BIENAL DE VENEZA JOAQUÍN SOROLLA LUCIANO FIGUEIREDO BERNARD FRIZE GILVAN SAMICO PATRICIA CHAVES
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com
Capa: Lina Lapelyte, Vaiva Grainyte e Rugile Barzdziukaite, Sun & Sea (Marina). Cortesia La 58ª Biennale di Venezia.
DESIGNER Moiré Art SOCIAL MEDIA Thiago Fernandes SUGESTÕES E CONTATO dasartes@dasartes.com APOIE A DASARTES Seja um amigo Dasartes em recorrente.benfeito ria.com/dasartesdigital Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ
Joaquín Sorolla, The Siesta, 1911. © Museo Sorolla, Madrid.
Contracapa: Joaquín Sorolla, Snapshot, Biarritz, 1906. © Museo Sorolla, Madrid
A Dasartes não se responsabiliza pelas opiniões e pelo conteúdo expresso nas matérias assinadas, que são de livre autoria de seus colaboradores.”
BERNARD FRIZE
12 GILVAN SAMICO
6 De Arte a Z 92 Resenhas 98 Livros 100 Coluna do meio
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BIENAL DE VENEZA
LUCIANO FIGUEIREDO
JOAQUÍN SOROLLA
PATRICIA CHAVES
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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte
STEDELIJK DESVENDA MISTÉRIO SOBRE RETRATO DE GUERRA O museu de Amsterdã revelou novas informações sobre famoso retrato de guerra da pintora holandesa Charley Toorop. O museu descobriu que o assunto ansioso na tela era baseado na governanta de Toorop, Johanna “Jansje” Punt, que estava preocupada com seus três filhos forçados a trabalhar na Alemanha nazista. Os netos de Punt escreveram ao museu para identificar o tema depois de ler um artigo sobre a pintura no jornal.
CHRISTIE’S SUSTENTÁVEL
MANIFESTA PARA OS BÁLCÃS
PERDIDO NO ESPAÇO
Em Nova York
Prevista para 2022
Graças ao governo
Artista Jonas Wood doou sua pintura para ser vendida em leilão da Christie's por uma boa causa: os recursos financiarão uma reserva de 600 mil acres da floresta tropical americana. As instituições de caridade Global Wildlife Conservation e Rainforest Trust ofereceram uma combinação de 400% do preço de martelo para beneficiar a iniciativa.
A “bienal nômade europeia” anunciou que sua 14ª edição será realizada em Pristina, capital do Kosovo. Expandindo sua missão de explorar a mudança das paisagens políticas e artísticas da Europa, os organizadores selecionaram Pristina em parte devido às questões geopolíticas distintas – a privatização dos espaços urbanos – e seu papel como porta de entrada para os Bálcãs.
O satélite do artista Trevor Paglen, de US$ 1,5 milhão, foi perdido no espaço – e a parada do governo de Donald Trump, que durou 35 dias em janeiro, pode ser a culpada. O artista lançou com sucesso sua ambiciosa instalação, , no final do ano passado, mas o silêncio do rádio durante o desligamento imprevisto fez com que os engenheiros perdessem a implantação do trabalho e seu rastreamento.
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GIRO NA CENA RESIDÊNCIA ADELINA Inscrições até 12/5 Adelina Instituto está recebendo portfólios de artistas que nasceram e/ou residem na América Latina para participar de sua residência artística. A Residência Adelina contemplará quatro artistas, sendo dois brasileiros, e acontecerá no segundo semestre de 2019. A seleção dos artistas será realizada por um júri liderado por Julia Lima, que assina a curadoria da segunda edição do projeto. Os artistas selecionados, terão hospedagem, ajuda de custo e verba de produção para a realização do projeto de pesquisa inscrito. Inscreva-se em www. adelina.org.br.
Acervo histórico do Videobrasil Em paralelo aos preparativos para a 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, a Associação Cultural Videobrasil mostrará recortes de seu acervo histórico em programas desenvolvidos em parceria com a Pinacoteca, o Instituto Tomie Ohtake, o Instituto Moreira Salles, a Casa do Povo, entre outras instituições. Intitulado , o projeto busca difundir a riqueza e a diversidade do acervo, formado por mais de 1.500 obras em vídeo.
Pego no flagra “Obrigado por suas dicas. Um homem de 61 anos foi preso e responderá por este roubo.” Polícia de Nova York após divulgar vídeo de um homem saindo de uma galeria de arte de Nova York com uma valiosa escultura de cristal. O ladrão fugiu com a obra avaliada em US$ 16 mil. A peça estava em exposição na Galeries Bartoux, em Manhattan.
Varejão Itinerante é a mostra itinerante que circulará o ano de 2019 em cidades brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo, começando pela capital baiana, no MAM-BA. Com curadoria de Luisa Duarte, a exposição faz parte de um projeto que pretende descentralizar o acesso à produção da artista carioca, exibindo 19 obras dos seus mais de 30 anos de trajetória.
GIRO NA CENA
Artefatos saqueados no Facebook Antiguidades da Síria e do Iraque estão sendo negociadas em uma grande rede de grupos dedicados do Facebook, com cerca de 120 mil membros. A rede social disse que suspendeu 49 grupos após uma investigação da BBC ter encontrado uma estátua da antiga cidade de Palmyra e um mosaico romano completo de Aleppo entre os artefatos listados para venda.
Vazo de ouro de Cattelan no Reino Unido A famosa privada de ouro sólido está pronta para ser instalada em um banheiro do Palácio de Blenheim, no Reino Unido. E as pessoas poderão usá-la. A obra de arte de ouro de 18 , do artista italiano quilates, Maurizio Cattelan, ganhou as manchetes nos EUA depois que o Guggenheim ofereceu a escultura à Donald Trump, em vez da pintura de Van Gogh que ele havia solicitado.
8 DE ARTE A Z
MUSEU ESPANHOL MANTÉM OBRA-PRIMA DE SAQUE NAZISTA O museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, venceu a longa batalha legal nos EUA para manter uma obra-prima de Camille Pissarro que foi confiscada pelos nazistas de seu dono judeu em 1939, quando ele fugiu da Alemanha. Apesar de expressar algumas dúvidas sobre as ações do museu, um juiz federal decidiu que o proprietário legal da pintura é o Barão Hans Heinrich Thyssen-Bornemisza, depois de adquirilo há décadas. Os herdeiros americanos do proprietário original alegaram que o barão sabia que a pintura tinha sido roubada quando ele a comprou de uma galeria de Nova York em 1976.
VISTO POR AÍ Até 11 de maio, a Fundação Andy Warhol irá exibir cerca de 70 fotografias raramente vistas do artista no Instagram. As fotos íntimas e espontâneas foram tiradas do Arquivo de Fotografia de Andy Warhol, no Cantor Arts Center de Stanford, onde foram doadas em 2014. Siga a hashtag #IntimateAndy no Instagram para saber mais.
ESTÉTICA DE DE UMA AMIZADE Mais de 130 obras, em sua grande parte inédita, narram a longeva e afetiva convivência dos artistas Alfredo Volpi e Bruno Giorgi, que perdurou por 52 anos. Com curadoria de Max Perlingeiro, da Pinakotheke, e de Pedro Mastrobuono, do Instituto Volpi de Arte Moderna, a ideia da exposição vem sendo desenvolvida há dez anos, e pode ser materializada a partir dos longos depoimentos de Leontina Ribeiro Giorgi, viúva de Bruno, dados aos dois curadores. Ela abriu arquivos e "contou fatos históricos e pessoais, sendo uma memória viva dos dois artistas", relata Max Perlingeiro. 10 AGENDA
O critério de seleção das obras, todas pertencentes a acervos privados, buscou pontuar a amizade dos dois grandes artistas, iniciada em 1936, quando Bruno Giorgi retornou brevemente ao Brasil, durante sua estada na Itália e França. Em 1939, na volta definitiva de Bruno ao país, a amizade se aprofundou, e daí em diante foram inseparáveis.
Estética de uma amizade: Alfredo Volpi (1896-1988) e Bruno Giorgi (1905-1993) • Pinakotheke Cultural • Rio de Janeiro • 14/6 a 27/7/2019
BERNARD
FRIZE
Isaac, 2004. © Bernard Frize © Bernard Frize/Adagp,
GRANDE PINTOR FRANCÊS NO CENÁRIO ARTÍSTICO INTERNACIONAL, BERNARD FRIZE (1954) COLABOROU ESTREITAMENTE NA CRIAÇÃO DESTA EXPOSIÇÃO ORIGINAL, NO CENTRO POMPIDOU. A EXPOSIÇÃO PROPÕE UM ROTEIRO TEMÁTICO A SER TOMADO COMO O VISITANTE DESEJAR, SEM DIREÇÕES OU HIERARQUIA, ROMPENDO COM A ABORDAGEM SERIAL PELA QUAL O ARTISTA É CONHECIDO
POR ANGELA LAMPE Por mais de 40 anos, Bernard Frize vem desenvolvendo um trabalho com restrições. De sua primeira série, que foi traçar o tecido da tela até a saturação com o pincel mais fino, até sua tela mais recente, (2018), construiu sobre os antagonismos das superfícies horizontais e verticais; o ato de criar está aqui sujeito a um regulamento prévio, o procedimento para um protocolo livremente escolhido pelo artista. As pinturas de Frize não querem ser a expressão de um eu criativo, elas simplesmente são a aplicação de um sistema formal impessoal, “As sensações, sentimentos não têm lugar”. Ao gesto demiúrgico que reprova, o artista se opõe à implementação de um processo técnico, banal, às vezes maluco, muitas vezes absurdo. Que sentido deve ser dado à obrigação que o pintor se impõe de preencher toda a superfície de uma tela com uma única pincelada, executada à mão livre e de uma única cor? Ou, para representar todas as possibilidades de movimentos disponíveis ao cavaleiro em um tabuleiro de xadrez, como (1991)? em sua pintura 14 DO MUNDO
Acima: LedZ, 2018. © Claire Dorn. Abaixo: Spitz, 1991 © Bernard Frize/Adagp, Paris 2019.
