Periscópio, de Belo Horizonte. Retornam ao evento Mario Cohen, Gávea, Luciana Brito, Vermelho, Pinakotheke, Casa Triângulo, Lume, Portas Vilaseca, entre outras. “A SPArte/Foto vem aos poucos se consolidando como o mais importante evento dedicado ao trabalho fotográfico 08 AGENDA

no Brasil, em torno do qual tem surgido, de modo orgânico até, uma série de eventos e mostras que têm esse campo da arte como protagonista”, pontua Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da SP-Arte/Foto. Pensando nesse público que procura conhecimento mais sólido em fotografia, a edição deste ano oferecerá, pela primeira vez e gratuitamente, visitas guiadas, que têm como objetivo justamente estreitar os laços entre os trabalhos expostos e os visitantes do evento, além de lançamentos coletivos de fotolivros e o ciclo de palestras Talks.

SP-ARTE/Foto • Shopping JK Iguatemi • São Paulo • 24/8 a 27/8



DESINFESTAR PARA PRESERVAR O Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, com patrocínio da Galeria Almeida e Dale, realiza a mostra “Arquelogia”, um passeio pelas entranhas do Museu. Nela, o visitante pode conhecer o amplo processo de pesquisa e catalogação da obra do artista, além da atual desinfestação de mais de 800 obras que integram o acervo. Este processo, executado pelo renomado restaurador Stephan Schafer, é o mais ambicioso do gênero já executado no Brasil, para o qual foi criada um ambiente de tratamento com equipamentos europeus, que substituem o oxigênio por nitrogênio, matando organismos que deterioram as obras. A proposta prevê ainda a primeira edição do Catálogo Raisonné do artista, com impressão de 1000 exemplares para distribuição em 10 AGENDA

bibliotecas, instituições culturais e livrarias, bem como a disponibilização pública e irrestrita da catalogação por meio de hotsite ligado ao site do Museu. A mostra integra o projeto “Inventário do Mundo” que conta também com as exposições “Pinacoteca Inventada”, que traz a público um conjunto de pinturas "esquecidas" do acervo do Museu e “Sobrevivência: sobre vivências”, exibição das últimas criações dos artistas do Atelier Gaia num processo de superação do sistema psiquiátrico, construindo uma relação pessoal entre arte e memória.

Pinacoteca Inventada, até 29/9 • Arqueologia e Sobrevivência: sobre vivências, até 1/3/2018 • Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea • Rio de Janeiro



ALESSANDRA REHDER POR ELISA MAIA A série "Todos os Olhos do Mundo", da paulista baseada em Londres, Alessandra Rehder, compõe o grupo de trabalhos que a artista reuniu para sua individual "Subtração e Forma", que será inaugurada em agosto no Centro Cultural Correios de São Paulo. A série, que já foi exposta em Paris, deriva dos registros produzidos por Alessandra ao conviver com as distintas paisagens e realidades humanas de países como Camboja, 12 GARIMPO

Índia, Indonésia, Filipinas, Jamaica, Jordânia, Japão, Tailândia, Turquia e Nova Guiné Ocidental. Em suas longas viagens, seu olhar se voltou principalmente para o registro da infância em situações que enfrentam dificuldades socioeconômicas e políticas, para o registro de vítimas anônimas de uma geografia desumana e excludente. "Há no olhar das crianças algo de genuíno que me interessa, é um olhar que ainda não desenvolveu nenhuma máscara", conta. Depois de ampliar as


fotografias, Alessandra intervém manualmente nessas paisagens, utilizando um estilete para subtrair das imagens alguns elementos como canos, brinquedos, carteiras escolares ou água potável, elementos que, para a artista, simbolizam os problemas que mais lhe saltam aos olhos naquela cultura. "Durante minha estada nas comunidades, observava em cada fotografia registrada qual era seu maior problema a ser trabalhado e, então, subtraía um elemento que o simbolizasse", diz. Com esse gesto, Alessandra encena de forma literal a subtração metafórica que observa nos locais que percorreu. Os elementos retirados das imagens, vestígios de sua intervenção, são então reincorporados de forma deslocada à cena, presos por alfinetes que transformam os registros planos em objetos tridimensionais. Suas

fotografias se equilibram, assim, em uma delicada ambiguidade entre presença e ausência, pois o gesto de subtração que abre espaços vazios e intervalos nas cenas retratadas é compensado pela sobreposição de elementos que as investe de uma materialidade que transborda a própria imagem.

Alessandra Rehder • Subtração e Forma • Centro Cultural Correios • São Paulo • Ago/Set 2017

Elisa Maia é doutoranda do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

À esquerda: Hannehalli Karnatara, India. Acima: Hinako, 2015.


IRMÃOS CAMPANA POR ELES MESMOS

Fernando e Humberto Campana “A “Cabana” é um armário todo de palha, bem primordial, e tem um aspecto bem primitivo. Remete a um sonho de infância. Nós nascemos no interior, vivemos em fazenda, tivemos muito contato com a natureza - no interior Quando eu tinha sete anos de de São Paulo, anos idade, as pessoas me 1960, era só floresta. Hoje está, perguntavam o que eu queria ser infelizmente, tudo quando crescer e eu respondia devastado. Quando que queria ser índio. eu tinha sete anos de idade, as pessoas me perguntavam o que eu queria ser quando crescer e eu respondia que queria ser índio. Esta peça carrega essas memórias afetivas, relaciona-se com esse sonho de infância, de que, finalmente, aos 64 anos de idade eu possa me “fantasiar de índio”.” (Por Humberto Campana).

14 REFLEXO


Armรกrio Cabana


…um dia haverá uma tecnologia que permita que, ao abrir uma garrafa, saia um gás que vai se condensar de acordo com o seu corpo.

“A “Corallo” é uma cadeira toda de fios de arame pintados de coral. Ela é praticamente a desmaterialização. Sempre quisemos fazer uma cadeira que fosse um gás, ainda sonhamos com isso. Um dia haverá uma tecnologia que permita que, ao abrir uma garrafa, saia um gás que vai se condensar de acordo com o seu corpo. A “Corallo” é a desmaterialização de uma poltrona clássica, por isso gostamos dela.” 16 REFLEXO


Cadeira Corallo


“Gostamos muito da poltrona “Favela” A poltrona tem esse olhar, inspirada nas devido ao casas de uma população mais pobre e seu seu modo de vida,, carrega praticamente uma processo, ela indica os fotografia disso… caminhos projetuais. O único rigor dela é um esqueleto de madeira, que é preenchido de acordo com a mão do artesão que vai fazê-la. Então, ela é uma peça, mas tem várias configurações e nenhuma é igual a outra. É produzida em série, não é limitada. E tem esse olhar, inspirada nas casas de uma população mais pobre e seu modo de vida, carrega praticamente uma fotografia disso, assim como da característica do povo brasileiro de utilizar sucatas e outros materiais improváveis. Todos nós somos assim, o Brasil é assim, porque vivemos tanta crise. Na França, se eles vivessem uma crise como a nossa, estariam todos deprimidos, racionalizando o “porquê”! Aqui não, vivemos essa tragédia, mas ainda acreditando em alguma coisa. Estamos acostumados, desde que nascemos é isso e não vai ter jeito nunca, mas achamos uma maneira melhor para viver adaptando-se às situações. É uma homenagem a essa flexibilidade mental do povo brasileiro.”

