Revista Dasartes 77

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CHARLES WHITE JOAN MIRÓ JOANA VASCONCELOS FRANKLIN CASSARO FRANCISCO HURTZ




DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com

Capa: Charles White, Carta de amor III, 1977. © The Charles White Archives.

Charles White, Preacher, 1940. © 1940 The Charles White Archives.

DESIGNER Moiré Art SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com APOIE A DASARTES Seja um amigo Dasartes em recorrente.benfeito ria.com/dasartesdigital Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ

Contracapa: Francisco Hurtz, O estranho, 2015.


FRANKLIN CASSARO

14 JOAN MIRÓ

20

06 De arte a z 10 Agenda 62 Notas do Mercado 64 Livros

CHARLES WHITE

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JOANA

48

66 Resenhas VASCONCELOS

FRANCISCO HURTZ

FRIEZE ART FAIR

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56


DE ARTE A Z Notas do circuito de arte

PREFEITURA DE CHICAGO VENDE OBRA DE KERRY JAMES MARSHALL PARA ARRECADAR FUNDOS A tela de sete metros de largura, “Knowledge and Wonder”, foi originalmente comprada para uma filial da biblioteca pública a um custo de US$ 10 mil, em 1995. Agora, o prefeito da cidade espera levantar entre US$ 10-15 milhões no leilão da Christie’s, em novembro. O resultado da venda apoiará a expansão da Biblioteca Legler e um fundo para encomendar e adquirir arte pública em comunidades carentes.

NOVO RECORDE DE FRANCIS BACON?

30% DE REPRESENTAÇÃO FEMININA

BASQUIAT NA BROADWAY

Próximo leilão

Na arte pública

Em um musical

A Christie's venderá uma pintura de Francis Bacon, de propriedade do colecionador Samuel Irving “Si” Newhouse Jr., herdeiro do império editorial Condé Nast. “O estudo de Henrietta Moraes sorrindo” (1969) tem estimativa de venda de US$ 14-18 milhões durante as vendas de arte contemporânea pós-guerra em Nova York, em 15/11.

São Francisco tem 87 estátuas com figuras não ficcionais, das quais apenas três são mulheres: a artista Georgia O'Keeffe, a enfermeira Florence Nightingale e a senadora da Califórnia, Dianne Feinstein. No final de setembro, seu conselho de supervisores aprovou por unanimidade a exigência de que pelo menos 30% da nova arte pública de São Francisco mostrasse figuras históricas femininas.

O legado de Jean-Michel Basquiat será imortalizado em um musical da Broadway, inspirado em sua vida e arte. O show, ainda sem título ou data de estreia, será dirigido pelo vencedor do Prêmio Tony, John Doyle, e traçará a rápida ascensão do pintor de artista de rua para galeria queridinha na cena artística dos anos 1980 em Downtown, Manhattan. O artista morreu em 1988, de uma overdose de heroína, aos 27 anos.

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GIRO NA CENA INTERCÂMBIO DE CURADORES Inscrições até 8/11/2018

A ABACT faz chamada pública para curadores brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil há cinco anos a se inscreverem em processo seletivo para o desenvolvimento de projeto de pesquisa e práticas curatoriais na instituição parceira Getty Research Institute - GRI, em Los Angeles. O vencedor do projeto aprovado receberá passagens aéreas de ida e volta, seguro-viagem, hospedagem na Getty Scholar Housing e remuneração de R$ 15 mil. Mais informações em latitutebrasil.org.

Acende o Farol Para a nova exposição “Luz e Arte – reflexão e emissão”, no Farol Santander, em São Paulo, a dupla de artistas brasileiros Gisela Motta e Leandro Lima e o coletivo italiano None Collective, apresentam instalações de arte imersiva que utilizam a luz como elemento principal. As instalações provocam questões contemporâneas usando a luz. Dessa maneira, provam que ela (luz) pode ser não só um item de apoio para o artista como também ser o objeto da obra em questão. Até 6/01/2019.

Para investigar “Ainda está enrolada dentro da moldura. Uma tela pré-rasgada rolou por trás da que estava na frente" Steve Bowler, detetive da internet, sugerindo que a obra triturada de Banksy, no leilão da Sotheby’s, não era a cópia original, mas um fac-símile plantado no quadro.

Ocupação Paulo Mendes da Rocha Com curadoria do arquiteto Guilherme Wisnik e do Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, a ocupação reúne croquis, fotografias, maquetes, textos críticos e depoimentos de Mendes da Rocha que expõem sua obra e suas perspectivas criativas. O tema que guia a exposição são as águas, elemento que atravessa o trabalho do urbanista e professor de várias formas. Até 4/11/2018.


GIRO NA CENA

Como morreu Caravaggio? Não faltam teorias sobre como Caravaggio morreu, desde envenenamento por chumbo, causado por suas pinturas, insolação, sífilis ou até mesmo um assassinato pelos Cavaleiros de Malta. A última hipótese, feita por cientistas e apoiada por uma análise detalhada de um esqueleto que se acredita ser de Caravaggio, sugere que ele morreu de septicemia causada por uma ferida gravemente infectada.

JEFF KOONS É ACUSADO DE PLAGIAR MARCA DE ROUPAS FRANCESA A grife francesa Naf Naf está processando Jeff Koons por supostamente plagiar um de seus anúncios para criar sua escultura “Fait D'Hiver” (1988). O publicitário Franck Davidovici pede que Koons seja apreendido e pague uma indenização de € 300 mil (US$ 353 mil) pelo que afirma ser uma “cópia servil” do anúncio. A escultura em porcelana, da série “Banality”, de Koons, apresenta o tronco, a cabeça e os braços de uma mulher parcialmente nua, com cabelo preto curto e deitada ao lado de um porco, que é ladeado por dois pinguins. O anúncio original mostrava uma mulher com cabelo preto similarmente curto, deitada na neve, com os braços levantados e um porco ao lado dela.

Presente histórico O Studio Museum, no Harlem, e a Escola de Artes Duke Ellington receberam uma doação histórica de obras de arte da reverenciada colecionadora, educadora e ativista Peggy Cooper Cafritz. Peggy faleceu em fevereiro deste ano e era conhecida por sua prolífica orientação e patrocínio das artes e educação negras. As duas instituições receberam mais de 650 trabalhos de sua coleção, e disseram ser o “maior presente já feito de arte contemporânea de artistas de ascendência africana”.

8 DE ARTE A Z

VISTO POR AÍ

Pai de uma das vítimas do tiroteio em Parkland, na Flórida, o artista Manuel Oliver fez uma estátua devastadora de uma criança escondida debaixo de uma escrivaninha. O artista perdeu o filho Joaquin, de 17 anos, durante o tiroteio em massa na Marjory Stoneman Douglas High School.



Lasar Segall, Refugiados, 1922.

