Revista Dasartes Edicao 65

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SOFIA BORGES JASPER JOHNS FESTIVAL VIDEOBRASIL BIENAL DE CURITIBA THALITA HAMAOUI CONCURSO NOVOS AUTORES




DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com

Capa: Sofia Borges Série A máscara, o gesto, o papel, 2017.

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Contracapa: Sofia Borges, Relicario, 2016 (Parte do Mito Original).


NOVOS AUTORES

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JASPER JOHNS

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06 De Arte a Z 10 Agenda

VIDEOBRASIL

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64 Resenhas 68

Coluna do meio

70 Notas de Mercado

BIENAL DE CURITIBA

72 Alto Falante SOFIA BORGES

THALITA HAMAOUI

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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte

LOUVRE VETA ESCULTURA POR JULGÁ-LA SEXUALMENTE EXPLÍCITA O Louvre cancelou a instalação da grande escultura “Domestikator”, do coletivo holandês Atelier Van Lieshout, no seu Jardim das Tulherias, onde estava programado para exibição no final deste mês como parte da arte pública promovida para a feira de arte FIAC. O museu citou a natureza “sexualmente explícita” da escultura de 40 m de altura, que retrata duas pessoas que fazem sexo, embora de forma abstrata. Por sua parte, o coletivo condenou a decisão, dizendo que "um museu deveria ser um lugar aberto para a comunicação".

Ai Weiwei vende sua arte no eBay

Grandes vendas na abertura da Frieze

Fundos vão para nova mostra

Semana de Arte de Londres

Em Glasgow

O artista e ativista chinês Ai Weiwei está vendendo suas obras no eBay para arrecadar fundos para sua próxima exposição em mais de 300 locais em Nova York. As obras à venda incluem “Odyssey” – uma impressão de 24 x 36 polegadas que descreve a condição de um refugiado global “no clássico estilo de um friso greco-romano clássico” com 1.000 cópias disponíveis por US$ 100. Outra obra é “Mão de Artista”, uma escultura da mão de Weiwei com um dedo médio levantado por US $ 675 cada uma.

Apesar de todas as preocupações com a Brexit, parece que o mercado de arte de Londres está prosperando. As vendas divulgadas no dia do “preview” da Frieze Art Fair incluem grandes resultados como a pintura “Gazing Ball”, de Jeff Koons (Giotto the Kiss of Judas), vendido por US$ 2,75 milhões, e “Lanterna Mágica”, de Sigmar Polke, por US$ 2,5 milhões. Na Hauser & Wirth's, uma escultura de Richard Artschwager foi vendida por US$ 2,8 milhões e outra de Louise Bourgeois por US$ 2,6 milhões.

Uma obra-prima perdida que valia dezenas de milhões de libras foi encontrada em uma casa de campo histórica em Glasgow, Reino Unido, depois de 400 anos. Historiadores de arte descobriram a pintura do célebre pintor barroco flamengo, Sir Peter Paul Rubens, na Pollok House. Ela foi autenticada por especialistas como um retrato do século 17 do 1º duque de Buckingham, amante do rei escocês James VI. Uma porta-voz dos museus de Glasgow disse que a obra é avaliada em cerca de £ 10 milhões.

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Obra-prima de Rubens encontrada


NOVOS ESPAÇOS

PRÊMIO MONTBLANC DE LA CULTURE Dedicado aos patronos das artes atuais O Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage, instituído pela Fundação Cultural Montblanc para homenagear os patronos das artes atuais e seus projetos culturais, chega à 26ª edição internacional e à segunda no Brasil. O prêmio é uma competição internacional que avalia projetos de mecenato cultural em 17 países e os projetos indicados pelo Brasil em 2017 foram Instituto Criar, idealizado pelo apresentador Luciano Huck; Instituto Ricardo Brennand, criado pelo colecionador e empresário pernambucano Ricardo Brennand, e Associação Cultural Videobrasil, dirigido pela curadora de arte Solange Farkas. O projeto vencedor no Brasil será conhecido na noite de 10 de outubro, durante a cerimônia de premiação, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com a presença dos curadores e Chairmen da Fundação Cultural Montblanc, Sam Bardaouil e Till Fellrath.

Galeria Novocais A Zona Portuária do Rio de Janeiro ganhou uma nova galeria que contará a história da região com exposição permanente. Chamada de Novocais, a galeria de 312 m2 ambientará a mostra “Porto Cidade – a memória do lugar” que foi concebida para representar a memória urbana e afetiva da região que vai da praça Mauá ao gasômetro – conhecida como região Portuária do Rio de Janeiro – em um recorte de 1800 a 1980. AV. CIDADE DE LIMA, 86 SANTO CRISTO RIO DE JANEIRO

Ouvido por aí “Como uma instituição artística comprometida com a apresentação de uma multiplicidade de vozes, estamos consternados por ter que reter obras de arte.” Declaração oficial do museu Guggenheim de Nova York após decisão de retirar algumas obras de arte de exposição em meio a acusações de crueldade animal e repetidas ameaças de violência.

Instituto Moreira Salles Cinco mostras distintas, entre elas a célebre série “Os americanos”, do fotógrafo Robert Frank, e a premiada videoinstalação “The Clock”, de Christian Marclay, marcam a inauguração da nova sede do Instituto Moreira Salles em São Paulo. O centro cultural, instalado em um prédio com características inovadoras, apresentará ao público uma ampla programação de exposições, filmes, palestras, debates, cursos e shows, entre outros eventos. AVENIDA PAULISTA, 2424 SÃO PAULO

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GIRO NA CENA MODERNISMO BRASILEIRO EM LISBOA

Guerrilla Girls em São Paulo Para a abertura de sua individual no Museu de Arte de São Paulo (MASP), as Guerrilla Girls estiveram na capital paulista para conversar com a impressa. Conhecidas pelo ativismo e protesto em forma de arte, reproduziram uma de suas famosas estatísticas, onde mostram, no MASP, que 6% dos artistas do acervo em exposição atualmente são mulheres, mas 60% dos nus são femininos. A Dasartes falou com três delas e em breve disponibilizaremos a entrevista em nossos canais. Guerrilla Girls: Gráfica, 1985-2017. Até 14/02.

O Museu Coleção Berardo, de Lisboa, receberá a exposição “Modernismo Brasileiro na Coleção da Fundação Edson Queiroz”. A mostra reúne 76 obras do acervo da instituição brasileira – uma seleção dos mais expressivos trabalhos criados por artistas brasileiros entre as décadas de 1920 e 1960. A exposição revela uma diversidade de expressões artísticas, evidentes nas obras de Ivan Serpa, Tomie Ohtake e Iberê Camargo. A mostra reúne ainda uma seleção de nomes que não aderiram a qualquer grupo da época, mas que adotaram uma linguagem abstrato-geométrica singular, mesclando-a com certo lirismo. Destacam-se, nessa seção, os pintores Antonio Bandeira, Maria Helena Vieira da Silva e Maria Leontina. De 27/10 a 4/02/2018.

IAC 20 anos O Instituo de Arte Contemporânea realiza a exposição “IAC - 20 anos” como parte dos eventos comemorativos de seus 20 anos de atividades. A mostra apresenta um breve panorama do acervo dos artistas representados em sua coleção por meio de obras e documentos selecionados pelo curador Jacopo Crivelli, como desenhos, projetos e obras que descortinam o raciocínio plástico e conceitual de artistas como Amilcar de Castro, Sergio Camargo, Willys de Castro e Sérvulo Esmeraldo. Até 25/11.

8 DE ARTE A Z

VISTO POR AÍ

Pela segunda vez este ano, uma fonte composta por um grupo de figuras andróginas de gesso e bronze foi vanzalizada, na Alemanha. A artista Nicole Eisenman acredita ser forma de violência fascista já que os ataques foram realizados um dia antes das eleições alemãs.



Dois Sóis, 2017.

JOÃO CASTILHO Em "Chão em Chamas", nova individual na Zipper Galeria, o artista João Castilho exibe novas séries fotográficas e de objetos que se apresentam como indícios de uma nova reordenação do mundo: fenômenos aparentemente simples que prenunciam alterações drásticas em um futuro próximo, ou que desencadearam-nas em um passado remoto. Os novos trabalhos de Castilho precipitam narrativas orientadas, principalmente, pelo vetor temporal. O título da exposição foi emprestado do livro de contos do escritor e fotógrafo mexicano Juan Rulfo, publicado pela primeira vez em 1953. Entre grande variedade de 10 AGENDA

personagens e situações narradas pelo autor, há em comum um clima de aridez que é o cenário de um eterno embate entre a sobrevivência e a extinção. Chão em Chamas trás ao mesmo tempo a ideia de fim e de começo. Apontando para um futuro distópico, a fotoinstalação "Dois Sóis" (2017) forma um céu que abriga dois sóis, em uma situação ligada a um imaginário apocalíptico.

João Castilho - Chão em Chamas • Zipper Galeria • São Paulo 5/10 a 4/11



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CONCURSO DASARTES NOVOS AUTORES

Ao lançar o nosso 1º Concurso Novos Autores Dasartes, nunca imaginávamos receber tantas candidaturas e com tanta qualidade. Foram nada menos que 113 inscrições – e mais de 200 textos – de todo o país, a maior parte delas com surpreendente profundidade crítica. Nestas condições, foi muito difícil analisar e comparar os textos recebidos e, ainda que tenhamos nos empenhado em uma avaliação justa, sabemos que não é possível apontar os melhores, se é que tal distinção existe. Nossa triagem priorizou a boa argumentação e análise crítica, mas também a linguagem acessível, alinhada à nossa missão de democratização da arte. Quisemos incluir entre finalistas alguns textos com alma poética, outros mais acadêmicos, e alguns de formato mais jornalístico. Aos candidatos que não ficaram entre os finalistas: temos sempre pautas em busca de autores e, na medida em que surgirem, entraremos em contato para convidar à colaboração. Também estamos abertos à sugestões de temas pelo e-mail redacao@dasartes.com. Parabéns a todos! O Brasil pode se orgulhar de ter uma produção crítica sólida e contundente. É uma pena que falte espaço para circular esta produção, mas trabalhamos para expandi-lo cada vez mais. A seguir, os textos dos três autores finalistas, escolhidos pelo conselho editoral da Dasartes e mais votados pelo público em campanha no nosso site e Facebook. Boa Leitura!


