TARSILA DO AMARAL PETER PAUL RUBENS ALEIJADINHO MATHEUS ROCHA PITTA CAROLINA PONTE INGRID BITTAR
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com
Capa: Tarsila do Amaral, Abaporu, 1928. Foto: Museum of Modern Art New York.
DESIGNER Arruda Arte & Cultura REVISÃO Angela Moraes SUGESTÕES E CONTATO dasartes@dasartes.com APOIE A DASARTES Seja um amigo Dasartes em recorrente.benfeito ria.com/dasartesdigital
Contracapa: Peter Paul Rubens, Prometheus, 1611/12-1618. Foto: © Philadelphia Museum of Art.
Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ redacao@dasartes.com
Peter Paul Rubens, Esboço de óleo para o retábulo agostiniano: o casamento místico de Santa Catarina, 1628. Foto: © Städel Museum
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CAROLINA PONTE
TARSILA DO AMARAL
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06 De arte a z PETER PAUL RUBENS
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Agenda
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Resenhas
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Notas de mercado
ALEIJADINHO
do 72 Coluna meio
MATHEUS ROCHA PITTA
INGRID BITTAR
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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte APÓS POLÊMICA EM VENEZA, DAMIEN HIRST VENDE TODAS AS OBRAS EM VERNISSAGE Novas pinturas de Damien Hirst mudam percepção do mercado. Depois das opiniões controversas sobre sua última mostra em Veneza, que chegou a receber do jornal ArtNews o título de "uma das piores exposições de arte contemporânea da última década", Hirst surpreendeu retomando a pintura e vendeu todas as 24 obras – com valores de US$ 400 mil a US$ 1,6 milhão – na noite de abertura da galeria Gagosian, em Los Angeles.
LEILÃO ROCKEFELLER PODE ATINGIR US$ 1 BILHÃO
THE OSCAR GOES TO…
PERTENCES ÍNTIMOS DE FRIDA KHALO À MOSTRA
Em Nova York
Em Los Angeles
Mais de 200 itens
A propriedade de David Rockefeller está indo para o que se espera que seja um leilão recorde para a Christie's em maio, com 1.500 lotes que incluem Picassos, Monets e Gauguins raros. O valor estimado da propriedade é de US$ 500 milhões, mas esse número foi aplicado há cinco anos, bem antes de um trabalho de Leonardo da Vinci ser vendido em leilão por US$ 450 milhões.
“Heaven is a Traffic Jam on the 405” ganhou o Oscar de Melhor Documentário CurtaMetragem. O documentário de 2016 centra-se na luta vitalícia da excêntrica artista Mindy Alper, que luta com doenças mentais. Muitas das obras visionárias de Alper, feitas em papel machê, podem ser vistas no filme, com suas representações alucinantes sobre sua vida interna sobrepostas a retratos de outras pessoas.
A roupa, a joalheria, a maquiagem e uma perna de prótese de couro vermelho, pertencentes a Frida Kahlo, que ficaram fechadas em sua casa por mais de 50 anos, serão exibidas no V & A, em Londres. Esta é a primeira vez que os pertences serão vistos fora do México. O museu anunciou os detalhes de uma grande exposição explorando uma das artistas e mulheres mais reconhecidas do século 20.
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GOOGLE ARTS&CULTURE PROMOVE ARTE CONTEMPORÂNEA
NOVO ESPAÇO
Aplicativo do Google Arts & Culture
No Brasil, o projeto "O que é Arte Contemporânea?" foi desenvolvido em colaboração com a Fundação Iberê Camargo e mais outras 14 instituições culturais de renome para trazer 50 exposições, com mais de 3.200 obras, que revelam detalhes da arte contemporânea brasileira. É possível conferir em alta resolução mais de 500 obras capturadas pela Art Camera do Google, realizar seis tours pelas instituições parceiras pelo Street View e também dois passeios em Realidade Virtual pela Fundação Iberê Camargo, única instituição do projeto a apresentar esse recurso imersivo e ainda pouco explorado. Acesse g.co/contemporaryart.
Casa Tutti A Galeria Casa Tutti será um espaço dedicado a apresentar obras de artistas consagrados e a trabalhar a formação de artistas emergentes na cena das artes visuais do Espírito Santo e do Brasil. A mostra inauguração “Improvável” , a partir do dia 20/3, apresentará obras de Portinari, Di Cavalcanti, Guignard, Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Waltércio Caldas, José Bento e Gabriela Machado. RUA NESTOR GOMES, 160 VITÓRIA-ES
GIRO NA CENA
Alguém me disse...
“Nunca vi uma indústria amadurecida com mais fraudes e má conduta do que os negócios de arte.” Juiz Charles Ramos, de Nova York, em meio às recentes ações judiciais das casas de leilão contra compradores de arte inadimplentes.
Bienal Mercosul A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul define a lista de artistas (confira em nosso site) e consolida a ênfase nas artes africana e afrobrasileira propostas no tema “O Triângulo do Atlântico”. Serão cerca de 70 nomes, com destaque para brasileiros e africanos, que compõem um terço dos participantes.
GIRO NA CENA
Fotografias inéditas de Vicente de Mello
CAMPANHA DE CARIDADE DÁ BRAÇOS PROTÉTICOS À VÊNUS DE MILO A caridade francesa Handicap International 3D imprimiu dois braços protéticos para uma réplica da Vênus de Milo para aumentar a conscientização de quão eficiente a impressão em 3D de membros pode ser comparada com próteses tradicionais, parte de uma campanha chamado #BodyCantWait. Outras estátuas em toda a Paris também foram instaladas para próteses, como Charles Leboeuf's Alexander Lutando no Tuileries Garden.
O fotógrafo convida o público a ver pessoalmente imagens inéditas, únicas, feitas sem câmera e sem negativo, em que a impressão se dá por um breve contato de objetos sobre a superfície do papel fotográfico. “Monolux” - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. De 17/3 a 17/6.
Encontrei um Monet Uma pintura de Claude Monet, que desapareceu na França durante a Segunda Guerra Mundial, foi recuperada em um local surpreendente: no almoxarifado no Museu do Louvre. “Water Lilies: Reflexão de Willows” (1916) foi uma das muitas obras do impressionista francês que o magnata do navio Kojiro Matsukata comprou no início da década de 1920. A obra, altamente danificado, está agora em Tóquio para restauração antes de uma exposição no próximo ano em Tóquio.
