ATHOS BULCÃO MARIANO FORTUNY JULIO LE PARC ANNA LETYCIA LUBAINA HIMID RICK RODRIGUES
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro
Capa: Athos Bulcão, Estudo em cartão. Foto: Vicente de Mello.
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Contracapa: Mariano Fortuny, A escolha da modelo, 1868-1874.
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Julio Le Parc, Continuel-Lumière. Mobile, 1960-1966. Foto: Adrian Fritschi.
LUBAINA HIMID
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ATHOS BULCÃO
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06 De arte a z 56 Resenhas 62 Livros
MARIANO FORTUNY
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64 Alto Falante
ANNA LETYCIA
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JULIO LE PARC
RICK RODRIGUES
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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte
REMBRANDT EM DOSE DUPLA O Rijksmuseum de Amesterdã revelará o retrato duplo e completo de casamento de duas pinturas de Rembrandt com retratos de Marten Soolmans e Oopjen Coppit de 1634, que a instituição holandesa comprou em conjunto com o Louvre. As obras farão parte da exposição “High Society” com abertura prevista para março deste ano.
MORRE INFLUENTE ARTISTA DE CERÂMICA
ARTE E NUDEZ NA ESCOLA
COLEÇÃO DOS ROCKEFELLER PODE VALER US$ 1 BILHÃO
Na Itália, aos 87 anos
Em Utah, EUA
Em leilão em Nova York
Betty Woodman era conhecida por suas obras de cerâmica, que vão desde vasos inventivos até instalações de grande escala. Ela surgiu como artista nas décadas de 1960 e 1970, e desenvolveu seu próprio estilo experimental de cerâmica, incorporando técnicas de construção manual, enquanto se inspirava em vários movimentos históricos da arte, do Renascimento italiano à arte decorativa chinesa.
O professor Mateo Rueda foi demitido depois de pedir aos seus alunos do sexto ano para examinarem o “The Art Box Postcards” para encontrar exemplos de uso de cor. Os estudantes descobriram algumas imagens de nus. Apesar da explicação de “que o corpo humano é muitas vezes retratados na arte e que as imagens na coleção da escola são ícones da história da arte e um patrimônio da humanidade”, um pai o acusou de exposição à pornografia. O professor pretende recorrer.
A Christie's oferecerá todos os 1.600 lotes da propriedade do casal Rockefeller em uma série de leilões em maio. Entre os destaques estão “Fillette à la corbeille fleurie” (1905), de Pablo Picasso (foto) estimada em US$ 70 milhões, “Odalisqueaux magnolias” (1923), de Henri Matisse, estimado em US$ 50 milhões e “Nymphéas en fleur” (1914-1917), de Claude Monet, estimado em cerca de US$ 35 milhões. Os rendimentos das vendas irão para várias causas caritativas.
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PROTESTO DE ARTISTAS NA MALÁSIA
NOVO ESPAÇO
Durante a Bienal de Kuala Lumpur
Coletivos se retiram da bienal de Kuala Lumpur depois de ter seus trabalhos confiscados pela polícia. Os grupos “Pusat Sekitar Seni” e “Population Project” tiveram seu trabalho conjunto retirado da mostra devido às críticas de visitantes que chamaram o trabalho de comunista. A instalação reunia pôsteres, textos e desenhos com mensagens de conscientização ecológica. Autoridades negam censura e apontam a direção do evento como responsáveis pela remoção.
Casa Parêa A ideia surgiu de ter um espaço totalmente dedicado às artes visuais na Paraíba. Um grupo de artistas e amigos encontraram um imóvel abandonado no centro histórico e querem fomentar a cena artística da cidade. A Casa Parêa pretende ser um local de oficinas, cursos, exposições, conversas e impulsionar a programação cultural da cidade, carente de opções em artes visuais. PRAÇA ANTENOR NAVARRO, 6 VARADOURO JOÃO PESSOA-PB
GIRO NA CENA Polêmica no Museu
“Eu não acho que a questão é ‘Deve ser grátis?’, A pergunta é ‘Quem deve pagar?’. Porque, se for grátis, quem está pagando? O governo federal?” Daniel Weiss, diretor do Metropolitan de Nova York depois de aprovar nova política de cobrança de acesso ao museu, onde visitantes pagam inteira (US$ 25), enquanto locais pagam o quanto desejarem. Segundo ele, o custo de um visitante ao museu é de US$ 42.
Wolfgang Tillmans recebe o prêmio Goslar O fotógrafo alemão se junta às lista dos vencedores anteriores, incluindo Isa Genzken e Sigmar Polke ao receber o prêmio “Kaiser Ring”, da cidade medieval alemã de Goslar. Ele será apresentado com o anel de ouro em uma cerimônia em setembro e abrirá uma nova exposição no Museu Mönchehaus.
GIRO NA CENA
Um Rio de Janeiro menos conhecido #RioUtópico, de Rosângela Rennó, é um projeto colaborativo e em construção sobre a paisagem carioca distante do cartão-postal. A mostra exibe fotos de 50 lugares selecionados pela artista e convoca o público para contribuir com imagens enquanto a exposição estiver em cartaz. No Instituto Moreira Salles Rio, até 15/4/2018.
DAMIEN HIRST E SUAS NOVAS PINTURAS EM MANSÃO DO SÉCULO 18 Damien Hirst vai assumir os espectaculares quartos da maior mansão palladiana da GrãBretanha para mostrar sua recente série de 50 novas pinturas e outras já conhecidas. O espaço Color Space será exibido no Houghton Hall, em Norfolk, construído no século 18 para o primeiro-ministro da GrãBretanha, Sir Robert Walpole, e que hospedou uma das maiores coleções de arte do mundo. A exposição abrirá em março deste ano.
Francisco Brennand: Mestre dos Sonhos Com curadoria e projeto expográfico de Rose Lima, a exposição conta com 31 obras do acervo original do artista, criadas em diversas fases da sua carreira. Seus trabalhos evidenciam temas como reprodução, mitologia, sexualidade, fauna e flora, personagens históricos e divindades, tudo permeado por signos da tradição popular do Nordeste. Na Caixa Cultural Rio de Janeiro, de 13/1 a 13/3.
8 DE ARTE A Z
VISTO POR AÍ
Na véspera do Natal, a artista Carolina Falkholt grafitou um mural com um falo gigante em quatro andares de um prédio, em Nova York, com a intenção de agitar grandes discussões sobre gênero e sexualidade. A pintura durou apenas três dias.
