Revista Dasartes 78

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PAULA REGO PIETER BRUEGEL EDWARD BURNE-JONES SONIA GOMES HUGO FRANÇA




Paula Rego, Dancing Ostriches from Disney’s Fantasia (Tríptico, painel esquerda), 1995. © Copyright Paula Rego Cortesia Marlborough Fine Art.

DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com DESIGNER Moiré Art

Capa: Paula Rego, O pescador, (Tríptico - painel da esquerda), 2005. © Copyright Paula Rego. Cortesia Marlborough Fine Art.

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Contracapa: Edward Burne-Jones, Phyllis and Demophoön, 1870. © Birminghan Museums Trust.


LAÉRCIO REDONDO:

14 RELANCE SONIA GOMES

8 De Arte a Z 78 Livros 80

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EDWARD BURNEJONES

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Coluna do meio

HUGO FRANÇA

PIETER BRUEGEL

PAULA REGO

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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte MUSEU DE HOUSTON REATRIBUI PINTURA A VELÁZQUEZ “Kitchen Maid” (cerca de 1620) – rotulada “no estilo de Diego Velázquez” –, encontrado atrás de uma porta no Rienzi (Museu de Belas Artes de Houston) será exibida e atribuída ao pintor espanhol. Essa retribuição é o resultado de uma nova conservação e pesquisa feitas pela principal conservadora e especialista em Velázquez, Zahira Bomford. Quando ela removeu camadas de cera, resina e repintura que danificaram a tela e completou vários estudos técnicos, ela se convenceu de ser uma verdadeiro Velázquez.

PARMIGIANINO FALSO

PATRIMÔNIO DE ROBERT INDIANA À VENDA

NOVO RECORDE PARA MAGRITTE?

Em condenação

Para pagar advogados

Em 2019

Uma pintura de São Jerônimo, anteriormente atribuída ao mestre maneirista Parmigianino, foi identificada como uma falsificação moderna, de acordo com o julgamento de um tribunal dos EUA. Como resultado, o colecionador que a consignou à Sotheby's para uma venda em 2012 – onde obteve US$ 842.500 – foi condenado a pagar US$ 1,2 milhão.

Representantes do falecido artista pop Robert Indiana estão vendendo duas obras dos pintores Ed Ruscha e Ellsworth Kelly pela Christie's, com estimativa de US$ 4,2 milhões. A venda das obras é necessária em parte para cobrir as custas judiciais relacionadas a um processo federal apresentado na véspera da morte do artista, alegando que seu zelador e um editor de Nova York isolaram e manipularam a obra do artista.

A pintura de René Magritte pode estabelecer um novo recorde de venda para o surrealista belga no leilão na Christie's, em fevereiro. “Le Lieu Commun” (1964) tem uma estimativa de pré-venda de £ 15 a 25 milhões (US$ 19,5 a 32,5 milhões). O atual recorde de US$ 20,5 milhões em leilão de Magritte foi estabelecido pela pintura “L'empire des lumières” (1949) no salão de vendas da Christie's, em Nova York, há quase um ano.

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NOVOS ESPAÇOS CONCURSO GARIMPO 2018/19 Inscrições até 25/11

O Concurso Garimpo 2018/2019 está de volta. Inscreva-se e envie até seis obras de sua autoria. A seção Garimpo é destinada a artistas brasileiros em fase de consolidação de carreira, que nunca tenham tido uma individual em instituição de arte. Serão selecionados 10 finalistas pela equipe Dasartes, que participarão de uma votação aberta ao público no site Dasartes e no Facebook Dasartes Brasil, de 30/11 a 20/12/2018. Um time de curadores selecionará um finalista, que terá matéria na edição de dezembro/2018 da revista Dasartes. O mais votado pelo público terá matéria na edição de janeiro/2019. Inscrições em www.dasartes.com.br.

FAMA inaugura três novas salas A Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA), em Itu, São Paulo, sob a direção de Raquel Fayad e curadoria de Ricardo Resende, inaugura, em 17/11, mais três novos espaços expositivos com trabalhos de nomes expoentes e em ascensão da cena artística do país. Entre as novidades estão obras de nomes como Tunga, Iberê Camargo, Siron Franco e Paul Setúbal. Rua Padre Bartolomeu Tadei, 9 Itu-SP

Para reclamar? “Visual extraordinariamente intenso” Tom Weekes, advogado dos reclamantes e vizinhos do Tate Modern que estão processando o museu por “invasão de privacidade”. Segundo ele, os visitantes do museu têm acesso aos quartos dos residentes no empreendimento. A Tate Gallery retrucou: “Reivindicar as persianas fornecidas em seus apartamentos e, quando necessário, colocar cortinas”.

Galeria ZERØ A Galeria ZERØ abre suas portas na Vila Madalena, em São Paulo, sob direção de Pedro Paulo Coelho Afonso. A mostra inaugural, "Ossos e Asas 98", do pintor, escultor, performer e artista multimídia paulistano José Roberto Aguilar, propõe uma revisitação à exposição homônima realizada pelo artista em 1998, apresentando uma nova série de trabalhos que não foram expostos naquela ocasião. Rua Simpatia, 23 São Paulo-SP


GIRO NA CENA

Temporada Paço das Artes A Temporada de Projetos 2018 do Paço das Artes abre a mostra “Do Silêncio à Memória”. A exposição é composta por videoinstalações, fotografias, quadros e outras peças de sete artistas e coletivos que têm trabalhado com processos narrativos e com a dimensão reflexiva da história relacionada, principalmente, com questões raciais, de classe, de sexualidade e de gênero. De 14/11/2018 a 13/1/2019

GALERISTA, ARTISTA E MOVIMENTO NO TOPO POWER 100 ART REVIEW O grande negociador e galerista David Zwirner é a pessoa mais poderosa do mundo da arte, de acordo com a lista anual Power 100 da ArtReview. Em segundo lugar está o pintor Kerry James Marshall, que em maio deste ano se tornou o artista negro vivo mais caro do mercado. Completando os três primeiros lugares está #MeToo, marcando a primeira vez que um movimento (em vez de uma pessoa ou coletivo) apareceu na lista.

Anual de Arte FAAP Exposição chega à 50ª edição com o objetivo de apresentar o processo de reflexão em artes visuais de futuros artistas, a partir de investigações e experimentações pioneiras em arte contemporânea, com diversas abordagens sobre questões da atualidade. Serão apresentadas nesta edição 33 obras selecionadas, entre 115 inscrições. De 5/11/2018 a 20/01/2019

10 DE ARTE A Z

VISTO POR AÍ

O “Retrato de Edmond de Belamy” criado pela rede de inteligência artificial “Generative Adversarial Network” (GAN), do coletivo de arte francês Obvious, foi vendido por US$ 432.500 pela Christie’s, superando sua estimativa de US$ 7-10 mil.