8 DE ARTE A Z
VISTO POR AÍ
O Museu de Arte Blanton, no Texas, abriu a fundação Ellsworth Kelly's Austin em homenagem à artista de mesmo nome que faleceu em 2015 e desenhou o projeto nos anos 1980 inspirado na arquitetura bizantina e romântica que viu na França pós-guerra.
FRANCISCO VALDÉS Derrames, equipamentos deslocados, superexposições, armadilhas. Partituras silenciosas, lancinantes uivos que não se escutam, matéria que se acumula, engasga e obstrui leituras harmônicas. Arquivos de histórias não lidas, por meio de narrativas de aventuras que se desmancham em anotações esmaecidas de um projeto inacabado. A poética de Francisco Valdés percorre sendas múltiplas e agora, em sua primeira individual no Brasil, também pode ser vista como ler/ver/apreender a luz em nossos dias. Valdés tem se notabilizado pela produção pictórica entendida em um 10 AGENDA
campo ampliado, em que a pintura parte do âmbito bidimensional, no qual o óleo, em especial, é disposto em telas dentro de salas e instituições do tipo cubo branco. Assim, há fortes elos de continuidade do cânone da linguagem dentro da história da arte, assinados por um artista em situação de movimento – ele é chileno, mas vive em Londres desde os anos 1990 e teve estudos decisivos na Holanda.
Francisco Valdés - Fantasma escandinavo • Adelina Galeria • São Paulo • 28/02 a 31/3
TAKESADA MATSUTANI Entre as características que marcam a obra de Matsutani está o material utilizado para compor seus trabalhos: a cola de vinil – uma espécie de adesivo de contato de aderência rápida e flexibilidade após a secagem. O artista, membro da segunda geração do grupo Gutai – inovador e influente coletivo de arte do Japão na pós-guerra – representa a nova tomada do expressionismo abstrato. Demonstrando o espírito de Gutai, transmite a reciprocidade entre o gesto puro e a matéria-prima. Seus desenhos, pinturas e esculturas envolvem temas do eterno e ecoam os intermináveis ciclos de vida e morte. Impregnando a tela com elementos bulbosos, Matsutani usa 12 AGENDA
também seu próprio sopro para criar formas inchadas e rompidas, evocando carne e feridas. Ele lembra: "A cola começou a pingar e, à medida que secou, formaram-se protuberâncias, que pareciam os úberes de uma vaca". Inspirado pela observação de bactérias através de um microscópio no laboratório de um amigo, Matsutani desenvolveu ainda mais esta técnica, usando secador de cabelo para criar formas que relembram as curvas do corpo humano.
Selected Works 1972-2017 • Galeria Bergamin & Gomide • São Paulo • 3/3 a 20/4
Todas as imagens: Sem título, 2018. Cortesia Zipper Galeria.
A magia visual dos
balangandãs de
CAROLINA PONTE
POR SHANNON BOTELHO
"Balangandã" é, antes de tudo, uma palavra sonora. Dotado de uma magia capaz de proteger o indivíduo que o possui, este objeto é sedutor. O signo mágico que, por ora, Carolina Ponte elege como foco de interesse povoa suas colagens e se inscreve como novidade nos trabalhos em crochê. Neste último ano, com a experiência de explorar ornamentos e o interesse pelo fazer manual, Carolina passou a trilhar novos caminhos conduzida pela vocação mística dos balangandãs. No fluxo de sua produção, a artista seguiu adiante com sua pesquisa e se deixou envolver por essa novidade, produzindo seus próprios amuletos. As peças que Carolina Ponte apresenta em "Balangandã" são fruto de duas residências artísticas realizadas em 2017 – uma na França, onde pesquisou a ornamentação da joalheria vitoriana; e outra na Dinamarca, onde desenvolveu padronagens que definiriam suas gravuras. No atual momento de sua pesquisa, a artista passa a explorar outros caminhos nos quais seus crochês são mais afetados pela gravidade e as colagens revelam novas experiências com transparências, sobreposições de padronagens e cores. Esses objetos populares, originalmente produzidos em prata, ganham maleabilidade e leveza nas esculturas em crochê. A trama da lã assume uma nova função: a de ser uma corrente para os balangandãs. Amarrações e "pendimentos" surgem mais opulentos nesses trabalhos, possibilitando que os amuletos fiquem fixados em pencas sem perder o seu gingado. 16 ALTO RELEVO
Mais sintéticas, as colagens constroem uma ambiência mais leve. Suas cores atraem por seu apelo sensorial e pela relação íntima que estabelecem com as formas opulentas em profusão e movimento. Os elementos pendentes, presos às correntes multicoloridas, bailam no espaço emitindo uma sonoridade festiva, tal qual o tilintar 18 CAROLINA PONTE
dos balangandãs nas ladeiras do Bonfim. Os balangandãs de Carolina reverberam som e movimento, enquanto pendem para baixo em uma dança sensual e calma. Como amuletos, as colagens de menores dimensões concretizam uma ideia de mobilidade. As formas pendulares estão potencializadas
nelas. Emergem das padronagens que compõem o fundo e se oferecem em um apelo tátil. Herdeiros das tradições populares, esses trabalhos possuem um traço identitário capaz de atualizar uma discussão que busca valorizar os elementos culturais brasileiros. Pelo esforço demandado para sua realização, cada obra segue uma lógica
peculiar de fazer para refazer. Construir para reconstruir. Ao escolher produzir seus trabalhos a partir de gravuras meticulosamente acabadas e posteriormente aquareladas, a artista afirma uma escolha de cumprir obriga-toriamente as etapas de construção, produção, reconstrução e pós-produção. Todas
as obras foram tocadas em dois momentos por Carolina. No primeiro, para sua confecção. No segundo, para seu reordenamento e conformação final. Poderíamos, por fim, afirmar que hoje Carolina Ponte atua como uma operária de sua própria criação. Ela parece atender ao chamado de William Morris, líder do movimento "Arts and Crafts", quando nega delegar sua criação à lógica industrial e reafirmar a "insubstituibilidade da arte enquanto processo de experiência" . Portanto, gravar, pintar, cortar e colar se tornam, para ela, os únicos meios de transformar suas ideias em formas e 20 ALTO RELEVO
objetos múltiplos, capazes de carregar consigo, assim como os "balangandãs", um sentido mágico.
Carolina Ponte, Balangandã • Zipper Galeria • São Paulo • 01/3 a 07/4
Shannon Botelho é crítico de arte, curador e professor. Doutorando em História e Crítica da Arte. Mestre em Artes Visuais, na linha de História e Crítica da Arte e Licenciatura Plena em Artes Visuais.