18 IRMÃOS CAMPANA


Poltrona Favela


Somos muito intuitivos, a coisa não vem racionalizada, ela vem de noções que a gente vive...

Irmãos Campana Museu Oscar Niemeyer • 27/4 a 20/8 20 IRMÃOS CAMPANA


“O lustre “Fungo” é de madeira e cristal de uma fábrica da República Tcheca. Ele tem uma história interessante: fomos para lá para fazer um projeto de outro lustre e, meia hora antes de irmos embora para o aeroporto, eles nos convidaram para ver o porão da fábrica, onde guardam os moldes das peças de cristal. É muito úmido o porão e desses moldes brotavam uns fungos, uns cogumelos. Olhamos e mudamos tudo! Perguntamos se eles não conseguiriam reproduzir estas formas em um lustre, unindo a madeira natural e o cristal, e, tecnicamente, conseguiram. Foi um projeto de meia hora, em que visualizamos um produto final, como sempre acontece conosco. Meu irmão e eu somos muito intuitivos, a coisa não vem racionalizada, ela vem de noções que a gente vive, de experiências, de onde o nosso olhar foca.”

Lustre Fungo


TOULOUSE-LAUTREC A vida como arte

O homem inglĂŞs no Moulin Rouge, 1892.


POR OCASIÃO DA EXPOSIÇÃO DO ARTISTA NO MASP, EM SÃO PAULO, A DASARTES PUBLICA TEXTO EXCLUSIVO DE JULIA FREY, AUTORA DA BIOGRAFIA QUE VIROU BEST-SELLER MUNDIAL POR JULIA FREY Por que se interessar pela biografia de Henri de Toulouse-Lautrec? Bem, ela tem, podemos dizer, muita trama. Os fatos de sua hereditariedade, estilo de vida extravagante, doença crônica, alcoolismo e morte precoce aos 36 anos são intrinsecamente dramáticos. Mas saber disso ajuda entender sua arte? Os historiadores às vezes insistem que usar a história da vida de um artista para estudar sua arte é um “truque barato”. Eu concordo que a grande arte fala por si só. Eu também acredito que, para apreciá-la completamente, é útil ter toda informação possível. Quando comecei a escrever minha biografia “Toulouse-Lautrec: uma vida” (Paz e Terra, 1997), tive acesso a centenas de cartas de Lautrec, de sua família e amigos, mais de 300 das quais nunca foram publicadas. Pela primeira vez, tivemos informações concretas e indiscutíveis que colocam o trabalho do artista no contexto de sua vida cotidiana: a relação turbulenta com seus pais nobres e tradicionais, as causas de sua doença, o efeito sobre sua vida e arte de múltiplas doenças: nanismo, alcoolismo e também sífilis. Passei a acreditar que Lautrec não teria tido a mesma visão do mundo ou criado a mesma arte se não tivesse tido suas origens, classe social e o ambiente de sua época e lugar. Especificamente, acredito que, se ele não tivesse sofrido com sua doença hereditária, sua arte teria sido muito diferente. Talvez nunca se tornasse um artista.

Retrato de Henri de Toulouse-Lautrec, 1892.


A ARTE DE LAUTREC AUTOBIOGRAFIA

Lautrec decidiu revelar o que está embaixo da superfície, mostrar sua intenção, as mudanças em seu pensamento enquanto trabalhava em uma peça.

COMO

Uma das primeiras coisas que compreendi é que a arte de Lautrec é autobiográfica. Cartas e outras evidências contemporâneas confirmam que quase todos os trabalhos retratam indivíduos e lugares que ele realmente conhecia. Como um jornalista, ele descreveu seu mundo, deixando um inestimável documento histórico de sua própria vida. Seu ponto de vista foi marcado de várias maneiras por seus problemas de saúde. Ser anão, para usar um exemplo óbvio, explica imediatamente seu ângulo de perspectiva incomum - por que em muitas obras ele parece estar olhando seu modelo de baixo (o que foi chamado de “visão nasal do mundo”). Também pode explicar por que não há retratos de uma noiva ou esposa, mas numerosas pinturas de prostitutas. O ESTILO LAUTREC

TRANSPARENTE

DE

Desenho Acadêmico de um homem velho, 1882.

Chegando de uma tradição artística onde as obras eram julgadas pela perfeição de sua aparência final, Lautrec decidiu revelar o que está embaixo da superfície, mostrar sua intenção, as mudanças em seu pensamento enquanto trabalhava em uma peça, até mesmo seus erros. Tornouse um hábito mostrar a evolução e a natureza de suas decisões artísticas. Em muitas de suas pinturas, camadas sobrepostas de cor transparente revelam seu processo artístico e pentimenti. Ele também gostava de exibir todas as etapas de seu processo criativo: a preparação para a pintura a óleo, os estágios de suas litografias e até ocasionalmente uma pedra litográfica. Para ele, cada elemento artístico era de igual valor. 24 FLASHBACK


Artista com luvas verdes - A cantora Dolly do “Café Star” de Le Havre, 1899. (Acervo MASP).


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Divan Japonais, 1893. À esquerda: Reine de Joie par Victor Joze, 1892.


À esquerda: Torso de homem nú, 1881. À direita: A grande Maria, 1886.

LAUTREC COMO PSICÓLOGO Lautrec é muitas vezes acusado de ser indevidamente duro com suas modelos, intencionalmente tornando-as mais feias do que eram. Ele se recusava a lisonjeálas, mas seria simplista concluir que era apenas cruel. Suas obras se concentraram em ver dentro de suas mentes, mostrando suas naturezas reais, seja bonita, feia ou ridícula. Seu desenho flexível e expressivo repetidamente revela alguma verdade inesperada. Sua acuidade psicológica era intimidante, porque permitia capturar aquele momento eterno quando a expressão ou a linguagem corporal do modelo revelava o que deveria permanecer escondido: ansiedade, vaidade ou ganância. 28 TOULOUSE-LAUTREC

