BALTHUS ERIKA VERZUTTI DJANIRA THEASTER GATES LEONILSON FERNAND LÉGER
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com DESIGNER Moiré Art
Capa: Balthus, Thérèze sonhando, 1938.
© Balthus 2019.
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Djanira, Mineiros de carvão, Santa Catarina, 1974. Foto: Jaime Acioli.
Contracapa: Djanira, Trabalhador de Cal, 1974. Foto: Jaime Acioli.
LEONILSON
12 ERIKA VERZUTTI
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FERNAND LÉGER
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Coluna do meio
BALTHUS
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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte DON’T TOUCH, IT’S ART! Curadores, desviem os olhos! Uma conta no Instagram chamada “Tocando a Arte” (@touchingtheart) está ganhando seguidores. Desde o seu lançamento por um grupo anônimo em Berlim, em 2017, o perfil captura pessoas tocando em obras de Picasso, Richter e até mesmo em , de Courbet, no Musée d’Orsay. Os usuários estão ficando cada vez mais audaciosos – e a conta provavelmente fará qualquer um que tenha trabalhado em um museu se contorcer.
PREVISÕES PARA JUDITH
GALERIA DE 42 ANOS FECHA EM NY
VOLTA FAIR CANCELADA
À venda
Por fraude
Dias antes da abertura
Um improvável achado histórico da arte pode bater recordes em leilão neste verão, quando uma pintura que, segundo os especialistas, é a segunda versão de , de Caravaggio irá à venda. A tela, descoberta em um sótão francês em 2014, tem uma estimativa de prévenda de € 100 a € 150 milhões (US$ 114 milhões a US$ 171 milhões).
A veterana negociante de arte Mary Boone, recentemente sentenciada a 30 meses de prisão por fraude fiscal, fechará sua galeria após 42 anos de funcionamento. Boone se descreveu como a “Martha Stewart do mundo da arte”. Boone deve se render às autoridades até 15 de maio e está agendada para cumprir sua sentença na Instituição Federal Correcional das mulheres em Danbury, Connecticut.
Cerca de 70 galerias de todo o mundo foram deixadas em suspenso pelo cancelamento abrupto, uma decisão tomada pela alta gerência da imobiliária Vornado. O alto escalão deu o telefonema depois de saber que o Pier 92 no West Side de Manhattan, estava estruturalmente insalubre e não podia mais ser usado. Até o momento não foram apresentados uma data ou local alternativo.
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NOVO ESPAÇO BIENAL DO SERTÃO Inscrições abertas até 30/6 Estão abertas as inscrições para a IV Bienal do Sertão de Artes Visuais, com objetivo de promover o desenvolvimento artístico e cultura na região do Sertão. Serão aceitas inscrições de artistas e grupos de todas as nacionalidades e regiões, com obras nas mais diversas formas de expressão artística, além de projetos de arte e curadoria. A Bienal acontecerá no mês de outubro no Museu do Piauí e na Galeria de Artes do Mercado Velho, na cidade de Teresina. Mais informações em dasartes.com.br.
Galeria Casa Com direção geral de Carlos Silva, um espaço dedicado às artes visuais, à arquitetura e ao design será inaugurado no CasaPark, em Brasília, com ocupação artística da Galeria Karla Osório. A cada mês, uma galeria de arte da cidade se instalará no espaço para realizar exposições e encontros com artistas e curadores. CasaPark - 1º PISO, CORREDOR DO ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA. Até 24/3/2019
GIRO NA CENA
Para o lazer “Um armário de remédios cheio de diamantes, uma banheira de hidromassagem em balanço com mosaicos incrustados de borboletas.” Eileen Kinsella , jornalista que visitou a suíte de Damien Hirst no Palms Casino Resorts, em Las Vegas. O quarto tem quase 3 mil m2 e está disponível por US$ 200 mil por fim de semana.
Pavilhão da Lituânia em Veneza Para a 58ª Bienal de Veneza, os artistas Rugile Barzdžiukaite, Vaiva Grainyte e Lina Lapelyte apresentam a ópera-performance Sun & Sea (Marina). O projeto será a primeira versão da peça em inglês, adaptada como performance duracional, e permite adentrar a praia, ou ainda melhor: assistir tudo de cima.
GIRO NA CENA
Museu remove escultura de Michael Jackson A escultura do polêmico astro pop foi removida do Museu Nacional do Futebol de Manchester. O museu disse que tomou a decisão de remover a estátua antes do lançamento do documentário sobre abuso infantil de Jackson e que o movimento é “parte de nossos novos planos para transformar o museu ao longo dos próximos meses para contar histórias relevantes sobre futebol.”
Múmia contrabandeada Escondidos dentro de um altofalante oco, oficiais do aeroporto do Cairo encontraram vários membros mumificados de dois corpos diferentes. As peças foram posteriormente identificadas como seis partes de duas múmias, juntamente com os restos de mumificação e resina, de acordo com Iman Abdel-Raouf, diretor geral dos portos arqueológicos. As autoridades egípcias não revelaram a identidade da pessoa responsável pela tentativa de contrabando.
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DA VINCI E RAFAEL PROMOVEM PAZ ENTRE ITÁLIA E FRANÇA Itália e França resolveram um impasse político de meses que ameaçava afogar o plano do Louvre, em Paris, de apresentar uma exposição ambiciosa de Leonardo da Vinci. Os ministros da Cultura da França e Itália se reuniram para discutir o empréstimo das telas renascentistas vindas da Itália e o encontro coincidiu com um degelo em amplas tensões políticas entre os dois países. Por sua vez, a França emprestará obras para a Itália para uma exposição dedicada a outro mestre da Renascença, Rafael, em 2020, programada para comemorar os 500 anos da morte do pintor.
VISTO POR AÍ Aos 96 anos, a escultora Beverly Pepper está somente agora recebendo crédito por ser a primeira a usar aço corten em suas obras, antes de Richard Serra. A artista começou a trabalhar com o material em 1964 e até hoje produz esculturas monumentais.
MABE + TOMIE Conciliando vigor e delicadeza, Oriente e Ocidente, pinturas de Manabu Mabe (1924-1997) e Tomie Ohtake (1913-2015) estarão na exposição , na galeria Cassia Bomeny, em Ipanema. Na exposição, são apresentadas 4 pinturas de Mabe, sendo três óleo sobre tela e um sobre madeira, e outros três óleo sobre tela de Tomie. As obras levantam questões referentes a cor, superfície, dimensionalidade, matéria e forma. “A importância dos artistas abstratos informalistas nipo-brasileiros há muito 10 AGENDA
são objeto de estudos e análises históricas. Suas caligrafias marcantes distinguem suas linguagens de outros grupos que adotaram a abstração informal no Brasil e no mundo, os afastando em especial do tachismo europeu”, ressalta a galerista Cassia Bomeny.
Manabu Mabe e Tomie Ohtake • Mabe + Tomie • Cassia Bomeny Galeria • Rio de Janeiro • 13/2 a 25/3/2019
Sem t´titulo, 1992.
LEONILSON DOR,
VERDADE,
POESIA.
AMOR,
DASARTES RELEMBRA A CRÍTICA DE GUILHERME BUENO, PUBLICADA POR OCASIÃO DA ÚLTIMA RETROSPECTIVA DE LEONILSON, EM SÃO PAULO, E COMPLEMENTA-A COM RESENHA DE RODRIGO QOHEN
POR GUILHERME BUENO "Não se assuste, se eu agora compreendo / ah! Isso ascende em mim / eu não consigo que seja de outro modo / eu preciso compreender, mesmo que ao preço da morte, compreender que estás aqui. Eu compreendo" (Rilke). Poucos artistas são tão emblemáticos na arte brasileira do século 20 quanto Leonilson. Poucos sintetizam, e ele talvez o faça melhor, o arco entre entusiasmo e drama vividos pela geração 80. E, sem poder testemunhálo, o artista abriria as portas para todo um território desbravado pela produção brasileira dos anos 1990 em diante.