T A R S I L A DO AMARAL
Inventando a arte moderna no Brasil
Urutu, 1928.
A PRIMEIRA GRANDE EXPOSIÇÃO DE TARSILA DO AMARAL NOS EUA COMEMORA O TRABALHO PIONEIRO E A INFLUÊNCIA DURADOURA DA ARTISTA BRASILEIRA
POR LUIS PÉREZ-ORAMAS E STEPHANIE D’ALESSANDRO
Nascida em 1886, no município rural de Capivari, no interior do Estado de São Paulo, Tarsila - como é afetuosamente conhecida no Brasil - cresceu em meio à burguesia fazendeira. Transitando nos círculos cosmopolitas de São Paulo e Paris, frequentou a Académie Julian, uma escola de arte que atraía muitos estudantes internacionais em Paris. Tarsila foi uma ausência conspícua durante a seminal Semana de Arte Moderna em São Paulo, em fevereiro de 1922. De volta ao Brasil em junho de 1922, a artista Anita Malfatti, uma amiga, apresentou Tarsila ao núcleo do movimento modernista: os poetas Mário de Andrade, Paulo Menotti del Picchia e Oswald de Andrade. A este último, Tarsila causou um fascínio imediato. Juntos formaram o Grupo dos
À esquerda: Carnaval em Madureira, 1924. Abaixo: Cidade (A rua), 1929. Todas as imagens cedidas por The Museum of Modern Art New York.
Acima: Sol poente, 1929. À direita: Composição (Figura só), 1930.
Cinco, uma roda tumultuosa e estimulante que discutia poesia e o estado das artes no Brasil. No fim do ano, Tarsila retornou a Paris, onde Oswald foi encontrá-la. Durante o ano de 1923, Tarsila estudou nos ateliês de mestres cubistas franceses como André Lhote, Albert Gleizes e Fernand Léger. Esses aprendizados a levaram à conclusão de que "O cubismo é o exercício militar do artista. Todo artista, para ser forte, deve passar por ele." Integrando os seus novos conhecimentos, Tarsila começou a formular o que viria a ser o seu estilo característico de pintura, empregando linhas sintéticas, volumes 26 CAPA
sensuais e uma suntuosa paleta de cores para retratar paisagens e cenas do cotidiano. Em uma carta à sua família naquele ano, Tarsila relatou: "Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora de minha terra. […] Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo." O quadro "A negra", desse ano, que faz parte da exposição, sugere essas ambições. De volta ao Brasil em 1923, Tarsila buscou inspiração na terra, paisagens e povo do seu país, mesclando as inovações da vanguarda europeia e a sensibilidade do vernáculo brasileiro para produzir um conjunto distinto de obras tão pessoais quanto originais.
Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora de minha terra.
Em fevereiro de 1924, Tarsila e Oswald viajaram ao Rio de Janeiro com o poeta suíço Blaise Cendrars para participar das festividades do carnaval. Durante a viagem, Tarsila esboçou os desenhos que viriam a ilustrar o livro "Feuilles de route", de Cendrars, publicado nesse ano em Paris, com um desenho de "A negra", de Tarsila, na capa. Nessa época, Tarsila também pintou "Carnaval em Madureira" e "A Cuca", que descreveu como "um quadro bem brasileiro". Em abril de 1924, viajou com Oswald, Cendrars e outros amigos a Minas Gerais para visitar as cidades coloniais no percurso até Belo Horizonte, a capital do Estado. A exposição inclui uma seleção dos vários
Tarsila imbuiu as suas pinturas com um tom mais sonhador…"
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A Negra, 1923.
esboços que Tarsila fez durante essa viagem. Alguns resultaram em pinturas posteriores, como "Lagoa Santa", também exposta. O "Manifesto da Poesia PauBrasil", que Oswald havia publicado pela primeira vez um mês antes, em uma edição do jornal "Correio da Manhã", clamava a renovação da língua e o retorno ao seu estado primitivo. A produção de Tarsila nesse período, conhecido como a fase "Pau-Brasil", reflete o projeto de Oswald. Em setembro, Tarsila e Oswald - batizados por Mário de Andrade como "Tarsiwald" voltaram a Paris e ficaram noivos no fim do ano. Após a primeira exposição individual de Tarsila, na Galerie Percier de Paris, em junho de 1926, e uma viagem ao Oriente Médio, Tarsila e Oswald se casaram em 30 de outubro de 1926 e retornaram a São Paulo. Dividindo a sua vida entre a fazenda e a cidade, Tarsila imbuiu as suas pinturas com um tom mais sonhador (como se vê em "O Sono", 1928) e uma tendência cada vez mais surrealista ("Urutu", 1928).
A gramínea bicicleta enfeitada com sinos que abafava fogos-fátuos e os equinodermos que dobravam a espinha buscando carícias, 1921.
Antropofagia, 1929.
Uma das obras centrais da exposição é "Abaporu", que Tarsila pintou em 1928 para Oswald, mostrando uma figura alongada com um cacto. O título combina duas palavras do idioma dos índios tupi-guarani: "aba" (homem) e "poru" (que come carne humana). Essa tela inspirou Oswald a escrever o "Manifesto Antropófago". Publicada em maio desse ano na primeira edição da "Revista de Antropofagia", o quadro de Tarsila rapidamente se tornou o estandarte de um movimento artístico transformativo que imaginou uma cultura brasileira emergindo da digestão simbólica - ou do "canibalismo" artístico - de influências externas. Em junho, a segunda exposição individual de Tarsila foi inaugurada na Galerie Percier, em Paris. Após um par de exposições individuais de estreia em 1929 (em São Paulo e no Rio de Janeiro), Tarsila se separou de Oswald, que havia começado um caso com uma jovem atriz. A exposição inclui a única pintura que produziu em 1930 - "Figura só" - um autorretrato metafórico, de costas para o espectador e com o olhar voltado à imensidão sublime da paisagem, os cabelos se estendendo para fora da tela. O quadro marca o fim do período mais prolífico da carreira de Tarsila, quando suas pinturas e desenhos se tornaram ícones visuais da identidade moderna do Brasil. A mostra também inclui "Estudo de composição (Figura só) III" (1930), a primeira obra de Tarsila a integrar o acervo do MoMA. 29
À medida que o Brasil afundava na ditadura nacionalista de Getúlio Vargas, Tarsila, fascinada pelo que ocorria na União Soviética, adotou o marxismo. Juntamente com seu novo namorado, Osório César, viajou à Rússia, onde teve uma exposição individual. No retorno, foi presa por um mês pelas suas convicções esquerdistas. Depois desse episódio, Tarsila abandonou a representação imaginativa da natureza e adotou uma forma de expressão com uma temática mais social. Um exemplo incluído na exposição é o quadro "Operários" (1933), um retrato em grupo de operários com as chaminés de uma fábrica como fundo, salientando a diversidade da sociedade brasileira. Nas décadas de 1960 e 1970, uma nova geração de artistas brasileiros (como Lygia Clark e Hélio Oiticica), seguida
dos artistas associados ao movimento Tropicália (como os músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil), redescobriram a Antropofagia e a arte de Tarsila.