LOURENÇO MUTARELLI Com curadoria de Manu Maltez, a exposição “Meu nome era Lourenço” apresenta 147 obras originais de Lourenço Mutarelli, algumas inéditas como o painel sobre seu último livro "O filho mais velho de Deus" (foto). Com telas, colagens, esculturas e desenhos, a mostra traz também reproduções de cadernos e todos seus livros publicados, além de trechos de filmes e um excerto de um documentário sobre ele. “As vinte máscaras” são destaques da exposição. Feitas por Joaquim Almeida e pintadas por Mutarelli, são inspiradas nos desenhos que o artista registrou na última década em seus cadernos e dialogam com o inconsciente, como se quisessem denunciar perturbações e desejos ocultos. 12 AGENDA

A mostra apresenta obras inéditas. Entre elas, um painel feito in loco pelo artista com dois metros de altura e mais de três metros de comprimento, três telas, uma colagem e outro painel - feito de lambe-lambes com pinturas originais. "Mutarelli tem amor à liberdade e percebe o desprendimento e desenvolvimento que pode ter com diferentes usos de linguagem. Ele cria um universo atemporal e contemporâneo que juntos se complementam", afirma o curador.

Lourenço Mutarelli • Meu nome era Lourenço • Sesc Pompeia • São Paulo • 13/11/2018 a 17/2/2019



LAÉRCIO REDONDO relance

Agostinho da Motta, Natureza-morta com frutas, 1878.


DUPLA MOSTRA DO ARTISTA, NA PINACOTECA, PROPÕE INVESTIGAR INTERPRETAÇÕES DAS NARRATIVAS DA HISTÓRIA DO BRASIL, CONTADAS POR MEIO DA COLEÇÃO DO MUSEU, A PARTIR DA EXPERIÊNCIA OLFATIVA

POR FERNANDA PITTA

A pesquisa do artista brasileiro Laércio Redondo, que vive entre a Suécia e o Brasil, envolve a memória coletiva e seus apagamentos na sociedade brasileira. Seu trabalho é frequentemente motivado pela interpretação de eventos específicos relacionados a cidades emblemáticas do país, a arquitetura e representações históricas. Para o projeto proposto para Pinacoteca, o artista toma como ponto de partida o trabalho do pintor Estêvão Silva (Rio de Janeiro, 1844-1891), primeiro artista afrodescendente formado pela Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro a obter destaque no seu tempo. Estêvão Silva foi um exímio pintor de naturezas mortas, muitas vezes exibidas contra paredes de tecidos, atrás dos quais arranjos de frutas exalavam cheiro. O artista combinava, na percepção do 15


Abaixo: Almeida Júnior, Amolação interrrompida, 1894 e Henrique Bernardelli, Bandeirante e índia, 1895.

observador, visão e olfato, criando uma experiência do objeto artístico em que o corpo, os sentidos e a memória do observador se articulavam à obra. A exposição proposta por Laércio Redondo consiste em criar outras possíveis narrativas na coleção da Pinacoteca através do cheiro, tomando como referência a estratégia usada por Estevão Silva. O projeto é uma instalação que inicia no Octógono, com um trabalho que faz menção à uma das naturezas mortas do pintor, e segue pelo museu através de um percurso ao longo da exposição de longa duração do acervo 16 OUTRAS NOTAS

da Pinacoteca. Nesse itinerário, o público encontrará intervenções que propõem outras leituras sobre as obras do acervo e também explicitam algumas de suas lacunas, indicando novas leituras da história da arte brasileira apresentada pela coleção. No itinerário criado na Pinacoteca, o artista propõe um desvio crítico, formalmente resolvido na estratégia de inversão dos sentidos na percepção do trabalho. O privilégio dado ao sentido do olfato é uma estratégia de ativação, de libertação, de outras memórias, permitindo outras interpretações. Redondo, que sempre tem trabalhado


Relance, a partir de Estevão Silva / Natureza Morta, 1888, 2018.

O privilégio dado ao sentido do olfato é uma estratégia de ativação, de libertação, de outras memórias.

com procedimentos de erosão, de revolvimento e reconfiguração das imagens, desta vez estende ao limite a sua iconoclastia, em uma atitude que lhe pareceu necessária para, de certa maneira, escapar ao poder normalizador das imagens. Por que o odor? Os cheiros são sentidos a cada respiração. Eles nos cobrem, nos cercam, entram em nosso corpo, emanam de nós. Dos odores é praticamente impossível escapar, nós os pegamos no ar. Eles afetam os espaços da cognição sobre os quais não temos muito controle, talvez por isso sua capacidade de despertar memórias escondidas, capazes de

recuperar emoções de experiências reprimidas e de abrir outras compreensões do passado, contribuindo para repensarmos o presente.

Fernanda Pitta é historiadora da arte e curadora da Pinacoteca de São Paulo, professora de história da arte moderna na Escola da Cidade.

Laércio Redondo: Relance • Pinacoteca • São Paulo • 24/11/2018 a 25/2/2019



SONIA GOMES

ainda assim me levanto


NOVAS OBRAS DA ARTISTA MINEIRA SONIA GOMES, NO MASP, APRESENTAM OS DESDOBRAMENTOS DE SUA PRÁTICA ARTÍSTICA EM TORNO DA ESCULTURA QUE AGORA INCORPORA GALHOS E TRONCOS EM SUA PRODUÇÃO

POR AMANDA CARNEIRO

"Ainda assim me levanto" apresenta a extraordinária contribuição da artista Sonia Gomes para a linguagem da escultura contemporânea. As obras foram realizadas especialmente para esta mostra, que acontece de modo simultâneo no MASP e na Casa de Vidro - resultado da parceria do museu com o Instituto Bardi. O diálogo com os edifícios modernistas de Lina Bo 20 DESTAQUE