LUBAINA HIMID
POR SACHA CRADDOCK
A formação de Lubaina Himid se baseia em associação coletiva. A gama de trabalho que ela faz como curadora, professora e artista articula a ideia de que a comunicação é resultado de mais do que apenas experiência direta. A arte britânica na década de 1980 dava particular importância ao contexto institucional: a exposição "The Thin Black Line" (A fina linha negra), que ela organizou na ICA, em 1985, era toda sobre história e contexto - o que Himid chama de dança no mundo da arte. Naquela época, ela queria, como uma mulher negra, estar entre as feministas, financiadoras e críticas, não só como uma nota de rodapé. 10 OUTRAS NOTAS
A peça mais antiga de Lubaina Himid, "The Fashionable Marriage" (O casamento da moda), de 1986, é uma poderosa indicação de sua experiência como artista, organizadora e educadora. Desde o início, Himid buscou imagens de pessoas negras na pintura histórica, usando a pintura como material de fonte visual, como evidência. "O Casamento da moda" faz uma sofisticada referência à William Hogarth e sua série de seis imagens intituladas "Marriage à la Mode" (17431945). Himid, que tem formação como cenógrafa, valoriza os recursos da linguagem gráfica e da caricatura em Hogarth. Como artista, ela usa camada sobre camada de referências e
A informação, a expressão e a compreensão podem ser obtidas tanto de fontes visuais quanto de dentro de si mesmo. materiais, trabalhando com a crença de que a informação, a expressão e a compreensão podem ser obtidas tanto de fontes visuais quanto de dentro de si mesmo. A instalação fica afastada das paredes para mostrar seu funcionamento por trás, bem como a ilusão vista de frente. Os personagens, como aqueles em um teatrinho de brinquedo empurrados de lado, desempenham o papel de adereços em uma relação contínua com o espaço doméstico tridimensional. O palco é definido com aparente descuido e Himid segue o princípio do modernismo, revelando o cenário de frente e de trás. O trabalho é extremamente revelador; sátira e arte podem confundir o tempo. Os observadores dessa peça podem ter mudado em relação à sua expectativa da representação dos negros, mas a hipocrisia permanece inalterada. Um novo presidente dos EUA se junta com um novo primeiro-ministro britânico, novamente, dentro do mesmo relacionamento especial implícito. Em muitos níveis, tudo, e ainda nada, mudou.
Acima: O casamento da moda, 1987. À esquerda: Le Rouder: A troca, 2016.
Acima: Le Rodeur: A fechadura, 2016. Abaixo: O aparelho de jantar Lancaster, 2007.
Para "The Lancaster Dinner Service" (O aparelho de jantar Lancaster), Himid garimpou pratos, jarros e baixelas em brechós, mercados e lojas de caridade. Talvez alguém tenha possuído um prato assim, ou a avó de alguém tenha esse jarro. Ao pintar diretamente sobre o objeto cerâmico, Himid consegue um deslocamento quase camuflado de imagens e letras. Jarras e sopeiras representam criados negros daquela época, enquanto outras peças, como placas, representam os comerciantes,
12 OUTRAS NOTAS
abolicionistas e liberais. Aqueles perto do tráfico de escravos respondem ao anúncio de sua abolição: alguns aristocratas estão felizes, alguns vomitam. Exibido como um serviço oficial comemorando a abolição do tráfico de escravos, destaca o papel de Lancaster no episódio. As pinturas recentes abordam o tema de uma maneira diferente. Himid pinta o ambiente e a atmosfera ao redor, criando o pressentimento de um incidente imaginado, mas mesmo assim real. Com base nos relatos contados por um livro contábil, onde a perda humana e financeira inevitavelmente e literalmente são iguais, a série "Le Rodeur" é sobre a economia de um navio escravo navegando da África Ocidental para Guadalupe. Todos os habitantes do navio, exceto uma pessoa, foram atingidos talvez por uma infecção e ficaram cegos. Himid se aproxima, mas não inteiramente, desse conto. Como artista, com um desejo poderoso e uma vida ativa para contar e questionar sobre como contar a história do tráfico de escravos, ela aborda essa situação com uma mistura de diplomacia e licença poética. Evitando qualquer representação literal de africanos sangrando ou morrendo, ela imagina e pinta o momento antes ou depois desse terrível acontecimento.
1974, 2015.
Lubaina Himid foi a vencedora do Turner Prize 2017 e fez história. A artista de 63 anos é a vencedora com mais idade e a primeira mulher negra a ganhar o prêmio.
Sacha Craddock atua como crítica de arte na GrãBretanha foi curadora do Turner Prize 2017.
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ATHOS BULCÃO 100 anos
Fundação Athos Bulcão, Livro acervo 4.
POR MARÍLIA PANITZ
Athos Bulcão é um grande artista brasileiro e é (ainda) um desconhecido. Associado frequentemente a Oscar Niemeyer e Lucio Costa, na construção de Brasília, o artista desenvolveu, sem dúvida, um grande trabalho de integração em arquitetura e arte. Em tempos de estranhas movimentações no Congresso Nacional, o Brasil inteiro vê sua obra como pano de fundo das reportagens na TV. 16 DESTAQUE
Em uma longa entrevista, concedida à jornalista Carmen Moretzohn, em 1998, chamada "O habitante do silêncio em Brasília", Athos afirmou: "Eu acho que a minha atitude diante da coisa ajuda nisso. O primeiro cuidado é não parecer que o prédio foi feito para ficar com aquela decoração na frente. É preciso sentir que aquilo é muito necessário, no que se refere à conclusão do projeto, evitar que pareça um ornamento
gratuito, do tipo 'vou lá e vou enfeitar'. O resto é um pouco de bom senso". A aproximação ao pensamento e às lembranças do artista que se estabeleceu em sua conversa com a repórter serviu de fio condutor para o recorte curatorial, definido por mim e por André Severo, na mostra "Os 100 anos de Athos Bulcão". Ali está a fala do mestre. Sim, porque é preciso destacar a importância de sua obra e de seu legado na arte que se produz na cidade nova! Athos é um carioca que se aventurou no Planalto Central a partir de uma provocação feita por Niemeyer, que já conhecia seu trabalho, dos tempos dos encontros no ateliê de Burle Marx (isso, no início dos anos 1940). Aliás, ele gostava de contar que suas primeiras experiências com os azulejos (que seriam sua grande marca) foram estimuladas "pelo Oscar" que, ao ver um trabalho que fazia, comentou: "Ah,
É preciso sentir que aquilo é muito necessário no que se refere à conclusão do projeto, evitar que pareça um ornamento gratuito.
À esquerda: Projeto para painel de azulejos (Ministério das Relações Exteriores). Foto: Vicente de Mello. Acima: Lula III, 1997. (Hospital Sarah, DF).
Ele era um colorista raro, e era generoso em compartilhar suas descobertas. Estudo em cartão. Foto: Vicente de Mello.
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que coisa bonita. Vamos fazer um azulejo com isso." Oscar, segundo Athos, teve um papel importante em seu aprendizado do espaço e da visualidade, essenciais para os projetos de grandes painéis integrados aos prédios. Vindo como funcionário da Novacap (empresa responsável pela construção da nova capital), Athos tornou-se professor da Universidade de Darcy Ribeiro. Lecionou por pouco tempo, pois, em 1965, como consequência do Golpe Militar, estava entre os mais de 200 professores que se demitiram em solidariedade aos colegas presos. Voltaria nos anos 1980, depois da anistia. Em seu novo período lecionando no Instituto de Artes deixou um legado entre os alunos que passaram por suas mãos. Mas, antes e depois desse período, já havia os chás em seu ateliê (a sala de sua casa), aos quais compareciam vários artistas mais jovens. Ali era possível tomar um estreito contato com suas pinturas, e mais do que isso, com suas experiências com a cor. Ele era um colorista raro, e era generoso em compartilhar suas descobertas. Sua pintura, ainda figurativa, nos tempos do Rio - com os "carnavais" com estrutura algo renascentista, lembranças de sua infância com os irmãos carnavalescos, amigos de Noel Rosa e Francisco Alves - vai se tornando abstrata, já aqui em Brasília. A exceção é uma poética série pintada sobre mármore para a catedral que, curiosamente, tem a composição muito próxima à das cenas de folia. Chamada de "A vida de Nossa Senhora", ela é muito
Abaixo: SĂŠries Carnaval e Vida de Nossa Senhora (Acervo Catedral de BrasĂlia). Fotos: Vicente de Mello.