A FORÇA INVISÍVEL DOS OBJETOS UM COMENTÁRIO SOBRE “LINHA DE TERRA”, DO ARTISTA TÚLIO PINTO POR EDUARDO BIZ Há uma característica comum a todas as esculturas: o poder de alterar um espaço. Toda obra escultórica se relaciona intimamente com o recinto que ocupa, e faz parte da experiência contemplativa da arte sentir sua presença material atuando no ambiente. Quando preenchido por uma escultura, um local jamais será igual ao que foi antes. Mais do que isso, ele passa a operar como um laboratório onde possa ser desbravada a tridimensionalidade do volume que o ocupa. No caso de "Linha de Terra", escultura de Túlio Pinto, essa relação de ocupação atinge outras proporções, extrapolando o espaço e ampliando-se até o espectador. Como acontece nos passes de mágica, quando se materializa aquilo que era aparentemente impossível, a obra faz duvidar sobre a realidade dos fatos; incita a questionar a possibilidade de sua existência, fazendo suspeitar que o próprio espaço em que se encontra possa ser forjado. Quando a chance da ilusão de ótica aciona esse estado de alerta constante, busca-se atentamente por um deslize qualquer, uma inexistente instabilidade que, a qualquer momento, revele que tudo não passa de um truque. Não há aqui, entretanto, qualquer ilusão incapaz de ser explicada pela Física. Trata-se de um cubo de aço, de 150 centímetros em cada lado, que apoia um

Túlio Pinto, Linha de Terra # 3, 2013

de seus vértices no chão. Paralelamente ao cubo, uma lâmina de vidro o atravessa, formando um tripé. O vidro sustenta o bloco - e vice-versa - graças ao jogo entre os pesos desses materiais, de modo que a estabilidade de ambos os elementos dependa exclusivamente um do outro. O contraste de forças, bastante presente na linha de pensamento que o artista vem construindo em sua arte, resulta em um equilíbrio improvável que coloca o frágil "versus" o bruto. Ao mesmo tempo em que inverte as potências de uma chapa de ferro e de uma lâmina de vidro, "Linha de Terra"


sabota essa disputa, uma vez que uma não se sustentaria sem a outra. Passado esse primeiro impacto cético, a firmeza da composição é entendida e comprovada, e então o trabalho revela simultaneamente a força e a fragilidade oculta nos materiais. É precisamente nesse delicado momento que a obra localiza seu estado de graça: na precisão estática que mantém de pé aquilo que pode desabar a qualquer momento. É o instante que congela o que está prestes a acontecer. Aproximando diferenças, torna-se possível perceber que os objetos possuem uma força conflitante ao potencial que se costuma associar a eles. O vidro, facilmente quebrável, tem uma robustez invisível intrínseca a ele, que só é percebida quando articulada por um ângulo incomum. Em outras palavras, a obra provoca a reflexão sobre todas as estruturas ao redor, e até mesmo sobre os alicerces morais de cada pessoa. Certezas particulares são colocadas em xeque quando alternativas que coexistem na mesma realidade são detectadas. O baque desse esclarecimento faz abrir os olhos para caminhos e soluções antes assombreadas. A experiência estética de "Linha de Terra" se dá nessa percepção de possibilidades. O ponto de equilíbrio perfeito - que somente a exatidão das leis da física e da matemática poderia atingir - é um fenômeno que sempre foi possível, embora nunca antes vislumbrado. Desse modo, faz sentido o título da escultura. Na geometria descritiva, linha de terra é uma linha imaginária que 14 CONCURSO NOVOS AUTORES

A obra provoca a reflexão sobre todas as estruturas ao redor. intercepta dois planos, servindo como referência para identificar a localização de determinado ponto no espaço. Sem ela, não é possível enxergar aquilo que se quer encontrar. Essa poética serve como analogia à própria função da arte na visão de Túlio: tangenciar a sociedade por meio de reflexões acerca de assuntos cotidianos e até vulgares. São questões que, apesar de sempre presentes, não são consideradas com atenção justamente por nunca terem sido deslocadas a outro ponto de vista. Em vez de apontar verdades, a obra conduz ao conhecimento de possíveis realidades. Por meio de um jogo lúdico, em muito semelhante a um truque de mágica, "Linha de Terra" ajuda a compreender o que nosso pensamento condicionado se limita a considerar impossível: a existência, ainda que oculta, do outro lado da moeda.

Eduardo Biz é fundador do coletivo Artikin (@artikinartikin), um ecossistema de conteúdo sobre arte que inclui aplicativo de agenda cultural e canal no Youtube.



AS CONTRADIÇÕES DE DUCHAMP POR ALLAN TANIOKA YZUMIZAWA Marcel Duchamp, sempre disse não ter sido movido por qualquer ideia específica quando montou o trabalho "Roda de Bicicleta" (1913). "Rue de bicyclette" (seu título original em francês) foi uma coisa que aconteceu por diversão, segundo o próprio artista. Era algo para se ter em um aposento assim como uma lareira, a diferença é que ela não teria qualquer utilidade a não ser a contemplativa. De certa forma, o artista gostava de admirála, de ficar observando os raios da roda se tornarem invisíveis e depois reaparecerem aos poucos. Ela não era para ser exposta, era só para seu uso. No entanto, ele concordava que a roda de bicicleta foi a primeira expressão que receberia dois anos mais tarde, o nome de "readymade". Em meio às inovações do Modernismo, a obra de arte começava a atingir o ápice de uma característica a qual Marcel Duchamp chamará de arte retiniana. Desde o advento do impressionismo as produções visuais paravam no olho. Impressionismo, fauvismo, cubismo, abstração, era sempre uma questão de pintura retiniana. Preocupações físicas como as reações da cor, forma, etc. colocavam as reações da matéria cinza (cérebro) em segundo plano. Para ele, sempre é a ideia que chega primeiro e não o exemplo visual. Por meio dessas concepções, Duchamp criará uma ruptura com essa concepção de arte alterando a forma e o modo de representação de seus conteúdos, surgindo então, os "readymades" em prol de uma problematização e um questionamento do que é de fato a arte.São categorizados dois tipos de "readymades": O "'readymade' manipulado", que são objetos do cotidiano e, no entanto, sofrem 16 CONCURSO NOVOS AUTORES

Marcel Duchamp, Roda de Bicicleta, 1913.

modificações pelo artista como no caso da Fountain, em que um urinol sofre uma rotação, ou mesmo a própria Roda de bicicleta. E o "'readymade' puro", que poderá ser tido como qualquer objeto industrializado do cotidiano e, que no processo de reterritorialização para os espaços expositivos, se configura pelo sistema como uma obra de arte e, no entanto, fora desses espaços, apresentase como um simples objeto. Nesse caso, sua exposição em museus ou galerias produz certa abstração do valor de uso, do objeto verdadeiramente funcional e, correlativamente, uma focalização sobre o valor estético. Não seria muito conveniente pensar nas instituições enquanto organismos exclusivos que determinam o que se constitui enquanto arte, na medida em que, o que é arte e a fronteira entre arte e outra coisa, deixou de ser do âmbito do juízo de gosto, mas do questionamento. É nesse sentido que pensamos a diluição da dimensão estética no carácter conceitual da arte em Duchamp na contemporaneidade. O "readymade", como poucos, exprimia as modificações das condições da vida


moderna, o afluxo das massas, os processos industriais. Não é por acaso que surgem simultaneamente com o cinema. O cinema se funde na reprodução que, segundo Walter Benjamin, é aquilo que destrói a aura da obra de arte, a garantia da sua unicidade, que nesse caso, ao ser abalada com sua reprodutibilidade, o que seria então o "readymade" senão uma obra de arte totalmente esvaziada de sua aura? Esse esvaziamento da aura seria o resultado de uma busca de Duchamp pela anulação do que ele chamava de "la patte" (a pata) das obras de arte, ou seja, a eliminação da marca individual do artista. Não é à toa que, das 14 réplicas da "Roda de bicicleta", somente duas serão feitas pelo próprio Duchamp e, as outras 12, apenas sob sua autorização. A peça original, feita em 1913, em Paris, fora perdida na mudança do artista para Nova Iorque, em 1915. A primeira réplica foi feita em 1916 e também foi perdida. Somente em 1951, Duchamp produziu sua terceira réplica com a dimensão de 127cm que finalmente foi exposta ao público pela primeira vez. E, a partir de então, houve cada vez mais pedidos de autorização para a produção da réplica desse trabalho. A reprodutibilidade da obra de arte, segundo Benjamin, seria uma libertação ritualística e religiosa da arte, uma emancipação que Duchamp alcança com seus "readymades". A obra não possui mais aura, o artista não possui mais "la patte", não é preciso desenhar, ser um gênio da academia de Belas Artes, a obra agora passa a ser ideia, não mais retiniana. Desse modo, os trabalhos de arte se deparam em um território de liberdade, gerando um enorme panorama de possibilidade e simultaneamente uma enorme angústia: "Pode alguém fazer obras que não sejam obras de arte?" "O que é arte?".

Por mais que Duchamp transfira a ordem do pensamento artístico da retina para a massa cinzenta, o próprio artista se contradiz ao relatar que o seu primeiro "readymade" (Roda de Bicicleta) fora produzido como um objeto de contemplação, ou seja, um objeto estético diferentemente do que ele defenderia posteriormente. Mais tarde, ele confessaria que nunca teria arrumado uma definição ou explicação para os "readymades" que o satisfizesse. Longe de ser falas equivocadas do artista, assumir uma indefinição sobre um objeto artístico é provocar uma emancipação ao espectador, como Jacques Ranciere mencionaria posteriormente. Contudo, Duchamp nos questiona: Isso é arte? Parece que sempre quando nos deparamos com uma de suas obras, estaremos enfrentando-o em uma partida de xadrez (Duchamp era uma grande xadrezista), que através dos "readymades", ele nos colocaria em uma situação de xeque. Se uma pá, um urinol ou uma roda de bicicleta podem ser arte, o que não pode ser? Isso é uma liberdade que devemos muito a ele, no entanto, toda liberdade gera uma angústia: O que há de novo para fazer? O que devo fazer? Décadas se passaram, surgiram a "landart", performance, "bodyart", arte conceitual, "street art" e, mesmo assim, essa insegurança se mantém; as peças de Duchamp ainda estão dando xeque na arte; cabe aos críticos, artistas historiadores da arte contemporânea tentarem reverter essa partida e, mesmo assim, sofremos o risco de um xeque-mate.

Allan Yzumizawa é bacharel em Artes Visuais pela Unicamp, atua como curador independente e pesquisador em arte contemporânea.