Intervalo, 1988. © Centre Pompidou, MNAMCCI/ Philippe Migeat/Dist. RMN-GP © Bernard Frize/Adagp, Paris 2019
O fato de uma camisa de força formal poder ser tão libertadora quanto criativa nos foi mostrado pelo trabalho do grupo OuLiPo ( ). Forçando-se a seguir certo número de regras, seus membros conseguem frustrar a rotina, encontrar maneiras novas e surpreendentes, como as de escrever um livro que não contém “e” ( , 1989), de redigir um texto sem letras com “ombreiras” (g, j, p, q e y) ou um poema cujas palavras começam com a mesma letra. Textos restritos chamam a atenção para a escrita em si, para a questão do “como”, como é feita, construída, tecida e combinada. Se a afirmação se torna um enigma, seu autor é transformado em um artesão do verbo, um linguista ansioso para realizar sua tarefa. Isso é exatamente pelo que Bernard Frize tem se interessado desde o início: executar sua pintura como um trabalhador seguindo um protocolo traço por traço, “não escolher”. A ideia de confiar no efeito libertador de uma restrição nos pareceu, assim, um caminho interessante para a concepção de uma exposição sobre Bernard Frize, que repensaria o formato tradicional da retrospectiva, geralmente estruturada pela cronologia do trabalho. A reflexão começou com a escolha de uma restrição espacial que foi imposta rapidamente: a organização da disposição das imagens em forma de grade. Não apenas a grade é o esquema modernista por excelência, mas também é uma forma de composição recorrente na pintura de Frize. Em vez de selecionar um corpo de obras representativas do artista, que teria determinado a cenografia de nossos espaços vazios, a abordagem aqui foi a oposta: preencher os espaços com uma arquitetura préexistente. Nosso objetivo era criar um caminho temático livre, sem direção ou hierarquia, que confunde a abordagem serial para a qual o artista é conhecido, a fim de trazer o visitante para o próprio ato da criação, revelando a ele quais estratégias e desafios intelectuais fundamentam as obras de Frize. BERNARD FRIZE 17
Suite Segond 120F, 1980. © Bernard Frize/Adagp, Paris 2019 © Kunstmuseum Basel, Martin P. Bühler
18 DO MUNDO
Os seis temas da seção (Com Inrazão, Sem Esforço, Com Sistema, Sem Sistema, Com Domínio, Sem Parada) foram escolhidos por sua acessibilidade e clareza. A aplicação de uma regra arbitrária que os títulos que começam com “com” devem alternar com aqueles que começam com “sem” se referem aos paradoxos e às contradições inerentes à prática do artista. Foi importante para nós apresentar telas da mesma série de diferentes ângulos temáticos, não só para criar efeitos surpreendentes de durante a visita, mas, acima de tudo, para enfatizar a vaidade de uma classificação imutável, a ilusão de qualquer sistema hermético. Essas restrições nos deram a liberdade de reorganizar o trabalho de Bernard Frize sem muita seriedade. Por isso, pareceu-nos relevante que a exposição se abra sobre a importância da loucura na abordagem de Bernard Frize. Cobrindo a superfície de uma tela com uma malha de linhas horizontais e verticais de um número infinito de ), o artista cores, como fez em 1977 ( iniciou uma missão: encontrar um significado para a sua prática, o que não aconteceu. Tudo o que lhe restava era o absurdo de uma execução longa e dolorosa que prevalecia sobre o significado do trabalho. A primazia do processo sobre o resultado, que o artista diz não lhe interessar muito, também caracteriza a segunda série seminal, intitulada (1980), que introduz uma nova dimensão, igualmente essencial em sua obra, a do perigo.
Travis, 2006 © André Morin © Bernard Frize/ Adagp, Paris 2019
Acima: Artigo Japonês, 1985. Foto: © François Maisonnasse À direita: Rami, 1993. Foto: © André Morin. © Bernard Frize/Adagp
Por acaso, o artista passa a utilizar películas secas das latas de tinta não fechadas e as organiza na superfície da tela, criando uma pintura que é gerada quase por si e cujas alterações no material (dobras, listras e rachaduras) são produzidas por acidentes. Outra restrição para esta exposição: cada seção é introduzida por um trabalho de uma ou outra dessas duas séries polissêmicas. Refazendo desenhos infantis ( , 1985), mostrando o significado o significante ( , 1985), criando sistemas malucos ( , 2005), ou batizando suas pinturas com nomes de trens RER ( , 1993) ou agências de 22 BERNARD FRIZE
classificação financeira ( , 1987) são todas estratégias postas em prática pelo artista para enganar a razão com grande seriedade. Eficiência e economia de meios desempenham um papel fundamental para Frize, e eles o levaram a organizar sua indolência. Muitas vezes, ajudado pelo acaso, ele pretende rentabilizar o ato criativo, escolhendo ferramentas de alto desempenho, tais como a ( , 1978), que adorna toda a superfície da tela com um único gesto, ou ele imagina protocolos para a criação , simultânea de duas obras ( 1991, e , 1993). Mesmo sua prática fotográfica consiste em temas
compilados que são entregues a ele, sem grande esforço, pela perambulação aleatória de seu olhar. Um dos paradoxos que constituem o trabalho de Frize está relacionado à sua maneira de criar sistemas nos quais ele não acredita, ou não acredita mais. Se, por um lado, estabelece processos complexos para preencher, com a ajuda de alguns assistentes, uma tela , pintada a várias mãos ( 2003) ou, para criar estruturas ornamentais por todo o lado a partir de um único traço de cor ( , 2005), por outro lado, ele tem grande prazer em dissolver suas grades sob nossos olhos informados. Às vezes, ele até emprega um sistema ao extremos, expondo o espectador, por exemplo,
aos efeitos da cegueira com sua imagem borrada (2007), feita com um aerógrafo. Sobrescrevendo todo o resto, a loucura óptica interfere na racionalidade geométrica. Nas pinturas de Frize, a desordem ainda está em andamento, impulsionada pelos estratagemas que usam, como agentes perturbadores, implicações técnicas e efeitos aleatórios. A série principal (1985) representa, nesse sentido, um trabalho manifesto, que revela como os sistemas infestados pelos jogos de azar levam a resultados absurdos. “A realidade finalmente destrói o sistema”, conclui o artista.
Oma, 2007. Foto: © Centre Pompidou, MNAMCCI/Philippe Migeat/Dist. RMN-GP © Bernard Frize/Adagp
ST78 n°2, 1978. Foto: © Centre Pompidou, MNAM-CCI/ Philippe Migeat/Dist. RMN-GP © Bernard Frize/Adagp.
Frize evoca a ligação entre ornamento e morte. Nenhuma marca trai o gesto do pintor.
Outro paradoxo, enquanto aspirava a uma pintura banal e ordinária, Frize realizava pinturas que impressionavam pelo seu grande domínio técnico, até mesmo pela sua virtuosidade. Poderíamos até nos atrever a chamar de “beleza”? Se sua qualidade ornamental os aproxima dos tecidos taiwaneses, dos quais o artista é um grande colecionador, seu cromatismo é uma reminiscência da destreza técnica dos pintores maneiristas do século 16, . A facilidade com que inventores da cor Frize parece conseguir suas pinturas perfeitamente executadas dá a elas uma elegância, uma distância que, desde meados da década de 1980, é reforçada pela aparência brilhante e plana da superfície pintada, devido ao uso de uma resina acrílica. Essas pinturas mate aparecem para nós como imagens que reproduzem uma pintura cujo esplendor se tornou inacessível. Com razão, Frize evoca a ligação entre ornamento e morte. Nenhuma marca trai o gesto do pintor. O corpo de obras de arte ornamental, portanto, destaca-se dentro de todo seu trabalho, que, desde o início, tem sido baseado na performatividade. O fato de desenhar na tela uma linha contínua, vazia de pigmentos coloridos, é a ideia não só de registrar a duração da execução, mas também de apresentar o evento pictórico com toda transparência. 24 BERNARD FRIZE
Acima: Os Castelos do pensamento, 1988. Foto: Rubens Chiri.