Instituto de artes da Universidade de Brasília. Foto: Vicente de Mello.
semelhante aos quadros da festa profana, um dado interessante para se pensar o espraiamento de suas atividades, como a concepção de vestes litúrgicas (magníficas) e figurinos para ópera e peças teatrais; o sacro e o mundano têm uma proximidade que quase os fundem em uma só experiência estética. E é pouco conhecida sua posição em relação ao trânsito que explorou entre o trabalho de ateliê (e de prancheta) e 20 DESTAQUE
outros campos (de arte aplicada) que explorou. Além de figurinista, foi cenógrafo d'O Tablado, ainda em tempos de Aníbal Machado, e depois com Maria Clara. Foi ilustrador de jornais; produziu o design de lenços, nos anos 1970, onde se pode depreender o pensamento modular dos azulejos e de suas pinturas da época. Concebeu móveis para as casas de amigos (com a mesma "pegada" modular), capas de discos e
livros (na mostra, teremos duas edições de "O Encontro Marcado", do amigo Fernando Sabino). Para Athos, tudo era parte de uma mesma lógica de criação. E é possível ver claramente nas fotomontagens geniais que produziu nos anos 1950. Na mostra, o processo de realização desses trabalhos poderá ser visto com a coleção de colagens originais - matrizes da obra final -, assim como algumas fotos de controle,
todas pertencentes a um casal de colecionadores. De seus trabalhos não ligados à arquitetura, talvez os mais conhecidos sejam suas máscaras - relevos policromados pintados e acrescidos de pequenos elementos, um princípio de colagem tridimensional - que ele definia, com bom humor, como uma mistura do Museu do Homem, de Paris, com "2001, Uma odisseia no espaço", de Stanley Kubrick. Aqui há 21
Acima: Panteão da Pátria Tancredo Neves Praça 3 Poderes, Brasília. Abaixo: Sede da Editora Mondadori. Milão, Itália. Arquiteto Oscar Niemeyer. Foto: Tuca Reinés.
22 ATHOS BULCÃO
também uma revelação do artista, que o coloca em posição à frente de seu tempo: as máscaras são exercícios de produção de uma "falsa" arqueologia, de um ato de homenagem ao prazer estético frente a um objeto cultural, que afirma: "Gostei, vou fazer um para mim". Esse núcleo da mostra tem o nome retirado de uma expressão do mestre: "É tudo falso". Na galeria dedicada à sua obra integrada à arquitetura, estão os projetos dos painéis de azulejo e também seus inúmeros relevos acústicos; suas divisórias sempre tensionando as ideias de funcionalidade e de ludicidade incomparáveis. Estão expostos seus desenhos, suas plantas, seus estudos, um convite ao jogo. E, como um mergulho em uma parceria exemplar, seu trabalho na Rede de Hospitais Sarah Kubitschek, concebida com seu parceiro Lelé (o arquiteto João Filgueiras Lima). Ali, Athos está presente nos painéis, nos muros, nas calçadas, nas divisórias, no mobiliário, nos objetos. Um trabalho conjunto sem precedentes e que revolucionou o conceito do espaço hospitalar. Uma segunda revolução, já que a primeira toma toda uma cidade. E, como último núcleo, a mostra traz "Rastros de Athos", duas gerações de artistas que têm sua formação em Brasília (embora muitos já não vivam aqui) que foram convidados a pensar de que maneira o legado de Athos está presente em suas obras. A beleza
Teatro Araras. Foto: Daniel Pereira
do processo é que a curadoria se tornou coletiva e o resultado é uma conversa estreita entre a obra do mestre e daqueles que foram impactados pelo seu pensamento e pela sua presença na cidade. Como resultado de uma vida dedicada a produzir e vivenciar arte, não é pouca coisa.
100 anos de Athos Bulcão • Centro Cultural Banco do Brasil • Brasília • 16/01 a 01/04/2018
Marília Panitz Silveira é crítica de arte e curadora independente e atua como pesquisadora e coordenadora de programas educativos em exposições.
FORTUNY (1838-1874)
Sem tĂtulo, 2001. (Saco com Z).
19 A escolha da modelo, 1868-1874. Todas as imagens: Š Museo Nacional del Prado.
FORTUNY FOI O ARTISTA ESPANHOL DO SÉCULO 19 COM MAIOR PROJEÇÃO INTERNACIONAL. SEU DOMÍNIO DA COR E LUZ E SUA PRÓDIGA CAPTAÇÃO DO NATURAL SÃO TEMAS DE UMA GRANDE MOSTRA NO MUSEU DO PRADO
POR REDAÇÃO A formação em Roma (1858-61) Filho e neto de artesãos e órfão desde muito jovem, Fortuny desenvolveu no alcance de seu primeiro treinamento uma habilidade artística especial. Após o início de suas aulas como pintor na escola municipal de Reus e seus estudos na Escola das Belas Artes de Barcelona desde 1853, ele se formou 26 FLASHBACK
academicamente. Sua estada em Roma, pensionado pela Diputación de Barcelona, colocou-o em contato, a partir de 1858, com a grande arte do Renascimento e do Barroco. Na Cidade Eterna, migrou para a Academia Gigi, onde fez dos estudos de nus naturais que mostram a sua fina
captação da anatomia, às vezes com expressividade especial, fruto de seu domínio tanto do lápis como da caneta. Sua qualidade como aquarelista já era visível em "Il contino", cujo tema, um jovem com vestuário do século 18 em um jardim monumental (a Villa Borghese, em Roma), anuncia sua posterior dedicação ao gênero historicista. "A Odalisca" reflete seu conhecimento do nu, impregnado de sensualidade, com um tratamento muito mais livre e realista do que seu trabalho em Barcelona. África e a descoberta da pintura (1860 e 1862) A Diputación de Barcelona ordenou Fortuny viajar ao Marrocos, a fim de coletar informações gráficas para depois elaborar quadros que representam os atos com mais destaques da guerra hispanomarroquina, em que participaram
Sua qualidade como aquarelista já era visível em "Il Contino", cujo tema anuncia sua posterior dedicação ao gênero historicista.
À esquerda: Nu na praia de Portici, 1874. Acima: O fumador de opio, 1869.
tropas de voluntários catalães. Em Marrocos, a partir de fevereiro de 1860, além de continuar a campanha, que o levou a testemunhar, e depois a pintar, "A Batalha de Wad-Ras", o pintor foi atraído pelos costumes e tipos árabes. Ele retornou em 1862 e tomou inúmeras anotações para representar a Diputación com "La batalha de Tetuán", quadro de grande dimensão que não chegou a terminar. A descoberta dos espaços nus, a luz intensa e a cor brilhante do norte da África produziram uma mudança radical em sua pintura. Isso é visível tanto em suas obras feitas a partir da natureza como naquelas feitas em seu estudo a partir de anotações, sua memória e sua imaginação. Nestas últimas, ele lidou com originalidade os aspectos da vida árabe que, por ser pitoresco ou misterioso, haviam lhe interessado. Entre Espanha e Itália (1863-1868) Depois de passar alguns meses em Barcelona, o artista voltou para Roma, onde continuou trabalhando com motivos árabes e também produziu óleos e aquarelas que representavam tipos populares que via nas imediações da cidade. Nesses trabalhos, ele desenvolveu um estilo realista, 28 FORTUNY
estimulado pelo trabalho de alguns artistas da escola de Nápoles, que ele havia visto na Primeira Exposição Nacional Italiana em Florença, em 1861, e outras que visitou em 1863. Ele ocasionalmente se aproximou do retrato, no qual ele desenvolveu seu gosto por tons de cor, e foi encarregado para pintar um dos tetos
Fantasia árabe, 1867.
da residência parisiense da rainha Maria Cristina de Borbón. Essa pintura é mostrada pela primeira vez em sua posição original, como um afresco, permitindo sua plena compreensão. Em uma de suas estadias em Madri, onde se casou, em 1867, com Cecilia de Madrazo, filha de Federico de Madrazo, pintou uma de suas obras
mais interessantes daqueles anos, "Fantasía sobre Faust". Essa pintura é um bom exemplo da imaginação arrebatada e a vibrante pincelada com a qual ele abordava e atuava, em poucas horas de trabalho, seus estudos, cuja técnica imediata e habilidosa também pode ser vista em outros óleos. 29
Os filhos do pintor no jardim japonĂŞs, 1874.