NARRATIVA LOUCURA

SILENCIOSA

DA

POR GUILHERME GUTMAN Há um provérbio em Portugal, no qual se diz que "de sábio e de louco todos temos um pouco"; e ainda outro, variante do primeiro, que desfere: "de santo e de louco, todos temos um pouco". De um dito popular a outro, muda-se de sábio a santo, mas a loucura permanece. O "louco do provérbio" insiste, resiste, como um personagem que é tornado, no primeiro caso, o avesso da sapiência e da razão; e, no segundo, é tomado como contrapartida à pauta de comportamento na qual predominariam o juízo e a "boa moral". Mas, nos dois casos, a presença e a força da loucura está no fato de que, posicionada fora dos sulcos do bom senso, ela pode surpreender e dar origem a um objeto, forma de vida ou comportamento inesperados. Não importa se pela "desrazão" ou pelo desatino, o louco seria aquele que acrescenta ao mundo o frescor das novas formas e dos novos modos de fazer. O louco pode ser também o personagem - tal como os bufões das peças de Shakespeare - capaz de revelar aquilo que sempre esteve ali, a um só tempo à mostra e invisível aos olhares comuns. De provérbio em provérbio, no Brasil surge o impagável "de médico e de louco todo mundo tem um pouco", que, finalmente, será expandido para: "de médico, artista e louco todo mundo tem um pouco". No primeiro, a constatação de que, na interface entre aquele que detecta e intervém sobre a loucura e aquele outro que é objeto dessa intervenção, estamos todos, o que equivale à sugestão de que essa quimera chamada normalidade pode ser o equilíbrio instável entre um e outro. Quando entre o médico e o louco se interpõe o artista, este surge como aquele que articula a normatividade

Arthur Bispo do Rosário, Manto de Apresentação.

médica às cores vivas da loucura. Ao artista estaria imposta a tarefa fundamental de colocar em obra "a coisa" necessariamente inapreensível da loucura. Nesse viés, a criação artística evocaria "O nascimento da tragédia", de Nietzsche, no qual o elemento "apolíneo" conformaria o incêndio "dionisíaco" ao formato intenso da tragédia grega, permitindo aos espectadores o acesso àquilo que, de outra forma, seria tão somente desmedida absoluta. Mas quanta sabedoria e quanto equívoco cabem nos provérbios? Como se sabe, para que um provérbio permaneça vivo, é preciso que ele não tenha fixado o seu sentido, e que possa assim navegar livremente pelas águas que a ele se ofereçam. Assim, caso deslizássemos um pouco mais pelos caprichos da língua, não seria surpresa se - tal qual se recitasse outro velho (e sábio) provérbio - muitos passassem a reproduzir algo como "de louco todo artista tem um pouco"; ou, quem sabe, a sua inversão: "de artista todo louco tem um pouco"? Se há loucura na arte, uma das razões é a de que interessa ao artista tudo aquilo


que sobre ela surge nos provérbios: o inusitado, a recusa às convenções, o acréscimo de novidade ao mundo, a revelação daquilo que só o "olho do artista" pode ver. E, por fim, o pouco (ou muito) de loucura que opera em cada um de nós e que aparece na qualidade da experiência que apenas o contato com a arte pode oferecer. Visão romantizada do fazer artístico? Talvez; mas tanto mais romantizada a ideia de que todo louco é um pouco artista. Alguns artistas fazem a loucura aparecer na obra; outros parecerão "não loucos" exatamente porque estabilizam a própria loucura na construção de uma obra. Há loucos que de artistas não têm coisa alguma e, nesse ponto, seria preciso dar adeus à visão idealizada que cola um personagem ao outro. Às vezes, um louco constrói uma obra que de algum modo não é louca, delirante ou alucinada; outras vezes dá início - ou ao contrário, interrompe - o fazer artístico a partir de um surto psicótico. Alguns artistas loucos ou não -, a partir da vivência de uma grande crise psíquica, não modificarão um traço do que já produziam; outros farão nesses momentos de suas vidas grandes viradas, eventualmente alcançando os seus melhores resultados após a experiência do que chamarei de "a sua loucura". Às vezes, a sua obra pode ser algo muito distante daquilo que o sistema da arte identifica a algo necessariamente "artístico". É certamente mais fácil reconhecer aquilo que guarde um parentesco mínimo com os suportes sobre os quais os artistas elaboram os seus trabalhos. É mais difícil quando um louco produz, por exemplo, um grande sistema delirante que não ganha a materialidade dos objetos que um Bispo do Rosário foi capaz de moldar. Um grande delírio - para insistir nesse exemplo - pode surgir como uma proposição estética ou moral como as do Profeta Gentileza, que, assim como as de

Bispo, só obtiveram o estatuto de arte porque deram origem a painéis, a vestimentas e a objetos reconhecidos esteticamente. Ou o que dizer da criação de um novo alfabeto, como no caso de um Manuel Messias? Quantos loucos anônimos tecem silenciosamente suas narrativas delirantes que, afinal, constituem a sua obra? Quando artistas e loucos se aproximam, isso não se dá por escolha própria, diria mesmo que essa aproximação é nomeada de fora, por aqueles que assistem ao nascimento de uma produção que tem uma força de verdade que nos permite classificá-la de louca. Porque de dentro do acontecimento, aquele que ali está não o faz para ser louco ou muito menos artista, faz porque algo se impõe a ele, até mesmo de modo violento, sem chance de escolha estética do tipo "quero ser um artista louco". Ao mesmo tempo, quando artistas e loucos se aproximam, para eventualmente se fundirem em um só personagem, é porque há a expectativa, por parte do artista, de que ali na loucura possa haver qualquer coisa de inaugural; como um jorro criativo imaginário, uma espécie de arte primeira que só loucos, crianças e primitivos seriam capazes de dar notícia. É preciso que se saiba que, quando elaboram as suas produções, os loucos estão atrás de alguma coisa que difere muito de algo como "reconhecimento artístico". Estão, sobretudo, como Freud nos ensinou, interessados em reconstruir um mundo sobre o qual possam voltar a viver.

Guilherme Gutman é médico, psicanalista, professor adjunto de Psicologia (PUC-Rio) e da EAV Parque Lage, curador independente e crítico de arte.



JASPER JOHNS

Bandeira, 1958. Foto: Jamie Stukenberg Š The Wildenstein Plattner Institute, 2017.


“ESPERA-SE POR ALGO PRÓXIMO À VERDADE, ALGUM SENTIDO DE VIDA, OU ATÉ DE GRAÇA, QUE RELUZA, AO MENOS, NA OBRA”. JASPER JOHNS


ALGO PARECIDO COM A VERDADE POR ROBERTA BERNSTEIN E EDITH DEVANEY

Durante mais de seis décadas, Jasper Johns buscou seu intenso questionamento do mundo visual e da resposta humana a ele, em toda a sua complexidade psicológica, e demonstrou a sua luta contínua por “algo parecido com a verdade”. A arte de Johns é um lembrete consistente de que essa verdade não é algo oferecido, mas revelado através dos significados sobrepostos e mutantes descobertos pelo processo da percepção. Os hábitos fixos do ver, sentir e pensar tornar a verdade invisível. Um rápido reluzir de graça ocorre quando os sentidos são despertados e novas formas de experimentar o mundo, mesmo objetos comuns no mundo, fornecem um vislumbre dessa verdade. Johns é mais conhecido pelos trabalhos icônicos e influentes da primeira década de sua carreira. Eles incluem pinturas e esculturas que simulam coisas familiares, sejam elas bandeiras americanas, alvos de tiro, algarismos arábicos, lâmpadas ou latas de cerveja - obras que possuem clareza conceitual, foco na natureza do objeto de arte e levantam questões sobre a percepção da forma aos significados. Ainda comprometido com essas questões iniciais, Johns continuou a alterar e ampliar seu campo imagético e estratégias formais e, cada vez mais, envolver-se com uma ampla variedade de experiências humanas, entre elas memória, perda emocional, criatividade, dúvida, infância e envelhecimento. Em suas primeiras pinturas, Johns adotou a encáustica, uma técnica antiga à base de cera que raramente era utilizada na década de 1950. A encáustica seca mais rapidamente do que o óleo,

Alvo, 1961. Foto: © 2017. The Art Institute of Chicago / Art Resource, NY / Scala, Florence 23


Acima: Entre o Relógio e a Cama, 1981. Foto: Jamie Stukenberg © The Wildenstein Plattner Institute, 2017. À direita: Casa de Idiotas, 1961-62. © Jasper Johns / VAGA, New York / DACS, London 2017.

permitindo que o artista crie superfícies em camadas com sensação tátil. Também desenvolveu uma forma única de aplicar colagem mergulhando pedaços de papel ou pano na encáustica e fixando-os na tela, aumentando assim sua presença material. Suas esculturas empregam técnicas de modelagem e fundição e uso de uma variedade de materiais dos mundos das Belas Artes e do artesanato. Abraçou uma ampla gama de materiais de desenho e gravura, muitas vezes combinando-os em desenho sobre gravura. Na maior parte, desenhos e gravuras seguem as pinturas e esculturas, abordando o mesmo tema de formas diferentes. Mais tarde em sua carreira, quando a interação entre suportes aumenta, é mais comum que obras gráficas gerem 24 DO MUNDO

imagens que posteriormente emergem em pinturas. No início de sua carreira, Johns estabeleceu uma posição antiilusionista ao enfatizar o “status” da pintura como um objeto literal, onde seus elementos materiais tangíveis (tela, chassi, tinta, colagem) e suas propriedades formais (cor, forma, linha, espaço, escala) tornam-se o foco principal. Assim como Johns apresenta os elementos fundamentais de uma pintura e coloca-os sob escrutínio, também aplica um rigor similar ao examinar o papel da linguagem na arte exibindo as 26 letras do alfabeto como blocos de construção da comunicação e apresentando palavras como sinais com significados ambíguos. Palavras são afastadas de seu contexto gramatical em pinturas como “Voice” (1964-67).


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A PINTURA CONTA? POR MORGAN MEIS

Para entender a excitação (positiva e negativa) produzida pelas bandeiras e pelos alvos de Jasper Johns na segunda metade dos anos 1950, devemos considerar a situação da pintura americana na época. Isso significa pensar sobre o expressionismo abstrato. Nos meados da década de 1950, Barnett Newman ainda estava fazendo seus “zips”. Willem de Kooning estava soltando vitoriosas pinturas com as formas e cores dançantes que eram sua assinatura. Jackson Pollock, infelizmente, morreu em 1956, mas suas telas totalmente preenchidas com gotejamento tinham se tornado o padrão do que uma “pintura séria” deveria parecer. Os expressionistas abstratos mais ou menos mantinham o domínio. Dominavam, em parte, porque produziam trabalhos visualmente impressionantes e, em parte, porque conseguiram expressar, na pintura e em palavras, um poderoso senso de urgência artística. Tendiam a fazer grandes perguntas: O que a pintura faz? Pintura é sobre si mesma? Deve reproduzir o que vemos no mundo ou “expressar” algo da mente ou da alma do pintor? O alcance da pintura vai além do visual, alcança as 26 JASPER JOHNS


Pintura com duas bolas, 1960. Foto: Jamie Stukenberg Š The Wildenstein Plattner Institute, 2017.