Luis Pérez-Oramas foi curador Estrellita Brodsky de Arte Latino-Americana no The Museum of Modern Art New York, até 2017.
Stephanie D’Alessandro é curadora Leonard A. Lauder de Arte Moderna do The Metropolitan Museum of Art.
Tarsila do Amaral • Inventando a arte moderna no Brasil • The Museum of Modern Art • Nova York • 11/2 à 03/6
Coroa de espinhos (Ecce homo), 1612.
PETER PAUL
RUBENS O poder da transformação
O herói da virtude, coroado pela vitória, 1615/16. Foto: Hans-Peter Klut.
QUASE NENHUM OUTRO ARTISTA EXERCEU TAL INFLUÊNCIA DECISIVA NA PINTURA BARROCA EUROPEIA COMO RUBENS FEZ. O MUSEU STÄDEL EM FRANKFURT DEDICA UMA MEGA EXPOSIÇÃO AO MESTRE E EXPLORA UM ASPECTO ATÉ AGORA POUCO CONSIDERADO EM SEU PROCESSO CRIATIVO
POR ERIK EISING
Peter Paul Rubens (1577-1640) foi, sem dúvida, o artista barroco mais bem sucedido e influente do norte da Europa, talvez até de toda a Europa. O mestre e sua oficina deixaram um enorme corpo de obras - o ainda inacabado "Corpus Rubenianum Ludwig Burchard", o catálogo completo da obra de Rubens, descreve cerca de 2.500 composições e aproximadamente dez mil obras de arte. Consequentemente, Rubens tem sido o tema central de um grande número de exposições que se concentram em uma ampla gama de tópicos. Embora a maioria dessas mostras tenha enfatizado o grande impacto que seu trabalho teve em seus contemporâneos e artistas posteriores, a questão relativa aos artistas e às obras de arte que influenciaram o próprio mestre raramente foi discutida em uma
grande exposição. Este tópico é especialmente interessante ao discutir este artista em particular, já que o Flamengo não era tanto um observador da natureza como um observador da arte. Para entender a anatomia humana, por exemplo, ele não estudou nus reais, mas esculturas - tanto antiquários quanto século 16. Por sua representação de luz e sombra, ele observou principalmente o que seus contemporâneos, como Caravaggio e Adam Elsheimer, alcançaram nesta área, em vez de estudar o próprio fenômeno natural propriamente dito. E Rubens se orgulhou de usar habilmente tipos de 38 FLASHBACK
composição estabelecidos, de preferência aqueles desenvolvidos pelos famosos mestres do Renascimento. A exposição "Rubens. O Poder da Transformação", no Museu Städel, em Frankfurt am Main, mostra como Rubens estudou, copiou, retocou e tentou superar a arte de seus predecessores. Isto é, por exemplo, demonstrado por vários desenhos italianos do século 16 que o mestre retocou ou "melhorou". Como o artista Titian foi um dos melhores modelos para Rubens, a exposição mostra muitas variações pintadas sobre as obras do mestre veneziano, cada um
Todas imagens do artista: Foto: Marcelo Magalhães.
À esquerda: Titian (Tiziano Vecellio), Vênus e Adonis, 1555-60. Abaixo: Peter Paul Rubens, Depois de Tizian. O culto de Vênus, 1635. Foto: Nationalmuseum.
levando o poder emocional e virtuosismo artístico do modelo original um passo adiante, como é possível ver através da "Venus e Adonis de Titian", do Museu Getty, em Los Angeles, e da adaptação de Rubens desta composição do Metropolitan Museum of Art, em Nova York.
O poder emocional e virtuosismo artístico do modelo original um passo adiante...
Cimon e Efiginia, 1617.
Rubens repetidamente usou esculturas antigas de figuras profanas e mitológicas como modelos para suas cenas religiosas.
Como parte de um jogo intelectual com seus clientes e outros conhecedores de arte contemporânea, Rubens repetidamente usou esculturas antigas de figuras profanas e mitológicas como modelos para suas cenas religiosas. Por exemplo, o Cristo e Pilatos de "Ecce Homo", empréstimo do Museu Hermitage do Estado, em São Petersburgo, foram baseados em uma escultura de um centauro domesticado por Cupido, que o pintor havia visto dez anos antes, em Roma. Rubens adaptou de forma semelhante o famoso "Torso Belvedere" no Vaticano para o triunfante e ressuscitado Cristo em um retábulo em empréstimo do Palazzo Pitti, em Florença, e ao deus grego Pan em uma pintura deliciosa de "Pan & Syrinx" que Rubens pintou junto com Jan Brueghel The Elder.
À direita acima: Pan e Syrinx, 1617. Abaixo: A cabeça de Medusa, 1617/18.
42 PETER PAUL RUBENS
A virgem com o diadema azul, 1511.
A FamĂlia Sagrada com o cordeiro, 1507.
À esquerda: Vênus e Adonis, 1555-60. Abaixo: O julgamento de Paris, 1639.
A exposição "Rubens. O Poder da Transformação" convida o visitante a fazer uma busca por composições, figuras e temas que Rubens encontrou em toda a Europa e posteriormente adaptou para sua própria arte. Para isso, o Museu Städel conseguiu garantir empréstimos de grandes coleções europeias e americanas, incluindo obras além de Titian Tintoretto, Federico Barocci, Hendrick Goltzius e Giambologna. Assim, o espectador do século 21 é capaz de (re)descobrir Rubens e ver sua arte em uma nova luz.
Rubens: O poder da transformação • Städel Museum • Frankfurt am Main, Alemanha • 8/2 a 21/5
Erik Eising é curador assistente da exposição "Rubens. O Poder da Transformação", organizado em cooperação com o Museu Kunsthistorisches de Viena.