Os antigos mestres e o Prado (18661868)
Ele continuou pintando aquarelas com sucesso crescente, utilizando nelas diversos procedimentos executados com uma grande liberdade e um fino cromatismo.
32 FLASHBACK
Embora Fortuny tenha começado seu rigoroso estudo de pintura antiga na Itália, onde copiou alguns mestres renascentistas e barrocos, incluindo Velázquez, foi no Museu do Prado onde ele se aproximou deles de maneira mais assídua. Ele apreciou especialmente os artistas das escolas venezianas e flamencas, além das espanholas e daqueles que admirava a qualidade de cor e liberdade da pincelada. Entre eles, Greco, um pintor pouco apreciado até então, interessouo ao ponto de adquirir uma de suas obras. Juntamente a ele, Ribera e Velázquez foram objetos de algumas cópias a óleo e aquarela mostrando seu domínio da anatomia, das qualidades táteis e da cor. O professor mais apreciado de Fortuny foi Goya, de quem fez o maior número de cópias. A penetração e a qualidade dessas interpretações são incomparáveis com as de outros pintores de seu tempo. Como referência útil para sua pintura, o artista manteve em seu ateliê essas cópias, algumas das quais atingiram preços elevados em sua venda póstuma.
À esquerda: Cofre Fortuny, Taller hispanomusulmán, Séc. 11. Abaixo: O Presbítero, 1868-1870.
Sem título, 1979.
O triunfo internacional (1868-1870) Através de seu relacionamento com o vendedor de arte Adolphe Goupil, Fortuny obteve grande êxito internacional, do qual o quadro "O Presbítero" é um exemplo, uma pintura de costumes ambientada na época de Goya. Ao lado desse trabalho, o artista abordou uma ampla série de composições de gênero, entre elas a mais elaborada, "A escolha da modelo" (1868-1874), que ele pintou para seu colecionador principal, William H. Stewart. Nessas obras, Fortuny recriou um mundo de beleza em interiores
arquitetônicos ricamente ornamentados em que sua pintura traz diferentes homenagens a outros artistas. Junto com seu árduo trabalho nessas obras, ele continuou pintando aquarelas com sucesso crescente, utilizando nelas diversos procedimentos executados com uma grande liberdade e um fino cromatismo, que transformaram por completo a prática até então habitual entre os artistas. Sua dedicação ao desenho lhe proporcionou, através de notas naturais feitas em cadernos, um material muito útil para suas pinturas e aquarelas. 33
A qualidade de arquiteturas escolhidas como cenários, enriquecidas com objetos decorativos estudados em esboços e desenhos, evoca um mundo maravilhoso e autoabsorvido.
Granada (1870-1872) Após o seu triunfo internacional, uma estadia de mais de dois anos em Granada proporcionou a Fortuny a tranquilidade que desejava, longe de Paris, em um ambiente de grande beleza que inspirou um conjunto excepcional de pinturas. Por um lado, seu trabalho perante ao natural deu origem a estudos de óleo de figuras nuas, cantos de áreas urbanas, paisagens, jardins e flores, em todos os quais conseguiu uma nova captação de cor e luz. Por outro lado, ele fez obras mais complexas nas quais ele combinou livremente elementos de diferentes fontes para criar novos espaços. Pintou cenas ambientadas em um passado medieval islâmico, renascentista ou do século 18, e em cenários nos quais surpreendem a convivência de elementos reconhecíveis com outros que eram produto de sua imaginação. Nessas pinturas, a qualidade de arquiteturas 34 FORTUNY
escolhidas como cenários, enriquecidas com objetos decorativos estudados em esboços e desenhos, evoca um mundo maravilhoso e autoabsorvido que o pintor poderia criar no que ele considerava o momento mais feliz de sua vida. O ateliê A atividade colecionista de Fortuny, iniciada anteriormente em pequena escala, foi desenvolvida na década de 1860, e especialmente após o contato com antiquários, conhecedores e colecionadores. Durante a sua estadia na Andaluzia obteve, guiado por certo instinto, obras de arte hispanomuçulmanas de excelente qualidade. Sentiu-se atraído por todo tipo de objetos, especialmente armas, cerâmicas, têxteis, marfins, móveis e cristais. Entre a variedade de estilos representados, destaca-se a arte
Cecilia de Madrazo, 1874. Š The Trustees of the British Museum.
Prefeitura antiga de Granada, 1872-1873.
islâmica, verdadeiro núcleo de sua coleção, e também excelentes amostras de artes decorativas italianas e espanholas, bem como tecidos japoneses, telas e estampas. O próprio artista, dotado de grande habilidade, trabalhou na restauração e até mesmo na elaboração de alguns objetos de aparência antiga. A apresentação do set de seu estúdio em Roma, juntamente com suas próprias obras, mostra um campo de beleza em que as qualidades, as cores e os brilhos dos objetos foram uma fonte de inspiração direta para os próprios trabalhos do artista. 36 FLASHBACK
Os últimos anos (1873-1874) Nos últimos dois anos de sua vida, Fortuny abordou questões árabes que havia tratado nos anos anteriores de forma mais sintética e com um dinamismo e uma expressividade mais marcada, através de uma cor mais intensa e uma pincelada mais livre. Por outro lado, ele fixou com interesse em alguns temas do cotidiano, como mostra o "Carnaval de Roma", a partir de 1873, bem como, especialmente nos meses em que passou em Portici, perto de Nápoles, em cenas da intimidade familiar, em que representou sua
MarĂa Teresa de Madrazo y Madrazo, 1868.
esposa e seus filhos. Durante este período de grande intensidade criativa, seu trabalho ao ar livre, junto ao mar, levou-o a compreender a cor local e a sua relação com a incidência da luz, chegando a representar as sombras coloridas. Com o tempo, ele desenvolveu outras orientações, como aquela inspirada na estética do Extremo Oriente, em pinturas a óleo e aquarelas de uma natureza íntima, como "Os filhos do pintor na sala japonesa".
A morte inesperada e precoce, que produziu uma comoção em Roma, provocou um verdadeiro culto ao artista, cujo trabalho se espalhou e foi muito apreciado nos anos seguintes.
Fortuny (1838-1874) • Museu título, 1989. Nacional do Sem Prado • Madri, Espanha • 21/11/2017 a 18/03/2018
Passatempo das crianças, 1870-1871.
Rubem Grilo, A praรงa.
ANNA LETYCIA E a oficina de gravura do Ingรก
Anna Letycia, Peras.