LAUTREC COMO CRÍTICO SOCIAL E HISTORIADOR Lautrec queria explorar todos os lados do comportamento humano, particularmente aqueles considerados desagradáveis, chocantes ou grotescos. Durante algum tempo, observou e pintou operações cirúrgicas. Fascinado pelo macabro, tentou convencer mais de um amigo a acompanhá-lo em testemunhar uma execução. Ele também escandalizou o público revelando os segredos da sociedade burguesa francesa. Ao enfrentar hipocrisias sociais que condenavam oficialmente - mas socialmente sancionavam - problemas como o sofrimento da classe trabalhadora, ou as


sombrias e aborrecidas existências das mulheres que trabalhavam nos bordéis, ele nos obriga a olhar além de nossas suposições levianas para o objeto oculto abaixo da superfície. Não hesitou em quebrar tabus. Sua série de pinturas "Dans le lit" (na cama), sobre as relações lésbicas, causou o maior escândalo. No entanto, essas pinturas são quase as únicas em que seus modelos exibem qualquer carinho ou ternura. LAUTREC O MODERNISTA Lautrec trabalhou em muitos gêneros: pintura, desenho, litografia, ilustrações para a imprensa popular, até mesmo projetando um ou outro vitral. Não fazia qualquer distinção entre a grande e a pequena arte, não encontrava suporte algum ou tema inaceitável. Interessava-se por todas as

Suas obras se concentraram em ver dentro de suas mentes, mostrando suas naturezas reais, seja bonita, feia ou ridícula.

Devoção de duas namoradas, 1895.



No Moulin Rouge, A Danรงa, 1890. (ร leo sobre tela).


tecnologias mais modernas, em particular pelo uso da fotografia para capturar a pose de um modelo. Ele não pertencia a qualquer escola estilística, mas, felizmente, incorporou todo o tipo de influência em seu trabalho: imagens de seu mentor Degas, uso insistente do pastel de seu amigo Van Gogh, perspectiva e abstração japonesas e o enquadramento "Art Nouveau". Mas Lautrec não era plagiário. Ele foi pós-moderno "avant la lettre". Suas referências à arte em torno dele eram tanto uma homenagem a artistas cujo trabalho ele admirava quanto uma piada, mostrando que ele conhecia os últimos desenvolvimentos em seu campo.

LAUTREC COMO HUMORISTA Muitas vezes, obras que parecem ser neutras contêm um discreto humor, que

remete a um personagem adolescente tipo "menino levado", com referências sexuais e escatológicas, trocadilhos e piadas visuais. Em várias telas ele dá às pessoas a oportunidade de espiar por debaixo da saia de uma dançarina e frequentemente faz uso simbólico de formas e objetos fálicos ou cria referências visuais para a masturbação. LAUTREC COMO PUBLICITÁRIO

Lautrec entendeu instintivamente as regras para um cartaz bem sucedido: tinha que ser impossível de não se ver, instantaneamente eficaz e inesquecível. Adicionava características bastante intrigantes para seduzir o transeunte a parar e olhar por mais tempo, absorvendo não só a mensagem publicitária, mas o subtexto político, alusões sexuais e complexidades artísticas do design. Ele rapidamente

Jane Avril, Jardin de Paris, 1899 e Ambassadeurs, 1892.

32 FLASHBACK

GÊNIO


Henri vestido de cigana no ateliê de seu amigo Claudon, 1884. Henri vestido com chapeú de mulher, 1892.

dominou os princípios da publicidade: as superfícies planas atraentes de seus cartazes publicitários têm uma simplicidade enganosa. Mesmo a imagem mais reduzida é sutilmente ambígua, com todo um espectro de significados.

uma imagem pública que era uma forma de autopropaganda, precedeu Andy Warhol por quase um século.

LAUTREC COMO EXIBIDO

Toulouse-Lautrec em Vermelho • Museu de Arte de São Paulo (MASP) • 30/6 a 1/10

Lautrec buscava sempre a propaganda, mesmo com publicidade negativa. Vestiase com excentricidade, às vezes como mulher, embora continuasse a portar sempre o bigode e barba cheia. Ele podia ser encontrado todas as noites com sua bengala e chapéu coco nos bares e salões de Montmartre, frequentemente bêbado e desordenado, e sempre desenhando. Ao fazer um espetáculo de si mesmo, tornou parte do espetáculo. Ao inventar

Julia Frey é autora da biografia de “Toulouse-Lautrec a Life” (1994). Ganhou um prêmio Pen Non-Fiction e foi finalista do National Book Critics Award. Seu novo livro, “Venus Traído, o mundo privado de Edouard Vuillard”, será publicado pela Reaktion Books, em Londres, em 2018.

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A

NDRÉ GRIFFO


Objetos Sobre Arquitetura gasta

Todas as imagens: Everton Balladin.



PRIMEIRA EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL DO ARTISTA PLÁSTICO ANDRÉ GRIFFO EM SÃO PAULO APRESENTA OBRAS RECENTES, SENDO QUATRO PINTURAS, UMA DELAS INÉDITA, E UMA INSTALAÇÃO. AS PINTURAS, PRODUZIDAS EM 2016 E 2017, REPRESENTAM PARA O ARTISTA, OS VESTÍGIOS DEIXADOS EM ESPAÇOS DESOCUPADOS

POR ANDRÉ GRIFFO "Objetos sobre Arquitetura gasta" é um dos trabalhos e o título da presente exposição individual contemplada pelo programa de exposições do Centro Cultural São Paulo. Produzida em 2016, essa pintura teve como base uma fotografia capturada dez anos antes, como parte de um levantamento fotográfico para o "retrofit" de um edifício neoclássico. Desde o dia em que foi gerada, essa imagem coexiste e se relaciona com a minha mudança no ofício e na forma de estudar a arquitetura, paradoxalmente indo da fase do projeto, enquanto arquiteto, ao Ambiência com Objetos Úteis, Necessários e Estéticos, 2015.


interesse pelo espaço pós-ocupado, como artista visual. Com a produção da pintura que dá nome à exposição, consolidei o interesse em estudar a arquitetura por um processo invertido, uma vazante do processo acadêmico de projetar, construir e habitar. Diante desse conceito, estudar arquitetura atento aos sinais deixados por seus ocupantes passou a ser o foco do processo. No reconhecimento de espaços deteriorados e vazios há um estímulo da memória, uma necessidade de adaptação da consciência, em que o passado e o presente se juntam de forma não linear. Robert Smithson, em "Um Tour pelos Monumentos de Passaic", relata a relação da memória com a experiência de arte quando descreve o contato com estruturas vazias e ruínas encontradas na paisagem decadente de Passaic, em Nova Jersey, "esses vazios são, em certo sentido, vacâncias monumentais que definem um traço de memória sem nenhum espaço de duração ou de movimento - nele existe a apreensão da memória da memória". 38 ANDRÉ GRIFFO


Teorias em espaรงo transitรณrio, 2016.



Objetos sobre arquitetura gasta, 2016.