Bardi afirmam o caráter de instalação de arte da exposição, em que Gomes cria os trabalhos em conexão com tais espaços arquitetônicos. O título faz referência ao poema "Still I Rise", de Maya Angelou, escritora e ativista estadunidense reconhecida por sua luta em favor dos direitos civis. Esses mesmos versos foram lidos por diferentes figuras públicas em


manifestações de arte e políticas. Também foram inspiração poética para muitos artistas em seus processos individuais de produção criativa. "I Rise" é repetido no poema de Angelou como um mantra, sustentando altivez e garra em favor de mudanças e parece anunciar o movimento da trajetória de Sonia Gomes que agora se reinventa e desdobra sua pesquisa em torno dos galhos e dos troncos, materiais inéditos em sua obra e que nomeiam a principal série da exposição, intitulada "Raiz". À madeira, unem-se os retalhos de tecidos que, manipulados manualmente, constituem matéria de poesia nos trabalhos de Gomes. Encontrados ao acaso ou ofertados à artista, tecidos de distintas qualidades, cores, estampas e texturas são cortados, reconfigurados e transformados em expressivas e inconfundíveis esculturas. Abstratas, as peças são criadas em múltiplas e densas camadas que, delimitadas desde a costura, refutam o aspecto figurativo, dando ênfase ao volume e ao equilíbrio e questionando os limites entre noções de funcionalidade, arte e artesanato. Têxteis, cordas, utensílios e outros

À esquerda: Correnteza, da série Raiz, 2018. Abaixo: Sem título da série Raiz, 2018. Todas as imagens: Cortesia da artista e Mendes Wood DM. Todas as Fotos: Bruno Leão.


À esquerda: Santa, da série Raiz, 2018. Abaixo: Sem título, 2018. À direita: Acordes naturais, 2018.i.

Sonia tensiona formas diversas e remete a diferentes práticas artísticas tradicionais ou contemporâneas, eruditas ou Populares.

objetos do cotidiano permitem que Gomes tensione formas diversas e remeta a diferentes práticas artísticas - tradicionais ou contemporâneas, eruditas ou populares. Sonia Gomes nasceu em Caetanópolis, importante município brasileiro de indústria têxtil do estado de Minas Gerais. A artista relata que essa proximidade a conectou, desde muito cedo, a diferentes tipos de tecido com os quais gostava de brincar. Com os retalhos que compunham as amostras desses tecidos, Gomes enrolava, torcia, dava nós e os amarrava em suas bonecas, reiterando a ideia de que cada coisa vista sem préstimo pode constituir substância da sua arte. 22 SONIA GOMES



As esculturas e instalações da artista, feitas a partir de materiais residuais, principalmente têxteis e outros objetos diverso, remetem a práticas artesanais brasileiras: as amarrações, nós, patuás, trouxas e tramas que compõem o trabalho de Gomes evocam expressões culturais afrobrasileiras - mas também à tradição de bordadeiras e rendeiras de Minas Gerais, todos parte de sua formação artística. Apesar da carreira internacional, esta é a primeira mostra monográfica de Sonia Gomes em um museu de São Paulo. Única brasileira convidada para a 56ª Bienal de Veneza de 2015, curada por Okwui Enwezor, a artista iniciou sua carreira aos 45 anos e, aos 60, encontrou reconhecimento, estando hoje em plena atividade. No MASP, Gomes integra um ano de exposições e programas públicos em torno das histórias afro-atlânticas, que trata dos 24 SONIA GOMES

fluxos e refluxos entre a África, as Américas, o Caribe e também a Europa, a partir das artes visuais. Esse programa inclui uma série de exposições individuais, bem como uma coletiva que foi coorganizada com o Instituto Tomie Ohtake e que incluiu o trabalho da artista.

Sonia Gomes: Ainda assim me levanto • MASP • São Paulo • 14/11/2018 a 10/3/2019.



A desgraรงa cumprida, 1888.


O estranho mundo de

EDWARD BURNE-JONES


EDWARD BURNE-JONES FOI UMA FIGURA-CHAVE NO MUNDO DA ARTE DO SÉCULO 19, CUJO TRABALHO IMPREGNOU HISTÓRIAS FAMILIARES DE MITOS, LENDAS E DA BÍBLIA COM UMA SENSIBILIDADE MODERNA E UMA BELEZA ASSOMBRADA E ESPIRITUALIZADA QUE ERA TÃO ENIGMÁTICA QUANTO O PRÓPRIO ARTISTA

POR ALISON SMITH O nome Edward Burne-Jones (18331898) pode não ser tão familiar hoje como era antes, mas sua arte está ao nosso redor. Seus vitrais iluminam igrejas de todo o Reino Unido com suas formas evocativas e ricas com cores brilhantes; suas pinturas se destacam em nossas galerias de arte e museus por meio de sua beleza de 28 DO MUNDO

artesanato e design; e, na época do Natal, os distintos anjos melancólicos do artista podem ser vistos em muitos cartões de felicitações. Burne-Jones é o mais facilmente reconhecível dos artistas. Descrever alguém como possuidor de um "olhar de BurneJones" é conjurar uma visão de um jovem magro e pálido com uma


À esquerda: Laus Veneris, 1873-78. Abaixo: Escadas de ouro, 1880.

expressão sonhadora: é um tipo andrógino de beleza perturbadora, mas fascinante de se ver, influenciando um crescente apetite para a fantasia, de "Tolkien" a "Game of Thrones". Apesar dessas características de marca registrada, Burne-Jones também é o mais indescritível dos artistas. Os mitos e as lendas que inspiraram tantas de suas criações - da busca do Santo Graal à Bela Adormecida - tornaram-se parte de nossa cultura, mas isso não faz de sua arte mais fácil de entender. Há uma estranheza em sua visão que a leva além da ilustração para o reino do mistério. Vejamos "As escadas de ouro", de 1880, por exemplo, uma pintura que está em exposição quase permanente desde que entrou na Tate Gallery, em 1924. Aqui, um grupo de donzelas quase idênticas, vestidas de branco e segurando uma variedade de instrumentos musicais, pisam em forma de transe descendo uma escada em espiral até um pátio, o propósito e significado de seus movimentos desconhecidos.

Há uma estranheza em sua visão que a leva além da ilustração para o reino do mistério.



A cabeça sinistra, 1885.