Vigia, 1964.

pedras fundamentais da realidade, sejam elas as mentais, físicas ou espirituais? A pintura na América, em 1955, era, em suma, um assunto embriagador. Ser pintor era aceitar uma espécie de chamado ideológico. Em 1943, Mark Rothko, Adolph Gottlieb e Barnett Newman escreveram um breve manifesto em forma de uma carta ao editor de arte do “The New York Times” em que reivindicaram: “para nós, a arte é uma aventura em um mundo desconhecido, que pode ser explorado apenas por aqueles

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Muitos de seus colegas mais velhos consideravam Johns um traidor desde o início.


Arrependimentos, 2013. Foto: © Jerry L. Thompson.

dispostos a assumir os riscos.” Eles também escreveram: “É nossa função como artistas fazer o espectador ver o mundo da nossa maneira e não da maneira dele.” Rothko, Gottlieb e Newman queriam a pintura séria esfregando na cara da percepção cotidiana. Em frente a um dos imponentes “zips” de Newman, o observador tende a sentir que a pintura paira no limite do que a mente é capaz de captar. Dentro desse prodigioso (se não pretensioso) círculo da pintura da metade do século, um jovem artista chamado Jasper Johns cobriu três lençóis com encáustica e colagem e transformou toda superfície em uma

bandeira americana. Isso foi, de fato, um movimento arriscado, mas não tão arriscado como Rothko, Gottlieb e Newman propuseram. Se as pinturas de Newman corriam o risco de tentar representar o irrepresentável, de tentar se aventurar em mundos desconhecidos, a de Johns, por contraste, parecia arriscar a banalidade total. Não é de admirar que muitos de seus colegas mais velhos consideravam Johns um traidor desde o início. Johns era então, como é hoje, um tipo estoico. Ele seguia em frente indetido. Tentando explicar por que ele se sentia obrigado a pintar a bandeira americana, disse certa vez que queria pintar “coisas 29


Sem título, 1992–94. © Jasper Johns / VAGA, New York / DACS, London 2017.

que a mente já conhece”. Não há mais redemoinhos ou zips ou bolhas ou abstrações: Johns iria trazer a pintura de volta para o mundo das coisas conhecidas. Juntamente com suas bandeiras, ele também começou a pintar alvos. O objetivo era tão claro quanto com as bandeiras: “Você sabe o que é isso”, parecia dizer. “Você já viu isso antes. Seu olho sabe o que fazer.” Na verdade, todos sabem como olhar para uma bandeira ou um alvo. Eles intrigavam exatamente porque eram tão aparentemente comuns. Tão comuns que, de fato, imploravam por outro olhar. Um segundo olhar para uma bandeira ou um alvo de Jasper Johns tende a produzir uma onda de dúvida. Nós sabemos como ver esses objetos sem necessariamente saber como vê-los.

Jasper Johns: Something Resembling Truth • Royal Academy of Arts • Londres 23/9 a 10/12 Roberta Bernstein é professora emérita da Universidade de Albany, Nova York (SUNY). É autora do Raisonné de pinturas e esculturas de Jasper Johns e de sua próxima monografia “Redo an Eye”.

Roberta Bernstein é cocuradora e organizadora da exposição de Jasper Johns no Royal Academy of Arts.



FESTIVAL

VIDEOBRASIL

Em seus vídeos e videoinstalações, o artista mexicano Daniel Monroy Cuevas questiona as implicações da temporalidade própria à imagem em movimento na subjetividade contemporânea, manobrando as imbricações entre a realidade do espaço físico e a ficcionalidade da imagem projetada.


TÓPICOS SOBRE A LINGUAGEM VISUAL DO 20º FESTIVAL DE ARTE CONTEMPORANEA SESC_VIDEOBRASIL

POR VITOR CÉSAR E FELIPE KAIZER SUL E NORTE Em questão, o Sul do mundo. Destaca-se o "Sul" dos "Panoramas" em detrimento dos outros elementos que compõem o título da exposição. O Sul supera em importância tudo o mais. "Sul" é um dos nomes do Festival e remete aos debates sobre "descolonização" e "pós-colonialismo". Assim se expressa a direção geral da curadoria nos últimos anos. A diferença dessa vez está na "desierarquização" dos nomes, em desacordo com a lógica oriunda do Norte. O Sul também é tema no Norte. Mais uma vez, o Norte se interessa pelo Sul. As razões de hoje se encontram nos limites da sociedade afluente, que rapidamente se torna insustentável. Busca-se no Sul outros modos de viver, novos campos a ocupar. Nos seus termos, o Norte fala de um "estado mental" ainda destacado do corpo. Mas no Sul o problema não se coloca da mesma forma.

Daniel Monroy Cuevas, New Frontier, 2015 (Vídeo).


O humano é resultado das condições climáticas e as condições climáticas são resultado da ação humana.

ANTROPOCENO Vivemos em uma era geológica produzida também artificialmente. A partir de agora, o humano é um fator do clima do planeta. O "antropoceno" implica, entre outras coisas, a superação da diferença entre o "natural" e o "artificial". O humano é resultado das condições climáticas e as condições climáticas são resultado da ação humana. O plástico está na composição das novas pedras vulcânicas. Os "plastiglomerados" se acumulam nos mares e nas praias. Em breve, estarão nas ruas e nos apartamentos. Edifícios sobre calçadas sobre pedras, em camadas, dão lugar a uma grande confusão. O "urbano" está, a partir de agora, irremediavelmente no centro das nossas preocupações. Desse ponto não há retorno. Tudo gira em torno das suas

34 ALTO RELEVO

quantidades, suas escalas, suas densidades. As cidades se expandem, se multiplicam, se obstruem.

Felipe Kaiser é designer gráfico. Desde 2009, mora em São Paulo, onde ajudou a fundar sob a direção de André Stolarski a área de design e comunicação da Fundação Bienal de São Paulo. Atualmente trabalha no Instituto Moreira Salles (SP).

Vitor Cesar é artista, estudou Arquitetura e Urbanismo e é mestre em Artes Visuais - ECA/USP, com pesquisa sobre noções de espaço público em práticas artísticas. É professor da Escola da Cidade e orienta grupo de estudos na Escola entrópica, no Instituto Tomie Ohtake.


Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, Faz que vai, 2015 (Vídeo).

Desde 2011, a dupla usa videoensaios, fotopesquisas e entrevistas para abordar temas como a mercantilização das práticas coletivas tradicionais e a folclorização da cultura pop nas economias emergentes.


Elvis Almeida, Sem tĂ­tulo, 2016.


Em suas pinturas, Elvis Almeida usa formas orgânicas em sua figuração que apenas se insinua, ao mesmo tempo em que faz referência ao imaginário popular dos grandes centros urbanos. A aplicação de tinta acrílica sobre a madeira faz esmaecer áreas coloridas, revelando camadas pictóricas que movimentam a composição circular.

A obra põe em tensão as ideias de produtividade e de anarquia. humana.

As esculturas, instalações, vídeos e performances da artista francesa Mariana Portela Echeverri criam ambientes que enredam corpo, desejo e estranhamento. Criando um ambiente fluido, no qual o onírico, o erótico e o universo infantil encontram uma racionalidade abjeta e utópica, a obra põe em tensão as ideias de produtividade e de anarquia.

Mariana Portela Echeverri, Orgy Mathematics, 2015-2016. 37


Alia Farid, Mezquita de Santo Domingo, 2015 e Ponce, da série Mezquitas de Puerto Rico, 2014.

Jaime Lauriano, Morte súbita, 2014 (Vídeo).

A série de tapeçarias “Mezquitas”, resulta da parceria entre Alia Farid e Jesus ‘Bubu’ Negrón. Os artistas enviaram fotografias de mesquistas de Porto Rico e da República Dominicana para tecelãs da cidade de Mash, no Irã, que transformaram as imagens em tapeçarias. As peças discutem as tensões do trânsito cultural e migratório contemporâneo, e seu papel na transmissão de signos, emblemas e costumes.

38 VIDEOBRASIL

O termo “morte súbita” no futebol define o gol que decide uma partida empatada e levada à prorrogação. Aqui, aplica-se àqueles que são chamados de “marginais” e rendidos pela polícia, uma imagem tão habitual no universo midiático brasileiro quanto jogadores de futebol que formam uma barreira e esperam o chute adversário. A obra traz à tona a brutalidade estatal subjacente aos regimes supostamente democráticos.


Karo Akpokiere, Zwischen Lagos und Berlin, 2015.

A obra propõe um passeio pelas duas cidades do título e pelas experiências sociais, políticas e pessoais que eles oferecem. Servindo-se de desenhos, pinturas e textos – que fazem referência ao universo do design gráfico em sentido amplo, da tipografia desenhada à mão aos objetos cotidianos –, faz emergir histórias que mesclam acontecimentos reais e ficcionais.

Panoramas do Sul • 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil • Sesc Pompéia • São Paulo 4/10 a 18/1/2017


BIENAL DE


CURITIBA

Luis Camnitzer, Time Project, 2017.



INTITULADA "ANTÍPODAS - DIVERSO E REVERSO", A BIENAL INTERNACIONAL DE CURITIBA ESTREIA SUA EDIÇÃO DE 2017 HOMENAGEANDO E PROMOVENDO O INTERCÂMBIO COM A REPÚBLICA POPULAR DA CHINA. A DASARTES APRESENTA, AQUI, ALGUNS DOS DESTAQUES DESTA EDIÇÃO

POR REDAÇÃO "Antípodas" se refere a posições diametralmente opostas entre si e esse título foi escolhido para indicar metaforicamente pontos geográficos radicalmente distantes uns dos outros. A China, país homenageado desta edição, marca um ponto oposto em relação aos países latino-americanos. No entanto, a cultura, especialmente em suas manifestações artísticas, tem a possibilidade de criar vínculos e traçar diagramas entre os lugares mais distantes. A ideia de diversidade, um dos pontos centrais desta bienal, é reforçada pela vinculação de zonas e situações opostas que coincidem sem arriscar suas respectivas diferenças. O tema da Bienal traz ideias de diversidade, confronto, antinomia e coincidência em um mapa mundial continuamente polarizado e simultaneamente forçado à homogeneização da globalização. As exposições trabalham a distância geográfica, mas também cultural, entre o

Leste Asiático da China e sua antípoda, o Cone Sul da América Latina, pontos extremos do planeta. Mas, como qualquer figura levantada no campo da arte, a das antípodas se torna uma metáfora de inúmeras ligações entre muitos outros países do mundo, que sempre têm suas antípodas próprias; ou seja, eles ocupam um lugar extremo em relação a outro. A metáfora, sempre escorregadia, também visa posições opostas no plano da técnica e nos diversos conteúdos, enfrentados ou alinhados uns com os outros. Permitindo a possibilidade de desenhar constelações diferentes entre os mundos que estão se afastando e se aproximando, cruzando-se e se ajustando em diferentes momentos e lugares, a mostra abre as portas em mais de uma centena de espaços culturais da cidade, trazendo trabalhos de artistas brasileiros e de 42 países dos cinco continentes.