A arquitetura e o urbanismo são os meios pelos quais as cidades apresentam suas variações. Da riqueza dos seus patrimônios, museus, monumentos e obras de arte aos espaços não oficiais e periféricos onde a paisagem é tomada por prédios degradados, estruturas abandonadas e terrenos baldios. A experiência de abordar tais cenários é essencial para o reconhecimento de referências, não apenas as imagens dos espaços degradados que são reproduzidos em algumas pinturas, mas também dos outros elementos que serão introduzidos no espaço pictórico. Impulsionado por esse conceito, iniciei um estudo em Berlim. A cidade icônica, por seus espaços esquecidos carregados de história, foi a base para a pesquisa que resultou em outras três pinturas que compõem a exposição "Teorias em Espaço Transitório" (2016), "Impressões sobre Arquitetura Fria" e "Back to Olympia", ambas de 2017.

A arquitetura e o urbanismo são os meios pelos quais as cidades apresentam suas variações.

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Imagens são documentos da realidade, a experiência artística é um meio possível para manipular esses documentos.

Acidentes não são territórios_2015 e Predileção pela alegoria, 2016.

A quinta obra da exposição está instalada no jardim do centro cultural. "Predileção pela Alegoria - Andaimes" é constituída por estruturas de andaimes nas quais são inseridos elementos provenientes da arquitetura gótica. Esse trabalho se materializou motivado por reflexões sobre a estética e a função, dois fatores que, ao serem relacionados aos objetos, são capazes de responder questões sobre as suas naturezas. A ideia fundamental foi aproximar dois objetos de conteúdos distintos, nesse caso, os arcos de ogiva - elemento que estabelece uma comunicação direta à arte religiosa - à estrutura de um andaime, elemento técnico cujo valor simbólico está restrito à sua funcionalidade. Essa junção resultou em um objeto escultórico sem que fossem excluídos as propriedades e os sentidos originais dos elementos que o constituem. Imagens são documentos da realidade, a experiência artística é um meio possível para manipular esses 44 CAPA


O Abençoado Ranieri sobrevoando demônios sob céu medieval, 2016.


documentos. Colecionar e reorganizar imagens e objetos de diferentes contextos é uma forma de subverter sentidos e a temporalidade das coisas e, assim, instigar associações imaginárias entre o objeto de arte e as experiências pessoais. Tal exercício é causador de ambiguidades, porque, em si, essas associações não oferecem respostas simples.

46 ANDRÉ GRIFFO

André Griffo: Objetos sobre arquitetura gasta • Centro Cultural São Paulo • 27/5 a 27/8

André Griffo é artista plástico fluminense, trabalha com pintura, escultura e instalação.


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WALKER

Resort Photographer at Work, 1941. Foto: © The J. Paul Getty Museum, Los Angeles. Todas imagens: © Walker Evans Archive, The Metropolitan. Museum of Art.


EVANS E a fotografia vernacular: "somos aquilo que vemos"


Alabama Tenant Farmer Floyd Bourroughs, 1936. Foto: © Fernando Maquieira, Cromotex.


POR LEONARDO IVO

O fotógrafo norte americano Walker Evans (19031975) é conhecido por retratar seu país natal dos anos 1930 e também por suas diferentes séries de fotojornalismo. Esta primeira retrospectiva em um museu francês nos mostra mais do que um fotógrafo testemunha das transformações e ebulições sociais dos Estados Unidos. Walker Evans é inegavelmente originário de uma tradição artística da fotografia que tanto inspirou os surrealistas e os artistas pop, interessando-se principalmente à cultura popular. A exposição mostra a proximidade vernacular de sua obra. O curador da exposição, Clément Chéroux, enfatiza que, na obra de Evans : "o vernacular é útil, doméstico e popular", e assim ligado à tradição. As primeiras salas da exposição são dedicadas a retratos de Walker Evans. Quem era ele? Sua estada em Paris, entre 1926 e 1927, mostra-nos um jovem admirador de Baudelaire e Blaise Cendrars. Junto a esses autorretratos de poeta torturado, o espectador se encontra diante de clichês de pequenas dimensões carregados de poesia que revelam seu lado intimista. E, por fim, suas imagens de Nova York (Broadway, Wall Street) nos revelam uma metrópole americana não longe de um toque surrealista, fazendo-nos pensar nas fotografias de Eugène Atget. Como comparação, suas imagens da rua e de comerciantes que são apresentadas na exposição

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nos permitem realmente captar a influência do fotógrafo de vanguarda sobre Evans. Na mostra, retratos de Lincoln Kirsten e Berenice Abbot testemunham suas amizades. A exposição então se volta para a essência da cultura do povo americano. Walker Evans, filho de um publicitário, tinha intimidade com o mundo dos pôsteres e da cultura de massa. Sua coleção de sinais de trânsito, cartazes, e também de fotografias variadas, revela-nos um homem obsessivo e consciente da importância da cultura popular de seu tempo. Nos anos 1930, vemos suas sucessivas imagens clássicas de cartazes rasgados, vitrines e fachadas, em uma espécie de reverência à tradição imagética de Eugène Atget. Sua obra se aproxima mais ainda da questão social quando, nos anos 1928 a 1933, começa a série de operários, indo de Nova York a Havana, passando por Chicago. O ponto central da exposição é atingido quando nos encontramos diante do retrato de Allie Mae Burroughs, mãe de uma das três famílias seguidas por Evans e sua máquina fotográfica, para um artigo em colaboração com James Agee para a revista "Fortune". O artigo não será publicado, mas os famosos clichês propulsionam Evans para o topo da cena artística quando, no outono de 1938, tem

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License Photo Studio, New York, 1934. Foto: © The J. Paul Getty Museum, Los Angeles.


Acima: Caminhão e Letreiro, 1928-1930. Foto: © Fernando Maquieira, Cromotex. À direita: Allie Mae Burroughs, esposa de cultivador de algodão, condado de Hale, Alabama, 1936.

sua exposição monográfica no Museu de Arte Moderna de Nova York. A célebre série das famílias de Hale (Alabama) será publicada com o título "Let us Now Praise Famous Men". Se a exposição mostra imagens de uma América marcada pela grande Depressão e pela Grande Inundação de 1937, Evans vai mais além mostrando as ruínas de um país que vive em plena precariedade. Até 1962, ele fotografou séries de dejetos e cemitérios de carros, indo assim na direção de uma cultura popular de massa. As imagens puramente documentais de fachadas e prédios mostram uma ausência de empatia, que ele encontra quando fotografa pedestres anônimos de Bridgeport, de Detroit ou do metrô nova iorquino. Esse imaginário de pessoas, de objetos de refugo e paisagens americanas 54 WALKER EVANS

Se a exposição mostra imagens de uma América marcada pela grande Depressão e pela Grande Inundação de 1937, Evans vai mais além mostrando as ruínas de um país que vive em plena precariedade.


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Acima: Casas e Outdoors em Atlanta, 1936. Foto: © 2016. Digital Image / Scala, Florence.