O mesmo pode ser dito de "O moinho", de 1870-1882, em que três mulheres dançam ao som de um músico enquanto os banhistas nus masculinos posam misteriosamente ao fundo. Em uma das composições mais célebres do artista, "Amor entre as ruínas", 18701873, uma mulher olha fixamente para o horizonte enquanto se agarra a seu companheiro na concha de uma ruína coberta de arbustos. Em todas essas imagens, figuras são mostradas girando e virando, sem outro propósito senão destacar um clima de quietude e inércia, a suspensão da ação ressaltando a ambiguidade essencial que tornou a arte de BurneJones tão desconcertante para seus contemporâneos, e que continua a nos assombrar ainda hoje. Parte do mistério é o próprio artista. Ele começou a vida como simples Edward Jones de Birmingham, tornando-se Sir Edward Coley Burne-Jones, Baronete, elogiado em toda a Europa como o maior artista que já emanou da Grã-Bretanha. Apesar de sua fama e celebridade, Burne-Jones se sentia desconfortável aos olhos do público. Em vez disso, ele mergulhava em suas obras no estúdio em sua casa de família, o Grange, em Fulham (demolido na década de 1950), periodicamente dando lugar aos surtos de depressão e solipsismo que o atormentaram durante toda a vida. Mesmo aqui ele estava inquieto e procurava uma saída para suas frustrações e emoções nas amizades íntimas que desenvolveu com várias mulheres da alta sociedade, 31



O amor entre as ruĂ­nas, 1870-73.


às vezes escrevendo até cinco cartas por dia para uma alma gêmea especial, expressando seus sentimentos. Em muitas dessas cartas ele fazia caricaturas, que eram invariavelmente autodepreciativas, e muitas vezes cruéis em seu humor (ele tinha uma preocupação particular com mulheres grandes, que tanto o assustavam quanto o intrigavam). O enigma de Burne-Jones explicaria por que ele tem sido objeto de fascínio por uma série de biógrafos que foram 34 EDWARD BURNE-JONES

O enigma de BurneJones explicaria por que ele tem sido objeto de fascínio por uma série de biógrafos.


À esquerda: Perseu e as Ninfas do Mar (O Arme de Perseu), 1877. Abaixo: Retrato de Amy Gaskell, 1893.

atraídos pelos extremos e pelas contradições de sua personalidade. Até a esposa do artista, a fiel e sofredora Georgiana, teve dificuldade em revelar em que seu marido realmente acreditava, além de sua arte. Os "Memoriais", de 1904, escritos por ela pouco depois da morte do artista, pintam a imagem de um homem profundamente versado na Bíblia e na Teologia, mas que perdeu o interesse pelo cristianismo formalizado. Embora tivesse fortes pontos de vista éticos ele se sentia indignado com o tratamento dado pela Grã-Bretanha a outras raças e culturas, e simpatizava com o oprimido - ele se recusou a se tornar politicamente engajado. Em desencontro aos métodos ensinados nas escolas de arte sobre a forma adequada para utilizar materiais, Burne-Jones desenvolveu sua própria prática idiossincrática negligenciando as propriedades intrínsecas de um meio e a seguir seus instintos. Todas as suas obras, quer executadas em aquarela, pastel a óleo ou giz, parecem pesadas, parecidas com pedras preciosas e opacas e, em termos de peso e textura, eram frequentemente comparadas à escultura em relevo ou



Eu quero grandes coisas para fazer e vastos espaços, e para pessoas comuns vê-los e dizer Oh!.

À esquerda: A rocha da desgraça, 1885-88. À direita: A morte da Medusa (II), 1881-82.

tapeçaria. Nesse sentido, seu objetivo era criar algo sólido e permanente que fizesse parte de um ambiente fixo, em vez de existir como uma mercadoria flutuante a ser vendida no mercado de arte, que ele professava desprezar. Embora não tenha seguido na política, era comum ele querer criar uma arte que servisse a todos, em vez de uma elite privilegiada. Como ele disse uma vez: "Eu quero grandes coisas para fazer e vastos espaços, e para pessoas comuns vê-los e dizer Oh! - só Oh!" Seguiu-se que Burne-Jones valorizava as artes aplicadas (ou as "artes menores" como eram denominadas) e as artes plásticas igualmente, e acreditou que as formas decorativas, como vitrais e mosaicos, eram mais democráticas com seu alcance e apelo. Na busca de abraçar um público amplo, retratou histórias e lendas que poderiam ressoar na imaginação popular, sendo belas e misteriosas de se ver. Sua arte pública exigia um nível profundo e pessoal de envolvimento. Embora o tema da arte de Burne-Jones tenha remontado ao passado, devendo-se em grande parte à Bíblia, à mitologia e à cultura renascentista, o tratamento dele em relação a esses temas foi surpreen35


O jardim tribunal, 1874-84. Todas imagens: Cortesia Tate Britain.

dentemente moderno em virtude de sua perturbadora psicologia e intenso humor de introspecção. Burne-Jones não era realista, preferindo, como ele dizia, "esquecer o mundo e viver dentro de uma imagem". Ao criar os ambientes imaginários de suas imagens, ele trabalhou em um afastamento do mundo existente, projetando os objetos que deveriam aparecer em suas obras e, em seguida, fabricandoos como modelos tridimensionais, de modo que, uma vez pintados, eles existiam como "um reflexo de uma análise de algo puramente imaginário". Esse tipo de prática não só encontra eco no design assistido por computador que dá à ficção científica e ao filme de fantasia sua própria 38 DO MUNDO

realidade, mas curiosamente nos métodos adotados por alguns artistas conceituais. O artista e designer morreu em Londres, em 1898, aos 64 anos.

Alison Smith é curadora chefe da National Portrait Gallery. Anteriormente, foi curadora principal de Arte Britânica do Século 19 no Tate Britain.

Edward Burne-Jones • Tate Britain • Londres • 24/10/2018 a 24/2/2019



CONHECIDO POR SUAS OBRAS EM MADEIRA E OUTROS ELEMENTOS DA NATUREZA, O DESIGNER HUGO FRANÇA SE AVENTURA EM NOVOS TRABALHOS EM IMPRESSÃO VEGETAL. O ARTISTA FALA À DASARTES DESTA E DE SUAS MAIS ICÔNICAS PRODUÇÕES

40 REFLEXO


HUGO FRANÇA POR ELE MESMO

“A "Cadeira Canoa" remete ao começo de tudo e também a um marco da minha carreira. Meu contato com o design começou em Trancoso, justamente pela convivência com os índios Pataxós, que produziam suas próprias canoas e ferramentas com a madeira da floresta. Foi ali que conheci as propriedades do pequi, minha principal matéria-prima de trabalho. Essa madeira é oleosa, tornando-a mais resistente à água (por isso viravam canoas) e traz muito mais durabilidade para minhas criações. Foi com essa mesma cadeira, produzida com uma canoa Pataxó abandonada, que ganhei o "Prêmio Brasil Faz Design", do Museu da Casa Brasileira, em 1998. O prêmio deu grande visibilidade nacional e abriu as portas do mercado internacional ao meu trabalho.”