À direita: Dogs of Cythera, 1963. Inutile (Useless), 1969.
Recusando qualquer revisão ou edição de suas pinturas, feitas em um único rolo e sem arrependimento, Frize reivindica uma ética de trabalho. O espectador pode seguir a pincelada que acaba antes de renascer, graças a uma nova carga de tinta, e assim por diante. A encenação de linhas infinitas se refere à prática da serialidade aberta de Frize. A regra que implica perceber as diferentes variantes geradas a partir de um protocolo dá-lhe uma motivação “para evitar ser desviado, para poder continuar”. Em outras palavras, é a restrição que o libera de qualquer decisão pessoal. Se Bernard Frize questiona os fundamentos da experiência da pintura, o essencial em sua obra não é exaltar o constrangimento ou exibir a
técnica, mas colocá-los a serviço desse mistério que permanece, apesar de tudo, a pintura. Sua obra entrega seus pontos fortes, seus impasses, seu brilho e suas obsessões. Mas sem arrependimento.
Angela Lampe é curadora de Coleções Modernas do Museu Nacional de Arte Moderna da França.
Bernard Frize: Without Remorse • Centre Pompidou • Paris • 29/5 a 26/8/2019
GILVAN
O rapto do sol, 1984.
SAMICO
A pesca, 2007. Todas as fotos: João Liberato.
AS XILOGRAVURAS DE GILVAN SAMICO (1928-2013) ESTÃO ENTRE AS MAIS ORIGINAIS E REPRESENTATIVAS DESSA ARTE TÃO DETERMINANTE PARA FORMAÇÃO E DIFUSÃO DE UMA VISUALIDADE MODERNA NO BRASIL. SEU NOME CONSOLIDA ESSA PRÁTICA ARTÍSTICA COMO UMA POTENTE ESTRATÉGIA POÉTICA E SOCIAL. REVEJA MATÉRIA DO ARTISTA POR OCASIÃO DE SUA NOVA INDIVIDUAL NA GALERIA ESTAÇÃO, EM SÃO PAULO
POR ADOLFO MONTEJO NAVAS Às vezes, no mundo da arte, o tempo não corre com a cronologia feroz e imperiosa, mas se pauta por outra temporalidade menos frenética, mais pausada. Um dos casos mais paradigmáticos está na prática artística de Gilvan Samico (Recife, 1928). Toda a sua última produção diminui o fervor das notícias ao compasso de uma produção que, desde 1975, oferece uma gravura por ano, como se construísse outro calendário, outra temporalidade. Para não deixar dúvidas sobre essa postura anti-inflacionária, o próprio artista confessou, nunca sem humor, que “está desacelerando”. Aparentemente, diz ser preguiçoso, mas, na realidade, para chegar a essa gravura definitiva, o número , em que Samico de estudos cresce cada vez mais. É o caso do exemplar fez 45 estudos (mostrados como tais na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2004). Com um rigor sempre cirúrgico em cada passagem, ensina que não se pode errar. O projeto de cada original costuma ser iniciado pela escolha de um tema, que não é gráfico, segundo o artista, e toma seu tempo em correções, provas, emendas e modificações. Uma arte da paciência, sem velocidade, mas com a angústia do tempo que corre inexoravelmente. Até chegar a hora breve da impressão, em que, em vinte ou trinta dias, tudo se completa: a gravura sai em tiragem que nas últimas décadas se fixou em 120 cópias. No fundo, reconhece que o processo demorado cansa: “não faço com essa alegria toda, só fico contente quando termino”. Samico afirma que já abandonou as possíveis surpresas da impressão, prevendo o resultado, “não querendo que apareça nada que não tinha pensado”. Esse lado pensante e reflexivo, existente no processo 30 PANORAMA
Suar a camisa, 2014.
Acima: Ciclistas, 1959 . Abaixo: Três mulheres e a lua, 1959.
40 nego bom é um real, 2013
32 GILVAN SAMICO
Tudo é semanticamente significativo, reduzido, essencial.
Rosto, 1959.
das gravuras do mestre pernambucano, torna-o um artista conceitual da gravura, distante de tantos outros. Daí também, às vezes, a justificativa do “não estou fazendo, estou pensando”. E também a evidente patente de construção e de invenção. Samico sempre partiu da matéria escrita e literária do cordel, não da visual. Essa fuga da ilustração, do naturalismo, pode explicar, em certa medida, o grau de liberdade e imaginação de seus trabalhos. Até sua falta de mimetismo regional, sendo, ao mesmo tempo, um artista tão pernambucano, pois o alimento estético e cultural vem de procedências diversas, e não de um correlato visual do visível ou do mundo real. Com a primeira composição geométrica, descobriu que sua gravura estava parada no tempo, não tinha sentido de movimento. Desde 1971, o Nordeste liberou Samico da noite expressionista, aliás, abandonando a prática noturna de trabalho de outra época pela luz do dia de Olinda. Porém, não esqueceu o rigor de seus mestres Goeldi e Lívio Abramo, de quem herdou acentos contidos de cor ou a finalização na maneira de gravar, além de um lado construtivo, respectivamente, sobretudo a partir dos anos 1980, em que começa a utilizar elementos arquitetônicos para estruturar o resto de signos visuais a serem incluídos. O leque gráfico de tramas, texturas, traços, ritmos, retículas, em completa articulação compositiva, não permite nada secundário nas gravuras de Samico. Tudo é semanticamente significativo, reduzido, essencial, qual certa imagética quintessenciada que valoriza seus fragmentos como um todo. 33
Francisco e o lôbo de Mântua, 1969.
Samico é fiel ao papel japonês – foge de outros papéis por sua impressão leve – e à madeira pequiámarfim (atualmente em produção ecológica, aliás, como as gravuras do artista), por ter as fibras bem fechadas, o que facilita a gravação. Outra vantagem dessa madeira é que ela não tem veios “fantasiosos”, já que Samico não gosta que a “fantasia da madeira” se imiscua em sua própria fantasia. Normalmente, ele usa duas ou três madeiras, quatro no máximo, e até três emendas. Aliás, para esses fins, o artista está fazendo uma máquina-engenhoca para facilitar suas construções visuais. Por outro lado, na última produção do artista – das últimas três décadas –, as gravuras têm atingido certo tamanho – e uma maior verticalidade –, permitindo um grau de abstração maior e uma composição mais complexa, mais rica em planos e temporalidades (físicos e culturais). As dimensões desse dilatado universo, dos anos 1980 até agora, encontram-se entre 94 x 55,5 cm, 93 x 52 cm ou medidas bem próximas disto. É nesse espaço que a proposição visual do artista procura um conhecimento mágico, fantástico: nem teorema racional nem charada estética, mas a fábula da imagem desenhada que atinge um imaginário sintonizado ao mesmo tempo com a literatura popular, arquétipos universais e sua própria invenção. Assim, as suas gravuras constroem sua Ou própria lenda, tornam-se xilogravuras com vistas (muitas vezes metafísicas) em que a arquitetura, as simetrias e os planos na composição tão rigorosamente construída pretendem estabelecer uma articulação rara de simbologia, iconografia e poesia. Ou, dito de outra forma, uma criação que ecoa “o caráter egípcio da arte”, como dizia Adorno, e que não se refere ao alto grau de planaridade das imagens, mas à nossa conciliação com o enigma que representa a arte. Gilvan Samico tem feito do tempo, de seus , uma mesma paisagem, que diferentes podemos habitar quase mitologicamente. Assim, o espetáculo do mundo se inscreve nas estritas coordenadas exteriores de uma gravura sem limites 34 PANORAMA
Juvenal e o dragão, 1962.
interiores. A criação de Samico participa do reino da metamorfose. E cada gravura promete uma epifania de imagens cujos gestos/traços mais reconhecíveis vão além do visível porque encerram analogias (aparências e dessemelhanças). As “recriações” do artista procuram um “canto” que estabeleça a variedade original das coisas, seu feitiço múltiplo, pois a oposição entre natureza e cultura, para o de Olinda não existe, ainda é signo de fertilidade, de nascimento para gravuras-origem de “estórias” (não de histórias meramente narrativas). Assim, as obras sucedem “devagarosamente”, como obras-primas, a (1980), (1999) ou (2008), entre outras. Sua obra apoia-se em uma lenda indígena, em sintonia com esse repertório transcendente que religa pássaros, serpentes e bichos, elementos da natureza e seres humanos. Gravura que cria uma constelação de naturezas diversas que valoriza a criação (de homem e mulher, sereias ou estrelas) como algo primigênio: é o que acontece com as gravuras-emblemas de Samico, com seu canto de criação, sempre tão esperado.
Adolfo Montejo Navas é poeta, crítico e curador independente. Colabora com diversos veículos culturais e foi editor da revista DASartes.
Samico • Galeria Estação • São Paulo • 28/5 a 13/7/2019
BIENA
(Pavilh찾o Isl창ndia) Chromo Sapiens Hrafnhildur Arnard처ttir / Shoplifter. Foto: Andrea Avezz첫.