Seu desaparecimento precoce, após ser vítima do vírus HIV em 1993, espelha o testemunho dado alguns anos antes pelo crítico Marcus Lontra, ao dizer daquela geração, mediante suas frustrações e dilemas, que ela, tal qual sua antecessora (aquela dos anos 1960), mesmo que ao seu modo, "também levou porrada": o "banho de água fria" de uma redemocratização capenga, o desmantelamento de um circuito de arte que se acreditava vigoroso, a dor da perda dos colegas de empreitada. Leonilson viveu tudo isso, respondendo com uma obra cuja força reside no inquietante entrelaçamento de uma sensibilidade aguda e as desventuras de uma vida marcada por amores, desencontros, força e fragilidade. Seus trabalhos são capazes
de, em um mesmo gesto - como no caso dos bordados -, evocar em sua escala íntima a delicadeza e o rasgo dilacerante de uma cicatriz. Há neles um grito visceral e um sussurro amoroso, tão bem descritos na mostra sob a imagem do diário, algo sentido a cada trabalho ali disposto, no qual pouco importa discernir ficção de autobiografia, pois a vida admite em seus fatos todo tipo de projeções; daí os rios que confluem ou os oceanos
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que nunca se encontram, solidão e afetividade entremeadas. Mas Leonilson dispunha de um talento único para materializar esses sentimentos em uma inteligência plástica rara. Nos primeiros anos, ele, assim como seus pares mais afins (Leda Catunda, Sergio Romagnolo e Ciro Cozzolino, também oriundos da FAAP, onde estudara entre 1977 e 1980), liberara a tela do chassis, incorporara uma fatura e uma paleta
Seus trabalhos são capazes de, em um mesmo gesto - como no caso dos bordados -, evocar em sua escala íntima a delicadeza e o rasgo dilacerante de uma cicatriz.
de um cromatismo "televisivo" - mesmo que nele com um teor menos "escandaloso" e mais tênue - e assimilara elementos e objetos do cotidiano, investindo-os, porém, não de ironia ou cinismo, mas, se permitida a expressão, de uma aura imantada de afetos. Assim a beleza emudecida das transparências fala de uma reconfiguração do espaço pictórico, ao revelar a parede e o chassis - uma superfície que se "literaliza" ao mesmo tempo em que precisa fazer ambígua sua opacidade -; o bordado confere uma materialidade corpórea à linha, ferindo a tela; as palavras entram como duplo das imagens e deflagradoras de uma relação narrativa entre as partes. Porém, tudo não existe como estrito exercício formal, mas, sobretudo, como cristalização de uma entrega: a imagem é uma fala a ultrapassar as próprias palavras.
Página anterior: O peão, 1987. Foto: Rubens Chiri e no No No, Yes, Please, 1991. Foto: Rômulo Fialdini. Acima: Europa, 1988. Foto: Edouard Fraipont © Projeto Leonilson.
À esquerda: Missing one friend, 1990. À direita: As ruas da cidade, 1988. Foto: Rubens Chiri © Projeto Leonilson.
Os fragmentos do corpo delineados, os corpos que se encontram e se refletem com seus traços simples, acabam por vezes a se avizinharem de chagas (estigmatas) e, por extensão, do jogo com metáforas religiosas. Nesse sentido, sua obra final, a instalação para a capela do Morumbi, com sua ausência enunciada pelas camisas e seu "Lázaro" pendurado falam da desaparição, da angústia de enfermarias e do gesto último de declaração de uma crença irrenunciável na arte e na vida. Quais caminhos sua obra legou para uma geração que lhe sucederia? Uma resposta imediata estaria na sua disponibilidade tanto em incorporar elementos materiais e franquear uma presença mais do que confessional, afirmativa. É, nesse último aspecto, pois, que ela revela sua extensão. Em uma das gravações em que registrava seus depoimentos, visando à edição de um livro (alguns trechos chegariam a aparecer no documentário a ele dedicado pela Rio Arte), Leonilson declara sentir em seus dias uma repressão aos homossexuais tão raivosa quanto aquela que nos anos 1940 vitimara os judeus. Ao observarmos seus trabalhos, sentimos que o artista deu voz a um grito oprimido. A “fala” de sua obra é mais do que um gesto corajoso de expor em público a si mesmo; é a sinceridade em exigir seu direito de amar, de “querer dizer”. E isso não só artistas, tampouco a arte, mas todos - a vida, em uma palavra, deve-lhe. 16 LEONILSON
Os rios por meu fluido entrego meu coração, 1990. Foto: Rômulo Fialdini.
São Sebastião de cabeça para baixo e rapaz pintando a ponte, 1993.
Acima: O que ele está fazendo, 1986. Foto: Jaime Acioli. À direita: at same time, 1990. Todas as fotos: © Projeto Leonilson.
LEONILSON: O TRANSBORDAMENTO ENIGMÁTICO DE SI MESMO
POR RODRIGO QOHEN Entender uma obra de José Leonilson (1957-1993) é observar seu todo. Como humano, como artista e entre os objetos que escoam de si. Olhar apenas para um fragmento do pintor é não fazer jus ao diálogo que ele estabelece consigo mesmo em múltiplas perspectivas, entre os símbolos que lhe orbitam e o que acontece com o mundo externo. É um artista de uma só época - Geração de 80 -, tão curta foi sua vida, mas que transborda para o futuro, até os dias de hoje. Uma das salas da exibição é dedicada às montanhas - com telas, desenhos e objetos tridimensionais. Ele, como um 20 PANORAMA
monte de boca aberta - ainda que seus desenhos de cabeças estivessem constantemente calados -, pronto para expelir com furor os (desa)bafos de uma digestão calorosa. Leonilson, mais do que montanha, era vulcão - nunca adormecido. O todo de seu trabalho é vivo. Pulsante, pungente e enigmático. Primeiro porque é energético como a erupção vulcânica que usa da quentura para nos transbordar figuras. A essas, recorre a chaves em símbolos, sempre revividos, que partem de dentro para fora. São os caminhos, em corredeiras, que percorrem a psique do homem, e refletem através de uma cabeça aberta - ou furada - pelas pinceladas. Veja que os caminhos partem de uma abertura
Abaixo: Grande círculo do qual não podemos escapar, 1988 e Sem título, 1986 Foto: Rômulo Fialdini.
no crânio e não nos dentes, que são lineares e também labirínticos. São a corda do Teseu, que não permite que se perca. Estonteiam-nos, como público, com o uso de algumas palavras pontuais. Como se fossem estalos incandescentes, ou avisos de perigo a queimaduras. Conforme escoa, acumula resíduos a partir do movimento na base. Como se os pés cobertos por sal fossem afogados por algum oceano seco. Dá um sabor áspero à garganta, pois há sempre algo entalado. Como quem não poderia revelar - e, se dependesse dele, nunca o faria a homossexualidade, com receio do mal entendimento de entes próximo. A pungência é da dor que vem do âmago, de questões de um mundo íntimo. Como a mensagem aos bloodsuckers quando descobriu que tinha AIDS -, denunciados como sultões (sultan) de garotos ingênuos (os rapases/a poesia). Padres perversos, que tentam roubar a alma e o talento das flores a desabrochar. , traz grafado "pedra peixe homem" no centro do círculo, como se fosse esse animal confinado no aquário, um escorpião cercado por chamas, cuja única saída é o veneno dentro de si mesmo. O bestiário é amansado pela consciência. Ele usa dos bichos como
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Acima: Os Castelos do pensamento, 1988. Foto: Rubens Chiri.
Estômago, nervos, coragem, c. 1991. Foto: Rubens Chiri.
pets, ou criaturas que vemos no zoológico, vivendo uma proximidade distante. Como bichos-do-mato confinados na cidade, respirando fumaça, mas sonhando com a vegetação rara. O enigma - aquecido em magma - vem do vórtex dos ícones. Mesmo quando recontava histórias, lembra uma ingenuidade áspera e onírica, como em Lewis Carrol, Antoine Saint-Exupéry, ou nas heroicas medievais, Leonilson o fez a partir de sua perspectiva individual. A maioria das insígnias retorna, e por isso a importância de observar o todo. Para encontrar a linha, é preciso mergulhar junto e se abrir a percepção do entorno. É andar duas vezes pelo espaço e revisitar.