CADEIRA CANOA


“O "Banco Tamboril" representa o Instituto Inhotim na minha carreira. Foi minha primeira peça instalada nesse lugar maravilhoso, que é pura arte e natureza. Esse banco de grandes dimensões foi o pontapé para o que é, hoje, meu maior acervo no Brasil: são mais de 130 peças espalhadas pelos jardins do Museu. Impossível caminhar por lá e não as notar, fazer uma pausa, seja para descansar, contemplar a natureza ou refletir sobre tudo o que ainda pode ser visto ou explorado no local.”


BANCO TAMBORIL


LÚDICA TEIA

“A peça "Lúdica Teia", que está no parque Ibirapuera, representa muito bem meu trabalho de mobiliário público. Tudo começou quando um grande eucalipto do parque foi atingido por um raio, em 2010. Imagina o problema: o que fazer com uma árvore de 23 metros e mais de 15 toneladas? Seu destino certamente seria o aterro, uma opção ruim, já que, ao se decompor, a árvore devolve para o meio ambiente todo o gás carbônico que reteve durante sua existência. Decidimos dar nova vida a ela: a árvore que viveu por décadas no parque seria devolvida ao local e à população em outro formato. Esculpimos o eucalipto e ele foi transformado em uma espécie de brinquedo, com um túnel e uma trama de cordas que lembram teias de aranha. Não tem uma vez que eu não passe pelo parque e não me emocione com a maneira com que as pessoas interagem com essa peça. Ela oferece a todos a chance de tocar, entrar na árvore, sentir a natureza. É uma das minhas peças preferidas.”

44 REFLEXO


Ela oferece a todos a chance de tocar, entrar na รกrvore, sentir a natureza.

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As obras se inserem no prรณprio ambiente.

46 HUGO FRANร A


CASULO CABRUÉ

“Esta peça é a mais importante da série "Casulos", obras que criei para convidar as pessoas a entrarem na árvore para uma experiência sensorial única. Ela fez parte da minha exposição individual no Fairchild Tropical Botanic Garden, em Coral Gables, Flórida, em 2013. Esse jardim botânico belíssimo tem uma programação de exposições de arte e design muito interessante: as obras se inserem no próprio ambiente. Foi a única oportunidade que tive de ver meu trabalho em um ambiente tropical fora do Brasil. Produzida com a raiz de um pequi que viveu em torno de 1.500 anos, a obra foi a que mais se destacou na exposição. Ao final da mostra, doei a peça para o Fairchild e sempre passo por lá para uma visita, quando vou a Miami, para registrar a interação das pessoas e contemplar aquele monumento da natureza uma vez mais.”

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IMPRESSÃO VEGETAL

“Essa peça representa um momento novo, desafiador na minha carreira. Eu jamais poderia imaginar que meu contato com o artista alemão Tom Fecht, durante a Design Miami, de 2016, levar-me-ia a criar uma série de monotipias. Nunca me imaginei em uma montagem de exposição pensando na disposição das minhas obras em uma parede. Realmente, tudo isso aguçou meu lado criativo e fez voltar aquele frio na barriga de quando estamos diante do desconhecido. Essas monotipias são registros íntimos do corpo e da textura da estrutura lenhosa das matrizes que utilizei, feitas de pedaços de troncos, fatias e blocos saídos de outras produções minhas e uma mistura de carvão vegetal e verniz.”

Hugo França: Impressão Vegetal Bolsa de Arte • São Paulo • 31/10 a 8/12/2018

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BRUEGEL

PIETER O VELHO


Dulle Griet, 1563. Foto: Š Museum Mayer van den Bergh


EXPOSIÇÃO DO JUBILEU DE 2018-2019, COMEMORANDO O 450º ANIVERSÁRIO DA MORTE DE PIETER BRUEGEL, O VELHO, GANHA DESTAQUE COMO A PRIMEIRA APRESENTAÇÃO MONOGRÁFICA ABRANGENTE DEDICADA AO MESTRE

POR ELKE OBERTHALER SABINE PÉNOT MANFRED SELLINK RON SPRONK

Bruegel é um moralista ou fatalista? Otimista ou cínico? Humorista ou um filósofo? Camponês ou habitante da cidade? Folclorista ou um intelectual? Um regionalista ou universalista? Um humanista ou um misantropo? Um observador revolucionário ou um distante? Estas são as questões fundamentais que o artista e autor flamengo Harold Van de Perre se faz em seu livro "Bruegel: Ziener voor alle tijden" (2007). Conhecemos Pieter Bruegel, o Velho, como o fundador de uma dinastia de pintores que durou um século. No entanto, sabemos muito pouco sobre a vida dele. O livro mais antigo sobre pintura nos Países Baixos é o trabalho de Karel van Mander, "Het Schilder-Boeck" (1604), no qual ele esboça uma imagem bastante colorida da vida de Bruegel. Sabemos com certeza que Bruegel viajou para a Itália para se familiarizar com a arte da antiguidade e ficou impressionado com a paisagem dos Alpes em sua viagem de volta à Antuérpia. A última parte de sua vida foi uma época de grande tumulto nos Países Baixos, à medida que crescia a revolta contra a Igreja e o governo de Madri. Foi em 1567, dois anos antes de sua morte, que o exército do duque de Alba marchou em Bruxelas. Nos séculos 18 e 19, Bruegel foi quase esquecido. Poucas de suas pinturas permaneceram nas cidades onde ele viveu, seus desenhos e obras pintadas foram espalhados por toda a Europa. Foi apenas no final do século 19 que a atenção a Bruegel ressurgiu após uma reavaliação geral da pintura dos séculos 15 e 16 do 52 FLASHBACK


Dois Macacos, 1562. Foto: © Staatliche Museen zu Berlin, Gemäldegalerie / Christoph Schmidt. Abaixo: A conversão de Saul, 1567. © KHM-Museumsverband.


Acima: Jogos infantis, 1560. À direita: Cristo carregando a cruz, 1564. Fotos: © KHM-Museumsverband.

sul da Holanda. Graças a um colecionador particular, Fritz Mayer van den Bergh, que admirara as pinturas de Bruegel nas coleções imperiais de Viena, duas grandes obras foram trazidas de volta à Antuérpia, cidade onde Bruegel aprendera a desenhar e pintar. Seguindo uma dica de um jovem historiador de arte, Mayer van den Bergh comprou as pinturas em um leilão, em Colônia, em 1894. Este foi o início de uma nova era para Pieter Bruegel que, no século 20, ganhou um grande número de apoiadores, desde o poeta inglês W. H. Auden até o diretor de cinema russo Andrei Tarkovsky. Como nenhum outro antes dele, Bruegel assimilou as 54 PIETER BRUEGEL O VELHO

Bruegel assimilou as técnicas aprendidas na Holanda e na Itália para desenvolver uma linguagem universal.


técnicas aprendidas na Holanda e na Itália para desenvolver uma linguagem universal. Sua variedade de temas, que se baseiam nas tradições pictóricas anteriores de Jheronimus Bosch e na parte final da Idade Média, e sua originalidade de execução ainda provocam grande fascínio dos telespectadores de hoje. A BATALHA ENTRE O CARNAVAL E A QUARESMA Na praça principal de uma pequena cidade, as personificações do Carnaval e da Quaresma se aproximam em uma paródia de um combate.