LASAR SEGALL Para a mostra “Lasar Segall: ensaio sobre a cor”, retrospectiva com 87 pinturas e seis desenhos, além de fotografias e documentos, a curadora Maria Alice Milliet ilumina de forma inédita a questão cromática na produção do artista lituano naturalizado brasileiro. Ao ser apresentada no Sesc 24 de Maio, localizado no lugar de encontro de povos refugiados e das mais diversas origens, a exposição demonstra a atualidade da obra de Lasar Segall, um pintor que retratou o drama de populações desterradas. 10 AGENDA

Segundo a curadora, a conquista da liberdade cromática é da maior importância para Segall em todas as fases de sua pintura. Por isso os diferentes esquemas cromáticos adotados pelo pintor determinarão o agrupamento das obras no espaço, desenhado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha.

Lasar Segall: ensaio sobre a cor • Sesc 24 de Maio • São Paulo • 25/10/2018 a 5/3/2019



Em 2018, a Bienal de Curitiba completa 25 anos de história e leva ao público diversas exposições, entre mostras inéditas e retrospectiva. O evento visa presentear Curitiba com mais um recorte da arte contemporânea mundial, como forma de relembrar a história da Bienal. Dentre a programação destacam-se as mostras do Museu Oscar Niemeyer (Eliane Prolik, Leonardo Kossoy, Christus Nóbrega, Marta Minujín e Patrícia Pellegrini) e Museu Paranaense (Lívio Abramo). Nesta edição, haverá uma intervenção pelos ônibus da Rede Integrada de Transporte Urbano e terminais de ônibus com exibição de obras de 12 AGENDA

Leonardo Kossoy, OnlyYou, 2014.

BIENAL DE CURITIBA videoarte, aproximando a arte do cotidiano dos curitibanos e visitantes da Bienal. Também integra a programação o SABRA - Festival de Arte Brasil x Israel 2018, o Circuito de Ateliês, Circuito de Galerias e o Gallery Night. O Museu de Arte Contemporânea de Cascavel também fará parte da programação. A programação completa das exposições pode ser conferida online, nos sites e redes sociais da Bienal e no site da Dasartes.

Bienal de Curitiba 2018: 25 Anos • Curitiba • 18/10 a 30/12/2018



FRANKLIN CASSARO


NOVA SÉRIE DO ARTISTA FRANKLIN CASSARO É CHAMADA DE ANTROPOLOGIA INDUSTRIAL ALIENÍGENA

POR FERNANDO COCCHIARALE

O sociólogo da arte francês Pierre Francastel considerava que "todas as artes plásticas são artes do espaço". Mas, no caso de Franklin Cassaro, essa "regra geral" se manifesta, com ironia, na combinação da intuição espacial topológica (poeticamente investigada pelo artista ao longo de seu processo de trabalho) com seu sentido construído pela ficção científica, parodiada nesse conjunto "Espacial". Consolidada no século 19 no campo das matemáticas, a teoria topológica transbordou do campo científico em que havia surgido para referenciar, por exemplo, a ruptura de pintores modernistas com o espaço perspectivado da pintura renascentista. A nova geometria, alternativa à geometria euclidiana, não tratava, portanto, das qualidades morfológicas permanentes das figuras. Sua intuição mais geral se fundava na investigação de aspectos que não se alteravam quando a superfície em que se encontrava uma figura era submetida a uma deformação contínua, seja por alongamento ou torção.de um ponto de vista processual. O sistema produção de Franklin se baseia em 15


Alteridade entre o espaço planetário terrestre e extraterrestre, a partir do qual são produzidas nossas fantasias mais delirantes sobre o universo.

Série Cassarídeos, 2018. Todas Fotos: Cris Loureiro.

ações - como dobrar, torcer, articular e interpenetrar planos, sem usar cola (à exceção dos infláveis) e sem lançar mão de cabos, armações de arame ou de bases fixas – que figuram espaços, deflagram experiências e atualizam nosso imaginário. Cassaro compartilha com artistas históricos (como o escultor concretista Max Bill e a neoconcreta Lygia Clark) o apreço pelo rigor elástico da topologia. Mas, diferentemente desses artistas, Franklin não objetiva criar "formas puras". "Infláveis", "vulvas" ou "figuras imaginárias" em 3D (por ele mais recentemente produzidas e que evocam de ícones da "ficção científica" do século 20) não podem ser reduzidos à autorreferência modernista como seus próprios títulos o indicam. Mas a essa concepção estrutural do espaço moderno se soma, na mostra, 16 FRANKLIN CASSARO

outra noção de espaço, mais "temática" que "matemática", baseada na alteridade entre o espaço planetário terrestre e aquele, extraterrestre, a partir do qual são produzidas nossas fantasias mais delirantes sobre o universo. Construído ao longo de décadas por meio de histórias em quadrinhos, filmes, seriados, romances, seriados televisivos, etc. – Guerra dos mundos, Flash Gordon, Guerra nas estrelas e ET, de Spielberg, dentre inúmeros outros exemplos – esse imaginário e seus ícones aqui ressurgem nos animais, robôs e seres híbridos de delicada compleição, imaginados e materializados pelo artista. São trabalhos, contudo (e felizmente), que não resistem ao "bom gosto" de alguns, incapazes de assimilar essas figuras a não ser pelo filtro clichê do "kitsch' ou da "toy art".


À esquerda: Vive la France!, 1975. Acima: Los Suicidas del Sisga n.2, 1965.


Acima: Série Cassarídeos, 2018. À direita: Levitação Cúbica Calder e Mulher Gata Reciclóide.

(…) Na trajetória poética do artista, desde seu florescimento no final da década de 1980, ficam evidentes diferenças morfológicas radicais que marcaram seu processo criativo - como as existentes entre os "infláveis' que marcam esses começos, até os "recicloides" atuais; ou aquelas entre "desenhos mordidos", "vulvas" e "Laika, meu amor" (...) Cassaro retoma nos infláveis a ideia convencional de autossutentação do bloco escultórico. Entretanto, os materiais escolhidos para fazê-lo são de natureza diametralmente oposta àquela da solidez da pedra ou do metal. A utilização de celofane, jornal, etc. na confecção dos "infláveis" (sustentados, 18 OUTRAS NOTAS

em sua frágil leveza, pelo ar produzido por ventiladores) e a estruturação e a coloração dos "alienígenas" unicamente pela acumulação de folhas de alumínio (para formar um novo bloco) bastam para que esses trabalhos fiquem de pé sem quaisquer outros recursos que os de sua própria materialidade. Somente um solo poético comum pode ancorar essa real e positiva pluralidade. Franklin nunca desvincula a invenção de seus trabalhos dos métodos, técnicas e materiais utilizados para produzi-los. Assumidas como esculturas (ainda que o ato de esculpir inexista em seu processo), todas essas peças devem responder à mesma exigência


processual: sustentarem-se por si sós no espaço, dos materiais de que são feitas. Nessas "esculturas", portanto, entranhas/superfície, esqueleto/pele são feitos da mesma matéria – feitos só de ar, só de latas de refrigerante, de "papéis" de alumínio ou de mordidas em papel.