Obra de Toni Cesar Graton na Exposição no Solar do Barão. Foto: Cido Marques.


CHEN WENLING POR REDAÇÃO Um exame do rápido crescimento do consumismo chinês e sua relação com seu passado comunista é o tema do trabalho do ganhador do Leão de Ouro de 1999, Chen Wenling, um dos 36 artistas chineses que expõem atualmente na Bienal de Curitiba. Outrora uma criança que fabricava seus brinquedos em argila, o chinês é hoje considerado um dos grandes escultores contemporâneos de seu país. Por meio de esculturas surrealistas, muitas vezes monocromáticas em vermelho, ele faz um retrato que pode soar até chocante à primeira vista, causando impacto ao fazer uma comparação entre o comportamento da sociedade atual com o de porcos – ambos preguiçosos, sujos, comilões e nada inteligentes. Para a Bienal, Wenling trouxe a obra “Floating Scenery”, um conjunto de esculturas que fica no espelho d'água do jardim do Museu Oscar Niemeyer.

44 DESTAQUE


Chen Wenling, Floating Scenery, 2017.

Uma comparação entre o comportamento da sociedade atual com o de porcos – ambos preguiçosos, sujos, comilões e nada inteligentes.

Teorias em espaço transitório, 2016.


ALÉM DA FOTOGRAFIA POR TÍCIO ESCOBAR Integrando a Bienal de Curitiba 2017, a sala 1 do MON recebe 14 obras de dez artistas sul-americanos, na exposição "Além da Fotografia", que toma como ponto de partida o registro fotográfico. A proposta é que o visitante possa analisar o potencial conceitual, expressivo, crítico e poético da fotografia, especialmente quando cruzado com outros meios. São digitais e analógicas impressas em diversas bases, projeções, vídeos, bordados, projeções interativas, fotografias em "backlight", "polaroids", esculturas e instalações que consolidam sua presença privilegiada no panorama da arte contemporânea. A mostra parte da figura da fotografia expandida, fugindo da autonomia formalista da técnica. A crítica dessa autonomia constitui uma das características mais notáveis da arte contemporânea com fusões e montagens de tempos distintos e impulsionada por movimentos de expansão. Os artistas que participam de "Além da Fotografia"

transcendem a fotografia pura, técnica e a fundem com outros meios estéticos de expressão. Participam da mostra Alfredo Quiroz e Bernardo Puente Oliveira, Ananké Asseff, Bernardo Krasniansky, Bernardo Oyarzún, Graciela Sacco, Hugo Aveta, Luis Camnitzer, Nury González, Osvaldo Salerno e Juliana Stein.

O Abençoado Ranieri sobrevoando demônios sob céu medieval, 2016.

46 DESTAQUE


Objetos sobrepara arquitetura gasta, À esquerda: Gabriela Sacco, Fuerón al norte llegar al Sur, 2014 2016. e Ananké Asseff, Campos de la realidad (Parte I), 2014-2016. Acima: Nury González, Ficcion de un Origen, 2006.


Marco Bolognesi, The hope of Hadar, 2017.


O artista apaga as fronteiras entre o espaço e o sujeito em um conflito crescente, até o ponto em que o indivíduo, a fim de sobreviver, é forçado a sofrer mutações. MARCO BOLOGNESI POR MASSIMO SCARINGELLA Marco Bolognesi, multiartista italiano, conhecido na Europa pelo ambicioso projeto da cidade "cyberpunk" "Sendai City: the Truth", apresenta a série fotográfica "Techno Mutant", criada, segundo ele, para refletir sobre o cenário de confronto do mundo contemporâneo. A série é um novo capítulo sobre os confrontos de sua cidade imaginária, desta vez encarnando o conflito corporal. O artista multimídia se vale de várias formas de expressão, do desenho até a pintura, do cinema à fotografia e ao vídeo. Na exposição, a cor preta é a protagonista das fotografias, e com ela o artista apaga as fronteiras entre o espaço e o sujeito em um conflito crescente, até o ponto em que o indivíduo, a fim de sobreviver, é forçado a sofrer mutações. Para isso, incorpora elementos de sua pesquisa e, mais uma vez, escolhe trabalhar em modelos com objetos reciclados: "Eu tentei trabalhar com pistolas de água enquanto objetos de forma inofensiva e divertida que se referem à guerra de maneira lúdica e com elementos de uso comum, tais como tubos ou caixas elétricas, fáceis de serem encontrados em todas as casas de qualquer cidade do mundo", conta Bolognesi. O artista explica que sua produção é direcionada à construção do Universo Bomar, um universo narrativo que imaginou e se tornou o recipiente ideal para todos os seus projetos. Ao misturar ficção científica e "cyberpunk", máscaras e decorações tribais, "avantgarde", ícones pop e arte erótica, e pela exploração do mundo que ele criou, pretende destacar os mecanismos e poderes que governam o presente.

49


Obras de Stevens Vaughn.

STEVENS VAUGHN POR MASSIMO SCARINGELLA Vaughn é um pintor ritualista que trabalha com água e pigmentos para revelar o que chama de linguagem da água. Influenciado pelos estudos de filosofia japonesa e chinesa, que consideram a importância da imperfeição para se chegar à perfeição, Stevens Vaughn desenvolveu uma técnica muito própria de trabalho, "respingando" água (elemento primordial) e pigmentos coloridos para criar formas e movimento. Cada obra é produzida seguindo um ritual performático, que procura expressar um pensamento não verbal. Sua obra para a Bienal de Curitiba, que compõe a mostra "Antítese Imagens Síntese", é uma agradável surpresa para os olhos. No centro da sala, um imenso trono dourado aguarda o espectador, estrategicamente instalado para ser apreciado, tocado e utilizado pelo visitante. 50 BIENAL DE CURITIBA

Antípodas - Diverso e Reverso • Bienal Internacional de Curitiba • Diversos locais da cidade de Curitiba • 30/9 a 25/2/2018

Tício Escobar é curador argentino e autor do conceito curatorial da Bienal de Curitiba 2017.

Massimo Scaringella é curador italiano independente de arte contemporânea e organizador de eventos culturais.



SOFIA BORGES POR ELA MESMA

“Minha pesquisa sempre se baseou em uma espécie de percepção anterior, mais antiga do que ser artista, acerca da realidade. Eu sempre achei um pouco estranho que as coisas existissem, e sempre tentei entender isso. Como artista, comecei escrevendo e desenhando, mas logo me deparei com a fotografia. No início, fazia retratos mas logo acabei indo parar nos museus. Foi um processo intuitivo, eu não sabia exatamente o que, mas tinha algo que eu só conseguia encontrar dentro desse contexto. Eu passei mais de sete anos tentando Uma espécie de abismo entre entender (e fotografar) “coisas” em um contexto linguagem e objeto. onde tais coisas se prestavam quase exclusivamente à representação. Um vaso, uma pintura, um homem, um animal, uma árvore, no museu representam a si próprios; fora deles, na cultura, pareciam mais transparentes. Para entender como se estruturava a passagem entre matéria e significado, eu tentava fotografar o lugar onde isso não acontecia, uma espécie de abismo entre linguagem e objeto. No ano passado, ainda dentro dessa mesma lógica, eu voltei a documentar pessoas, queria entender o significado contido nos gestos.” 52 REFLEXO


Religare, 2016 (parte do trĂ­ptico Mito Original, 2016).


Isso tudo gerava um estado instalativo que se prestava a uma investigação sobre duplo, matéria, gesto e ausência.

54 SOFIA BORGES


“Um dia fotografei bonecos de cera em Istambul que encenavam fumar ópio em um harém. As fotografias que fiz das mãos desses bonecos foram a base para uma exposição chamada “Giz Preto, Carvão Branco ou Mito da Matéria Ausente”, que apresentei em dezembro de 2016, na Foam Fotografie Museum, em Amsterdã. Essa exposição se estruturava conceitualmente em torno de dois grandes trípticos. Em um deles, intitulado "Religare", há uma forte relação entre máscara e gesto. “Religare” é uma palavra que vem do latim e antecede a palavra religião. Nessa exposição, todas as obras estavam penduradas por cordas e, para criar uma neutralidade, o espaço estava coberto por cortinas de veludo que desciam do teto, tinham mais de sete metros de altura; havia também um som que vibrava por trás das cortinas, e uma das obras da exposição havia sido previamente queimada. Isso tudo gerava um estado instalativo que se prestava a uma investigação sobre duplo, matéria, gesto e ausência. Nessa exposição, a forma de instalar as obras foi tão importante quanto a escolha das imagens. Pensar o conjunto expositivo sempre fez parte da minha pesquisa, mas aos poucos a relação entre sentido, superfície e espaço vem dando forma à minha pesquisa com imagem.”

Tríptico Mito Original, 2016.


“Escolhi falar da obra “Religare” em virtude da influência desse conjunto de trabalhos para o que viria desenvolver logo em seguida, uma pesquisa comissionada especialmente para a exposição “Corpo a Corpo”, como parte das exposições de abertura do novo Instituto Moreira Salles, em São Paulo. O curador Thyago Nogueira me convidou para desenvolver um trabalho que pensasse corpo e política dentro do complexo cenário que estávamos passando no País. Frente ao que estava pesquisando na época sobre teatro, gesto e representação, achamos interessante que eu fosse ao Congresso Brasileiro e fotografasse esse estado de representação política. O corpo político de um país. Então, imediatamente após abrir a exposição em Amsterdã, eu fui a Brasília para fotografar o Senado Federal.”

56 REFLEXO


…o corpo político de um país.