Guilherme Bueno é historiador e crítico de arte. Professor do Instituto de Artes da UERJ e da Escola de Artes do Parque Lage. Foi editor-chefe da Dasartes e diretor do MAC de Niterói.
Rodrigo Qohen é poeta, escritor, pesquisador e jornalista formado pela F. Cásper Líbero. Escreveu seis livros que mesclam poemas e artes visuais publicados pelo coletivo independente Baboon.
Leonilson: arquivo e memória vivos • Centro Cultural FIESP • 19/2/2019 a 19/5/2019
ERIKA
Cisne com pincel, 2003-2012. Foto: Š Jason Mandella.
VERZUTTI
A EXPOSIÇÃO MONOGRÁFICA QUE O CENTRE POMPIDOU DEDICA À ARTISTA BRASILEIRA ERIKA VERZUTTI, A PRIMEIRA EM GRANDE ESCALA NA EUROPA, REVELA UMA OBRA SENSUAL, REPLETA DE EVOCAÇÕES AO MUNDO DOS ANIMAIS E VEGETAIS
ESCULTURA COMO PROCESSO VITAL POR CHRISTINE MACEL
Em uma época em que muitos artistas estão interessados em integrar o vivo no próprio trabalho, a abraçar o biológico em um fascínio pelas inovações tecnológicas que mudam o ser humano e sua autopercepção, Erika Verzutti contempla-o como um processo vital em si mesmo, abrangendo os princípios de geração e indisciplina. Ela agrupa assim seus trabalhos em várias “famílias”, evocando de bom grado suas esculturas como seres interconectados, primeiro em sua imaginação, depois em sua materialidade, porque muitas vezes um gerou o outro. Seu primeiro papel machê de 2014, depois do uso de cerâmica e bronze por dez anos, com o título (2014), deu origem a uma verdadeira linhagem. O ovo, tema de muitas de esculturas, também é uma metáfora para um trabalho que quer ser “fértil”: “Produzir um trabalho é como quebrar um ovo”. No entanto, essa geração interna ao trabalho mantém uma aparência insubordinada. Porque ela segue uma lógica muito pessoal, cheia de meandros e surpresas, pois Erika Verzutti abraça o mundo em 360 graus, sem estabelecer hierarquia entre o que chama sua atenção, do mundo real para a história da arte passando pela cultura GAFA (Google/ Apple/ Facebook/ Amazon). Sua abordagem contém tanta determinação, vontade, força sensual e venusiana, como dúvidas, falhas e caos, que alimentam suas esculturas. Ela finalmente precisou de certo prumo para desenvolver, na década de 2000, uma obra com uma dimensão humorística, até mesmo irônica, de aparência não acabada, quando dominava na arte brasileira uma arte descendente do modernismo neoconcreto, onde a abstração disputava com o conceitual. É, portanto, na contramão dessa história que ela concedeu alguns retornos e surgiu no cenário artístico, após alguns anos de tentativa e erro. 28 DESTAQUE
Avô, 2014. Foto: © Thomas Strub.
Abaixo: Pavão, 2014. Foto: © Thomas Strub. À direita: Neo Rex, 2008. Foto: © Eduardo Ortega.
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Eu acho que um artista deveria nomear as coisas e depois calar a boca.
Em 2003, nasceu a , em homenagem a Tarsila do Amaral, a artista surrealista brasileira a partir de quem empresta muitas vezes o tema de sua pintura (1929), uma forma fálica curva que evoca para ela tanto um cisne quanto um pepino ou um dinossauro. (2003-2012), um bronze em forma curvada como um longo pescoço com as cerdas de uma escova em sua extremidade, tem imediatamente várias características da prática de Verzutti. O título, “Cisne com pincel”, enfatiza a incorporação do mundo animal no trabalho. Revela a importância da dimensão da linguagem na escultura de Verzutti, que às vezes adquire dimensões surpreendentes, suscitando associações mentais no espectador. “Eu gosto de títulos”, disse Verzutti, “nunca paro com isso. Eu acho que um artista deveria nomear as coisas e depois calar a boca.” A forma do “cisne” faz seu retorno várias vezes, até tomar um tamanho humano, em , onde a 2014, com o árvore tropical da tela de Tarsila está no topo da floresta. Essa escultura em fibra de vidro e papel machê repentinamente se torna um palco para um empoleirado em saltos altos, que, em vez do pincel, vem estender seu braço ao “bico” do cisne enquanto declama um monólogo escrito por Verzutti. Verzutti trabalhou em casa por vários anos, em sua cozinha, antes de sair para um estúdio um pouco maior, prestando atenção constante aos vários estágios do
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Acima: Porco, 2017. Foto: © Eduardo Ortega. À esquerda: Estrela sem maquiagem, 2015. Foto: © Michael Brzezinski
processo de criação de suas esculturas. Reivindicando o quando muitos artistas se cercam de assistentes e habilidades, Verzutti primeiro trabalha suas esculturas com um barro marrom (que ela ama modelar) em um diálogo que tem tanto a ver com a sua interioridade e suas tendências psicológicas do momento como com a própria arte. Ela também usa vários objetos, muitas vezes orgânicos, que naturalmente povoam sua cozinha, as frutas e os legumes, para fazer moldes. O tema da obra nunca é o primeiro passo no processo de Verzutti, mas a “conversa”, em suas próprias palavras, que ela manterá com sua escultura no processo de sua realização. Assim, vários problemas comuns cruzam seus trabalhos, alguns revelando-os mais do que outros. , adições ou subtrações, modelagem e moldagem constituem as primeiras fases. Essas esculturas são então feitas no bronze ou cimento antes de adicionar relevos de pintura até que, a partir de 2014, ela se volta para o papel machê, o que lhe confere a autonomia de todo o processo, embora ela tenha sempre controlado todos os passos. Essa prática “tradicional”, assim como suas muitas referências inesperadas ao surrealismo, de Tarsila do Amaral a Maria Martins, reivindica certa liberação das injunções conceituais da época ao mesmo tempo que propõe um verdadeiro desafio de reinvenção da escultura em relação as grandes figuras que ela olha – e quem olha – e que não são necessariamente aquelas que fazem referência ao internacional. E é precisamente essa atitude rebelde, a rejeição aos ditames, a indiferença às oposições binárias, a surpreendente segurança, até a impertinência, reminiscência de Franz West ou Mike Kelley, que lhe permitem, graças a uma inventividade e um poder sugestivo únicos, criar esculturas sensuais e estranhas, engraçadas e cintilantes, violentas e frágeis. 33
Beijo, 2011. Foto: © Eduardo Ortega.