AL
POR CONSTANÇA BASTO
A 58th Bienal de Veneza, intitulada (Que você viva em tempos interessantes), inaugurou no dia 11 de maio com a curadoria de Ralph Rugoff e poderá ser vista até o dia 24 de novembro. Ralph é jornalista de formação, nascido em Nova York. Hoje dirige a Haywarth’s Gallery, em Londres. Para essa Bienal, selecionou 79 artistas, todos vivos, e focou em trabalhos que foram produzidos recentemente e estão engajados com as questões do momento e as infinitas possibilidades de encará-los. Ao todo no evento, são 90 participações nacionais dando vida ao pluralismo de vozes típico da Bienal, além de 21 eventos colaterais. Este ano, vários países participam pela primeira vez, como Gana, Madagascar, Malásia e Paquistão. Para o título da sua mostra, Ralph Rugoff escolheu um curioso provérbio ou maldição chinesa fictícia. A frase teve sua origem atribuída aos chineses, mas se descobriu que ela foi inventada e nunca existiu ou foi usada de fato na China. Rugoff achou muito pertinente usá-la como título da sua mostra. Segundo ele, “parece perfeita como título para uma exposição que, ao menos em parte, reflete sobre como a arte pode funcionar numa era de mentiras, desconfiança, falsidade e histórias inventadas.” Ao mesmo tempo, o curador afirma esperar que a arte possa ir além e nos dar ferramentas para imaginarmos novas possibilidades e cenários para esses tempos interessantes em que vivemos. O curador escolheu um formato de mostra organizada em duas apresentações e exposições separadas: Proposição A (Arsenale) e Proposição B (Giardini). Ambas as Proposições incluem todos os artistas, que exibem propostas diferentes de trabalhos para cada local. O que mais interessava ao curador com esse formato era dar destaque à prática multifacetada dos artistas, muito mais que mostrar trabalhos isolados.
(Pavilhão Austria) Renate Bertlmann, Discordo Ergo Sum. Foto: Francesco Galli. Todas fotos: Cortesia La Biennale di Venezia. 40 CAPA
Companhia Musical, 1626.
São abordados temas que vão desde a aceleração das mudanças climáticas ao ressurgimento do nacionalismo ao redor do mundo; do fantástico mundo da realidade virtual à violência dos jogos de computador; do impacto causado pelas mídias sociais ao crescimento das disparidades sociais e econômicas; das questões ecológicas às questões sobre diversidade cultural, física e de gênero. A mostra dá destaque a obras que desafiam os hábitos e as formas existentes de pensamentos e possibilita, com objetos e imagens variados, com cenários e situações diferentes, uma abertura para novas leituras do presente. “De uma forma indireta talvez esses trabalhos possam até servir como um tipo de guia de como viver e pensar em ”, pondera Rugoff. Ralph focou em artistas mais jovens e convidou artistas de diversas etnias, gêneros e pontos de vista. Ao menos 50% dos artistas, este ano, são mulheres. A arte deve ter o papel de catalisadora que convida e incita ao diálogo. Rugoff busca com sua mostra acolher não só a presença do público, mas suas interpretações e engajamento crítico e seus pontos de vista sobre tantos assuntos urgentes. “É fundamental que aprendamos a apreciar a diferença em vez de evitá-la ou ficar assustados por ela. Em uma sociedade onde tudo o que não é perfeito causa desconforto, é importante aprender a valorizar nossas diferenças, cicatrizes e imperfeições.” Rugoff não queria uma Bienal política no senso partidário da palavra, mas acha fundamental que a arte exposta seja fruto de um pensamento crítico, complexo e muitas vezes político. 42 BIENAL DE VENEZA
À direita: Obra de Henry Taylor. Foto: Lucio Salvatore. Abaixo: (Pavilhão Gana) Ghana Freedom Foto: Italo Rondinella
À esquerda: Obra de Andra Ursuta. Abaixo: (Pavilhão Grécia) Panos Charalambous, A Wild Eagle was Standing Proud. Foto: Francesco Galli.
Country Road: Kentucky, 1984 (Série Fake Fashion).
Obras e discussão sempre mais em pauta acerca da maneira como nos comunicamos, informamo-nos e nos conectamos.
QUE VOCÊ VIVA EM TEMPOS INTERESSANTES Veneza este ano estava muito mais cheia de visitantes que o normal, com as filas intermináveis para visitar cada pavilhão e uma grande agitação tanto nos Giardini, quanto no Arsenale. Essa Bienal tinha um clima diferente da última, bem mais sombrio já na chegada, além do clima de inverno verdadeiro que assolou Veneza nessa semana, em plena primavera. É uma mostra intrigante, repleta de obras e artistas novos. Percebemos a presença sempre mais impactante da tecnologia como protagonista. Vemos o uso de robôs, inteligência artificial, biotecnologia em tantas obras e a discussão sempre mais em pauta acerca da maneira como nos comunicamos, informamo-nos e nos conectamos ao outro hoje. Como trabalhos apresentados, por um lado, vimos o retorno da pintura com força total e, por outro, uma imensa quantidade de vídeos, filmes, fotografias e trabalhos espaciais e de arte digital. Começamos nossa visita pelo Pavilhão Central nos Giardini intitulado: Proposição B. Logo na chegada, antes de entrarmos, somos surpreendidos pelo trabalho de Lara Favaretto, uma das duas artistas italianas convidadas a participar do Pavilhão internacional da Bienal. Seu trabalho, intitulado 45
, envolve o pavilhão com nuvens de neblina escondendo muitas vezes o edifício e seu nome. Provoca certa insegurança e faz pensar sobre a intenção de ocultar, abafar, calar, camuflar, dissimular, encobrir tantas verdades urgentes que preferimos não ver. Claramente, essa é uma das questões que serão discutidas nessa Bienal. , Ao entrar no caminhamos por um corredor de tubos fluorescentes brilhantes de que nos 46 CAPA
desorienta completamente e incomoda a retina, como o trabalho , do artista japonês Ryoji Ikeda. O segundo trabalho do mesmo artista, apresentado no Arsenale, foi um dos melhores da Bienal, na minha opinião, e se chama , uma instalação gigantesca multissensorial com informações sobre o sistema nervoso associado ao sistema solar. As imagens são provenientes do CERN, da NASA e do Projeto Genoma
À esquerda: Lara Favaretto, Thinking Head, 2019. Foto: Lucio Salvatore. Ryoji Ikeda, Spectra III. .
As três irmãs, 1955. Acima: Ryoji Ikeda, Data Verse-1.
Humano e foram transformadas por efeitos de programação em paisagens majestosas de padrões em cascata. A trilha sonora de Ikeda gera emoção com sons associados a instrumentos de medição, um zumbido semelhante a um sonar, o bipe de um monitor cardíaco. Do macroscópico ao microscópico, Ikeda fala de um universo em que tudo, mais cedo ou mais tarde, está destinado a se tornar código de computação, e no qual o
ser humano tem sempre mais dificuldade em se orientar. Difícil descrever a sensação mas, sem dúvida, um dos pontos altos da mostra. Na sala ao lado, vemos uma enigmática montagem escultórica de Nairy Baghramian, acompanhada por pinturas de figuras expressivas de George Condo e Henry Taylor e as abstrações caligráficas de Julie Mehretu.
A artista Nairy Baghramian apresenta no Arsenale sua segunda obra, , que se funde com a estrutura da construção e, muitas vezes, passa despercebida, sendo um trabalho belíssimo e muito elogiado. Vemos a seguir densas pinturas de figuras em interiores de Njideka Akunyili Crosby, junto com esculturas de aço de Carol Bove, pinturas de Avery Singer e fotografias de Anthony Hernandez. Aparecem muitas parcerias e trabalhos feitos em conjunto nessa Bienal. Os artistas Sun Yuan e Peng Yu, por exemplo, criaram juntos o trabalho um pincel robótico, que hipnotiza o público com seus golpes obsessivos: escova, bate, varre, empurra e arrasta um lago do que parece, em um primeiro momento, sangue, mas não é. Muito impressionante e até assustador pela dimensão e pela violência dos golpes. A segunda obra da dupla vista no Arsenale é uma mangueira pneumática enorme presa a uma poltrona de mármore feita como o monumento em Washington de Abraham Lincoln, que intermitentemente se agita, sacolejando e dando golpes provavelmente mortais em uma vitrine de vidro que protege o público.
À direita: Sun Yuan e Peng Yu, Can´t Help Myself. Abaixo: Pinturas de Njideka Akunyili Crosby e esculturas de Carol Bove.
A Guarda noturna, c. 1642–1655.
Acima e abaixo: (Pavilhão Brasil) Barbara Wagner e Benjamin de Burca, Swinguerra. (Still). À direita: (Pavilhão da França) Laure Prouvost, Vois ce Bleu Profond te Fondre.