Franklin Cassaro • Cru sobre pressão • Martha Pagy Escritório de Arte • Rio de Janeiro • 19/9 a 20/10/2018.

Fernando Cocchiarale é crítico de arte, curador e professor de filosofia da arte do Departamento de Filosofia da PUC-RJ.


JOAN MIRÓ


RETROSPECTIVA DEDICADA AO MESTRE CATALÃO JOAN MIRÓ (18931983) NO GRAND PALAIS REÚNE SUAS MAIS ESSENCIAIS OBRAS E MOSTRA SEU LUGAR ÚNICO NA MODERNIDADE

POR JEAN-LOUIS PRAT

Sua terra natal, a Catalunha, ofereceu inspiração; Paris, seu primeiro trampolim e Palma de Maiorca, o grande ateliê que ele sonhou. Entre todos esses lugares, Joan Miró criou um trabalho desprovido de qualquer anedota ou maneirismo, qualquer complacência em relação à moda. Para conseguir isso, questionou continuamente sua linguagem pictórica, ao ponto de quebrar o ímpeto que a carregava. Ainda que se interessasse pelas vanguardas do século 20, não aderiu a escola ou grupo algum, desconfiado de quimeras artísticas. Exprime, desde os anos 1920, sua vontade de "assassinar a pintura" e desenvolve práticas inovadoras. Com essa energia "primitiva" que o caracteriza, é um dos poucos artistas, com Pablo Picasso, a ter desafiado o surrealismo e a abstração. Inventor de formas, Miró traduziu em termos poéticos a liberdade que defendeu tão ferozmente e deu à pintura todos os seus poderes.

À esquerda: Mulher, pássaro, estrela (Tributo a Pablo Picasso, 1966). Abaixo: Pintura ("Caracol, mulher, flor, estrela") 1934. © Successió Miró / Adagp, Paris 2018. Fotos: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.


De 1912 a 1915, Miró fez cursos na Escola de Arte Francesc Galí em Barcelona, uma instituição privada aberta às ideias da vanguarda europeia, onde são ensinadas todas as artes: pintura, música e poesia. Esse aprendizado decisivo ensinou-lhe a importância da vida interior, a energia que a concentração mental e a onipotência da imaginação podem trazer. Admirava os afrescos e esculturas das igrejas românicas de sua terra natal e a inventividade dos artistas que os projetaram. Com o movimento cubista, Miró teve um relacionamento complexo. Suas primeiras pinturas, de 1916 a 1919, revelam que ele assimilou certos princípios: o recorte dos planos em 22 DESTAQUE

facetas, a inclinação das perspectivas, a multiplicação dos pontos de vista. Ainda assim, suas telas têm pouco a ver com as de Braque ou Juan Gris. Por sua estrutura e inspiração, devem mais a Cézanne e uma ampla variedade de fontes: arte catalã, futurismo italiano, fauvismo. Deste último, manteve apenas o valor expressivo da cor, que colocou a serviço de um lirismo pessoal exuberante. Olhando com fervor para a "natureza absoluta", Miró pretendeu expressar sua "visão extática" do microcosmo formado pela fazenda da família em Mont-Roig. Afastou-se do fauvismo para privilegiar uma escrita mais fina, capaz de revelar os objetos e animais do cotidiano com detalhes minuciosos,


inspirados pelas miniaturas persas que vira na Galeria Dalmau. Aos seus olhos, um pedaço de relva tem tanta importância quanto uma montanha. Sua resistência ao provincianismo o levou a se isolar da cena de Barcelona e escapar para Paris. Sua primeira estadia na capital francesa, em 1920, acabou sendo um sucesso. Vizinho de André Masson, Miró foi introduzido a um círculo de poetas e artistas, entre os quais Georges Bataille e Pablo Picasso, criando amizades com as quais compartilhou os desafios da criação de uma nova linguagem. Miró mergulhou em um mundo poético, que o libertou dos grilhões da tradição. Os elementos da realidade eram agora

À esquerda: Nua em pé, 1918. Foto: Saint Louis Art Museum. Abaixo: A Fazenda, 1921-1922. Foto: National Gallery of Art, Washington. © Successió Miró / Adagp, Paris 2018.

Miró mergulhou em um mundo poético que o libertou dos grilhões da tradição.

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Abaixo: O Carnaval de Arlequim, 1924-1925. Foto: Albrigth-Knox Art Gallery, Buffalo / Brenda Bieger and Tom Loonan. À esquerda: Interior holandês (I), 1928. © Successió Miró / Adagp, Paris 2018.

metamorfoseados em um sistema de sinais e o imaginário se desdobrou para substituir a representação do real. Em 1924, é publicado "O Manifesto do Surrealismo", de André Breton. Ainda que a poética surrealista tenha um papel essencial, Miró não se deixaria conduzir por suas ideias literárias. Permaneceu, acima de tudo, um pintor, mesmo que tentasse abolir o limite entre a escrita e a pintura. Em fundos monocromáticos, como se extraído do céu ou da terra, azul ou ocre, há sinais que se referem ao potencial poético dos objetos. 24 JOAN MIRÓ

Em 1935, um ano antes da Guerra Civil Espanhola, o drama apareceu em um ciclo de "pinturas selvagens" povoadas de figuras fazendo caretas. A desordem de Miró estava no auge quando, no verão de 1936, a guerra civil irrompeu. Forçado ao exílio em Paris com a família, ele voltou a trabalhar na Academia de la Grande Chaumière. No verão de 1939, Miró se mudou com a família para os Clos des Sansonnets, em Varengeville-Sea, e encontrou nessa pequena aldeia na costa da



Normandia a calma da vida que ele conhecera em Mont-Roig. Em um estado de intensa concentração, começou a trabalhar na série "Constelações", que terminaria em Mont-Roig, em setembro de 1941. Esses 23 guaches sobre papel, todos do mesmo tamanho, foram para ele a oportunidade de experimentar texturas para superar a escassez de materiais provocada pela guerra. Expostas em 1945 na galeria Pierre Matisse de Nova York, as "Constelações" são acolhidas com entusiasmo pelo público norte-americano. Com o fim da segunda guerra, Miró saiu do isolamento e retomou velhos contatos. Após uma temporada em Nova York em 1947, onde se aproximou do amigo Alexander Calder, seu trabalho se tornou mais codificado, com traços simples e grossos. Também se aprofundou na exploração da cerâmica, talvez o suporte no qual o gênio de Miró encontrou sua expressão mais plena.