Graças à adição de beterraba e aipo, (2011) evoca claramente as criaturas híbridas e imaginárias em bronze de uma Maria Martins, vindas de uma mistura entre o humano e o vegetal, referindo-se ao gênero feminino e masculino em uma exuberância erótica e vitalista que seduziu André Breton e Marcel Duchamp. Mas faz esquecer suas referências vegetais para se transformar em um cara a cara entre duas criaturas fálicas perturbando os gêneros, cujos bicos alongados se enfrentam sem se tocarem. A aparente espontaneidade e a irreverência das esculturas de Verzutti, no entanto, não devem eliminar outras energias que inervam seu trabalho, pois seu processo vital é às vezes tingido de certa melancolia, quando não se confronta diretamente com a ideia de luto. A série de cemitérios, incluindo a exposição , em 2008, veio quando a artista temia que seu gato morresse. Ao 34 ERIKA VERZUTTI
mesmo tempo, essas esculturas alinham as sobras de obras que não deveriam servir para coisa alguma. Seu primeiro cemitério, (2008), também é composto de rejeitos, esculturas malsucedidas colocadas em pedras. O cadáver de um cão de plasticina fica ao lado de uma caixa de mármore e de pontas de cerâmica pintadas, à maneira de Peter Fischli e David Weiss. (2014) também inclui sobras e objetos encontrados, enquanto (2013) reproduz uma espécie de floresta mineral congelada em bronze. A escolha de material mais resistente talvez não seja indiferente ao desejo vitalista de Verzutti, que parece se opor a todo o custo ao declínio, para evocar a resistência das camadas de pedras geológicas que retornam aos tempos pré-históricos. O cemitério de animais realizado para a Bienal Veneza em 2017, no Giardino delle Vergine, povoado com várias esculturas como (2017) ou
(2017), resistiu valentemente por vários meses à vegetação que o invadiu pouco a pouco. Nos últimos anos, Erika Verzutti fez uma reviravolta em seu trabalho, com duas famílias menos desenfreadas e mais sóbrias: os e . Com a exposição , realizada em São Paulo em 2011, ela diz sentir a oportunidade de se reconectar com uma história da arte modernista na América Latina. De fato, essa exposição mais abstrata encontra (2011) um inegável sucesso. marca um ponto de virada. A referência ao trabalho de Sérgio de Camargo, isto é, a uma tradição mais
geométrica e ainda não racionalista, revela uma atenção tanto à ordem das coisas quanto à insanidade do ordenamento. que Erika É com a série Verzutti se confronta mais diretamente com a tradição modernista brasileira, e especialmente com a cidade que simboliza o desenvolvimento do Brasil nos anos 1960, com os edifícios de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. A construção de Brasília, que teve início ao mesmo tempo que a exposição de arte concreta realizada em São Paulo em 1956, abre caminho para uma cidade nova, utópica, funcionalista e autoritária. Para (2010), ela moldou jaqueiras, grandes frutas que
Mineral, 2013. Foto: © Eduardo Ortega.
associa ao reino mineral, ao operar cortes geométricos bem executados, colocando em seguida sobre o bronze planos de tinta acrílica branca ou azul. “O fruto de jaca é um bloco, uma espécie de monólito da natureza. É um volume apenas esperando para ser esculpido. Quando eu iniciei sobre sua carne pela primeira vez, tive a impressão de atacar uma fera selvagem. E eu achei que esse corte limpo e moderno é uma imagem muito brasileira! Isso tem relação com o Brasil, com a construção de cidades, entendida como uma abordagem pioneira, porque construímos no coração da natureza.”
A escultura de Erika Verzutti nunca deixa de reivindicar indisciplina mesmo na ordem, a sensualidade e a liberdade, e, por fim, a energia do próprio processo vital.
Christine Macel é curadora, diretora da Bienal de Veneza 2017 e curadora-chefe do Centre Pompidou.
Erika Verzutti • Centre Pompidou • Paris • 20/2 a 15/4/2019
Leaves and Shell, 1927. © ADAGP, Paris and DACS, London 2018.
FERNAND
LÉGER
LÉGER FICOU FASCINADO COM A VIBRAÇÃO DA VIDA MODERNA. SUAS PINTURAS, MURAIS, FILMES E TECIDOS FORAM INFUNDIDOS COM A AGITAÇÃO E O RITMO DA METRÓPOLE. SUA PRIMEIRA GRANDE EXPOSIÇÃO NO REINO UNIDO CELEBRA O DESEJO DO ARTISTA DE FAZER DA ARTE PARTE DA VIDA COTIDIANA
POR DARREN PIH E LAURA BRUNI Fernand Léger (1881-1955) fazia parte de um célebre círculo de artistas e intelectuais que trabalhavam em Paris no início do século 20. Colaborativamente abraçou uma gama diversificada de disciplinas artísticas, incluindo pintura, desenho, arquitetura, murais de grande escala, filmes experimentais, livros impressos e têxteis. Talvez mais do que qualquer outro artista de sua geração, Léger buscou novas maneiras de tornar a arte moderna acessível e significativa para todos na sociedade. Nascido na Normandia rural, ele foi treinado como arquiteto e se mudou para Paris. Começou a pintar logo após 1913 e desenvolveu um estilo visual único. Foi influenciado desde cedo pelo pós-impressionista francês Paul Cézanne e pela fragmentação visual encontrada no cubismo, refletindo a energia dinâmica da metrópole parisiense no auge da era da máquina. Cartazes e letreiros de neon se tornaram predominantes, suas pinturas fizeram declarações ousadas e otimistas sobre a experiência da vida moderna. Léger foi engajado com os eventos políticos essenciais do seu tempo. Criou pinturas refletindo sua experiência de um guerreiro moderno como soldado durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1937, ele fez murais fotográficos funcionando como propaganda socialista para a Frente Popular na França. Seus trabalhos posteriores incluem pinturas que promoviam o esforço coletivo; os temas incluiam pessoas buscando lazer sob o céu radiante. Ao longo de toda sua vida, defendeu o valor da arte para toda a sociedade, legado que persiste até hoje.
AINDA VIVO E PAISAGENS MODERNAS Léger acreditava que a beleza podia ser encontrada no mundo moderno cotidiano, de objetos produzidos em massa, projetados para o consumo público. Em 1924, declarou: "uma obra de arte deve ser comparada a um objeto manufaturado". Ele desenvolveu um estilo de pintura que refletia essa atitude, preenchendo seus trabalhos com a "Era da máquina", com elementos como discos zumbindo, máquinas, meios de transporte e objetos padronizados. (1921-22) e Pinturas como (1926) demonstram sua união da estética moderna com um assunto acessível a todos. Além de retornar a representações legíveis da vida urbana, desde o início da década de 1920, Léger também reivindicava a figura, a natureza morta e a paisagem como tema por direito próprio. Em última análise, as formas fragmentadas de suas composições anteriores dariam lugar a planos de cores flutuantes. A domesticação da mecânica por Léger apresenta um ideal utópico do futuro, no qual a vida moderna e a inovação industrial coexistem harmoniosamente. A EXPERIÊNCIA DA VIDA MODERNA Em 1900, Léger se mudou para Paris para continuar seu treinamento arquitetônico. Chegou em uma época em que a cidade passava por uma rápida modernização e ficou fascinado com a maneira como a maquinaria e as novas formas de mídia estavam transformando o ritmo em que a vida era vivida. Para ele, essa intensa experiência da cidade exigiu uma mudança fundamental na 40 FLASHBACK
À esquerda: Elementos mecânicos, 1926. Acima: Ainda vivo com uma caneca de cerveja, 1921-22.
À esquerda: O Balé mecânico (Still) 1923-24. © ADAGP, Paris and DACS, London 2018. Foto: © Centre Pompidou. Acima: Chaves (Composição), 1928.
expressão artística, declarando que "o homem moderno registra cem vezes mais impressões sensoriais do que um artista do século 18". Isso foi expresso na (1914), que apresenta uma paisagem usando uma linguagem de contrastes dinâmicos entre superfícies, tons e formas. Durante a Primeira Guerra Mundial, Léger serviu no exército francês e ficou fascinado com a estética da máquina compartilhada pelo movimento futurista italiano. Pintado durante um período de licença, (1917) apresenta uma cena de soldados com figuras compostas de elementos individuais, como peças de máquinas. Inspirado pelos cartazes e letreiros de néon de Paris, Léger ficou igualmente fascinado pelo cinema antigo. Assim como pinturas como o (1924), o filme forneceu uma nova maneira de expressar o dinamismo visual e o 42 FERNAND LÉGER
À direita: Três mulheres em fundo vermelho, 1927. Foto: Cyrille Cauvet. Acima: Menina jovem, segurando uma flor, 1954. © ADAGP, Paris and DACS, London 2018.