50 CAPA
PAVILHÕES NACIONAIS IMPERDÍVEIS NOS GIARDINI O Pavilhão Brasileiro estava de tirar o chapéu com o trabalho fruto da parceria de Barbara Wagner e Benjamin de Burca. Deu orgulho ver o trabalho de artistas brasileiros brilhando na Bienal. Muito comentado, , com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro, é uma videoinstalação de tela dupla que reúne um conjunto de imagens em vídeo e uma seleção de retratos dos participantes do trabalho. tira seu título da , um movimento de competições de dança popular no Recife, fundido com a palavra guerra. O trabalho de Barbara & Benjamin fornece uma visão profunda e empática da cultura brasileira contemporânea em um momento de tensão política e social significativa. Em comum com seus filmes anteriores, os artistas trabalham lado a lado com seus sujeitos em uma relação horizontal e respeitosa de colaboração, compartilhando uma
compreensão das complexidades da autorrepresentação e da consciência contemporâneas. Outro pavilhão muito comentado foi o da Suíça. A dança aqui também foi o tema do pavilhão, onde outra dupla, Pauline Boudry e Renate Lorenz, dança no cinema com vários colaboradores. O público aqui é convidado a participar em uma pista em frente à tela. O Pavilhão da França, da artista Laure Prouvost, faz uma homenagem ao mar e mistura performance, vídeo e escultura em um único trabalho. O pilar da obra é um filme fictício que se transforma em experiência e o pavilhão inteiro é uma instalação escultórica, que expõe oceanos de vidro, canções de ópera e artistas que performam ao vivo. É um dos pavilhões mais visitados. No Pavilhão da Polônia, vemos um avião de verdade virado pelo avesso. O artista Roman Stańczak colocou as 51
Acima: (Pavilhão Polônia) Obra de Roman Stanczak
asas no interior e fixou os assentos no exterior da fuselagem. No Pavilhão dos EUA, vemos o trabalho do artista Martin Puryear , que inclui esculturas e uma instalação na entrada do pavilhão. Um dos pavilhões ganhadores de menção especial foi o da Bélgica, Outra dupla de artistas, Jos de Gruyter e Harald Thys, encheu o pavilhão de figuras robotizadas que reproduzem seres vivos e outras figuras folclóricas. Vemos tecelãs folclóricas, um padeiro sovando sua massa, um pianista, um mendigo tremendo de frio e outros personagens variados com seus sombrios movimentos mecânicos. Alguns estão trancados atrás das grades, e sentimos como se o próprio 52 BIENAL DE VENEZA
país fosse um asilo do século 19. Apesar do exterior infantil desses bonecos robôs, claramente se fala das crises existenciais que atingem a Europa ocidental hoje. No pavilhão da Grécia vemos, entre outros, o trabalho imperdível do artista Panos Charalambous , uma instalação feita de copos de vidro, onde os visitantes podem experimentar a sensação de caminhar sobre vidro. O pavilhão da Venezuela, pela primeira vez, permaneceu fechado durante a semana de inauguração da Bienal, claramente devido às crises duradouras no país. Foi finalmente inaugurado em seguida, com um atraso de duas semanas.
ARSENALE Na chegada ao Arsenale, somos recebidos pela série impactante de fotos noturnas , de Soham Gupta um jovem fotógrafo indiano As fotos do povo que vive nos arredores de Calcutá nos afetam profundamente, seja na proposta em preto e branco no Giardini ou em cores no Arsenale. Difícil esquecer os olhares penetrantes. A Bienal está lotada de videoinstalações. As projeções de Kahlil Joseph, com o , uma colagem cinematográfica usando imagens originais e encontradas, são um ponto alto da Bienal. O BLKNWS é um canal de notícias falando da vida da população afrodescendente na América, exposto em duas telas
simultaneamente, com imagens de arquivo de Malcolm X e Miles Davis e outros importantes pensadores afroamericanos em eventos públicos, acompanhados de diferentes trilhas sonoras. Bárbaro! Por outro lado, Jon Rafman criou filmes no estilo de videogames. Ele apresenta no Arsenale um filme que é um fluxo de absurdos. E, no Giardini, mostra uma espécie de videogame/filme com grupos de manequins sem rosto, que são repetidamente esmagados e brutalmente destruídos e abusados. O filme de Arthur Jafa, , uma videomontagem de 40 minutos, que mostra pessoas brancas examinando a cultura e experiência negras através de um olhar extremamente racista, cheio de ódio
À esquerda: (Pavilhão EUA) Martin Puryear: Liberty/Libertá. Abaixo: (Pavilhão Bélgica) Jos de Gruyter e Harald Thys, Mondo Cane.
e terror, é tremendamente assustador. Mexe muito com o espetador com cenas duras, cruéis e reais do que acontece hoje à luz do dia e muitas vezes não sabemos, nem vemos. Deixa um gosto amargo na boca e uma impressão bastante pessimista e triste com relação ao caminho que as coisas estão tomando no mundo. Jafa ganhou o Leão de Ouro de melhor artista na bienal. Continuando a caminhada, entramos em uma instalação sonora de Shilpa Gupta com cem autofalantes, microfones e poesias/textos estampados e presos por pregos gigantes. O trabalho afronta a violência da censura através de uma sinfonia de vozes que declamam ou cantam em diversas línguas os versos de cem poetas presos por suas obras ou por suas
posições políticas, do século 7.º aos dias de hoje. Vemos esculturas de todas as dimensões espalhadas pelo caminho: uma série de Cameron Jamie, ; as formas geométricas gigantes de Liu Wei ; as cadeiras de Michael & Smith; o trabalho de Lara Favaretto, e as esculturas de Jimmie Durham, o ganhador do Leão de Ouro desse ano por sua carreira. Há muitos retratos fotográficos na Bienal deste ano também: o trabalho de Mari Katayama, que exibe suas deficiências em fotos sensuais; os autorretratos de Zanele Muholi - que são imagens imensas em papel de parede e têm uma presença imponente no Arsenale, onde nosso olhar encontra o dela repetidamente. Outro ponto muito discutido foi o trabalho intitulado , de
À esquerda: Fotografias de Mari Katayama e Zanele Muholi. Acima: Christoph Büchel, Barca Nostra.
Christoph Büchel, que trata abertamente do drama dos refugiados no Mediterrâneo. Ele expõe em pleno Arsenale o barco de pesca, que afundou em 2015 e levou consigo 1.100 vidas de migrantes que tentavam chegar a Lampedusa, na Itália. Esse trabalho, se é que podemos chamar assim, causou tremendo mau-estar e muita controvérsia, e não à toa, pois me parece de muito mau gosto expor um símbolo da tragédia humana e perda de tantas vidas como arte em uma . Bienal para acabar servindo de fundo para tantas Adorei e queria mencionar os trabalhos da artista Alexandra Bircken, tanto no Arsenale onde vemos a instalação com o que parece ser homens de borracha pendurados em escadas, quanto no Giardini, onde mostra várias propostas bem distintas e práticas muito diferentes, sempre com um olhar atento a temas e discussões pertinentes. É intrigante a instalação , da coreana Anicka Yi, que esconde moscas robóticas que se movem dentro de suas esculturas biomórficas incandescentes, presas no teto circundadas por crateras de líquidos. Alguns pavilhões nacionais localizados no Arsenale que valem a visita: o primeiro Pavilhão de Gana é extremamente forte e foi considerado um dos melhores da Bienal esse ano. Apresenta pinturas de Lynette Yiadom-Boakye, filmes de John Akomfrah, tapeçarias cintilantes e majestosas de El Anatsui feitas de tampas de garrafas e placas de alumínio, de uma beleza fascinante e retratos em preto-ebranco da década de 1960 de Felicia Abban, a primeira fotógrafa profissional de Gana, e o trabalho do artista Ibrahim Mahama. 55
O pavilhão da Arábia Saudita, intitulado , aparentemente é um mergulho em uma paisagem subaquática fabulosa. Ao tocarmos os objetos de aparência familiar, descobrimos que não são tão naturais quanto parecem. Na verdade, Zahrah Al Ghamdi fez os objetos que parecem ouriços com pedaços de couro cozido, como vemos em um documentário que faz parte do pavilhão. , é uma projeção em tela de No pavilhão indiano, uma das obras, neblina branca com um vídeo em preto-e-branco de Jitish Kallat. A projeção apresenta a carta histórica de Mahatma Gandhi escrita a Adolf Hitler em 23 de julho de 1939, apenas algumas semanas antes do início da Segunda Guerra Mundial. No espírito da doutrina da amizade universal de Gandhi, sua carta começa com a saudação “Caro amigo...” e oferece um apelo apaixonado a Hitler para que busque a paz e não a guerra. Na instalação de Kallat, o movimento do corpo que passa pelo nevoeiro difunde o texto de Gandhi, ecoando o destino de um pedido que foi claramente ignorado. Entramos em um verdadeiro labirinto, no tão falado e esperado Pavilhão Italiano, com curadoria de Milovan Farronato Como já sugeria o nome podemos nos perder de fato e o desafio é descobrir as obras, por vezes ocultas, de Enrico David, Chiara Fumai e Liliana Moro. Ao acaso, podemos dar a sorte de descobrir, em meio ao labirinto, a área de descanso, projetada com um clima de praia italiana e lá ouvir várias interpretações da música folclórica e “partigiana” italiana “Bella Ciao”. O prêmio deste ano de Melhor Pavilhão foi atribuído à Lituânia, que fica fora do , dos artistas Lina Lapelyte, Vaiva Arsenale e apresenta a obra Grainyte e Rugile Barzdziukaite. A instalação imersiva consiste em uma praia
56 CAPA
(Pavilhão Arábia Saudita) Zahrah Al Ghamdi, After Ilusion. Foto: Lucio Salvatore. À esquerda: (Pavilhão Índia) Jitish Kallat, Covering Letter.