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À esquerda: A ave migratória, série Constelações, 1941. Foto: Cortesia Acquavella Galleries e Mulher e pássaro na noite, 1945. Abaixo: Modelo do Arco na Fundação Maeght VIII, 1963. Foto: Claude Germain. À direita: Jovem escapando, 1967. Fotos: © Successió Miró / Adagp, Paris 2018.

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28 JOAN MIRÓ


Blue II, 1961 Foto: Centre Pompidou, MNAMCCI, Philippe Migeat.

Em 1956, Miró se mudou para Son Abrines, nos subúrbios de Palma de Maiorca, onde finalmente pode construir o ateliê de seus sonhos. Nesse novo espaço, desembalou pela primeira vez as obras que não via desde sua partida de Paris, antes da guerra. Esse retorno ao passado resultou em uma severa autocrítica. Miró destruiu um certo número de pinturas, retrabalhando algumas delas, e engajou-se em novas direções. As condições agora estavam prontas para, como Miró desejava desde 1934, "ir além da pintura de cavalete" e tornar sua arte acessível a todos. Convocaria todos os elementos de sua linguagem artística e abordaria todas as suas técnicas sem hierarquia de valor. "Blue I", "Blue II" e "Blue III" foram as primeiras obras monumentais criadas no ateliê de Maiorca, para as quais Miró aspirou grande simplicidade, mas que demandaram uma enorme tensão interior. Ele desenhou minúsculos rascunhos a tinta e lápis, e os fixou sobre os chassis de telas em branco enormes, colocadas contra as paredes do estúdio. Quase dez meses se passaram entre este primeiro movimento e a passagem à pintura. Os três Blues são

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Lona queimada II, 1973. Foto: © Successió Miró / Adagp, Paris 2018.

uma síntese de todos os experimentos conduzidos por Miró, ou como ele mesmo disse, "o resultado de tudo o que tentei fazer". Na última parte de sua vida, Miró multiplicou os desafios e demonstrou grande combatividade física e mental. Como uma raposa criativa, Miró brincou em todos os suportes, empurrou os limites do que ele já havia descoberto e explorado, enquanto se aventurava em novos caminhos. No contorno azul ou branco de seus grandes trípticos, ele contrastou a intrusão de fogo que destruia sua tela queimada. Mergulhou os dedos em 30 DESTAQUE

cores, pintou com os punhos, andando sob sua tela. Reacendendo um poder primitivo, Miró renovou o encanto e o conflito das muitas descobertas que

Jean-Louis Prat, ex-diretor da Fundação Maeght (19692004), historiador de arte, membro do comitê Joan Miró e amigo do artista.

MIRÓ • Grand Palais • Paris • 3/10/2018 a 4/2/2019



Nossa terra, 1951.

CHARLES

WHITE


Mara D. Toledo, As alegres jandaias, 2016. Todas as imagens: Cortesia Galeria Jacques Ardies.


CHARLES WHITE INTERPRETOU PODEROSAMENTE A HISTÓRIA E A CULTURA AFRO-AMERICANAS AO LONGO DE SUA CARREIRA DE QUATRO DÉCADAS. NOS EUA, UMA GRANDE RETROSPECTIVA COBRE TODA AMPLITUDE DE SUA MULTIDISCIPLINAR PRODUÇÃO

POR SARAH KELLY OEHLER

"O negro americano deve refazer seu passado para fazer seu futuro". Arthur A. Schomburg Em 1968, Charles White produziu um desenho extraordinário chamado "Nat Turner, ontem, hoje, amanhã", uma imagem extática do líder da rebelião de escravos do século 19. O título, 34 CAPA

notavelmente, situa Turner dentro de uma progressão do tempo, implicando que suas ações ainda ressoam no presente de White e continuariam a ressoar no futuro. Nesse período, White, que nasceu em 1918, havia testemunhado e participado de muitas convulsões sociais radicais e eventos políticos da América do século 20: a


Grande Migração, a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, o macarthismo, a era dos direitos civis e a ascensão do movimento "Black Power". Não contente apenas em estar atento ao passado, White tornou seu tema artístico mais importante. Ele trabalhou em uma variedade de mídias - pintura de mural e cavalete, desenho e gravura - para defender a história afro-americana, que ele sentia não ser reconhecida pela sociedade americana dominante. Ele retornou ao passado de novo e de novo por inspiração estética, explicitamente aproveitando suas energias criativas para educar seus concidadãos e promover a igualdade

…Charles White defendeu a história afro-americana, que ele sentia não ser reconhecida pela sociedade americana dominante.

À esquerda: Eu acuso # 7, 1966. Foto: Michael Rosenfeld Gallery LLC, NY. Abaixo: Nat Turner, ontem, hoje, amanhã, 1968. Todas fotos: © The Charles White Archives.


social, produzindo e exibindo imagens inspiradoras de figuras históricas. Em 1940, ele discutiu seus objetivos artísticos com o autor Willard F. Motley: "Eu sei que quero pintar murais da história do negro. Esse assunto foi tristemente negligenciado. Sinto uma ligação definitiva entre tudo o que aconteceu ao negro no passado e todo o pensamento e atuação do negro agora. Porque o homem branco não conhece a história do negro, ele não o entende". Como essa observação indica, e como os próprios murais demonstram, White entendeu a história como uma continuação de eventos que levaram 36 CHARLES WHITE

Sinto uma ligação definitiva entre tudo o que aconteceu ao negro no passado e todo o pensamento e atuação do negro agora.


diretamente às duras realidades enfrentadas pelos negros em seus dias. Ele extraiu textos históricos e recorreu à pesquisa sociológica - o estudo do presente - que documentou as necessidades prementes da comunidade afro-americana.

apenas 12 anos de idade. White explicou que "acidentalmente me deparei com livros que tinham informações que nunca haviam sido transmitidas para mim na escola. Descobri que o povo negro desempenhara um papel orgulhoso na história...".

UM NOVO MUNDO DE FATOS E IDEIAS A longa preocupação de White com a história é evidente em como ele narrou sua própria vida e carreira. Foi uma história que ele contou e recontou, primeiro em seu ensaio autobiográfico, "O caminho de um artista negro", publicado na revista marxista "Masses and Mainstream". Ele se lançou como o jovem herói em uma jornada da ignorância à iluminação, de inocente criança à jovem zangado a determinado artista-historiador. Essa identidade convincente serve como uma janela crítica para os desafios que ele enfrentou como um estudante negro e, mais tarde, artista que se irritou com as restrições raciais da sociedade americana antes de aprender a subvertê-las através de sua arte. Em "O caminho de um artista negro", White descreveu como sua mãe, que trabalhava como empregada doméstica, deixaria seu filho "por duas ou três horas na biblioteca pública". Tornando-se um leitor ávido, ele havia esgotado a sessão de crianças migrando para a seção de adultos com

À esquerda: As crianças, 1950 e Oh Maria não chore, 1956. Abaixo: Manchetes, 1944.