Acima: Auto-retrato em Photobooth automatizado, 1930 e Tin Snips by J. Wiss and Sons Co., $1.85, 1955. Foto: © The J. Paul Getty Museum, Los Angeles.

56 DESTAQUE


Detalhe do estande da Shoeshine em Southern Town, 1936. Foto: Dist-RMN-GP/Image of the MMA.

revela quanto a obra de Walker Evans pertence à tradição e à produção doméstica americana, e, então, ao vernacular. A série de fotos de máscaras africanas para a exposição "African Negro Art", ou ainda a série de utensílios diversos fotografados para a revista "Fortune" apresentadas no fim da mostra, evidenciam ainda mais o caráter de vanguarda de Walker Evans, aproximando-o a artistas como Marcel Duchamp ou Francis Picabia. Nas mais de 400 obras mostradas nesta exposição, confirmamos sua constante busca apaixonada pelo retrato de uma América contraditória permeada de solidão, de rostos sem nome, da desolação e de certa

melancolia que o aproxima de Edward Hopper. Fotógrafo maior, teve nas cidades e sua gente a essência de sua obra.

Walker Evans: Um estilo vernacular • Centre Pompidou • Paris • 26/4 a 14/10

Leonardo Ivo é estudande em história da arte em Sorbonne, Paris e colaborador de mídias sociais do artista Gonçalo Ivo.

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BIENALSUR O Processo

POR RAUL ANTELO O filósofo Vilém Flusser, ao se questionar, nos anos 1960, acerca da Bienal de São Paulo, desenvolvia, por assim dizer, uma "filosofia da caixa branca", argumentando que esse tipo de exposição, um microcosmo, servia muito mais para exibir a soberba do apreciador de arte do que para afiançar uma hipotética democratização do gosto. A Bienal Internacional de Arte Contemporânea da América do Sul, a Bienal Sur, surge, precisamente, para viabilizar essa desmaterialização do espetáculo, mesclado agora com a esfera pública, em intervenções urbanas ou arte 58 ALTO RELEVO

ambiente ("site specific"). A Bienal Sur não é pensada como evento concentrado (essa seria a "caixa branca" de Flusser), mas como um "processo" e justamente por esse seu caráter dinâmico e perdurável no tempo, as derivas e projeções por ela suscitadas são inerentes a seu desenho. Em fins de março de 2017, houve um workshop da Bienal Sur no Rio de Janeiro, com a presença de seu diretor Aníbal Jozami e a diretora artístico-acadêmica Diana Wechsler. O debate contou com a ativa participação de muitos críticos e artistas, dentre eles Tício Escobar (Assunção), Paulo Herkenhoff (Rio de


Janeiro), Enrique Aguerre (Montevidéu), Fábio Magalhães (São Paulo). Paulo Herkenhoff destacou, entre outras coisas, de que modo um conjunto de novos artistas do Pará, dentre eles Luciana Magno, tenta dar visibilidade ao Amazonas. Projetou-se, em sintonia com o anterior, o depoimento de um artista residente em São Paulo, Eduardo Srur, cuja instalação "Pets", navegando 400 anos depois o mesmo caminho fluvial das imagens religiosas de Nossa Senhora, deposita no trecho do Rio Paraná entre Rosário e Buenos Aires o macroícone contemporâneo, a garrafa pet. Christian Boltanski apresentou uma fundamentação de sua instalação "Cornamusas do vento". Como sabemos, Boltanski trabalha sobre a presença das ausências e o vento é o portador desse acontecimento imaterial,

A Bienal Sur não é pensada como evento concentrado (essa seria a "caixa branca" de Flusser), mas como um "processo"…

À esquerda: Pets de Eduardo Srur, La Boca, Argentina. Acima: Shirley Paes Leme, Arte, mito y naturaleza.


Boltanski acredita se defrontar, pouco importa se pela primeira ou derradeira vez, com uma verdade, transmitida pela linguagem dos animais marinhos…

porém, de sensíveis consequências. Lembremos seu prefácio ao livro de Abbas Kiarostami, "Chuva e vento", e não menos de outros artistas que o precederam porque, postado no litoral do Atlântico sul, Boltanski acredita se defrontar, pouco importa se pela primeira ou derradeira vez, com uma verdade transmitida pela linguagem dos animais marinhos, para cuja compreensão nós ainda não estamos preparados. Outra não era a disposição de Roger Caillois quando, ao se deparar com o vento patagônico, julgava também estar em condições de decifrar a escritura das pedras, ou quando César Aira, com sua impossível "trombeta de vime",

Christian Boltanski, Cornamusas del Viento, Baía de Bustamante, Patagônia. 60 ALTO RELEVO


Frame do vídeo de Tierras de Fuego da artista polonesa Angelika Markul.

julga poder alcançar a passagem da positividade da obra à inoperância do texto, em outras palavras, a passagem do estésico ao anestésico, ou ainda, do individual (que é só de um) ao anônimo (que é, singularmente, de todos). Em outra vídeoinstalação, "Terras do Fogo", a artista polonesa Angelika Markul apresentou sua intenção de questionar a geleira em recuo, a partir do que lhe mostrou um poema da chilena Gabriela Mistral, igualmente sensibilizada por "este envio de água triste / da altura;/ este longo e fatigante / descer de água vencida,/ por sobre a terra que jaz / transida. / Dormireis, quando lá fora, / sofrendo, esta água inerte / e letal, irmã da Morte / se verte?" Ao repensarem a arte contemporânea,

esses artistas e críticos intensificaram a força em detrimento da forma, de tal sorte, diríamos, que um dos traços distintivos dessa arte contemporânea seria não só o gesto, mas seu vestígio, o signo, porém, um signo que (ainda) não significa. O objetivo da Bienal Sur é criar condições para buscá-los.

Bienalsur • América do Sul, Europa, África, Ásia e Oceania • 1/9 a 31/12

Raul Antelo é professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina e autor de Maria com Marcel. Duchamp nos trópicos.

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LIVROS lançamentos Claudia Jaguaribe: Beijing Overshoot Fotolivro Éditions Bessard - 152 p. - € 75,00 Ultrapassagem de um limite físico ou ecológico. É o que quer dizer a palavra "overshoot", que a fotógrafa Claudia Jaguaribe escolheu para o título de seu novo fotolivro que retrata a China. "Beijing Overshoot" propõe uma narrativa visual que contrapõe a China atual daquela visitada 15 anos atrás por ela. "Este trabalho é resultado de diversas visitas que fiz nos últimos anos tendo, presenciado a enorme transformação e as consequentes mudanças na cultura e vida cotidiana chinesa", conta Claudia. Entre imagens do vazio permeado por informações visuais e tradições em detalhes de cenários entregues à modernidade, a fotógrafa capta a convivência e o conflito entre passado e presente, a necessidade de modernização e a poluição que trazem as questões mais importantes do livro. Lançamento na SP-Arte/Foto.