artificial criada no interior de um depósito naval. O trabalho é uma performance sobre mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, é também uma ópera de quase uma hora de duração sobre um dia na praia cantado pelos turistas. O canto mais parece um lamento triste pela natureza que está morrendo nas nossas mãos, com nossas atitudes e posturas irresponsáveis. Trabalho forte e muito pertinente. Chega ao fim a visita a mais uma bienal e, certamente, sentimos que o que vimos fez jus ao título , mapeando as preocupações contemporâneas com uma urgência perceptível. Pensamos sempre mais o quanto é necessário e inadiável discutir, aprofundar-se e, eventualmente, começar a entender quão complexa é a realidade do presente. Devemos refletir sobre o nosso papel de agentes criadores dessa realidade e como esse
papel fundamental é capaz de influenciar o curso dos acontecimentos. Percebemos o ambiente artístico se tornando sempre mais um lugar de verdadeira reflexão, aprendizado e crescimento individual e coletivo através das mensagens profundas que vemos em tantas obras realmente impactantes. É um programa urgente, necessário e imperdível!
Contança Basto é carioca, astróloga e pesquisadora de arte.
La Biennale di Veneza • Giardini e Arsenale • Veneza • 11/5 a 24/11/2019
Jimmie Durham, Brown Bear, 2017. Foto: Nick Ash. Vencedor do Leão de Ouro Lifetime Achievement.
Renate Bertlmann_Let´s Dance Together, 1978. Š Renate Bertlmann_Bildrecht Wien.
LUCIANO
FIGUEIREDO POR ELE MESMO
“Iniciei
a série em 1995, com desenhos, pinturas e colagens a partir do , de filme Orson Welles, sobre o qual eu havia guardado uma rica iconografia de desenhos e fotografias. E mesmo já tendo apresentado trabalhos com colagens de jornais e diálogos retirados do filme , de Nicholas Ray, a minha relação construtiva e sistemática com o cinema viria a se consolidar mais tarde. Hoje, pensando bem, seu tecnicolor, seus diálogos barrocos, etc, não tinham relação com as páginas de jornais, objetos do cotidiano tão impessoais. Esses trabalhos representaram uma proto-poética experimental, da qual eu não imaginava como a partir de um fotograma seriam os desdobramentos. Em 1995, pintei precioso de uma cena de Cidadão Kane, onde a câmera se dirige para um de um refletor e fecha no filamento da lâmpada que começa a se apagar. Apropriei-me desse fotograma em sua forma simbólica e acrescentei o detalhe da corrente de bolso do personagem, com a inicial K ao contrário. Esse trabalho, parte da exposição em diálogo com Raymundo Colares (Galeria Leme /AD), deu início a vários outros que configuravam para mim a relação pintura/cinema. Sempre anotei e colecionei diálogos de filmes, em especial , cujo roteiro barroco e cores flamejantes foram sempre temas para a poética visual recorrente nessa série.”
MR. KANE DA SÉRIE KINOMANIA, DÉCADA 1980/90
REFLEXO 61
62 LUCIANO FIGUEIREDO
UR NOIR, 1984
“Apresentei este trabalho na minha primeira exposição individual, no Rio de Janeiro, em 1984. Minha produção dessa época era marcada pelo interesse no jornal como matéria e suporte. Objeto utilitário, diário e descartável. É certo que havia uma considerável dose conceitual na elaboração de poemas-visuais e objetos e muito da minha obra dos anos 1975-78, produzida em Londres, tinha como matriz cadernos, folhas impressas e, sobretudo, os tabloides londrinos. Quase nunca me apropriei do conteúdo noticioso das páginas, mas da estética gráfica das tipologias e ampliações fotográficas que, por vezes insinuavam deformações de imagens, transformando a realidade gráfica em espaços de abstração: a desfiguração do campo da representação. Trabalhei , advinda do termo film , assim definido muitas peças utilizando a palavra pelos críticos franceses do sobre a produção norte-americana do pós-guerra que a Europa não havia visto. O prefixo alemão significava a qualidade da cor preta ultrarremota, imemorial e primeva. Foram muitas as situações e qualidades dessa cor que encontrava nas páginas recortadas, rasgadas. Tanto que, aos poucos, fui compondo uma coleção de tonalidades de cinzas, em uma cromática variada de pretos. Assim, surgiu, poeticamente, como uma ideia de algo imemorial e remoto.” CRISTIANO MASCARO 57
AURI NOIR, 1984
“As diversas operações com os matizes da página impressa e toda a produção que partiu daí, levaram-me a insistir ainda mais em novas criações dentro do mesmo espírito. O trabalho que, com sua malha de latão sobre o espelho, evoca o próprio significado, semelhantemente ao , surgiu dessa “carga poética” de construção absurda. Iniciei a obra quando dobrava folhas de arame de trama muito fechada e que, quando superpostas, produziam luminoso reflexo do metal (latão). A seguir, cortei um pedaço da trama no mesmo tamanho de uma folha de jornal aberta. Dobrei-a e coloquei sobre um espelho, produzindo um volume virtual a partir do reflexo. De súbito, obtive uma matéria volumosa e brilhante que me remetia à forma dourada e cortei um quadrado para mais enfatizar o absurdo da operação. Recortei letras em latão e as apliquei às bordas do quadrado vazado na folha.”
As diversas operações com os matizes da página impressa, levaram-me a insistir ainda mais em novas criações dentro do mesmo espírito.
REFLEXO 65
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“Nos meus trabalhos, tento criar possibilidades de percepção. Simultaneamente apreendidas por quem as olha, as manchas de cor nas telas aparecem suspensas por meio das dobras/camadas que caem sobre a estrutura planar, reinventando as possibilidades da pintura para além dela mesma. Posso dizer que meu processo de trabalho se deu inicialmente a partir de algum problema formal que coloco a mim mesmo: uma forma, certo volume e uma ideia de cor. Quando comecei os , em 1992, ainda com os jornais, eu queria fazer maquetes dos primeiros projetos que planejava. Eram de pequeno formato, mas fundamentais para sentir a cor e o volume e depois partir para o formato maior e final. Fiz isso durante vários anos. A pequena maquete era muito necessária e sempre me assegurava sobre a futura produção. O artesanal é para mim indispensável. Foram muitos anos testando tecidos, lonas, colando e prensando uns aos outros para obter a estrutura planar e em seguida trabalhar a cor. E aí que dá uma operação toda especial, porque a cor, quando idealizada, é uma coisa, mas quando é de fato aplicada, ela surpreende e impõe soluções não exatamente previstas antes. Assim, o “fazer” se constitui de etapas, ora puramente muito técnicas, ora completamente conceituais e imaginárias.”
SÉRIE RELEVO, 2018
REFLEXO 67
RELEVO, SÉRIE JORNAL IMAGINÁRIO, 1999/2013
“A série que iniciei em 1984, passou por vários momentos e variações de suportes. Definitivamente, foi a série que afirmou todo o início da minha pesquisa com recortes de jornais por meio da riqueza dos pretos e brancos, cinzas e todos os explora sempre a matizes dessa paleta. qualidade de transparências, superposições e, na maioria das vezes, o formato real da página do jornal para obter um objeto em escala diferente daquele que o inspira. Os primeiros, feitos em grupos pintados sobre voal e tule, convidavam o público para seu manuseio sem restrição. Porém, a experiência do que é chamado “participação do espectador” teve para mim curta duração, já que a manipulação acabava quase totalmente por destruir o objeto”
Luciano Figueiredo em diálogo com Raymundo Colares • Galeria Leme/AD • São Paulo • 18/5 a 22/6/2019
Running along the Beach, Valencia, 1908. Š Museo de Bellas Artes de Asturias. Col. Pedro Masaveu.