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WHITE E A SOCIOLOGIA: A HISTÓRIA DO PRESENTE O trabalho de White da década de 1930, conduzindo a suas comissões de mural, pode ser posicionado dentro de um paradigma realista socialista: como um esquerdista comprometido com inclinações comunistas, ele procurou expor as injustiças do mundo ao seu redor. "Debutantes da quitinete", de 1939, representa talvez o seu esforço mais impressionante no que pode ser descrito como um paradigma realista social orientado pela sociologia. Aqui o artista retratou duas mulheres negras, vestidas apenas em trapo, debruçadas em uma janela. Parecem ser prostitutas: uma com espelho, enquanto a outra, com seios descobertos, olha pela janela e está se exibindo. O título faz irônica referência a debutantes da sociedade; essas mulheres estão "sendo apresentadas", não no contexto de um baile, mas de uma quitinete. As lições que White aprendeu da sociologia - a verdade do presente informaram seus murais, permitindo-lhe fundir temas de eventos passados e apresentar estruturas em poderosas narrativas da história afro-americana.

À esquerda: Debutantes da quitinete, 1939. 38 CAPA



ARTE PARA O POVO Em setembro de 1938, White se juntou à divisão de cavaletes do Projeto Federal de Arte de Illinois (IAP). Depois de comprovar sua capacidade artística e falta de recursos financeiros, recebeu uma bolsa mensal em troca da produção de quadros como "Card Players" para o governo. Depois de um ano trabalhando para o IAP, White foi transferido para a divisão do mural. Lá, ele poderia finalmente assumir o papel de defensor da história negra que ele imaginou quando adolescente. Entre 1939 e 1943, White trabalhou em quatro murais, completando três. Dois foram executados sob os auspícios do IAP: "Cinco grandes negros americanos" foi feito para arrecadar fundos para o South Side Community Art Center (SSCAC) e "Luta pela libertação" (também chamado de "Estágio caótico do negro, passado e presente") foi destinado ao George Cleveland Hall Branch da Chicago Public Library, mas nunca foi instalado. Em 1940, pintou "A História da Imprensa Negra" para o estande da Associated Negro

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Cinco grandes negros americanos, 1939.

Press (ANP) na American Negro Exposition. Mais tarde, em 1942, ele recebeu uma bolsa do Fundo Julius Rosenwald para pintar um mural para o Instituto Hampton, "A contribuição do negro para a democracia na América" (1943; Universidade de Hampton). White queria promover a história afro-americana para combater as narrativas brancas que ignoravam ou obscureciam as contribuições negras. Ele também queria contrapor a cultura visual racista, como ele descreveu mais tarde: "Ao traçar o curso do retrato do sujeito negro na arte, há uma praga de distorções, caricaturas estereotipadas e superficiais de 'tios', 'mammies' e 'pickaninnies' (pequena criança negra); não obstante o fato de que a tradição cultural e o histórico do negro na América seguem o mesmo padrão básico da democracia americana em geral". Ele imaginou suas obras como lições de história pública: "A arte não é apenas para artistas e conhecedores", observou ele. "Deve ser para as pessoas".

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Nos anos seguintes, Charles White que nasceu e foi e criado em Chicago, percorreu Washington e Nova York até se infiltrar definitivamente no Estado da Califórnia. 1965: O ANO CRUCIAL

General Moses (Harriet Tubman). 1965.

O ano de 1965 foi crucial para a comunidade negra em Los Angeles, bem como para White, pessoalmente. Marcou o centenário da Décima Terceira Emenda, que aboliu a escravidão, e foi o ano da aprovação da Lei dos Direitos de Voto, mas esse avanço não foi suficiente para sufocar a crescente frustração e raiva dos cidadãos afro-americanos de Los Angeles. A violência irrompeu em agosto de 1965 no bairro segregado de

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Watts. No rescaldo da Watts Rebellion, a branca Los Angeles foi forçada a reconhecer que os negros, que eram 13,5% da população da cidade, mereciam moradia justa, oportunidades iguais de emprego e inclusão em suas arenas políticas e culturais. O movimento pelos direitos civis encorajou o ativismo da Costa Oeste e aumentou a visibilidade de White nos círculos de arte locais brancos e negros. Um resultado imediato foi que o Otis Art Institute convidou White para ingressar na faculdade. Otis pode ter contratado White em parte para pacificar os estudantes, já que ele foi o primeiro artista negro a se juntar à faculdade toda branca.


VocĂŞ herdarĂĄ a terra. 1953.



Som do SilĂŞncio, 1978.


Acima: Mary McLeod Bethune, 1976. À direita: Carta de amor, 1977 e Harriet, 1972.

ÚLTIMOS ANOS DE CHARLES WHITE Os últimos anos de White foram repletos de arte, exibindo, palestrando recebendo honrarias. Ele não só expos na histórica mostra de 1976 "Dois séculos de arte negra americana", organizada pelo LACMA, como também participou de seu planejamento e programação. Das mais de duzentas obras que representam 62 artistas, White mostrou oito desenhos e estampas, incluindo "Sojourner Truth" e "Booker T. Washington" (Estudo para a Contribuição do Negro para a Democracia na América), "Semente do amor", e "O irmão" (1968). Sua litografia colorida "O Profeta nº 1" (1975-76) foi uma das seis únicas imagens apresentadas na promoção da exposição em revistas e jornais de todo o país. A primeira retrospectiva do artista, "A obra de Charles White: uma experiência americana", organizada pelo High Museum, foi aberta no mesmo mês. Na última década de sua vida, o artista ajudou no desenvolvimento inicial de várias instituições culturais afro-americanas, como exemplo, sendo convidado para ser curador do Centro Nacional de Artistas Afro-Americanos, em Boston. A arte afro-americana permaneceu fundamental para a política negra de Los Angeles, especialmente depois da eleição de 1973 de Tom Bradley como o

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primeiro prefeito negro da cidade. White criou um retrato impresso de Bradley para celebrar sua vitória. White serviu como membro do Comitê Consultivo de Cultura do Prefeito, e no ano seguinte, o governador Edmund G. Brown Jr. o nomeou ao conselho consultivo no atual Museu Afro-Americano da Califórnia. Esse foi um sonho que se tornou realidade para o artista, que há muito esperava que tal instituição se tornasse realidade. Durante seus anos na Califórnia, White produziu um corpo de trabalho que era ao mesmo tempo belo e político, apoiando explicitamente os direitos civis. Ele também se tornou uma voz cultural significativa na transformação de Los Angeles em um lugar notável para fazer arte. Em 1979, o artista morreu de insuficiência cardíaca congestiva, aos 61 anos, em Los Angeles.