movimento. Léger estava no set quando Abel Gance dirigia seu clássico filme (1923), levando o artista a fazer uma série de pinturas sobre o tema. LÉGER E FILME O fascínio de Léger pelo cinema começou em 1916, quando estava de licença da frente de guerra, e, acompanhado pelo amigo Guillaume Apollinaire, descobriu Charlie Chaplin. Tal como acontece com outros artistas e poetas de sua geração, Léger considerou o filme como um meio de massa verdadeiramente acessível, oferecendo um potencial para representação visual livre de narrativa. , concluído em 1924 e feito em colaboração com Dudley Murphy, Man Ray e música de George Antheil, compartilha muitos aspectos com as pinturas
O Acrobata e sua parceira, 1948. © ADAGP, Paris and DACS, London 2018.
de Léger do período, em que o elemento mecânico é "o personagem principal, o papel principal". Um filme sem roteiro baseado em uma série de imagens, onde partes de corpos e fragmentos de objetos comuns são filmados em close e renderizados como formas abstratas. O objetivo de Léger era "criar aventura na tela, como é criada todos os dias na pintura e na poesia". OBJETOS POÉTICOS No final da década de 1920, Léger se afastou das pinturas que celebravam objetos feitos à máquina e da vida urbana moderna e passou a incorporar formas naturais, como conchas, folhas e raízes em seu trabalho. Esse desenvolvimento ocorreu quase em conjunto com seu reconhecimento do potencial da câmera como outra maneira de olhar para a pintura. A obra (1931-36), em parceria com Charlotte Perriand e Pierre Jeanneret, reflete o interesse comum de Léger em objetos e formas naturais. Os objetos foram encontrados por Léger, Perriand e Pierre Jeanneret, primo e colaborador de Le Corbusier, enquanto exploravam a floresta de Fontainebleau, perto de Paris, ou a costa da Normandia. Sua descoberta de objetos talvez seja uma reminiscência da prática surrealista de buscar o fantástico na vida cotidiana, através de uma abertura aos processos fortuitos.
Fernand Léger e Charlotte Perriand, Felicidade essencial, novos prazeres, 1937–2011.
A influência da fotografia na pintura de Léger pode ser vista em (1927), que apresenta uma série de objetos naturais isolados no espaço, como se fossem vistos sob um microscópio. Para ele, isso forneceu "uma nova mentalidade para ver claramente [e] entender mecanismos, funções, motores... percebemos que esses detalhes, esses fragmentos, se vistos isoladamente, têm uma vida completa e particular". UMA ARTE IMEDIATA Muitas pinturas posteriores a 1930 retratam imagens ideais do homem e da sociabilidade, expressando uma visão otimista da sociedade voltada para o e (1930) futuro. Trabalhos como apresentam uma abordagem clássica da figuração com formas abstratas biomórficas, ao lado de elementos arquitetônicos e decorativos à direita de cada composição. Era um estilo moderno de pintura com uma clareza gráfica às vezes citada como precursora da pop art dos anos 1960. Léger "queria proclamar um retorno à simplicidade por meio de uma arte imediata, sem qualquer sutileza". Em última análise, Léger chegou a considerar a arte abstrata inacessível e, em 1950, afirmou que "o tempo da arte frequentemente criticada, sem sujeito real (arte pela arte) e a arte sem objeto (arte abstrata) parece ter acabado". FERNAND LÉGER 47
O GRANDE SUJEITO Léger se juntou ao Partido Comunista em 1945 e suas pinturas resumem suas convicções políticas, artísticas e abordagem colaborativa. Muitas obras mostram também a importante influência da artista Nadia Khodasevich Léger, que conheceu na década de 1920 e com quem se casou em 1952. Nesse período posterior de sua carreira, Léger procurou instilar uma educação estética como meio de melhorar a vida cotidiana. Muitas obras retratam acrobatas ou artistas de circo que celebram o empreendimento coletivo como um ideal. No estudo para
À direita: Os construtores: a equipe em repouso, 1950. © ADAGP, Paris and DACS, London 2018. Foto: Antonia Reeve.
(1950), trabalhadores são justapostos com formas biomórficas naturais, sugerindo uma união duradoura da natureza com o mundo em constante mudança da tecnologia e da indústria.
Darren Pih é formado pela Universidade de Manchester e é curador do Tate Liverpool desde 2005.
Laura Bruni é assistente de curadoria do Tate Liverpool com mestrado em curadoria pela Universidade de Londres.
Fernand Léger • Novos tempos, novos prazeres • Tate Liverpool • Reino Unido • 23/11/2018 a 17/3/2019 Instituto Valenciano de Arte Moderna • Espanha • 2/5 a 15/9/2019
BALTHUS
O gato no espelho III, 1989-1994.
O MUSEU THYSSEN-BORNEMISZA APRESENTA UMA EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA DO ARTISTA FRANCÊS BALTHASAR KLOSSOWSKI DE ROLA (1908-2001), CONHECIDO COMO BALTHUS. CONSIDERADO UM DOS GRANDES MESTRES DA ARTE DO SÉCULO 20, BALTHUS É, SEM DÚVIDA, TAMBÉM UM DOS PINTORES MAIS SINGULARES DO SEU TEMPO. SEU TRABALHO, DIVERSO E AMBÍGUO E TÃO ADMIRADO QUANTO REJEITADO, SEGUIU UM CAMINHO VIRTUALMENTE CONTRÁRIO AO DESENVOLVIMENTO DA VANGUARDA
“VENCER O TEMPO. NÃO SERIA TALVEZ ESTA A MELHOR DEFINIÇÃO DE ARTE?” ASPECTOS RELACIONADOS AO TEMPO NA OBRA DE BALTHUS
POR RAPHAËL BOUVIER A razão para o tema da criança desempenha um papel importante no trabalho precoce de Balthus, desde a sua criação em sua obra até às pinturas dos e anos 1920, como . Mais tarde, a encarnação da infância como um tempo ideal evoluiu para se tornar a fonte de inspiração e o de seu trabalho. Assim, a partir de suas experiências infantis, o artista considerou “a busca pela infância, seu encanto e seus segredos” como parte essencial de seu trabalho artístico. O eco visual da própria infância de Balthus é particularmente evidente em seu mundo de plástico, como evidenciado pelo uso de temas de livros infantis, especialmente , de Heinrich Hoffmann, e , de Lewis Carroll. “Lewis Carroll com sua Alice foi quem me permitiu capturar o encanto da infância”, explicou o artista; e, em relação a , ele lembrou: “Eu amei essa história desde os 20 anos; na minha pintura há muitas reminiscências dela”. Com base na memória de infância e o exemplo desses livros, muitas das figuras de Balthus flutuam entre a inocência ingênua e o horror abissal. No repertório de imagens de Balthus, há uma tendência marcante para repetir e variar certos temas, que dão a impressão de ser . Desde as figuras infantis de seus primeiros trabalhos, passando pelas representações posteriores de meninas, até séries de pinturas como e , são grupos de trabalhos que buscam o princípio artístico de repetição como outro aspecto temporal que está relacionado ao conceito de tédio. Balthus, cuja própria vida foi marcada pela repetição em virtude dos rituais diários de que tanto gostava, reconheceu precisamente na repetição uma maneira de entrar no segredo da pintura: “Repita o tema significa [...] fazer que minha insatisfação seja um apoio, um lugar de passagem, um trampolim para alcançar o segredo da obra”. O rei dos gatos, 1935. Todas as fotos: Museo Nacional Thyssen-
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ENTRE SENSUALIDADE, DIGNIDADE E CHARME FIGURAS FEMININAS EM BALTHUS
POR MICHIKO KONO Embora o trabalho pictórico de Balthus varie de paisagens e cenas de rua em Paris a retratos e naturezas-mortas, ele é frequentemente associado principalmente com suas representações de garotas jovens, que constantemente aparecem em suas pinturas dormindo ou lendo, contemplando o espelho, nuas, sonhando acordadas ou mergulhadas no tédio. Sozinhas ou cercadas por outros protagonistas, a atitude de autoabsorção e distanciamento – estados que Balthus 54 CAPA
atribuía sobretudo às meninas em seu estágio adolescente – conferem a essas representações um caráter enigmático absolutamente peculiar. O artista argumentou sua predileção pelo tema com estas palavras: “Porque se tratava de abordar o mistério da infância, seu langor de limites imprecisos. O que eu queria pintar era o segredo da alma e a tensão escura e ao mesmo tempo luminosa de um casulo ainda não totalmente aberto. A passagem, você poderia dizer, sim, isto é a passagem. Esse momento indeciso e obscuro em que a inocência é total e imediatamente dará lugar a outra idade mais determinada, mais social”. Nesse breve período de transição entre a infância e a idade adulta, Balthus captou um instante marcado especialmente por sua natureza fugaz e efêmera. As representações que Balthus fez das meninas adolescentes abrigam uma tensão característica que oscila entre a inocência e erotismo.