Betina Samaia: Noite afora, noite adentro Fotolivro Editora Madalena - 104 p. - R$ 160,00 Em “Noite afora, noite adentro” a fotógrafa continua a série “Iluminados”, em que utiliza uma lanterna para iluminar determinado volume que pretende fazer emergir no escuro ao olhar o que não está evidente. O ponto iluminado pela lanterna é uma metáfora para o inconsciente, trabalhado por Betina em consultório, como psicóloga. Em lugares como Capri, na Itália, Algarve, em Portugal, Myanmar, Chile, Colômbia, Equador, Porto Rico e diversas regiões do Brasil, da Amazônia à Brotas, passando pelo Rio de Janeiro e litoral paulista, a fotógrafa cria narrativa própria na escuridão. Lançamento na SPArte/Foto. 62


Jorge Bodanzky: Procurando Iracema Caixa objetos Editora Madalena - 164 p. - R$ 140, 00 “Procurando Iracema” reune registros do filme de Jorge Bodanzky, de 1974. Com 152 páginas e 152 fotografias, o projeto é uma caixa com vários objetos, incluindo um adesivo, o fotolivro, uma fotografia de Jorge Bodanzky em ação (P&B), um gibi reproduzido do original daquele ano, um caderno com textos críticos, uma ficha catalográfica e bibliográfica e um cartaz do filme Iracema (reproduzido). Três anos antes do lançamento de “Iracema - uma transa amazônica” (1974), o filme que viria se transformar em paradigma do cinema brasileiro, Jorge Bodanzky, de camisa aberta e mangas arregaçadas, saiu com sua super-8 à procura de sua personagem.

Arte brasileira na contemporaneidade II Carmen Pousada. Texto crítico: Enock Sacramento Ornitorrinco Editora - 223 p. - R$ 120,00 A obra apresenta criações de cinquenta artistas criteriosamente selecionados e considerados expoentes da arte contemporânea brasileira e que se destacam pela criatividade e o encantamento que suas obras despertam, com o propósito de divulgar a arte e o valor artístico de seus trabalhos. Sem dúvida, a arte vem para decifrar, harmonizar e criar a possibilidade de expressão entre as várias vertentes culturais brasileiras e globais. Cada artista mostra onde o Brasil está em seu conceito, visão e arte contemporânea, para capturarmos este processo que nos envolve, e que pode ser compreendido através de suas obras. 63


RESENHAS exposições

2ª Mostra Bienal Caixa de Novos Artistas Caixa Cultural • Rio de Janeiro • Até 23/7, seguido de itinerância por oito cidades POR LIEGE GONZALEZ No circuito institucional de artes visuais, é restrito o espaço dado a jovens talentos e, portanto, esta Bienal da Caixa vale a visita a todos os que querem se manter antenados à nova produção. O quesito para a inclusão não era idade, mas estar em início de carreira, sem exposições individuais no currículo, e o edital recebeu mais de 600 candidatos do país todos. Os 30 artistas selecionados pela equipe liderada por Liliana Magalhães representam a arte em toda sua inconstância, um espectro amplo de conceitos, técnicas e propostas visuais de vários cantos do país. Se a passagem pelo circuito oficial da arte pode trazer à produção artística certo alinhamento, o conceito pouco palpável do contemporâneo nasce fora dele, de um espírito do tempo que permeia o agir humano, e mesmo 64

as mídias mais tradicionais, como a pintura ou desenho, têm um feitio típico do século 21. É o caso dos desenhos de José de Arimateia, natural do interior do Piauí. Neles, temas da mitologia e do erotismo são mesclados com o uso do pontilhismo e do bico de pena, criando um visual que remete ora à arte de rua e ora à xilogravura de cordel. O tema da curadoria é "Relações Urbanas" e agrupou as obras em cinco núcleos: o das relações com o espaço natural, com o espaço construído, com o espaço político e social, com o corpo e com o outro. A montagem, um dos pontos altos da mostra, separa esses núcleos com planos angulares unidos por estruturas em metal que trazem para a sala de exposição a sensação da urbe contida na proposta. Em alguns trabalhos, essa sensação é mais óbvia, como o do carioca João Paulo Racy, que sincroniza um vídeo em "looping" da demolição do elevado da perimetral do Rio de Janeiro com o som da respiração - inspirar e expirar, destruir e retomar. Em outras obras, a relação com a cidade é mais discreta, como nos mosaicos que a baiana Cátia Lantyer criou a partir de fotografias.


Como não poderia deixar de ser, qualquer termômetro fincado no tecido do contemporâneo em qualquer parte do mundo termina por medir a insatisfação política de uma nação. Ela está presente em algumas obras que não fazem parte do núcleo de relações políticas e sociais e, ao menos em um caso, à revelia da intenção do artista: os corações de cimentos espalhados pelo artista Rafael Antonio Ghirardello para serem manipulados pelos passantes, no momento da minha visita, escreviam a mensagem "Fora Temer". Ainda que faltem a algumas obras a fineza de acabamento e a execução que se espera de uma exposição institucional, o conjunto mostra que, no Brasil, há muita arte para ser descoberta. Essa iniciativa não apenas ajuda nesta descoberta, mas, ao itinerar por oito capitais ao longo de dois anos, cumpre também o papel de promover mais uma safra de talentos.

Imagens: Vista da exposição.

Liege Gonzalez Jung é fundadora e diretora da Revista Dasartes desde 2008.

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RESENHAS exposições

Alair Teatro Laura Alvim • Rio de Janeiro • 1/6 a 2/7 • Texto: Gustavo Pinheiro / Direção: Cesar Augusto POR LEANDRO FAZOLLA

Da janela de seu apartamento em Ipanema, Alair Gomes fotografava rapazes na praia, tanto em momentos de descontração quanto praticando exercícios. Seu interesse pela beleza do corpo masculino despido encontrou nas areias cariocas o local perfeito para sua arte "voyeurística". Precursor da fotografia homoerótica, o pensamento artístico de Alair Gomes, bem como fragmentos de sua vida e trechos de seu livro "A New Sentimental Journey" chegaram aos palcos do Teatro Laura Alvim, localizado na mesma orla que outrora tanto inspirou o artista. Com texto de Gustavo Pinheiro e direção de Cesar Augusto, o espetáculo "Alair", cuja primeira temporada se encerrou em julho, trouxe o ator Edwin Luisi dando vida ao personagem-título. Diferentemente do que se costuma fazer em espetáculos biográficos, optou66

se por não buscar uma reprodução mimética do artista, criando uma persona múltipla que, por vezes, chega a alcançar algo de etéreo pela minuciosa interpretação de Luisi. O corpo masculino se revela de forma contumaz a partir da presença dos coadjuvantes Raphael Sander e André Rosa. Donos de corpos praticamente esculpidos, com músculos e contornos bem definidos, os atores, além de personificar diferentes relações amorosas de Alair, também são responsáveis por dar vida à sua própria criação, evocando famosas fotografias do artista. Cabe ressaltar a bela cena em que os dois atores, de forma coreografada, reproduzem fotos da série "Sonatinas, Four Feet" ao som da música "Mora na Filosofia", na voz de Caetano Veloso. Se, na obra de Alair, o espectador é induzido a criar uma