GRANDE EXPOENTE DA GRAVURA NO BRASIL, ANNA LETYCIA TAMBÉM PROJETOU DIVERSOS GRAVADORES NOS ANOS 1980 COM A OFICINA DE GRAVURA DO MUSEU DO INGÁ. UMA EXPOSIÇÃO CELEBRA OS 40 ANOS DA OFICINA REUNINDO TRABALHOS LÁ CRIADOS
POR MARCUS LONTRA
Falar de gravura é, antes de tudo, falar de resistência e dedicação. A história da gravura no Brasil se pontua por esse compromisso de gravadores com a realidade brasileira, com a situação social e econômica brasileira, com a participação intensa na vida política do país. Sabemos que na época colonial a impressão era proibida no Brasil. Os primeiros gravadores eram os responsáveis pelas efígies das moedas e por outras práticas industriais. Esses primeiros gravadores eram conhecidos 42 ALTO RELEVO
como abridores. Os abridores eram chamados assim porque eram aqueles que abriam no buril a imagem. Ou seja, eles, com buril, revelavam a imagens no metal. A oficina de gravura do Ingá, criada a partir de exemplos das oficinas de gravura do Museu de Arte Moderna do Rio e desenvolvida por um projeto bem realizado pelo Ítalo Campofiorito, passa a receber diversos artistas jovens que, oriundos do processo de silêncio ditatorial, começam a entender a arte não
apenas nos seus aspectos experimentais, mas também nos seus aspectos artesanais, nos seus compromissos de execução de imagens que na verdade correspondam a uma síntese entre o pensar e o agir. É preciso ressaltar a ação efetiva de Anna Letycia na condução desse processo. Uma artista gravadora por excelência, de extrema qualidade técnica e estética, consegue compreender a possibilidade de experimentação da gravura e abre as portas do Museu do Ingá, suas oficinas, para artistas pesquisarem novos suportes, novas ações, novos questionamentos das práticas tradicionais da gravura. Esse compromisso com a experimentação dá a essa oficina o seu perfil, sua identidade, sua presença, sua
Artistas jovens que, oriundos do processo de silêncio ditatorial, começam a entender a arte não apenas nos seus aspectos experimentais, mas também nos seus aspectos artesanais.
Acima: Armando Mattos, Para não dizer que não falei das flores e Rosana Ricalde, A beleza e a verdade.
personalidade. Por isso comemorar 40 anos da oficina do Ingá não é apenas comemorar 40 anos de uma oficina de gravura, mas 40 anos de uma ideia de arte, de uma ideia de arte que, a partir de Niterói, reverbera para o Brasil inteiro. A ideia de que você precisa de disciplina e método para poder experimentar com sensibilidade e competência. Nessa mostra, temos uma grande celebração da gravura e da arte brasileira a partir da sensibilidade e da inteligência desse importante centro de produção artística que é a cidade de Niterói. Procuramos trazer para a exposição desde mestres de Anna Letycia como Oswaldo Goeldi, mas também trazemos artistas que Anna Letycia trouxe para junto de si, Edith Bhering, Carlos Martins, Solange Oliveira, e tantos outros artistas que colaboraram
Uma grande celebração da gravura e da arte brasileira a partir da sensibilidade e da inteligência desse importante centro de produção.
44 ANNA LETYCIA E A OFICINA DE GRAVURA DO INGÁ
Raphael Couto, Buquê 07, 2015. À esquerda: Gabriela Mureb, Sem título.
Constant, 1962.
Ana Miguel, Frases. Foto: Wilton Montenegro.
na construção realmente de um espaço vibrante que deve ser a característica de todo o espaço artístico, espaço de conhecimento, inquietação, criatividade e inovação. Aqui, nesses espaços, floresceu um pensamento artístico que ainda pode provocar novas reflexões. A arte contemporânea atua em uma gama variada de técnicas e experimentações e a gravura é, sem dúvida, uma delas. A ideia é que esse conceito de gravura seja expandido. Que a gente compreenda que no mundo de hoje onde as práticas de edição e reprodutibilidade de imagem se dão em uma velocidade espantosa que talvez a reflexão sobre a construção dessa imagem não seja anacrônica e seja uma possibilidade de que nós venhamos a refletir sobre o que produzimos. "Experimentação e Método" é uma exposição além da gravura, uma exposição além dos métodos de reprodução, uma exposição que busca compreender as relações complicadas e necessárias entre o homem e a máquina. Nós procuramos apenas reverberar e mostrar sua atualidade considerando 46 ALTO RELEVO
que uma oficina desse nível na cidade de Niterói é ainda fundamental não somente para a própria cidade de Niterói, mas para todo o Estado do Rio de Janeiro e para todo o Brasil, para que possa ser aqui sempre um centro de reflexão e compreensão de que há inteligência e compromisso de transformação em cada imagem produzida e que elas não podem ser simplesmente consumidas e vulgarizadas como ocorre nos dias de hoje.
Marcus Lontra é curador e crítico de arte. Foi diretor da EAV Parque Lage e diversos museus, incluindo MAM Rio de Janeiro e Brasília e MAMAM Recife.
Experimentação e Método • Oficina de Gravura do Ingá • Museu do Ingá • Niterói • 26/11 a 27/05/2018
JULIO LE PARC POR ELE MESMO
“O desenvolvimento do meu trabalho não ocorreu de modo que um dia eu dissesse: "Vou fazer coisas com o movimento", e no dia seguinte: "Vou fazer coisas com a luz". O movimento era a solução ideal para certos problemas que eu estava levantando, e via que a luz podia me oferecer uma solução e, ao mesmo tempo, me permitir continuar com minha busca. Não era uma decisão. Eu nunca decidi jogar com a luz, mas ia experimentando e experimentando. As coisas iam me ocorrendo e eu as aperfeiçoava. O movimento me dava a possibilidade de explorar mais coisas, porém, naquele momento, também Naquele momento, não não pretendíamos fazer pretendíamos fazer arte cinética. arte cinética. Eram buscas. Em um momento me interessava o movimento, em outro, a parte óptica, e, em outra etapa, a participação do espectador. Depois fomos para a rua procurar um novo espectador, sempre tentando transformar, dentro de nossos limites, a relação das pessoas com a criação contemporânea. Muitas coisas em nossos questionamentos estavam relacionadas à vida contemporânea. Nunca usamos tecnologia. E quando apareceram os novos meios, como o raio laser ou grandes aparelhos eletrônicos, eu nunca os usei” 48 REFLEXO
Lumière Saccadée, 1970. Foto: Adrian Fritschi
“No fim de 1959, a cor começou a surgir no meu trabalho de maneiras diferentes. Logo, encontrei uma gama de 14 cores. É mais um sistema de organização na superfície, que vai utilizando essas cores em um esquema muito simples, provocando a ligação, a organização, o ornamento. Era uma gama como se fosse o arco-íris, começava em amarelo, passava por verde, azul, violeta, vermelho, laranja e voltava ao amarelo. Mais tarde, retomei essa problemática, nos anos 1970, mas de uma forma mais aprofundada e realizando a experiência de cores aplicadas em pequenos formatos. (...) Inventei uma pequena máquina com fitas transparentes onde todos os tons das minhas cores poderiam aparecer. Ligando-a, eu tinha uma escolha inacreditável de misturas. Pelos meus cálculos, considerando todas as variações de um único sistema e ao ritmo de dois guaches por dia, eu levaria 150 anos para alcançar todas as combinações.”