JOAQUÍN
SOROLLA O
NATIONAL GALLERY, DE LONDRES, APRESENTA PRIMEIRA GRANDE EXPOSIÇÃO BRITÂNICA DE JOAQUÍN SOROLLA Y BASTIDA, CONHECIDO COMO O MESTRE DA LUZ DA ESPANHA. A MOSTRA INCLUI RETRATOS E PAISAGENS DA VIDA ESPANHOLA, ALÉM DAS CENAS DE PRAIA PELAS QUAIS ELE É MAIS RECONHECIDO
POR VÉRONIQUE GERARD POWELL Na última vez que Sorolla expôs suas obras em Londres, nas Galerias Grafton em 1908, foi chamado de “o melhor pintor vivo do mundo”. Joaquín Sorolla e Bastida (1863-1923) nasceu e se formou em Valência, realizou estudos posteriores em Madri e no estrangeiro, e obteve o reconhecimento internacional com 72 FLASHBACK
importantes pinturas de temática social. Sem embargo, foi o tratamento da luz em cenas cotidianas, nas paisagens e nos costumes, assim como as dotes de retratista, que o levaram a consolidar a sua fama. Como os grandes mestres espanhóis que ele tanto admirava, Diego Velázquez (1599-1660) e Francisco de
Goya (1746-1828), Sorolla tinha um talento excepcional para a pintura. Sua capacidade de capturar vida e movimento, muitas vezes ao ar livre e em grande da escala, continua a nos impressionar até hoje. Suas pinturas refletem os luz do sol na água, a tarde quente do calor escaldante e o ímpeto da brisa do mar. Tanto suas composições ousadas quanto os tons cromáticos cada vez mais acentuados sugerem que ele estava ciente das novas direções tomadas pela arte moderna. No entanto, como artista, ele sempre esteve comprometido com o naturalismo e representando a vida na Espanha em toda a sua complexidade. A CASA DOS SOROLLA Sorolla era um homem muito ligado à sua família, e sua esposa e filhos aparecem com frequência em suas obras. Em 1888, Sorolla se casou com Clotilde García del Castillo (1864-1929), filha de seu primeiro patrono. Clotilde, que sempre foi a modelo preferida do pintor, mal parece envelhecer ao longo dos anos. Os três filhos de Sorolla, María (n. 1890), Joaquín (n. 1892) e Elena (n. 1895), também aparecem em retratos variando de espontâneos a formais, como (1910), em uma referência clara a Goya: muitas dessas pinturas, incluindo o autorretrato de Sorolla, pintou em uma de suas várias casas em Madri. A última casa tinha um escritório muito grande e um jardim frondoso com abundantes roseiras.
À esquerda: Types from Salamanca, 1912 © Museo Sorolla, Madrid. Acima: Self Portrait, 1904. © Museo Sorolla, Madrid. À direita: María with Mantilla, 1910. © Museo Sorolla, Madrid.
Madeleine II, 1903.
Em 1932, nove anos após a morte de Sorolla, a casa e o ateliê foram abertos ao público. Hoje em dia, o Museu Sorolla é um Museu Nacional da Espanha. TEMÁTICA ESPANHOLA: REPUTAÇÃO INTERNACIONAL Durante a década de 1890, quando a Espanha foi marcada pela agitação social e pela perda das colônias, Sorolla promoveu sua carreira com obras que davam conta da dura realidade de seu país. Em 1892, seu primeiro grande sucesso, , que representa uma mulher presa por matar seu filho, ganhou elogios em Madri. A partir desse momento, Sorolla pretendia alcançar fama internacional enviando seus trabalhos para exposições em toda a Europa.
À esquerda: Sad Inheritance!, 1899. © Colección Fundación Bancaja, Valencia. Abaixo: Another Marguerite!, 1892. © Mildred Lane Kemper Art Museum, Washington University in St. Louis.
A proeza técnica de Sorolla e sua ousada denúncia social, com temas como a delinquência, exploração do trabalho e a devastação de doenças, atraíram a atenção do público. Seus trabalhos começaram a ganhar prêmios de prestígio: (1896) ganhou medalhas em exposições em Paris, Munique e Viena, e sua monumental (1899) recebeu um Grand Prix na Exposição Universal de Paris em 1900. Embora, depois de 1900, Sorolla tivesse distanciando da questão da crítica social, essas pinturas tiveram um impacto perceptível sobre a próxima geração de pintores espanhóis, entre eles o jovem Pablo Picasso (1881-1973). JOAQUÍ SOROLLA 75
Sewing the Sail, 1896. Š Photo Archive - Fondazione Musei Civici di Venezia.
After the Bath, the Pink Robe, 1916. © Museo Sorolla, Madrid.
FIEL À TRADIÇÃO ESPANHOLA , foi o título do ensaio que o romancista Vicente Blasco Ibáñez publicou sobre Sorolla, em 1907. Sorolla se viu dentro dessa tradição de artistas espanhóis que se destacaram por suas grandes habilidades de observação e apuro técnico. Em seus retratos, Sorolla costumava recorrer à gama característica de pretos, cinzas e marrons usados por seus antecessores, e também tentava alcançar a acuidade psicológica que tornara famosos esses artistas. Sorolla não foi o único que sentiu tal devoção pela tradição espanhola. Desde meados do século 19, as técnicas de pintura, o cromatismo e os temas de Velazquez e Goya estavam se associando a arte moderna internacional de artistas como Édouard Manet (1832-1883), John Singer Sargent (1856-1925) e James Whistler (1834-1903). A LUZ DO SOL E DO MAR Nascido em Valência, Sorolla foi criado junto ao mar. A partir de 1900, ele produziu inúmeras obras pintadas ao ar livre, nas quais documentou as cenas de trabalho e lazer que testemunhou nas praias valencianas e mais ao sul, em Jávea. Essas pinturas venderam muito bem, especialmente nos Estados Unidos. 78 FLASHBACK
Aqui, grupos de crianças correm pela praia, a luz do sol dança no mar e as mulheres se ajudam a se despir à sombra das cabines. Crianças e bebês tomam banho, como sempre, enquanto meninas e mulheres usam vestidos longos. A atmosfera espontânea e despreocupada dessas obras não nos permite vislumbrar o intenso trabalho que as precedeu. Sorolla costumava fazer esboços preparatórios e estudava esculturas clássicas antes de colocar seus . Em dias muito modelos quentes, ele pintava sob grandes guarda-sois e fixava as lonas com cordas para que o vento não as derrubasse. VISÃO DE ESPANHA Em 1908, uma importante retrospectiva da obra de Sorolla foi inaugurada nas galerias Grafton, em Londres. E, embora a exposição tenha gerado opiniões diferentes, foi por meio dela que seu trabalho descobriu o que seria seu patrono mais importante: o filantropo e colecionador americano Archer Milton Huntington (1870-1955). Huntington, apaixonado pela arte e cultura espanhola, acabara de fundar a grande Sociedade Hispânica da América, em Nova York, para abrigar suas coleções. Em 1909, uma exposição da obra de
Sorolla tinha o dom de encontrar o ponto de vista que melhor transmitisse a atmosfera e o caráter de um lugar.
Abaixo: Skipping Rope, La Granja, 1907. © Museo Sorolla, Madrid. À direita: Gardens of the Alcázar of Seville in Winter, 1908. Archivo fotográfico BPS. The Cypress of the Sultana, Generalife, 1910. Archivo fotográfico BPS. Burgos Cathedral under Snow, 1910. © Museo Sorolla, Madrid.
Sorolla na Hispanic Society foi tão bem-sucedida que Huntington persuadiu o artista a decorar a biblioteca da instituição com uma série de murais de 70 metros de , essa obra largura. Entitulada pretendia documentar as tradições, comércios e roupas das diferentes regiões do país. Entre 1911 e 1919, Sorolla visitou a Espanha preparando e executando essa comissão. PAISAGENS E JARDINS Sorolla tinha o dom de encontrar o ponto de vista que melhor transmitisse a atmosfera e o caráter de um lugar. De uma panorâmica das áridas montanhas de Sierra Nevada brilhando à luz do pôr-do-sol para as torres medievais da Catedral de Burgos sob a neve, ele tentou capturar a Espanha em toda a sua diversidade sob variadas condições climáticas. Durante suas visitas ao sul, ele reproduziu a herança monumental do país a vista dos jardins do Alcazar de Sevilha e Alhambra, em Granada, brincando com a geometria desses espaços meticulosamente projetados e com os reflexos desconcertantes dos edifícios em suas fontes e piscinas. Em San Sebastian, ele era fascinado pelo clima imprevisível e pela violência do mar, enquanto em Ibiza ele se concentrava nas falésias e no azul intenso de suas águas. 81
Young Fisherman, Valencia, 1904 Š Photo: Laura Cohen.
Afternoon at the Beach in Valencia, 1904. Arango Collection. Archivo fotogrรกfico BPS.
My Wife and Daughters in the Garden, 1910.© Fundación María Cristina Masaveu Peterson, 2013. Foto: Marcos Morilla
SOB A LUZ DO SOL “Os pintores nunca conseguem captar a luz do sol como ela realmente é. Só posso me aproximar da realidade” afirmou Joaquín Sorolla, em 1909, referindo-se a Monet. Após sua retrospectiva, em Nova York, ele conseguiu vender 195 obras em sua turnê com a exposição pelo país. Em Washington, o presidente Taft posou para um retrato que asseguraria a reputação internacional de Sorolla. O artista retornou à Espanha se transformando em um homem rico e com a perspectiva da generosa comissão que receberia pela . Muitas dessas
pinturas ele realizou antes quanto depois de alcançar seu grande triunfo nos Estados Unidos. (1910) apresenta um tema que o ocuparia pelo resto de sua vida: a representação da família em telas monumentais, ao ar livre, como no próprio jardim de sua casa. Foi precisamente ali naquele jardim onde, em junho de 1920, ele sofreu um ataque de uma paralisia da metade do corpo que o deixaria incapaz de pintar. Sua condição de repente piorou e ele morreu cercado por sua família, em 10 de agosto de 1923.