Imagens do
O Aleijadinho Imaginรกrio
A L E I J A D I N H O
Nossa Senhora das Dores Foto: Jaime Acioli
INAUGURANDO O CICLO DE 2018, DEDICADO ÀS HISTÓRIAS AFROATLÂNTICAS, O MASP APRESENTA A OBRA DE ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (1738-1814), O ALEIJADINHO, UMA DAS PRINCIPAIS REFERÊNCIAS DA ARTE SACRA, DO BARROCO E DO ROCOCÓ NO BRASIL
POR RODRIGO MOURA Uma das questões que se destacam na análise histórica mais aguda da obra do Aleijadinho é justamente a quantidade de anacronismos que se empregam ao tratarmos dela hoje algo que, embora inevitável, merece relevo. Assim, buscam-se sempre a certeza da autoria e a pureza da originalidade, quando essas noções simplesmente inexistem como 48 DESTAQUE
categorias históricas no contexto de execução dessas obras. Assim é que, diante do fenômeno da hipertrofia da figura do artista, deve-se sempre relembrar da construção da imagem do Aleijadinho, que se põe em marcha a partir de meados do século 19 e segue ao longo do século 20, "pari passu", primeiro com o romantismo e, depois, com o modernismo brasileiro. É
bastante justo, então, que, para alguns pesquisadores, seja menos controverso simplesmente ter como significante do termo Aleijadinho uma oficina, escola ou maneira características do fim do século 18, em Minas Gerais, em termos da atribuição das obras - o que não significa pôr em
xeque a existência do artista, como frequentemente se tenta propor de maneira sensacionalista. E, claro, é inegável o abismo que existe entre o artista e sua figura construída ao longo dos séculos - entre o Aleijadinho imaginário e aquele artista que, de fato, criou essas obras. À esquerda: Nossa Senhora das Dores, 1791 Foto: Sérgio Roberto Guerini Abaixo: Euclásio Pena Ventura, Retrato de Aleijadinho.
São Joaquim Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Raposos, MG Foto: Daniel Mansur
O barroco mineiro pode esclarecer o interesse pela imagem do Aleijadinho como a primeira grande cristalização artística autêntica da cultura brasileira. O estudo das condições do trabalho artístico no amplo contexto cultural chamado de barroco mineiro pode esclarecer o interesse pela imagem do Aleijadinho como a primeira grande cristalização artística autêntica da cultura brasileira e, consequentemente, pelo mulatismo como fenômeno cultural característico do período. Em seu livro "O barroco mineiro: artes e trabalho", o historiador Caio Boschi levanta alguns dos pontos mais importantes para delinear esse quadro. Em primeiro lugar, tem-se o contexto geral da veloz urbanização da região mineradora, trazendo ampla gama de atividades culturais, diversificação produtiva e também relações de trabalho pautadas fora do formato senhorescravizado, entre elas as que regem profissionais liberais, artífices e artesãos. “Acrescente-se a isso o fato de o colonizador branco não ter superado em Minas Gerais a ibérica aversão pelo trabalho manual, atitude que, se 50 ALEIJADINHO
por um lado abriu espaço para a atuação de mestiços, mais precisamente de mulatos, por outro gerou a valorização social do trabalho produtivo de oficiais mecânicos, especialmente de artesãos e de artífices.” (1) Lembrando que a miscigenação não significava igualdade racial nem ascensão social, mas que o trabalho artístico conferia um estatuto diferente ao mestiço. Prossegue Boschi: “É pela via do exercício de atividades manuais e artísticas que o mulato se imporá no quadro social de então. É pela destreza, habilidade, fino senso estético que ele rivalizará com o branco e, dependendo da ótica, o suplantará na sociedade mineradora.” (2) (...) 1. BOSCHI, Caio. O barroco mineiro: artes e trabalho. Cidade: Editora, ano. p. XXX. 2. Idem, p. XXX.
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À esquerda: Henrique Bernadelli, Paisagem de Ouro Preto, 1876-86. À direita: Aleijadinho, Altar da Igreja Nossa Senhora do Carmo, Sabará. Foto: Daniel Mansur.
52 DESTAQUE
Esse processo de efervescência da vida urbana se intensifica no período de declínio da produção aurífera e a presença do trabalho livre significa a possibilidade de mobilidade social para o negro forro. A presença da população negra e mestiça é massiva. Em 1776, dos 319.769 habitantes da capitania, 70.769 eram brancos, 82 mil pardos, e 167 mil negros, e a população não branca somava 77,9% do total. A circulação de objetos culturais de origem africana, como joias, tecidos e amuletos, é significativa, embora também o sejam as proibições violentas aos cultos tradicionais. A miscigenação é um elemento fundamental e as formas religiosas do cristianismo são marcadas pela manifestação popular, com modos sincréticos afro-católicos, criando uma relação dialética entre a religião oficial pós-tridentina e a popular. O culto aos santos assume características afetivas, humanizando o divino. As irmandades do Rosário dos Pretos permitem e estimulam o reisado. Há ainda o fluxo de escravizados e artesãos livres ou cativos da Bahia, centro receptor da herança cultural africana, direcionado a outras partes da colônia pelo tráfico
Rodrigo Moura é editor, crítico de arte e curador-adjunto de arte brasileira do MASP.
interno escravista, entre elas, Minas Gerais.
Esta matéria contém trechos do texto “Imagens do Aleijadinho, Aleijadinho imaginário” publicado originalmente no catálogo da exposição: Imagens do Aleijadinho • MASP São Paulo • 10/3 a 03/6
MATHEUS ROCHA PITTA POR ELE MESMO
O ARTISTA MATHEUS ROCHA PITTA FOI CONVIDADO PARA PRODUZIR TRÊS ESTELAS (LÁPIDES) NO “FOYER” DO MAM RIO COM REFERÊNCIAS A ACONTECIMENTOS OCORRIDOS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO NOS ÚLTIMOS CINCO ANOS
54 REFLEXO
Memória menor “No campo da arqueologia, estelas são definidas como lajes ou colunas que portam inscrições, que podem ser comemorativas, territoriais ou funerais. Minhas estelas não são exatamente uma série de trabalhos, tampouco um procedimento, como escultura ou pintura. Elas são feitas de concreto, que é versado nos materiais (a maioria das vezes recortes de jornais) que uma vez seco o concreto, se "inscrevem" em seu volume. Como suas "primas" antigas, também são monumentais, mais em sua função de marcadores históricos do que em escala, que permanece sempre humana. Tal procedimento, situado entre a colagem e o molde, foi tomado de empréstimo da feitura de túmulos baratos em Minas Gerais. Em alguns cemitérios, as lajes são feitas "in loco". Como a fôrma não tem fundo, somente laterais, usa-se jornal para isolar o concreto úmido do chão. O papel acaba sendo incorporado ao volume de cimento, porém não é visível, pois sempre fica na face interna do túmulo - como se o morto tivesse algo para ler.”