Sarah Kelly Oehler é presidente do Field-McCormick e curadora de arte americana no Instituto de Arte de Chicago.

Charles White • A Retrospectiva • The Museum of Modern Art • Nova York • 7/10/2018 a 13/1/2019 • Los Angeles County Museum of Art • 17/2 a 9/6/2019


JOANA VASCONCELOS POR ELA MESMA

"A Noiva" é uma peça que me é muito especial, pois contribuiu para o reconhecimento do meu trabalho em nível internacional, desde a sua apresentação, na edição de 2005 da Bienal de Veneza. Minha obra trata questões contraditórias e paradoxais da sociedade e "A Noiva" é ainda uma peça muito atual, continuando a criar novas leituras. Consiste em um imponente lustre feito com tampões higiênicos, que nos faz questionar precisamente o papel da mulher na sociedade contemporânea. A ideia de fazer "A Noiva" surgiu depois de ter estado no casamento de uma amiga que se casou de branco, o que, de alguma forma, me levou a refletir sobre o porquê de hoje as mulheres continuarem a casar de branco, como símbolo da perfeição, da pureza e da virgindade, quando, na verdade, a maioria das mulheres já não são virgens quando se casam. Percebi, então, que nesse dia a mulher se torna um objeto da sociedade. Seu vestido é iconográfico de uma realidade idealizada por todos: a perfeição. Mas a perfeição não existe. "A Noiva" representa essa contradição entre a mulher tradicional (do passado) e a contemporânea, que vive a sexualidade de outra maneira. 48 REFLEXO


A NOIVA, 2001-2005.

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TRAFARIA PRAIA, 2013 VALKYRIE AZULEJO, 2013 DOURO AZUL, PORTO

50 JOANA VASCONCELOS


“O "Trafaria Praia" foi pensado enquanto representação do pavilhão de Portugal para a Bienal de Veneza de 2013 e consiste em um cacilheiro* restaurado, cuja parte de fora está revestida por um painel de azulejos e o seu interior preenchido com uma "valquíria". A azul e branco, o painel representa uma panorâmica da Lisboa contemporânea vista do rio. Já no interior do cacilheiro, procurei recriar um ambiente de fundo do mar, através de têxteis azuis e de luzes LED, resultando numa obra da série Valquírias, chamada Valquíria Azulejo. Assim, no interior do "Trafaria Praia", nasceu um ambiente místico repleto de criaturas misteriosas e fantásticas que nos envolvem numa experiência mágica. Esse talvez tenha sido o projeto mais desafiante até hoje e, por isso, aquele que deu maior prazer em realizar. Concretizar esse projeto exigiu que, tanto eu como a minha equipe, nos embrenhássemos em um universo náutico sobre o qual nada sabíamos, mas, graças à preciosa ajuda e cooperação de uma série de especialistas nesse campo, o barco atracou em bom porto. Hoje olho para trás e posso dizer que foi um sonho tornado realidade.”

(*) Cacilheiros são barcos que ligam as duas margens do rio Tejo, navegando entre Cacilhas e Lisboa. 51


“I'll Be Your Mirror" consiste em uma monumental máscara veneziana de cinco metros de altura, composta por 251 espelhos e molduras em bronze. O título da peça surgiu a partir de uma música dos Velvet Underground, que partilha o mesmo nome e nos desafia a largar as máscaras que usamos como proteção e revelarmos nosso verdadeiro interior. De fato, a máscara embeleza, mas também esconde, e esta, estando coberta de espelhos, também nos faz olhar para nós mesmos. Foi uma peça especialmente pensada para a exposição no Museo Guggenheim de Bilbao que, por se tratar de uma obra central, literalmente reflete meu passado e minha carreira, através das várias peças expostas no mesmo espaço. Esse momento permite, tanto a mim como ao espectador, olhar para o corpo da minha obra a partir de uma perspetiva completamente diferente. Curiosamente, a obra acabou por dar também nome à exposição: "I'm your Mirror". Quis passá-la para o presente, pois acredito que os artistas são responsáveis por "refletir" o que está se passando na sociedade nesse momento e nos fazer "refletir" sobre o assunto. É nessa medida que, com esta exposição, digo "ser o espelho".”

52 REFLEXO


I’LL BE YOUR MIRROR, 2018.

Os artistas são responsáveis por "refletir" o que está se passando na sociedade nesse momento e nos fazer "refletir".


EGERIA, 2018.


SOLO, 2010

“Estou desenvolvendo a série Valquírias há quase 15 anos. São inspiradas na mitologia nórdica, onde as deusas sobrevoavam os campos de batalha, resgatando e ascendendo os guerreiros mortos em combate. Partindo desse conceito, o que eu faço é criar minhas próprias valquírias que invadem o espaço dos museus (locais frios e angulosos, habitualmente desenhados por homens) com formas orgânicas e bolbosas, compostas por têxteis coloridos (normalmente trabalhados e utlizados por mulheres), que preenchem os espaços "desocupados" pela arquitetura. A valquíria "Egeria" (2018) é uma peça "sitespecific" que invade o Museo Guggenheim de Bilbao, desenhado por Frank Gehry, percorrendo o átrio central e totalizando 36 metros de altura e 45 metros de comprimento. Normalmente, intitulo minhas valquírias com nomes de mulheres que marcaram a diferença ao longo da história e esta não é exceção: Egeria foi uma peregrina do século 4, autora daquilo que é hoje considerado o primeiro livro de viagens escrito por uma mulher, onde descreveu o percurso que ela fez entre a atual Galícia e a Terra Santa.”

Joana Vasconcelos: I’ll be your mirror • Guggenheim Museum • Bilbao • 28/6 a 11/11/2018


FRANCISCO HURTZ POR ELISA MAIA O artista paulistano Francisco Hurtz propõe, através de seus trabalhos, um olhar subversivo sobre o corpo masculino, escapando às representações heteronormativas de afirmação da masculinidade e se centrando no fetichismo homoerótico. Sua primeira individual na Verve Galeria, "Um homem bateu em minha 56 GARIMPO

porta", reúne 20 trabalhos - entre desenhos, fotografias e pinturas - que apresentam corpos masculinos anônimos, alguns em situações de vulnerabilidade, como a tela de 2015, que foi deliberadamente amassada e exibe um homem de costas. "Busco romper com uma tradição homoerótica de desejo e afeto


Corpos masculinos anônimos, alguns em situações de vulnerabilidade.



projetados na criação estética, e dou lugar ao vazio, à dubiedade, à indefinição e à perplexidade", comenta Francisco. Em seus trabalhos, o rigor, a economia e a delicadeza do traço contrastam com um conteúdo provocador e subversivo. Seus corpos sem rostos parecem mais o resultado de um esvaziamento, de uma operação de subtração do que propriamente de um transbordamento do desejo. Engajado com as questões da teoria queer e com a estética pós-pornô, Francisco Hurtz enfatiza o silenciamento sistemático da Arte Queer nos museus e instituições do Brasil - país com os maiores índices de violência contra LGBTs no mundo. "Corpos de homens em confronto: a tortura, a objetificação, a fragilização, o apagamento, a fragmentação, a subordinação e a redução de imagens masculinas colocam o homem em um lugar de servidão incômodo, pouco comuns nas artes visuais", comenta. A forma como Francisco aborda o corpo masculino homossexual e a sua inserção no corpo social ecoam de forma silenciosa a afirmação do corpo como um campo de batalha, um local de disputa de discursos políticos, religioso, morais e sociais.

Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

Francisco Hurtz • Um homem bateu em minha porta • Verve Galeria • São Paulo • 26/9 a 27/10/2018

Todas as imagens: Série Conduta de risco, 2018.


NOTAS DO MERCADO Fatos, valores, curiosidades e tendências POR LIEGE GONZALEZ JUNG

TEMPORADA DE LEILÕES internacionais vem aí. Entre as estrelas oferecidas nas vendas de inverno em Nova York estão as raras telas de Joan Miró (OST, 1945, 130 x 160 cm, Est US$ 12-18 milhões) e Alberto Burri (madeira e tinta industrial sobre tela, 1957-59, 150 x 250cm, Est. US$ 10-15 milhões), ambas no leilão contemporâneo da Phillips. O mercado espera um novo recorde de preço para Burri com esse lote.

TOP 200 COLLECTORS, “ranking” dos 200 maiores colecionadores do mundo da revista ArtNews publicado em setembro, vem sem grandes surpresas e com apenas dois nomes brasileiros: José Olympio e Selmo Nissembaum. Os expatriados Lily Safra e Joseph Safra também aparecem na lista.

O GOLPE DE BANKSY roubou a cena do mercado internacional em outubro: segundos após o bater do martelo no leilão de sua obra "Girl with a Baloon", na Sotheby's, um alarme soou de dentro da obra e a gravura foi fatiada. Banksy logo postou um vídeo mostrando como instalara um mecanismo para que a obra se autodestruísse caso viesse a leilão, mais um de seus manifestos contra o mercado de arte. Fora do “circo” que encantou leigos mundo afora, o mercado se pergunta: a obra foi destruída ou modificada? Afinal, a mudança ocorreu pela criação e pelas mãos do próprio artista e, depois da massiva viralização, é possível que seu valor de mercado tenha aumentado. Outras perguntas que não querem calar: a Sotheby's sabia de tudo? Quem acionou o mecanismo e de onde? É possível que essa gravura de 2002 tenha circulado por 12 anos com um picoteador na moldura sem que ninguém percebesse? Apenas mais alguns mistérios a serem somados a Banksy e sua elusiva identidade.



NOTAS DO MERCADO Fatos, valores, curiosidades e tendências POR LIEGE GONZALEZ JUNG

ADRIANA VAREJÃO segue marcando presença como uma das artistas contemporâneas brasileiras mais relevantes no mercado internacional. Sua obra "Língua com padrão de flor" foi vendida em leilão curado da Sotheby's por US$ 735 mil, mais que o dobro da estimativa alta.

ARTRIO, fechou mais uma edição com resultados positivos. Conforme tendência já notada pelo mercado, peças de menor valor venderam com mais facilidade, enquanto algumas poucas vendas pontuais melhoraram os resultados das galerias que trabalham nas faixas de preços mais altas. Expositores da seção Brasil Contemporâneo, que reunia galerias de fora do eixo RJ-SP, reclamaram da localização e sugeriram um rearranjo na disposição das tendas, para que os visitantes tivessem que passar pelo pavilhão que comporta essa seção para chegar à praça de alimentação. Ainda assim, a percepção da feira foi positiva, com pontos a favor para o novo formato menor, compatível com o volume de compradores que a visitam.

RECORDE DE PREÇO PARA A ARTISTA VIVA MULHER foi quebrado com a venda da obra "Propped", de Jenny Saville, por US$ 12,4 milhões, em leilão da Sotheby's, em Londres. Saville é uma Young British Artist, “YBAs”, leva de talentos que trouxe o foco do circuito de arte para Londres no final dos anos 1980 e da qual fazem parte nomes como Damien Hirst, Tracey Emin, Sarah Lucas e Ian Davenport. O recorde para artista vivo homem é do norte-americano Jeff Koons, com a venda de "Balloon Dog" por US$ 58,8 milhões, em 2013.



LIVROS lançamentos Kátia Maciel Textos: Alberto Saraiva, Ismar Tirelli Neto, Guy Brett e outros. Editora Cobogó - 340 p. - R$ 80,00

O livro traz um panorama da trajetória da artista e poeta carioca que realiza filmes, vídeos e instalações para tratar de temas ligados a códigos amorosos e seus clichês, e da relação da natureza com a poesia. São mais de 150 imagens de diferentes obras, organizadas por temas e acompanhadas de uma descrição poética feita pela própria artista, além de 18 textos de curadores, pesquisadores e críticos de arte sobre o trabalho de Katia, entre eles, Alberto Saraiva, Ismar Tirelli Neto, Guy Brett, Raymond Bellour, Paula Alzugaray, Simone Osthoff, Ricardo Basbaum e Rogerio Luz.

Fernando Brandão Belonging: Always! Editora Detao Group - 768 p. - R$ 98,00 A arquitetura existe porque a construção não basta. Com essa afirmação poderosa - inspirada na frase de Ferreira Gullar ("A arte existe porque a vida não basta") - o arquiteto Marcio Mazza abre seu depoimento sobre o colega Fernando Brandão no livro Belonging: Always!. A publicação, que será lançada no Museu da Casa Brasileira em 12 de novembro, celebra os 30 anos de carreira de Brandão, referência na arquitetura contemporânea brasileira, com uma retrospectiva em textos, fotografias, desenhos, plantas e croquis. 64


Valéria Costa Pinto Textos: Luiza Interlenghi e diversos autores Editora Fase 10 - Ação Contemporânea. - 244 p. - R$ 150 O livro abrange a trajetória artística nos 25 anos de sua carreira, com texto de Luiza Interlenghi abordando todo o período citado e uma compilação de textos de diversos autores. Formada em design e com pós-graduação em História da arte e da Arquitetura no Brasil, Valéria vem trabalhando com arte desde 1983. Sua pesquisa aborda dobras e vincos sobre diferentes suportes e mídias, considerando conceitos sobre continuidade, movimento, tempo e simultaneidade.