Dividido composicionalmente, embora não seja estritamente concebido dualisticamente, o lado direito austero da imagem enfrenta a parte mais festiva do carnaval. Bruegel descreve minuciosamente os costumes flamengos do período do Carnaval e da Quaresma, reunidos em uma composição aglomerada e de grande formato, vista de cima. O pintor coloca a ação em um contexto urbano entre uma taverna e uma igreja. Como parte das procissões do entrudo, a "batalha" entre os adversários Carnaval e Quaresma remonta à tradição medieval. Ao contrário de modelos literários e peças de carnaval, no duelo alegórico mostrado aqui a luta real não é


retratada. Os adversários passam uns pelos outros ilesos. Como uma inversão temporária das regras sociais, o Carnaval ajuda a preservar a ordem usual, aludida pelo bispo aleijado que celebra entre os mendigos no meio da cena. A aparência de que o excesso e a moderação se opõem é enganosa, no entanto. A loucura é um motivo condutor em toda a composição: da esquerda para a estalagem - uma taverna de Antuérpia com o mesmo nome era a sede de uma confraternização de bobos e carnavalescos -, para o bobo da corte com a tocha acesa na lareira até o centro, com o tolo que tirou o chapéu para entrar na igreja à direita. A loucura é sempre onipresente, assim como as atividades moralmente condenáveis, e o caminho da razão é difícil de encontrar. Em quem se pode confiar no caminho do autoconhecimento: no homem armado ou no tolo? O TRIUNFO DA MORTE Impelidos pela violência desenfreada, bandos de esqueletos dominam um mundo transformado em uma paisagem apocalíptica e levam o espectador a um horror espantoso. O grande painel sem data e sem

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A batalha entre o Carnaval e a Quaresma, 1559. Š KHM-Museumsverband.



O triunfo da morte, 1562. Š Museo Nacional del Prado.


O modo como interpretações históricas da arte lida com o assunto radicalmente escuro da imagem é impressionante.

assinatura é a composição mais radical e mais sombria da obra de Bruegel. Com uma selvageria excepcionalmente concentrada, o pintor descreve meticulosamente um panóptico de assassinatos e mortes sanguinários. O modo como interpretações históricas da arte lidam com o assunto radicalmente escuro da imagem é impressionante. Um grupo de estudos tem lidado com a teoria de que a gravura pertence a uma trilogia que inclui "A queda dos anjos rebeldes" e "Dulle Griet". Além de fazer conexões com o pensamento humanista, a consideração de um componente satírico também resultou em uma redução da mensagem dramática em "O triunfo da morte". O mestre trabalha ao nível de grandes declarações e nunca em meias medidas. Não há morte boa no "Triunfo da Morte" de Bruegel. É uma morte sem sacramentos. A morte não é, como 60 PIETER BRUEGEL O VELHO

afirma a teologia cristã, apenas uma passagem, um limiar da vida terrena para a vida eterna. Esta é a mudança mais radical: não há indicação do Juízo Final, nenhuma indicação de transcendência. A Morte, não Deus, é a senhora dos acontecimentos. E assim pode ter sido que Bruegel pretendia retratar a futilidade de todos. A guerra em sua visão apocalíptica da guerra final de todos, a guerra em que o único vencedor é a morte. A esse respeito, podemos encontrar um paralelo mais recente de "O triunfo da morte" em Guernica, de Picasso. A TORRE DE BABEL O tema da Torre de Babel é um verdadeiro caldeirão de fatos históricos, tradição do Antigo Testamento, e mito, tornando-se um motivo particularmente complexo e dotado de um potencial metafórico intemporal. Unidade e divisão, sede de


Abaixo: A Torre de Babel, 1563. © KHM-Museumsverband. Na página seguinte: A Torre de Babel, depois 1563? © Museum Boijmans Van Beuningen. Foto: Studio Tromp, Rotterdam


poder, construção e destruição, unidade linguística e confusão de línguas - essas são apenas algumas de suas facetas. A "Torre" toca a essência da humanidade, nosso destino como indivíduos e como membros da comunidade humana, e nossa transitoriedade e mortalidade. Um de seus elementos fundamentais é a utopia da humanidade unida em um projeto comum e limitado por uma linguagem comum. Além disso, seus principais temas como motivo se estendem à arrogância, limites e fronteiras, à transgressão de fronteiras e ao perigo de julgar mal seus limites. Inúmeros artistas encontraram inspiração nesse tema ricamente variado, em particular aqueles que seguem as etapas de Bruegel, na Holanda.

62 FLASHBACK


Mas o que se sabia sobre a Torre de Babel no século 16? O livro de Gênesis (11: 1-9) revela sobre o alto edifício hierárquico, ou templo zigurate, feito de tijolos de barro que era típico da Mesopotâmia: E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. E aconteceu que, partindo eles do oriente, acharam um vale na terra de Sinar; e habitaram ali. E disseram uns aos outros: "Façamos tijolos e queimemo-los bem". E foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume por cal. E disseram: "Edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra." Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam. E o Senhor disse: "Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro." Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade. Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra. A Torre de Babel, de Bruegel, é uma parábola (visual) da sociedade, uma

visão crítica do indivíduo e do papel do governante. Bruegel está segurando um espelho para os espectadores da pintura, que são feitos para sentir sua própria limitação. Com sua extraordinária diversidade, a pintura transcende o poder de compreensão e visão de seus espectadores, demonstrando a eles as limitações de suas próprias habilidades: em suma, é um antídoto para a megalomania.

Elke Oberthaler é chefe do estúdio de conservação de pinturas, Galeria de Imagens, Museu de História da Arte em Viena.

Sabine Pénot é curadora das pinturas dos Países Baixos na Galeria de Imagens, Museu de História da Arte em Viena.

Manfred Sellink é diretor geral e curador chefe do Koninklijk Museum voor Schone Kunsten (KMSKA), Antuérpia, Bélgica.