O que eu queria pintar era o segredo da alma e a tensão escura e ao mesmo tempo luminosa de um casulo ainda não totalmente aberto.
À esquerda: Os irmãos Blanchard, 1937. Abaixo: O sonho II, 1956-1957.
Thérèse, 1938.
Balthus sempre negou o caráter erótico de sua pintura. “Foi dito que minhas meninas despidas são eróticas. Eu nunca pintei com essa intenção, isso as teria feito anedóticas. Supérfluas. Porque eu queria exatamente o oposto, cercá-las de uma áurea de silêncio e profundidade, criar uma vertigem em torno delas. As poses não seriam provocativas, mas as típicas ‘posturas despreocupadas da infância’. Por outro lado, recebi a necessidade da composição das minhas pinturas. As pessoas atribuem todos os tipos de possíveis interpretações a elas. Isso é assunto deles, não meu”. Há apenas uma obra para a qual Balthus concedeu algo mais do que erotismo: “Nunca criei nada pornográfico. Exceto, ”. Nunca um de talvez, em seus modelos, nem em geral qualquer mulher, jamais acusou Balthus por seu comportamento. Ele mesmo enfatizou: “Minha pequena modelo é absolutamente intocável para mim”. Muitas das mulheres que quando mais jovens posaram para Balthus, se manifestaram em sua vida adulta sobre essa experiência e sobre sua relação com o artista. Uma delas é Michela Terreri, que foi uma de suas modelos favoritas entre 1970 e 1976, quando Balthus dirigiu a Academia Francesa em Roma na Villa Medici. Michelina, como a chamavam, filha de uma funcionária de Villa Medici, lembra-se de sessões nas quais a única troca de palavras consistia nas instruções do artista: “Eu não era mais 56 BALTHUS
uma pessoa, era um objeto de desenho. Eu nem existia; eu era como um vaso”. Mais tarde, quando Balthus se estabeleceu em Rossinière, Anna Wahli posou para ele quase todas as tardes de quarta-feira, dos oito aos dezesseis anos. Seu pai era médico e Balthus, um de seus pacientes. Naquela época, devido à sua idade avançada, o artista tinha diminuído a visão, então abandonou o desenho. Em vez disso, usava sua câmera Polaroid para tirar 58 CAPA
Eu não era mais uma pessoa, era um objeto de desenho. Eu nem existia; eu era como um vaso.
As três irmãs, 1955.
fotos que depois serviram de base para suas pinturas, como por exemplo em , de 1989 a 1994. As sessões foram realizadas com o consentimento dos pais de Michelina e Anna. AS VOLTAS COM THÉRÈSE AS FOTOS DE MENINAS BALTHUS POR BEATE SÖNTGEN
DE
O tema não poderia ser mais convencional: as representações de figuras femininas em salas privadas, sonhando acordadas ou lendo, com poses lascivas ou brincando (predominantemente com gatos ou cachorros), povoam o mundo da pintura desde o final do século 18 até o começo do século 20. Tampouco poderia ser mais provocadora a maneira pela qual Balthus comprometeu a composição do
tema; o rei dos gatos, como ele se chamava, às vezes representava mulheres jovens, mas quase sempre meninas no limiar da adolescência, que é o que, desde o início, é o escândalo de suas cenas de interior. A cena pictórica se manifesta na pose aparentemente preguiçosa, e ainda assim tão desconfortável, da menina e seu olhar aborrecido e indolente que exala tensão nervosa, apesar de sua imobilidade prolongada, tanto quanto a indiferença a ser observada. E precisamente essa proximidade visual com a qual Thérèse é colocada na composição relega para um segundo plano o ato pictórico, a cena que se desenvolve no estúdio. As partes nuas de corpo (braços, pernas e rosto)
60 BALTHUS
brilham iluminados pela luz que atinge a partir do canto superior esquerdo, e faz com que o olhar gire em torno do tronco, que mantém as cores suaves. O triângulo preto que é gerado entre as pernas abertas e curvadas se assemelha a um símbolo translocado do sexo oculto, que por sua vez é acentuado pela posição da mão, que enfeita o apoio de braço ao se encostar como uma donzela faria. Mesmo quando a menina não olha para nós, seu olhar deixa a pintura para nós, desviando a atenção das pernas abertas iluminadas. A atenção é atraída de volta para elas, seguindo o braço direito, igualmente iluminado; e traçando o braço esquerdo retorna para o rosto voltado para nós. Com
Acima : O toalete de Cathy, 1933. À esquerda: O quarto turco, 1965-1966.
uma precisão quase matemática, que Balthus tira do seu venerado Piero della Francesca (uma veneração devida justamente a essa precisão), o caráter fortuito da pose perturbadora se torna uma composição convincente. Ambos os recursos que atingem especificamente a instância do observador e guiam o olho em um movimento circular vêm da pintura francesa do século 19 e início do século 20, que também afetou a percepção do corpo feminino como algo escandaloso. A guia do observador ao longo de uma figura feminina com uma encenação provocativa já era utilizada com plena consciência de seus efeitos por Edouard Manet em sua , de 1863. Balthus tem sido persistentemente relacionado ao surrealismo, cujos representantes o consideravam um irmão espiritual. O próprio Balthus manteve distância. Certamente, a rebelião contra a moralidade burguesa, o interesse pela
A rua, 1933.
sexualidade e pelos impulsos e a promoção de outra forma mais aberta de realismo, em um confronto marcado com a abstração, eram interesses compartilhados. Mas Balthus não gostava de procedimentos surrealistas como o automatismo e a associação, bem como a noção de coletividade predominante naquele grupo artístico. Com um individualismo feroz e impulsionado por um narcisismo desenfreado, Balthus desempenhou um papel de um dândi ansioso por uma distinção tanto na vida boêmia como na aristocrática. “Eu faço um surrealismo de Courbet”, disse Balthus, e nenhuma outra declaração poderia ser mais reveladora de sua oposição ao surrealismo e a qualquer outra tendência organizada da arte moderna. Enquanto os surrealistas permaneceram em sua maioria
intelectuais antipintura, Balthus nos ensinou como ser um anti-intelectual no sentido que Courbet era: não um realista, mas um pintor de uma realidade pessoal e estranha.
Raphaël Bouvier é curador da Fundação Beyeler desde 2012.
Michiko Kono é curadora associada da Fundação Beyeler.
Balthus • Museo Nacional Thyssen-Bornemisza • Madrid • 19/2 a 26/5/2019
THEASTER GATES POR ELE MESMO
Foto: Mark Peckmezian. 64 REFLEXO
Abrangendo escultura, pintura, cerâmica, vídeo, performance e música, a prática do artista norte-americano Theaster Gates deriva e sustenta ambiciosos projetos de renovação urbana, criando polos e arquivos para a cultura negra. Em uma única década, ele incubou novos modelos atraentes para a construção de legados, transformação social e arte. Para sua primeira exposição individual na França, , no Palais de Tokyo, Gates iniciou um projeto inteiramente novo que explora histórias sociais de migração e relações inter-raciais usando um episódio específico na história americana para abordar questões maiores de subjugação negra e a dominação sexual imperial e mistura racial que resultou dela. O ponto de partida da exposição é a história da ilha de Málaga, no Estado do Maine, EUA: em 1912, o governador de Maine expulsou de Málaga a população mais pobre, uma comunidade mista de cerca de 45 pessoas. Esses infelizes indivíduos foram forçados a se dispersar, perambular ou ser internados. O nome “Málaga” se tornou um insulto, um estigma. Desde então, a ilha permaneceu desabitada. A natureza recuperou seus direitos lá. O termo técnico “Amálgama” – quase um anagrama de Málaga – também foi usado no passado para denotar mistura racial, étnica e religiosa. Para Gates, adquiriu um significado ainda mais carregado, impulsionando sua prática para novas explorações formais e conceituais.