“Quando cheguei ao Congresso, eu esperava me deparar com a “Política”, que seria uma espécie As palavras não colavam em si de nuvem abstrata, próprias, os gestos não vestiam os estaria acima dos homens e seria gestos. maior e mais forte que os homens. Mas encontrei o oposto, vendo o plenário de cima, onde eu podia circular com a câmera, eu só pude ver muitos homens de terno; estavam bastante felizes, e tinham mãos enormes. Foi chocante assistir à primeira sessão de 2017 em que foi votado o sucessor de Renan Calheiros como Presidente do Senado. A maioria das fotos que usei na exposição foram feitas nesse dia, os senadores estavam voltando do recesso, em clima de uma estranha alegria se cumprimentavam e conversavam. Mas não menos chocante foi assistir na mesma semana à sessão que votou por extinguir os orelhões no Brasil. Era difícil entender o que era dito ali, as palavras não colavam em si próprias, os gestos não vestiam os gestos. A pronúncia, a entonação e a gestualidade pareciam transfiguradas, sobrepostas, deformadas, vazias. ”

58 SOFIA BORGES


Armรกrio Cabana


“Fotografar homens representando o papel político foi uma forma de refazer essa ponte entre existência e representação, nesse caso atuava um poder, o legislativo de um país representado ali, por aquelas mãos. O título desse conjunto é “A Máscara, o Gesto e o Papel” e se trata de uma instalação de dez dípticos. Na exposição, decidimos instalar os dípticos todos suspensos em equilíbrio, por uma só corda que passa e conecta todas as imagens. Havia uma vontade de mostrar essa conexão e o delicado equilíbrio entre todas as imagens. A instalação é dividida por duas grandes vistas principais; de um lado é possível ver o grupo de mãos que fotografei no congresso, do outro, bocas que fotografei de pinturas dos Presidentes do Senado, no Museu do Senado, uma porta que ficava há poucos metros da entrada do Plenário.”

Sofia Borges participa da coletiva “Corpo a Corpo” Instituto Moreira Salles São Paulo • 20/9 a 20/12


Imagens da série A máscara, o gesto, o papel, 2017. 61 REFLEXO


THALITA HAMAOUI POR ELISA MAIA Em "Lalengua" (2017), óleo sobre tela de Thalita Hamaoui, uma paisagem fluida e vaporosa é construída no limite da abstração, através do acúmulo de manchas de tinta que evidenciam o processo por meio do qual surge a imagem. Nos campos de cor diluídos e liquefeitos, algumas pinceladas se afirmam, outras hesitam e é possível entrever os resquícios das pinceladas que foram encobertas. A delicadeza do processo e as transparências que evidenciam as 62 GARIMPO

sucessivas camadas de tinta dialogam com a aquarela, meio que Thalita usou por muitos anos antes de se voltar para a pintura a óleo. Embora predomine a abstração, há elementos em suas telas que sinalizam um movimento de menção às formas humanas. São quase silhuetas, etéreas e espectrais, mas que antes de se tornarem gráficas, liquefazem-se, transbordam e se dissolvem no contínuo cromático do espaço. Em "Lalengua", esse movimento pode ser visto na figura vermelha no centro da pintura, que remete a um corpo


sentado, talvez uma escultura, provavelmente uma mulher, cujo rosto é coberto por um véu que deságua no fluxo escarlate atravessando o espaço da tela. A tela integra "Um passo irreparável", a individual da artista paulistana dentro do Programa de Exposições 2017, do CCSP (Centro Cultural São Paulo). A mostra é marcada por um conjunto consistente de trabalhos que torna evidente que Thalita sabe tirar proveito de um espaço estreito onde a pintura se coloca na sua exuberância plena de não ser mais que gesto, cor, tinta.

expôs Hamaoui Thalita Cultural Centro no individual São Paulo de 27/5 a 27/8 como parte da I Mostra do Programa de Exposições de 2017.

Elisa Maia é doutoranda do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

À esquerda: Lalengua, 2017. Acima: Forcei os olhos para ver, 2017 e Azul, 2015.


RESENHAS exposições

Roberto Burle Marx: Tropische Moderne KunstHalle Deutsche Bank • Berlim • Alemanha • 7/9 a 3/10 POR MARIA TERESA SANTORO DÖRRENBERG Paisagista, ambientalista, arquiteto, desenhista, pintor, cinzelador, litógrafo, escultor, tapeceiro, ceramista, cenógrafo, designer de joias, decorador. No coração de Berlim, o espaço de exposições do Deutsche Bank apresentou, entre 7 de julho e 3 de outubro, os múltiplos talentos do paulista Roberto Burle Marx (1909-1994), na exposição intitulada "Roberto Burle Marx: Tropische Moderne". Renomado pelos mais de mil jardins que projetou, o paisagista descobriu novas plantas nativas nas inúmeras viagens e expedições que fez pelas diversas 64

regiões do país e as introduziu nos jardins que criou, reproduzindo em sua obra a diversidade fitogeográfica brasileira. A exposição chama a atenção para os múltiplos talentos do artista, bem como para sua nova e revolucionária arte de projetar espaços, usar cores fortes, criar formas e texturas ousadas, e introduzir novos elementos, inaugurando uma beleza excepcional e revolucionária até então desconhecida. Conhecido ainda, junto com Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, pelo projeto da capital Brasília e de obras na cidade do Rio de Janeiro, como no abstrato mosaico que acompanha a praia de Copacabana, as criações de Burle Marx marcam a nova paisagem urbana nessas e em outras cidades, instaurando uma arquitetura diferente que une natureza e arte, influenciando a modernidade tropical brasileira e expandindo-a pelo mundo.


Surpreendente na exposição é o trabalho monumental e diverso de Burle Marx, pouco divulgado até então. São seus projetos, suas joias e bijuterias, a pintura abstrata, os desenhos, as tapeçarias, as fachadas e esculturas assimétricas, misturando os meios e as disciplinas de forma geométrica e orgânica. Depois da première no Museu Judeu de Nova York, em 2016, a mostra foi apresentada pela primeira vez na Alemanha este ano. E a Alemanha teve contribuição para a carreira do artista. Filho de Wilhelm Marx, um comerciante alemão, e de Cecília Burle, uma pianista brasileira que cultivava seu jardim, seus pais visitaram Berlim no início do século 20 e o menino Roberto se encantou com as bromélias, os nenúfares e os filodendros da estufa de plantas tropicais brasileiras que existe no Jardim Botânico da cidade, em Dahlem, pouco explorados nos jardins da época. Também marcaram o jovem Burle Marx a vida cultural europeia pulsante da época, quando Berlim era um laboratório de modernidade. De volta ao Brasil ele já se decidira pela junção da arte com a botânica: seus jardins revolucionários.

É de Burle Marx o pensamento: "Se o artista apenas reproduz os traços superficiais, como faz o fotógrafo, se registra com exatidão as diversas características de uma fisionomia, mas sem relacioná-la ao caráter, ele não merece ser admirado. A semelhança que ele deve atingir é a da alma." A exposição se concentra em mostrar os aspectos arquitetônicos e artísticos de sua carreira, documentando esse encontro definitivo e inovador. Ao lado dos projetos de prédios públicos e privados, residências e parques estão as cerâmicas, os adornos, as pinturas, os murais, os cenários e outros objetos que atestam não só seu amor à tradição de seu país e seu arrojo inventivo, mas também sua preocupação com o ambiente e com o humano. Roberto Burle Marx, um ambientalista da modernidade, deixa ao mundo seus projetos e suas obras, um pioneiro como poucos, uma exposição mais do que merecida.

Maria Teresa Santoro Dörrenberg vive em Colônia, Alemanha, é escritora, curadora e pesquisa o corpo na arte, nas mídias e tecnologias contemporâneas.

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RESENHAS exposições

Luciano Figueiredo - Urgente: É pintura Instituto Tomie Ohtake • São Paulo • 13/9 a 29/10 POR CAHONI CHUFALO

O título da exposição de Luciano Figueiredo no Instituto Tomie Ohtake, "Urgente: É pintura", aponta para o uso que o artista faz de um material específico: o jornal. O título parece as antigas manchetes que os antigos jornais usavam para chamar a atenção dos leitores. A nossa atenção de espectadores também é atraída pelo uso dos jornais, seja como parte de colagens ou como uma camada espessa que se dobra na tela. Mas as obras expostas do artista não se restringem ao uso do jornal. Há outros materiais usados, como o acrílico, tecidos, a própria tela separada do bastidor e da moldura. Há, no entanto, elementos comuns que perpassam a maioria das obras: a proximidade com o construtivismo, o uso de sobreposições, 66

dobras e relevos. Esses elementos criam um tipo de construtivismo peculiar, em que o olhar não se fixa apenas na composição pintada sobre a tela, nas suas cores e formas geométricas. O construtivismo de Luciano Figueiredo é mais amplo. Dois procedimentos são determinantes para essa ampliação do construtivismo do artista: a sobreposição e as dobras. Luciano Figueiredo trabalha muitas vezes com a sobreposição de telas, tecidos ou papéis (incluindo o jornal) que dão às suas composições geométricas uma espessura que rompe com a bidimensionalidade enfatizada pela pintura construtiva. Essas sobreposições se dobram ora sobre a moldura das telas, ora sobre si mesmas, revelando ao espectador não só a


espessura desses materiais reunidos, como também sua natureza, ora mais fluida, ora mais rígida. Algumas sobreposições de telas parecem descansar molemente apoiadas nas molduras. Há, sem dúvida, um movimento, uma disposição, que se pode entrever nessas composições. Tanto as sobreposições quanto as dobras também criam uma espécie de agitação interna dentro da composição geométrica. As cores e as formas perdem um pouco de seu caráter preciso para ganhar certos desvios, certos relevos, certos movimentos. Ganham, pois, uma plasticidade diferente. Esses elementos parecem buscar a todo instante uma adequação melhor na tela, uma arrumação, digamos, correta, onde as formas devem ser bem

delineadas e as cores devem preencher perfeitamente tais formas. É essa agitação que primeiro atrai o olhar do espectador. E é aí também que se revela a peculiaridade da obra de Luciano Figueiredo. Há muito mais para se ver na exposição. Obras que, embora dentro da mesma ideia geral, lidam com outros valores como cheio e vazio, opacidade e transparência, palavra e pintura. A sensação do espectador, no entanto, persiste durante toda a mostra: estamos diante de um artista de rara inteligência plástica.

Cahoni Chufalo é formado em Letras, com pós-graduação em crítica e curadoria de arte.