Continuel lumière Boíte n.3. Foto: Martin Argyroglo.
50 JULIO LE PARC
Encontrei uma gama de 14 cores, um sistema de organização na superfície muito simples, provocando a ligação, a organização, o ornamento.
Se uma pessoa entra em uma exposição, para mim, é suficiente se ela sair com a sensação de ter sido parte de uma experiência.
58 REFLEXO
Cellule à pénétrer adaptée, 1963-2005.
“Eu fiz quadros figurativos e de denúncia, mas vejo isso como algo pontual. Era para denunciar o golpe de estado no Chile com Pinochet ou para ajudar os nicaraguenses a se livrarem de seu ditador, etc. Tenho a capacidade de fazer graficamente uma reflexão e oferecer nesse momento uma ajuda de caráter político, humanitário, por meio das imagens. Mas o aspecto que mais me interessa é como desmontar os mecanismos, porque isso tem uma relevância maior. Ou seja, há um público que está acostumado a ir aos museus e a se submeter - como se submetem em todos os outros aspectos de suas vidas cotidianas - a um funcionamento geral: às regras do trânsito, à polícia, às leis. Então vão a um museu e também têm de se submeter, pois não é permitido falar alto, deve-se caminhar devagar, não se pode alterar a temperatura. Eles se submetem a obras que não podem apreciar nem avaliar, a não ser individualmente, mas suas opiniões não têm absolutamente qualquer ressonância dentro do sistema. Se uma pessoa entra em uma exposição como a minha em 2005, na Daros, por exemplo, para mim, é suficiente se ela sair com a sensação de ter sido parte de uma experiência, seja pelo movimento, as luzes, seja porque tem que participar de algumas obras, como os jogos, as pesquisas, ou porque a presença diante de uma obra vai provocando mudanças. Nenhuma maneira de ver as coisas é imposta e as interpretações de cada um podem ser diferentes.“
“Na Escuela de Bellas Artes, na Argentina, quando eu era um estudante muito jovem, havia o movimento da arte concreta. Ao mesmo tempo, tivemos o Fontana, nosso professor na Escuela Preparatoria de Bellas Artes, com suas ideias sobre espacialismo. Houve também uma exposição de Vasarely no Museo de Bellas Artes, foi um impacto no sentido de que a arte geométrica que se fazia na Argentina era uma extensão do construtivismo. Já a exposição de Vasarely, com seus quadros pretos e brancos, era totalmente diferente, era algo que tinha possibilidades. Depois, havíamos lido Mondrian e outros artistas, como Kandinsky, que encontraram continuidade em Vasarely, com uma presença muito simples e muito direta, diferente dos artistas que conhecíamos. Quando eu vim com a bolsa a Paris, era muito mais fácil conseguir uma galeria com quadros informais, quadros tachistas, porque essa era a moda. Mas o que nos interessava era desenvolver esses elementos simples, pensados a partir dos textos de Mondrian. Junto com outras coisas que havíamos estudado da Bauhaus, fomos levados a desenvolver isso como uma busca em si mesma, mais do que como uma busca pessoal por uma imagem.” 54 JULIO LE PARC
Havíamos lido Mondrian e outros artistas, como Kandinsky, que encontraram continuidade em Vasarely, com uma presença muito simples e muito direta.
Julio Le Parc: da Forma à Ação Instituto Tomie Ohtake, São Paulo 25/11/2017 a 25/02/2018
Cloison à lames réfléchissantes, 1966 - 2005.
RESENHAS exposições
O Mundo de Giorgio De Chirico: sonho ou realidade Fundação La Caixa • Madri • 2017 POR LEONARDO IVO
Dez anos depois da última exposição na Espanha dedicada ao pintor italiano Giorgio De Chirico (Vólos, Grécia, 1888; Roma, 1978 ), a fundação "La Caixa", situada no Passeo del Prado, em Madri, oferece-nos uma retrospectiva do artista. Porém, o visitante não vai encontrar suas obras metafísicas emblemáticas como as famosas conservadas no MoMA e em outros museus, mas uma visão global da carreira do artista. Entre esculturas, de pequenos a grandes formatos, retratos naturalistas, interiores que ultrapassam o entendimento humano e referências à época clássica da história da arte, a exposição nos faz mergulhar dentro do imaginário de De Chirico, transformando-se em uma viagem através do mediterrâneo. No caminho inverso de escolher uma apresentação cronológica, as comissárias da exposição Mariastella Margozzi, historiadora da arte, e Katherine Robinson, da Fundação Giorgio e Isa de Chirico, 56
estruturaram uma exposição temática. Nas primeiras salas, retratos e autorretratos se misturam e logo estabelecem o saber do pintor italiano. Se os retratos possuem uma forte maneira realista, a fatura permanece muita próxima do pósmodernismo italiano, e, além do mais, o artista usa convenções próprias aos retratos italianos e holandeses do século 16; como o prova a cópia que fez de um retrato de Franz Hals, em 1968. Progressivamente, entramos no mundo que fez a celebridade do pintor. Vários manequins, objetos simbólicos do surrealismo, ocupam composições em interiores misteriosos. Representando musas, alegorias e personagens da mitologia grega ou romana, esses modelos sem vida tomam posse do espaço onde se
encontram e transformam a obra em uma visão metafísica. Esses espaços interiores vão se desenvolver em referências evidentes a praças e locais italianos, principalmente da Roma Antiga, onde o uso da perspectiva clássica contribui a mais uma demonstração do domínio técnico do pintor. A montagem toma partido dessas referências transalpinas e arcadas foram montadas na sala principal, criando uma continuação entre a superfície pictórica e a realidade. O título da exposição, "O Mundo de Giorgio De Chirico: sonho ou realidade", explicita o suficiente o caminho que leva à retrospectiva. Assim que o visitante passa à sala principal, uma grande coleção de desenhos, acabados ou não, mostra o imaginário no qual o artista viveu. Cavalos marinhos e apolínios, musas inquietantes e sibilas, heróis épicos e gladiadores sem nome, constituem a poesia artística de De Chirico e o define como herdeiro dos grandes temas da história da arte. No mais, como em muitos artistas, Giorgio De Chirico tem uma fase naturalista, pintando naturezas mortas, paisagens italianas, como a "Villa Falconieri", e a cidade de Florença, lugares propícios ao imaginário clássico e antigo. De Chririco nunca deixará a referência à historia da arte e arqueologia, principalmente em uma obra como "Os arqueólogos", exemplo de uma visão alegórica da cultura tão cara a esse artista.
A ousadia de suas composições, de certa maneira surrealista, tem eco na personalidade do artista. Ao final da mostra, um filme de vinte minutos, compilação de várias entrevistas dadas pelo artista durante sua vida, mostra-o em seu hábitat natural. Entre as ilhas gregas, onde o artista nasceu, e a Itália, onde cresceu, o caráter desenvolto, irônico e irreverente dele é revelado ao visitante e finaliza a retrospectiva em uma nota humorística. A imagem que De Chirico se dá, natural e sem artifício em vez de seu contemporâneo Salvador Dalí, define-o como um mestre incontestável da pintura moderna.
Leonardo Ivo é estudande em história da arte em Sorbonne, Paris e colaborador de mídias sociais do artista Gonçalo Ivo.