“"Nada é puro no final… Um mar de madeira, Uma ilha de debate. Uma exposição pode começar a mudar as verdades negativas da história de um lugar?"
ALTAR, 2019.
“A cada dia, o espírito é quebrado, um beiral é retirado do arco de segurança. Logo, há danos às coisas mais sagradas e não há espaço para ocupação do corpo ou do espírito. Uma casa abandonada de vergonha que abrigou aqueles que escolheram o amor acima da raça. O altar é um cemitério de amor esmagado em uma época em que homens brancos, tão medrosos em seus terríveis complexos sociais, linchavam, queimavam e castravam tantos homens negros. Para cada pedaço de ardósia, há uma história de resistência, resiliência, renovação e igualmente histórias de estupro, abate e subjugação. Eu quero construir uma casa de amor e lembrar que luz ou escuridão e as rapsódias da negritude são fundações complexas que geraram justiça e beleza, no entanto. Um altar, não de raça, mas da verdade desse momento misto. Minha avó construiu uma casa onde todos foram acolhidos e amados. Eu faço este altar para os não binários, metades e quartos e oitavos que são igualmente inteiros. Um altar de permissão para ser corajoso em nossa existência e amar quem nós escolhemos.”
THEASTER GATES 67
INSTITUTO DE MODERNIDADE E DEPARTAMENTO DE TURISMO DA ILHA 2019
68 REFLEXO REFLEXO 68
“A ilha era um amálgama em si, repleta de árvores de outros lugares, microclimas e pessoas que representavam o não representável. A ilha, nesse sentido, pode ter sido pós-moderna no final do século 19. Como uma amálgama, este trabalho constitui meu desejo de misturar modos de fazer e deslizar entre práticas artísticas difusas, tradições arquitetônicas e criação de história. Ao fazer isso, eu quero permissão (de mim mesmo) para saltar o meio e os regimes e a subjetividade pessoal, fazendo linhagens dentro da minha prática. Dessa forma, o objeto amalgamado possui tanto potencial e convida a uma honestidade sobre o objeto, absoluta. Eu estou procurando por formas através da história, dentro da minha imaginação, entre meus semelhantes e do eterno. Quando não há formulários, fico ainda mais excitado. coloca a importância de materializar a forma de ser forçado a lembrar apenas porque todas as suas besteiras ou as besteiras do seu povo foram tomadas ou forçadas rio abaixo. O Instituto coloca objetos que são ao mesmo tempo fictícios, análogos e tensos em um funil de produção histórica (a nova forma de produção artística) e devora meu conhecimento limitado de reprodução histórica – deixando-me à mercê de meus sentimentos e frustrações. Nervoso porque eu não vi o estupro e eles não querem falar sobre o estupro, que talvez isso nunca tenha acontecido.”
“Essas árvores estavam morrendo. Um moleiro disse que elas não estavam aptas para madeira. Sem utilidade. Em algum lugar na morte de uma árvore está a verdade de sua força. Esta floresta de freixos funciona como um significado da vitalidade e resiliência da ilha. Esta segunda instalação monumental reconhece os danos infligidos a seus habitantes. Alguns pilares são cobertos com moldes de bronze de seis máscaras africanas de madeira de várias origens. Esses moldes fazem parte de um desejo de preservação e conservação, uma forma de dar forma à memória. Como proteger uma herança quando nenhum vestígio ou escrita permanece? Questiono aqui a possibilidade de reparar a história. Este trabalho é uma resposta ao desejo deliberado das autoridades públicas para apagar todos os vestígios da presença desta comunidade mista da ilha. A floresta também abriga esculturas da série , um conjunto de esculturas produzidas pela fusão de vários materiais. O concreto envolve vários objetos encontrados compostos de tecido, bronze ou madeira. Esses amálgamas de materiais díspares lembram a antiga diversidade da ilha.”
70 REFLEXO
TÃO AMARGA, ESTA MALDIÇÃO DAS TREVAS, 2019.
Como proteger uma herança quando nenhum vestígio ou escrita permanece? Questiono aqui a possibilidade de reparar a história.
MONGES NEGROS, 2019.
“Minha banda Os Monges Negros, antigamente Os Monges Negros de Mississippi, têm sido uma presença constante na minha prática artística. Sua música está enraizada na música negra do Sul, incluindo o , e , mas também está ligada a práticas ascéticas, relacionadas mais de perto às tradições monásticas orientais. É uma experiência em torno da especificidade do som e um meio de dar vida aos objetos do cotidiano. Os Monges Negros muitas vezes funcionam como “historiadores amadores, guias habilidosos e pregadores piratas”, ao exporem a palavra da arte ao lado da palavra de Deus. Dentro da exposição, a voz e o corpo estão palpavelmente envolvidos em uma colisão enlevada, encarnada e onírica com as complexidades da história racial. A mistura racial continua sendo um dos espaços mais complicados para a psicologia, literatura, biologia e economia. A própria natureza do tema da mistura racial cria uma consternação imediata, mas com o apoio do coreógrafo Kyle Abraham e do seu conjunto musical, realizamos com o corpo e com o som o que a literatura não consegue.”
Theaster Gates • Amalgan • Palais de Tokyo • Paris • 20/2 a 12/5/2019
CandomblĂŠ (Estudo de mural), 1967. Foto: Jamie Acioli.
Djanira
a memรณria de seu povo
AUTODIDATA E DE ORIGEM TRABALHADORA, DJANIRA SURGIU NO CENÁRIO DA ARTE BRASILEIRA NOS ANOS 1940. EMBORA TENHA TRILHADO SÓLIDA CARREIRA EM VIDA, NAS ÚLTIMAS DÉCADAS A ARTISTA FOI COLOCADA DE LADO NAS NARRATIVAS OFICIAIS DA HISTÓRIA DA ARTE BRASILEIRA. PRIMEIRA GRANDE EXPOSIÇÃO MONOGRÁFICA NO MASP BUSCA, PORTANTO, REPOSICIONÁ-LA NA HISTÓRIA DA ARTE DO PAÍS
POR RODRIGO MOURA
Djanira chegou ao Rio de Janeiro no fim dos anos 1930 e fixou residência no bairro de Santa Teresa, onde passou a conviver com intelectuais e artistas refugiados da Segunda Guerra Mundial, que foram morar na Pensão Mauá e no Hotel Internacional, em dois extremos do bairro. Algumas versões dessa história dão conta de que ela teria sublocado espaço para outros 76 ALTO RELEVO
moradores na Pensão Mauá, entre eles os pintores Emeric Marcier (1916-1990) e Milton Dacosta, de quem veio a ser companheira depois de se tornar viúva de seu primeiro marido. Sua formação artística foi basicamente autodidata, com breve passagem pelo curso noturno do Liceu de Artes e Ofícios. Antes de se dedicar integralmente à arte, sua principal ocupação era como
costureira. O surgimento de seu trabalho se dá em meio ao ambiente cultural da então capital do país nos anos do Estado Novo, com decisivo protagonismo do mecenato estatal. Em 1942, Djanira fez sua primeira exposição pública no 48º Salão Nacional de Belas Artes, concorrendo com um retrato e um quadro de tema folclórico (Frevo,1942), cujo paradeiro hoje é desconhecido. Ao contrário do que se verificou no primeiro modernismo brasileiro, em que os artistas tinham contato direto com a arte produzida na Europa e faziam parte da aristocracia ligada à elite econômica, os artistas dessa segunda fase modernista dividem uma origem social mais modesta e se mostram interessados em uma arte nutrida pela experiência direta com seus cotidianos suburbanos e seu ambiente proletário. As conquistas modernistas no campo da forma já estavam absorvidas e cabia fazer uma pintura que refletisse a realidade dos artistas. Nesse cenário, destacava-se a emergência de grupos de artistas nas principais cidades do país, entre eles o Núcleo Bernardelli, no Rio de Janeiro, que reunia artistas com os quais Djanira conviveu, como Dacosta e José Pancetti.