Ron Spronk é professor de História da Arte na Queen’s University, Canadá e Presidente (Hieronymus Bosch) da Radboud Universiteit, Nijmegen, Países Baixos.

BRUEGEL • Museu de História da Arte em Viena • Áustria • 2/10/2018 a 13/01/2019



PAULA REGO

Os contos cruéis de:

A história de Balzac, 2011. © Copyright Paula Rego. Cortesia Marlborough Fine Art.


ÚNICA ARTISTA FEMININA DO GRUPO LONDON SCHOOL, PAULA REGO DISTINGUE-SE POR UM TRABALHO ALTAMENTE FIGURATIVO, LITERÁRIO, INCISIVO E SINGULAR

POR ELISA MAIA

"Os contos cruéis", de Paula Rego, exposição inaugurada em outubro no Museu L'Orangerie, em Paris, marca um momento importante na história da instituição. É a primeira vez que uma artista viva ocupa o espaço com uma 66 CAPA

exposição individual, fato inédito que se inscreve no movimento mais amplo de um crescente interesse francês por artistas portugueses, como Amadeo de Souza-Cardoso e Helena Almeida. Para Cécile Debray, diretora da instituição,


a obra de Paula Rego se situa na interseção improvável entre o barroco católico e sensual e o realismo duro e austero da escola de Londres, cidade na qual a artista fez seus estudos na década de 1950 e onde passou a viver a partir dos anos 1970. Suas pinturas, a densidade de suas cores, a presença física dos objetos, a volumetria dos corpos, inscrevem-na na grande tradição da pintura ocidental. Seus desenhos retratam determinados animais e insetos de forma tão detalhada que poderiam figurar como ilustrações científicas. Ainda assim, o que a exposição celebra não é a habilidade de tornar visível o mundo ao seu redor, mas o modo magistral pelo qual Rego é capaz de ilustrar o invisível, desvelando o que se esconde embaixo do verniz da civilização. Na melhor tradição de Bosch e Goya, as imagens de Rego revelam a selvageria humana e tornam verossímil uma atmosfera monstruosa que talvez preferíssemos deixar velada. A crueldade, que transborda em suas histórias na forma de jogos de poder, submissão, sedução, opressão e abandono, é o fio que alinhava o conjunto à primeira vista tão heterogêneo de pinturas, desenhos e instalações.

À esquerda: A Dança, 1988. Foto: Bridgeman Images. À direita: Escavadoras, 1994. © Copyright Paula Rego. Foto: Cortesia Marlborough Fine Art

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Presa, 1986. © Copyright Paula Rego. Foto: Cortesia Marlborough Fine Art.

Pintora figurativa, Rego sempre demonstrou grande interesse pelas artes narrativas, e não à toa sua obra presta homenagem a grandes nomes da literatura, como Emily Bronte, Kafka, Balzac, Eça de Queiroz, George Orwell, Dante, Lewis Carroll e Charles Dickens. A artista mencionou em diversas ocasiões a importância que teve na sua carreira o período no ano de 1975, em que passou mergulhada nos arquivos da Biblioteca de Londres pesquisando o trabalho de ilustradores como Edmund Dulac, Arthur Rackham, Maxfield Parrish e Grandville. A pesquisa, fruto de uma bolsa concedida pela Fundação Gulbenkian, resultou na série de guaches "Contos populares portugueses" e logo se mostrou um dos momentos mais importantes na definição de seu estilo. Sua obra até hoje aparece profundamente marcada pelo interesse pela ficção, pelos contos e pela infância. Mas, para o universo infantil, Rego lança um olhar sem concessão ou redenção, esvaziando-o de seu caráter ingênuo e edificante e povoando-o com imagens de terror e estranhamento. As crianças dos contos de Rego são mais perversas do que inocentes. Seu extenso repertório de recontos é profundamente marcado não apenas pelas ideias de magia e encantamento, mas também por um caráter

68 PAULA REGO


sádico e moralizante que parece ecoar as memórias de sua infância em seu país natal. Para a artista, nascida no ambiente claustrofóbico de Portugal dos anos 1930, em meio ao regime salazarista, a condição da infância é indissociável das ideias de punição e castigo. Em uma família burguesa de uma sociedade católica e patriarcal, o ambiente era particularmente moralista e repressor, motivo pelo qual seu pai decidiu mandá-la para Londres. Curiosamente, sobre o período em que viveu em Portugal, Rego diz que não se importava com Salazar, pois a verdadeira opressão vinha de sua mãe.

As crianças dos contos de Rego são mais perversas do que inocentes.

Laço, 1987. Foto: Cortesia British Council Collection.


A família, 1988.

Assim como faz com a infância, Rego revisita de forma estranhada alguns arquétipos femininos - mãe, menina, filha, empregada, fada, bailarina evitando deliberadamente o olhar condescendente que apresenta as mulheres como mais frágeis, amáveis e serenas ou mesmo menos inclinadas à praticar atos de violência física e psicológica do que os homens. Em suas telas, as personagens oscilam entre empáticas e cruéis, vítimas e manipuladoras, cúmplices e rivais, heroicas e triviais. A tela "Pequena assassina" (1987) é um exemplo singular. A pintura retrata uma menina com uma fita verde nas mãos, na 70 CAPA

iminência de estrangular um personagem que se encontra em seu quarto, mas que o espectador não pode ver porque está para além dos limites visíveis da tela. Uma das pinturas mais enigmáticas da mostra, "A família" (1988), retrata uma figura paterna em um estado de total submissão sendo despida em uma cama, como um boneco, por duas mulheres que parecem ser sua mulher e sua filha, enquanto uma terceira menina observa a cena. Nesta, assim como em outras pinturas, o recurso a citações bíblicas e a símbolos religiosos é feito com total liberdade, misturando-se os domínios do sagrado,


do mítico e do cotidiano em planos indiferenciáveis. Um elemento importante no processo das pinturas é o uso que Rego faz de uma pequena equipe de assistentes que, sob sua direção, alternam-se em papéis diversos para encenar as situações que serão retratadas. Mais recentemente, a artista começou a investir também na fabricação de seus próprios modelos - bonecos e personagens feitos de papel machê, gesso, tecidos, madeira, meias de nylon que encenam em diálogo com os modelos vivos uma espécie de teatro das histórias que ela imagina. Seu

Acima: A filha do policial, 1987. À direita: Geppetto lavando Pinóquio, 1996. © Copyright Paula Rego Fotos: Cortesia Marlborough Fine Art.