Estela # 07 (Amarildo), 2013.
O pedreiro também se tornou uma espécie de efígie dos protestos de 2013.
“Para além do procedimento material, minhas estelas também operam nesse contexto funeral, como se o tempo em que habitam fosse o incômodo momento antes do morto ser enterrado e sua tumba selada pela lápide. A "Estela#7 (Amarildo)", de 2013, é exemplar neste sentido: um memorial para o pedreiro, torturado e morto pela PM carioca, cujo corpo até hoje não foi encontrado. Amarildo era conhecido na Rocinha como Touro, por conseguir carregar nas costas dois sacos de cimento (100 kg), exatamente o mesmo peso da estela que o homenageia. O pedreiro também se tornou uma espécie de efígie dos protestos de 2013. Apesar de não escrito na estela "onde está o Amarildo?",pode ser intuído na composição com quatro setas formadas pelos sacos de cimento.”
MATHEUS ROCHA PITTA 56 REFLEXO
“Aqui me arrisco a dizer que as inscrições em minhas estelas não são apenas históricas, são espectrais. Os signos que apontam para algo que não está ali, ou pior, que "ainda" está conosco. A foto tirada de celular, de um menino negro nu preso a um poste por autoproclamados "justiceiros" (também autores da imagem que saiu das redes sociais paras as capas de jornais) de imediato desenterra nosso passado escravagista. Quando fui comprar a trava de bicicleta, igual à que prendia o pescoço do menino, questionei o vendedor como poderia caber um pescoço ali, de tão estreita. Com um sorriso no rosto me garantiu que sim. "Foi o filho de um cliente meu inclusive que prendeu o pivete no aterro", disse sem saber que assim me convencia da absoluta necessidade de fazer a "Estela #12 (gola)", 2014.”
As inscrições em minhas estelas não são apenas históricas, são espectrais.
Estela # 12 (gola), 2014. 58 REFLEXO
Estela # 20 (paisana), 2013.
Um espectro seco dentro da garganta de quem anda nas ruas de um Rio de Janeiro hoje governado por militares.
“Minha amiga Kaira uma vez escreveu que meus trabalhos operam uma lógica espectral. "Traços fantasmáticos, humanos ou arquitetônicos, confundem nossas oposições convencionais entre aquilo que está presente e ausente, passado e futuro, morto e vivo". A "Estela # 20 (paisana)", que fiz para a exposição "memória menor", complica ainda mais esta oposição ao embaralhar as posições de crime e justiça. Um menor foi preso e, ao chegar à delegacia, vestido com farda da PM. Até um fuzil descarregado foi dado a ele para posar para a foto. Aquilo que os policiais viam como um troféu irônico da lei (e que a imprensa carioca comprou, ou melhor, vendeu ao estampar na primeira página), tem sua graça esvaziada com a oposição entre paisana e farda diluída. Um espectro seco dentro da garganta de quem anda nas ruas de um Rio de Janeiro hoje governado por militares. ”
Matheus Rocha Pitta • Memória menor • Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM • 03/3 a 22/4
60 MATHEUS ROCHA PITTA
INGRID BITTAR POR ELISA MAIA Objetos sagrados e profanos, corpos nus, figuras mitológicas e seres de fronteira, meio animais meio vegetais, são alguns dos elementos que habitam as insólitas colagens da artista carioca Ingrid Bittar. Em suas composições, esses elementos, que fazem referência ao vasto repertório iconográfico da história da arte ocidental, são deslocados no tempo e rearticulados no espaço de maneira singular pela artista. O excesso de registros transborda de forma quase barroca nas imagens. Mas ainda que 62 GARIMPO
abuse de referências provocadoras, Ingrid não abre mão da beleza como forma de seduzir e capturar o olhar do espectador. Há certa harmonia no caos. A partir das colagens, Ingrid começou a trabalhar com bordados tendo como horizonte temas que incluíam a construção de identidade, a vida doméstica e a sexualidade. O resultado são imagens gráficas de pênis e vaginas bordadas a partir de desenhos encontrados em enciclopédias. Ingrid conta que foi
interessante provocar uma fricção entre o meio e o tema, já que a técnica por muito tempo foi associada àqueles ideais idílicos de casamento em que a mulher, confinada ao ambiente doméstico, bordava coisas para a casa e para a família. A maneira como Ingrid aborda a vida doméstica remete à noção freudiana de "estranho" ou "inquietante". Em 1919, Freud escreveu um célebre ensaio intitulado "Unheimlich", no qual define "o estranho" como o retorno de algo que em realidade seria "bastante familiar" ao sujeito, algo que deveria permanecer oculto, mas apareceu. Partindo da etimologia do termo alemão, Freud observa que a palavra "heimlich" (doméstico, familiar, íntimo) desenvolveria seu significado na direção da ambiguidade, até afinal coincidir com o que seria o seu antônimo "unheimlich", cujo prefixo ""m" deveria ser lido como um indicativo de repressão. Em exposição individual deste ano na galeria Carambola, no Rio de janeiro, Ingrid mostrou uma série de trabalhos que parecem explorar a ambiguidade dessa noção. São imagens e objetos domésticos e banais - soldadinhos de brinquedo, cabelo humano cortado, potes de vidro com conchas, casca de ovos, um sifão de chantilly - que compartilham a capacidade de inquietar quem as observa e de sustentar uma atmosfera de estranhamento no ambiente em que estão expostos. Para saber mais sobre o trabalho da artista, acesse www.ibbritta.com
Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.
Abaixo: October, 2017 e SU/SU, 2017.