À esquerda: Mercado de Peixe, 1957. Foto: João L. Musa/Itaú Cultural. À direita: Trabalhadores de Cal, 1974. Foto: Jaime Acioli.
Acima: Sem título, 2006. À direita: Tecelãs, 2003.
As pinturas de Djanira da primeira metade dos anos 1940 refletem esse ambiente ao mesmo tempo que já deixam evidente a singularidade de sua arte. Inicialmente avaliada pela crítica com rótulos que hoje soam redutores e inadequados - como "primitiva" e "ingênua" -, sua arte revela um desejo de comunicação, seja por meio de retratos e autorretratos enfatizando a psicologia dos retratados, alguns deles tendo os vizinhos da artista como modelos e usando como cenário a varanda de sua casa no bairro carioca de Braz de Pina, onde viveu por alguns anos. Um dos mais elaborados quadros desse período, o retrato de grupo (1944), também conhecido como ou , indica seu interesse por dinâmicas sociais, retratando um grupo infantil com apuro nas vestimentas e ênfase na relação entre os corpos no espaço diminuto, tendo ao fundo a paisagem do subúrbio.
78 DJANIRA
…sua arte revela um desejo de comunicação.
À esquerda: Sala de leitura, 1944. Abaixo: Patinadores, 1945. Fotos: Jaime Acioli.
Três orixás, 1966. Foto: Isabella Matheus.
Abaixo: Sem título, 1950. À direita: Parque de diversões, 1948. Foto: Jaime Acioli.
A vocação por uma pintura social se desdobra nas formas convolutas e espiraladas dos parques de diversões (início da década de 1940) e de (1944, comprada à época pelo Serviço Nacional do Teatro e hoje pertencente
ao Museu Nacional de Belas Artes), em que as fontes populares serviram de mote para telas animadas e povoadas de figuras plenas de energia e de movimento. Sua pintura se filiou a uma linhagem da arte brasileira que
buscava nas manifestações da cultura popular não simplesmente um tema, mas uma maneira de produzir arte com ideais de autenticidade e brasilidade. As pinturas que Portinari fez no início dos anos 1930 como forma de se
reconectar à sua infância em Brodósqui, no interior paulista (entre as quais podemos citar , 1932), podem servir como precedente desses interesses no modernismo pós1922. Porém, nos parques e no Circo,
Paisagem do Sítio de Paraty, 1965. Foto: Everton Ballardin.
de Djanira, não se tratava de um espaço nostálgico reinventado, mas antes da evocação de uma breve interrupção na rotina das grandes cidades, com as formas, cores e luzes desses divertimentos se oferecendo,
Rodrigo Moura é curadoradjunto de arte brasileira no MASP desde 2016.
84 ALTO RELEVO
de modo efêmero, à classe trabalhadora. Como afirmou Djanira: "O pouco que sou devo ao povo, não abandono minhas raízes populares como mulher e como artista".
Djanira: a memoria de seu povo • MASP • São Paulo • 01/3/2019 a 19/5/2019
COLUNA DO MEIO Fotos: Paulo Jabur.
Quem e onde no meio da arte
Fernanda Sattamini e Dominique Valansi
Carlos Zílio, Vanda Klabin e Daniel Feingold
Mabu + Tomie Cassia Bomeny Galeria Rio de Janeiro Gaby Indio e Luiz Eduardo Indio da Costa
Cassia Bomeny e Nelson Gavazzoni
Bibiana Macedo e Juliana Braga
Fotos: Divulgação.
Manu Müller e Márcia Müller
Ricardo Cantarino, Susi Cantarino e José Antônio McDowell
Enéas Valle e Marçal Athayde
Brasileiros em Florença C. C. Correios Rio de Janeiro Susi Cantarino e Paulo Herkenhoff
Kimi e Iam Cantarino, Osvaldo Gaia
Marcelle Piton e Roberto Padilha
Susi Cantarino e Carlos Alcantarino
RESENHAS exposições
Regina Parra: Eu me Levanto Fundação Marcos Amaro • Itu • 15/12/2018 a 9/3/2019 Sonia Gomes: Ainda assim me levanto MASP • São Paulo • 14/11/2018 a 10/3/2019 POR ULISSES CASTRO
O mês que celebra o Dia Internacional da Mulher também marca o encerramento de duas individuais de artistas inspiradas pelo poema , de autoria da escritora e ativista norte-americana Maya Angelou (19281914). Publicado pela primeira vez em 1978, o poema de caráter autobiográfico nasceu como um grito de resistência contra a submissão do negro em uma sociedade racista, mas logo foi adotado como símbolo da luta contra a opressão de minorias em geral. A voz potente e confiante do poema é a de uma mulher negra que, compreendendo os mecanismos de controle praticados sobre ela, eventualmente aprendeu a reconhecer seu próprio poder e a se desvencilhar da dominação e do jugo de terceiros. Tomando emprestada essa mesma voz forte, mas lhe imprimindo um tom doce e belo, a artista mineira Sônia Gomes 86
, apresentou exposição que se dividiu entre o MASP e a Casa de Vidro, na capital paulista, e foi destaque da edição de número 78 da revista. O trabalho inaugurou o uso de um material novo na carreira da escultora – os galhos de árvore –, que foi misturado a ingredientes já tradicionais de sua obra – tecidos, rendas, cordas, tricô e alfinetes. Os corpos moles e coloridos criados por Gomes parecem se mover lentamente sobre a crueza retorcida dos galhos, na tentativa de se desvencilhar desses objetos secos que os prendem ao chão. Encontram um equilíbrio improvável na tensão entre o duro e o macio, o estático e o dinâmico, a terra e o céu. Buscam liberdade e, quando a alcançam, levantam-se, permanecem em suspensão, autônomos. Nesse sentido, o trabalho de Gomes se emparelha ao poema de Angelou ao
À esquerda: Vista da Exposição de Sônia Gomes no MASP. Abaixo: Regina Parra, Tenho medo que sim, 2019. Fotos: Ulisses Castro.
apresentar indivíduos conscientes do próprio poder, ainda que sabedores de sua condição de oprimidos. Fazendo abordagem diferente do poema da norte-americana, Regina Parra trouxe à Fundação Marcos Amaro, na cidade de Itu, a exposição , capa da multimodal edição de número 81 da revista. Ao lançar mão de pintura, vídeo, literatura e performance coreográfica, a artista reflete a respeito das possibilidades de resistência à disposição de um corpo que se encontra constantemente sob demanda. Parece lhe interessar em especial as situações de estado limite desse corpo oprimido. Diante da multiplicidade das mídias utilizadas, o poema de Angelou funciona como o amálgama perfeito para trazer unidade ao trabalho, que, utilizando linguagem realista, lida com medo, aflição, libido, sexualidade,
morte. Entretanto, os personagens de Parra não se encontram no mesmo patamar de consciência que o eu lírico de . Estão em momento anterior, no qual ainda não existe a noção de liberdade, apenas a necessidade de sobrevivência. Enquanto a criatura de Sônia paira no ar, a de Regina se debate. Enquanto uma é esperança, a outra é angústia. Uma é lírica, a outra, realidade. Mas o desejo último de ambas é se levantar.
Ulisses Castro é arquiteto e urbanista pela UFMG e pósgraduando em História da Arte e da Cultura Visual.
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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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