O pescador, tríptico (painel central) e (painel da direita), 2005. Š Copyright Paula Rego. Cortesia Marlborough Fine Art.



Abaixo: Pequena Miss Muffet I, 1989. Um sapo que iria a-wooing ir I, 1989. © Copyright Paula Rego Fotos: Cortesia Marlborough Fine Art.

ateliê em Londres se torna cada vez mais esse palco povoado por figuras fantásticas e estranhas, máscaras, manequins, fantasias, dispositivos cenográficos e móveis de épocas passadas. Humanizar os animais é um recurso tão comum quanto antigo, basta pensar nas fábulas de Esopo e La Fontaine ou nas gravuras de Grandville de sapos e corujas em trajes e poses pomposas. A obra de Rego lança mão desse recurso de forma tão perspicaz que quase chega a apagar as fronteiras que separam os corpos humanos dos corpos animais. Sapos, macacos, ratos, coelhos, ovelhas, cegonhas, pelicanos, cachorros e aranhas não apenas interagem com crianças, homens e mulheres, como também figuram como personagens de dramas humanos, cometendo violência doméstica, intrigas, traições ou participando de jogos 74 PAULA REGO

A obra de Rego quase chega a apagar as fronteiras que separam os corpos humanos dos corpos animais.


A festa, 2003.

eróticos. Destacam-se nesse sentido as ilustrações em água-forte que compõem a série "Nursery Rhymes" (1989). A série ilustra contos populares da tradição oral inglesa que oscilam entre cômicos e absurdos, como "Baa Baa Black Sheep", que retrata uma menina no colo de um enorme carneiro negro sentado em um banco com uma postura aristocrática. "Mulheres-cachorro", série iniciada em 1994, percorre o sentido inverso desse movimento. Em vez dos animais antropomorfizados, a série retrata as personagens femininas em uma sucessão de comportamentos animalescos, selvagens, violentos, imprevisíveis. As cenas se tornam menos complexas, menos narrativas, e o foco passa a ser o espetáculo pulsional das figuras isoladas cujos corpos, libertos de suas amarras sociais, são transfigurados nos limites entre o erotismo e a violência. O uso do pastel como técnica, no lugar da pintura a óleo, possibilita uma maior espontaneidade do gesto e um maior engajamento do corpo


da artista com a imagem. Sem a mediação do pincel, Rego passa a aplicar os pigmentos com os próprios dedos diretamente sobre as grandes folhas de papel. A qualidade tátil do meio, que Rego maneja com vigor e dinamismo, confirma o que Edgar Degas já havia afirmado um século antes - que o pastel é um meio maravilhoso para se representar a carne. A série "Mulheres-cachorro" explora a tensão entre um estado supostamente mais natural (dos animais, das crianças) e as formas de coerção social, como a religião, a família, a educação. As imagens das mulheres de quatro, mulheres que rosnam, que se lambem, que oferecem perigo, que lançam para alguém que está fora do quadro um olhar colérico, no limite da loucura, parecem afirmar que o corpo que tenta de todas as formas se esquecer de que é também animal, acaba por se tornar bestial.

Veja em nosso site, entrevista exclusiva da artista cedida à Dasartes, em 2011.

Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

Os contos cruéis de Paula Rego: Musée de l’Orangerie • Paris • 17/10/2018 a 14/1/2019

Os Maids, 1987. © Copyright Paula Rego Fotos: Cortesia Marlborough Fine Art.



LIVROS lançamentos

Domingos da criação: uma coleção poética do experimental em arte e educação Org: Frederico Morais | Jessica Gogan (Instituto Mesa) Editora Mesa - 304 p. - R$ 75,00 Organizado pelo Instituto MESA e premiado pelo ItaúRumos 2015-2016 o projeto de pesquisa e publicação feito em colaboração com Frederico Morais busca recuperar a historia dos eventos participativos organizado por ele no MAM RJ em 1971. A publicação é concebida como um livro-arquivo composto por diversas camadas: fotos dos Domingos (arquivo Frederico Morais: Beto Felício, Raul Pedreira e outros), artigos do Frederico e de outros em jornais da época, entrevistas com artistas e colaboradores dos eventos, dos cursos no MAM e na experimentação do momento (Amir Haddad, Anna Bella Geiger, Angel Vianna, Antonio Manuel, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Luiz Alphonsus), além de ensaios e outros materiais encontrados na pesquisa.

Julia Kater: O nome daquilo que se chama Editor: Paulo Miyada Museu Oscar Niemeyr - 75 p. - R$ 60,00

Com edição de Paulo Miyada, o conteúdo do livro refere-se ao trabalho da artista exibido no Museu Oscar Niemeyer, na mostra “Breu”, com fotografias, instalações, desenho, vídeos e textos que questionam e propõem pautas baseadas em sua pesquisa como artista e como pedagoga.

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COLUNA DO MEIO Fotos: Paulo Jabur

Quem e onde no meio da arte

Pedro Novaes, Caio Kronig, Talitha Rossi e Felipe Novaes

Marcos Prado e Talitha Rossi

Talitha Rossi Casa de Cultura Laura Alvim Rio de Janeiro Andréa Prado e Dudu Garcia

Carol Olinto e Ronaldo Simões

João de Orleans e Bragança e Cláudia Melli

Fotos: Paulo Jabur

Beto Silva e Isabel Sanson Portella

Maria Clara Rodrigues, Franklin Pedroso, Lúcia de Meira Lima e Ana Helena Cazzani

Thaís Hilal, Cassia Bomeny e Heloísa Amaral Peixoto

Hilal Sami Hilal Cassia Bomeny Galeria Rio de Janeiro Vanda Klabin e Hilal Sami Hilal

Ana Helena Cazzani e Bel Barcellos

Carlos Zílio e Adriano de Aquino

Carminha Zílio, Rubem Grilo, Adriana Maciel e Carlos Zílio


Fotos: Iara Morselli

Pedro Paulo Afonso e Jose Roberto Aguilar

Guilherme Isnard e Claudio Steiner

Aguilar Inauguração Galeria ZERØ São Paulo Gabriel Nehemy

Guto Lacaz

Claudio Tozzi

Denise Mattar

Hugo França Bolsa de Arte São Paulo Artur Lescher

Guilherme Isnard e José-Spaniol

Hugo França, Marga Pasquali e Egon-Kroeff

Carol Piccin, Max e Maria Petrucci

Fotos: Denise Andrade

Adriana Rede, Ana-Paula Rodrigues e Mariana Lorca

Luciana Bernardina, Hugo França, Myra Arnaud Babenco e Pedro Sedó


Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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