RESENHAS exposições
O maravilhamento das coisas Galeria Sancovsky • São Paulo • 01/3 a 31/3 POR ALLAN T. YZUMIZAWA
"Deja-vú". Essa é a sensação que me permeou ao encarar a coletiva "O Maravilhamento das Coisas", exposta este mês na Galeria Sancovsky. Por mais que os trabalhos expostos estejam em um patamar de obra de arte, dá-nos a sensação de já tê-las visto dentro do nosso cotidiano. No célebre texto de Allan Kaprow, "O legado de Jackson Pollock", o artista disserta - através de uma análise das obras produzidas por Pollock - sobre a condição de pesquisa do artista contemporâneo que estava sendo esboçado naquela década de 1960. Kaprow profetiza que os artistas dos anos 1960, seriam verdadeiros "alquimistas do seu tempo" através da inspiração retirada dos temas e objetos de seus respectivos cotidianos. O ordinário passaria a ser algo de importância. Diante disso,
66 RESENHAS
podemos relacionar essas afirmações com as obras expostas em "O Maravilhamento das Coisas", como as de Mano Penalva. Os objetos, com seus aspectos populares (cadeiras e bolsas) nos remetem a um repertório coletivo, um repertório de pertencimento mas ao mesmo tempo de estranheza devido às suas
modificações e ao espaço (artístico) em que está inserido. Na escultura "Bípede", de Leda Catunda, a artista se apropria de estampas de times de basquete para criar uma estrutura que remete a duas (altas) pernas que ocupam o espaço da parede e do chão. Portanto, em "O maravilhamento das coisas", Julie Dumont nos propõe uma reflexão sobre as qualidade dos objetos dos nossos cotidiano, trazendo artistas que os utilizam na sua produção artística, borrando e questionando os limiares do popular/erudito da arte/vida. A mostra faz parte do projeto da curadora belga The Bridge Project, que tem a intenção de circular jovens artistas dentro do circuito da arte contemporânea de São Paulo, Bruxelas e Nova Iorque. A coletiva
exposta na Galeria Sancovsky fica disponível ao público até o dia 31 de março, e conta com a participação dos artistas: Daniel Barclay, Mariano Barone, Bruno Brito, Leda Catunda, Matheus Chiaratti, Tatiana Dalla Bona, Mayla Goerisch, Martin Lanezan, Mano Penalva e Sergio Pinzón.
Allan Yzumizawa é bacharel em Artes Visuais pela Unicamp, atua como curador independente e pesquisador em arte contemporânea.
À esquerda: Mariano Barone, Zumbis são bons para sua saúde, 2017. Acima: Mano Penalva, Sem título, 2016.
RESENHAS exposições
O "The Square" de Antônio Dias POR CAHONI CHUFALO
O filme "The Square" tem sido bastante comentado nos círculos da arte por ter como protagonista um curador. A atuação dele dentro do museu é tratada pelo diretor Ruben Östlund quase sempre de maneira satírica, tendo por alvos os discursos empolados que revestem as obras de arte contemporâneas, o trato com patrocinadores, com artistas e com a publicidade. Já o tratamento dado à sua vida pessoal é outro. Reina uma mesquinharia que o leva a tramar uma vingança contra o assaltante que roubou seu celular. As consequências dessa ação se agravam cada vez mais a ponto de fazer desmoronar sua vida profissional. Porém, o que imediatamente me chamou a atenção foi a obra que dá nome ao filme, "The Square". Chamou-me a atenção porque me lembrou de outra, do artista brasileiro Antônio Dias. A obra do filme, atribuída à artista Lola Arias (artista real, que viria a criticar a utilização do seu nome depois), é um quadrado de neon instalado no chão e 68 RESENHAS
que traz uma plaquinha onde se lê: "The Square (O Quadrado) é um santuário de confiança e cuidado. Dentro dele todos compartilham dos mesmos direitos e deveres". Criar um espaço especial dentro do espaço comum só se justifica se o espaço especial se diferenciar do espaço comum. Assim, o que percebemos é que a confiança, o cuidado um com o outro e a participação em direitos e deveres comuns são vistos pela artista (a Lola Arias do filme, não a real) como inexistentes no espaço comum. Daí a necessidade de criar um novo espaço onde todos esses valores fossem postos em prática. A ideia é que o espectador, dentro desse espaço especial, siga as regras vigentes ali. A criação de espaços especiais dentro do espaço comum não é novidade na arte. Longe disso. As instalações e os "site-specifics" fazem isso há muito tempo. Mas a forma da obra "The Square", um quadrado delimitando um novo espaço, lembra muito a obra "Do it yourself: freedom territory", de Antônio
Dias. Nela, um quadrado (ou retângulo, para ser mais exato) tracejado colado no chão delimita um novo espaço. No entanto, aqui, as indicações textuais são mínimas. Apenas "Do it yourself: freedom territory" (Faça você mesmo: território de liberdade). O espectador é colocado em uma situação bastante distinta daquela em relação à "The Square". Primeiro, ele é convidado a fazer seu espaço. É, possivelmente, um espaço passível de ser feito em qualquer lugar, por qualquer um. Segundo, dentro daquele espaço, só há uma regra: liberdade. Constrói-se um espaço, ou território, de liberdade. Mas que liberdade? A liberdade absoluta? Aquela que não temos no espaço nosso de todo dia? Será que, dentro desse espaço especial, poderíamos torturar, estuprar, ou mesmo matar alguém impunemente? Seria apenas uma expressão da nossa liberdade absoluta? A obra de Antônio Dias é mais incisiva do que a do filme. Ele coloca no espectador a responsabilidade total pelos seus atos, a começar pelo ato de criar o seu próprio território de liberdade. Na obra do filme, tudo já está dado, o espaço e as regras. Na obra de Antônio Dias, tudo deve ser refletido e avaliado. Pois o que Antônio Dias também faz é contrapor a falta de liberdade do nosso espaço ordinário (o que é enfatizado pela data da obra, 1968) com um espaço de plena liberdade. A questão é: tendo toda a liberdade disponível, o que fazer com ela? Na obra da Lola Arias fictícia há duas possibilidades ao espectador: cumprir as regras propostas ou subvertê-las. Tal subversão acaba de fato ocorrendo no filme, com a malfadada campanha
publicitária feita para divulgar a exposição. A subversão aqui é cair na barbárie, no desrespeito, no privilégio. Algo muito próximo do nosso espaço habitual. Já na obra de Antônio Dias, a liberdade absoluta nos impõe um senso de responsabilidade. Não queremos que tal liberdade signifique também a barbárie, em que cada um possa fazer tudo que tiver vontade, inclusive as coisas mais vis. Assim, desejamos usar a liberdade que nos é dada com sabedoria. E o que é usar a liberdade com sabedoria senão restringi-la? E restringir a liberdade, nesse caso, não é subverter a única regra desse território especial? Assim, se a subversão em "The Square" é desestimulada, na obra de Antônio Dias ela é imperativa. Isso não significa aproximar tal território de liberdade do nosso espaço comum. Significa pensar e pesar a cada passo as delícias e os riscos da liberdade. Fica claro, pois, que a obra de Antônio Dias é mais radical do que a do filme. E mais perigosa. É evidente que a obra "The Square" cumpre no filme não só o papel de obra de arte, tal qual veríamos em um museu, mas também tem uma função narrativa. Ela é um contraponto à vida do protagonista, que defende a obra publicamente mas não segue nada do que ela prega na sua vida pessoal. De toda forma, a comparação com a obra de Antônio Dias nos leva a pensar sobre os espaços em que vivemos e nossa responsabilidade dentro deles.