MASPE - 40 Anos Texto: Pe. Rinaldo Pereira, Iron Mendes de Araújo Jr. MASPE - 229 p. - R$ 80,00 Idealizado por Pe. Rinaldo Pereira, em parceria com os historiadores Iron Mendes de Araújo Jr. e Anazuleide Ferreira, a obra reúne mais de 200 peças do acervo do Museu de Arte Sacra de Pernambuco - MASPE, destacando sua atuação como um monumento à fé, à cultura e à história do povo pernambucano.

Daisy Xavier - Horizonte de Eventos Textos: Débora Monnerat, Franklin Espath Pedroso e Ligia Canongia - Editora Notion Art & Design - 176 p. - R$ 70,00 A publicação apresenta um recorte dos últimos anos da obra da artista Daisy Xavier, entre esculturas, desenhos, pinturas e fotografias. Os textos de Franklin Espath Pedroso e Ligia Canongia - usam a exposição realizada no Paço Imperial em 2016 - "Pequenas Gravidades" - para mostrar a evolução do trabalho da artista.


RESENHAS exposições

Frieze Art Fair Londres • 4/10 a 7/10/2018 POR ANA MARIA CARVALHO

Considerada a maior plataforma de arte moderna e contemporânea, a Frieze articula os principais críticos e curadores do mundo todo para identificarem temáticas que respondam a questões atuais pertinentes na arte. Este ano Frieze, apresenta "Social Work" seleção de trabalhos de mulheres artistas que quebraram paradigmas e exploraram as possibilidades de ativismo político em sua criação de arte durante os anos 1980 e 1990. Foram selecionadas as seguintes artistas: Sonia Boyce, Helen Chadwick, Ipek Duben, Tina Keane, Mary Kelly, Faith Ringgold, Berni Searle e Nancy Spero. De acordo com Niamh Coghlan, diretora da galeria Richard Saltoun que representa a artista britânica Helen Chadwick, existe uma ironia inteligente e suave em seu trabalho: "Ela está fazendo uma expressão cômica sobre a situação. Na América, as mulheres nas propagandas apareciam ao lado do utensílio. Ela não. Aqui ela assume o 66

Acima: Helen Chadwick. À direita: Mary Kelly.

papel do utensílio. Não é só atacar o estereótipo feminino, não é um ataque agressivo, sério, ela criou um tom de brincadeira sobre a situação. Ela é fotografada nua, vestida de eletrodoméstico, mas não tem sexualidade. O trabalho dela aponta as estruturas rígidas de opressão da mulher. Ela faz isso de maneira


diferente, ninguém fazia isso naquele momento", diz Niamh. Já a artista conceitual Mary Kelly é criadora da mais engenhosa codificação das questões psíquicas da mulher em obras de arte. Com o viés da psicanálise, sua arte tem reflexões muito íntimas e corajosas sobre temas que na década de 1980 ainda eram pouco discutidos, como: relação mãe-filho, envelhecimento e construções culturais acerca da imagem da mulher. Foram exibidas na Frieze partes da série Corpus: "As narrativas que uso no meu trabalho são baseadas em conversas que tive no meu dia a dia. O leiaute deste trabalho é baseado nas cinco paixões destacadas pelo psicanalista Charcot atribuídos às histéricas: ameaça, apelo, súplica, erotismo, êxtase.

Parece ser coisa do século 19, mas acontece até hoje. A prevalência das mulheres como histéricas nas propagandas e também a assunção da visão de que todas mulheres são histéricas", diz a artista. Mary Kelly explora várias dimensões da escrita, alguns dos quadros são narrativas íntimas de mulheres, em letra branca sob fundo preto, com palavras destacadas. "Eu escuto vozes e faço coisas com isso, eu tento materializar o que essas vozes dizem, fazendo o efeito da voz passar para o campo visual, quase como olhar como uma forma de escutar", revela a artista.

Ana Maria Carvalho é Jornalista, fotógrafa, psicanalista e editora da CRIO.ART. 67


RESENHAS exposições

Relatos Subvertidos Casa da Cultura da América Latina - CAL • Brasilia • 16/8 a 25/9/2018 POR LAÍSE FRASÃO

Com curadoria de Ana Paula Barbosa, Carla Cruz e Sormani Vasconcelos (graduandos em Teoria, Crítica e História da Arte da Universidade de Brasília - UnB) e coordenação de Cinara Barbosa, a exposição "Relatos Subvertidos" revelou parte do acervo da Casa da Cultura da América Latina (CAL) em comemoração aos seus 30 anos de existência. Vinculada ao Decanato de Extensão (DEX) da UnB, a casa se consolidou na cidade como um espaço para a arte contemporânea "mas se distanciou daquilo que foi sua ideia inicial, que era o contato com a América Latina", discorre o atual diretor Alex Calheiros, em entrevista para o portal da própria universidade. Mas o que representaria simbolicamente e territorialmente essa América Latina? Esse foi justamente o debate que a Exposição buscou suscitar: a presença da mulher e a 68

questão da territorialidade na produção latino-americana. Em consonância temática com a Ex-África (CCBB-DF); Histórias afro-atlânticas (MASP e Instituto Tomie Ohtake-SP); Mulheres radicais: arte latinoamericana, 1960-1985 (Pinacoteca-SP); a exposição em questão, mais do que atender ao anseio pela ampliação de um espectro relacionado ao continente latino, buscou materializar um exercício curatorial e crítico que, em diálogo com a concepção decolonial, sinaliza uma temporalidade menos rígida e linear para com a nossa produção artística. Apresentando 30 obras produzidas no Brasil e também em países como Colômbia, Cuba, Equador, México, Paraguai e Uruguai, a propositiva


À esquerda: João Castilho, Barca Aberta, 2017. Acima: Laís Myrrha. Delírio, 2017.

curadoria deste projeto procurou ir além da mera valorização de um acervo, propondo, inclusive, um distanciamento analítico dos imediatos resgates discursivos a este vinculados. "Não se pauta apenas no olhar apurado das relações estabelecidas entre as obras do acervo, mas em uma prolífica rede de relações humanas intra e extrainstitucionais" menciona?Carla Cruz. As próprias soluções expográficas propuseram, simultaneamente, uma espécie de desterritorialização e a aproximação entre os países latinos. Afinal, se, por um lado, em uma primeira leitura, a distribuição das peças em dois pavimentos fragmenta

e revela o próprio distanciamento existente em termos linguísticos e culturais no continente, por outro, a aproximação espacial de peças históricas, etnográficas e contemporâneas, tendo como conexão o debate político, permite uma leitura mais fluida e pulsante das nossas latinidades na América que cada vez falam mais alto em vez de sussurrar.

Laíse Frasão é arquiteta e urbanista e graduanda do curso Teoria Crítica e História da Arte pela Universidade de Brasília (UnB). 69


Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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