Todas as imagens: Cenas do espetáculo. Foto: Elisa Mendes.

narrativa a partir da sequência fotográfica, no palco, o que se vê é a encenação dessa narrativa, o preenchimento das lacunas que cria um delicado jogo de sedução e fuga. Delicadeza, aliás, é algo que permeia todo o espetáculo: mesmo nas cenas de nudez (como quando os atores reproduzem o Davi, de Michelangelo, cuja forma é detalhadamente explorada pelo texto de Alair), o erotismo ganha traços suaves que não deixam perder de vista um dos pontos principais da obra do artista: o belo. É sintomático que tal espetáculo tenha feito sua temporada de estreia no mês em que foi celebrado o orgulho LGBT. "Alair" ganha facilmente tom político e relevância ao abordar não apenas a intolerância à homossexualidade como questões mais humanas como o envelhecimento e a solidão no universo

gay. Mais do que apresentar vida e obra de Alair Gomes, o espetáculo tem o mérito inquestionável de resgatar o nome de um artista que ainda é menos explorado em seu país do que sua produção merece.

Leandro Fazolla é mestre em arte e cultura contemporânea, na linha de pesquisa de história, teoria e crítica de arte, e ator.

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COLUNA DO MEIO Quem e onde no meio da arte

Andrei Thomaz, Fabio Luchetti, Natacha Janus e Giselle Beiguelman

Marvin Tevian Thomaz, Raphael Fonseca e Thomaz Pacheco

Adelina Galeria Andrei Thomaz e Lecuona y Hernández São Paulo Eduardo Oliveira, Cesar Fraga eÓscar Gina Hernández Elimelek e Beatriz Lecuona

Rochelle Costi e Sandra Cinto

Roberto Bertani , Marcio Lauria e Galdino Neto

Fotos: Paulo Jabur

Renato Leal e Albano Afonso

Laís Said e Lamisse Cavalcanti

Milton Guran e Jair de Souza

Festa Brasileira Fantasia Feita à Mão CRAB Rio de Janeiro Heliana Marinho e Fabio Palma

Cezar Vasquez e Lamisse Cavalcanti

Jair de Souza e Rogério Reis

Maira Santana e Armando Clermente


Fotos: Paulo Jabur

Lucas Lins, Fabio Settimi e Elisa Byington

Paulo Vivacqua, Cláudia Bakker e Márcio Doctors

Paulo Vivacqua e Cao Guimarães Oi Futuro Flamengo Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Romano e Rodrigo Andrade eFloriano Gina Elimelek

Paulo Vivacqua e Vanvan Seiler

Marcos Chaves e Gabriela Machado

Hans Donner e Roberto Guimarães

Flávio de Carvalho Caixa Cultural Brasília


NOTAS DO MERCADO Fatos, valores, curiosidades e tendências BISPO DO ROSÁRIO ganha catálogo "raisonnée". A versão impressa do catálogo será lançada no segundo semestre de 2018, fruto de uma parceria entre o Museu Bispo do Rosário e a galeria Almeida e Dale. Aqueles que tiverem obras do artista que não passaram pelo processo de catalogação devem procurar o museu pelo telefone (21) 3432-2402 ou e-mail curadoria@museubispodorosario.com.

Com os preços dos leilões de arte contemporânea e moderna atingindo níveis estratosféricos, não é de se admirar que o mercado de OLD MASTERS E ARTISTAS DO SÉCULO 19 ganhou um pouco de um renascimento em referencia aos últimos anos. Os leilões da semana Old Masters deste mês em Londres, podem ser descritos como altamente bem-sucedidos e muito encorajadores. A Sotheby's liderou as vendas com um de total de £ 52.514.750 - um aumento significativo nas vendas de Londres no ano passado (julho de 2016: £ 16.5 milhões). O destaque ficou para a obra-prima "Ehrenbreitstein" de JMW Turner, que vendeu £ 19 milhões contra uma estimativa de £ 15-25 milhões, tendo aparecido pela última vez no mercado em 1965, quando estabeleceu um novo recorde de leilão para o artista de £ 88 mil. A Christie's também ficou no centro das atenções alcançando o preço mais alto pago por uma pintura Old Masters em qualquer leilão em 2017, com "A Ponte do Rialto com o Palazzo Dei Camerlenghi" de Francesco Guardi vendida por £ 26,205,000. Bonhams também fez sucesso com a venda de William Larkin, "Retrato de Thomas Pope, 3rd Conde de Downe" por £ 449 mil - dez vezes sua estimativa de £ 40-60 mil. Na mesma noite, também alcançou um novo recorde de leilão para Jacopo Zucchi, cuja "A Sagrada Família com o Infante São João Batista" foi vendida por £ 317 mil contra uma estimativa de £ 50-70 mil.

LEILÕES DE JUNHO EM LONDRES comprovam a percepção de uma recuperação mais sólida do mercado de arte internacional. Sem grandes estouros ou decolagens, resultados dos leilões da Phillips, Sotheby's e Bonhams ficaram acima das expectativas. Destaque para o cada dia mais caro Peter Doig, cuja tela "Tunnel Painting" (foto), estimada entre £ 500 e £ 700 mil, saiu por £ 1,157 milhão no leilão da Phillips. Outros artistas cujos preços supreenderam foram Bansky, Wolfgang Tillmans e Mark Bradford, cuja tela comprada em 2015 em leilão da Christie's por £ 902 mil foi vendida

2 RECORDES para obras de arte de Kandinsky foram quebrados em uma noite. Aconteceu no leilão de arte impressionista e moderna da Sotheby's no fim de junho em Londres: primeiro uma paisagem de 1909 foi vendida por £ 20,9 milhões (US$ 26,9 milhões). Seis lotes mais tarde, uma de suas primeiras abstrações foi vendida por £ 33 milhões (US$ 42 milhões). Até então, a obra de Kandinsky mais cara já vendida em leilão havia batido US$ 23,3 milhões em novembro de 2016. 70



ALTO FALANTE

Por Alexandre Sá e Vitor Ramalho

Inhotim (turismos e alguma paisagem)