Cahoni Chufalo é formado em Letras, com pós-graduação em Crítica e Curadoria de Arte.
NOTAS DO MERCADO Fatos, valores, curiosidades e tendências
GLOBALIZAÇÃO DOS LATINOS A casa de leilão Phillips anunciou o fim do seu leilão de arte latino-americana: obras de artistas da América Latina passarão a ser oferecidas em seus leilões de arte contemporânea e temáticos. Para os brasileiros, que nunca se sentiram latinos - seja pela diferença na língua e cultura ou por esnobismo -, a notícia é bem-vinda e deve liderar o caminho a ser seguido pelas outras grandes casas. Quais são as expectativas da Phillips para o futuro dos artistas brasileiros no Mercado internacional? Candida Sodré, representante Phillips no Brasil: "Acredito que, com as exposições de Tarsila do Amaral no MOMA, de Hélio Oiticica no Whitney e de Lygia Pape no Met Breuer, a arte brasileira nunca mais será vista da mesma maneira. No último grande leilão de Nova York, um Parangolé de Hélio Oiticica bateu recorde sendo vendido por US$ 615 mil. Antes dele, uma Mira Schendel fora arrematada por US$ 970 mil, superando todas as suas marcas em leilão. Queremos repetir o sucesso desses e estamos nos empenhando para que isso aconteça". Incluir arte brasileira entre os contemporâneos não é novidade para a Phillips. Como se deu a decisão de levar esta incorporação até o fim? Kaeli Deane, diretora do Departamento de Arte Latino-americana: "Sempre reconhecemos o potencial e o apelo da arte brasileira e estávamos determinados a colocá-la em posição de destaque em nossos leilões de arte latino-americana. Isso levou a resultados excepcionais, como o recorde de preço para uma obra de arte brasileira com o 'Contra Relevo', de Lygia Clark, em 2013. A partir daí, começamos a oferecer obras brasileiras em nossos leilões de arte contemporânea com grande sucesso e agora estamos animados em incorporar a arte brasileira de forma completa, iniciando com nosso leilão 'New Now' em fevereiro, no qual 25 obras latino-americanas foram oferecidas e 92% vendidas para colecionadores do mundo todo." Vivian Pfeiffer, diretora de novos negócios: "Vivemos em um mundo globalizado, onde colecionadores da Ásia, Europa e Américas estão em contato com arte do mundo todo através da internet, feiras e leilões. Os jovens colecionadores em especial não têm barreiras geográficas e se consideram cidadãos do mundo. Daí vem nossa decisão de integrar os dois departamentos, com grande sucesso". 70
FRIEZE L.A. A Feira Frieze anuncia mais uma filial, agora em Los Angeles. A primeira edição californiana da feira está prevista para fevereiro de 2019 com a participação de 60 galerias.
ARCO MADRID Athena Contemporânea e Jaqueline Martins estão estre as galerias brasileiras que estiveram na Arco Madrid este ano. Mais de 300 colecionadores e 200 profissionais de todo o mundo visitaram o evento a convite da organização e uma série de prêmios e programas de aquisição em parceria com empresas resultaram em vendas descritas como "ao nível pré-crise". Uma novidade interessante foi a campanha #mecomproumaobra, que identificou várias peças com valores inferiores a cinco mil euros e criou um roteiro para colecionadores iniciantes.
PICASSO EM ALTA Dando continuidade a uma febre por musas de Picasso, um retrato de sua amante MarieThérèse se tornou a pintura mais cara vendida em leilão na Europa. A obra, oferecida pela Sotheby's de Londres no leilão de arte moderna e impressionista no final de fevereiro, foi disputada por quatro compradores e comprada por £ 49,8 milhões por um "art advisor" atuando em nome de um cliente anônimo. O mesmo consultor comprou outros dois Picassos, que somaram um desembolso de £ 22,8 milhões, em um belo "shopping spree". A Sotheby's anunciou a venda de outro retrato de Marie-Thérèse em seu leilão de maio em Nova York.
COLUNA DO MEIO Quem e onde no meio da arte
Patricia Chaves Centro Cultural Laurinda Santos Lobo Rio de Janeiro
Fotos: Vans Bumbeers.
Eduardo Oliveira, Cesar Fraga e Gina Elimelek
Carlos Vergara, Juliana Silveira e JoĂŁo Vergara
Alan e Renata Adler
Carlos Vergara Rio Open Rio de Janeiro Thainan Castro
Marcia Casz
Vanda Kablin e Antonio Bokel
Sylvia e Carlos Alberto GouvĂŞa Chateaubriand
Fotos: Paulo Jabur
Xico Chaves, Chica Granchi, Luiz Aquila e Vânia Castro Lopes
Ana Luiza Rego, Adriano de Aquino, Patrícia Costa e Fernando Cochiarale
Ana Luiza Rego Patricia Costa Galeria Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Flávio e Ana Luiza Rego e GinaColker Elimelek
Patricia Costa e Alexandre Murucci
Pedro Guimarães, Laura Burnier e Nando Grabowsky
Manfredo de Souzanetto, Selmo Marino e Marco Rodrigues Fotos: Paulo Jabur
Rosa Marques Moreira, Ricardo Ohtake, Vanda Klabin e Arjan Martins
Raul Mourão, Brígida Baltar, Arjan Martins e Renato Bezerra de Mello
Tomie Ohtake Galeria Nara Roesler Rio de Janeiro Ricardo Ohtake e Alexandre Roesler
Raul Mourão e Rosa Marques Moreira
Gabriela Moraes e Camila Perlingeiro
Renata Tassinari e Vanda Klabin
Lançada em 2008, a Dasartes é aprimeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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