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COLUNA DO MEIO Fotos: Paulo Jabur

Quem e onde no meio da arte

Rosa Marques Moreira, Márcio Doctors e Maria Klabin

Paulo Vivacqua, Ana Miguel e Brígida Baltar

Arthur Bispo do Rosário Fundação Eva Klabin Rio de Janeiro Enrica Bernardelli, Marc Pottier e Cláudia Bakker

Eduardo Oliveira, Cesar Fraga e Rosa Marques Moreira eBeto GinaSilva Elimelek

Enrica Bernardelli, Marcos Chaves, Luiza Marcier, Ana Miguel, Cláudia Bakker e Márcio Doctors

Fotos: Paulo Jabur

Ana Maria Monteiro e Ascânio MMM

Lucas Lins, Chiara Banfi e Rodrigo Andrade

Tina Velho e Alberto Saraiva

Karin Lambrecht Chiara Banfi Oi Futuro Rio de Janeiro Svetlana e Alain Banfi

Lucas Lins, Alberto Saraiva e Paola Colacurcio

Chiara Banfi e Azuma Makoto

Lucas Lins, Alberto Saraiva e Rodrigo Andrade


Fotos: Fรกbio Lage

Claudio Valansi, Myriam Glatt e Simone Weinschenken

Luiz Figueiredo, Dulce Botto, Myriam Glatt e Flavia Bertrand

Myriam Glatt Centro Cultural Correios Rio de Janeiro Cacau Vargas e Julio Gamboa

Analu Nabuco e Laura Burnier

Mayer e Christina Salama, Myriam Glatt, Monique e Marcos Cotta

Laura Vinci, Nara Roesler, Mรกrcio Fainziliber e Renata Castro e Silva

Fรกbio Szwarcwald, Bitty Pottier, Adauto Novaes e Marc Pottier

Fotos: Paulo Jabur

Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Michel Cursz e Tofic Nigri e Gina Elimelek

Laura Lima Galeria Nara Roesler Rio de Janeiro Vandinha Klabin e Luiz Zerbini

Katia Mindlin Leite Barbosa e Helena Maggioni

Fernanda Junqueira e Marcos Chaves

Marcello Dantas e Laura Vinci


NOTAS DO MERCADO Fatos, valores, curiosidades e tendências ARTRIO virou! Em uma edição mais enxuta, com 50 galerias, a feira de arte do Rio de Janeiro deixou todos felizes. Para os visitantes, um percurso mais agradável e menos cansativo, sem as longas andanças entre pavilhões que prejudicavam o circuito no Píer Mauá, e ainda presenteados com a maravilhosa vista da baía de Guanabara em uma área de descanso que se tornou um dos pontos altos. Para expositores, boas vendas. Entre estes, o comentário geral era de que a ArtRio achara seu ponto de equilíbrio, indicando que uma feira com mais galerias resultaria em vendas dissolvidas, deixando todos no prejuízo. Como esperado, o momento moderado do mercado se refletiu em poucas obras de grande valor e impacto, com as galerias preferindo investir no que vende: obras de valor médio. Menos satisfeitos ficaram os expositores da parte de design, a IDA, que, em um pavilhão afastado, acabaram recebendo menos visitas. Sentimos na pele, já que o estande da Dasartes ficou na entrada desse pavilhão, cujo maior movimento foi de pessoas procurando o banheiro. Balanço muito positivo e grande expectativas para a próxima edição, com uma ressalva: é certo que novas galerias se candidatarão à ArtRio 2018. Cabe à diretoria ter o bom senso de limitar o número de participantes e pensar no sucesso ao longo prazo em detrimento do lucro imediato com a venda de espaço. Afinal, deve-se lembrar que os clientes de uma feira, aqueles que devem ser bem atendidos acima de tudo, são os expositores, que aprovaram o novo tamanho.

LONDRES ganha peso no circuito de grandes leilões internacionais. Já em março, vários recordes foram quebrados, incluindo para obras de Klimt (£ 48 mi), Magritte (£ 14,4 mi), Jean Dubuffet (£ 1,1 mi), Neo Rauch (£ 353 mil) e Wolfgang Tillmans (£ 269 mil). A enxurrada continuou nas vendas pós-Basel, no final de junho, incluindo recordes de preço para obras de Kandinsky (duas vezes na mesma noite, com recorde final de £ 35 mi), Max Beckmann (£ 36 mi) e novamente Wolfgang Tillmans (£ 500 mil no leilão da Sotheby's e, na noite seguinte, £ 605 mil no da Phillips). No início de outubro, as três grandes casas fazem novos leilões na cidade, em torno da semana Frieze. Destaque para a tela de Tillmans (foto), da série que vem disparando em preço, oferecida pela Phillips com estimativa de £ 200-300 mil. Talvez a queda da libra esterlina pós-Brexit tenha dado o empurrão que faltava a Londres. Nova York que se cuide!

FEIRA PARTE alimenta as expectativas do mercado. De 8 a 12 de novembro, a Parte ocupa novamente o charmoso espaço do Clube Hebraica com estandes de 38 expositores, entre galerias, coletivos e ateliês de arte. Entre eles está o já tradicional Grupo Aluga-se, que sempre chama atenção dos visitantes da feira com uma intervenção divertida. Este ano, levará o medidor de força dos parques de diversão. Quem se aventurar, deve bater o martelo e, de acordo com o número alcançado, levar seu prêmio ou desconto na compra de obras dos artistas do grupo. A Parte conta ainda com vários projetos especiais e um programa de palestras intenso, que inclui uma mesa sobre o colecionismo privado com viés institucional, mediada pela Dasartes. Até lá! 70



ALTO FALANTE

Por Alexandre Sá e Vitor Ramalho Elogio ao toque (um antídoto da lacração) "O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e o lacaio das empresas nacionais e multinacionais." Bertold Brecht "O Brasil é um país do saque." Cazuza "Seu trunfo é comprovar que podem levar as massas para onde quiserem, o que as torna valiosas para políticos com grandes ambições eleitorais. Mas só podem levá-las porque se comunicam com uma população que se sente cada vez mais insegura e desamparada e que é a primeira a sofrer a crise econômica e a crescente dureza dos dias sem saúde, sem escola, sem serviços básicos, enquanto assiste a um noticiário que é quase todo ele sobre malas de dinheiro da corrupção. Uma população que há anos tem sido treinada por programas policialescos/sensacionalistas na TV que atribuem todas as dificuldades a facínoras à solta, adestrando-a a ver as mazelas da vida cotidiana como culpa de alguém que pode e deve ser eliminado - e não a uma estrutura mais complexa que a mantém cimentada no lugar dos explorados." Eliane Brum A escrita deste texto se dá em caráter de urgência, correndo o risco obviamente de ser apenas mais um texto entre tantos que foram e estão sendo escritos sobre o conjunto inaceitável de posturas e atitudes políticas adotadas por um grupo seleto e histórico de governantes que têm conseguido angariar, cada vez mais, parte da população em sua ignorância construída estrategicamente. O alvo neste momento são os artistas e a arte contemporânea. Somos nós os algozes deste processo efêmero de injúria, difamação e, principalmente, escárnio, feito por um conjunto de pessoas que talvez nunca tenham ido a algum museu, que provavelmente jamais tenha se interessado por arte e que, por mais 72


burguês que possa parecer, não detém os imbricados códigos para análise e potencialização da experiência estética nos dias de hoje. Isso tudo já é sabido. E não caberia aqui mergulhar no debate fácil de defesa da arte como pura forma de expressão, pois também é bastante claro que o conjunto de elementos que envolvem a produção, a legitimação e a veiculação dos trabalhos de arte são diversos e eventualmente perversos, além de, operacionalmente, preocuparem-se pouco com o público e com uma possível legibilidade semântica que seja capaz de abarcar o espectador para além de sua existência numérica e deseje, de fato, um processo conjunto de construção simbólica e poética. Na política, a lógica não é tão distante. E, por certo, há exceções. Se cada vez mais no Brasil podemos/pudemos ver o florescimento de rotas alternativas de funcionamento e uma produção virulenta que tomou consciência de sua força, ou melhor, da possibilidade de sua potência, isso se deu em grande parte pelas políticas de esquerda (seja lá o que isso possa vir a ser agora), e que, apesar de também fortemente amparada nos dispositivos midiáticos, conseguiu alguns progressos como a expansão das cotas raciais, a democratização do acesso ao ensino superior, a ampliação dos regimes de visibilidade, a diminuição da taxa de analfabetismo e a promoção de espaços simbólicos diferenciados para provocar e promover um giro na história do país. A questão é que isso não nos bastou. E antes que lembremos que fomos incapazes de promover uma real reavaliação do processo educacional em suas bases e uma distinção potencial e paulatina das relações entre o saber e o mercado do saber, em suas operações quantitativas e pouquíssimo qualitativas (fortemente ampliadas nessa mesma época por um deslize inconteste entre a abertura e seu escancaramento oco), cabe também ressaltar, como defendido por Antonio Negri em recente entrevista para o blog da Boitempo, que houve, para muito além de todos os desvios e associações indevidas, duas reformas fundamentais que também não foram feitas: a da própria Constituição (ainda esquizofrênica em sua pseudoautonomia entre os poderes e seus regimes de votação) e dos aparatos midiáticos que sempre estiveram ligados a uma classe social que é completamente distante e odiosa de grande parte da população. E que, por certo, não deixaria e não deixará de atender aos seus comandantes originais. A força midiática e sua lógica de propaganda terminou por potencializar uma histeria coletiva que, além de reforçar uma absoluta ignorância, pareceu e parece zelar por uma voz utópica que representa parte da população já angustiada em virtude do aumento da disparidade econômica, da diminuição dos direitos, da violência galopante, da impossibilidade do governo do país e, por conseguinte, do governo de si, levando então ao ressurgimento de ondas conservadoras e ditatoriais. A perversidade mais aguda do momento atual é o regime de verdade que foi instaurado a partir de um jogo de representação entendido e defendido como real, apesar de construído milimetricamente e amparado também pela bancada evangélica em seus rituais de evangelização capital. Eliane Brum, em um belíssimo artigo para o "El País" intitulado "Gays e crianças como moeda eleitoral", nos lembra que, antes e acima de qualquer coisa, vivemos um esvaziamento da própria linguagem a partir de um processo de perversão potencial das palavras. Sendo assim, Movimento Brasil Livre e Escola Sem Partido por exemplo, soam extremamente democráticas, domésticas e urgentes quando pronunciadas ou veiculadas de qualquer forma. A própria língua se desconhece e uma palavra como pedófilo pode ser próxima de um performer ou zoofilia, algo que roce uma ideia de pintura. Tal esvaziamento da linguagem, acompanhado de um desejo histórico de manutenção de uma situação política lacradora, ou seja, fechada a vácuo e sem possibilidade de abertura e diálogo, como ressalta Sérgio Rodrigues ao citar o artigo Antonio Engelke para a revista "Piauí", só ajusta ainda mais 73


Trata-se apenas de uma manobra clara de mobilização de um público mouco e ainda analfabeto.