Todo o mundo sabe que todo mundo sabe que Inhotim é maior museu ao ar livre que há. E só isso já é motivo de orgulho. A quantidade e qualidade das obras e dos pavilhões, a beleza das plantas, a docilidade dos animais, todo o cuidado do espaço, além do impecável treinamento dos funcionários e mediadores é decididamente um diferencial desse espaço que, além de ser referência, tem cada vez mais recebido turistas do Brasil e de fora do país. Tudo parece ter sido pensado e desenvolvido para que funcione muitíssimo bem. E por mais paradoxal que pareça, projetos como este também podem sofrer pequenos "furos", algumas fraturas e estarem sujeitos a alguns descompassos inevitáveis. Neste caso específico, o primeiro paradoxo se dá já na relação com o entorno. Apesar de ser clara a transformação que a instituição propiciou a Brumadinho, o disparate entre sistema de arte (e suas reverberações) e o município que o abriga é notório. Não apenas pela simplicidade dos cidadãos, mas também pela pouquíssima quantidade de opções reais e acessíveis de hospedagem e alimentação do entorno. Além, obviamente, da estrada e suas condições. Passamos dois dias em Inhotim com um grupo de alunos e professores. A meta é sempre a mesma: ver a maior quantidade possível de galerias e obras em um curto espaço de tempo, deleitando-se com o ambiente que em um determinado momento se descortina em outras camadas e em uma nova (e velha) dicotomia: a relação arte e natureza. Ou melhor, em uma dicotomia entre o previsto e o imprevisível. Entre aquilo que inevitavelmente nos escapa, que foge a todo e qualquer planejamento e que corrói a paisagem. Talvez fosse possível pensar, inclusive, o que vem a ser a paisagem em um espaço como esse. Ou, mais profundamente, o que da paisagem é capaz de sobreviver dentro do espaço museológico que, como todo e qualquer espaço museológico, está imerso nas leis do entretenimento. Era um feriado. No primeiro dia, por chegarmos assim que abriu, entramos sem sobressaltos. Ingressos e pulseiras que dão direito aos carrinhos que seguem pelas rotas que levam às galerias mais distantes, como os já clássicos "Som da terra" (2009), de Doug Aitken, e "Beam Drop Inhotim" (2008), de Chris Burden. Por sorte, compramos já os ingressos para o dia seguinte que, curiosamente, estava completamente lotado. Chegamos então, no segundo dia, por volta do meio-dia e a fila para a entrada devia ter de mínimo duas mil pessoas. Caso quiséssemos comprar novamente as pulseiras para os tais carrinhos, teríamos fracassado, pois elas pararam 72


de ser vendidas às 11h e, ao longo do dia, os carrinhos, em virtude do grande movimento, estavam descarregando. Apesar disso, entramos em outra fila para a troca dos ingressos previamente adquiridos e a ansiedade geral era grande, em um misto de jardim botânico e show de rock. A demora na troca e venda dos ingressos se dava por dois motivos muito claros: a pouca quantidade de guichês para atendimento e um treinamento "superespecializado" por parte dos atendentes que, muito gentilmente, precisavam explicar delicadamente a cada pessoa as formas de acesso ao parque. Sem qualquer urgência. Por certo, podemos considerar que todo e qualquer museu pode sofrer com situações como essa. Mas, neste caso específico, estamos nos referindo a um espaço com 110 hectares de área de ocupação generosa que, ao longo dos anos, talvez tenha perdido parte da eficiência e qualidade que nortearam seus anos iniciais. Se, por exemplo, o restaurante Oiticica (de preço mais acessível) estava impraticável e seja justo comemorar sempre a superlotação de um espaço museológico, talvez nada justifique o fechamento de pequenas lanchonetes que ofereciam (mesmo que sempre raras) alternativas mais baratas a um público que, talvez, ainda seja capaz de acreditar em um processo de democratização da arte. Mas o que, de fato, isso nos interessa? Para além dos valores, da parca acessibilidade, da falta de compreensão da necessidade absolutamente urgente de reavaliar a infraestrutura, do processo inelutável de pasteurização que o turismo traz, talvez caiba a nós pensarmos um pouco sobre a experiência estética em épocas de vitrine. Por certo, não há aqui um desejo melancólico de resgate de qualquer coisa que seja, mas talvez seja ainda válido nos perguntar qual a relevância de uma equipe de mediação/ensino da arte dentro dos espaços culturais hoje e por qual razão insistimos em confundi-la com seguranças ou pseudoguardadores de obras ou replicadores de informações sobre o que é proibido. E o que não é. Será que para além da bizarríssima construção que abriga "Cosmococa", de Neville d'Almeida e Hélio Oiticica, talvez capaz de fazê-lo odiar toda a clausura que lhe foi imposta, não seria útil que pais, angustiados por algum tipo de diversão que lhes

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Talvez o que ainda falte a Inhotim é uma real consciência de sua existência e importância…

elimine por alguns minutos a responsabilidade da criação, fossem avisados que tal conjunto discute muito fortemente as relações entre espaço, cultura pop, arte brasileira e cocaína? E que caberia então, a todos juntos, o direito de escolha? Para além da relação (talvez livre, feliz, descompromissada e anedótica) com o trabalho, não haveria algo de real que de fato lhe erija e tenha erigido, inclusive, o tal remoto e longínquo desejo do artista? Ou, ainda, como justificar a retirada do repositório de toalhas a serem usadas pelo público que desejasse mergulhar na piscina integrante de "Cosmococa CC4 Nocagions"? Felizmente conseguimos encontrar um ser corajoso e não menos ensopado que decidiu mergulhar. Uma criança, "por supuesto". A falta de conservação também se revelava nas obras de Marilá Dardot (sem sementes, sem mediadores e sem qualquer indicação clara), de Doris Salcedo (precisando novamente de restauração e com um som de goteira intermitente) e infelizmente no belíssimo pavilhão de Tunga. Especificamente em "Ão" (1980), que estava completamente desligado, sem qualquer mediador na sala, correndo inclusive o risco de ser destruído por alguém desavisado e com uma projeção não menos estranha que em nada lembrava o trabalho original. Talvez o que ainda falte a Inhotim é uma real consciência de sua existência e importância, além de um investimento maior na formação de mediadores e em projetos de residência para novos artistas, além de uma programação que, de fato, consiga refletir os rumos da arte contemporânea, por meio do diálogo permanente com o público (aquele que provavelmente ainda nos interesse), ultrapassando o óbvio comércio que nos atravessa e potencializando a constante relação entre a arte, o meio ambiente e a paisagem que existe para além de nós e em nós.

Alexandre Sá é pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF; doutor e mestre em Artes Visuais pela UFRJ; Diretor do Instituto de Artes da UERJ; Coordenador do curso de Artes Visuais da Unigranrio; Professor do Programa de Pós-graduação em Artes da UERJ; Editor-chefe da revista "Concinnitas"; artista; curador; crítico de arte.

Vitor Ramalho é licenciado em Artes Visuais e Habilitado em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É produtor e professor de Artes Visuais. Trabalhou durante 20 anos como Coordenador Técnico do Sesc Rio de Janeiro, concebendo e realizando exposições de diversos artistas relevantes para a cena brasileira.

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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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