RESENHAS exposições
Tunga: O corpo em obras MASP • São Paulo • 15/12/2017 a 11/03/2018 POR CAHONI CHUFALO
Com o pano de fundo da polêmica exposição "Histórias da sexualidade", o MASP traz agora a exposição de Tunga, "O corpo em obras". Na primeira, reina certo didatismo aliado a uma politização do corpo. Cada parte da exposição enfatiza uma abordagem sobre a sexualidade (nudez, prostituição, transexualidade, religião, etc.) em blocos estanques, o que tanto facilita o entendimento entre o tema e o 58
conjunto das obras expostas, quanto impede outra interação entre obras de blocos diferentes. A politização fica com trabalhos cuja temática é o corpo e suas especificidades transformados em bandeiras políticas. Os corpos de mulheres, gays, negros, prostitutas, travestis encarnam narrativas de reconhecimento e aceitação. Nada de didatismo ou politização atinge a exposição de Tunga, cuja obra se presta mal a qualquer um desses fins. Ser didático aqui significaria desenrolar toda a produção do artista na frente do espectador e revelar os elos que ligam uma coisa a outra. Pois a percepção da obra de Tunga se dá por acúmulo. Quanto mais o espectador penetra no seu universo,
mais percebe a relação entre seus trabalhos. Um texto sugere imagens e elementos que se materializam em desenhos e esculturas, que se recombinam em várias obras e, em cada uma delas, a matéria ganha novas potências e percepções. O espectador em geral é pego no meio desse caminho, e o que parece muito estranho em um primeiro momento vai pouco a pouco se revelando, à medida que ganhamos intimidade com a multiplicidade da obra do artista. Tampouco a politização veste bem o trabalho de Tunga. A investigação que faz do corpo e da sexualidade não carrega as marcas discursivas dos movimentos sociais. O corpo na obra de Tunga é forma, sensualidade e transfiguração. Dedos viram falos, que viram dentes. Bocas viram bundas, pernas viram línguas. O corpo tenta achar para si uma nova configuração e uma nova harmonia. Atração e repulsa, confusão e limpidez, brutalidade e delicadeza inervam as obras de Tunga. Tais contrapontos servem mal a qualquer discurso unívoco. Tunga não é um artista que se compreenda rapidamente. Ou, talvez, Tunga não é um artista que se compreenda, ponto. Suas obras, esteticamente sedutoras, parecem partes de um todo inacessível ao espectador. Como um ímã, atraem
outras obras de seu próprio universo, além de atrair referências externas dos mais variados campos. Ao espectador fica a sensação de incompletude, como se algo faltasse para a compreensão total do trabalho. Uma incompletude motivadora, que a cada obra vista parece diminuir, porém, sem jamais ser extinguida. Mas não é essa uma das características da grande arte? Apreciar o trabalho de Tunga é tarefa lenta e exigente. Demorada. Seu tempo não é o das visitas às exposições. Seu tempo é o da convivência.
Cahoni Chufalo é formado em Letras, com pós-graduação em crítica e curadoria de arte.
Tudo que não invento é falso, 2016.
RICK RODRIGUES POR ELISA MAIA O artista capixaba Rick Rodrigues é o vencedor pelo voto popular do concurso Garimpo que, na edição de dezembro, teve Patricia Rebello como a escolhida pelo conselho editorial. A série "Tudo que não invento é falso" (2016) traz desenhos, bordados, instalações e objetos de madeira ou criados a partir de dobraduras de papel branco. Um baú, um gramofone, um barco, uma fileira de casas de passarinhos, uma escada muito comprida que leva a uma pequena cama de madeira suspensa no alto da 60 GARIMPO
parede, o desenho minucioso de uma casa por onde saem pernas gigantes, pequeníssimos móveis de madeira que parecem compor o cenário de uma casa de bonecas - esses são alguns elementos da iconografia que Rick Rodrigues usa para construir um universo onde suas memórias afetivas infantis são traduzidas com delicadeza e poesia, ganhando por vezes contornos quase surrealistas. Lançando mão de um repertório singular de objetos que referenciam a infância, o sono, os sonhos, sua linguagem opera
Um universo onde suas memórias afetivas infantis são traduzidas com delicadeza e poesia, ganhando por vezes contornos quase surrealistas. Tudo que não invento é falso, 2016.
deslocamentos poéticos capazes de criar um léxico próprio e, nesse sentido, é difícil não pensar no trabalho de Leonilson. A alteração na escala dos objetos contribui para a construção de uma arquitetura insólita que só é possível na imaginação. Suas figuras mínimas se beneficiam de uma economia de elementos e cores - alguns desenhos são feitos apenas com uma caneta esferográfica - onde a expansão das lacunas e dos espaços em branco do papel ou dos tecidos confere maior vigor e potência aos objetos representados. Assim como acontece com a memória, no trabalho de Rick Rodrigues, os silêncios instaurados através desses vazios são tão importantes e sugestivos quanto os elementos que eles abrigam. Para saber mais, acesse www.rickrodrigues.com.
Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.
Almofadinhas, 2016/2017.
LIVROS lançamentos Pássaros do Brasil e algumas histórias Texto: Adriana Varejão Editora Cobogó - 24 p. - R$ 39,90 Adriana Varejão convida as crianças a darem cores a alguns dos pássaros mais queridos do país. A artista apresenta aves como o bem-te-vi, a ararinha-azul e o joão-de-barro, com textos que voam pelas páginas e despertam a curiosidade dos pequenos sobre as diferentes espécies. Adriana Varejão é carioca, mãe da Catarina (11 anos) e da Violeta (4 anos). Pintora, também trabalha com escultura, desenho e instalações. Para criar suas obras, a artista inspira-se, com frequência, nas tradições culturais de povos de diferentes países. No Brasil, um pavilhão é dedicado aos trabalhos da artista no Inhotim, em Minas Gerais, onde foi instalada a obra Passarinhos – de Inhotim a Demini, em que retratou em um banco azulejado cerca de 500 espécies de pássaros.
Beatriz Milhazes Editor e Diretor de Arte: Hans Werner Holzwarth Editora Taschen - 480 p. - US$ 1.000,00 Tão vibrante quanto sua linguagem visual única, esta monografia apresenta a obra de Beatriz Milhazes , o pintora brasileira que funde a abstração modernista com as cores e a luz de seu país natal. Com mais de 280 pinturas , um ensaio aprofundado sobre seu trabalho, uma longa conversa, um dicionário poético de palavras-chave e uma biografia, o livro explora todas as fases da artista em seu esplendor e significado. Edição de Colecionador (1.000 cópias), cada uma numerada e assinada por Beatriz Milhazes.
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Poema Processo Organização: Gustavo Nóbrega Editora WMF Martins Fontes - 320 p. - R$ 120, 00 O livro apresenta um panorama histórico da poesia visual no Brasil documentando as principais atuações e obras produzidas pelo grupo Poema/Processo entre os anos de 1967 a 1986. Com organização de Gustavo Nóbrega, o livro conta com textos históricos escritos por Frederico Morais, Moacy Cirne, Álvaro de Sá, Neide Sá, Frederico Marcos, Anchieta Fernandes e, o mais recente deles, o texto do curador e pesquisador Antonio Sergio Bessa. A organização segue uma ordem cronológica e propõe que a história seja contada pelos próprios artistas e críticos da época, através de fatos e textos publicados em livros, revistas, catálogos e jornais.