os jogadores de uma partida fictícia onde o inimigo precisa ser encontrado a qualquer custo, mesmo sabendo que ele sempre esteve e estará dentro de nós. E mesmo que ele seja auspiciosx o suficiente para ser desmascaradx somente quando vemos uma foto de Inês Brasil com Jair Bolsonaro, ou quando descobrimos que um dos integrantes do Bonde do Rolê é Pedro D'Eyrot, um dos fundadores do MBL, caberia perguntar se, de fato, houve algo recente que nos uniu, se fomos crentes demais ou se, ainda, a farsa da micropolítica nos acertou em cheio. Embora seja óbvio e lógico, é fundamental lembrar que as atitudes tomadas pelos políticos diante das exposições e peças recentemente censuradas não têm por objetivo, e nunca terão, ampliar o debate sobre o processo poético da arte contemporânea e de seus infinitos descaminhos na experiência estética. Trata-se apenas de uma manobra clara de mobilização de um público mouco e ainda analfabeto (no sentido ampliado) para deslocar a atenção de fatos mais perversos como a censura, a tentativa intermitente de distorção dos direitos civis, o aumento galopante dos assassinatos de negros, gays e trans, o sucateamento subjetivo, a instauração do estado de exceção, o retrocesso diante de conquistas adquiridas, a permanência de certo tipo de coronelismo, o desconhecimento absoluto de grande parte dos governantes sobre as políticas públicas e o claro interesse de fragmentação e fragilização da cultura em virtude de sua potência de expansão e tomada de consciência, entre muitas outras desgraças que parecem completamente emudecidas diante dos quaseescândalos. Tudo obviamente coroado por um governo ilegítimo. A menina tal que teve a possibilidade de brincar com o corpo de Wagner Schwartz no MAM-SP, com autorização de sua mãe (também artista), talvez pague um preço altíssimo e traumático por ter sido eleita como bode expiatório de uma política que nunca, ou quase nunca, pensou nas crianças, nas escolas e na formação. Apesar de qualquer pessoa ignóbil saber que o nu não é/foi um problema para as artes, é fundamental lembrar que, nesse caso específico, o artista também ironizava as relações cada vez mais frequentes de objetificação do sujeito contemporâneo, além das intermitências entre o público e o privado. E, exatamente por isso, seu corpo era isento de erotismo. E mesmo que o fosse, não nos custa advertir que pulsão libidinal (ver Freud), é algo completamente distinto da pedofilia; caso que ocorre com frequência em famílias heterossexuais, como as defendidas pelos religiosos fundamentalistas. Nunca (em tempo algum) dentro de um museu e/ou exposição.

Alexandre Sá é pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF; doutor e mestre em Artes Visuais pela UFRJ; Diretor do Instituto de Artes da UERJ; Coordenador do curso de Artes Visuais da Unigranrio; Professor do Programa de Pós-graduação em Artes da UERJ; Editor-chefe da revista "Concinnitas"; artista; curador; crítico de arte.

Vitor Ramalho é licenciado em Artes Visuais e Habilitado em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É produtor e professor de Artes Visuais. Trabalhou durante 20 anos como Coordenador Técnico do Sesc Rio de Janeiro, concebendo e realizando exposições de diversos artistas relevantes para a cena brasileira.

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ALTO FALANTE

Por Guy Amado

Olho por olho, pênis por pênis O assunto agora é, inevitavelmente, a recente celeuma deflagrada a partir de investidas ultraconservadoras contra eventos de arte contemporânea. Nada de realmente novo em si, embora a visibilidade alcançada e as circunstâncias em que tenham se dado tais investidas sejam particularmente emblemáticas dos tempos sombrios em que o país vem mergulhando mais aceleradamente no último ano e meio (e aqui qualquer coincidência com o período pós-"impeachment" não será fortuita). Como amplamente difundido, no passado mês de setembro estouraram polêmicas envolvendo duas mostras de arte, ou melhor, uma exposição - a "Queermuseu", no Santander Cultural em Porto Alegre - e uma obra específica apresentada no mais recente Panorama de Arte Brasileira, no MAM-SP. No primeiro caso, tratava-se de um turbilhão de protestos contra a mostra como um todo, embora o foco original do clamor fosse alegadamente conteúdos específicos de meia dúzia de obras dentre as 270 do total. A exposição "Queermuseu", como se adivinha desde o título - que não me parece dos mais felizes, sendo o subtítulo "Cartografias da diferença" mais esclarecedor -, é pautada no debate da diversidade sexual e de questões de gênero, o que a leva a apresentar obras com potencial dito "ofensivo", passível de causar desconforto ou mal-estar em mentes mais suscetíveis. O outro episódio diz respeito a uma performance realizada na abertura da mostra no museu paulista, em que o artista propunha que seu corpo - nu e imóvel - fosse manipulado pelo público, em uma ação que manteria suposto diálogo com os "Bichos", de Lygia Clark. No decorrer da ação, seguindo os preceitos da peça, uma mãe acompanhada de sua criança interagem com o artista, tocando delicadamente seus pés e braços. Foi o que bastou, claro, para fazer vociferar os escandalizados de plantão. Até aí seria mais ou menos o esperado, sobretudo em tempos em que se dá a ascensão brutal de um neoconservadorismo e quando a arte contemporânea já ultrapassou há muito qualquer possibilidade de estabelecer de modo preciso o âmbito de sua prática e de sua recepção (o de sua circulação, por outro lado, parece melhor demarcado, mas este é um ponto à parte). Mas o tal fator de incômodo previsível foi agora amplificado com acusações de se "promover a pornografia", a "pedofilia" e até mesmo a "zoofilia"(!), dentre outros factoides, em interpretações "sui generis" de obras de arte. E o pior, em um dos casos, a reação institucional foi capitular de imediato frente a tais apelos. O banco que patrocinava a exposição "Queermuseu", abrigada no centro cultural que leva o nome do mesmo, cedeu sem maiores constrangimentos diante dos primeiros sinais de viralização da polêmica e encerrou sumariamente a mostra, desculpando-se com aqueles porventura "ofendidos", seu pretenso - ou desejado - público (depreende-se clientes) mas sem dar satisfações à organização da mostra nem, por extensão, ao setor artístico. Em resumo, o que se viu a partir de tentativas delirantes de criminalização de um evento cultural (chegou mesmo a 76


haver mobilização de aparato jurídico em ambos os casos) foi a efetivação de um ato de censura. No melhor estilo protofascista. Absurdo à parte, o que se constata é que, uma vez mais, prova-se o peso da combinação sempre poderosa de ignorância, histeria e hipocrisia - ou cinismo. Ignorância pelos motivos óbvios: desde tempos imemoriais, a história da arte é atravessada por imagens de forte carga de erotismo, mesmo quando a serviço da religião. A nudez humana, com maior ou menor acento libidinal, é tema de incontáveis obras através dos tempos - e poupo aqui o trabalho de elencar algumas dezenas de trabalhos exemplares, desde a escultura précolombiana a tantas criaturas erotizadas e insinuantes que povoam, sem maior controvérsia, a pintura ocidental dos últimos quatro ou cinco séculos. A histeria vem naturalmente a reboque. Uma vez lançado o clamor inicial em escala pública, segue-se a reação em cadeia automática: os brados retumbantes (e espumantes) clamando pela "moral e bons costumes", etc., em um fenômeno que conjuga uma espécie de catarse massiva e a indignação calculada, oportunista. Não importa a eventual pertinência ou não de tal protesto: o que interessa é aproveitar a oportunidade para dar vazão a uma ira e a uma intolerância externadas a partir de valores moldados seguida e cotidianamente, alinhados a uma narrativa distorcida do que seja o "cidadão de bem". Sejam impelidos por discursos religiosos maniqueístas que levam a uma cegueira seletiva como, em outra medida, pela própria grande mídia e a internet, com suas múltiplas possibilidades de difusão de informação falseada, os que aderem a esse tipo de movimentação têm aí terreno fértil para o flerte desimpedido com a barbárie. É uma pulsão semelhante à que se observa, por exemplo, nas hordas que de uns tempos para cá não se acanham em promover "justiça com 77


É este o perfil dos gladiadores "em defesa da decência"… as próprias mãos", com inúmeros e pavorosos casos de linchamentos e similares levados a cabo país afora, não raro com resultados fatais, a partir de meros boatos ou suposições. A hipocrisia e o cinismo se verificam, como não podia deixar de ser, de diversas formas: desde a qualidade moral duvidosa dos mesmos que posam de revoltados frente a manifestações artísticas que não se dispõem a ou não são capazes de compreender, ao oportunismo que leva políticos a posarem subitamente de paladinos da moral pública (desde os previsíveis vereadores e deputados "pitorescos" que se aproveitam da querela apenas para capitalizar a própria imagem a diversos senadores, passando pela ALERJ e Prefeitura do Rio, que se apressou em proibir uma itinerância da mostra do Santander na capital fluminense) quando a própria conduta revela desvios de caráter e retidão colossais. Veja-se por exemplo o deputado João Rodrigues (DEM), dos mais exaltados no ataque à citada performance, referindo singelamente o artista como um "patife, tarado" e que "tem que levar porrada". Ocorre que o nobre deputado é o mesmo a ter sido flagrado assistindo a pornografia no celular em uma sessão no plenário da Câmara, em 2015. Só isso. Outro exemplo está em um dos mais midiáticos "incomodados" com a mesma peça no MAM-SP, e que dispensa maiores comentários: o superlativo e simiesco Alexandre Frota, dublê de ator pornô e estuprador eventual. É esse o perfil dos gladiadores "em defesa da decência". E há ainda outras falsas questões: o que está em jogo de fato não seria, nem poderia ser, qualquer discussão acerca do que é facultado ou não à arte trabalhar ou sua "capacidade de chocar", mas a narrativa de fundo que sugere a implementação de um novo paradigma moral, à revelia de qualquer preceito democrático. E, que por sua vez, é reflexo de todo um processo de retrocesso civilizatório em curso no país e no mundo que tem na naturalização da barbárie uma de suas facetas mais típicas. A característica "indignação seletiva" que vem marcando de modo claro tantos posicionamentos políticos no país (atingindo até a mais alta esfera de nosso sistema judiciário) nos últimos tempos é outra dessas facetas, e surge agora transposta ou desdobrada, em estreita sintonia, para o campo da cultura. E dadas as proporções tomadas e o endosso demonstrado por alguns setores da sociedade em relação a esses dois episódios - que em qualquer outra democracia minimamente amadurecida não ganhariam sequer uma manchete -, já não parece mais haver lugar para rebater esse tipo de comportamento apenas nos termos do debate lúcido e manifestações simbólicas de repúdio. É hora talvez de adotar outras posturas e estratégias, mais compatíveis com a urgência e gravidade do cenário que se apresenta - e dotadas de um grau de efetividade que se faz mais e mais necessário no combate às trevas que grassam em "terra brasilis". Olho por olho, pênis por pênis.

Guy Amado é crítico de arte e curador independente. Vive atualmente em Portugal, onde realiza doutorado em Arte Contemporânea.

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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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