Estratégias da arte em uma era de catástrofes Texto: Maria Angelica Melendi. Org: Eduardo de Jesus Editora Cobogó - 835 p. - R$ 56,00 Este livro reúne uma boa parte da produção ensaística da teórica e crítica de arte Maria Angélica Melendi, com textos já publicados pela autora em diversos países ao longo dos últimos anos, e que ainda não haviam ganhado uma edição conjunta que permitisse a apreciação de um projeto crítico de forma mais íntegra. A obra aborda temas que vão das ruínas do futuro ao conceito de antimonumento, dos arquivos das ditaduras latinoamericanas às intervenções urbanas e aos diferentes papéis e funções dos museus.
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ALTO FALANTE
Por Guy Amado
FAKE [E]STATES Gordon Matta-Clark foi um artista de trajetória marcante e singular, ainda que interrompida de modo drástico e prematuro por um câncer. Como seu pai, o conhecido pintor surrealista Roberto Matta, estudou para ser arquiteto. Embora nunca tenha se tornado sua profissão, a arquitetura - com sua gama de conteúdos abrangendo as relações e tensões entre espaço público e privado, o e desenvolvimento e a decadência urbana - tornou-se seu principal assunto. Gordon desenvolveu uma obra densa e singular, na qual as intervenções diretas, contundentes e fugazes sobre a trama urbana, o caráter performativo e a prática do desenho, fotografia e vídeo se entrecruzam de modo indissociado. A partir de uma atividade que fundia o aporte da arte conceitual (especialmente a crítica cultural e institucional), o envolvimento direto no e o engajamento com a fisicalidade da performance, ambiente da Matta-Clark literalmente fatiou casas (suas são talvez a faceta mais conhecida de sua produção) e cortou prédios em desuso, criando vertiginosos espaços esculpidos a partir de vazios e fissuras. Operando com a desestruturação de lugares existentes, ele buscava, dentre outras questões, expor a tirania da clausura urbana. As implicações econômicas da propriedade privada e a ascensão predatória da indústria imobiliária - tópico sempre atual - eram uma das inquietações que o moviam, e estão magistralmente postas em jogo em um projeto menor, no escopo de sua obra, mas dos mais instigantes: . Em princípios da década de 1970, Matta-Clark descobriu que a cidade de Nova York, onde vivia, fazia leilões periódicos do que considerava "gutterspaces" - pequenos terrenos ou fragmentos de terra alienados da trama urbana pelas irregularidades fiscais ou anomalias referentes a questões de zoneamento ou obras de expansão urbana. Ele então decide adquirir 15 destes lotes (14 no bairro do Queens e um em Staten Island), por um preço variando de US$ 25,00 a US$ 75,00 cada um, começando no verão de 1973. O que havia de interessante nesses lotes específicos é a sua tipologia peculiar: consistiam em minúsculas áreas residuais, não raro inacessíveis porções de terra que escapavam por alguma razão das
Gordon desenvolveu uma obra densa e singular, na qual as intervenções diretas, contundentes e fugazes sobre a trama urbana, o caráter performativo e a prática do desenho, fotografia e vídeo se entrecruzam de modo indissociado.
regras e malha de interesses do mercado imobiliário. Só para se ter uma ideia da escala destes espaços "inúteis" ("unuseless", em inglês, é melhor, embora menos traduzível), alguns chegavam a ser mais estreitos que os ombros de um adulto. A coleção de propriedades inviáveis de Matta Clark incluíam um minúsculo lote triangular, uma apertada faixa de cimento entre duas casas ("microterritório de ninguém") e um pedaço de calçada. Consistia, enfim, em um catálogo de bizarros fragmentos de terra que eram em sua maioria (provavelmente) resultado de erros de levantamento topográfico e zoneamento urbano. Embora o artista provavelmente não tivesse um propósito específico em mente quando adquiriu tais fragmentos urbanos singulares, logo passou a documentálos extensivamente. Ao longo dos anos seguintes, ele mapeou, mediu, fotografou, catalogou e analisou com minúcia suas 15 propriedades. Foi também colecionando mapas, escrituras e documentação burocrática relativa àqueles peculiares "pedacinhos de cidade"; fotografou, conversou e escreveu sobre eles; para mais uma e afinal passou a considerar a possibilidade de usá-los como de suas já conhecidas e singulares intervenções em "anarquitetura" - conceitofilosofia de sua autoria - no espaço urbano. Sempre impelido pela pulsão utópica por espaços inviáveis mas "possíveis", em ele irá documentar as irracionalidades de uma cidade a partir do questionamento do sentido e do valor do latifúndio ou da propriedade privada, usando o material urbano residual rejeitado que comprou para revelar as contradições desse sistema (um interesse explicitado, por exemplo, em um trabalho de 1971, época em que Wall Street investia na construção das finadas torres gêmeas do World Trade Center e Nova York vivia um grande imobiliário e financeiro; nesta obra, o pequeno filme "Fire Child", Matta-Clark documentava a situação de miséria enfrentada por pessoas que viviam naquela região da ilha, evidenciando um contraste de realidades ainda tão familiar mundo afora). Gordon morreu jovem, aos 35 anos, em 1978, sem chegar a concluir seus planos para , e a posse daquelas micropropriedades acabou por ser reclamada de volta pela prefeitura de Nova York, com base em argumentos
fiscais. O material de arquivo acumulado pelo artista foi armazenado e só redescoberto nos anos 1990, quando foi ordenado e rearranjado em formato reemergissem como um expositivo, tornando possível que os comentário mordaz em torno de questões como propriedade privada (e a arbitrariedade envolvida no sistema de demarcação da mesma), materialidade e desaparecimento que marcam toda a carreira de Matta-Clark. Pode-se indagar o porquê, a essa altura, de se trazer de repente à tona esse projeto deste artista: bem, haveria sempre algumas razões. A primeira e óbvia, embora clichê, é o fato de as questões que moveram o artista seguirem se mostrando tristemente atuais, e provavelmente acentuadas - a voracidade da indústria imobiliária (especialmente em grandes centros urbanos) dispensa é um trabalho comentários. Depois, há um aspecto quase afetivo: "menor" no corpo de obras de Matta-Clark, tendo - compreensivelmente - bem menos visibilidade que várias de suas intervenções físicas em escala pública, em contraponto com a condição apenas germinal da peça em questão (que não deixa de ter um forte apelo poético, na singeleza do gesto de se colecionar fragmentos inviáveis da cidade onde se vive). Mas penso, sobretudo, em um aspecto externo, algo frívolo, quando não ridículo, ativado pelo contexto atual, que em uma perspectiva absolutamente subjetiva pode se articular aos anteriores: o fato de haver o elemento que se sabe ocupando a presidência dos Estados Unidos. Afinal, Trump é um sujeito que parece viver em um eterno embora, curiosamente, não lide bem com a realidade, do alto de suas torres douradas. Por outro lado, trata-se de um entusiasta do (a famigerada "pós-verdade" deve um bocado a ele): eis aí um termo que resume muito do fenômeno Trump e sua . E não se pode esquecer de que o próprio magnata é também um tubarão da mesma indústria imobiliária que tanto mobilizava (reativamente) o imaginário de nosso artista. Assim, ao conjugar mentalmente e de modo um tanto irresponsável o trabalho de Matta-Clark e os EUA de hoje (a partir da figura caricata de Donald - não o pato), veio-me a inevitável blague pronta, ao suprimir o "E" dos "Estates" do título da peça, em uma homenagem - duvidosa, reconheço - a GMC: . Espero que ele (o artista, não o bufão do topete) me perdoe.
Guy Amado é crítico de arte e curador independente. Vive atualmente em Portugal, onde realiza doutorado em Arte Contemporânea.
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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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