Véronique Gerard Powell é curadora e docente da História da Arte Moderna e PhD em História da Arte
Sorolla: Spanish Master of Light • The National Gallery • Londres • 18/3 a 7/7/2019
Clotilde and Elena on the Rocks, Jรกvea, 1905 Archivo fotogrรกfico BPS.
PATRICIA
CHAVES POR THIAGO FERNANDES Nascida em Niterói, a artista Patrícia Chaves, graduada em Pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, expõe em sua cidade natal, na Galeria Reserva Cultural. Ao lado das artistas Rita Manhães e Stella Margarita, Patrícia faz parte da mostra Três Vezes Pintura, que tem curadoria de Vilmar Madruga e apoio da Eixo Arte. Patrícia Chaves apresenta na Galeria Reserva Cultural duas pinturas em grandes formatos que incidem sobre o tema da infância, já trabalhado pela artista em diversos momentos de sua trajetória. Um olhar atento revela que, além de serem fragmentadas em pequenas telas quadradas, as duas 88 GARIMPO
imagens complementam-se, formando uma unidade. A dialética repartiçãounidade é um dos principais aspectos que caracterizam o trabalho pictórico da artista, assim como as fortes pinceladas, um eventual contorno feito a carvão - que ora escapa da forma produzida pela pintura, ora sobrepõese a ela - e, sobretudo, a reduzida paleta de cores, que desfigura o comum imaginário de uma infância colorida e confere certa ordem à composição. Essa racionalização concerne ao ato de anamnese, intrínseco ao trabalho de Patrícia, que não utiliza referências fotográficas ou qualquer tipo de modelo. É a partir da
memória que a artista constrói as cenas que testemunhamos em suas pinturas. Enfatizo aqui o verbo construir, e não reconstruir, pois não se trata da materialização precisa de um tempo passado, que jamais poderá retornar, mas de lampejos que encontram a superfície tela após sobreviverem na memória, num intercâmbio entre imagem e corpo. O historiador da arte alemão Hans Belting afirma que nossos corpos "servem como uma mídia viva que nos faz perceber, projetar ou lembrar de imagens, o que também permite a nossa imaginação censurá-las ou transformá-las". Dessa maneira, entendemos que o corpo produz e armazena imagens, que ora são convocadas por meio de um gesto, como o ato de pintar, para adquirir visualidade no mundo físico. A subjetividade dos corpos e dos gestos que produzem as imagens também as decompõem, corrompem, transvestem. Por isso, insisto, trata-se sempre de uma construção. O quanto podemos confiar na memória? Essa faculdade mental sujeita a falhas, que ocasionalmente insiste em nos pregar peças, é incorporada ao processo criativo de Patrícia com toda sua imprecisão e obscuridade. Sua pintura é como uma colagem de lampejos de memória, sempre incompleta e repleta de ambiguidades. O único elemento que indica a localização dessas lembranças - o quintal de uma casa - é a vegetação que se manifesta em fragmentos, preenchida por um verde que escapa da forma delineada e invade, com pinceladas sutis, o
É a partir da memória que a artista constrói as cenas que testemunhamos em suas pinturas.
corpo da figura humana que repousa à sua esquerda. Por sua vez, o pigmento desse corpo também esvoaça e produz linhas ferozes sobre a tela, tomando distância do contorno que delimita a figura e, assim, produz abstrações ao contrastar com o intenso tom vermelho que domina o fundo da composição. Esse jogo entre abstração e figuração é como uma alegoria à memória, que pode apresentar-se tanto nítida e reconhecível como abstrata e nebulosa. Figura, fundo, linhas, cores, signos, todos os elementos visuais e semióticos embaralham-se e confundem-se nas pinturas de Patrícia, à exemplo das imagens produzidas pela mente, sejam sonhos, delírios ou lembranças. Figuras de crianças sem rostos, sem identidade, indicam que não se trata, necessariamente, de uma lembrança autobiográfica ou de um autorretrato, mas traços de momentos
Thiago Fernandes é historiador da arte e mestre em Artes Visuais pela UFRJ.
90 PATRICIA CHAVES
testemunhados ou simplesmente ficções produzidas por uma mente traiçoeira. Riscos de carvão ameaçam revelar um corpo que começou a ser delineado, mas cuja imagem não se completa, talvez em razão de uma lacuna na memória. Esse corpo misterioso é como uma efígie do esquecimento - aquilo que não se consegue ou não se quer trazer à memória. Se não é possível confiar na memória, também é necessário desconfiar das imagens, que por mais que se tentem objetivas, sempre possuem um traço daquele que as produziu. Com seus fragmentos de memórias, que compõem fragmentos de telas, Patrícia Chaves afirma a impossibilidade de representar plenamente um tempo que se foi. Atesta, sobretudo, o grau de subjetividade presente no ato construtivo da imagem e da narrativa por meio da memória.
Três vezes pintura • Galeria Reserva Cultural • Niterói • 24/5 a 30/6/2019
Todas as imagens: Sem título. Cortesia: Eixo Arte.
RESENHAS exposições
Denise Milan • Glasstress 2019 • 9/5 a 24/11/2019 • Berengo Art Space Foundation • Murano Itália POR LICA CECATTO
O indivíduo, a família, os amigos, os conhecidos, os colegas de trabalho, a cidade, o Estado, o país, o mundo. O centro da terra. O céu. Denise Milan serve sobre a mesa redonda o , oferecido com generosidade para que possamos, com prazer, lembrando Oswald de Andrade, seguir antropofágicos. Vamos comer Caetano. Vamos comer Denise Milan e sua cosmogênese. O meio não é usado para produzir arte, o próprio meio é a arte. Há, sim, uma atração mútua e um casamento entre a artista e a matéria escolhida, que resulta na obra. Denise Milan, com percepção aguda e sensibilidade, recria o mundo por meio da capacidade de entrar em comunicação com o incomunicável. Ousada e certeira, ciceroneia, dispõe as esculturas brancas e translúcidas sobre a mesa de vidro preto com destreza de coreógrafa, deixa-nos à vontade com seus elementos “familiares”, somos imediatamente e magneticamente inseridos no banquete. 92
Sabe-se da qualidade transcendental da arte, que vai além das barreiras do tempo e do espaço, o que significa muito em se tratando de pedras, testemunhas de milhões ou bilhões de anos de história e suas mutações. A generosidade de Denise Milan é a de abrir os portais do seu mundo, mostrar sua intimidade, sua relação profunda com os elementos elegidos por ela como um mergulho ancestral. O vidro, curiosamente, tem uma estrutura desordenada e rígida composta de átomos que se movem e só pode se transformar em vidro usando materiais que tenham uma velocidade de cristalização muito lenta. Vidro e pedra se encontram em suave harmonia e arriscam, sugerindo uma origem comum de rochas e homens.
Denise Milan nos acorda para um novo mundo, aconchegando-nos em seu cosmos, e nos mostra o que já existia mas que nossos olhos não teriam como enxergar se não fosse sua capacidade de escavar belezas. Atração irresistível. A artista não engole pedras em um circo imaginário e sensacionalista, pelo contrário, com sutileza e agudez, acende uma luz na escuridão para que as formas e seus conteúdos se revelem. Curiosamente, falando-se de Itália e do Império Romano, o primeiro vidro usado nas casas dos romanos era translúcido, feito de uma pedra chamada encontrada em cavernas. A qualidade que os romanos atribuíam a esse vidro-depedra era a transparência, e o definiam de maneira curiosa, pertinente ao seu tempo, como “extratos de água” que vão se acumulando em milênios. Usava-se para janelas e portas. Denise nos traz pedras, vidros, gotas de cristais, tudo com a leveza da água, em uma cidade circundada por água, que, na realidade, são várias ilhas, e uma ilha
mais específica, Murano, grande produtora de vidro e onde nasce , há 10 anos, fundada por Adriano Berengo e que, em 2019, tem como curadores Vik Muniz e Koen Vanmechelen.
Fotos: Sérgio Coimbra.
Lica Cecatto, paulista que vive entre Veneza, Rio de Janeiro e Kamakura, trabalha no mundo como música e artista multimeios culturais.
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RESENHAS exposições
Leticia Battaglia: Palermo Instituto Moreira Sales • São Paulo • 27/4 a 22/9/2019 POR NICHOLAS ANDUEZA
FOTO-COISA, FOTO-FLUXO Quantas coisas uma foto pode ser? E um enxame de fotos? De quantas formas ela pode se apresentar aos olhos? Na exposição , que ocorre até 22 de setembro no Instituto Moreira Sales – SP, uma polissemia contraditória desafia nosso olhar. Com a curadoria pouco usual de Paolo Falcone, que omite títulos, datas e lugares, somos apresentados a um fluxo visual ao mesmo tempo flutuante e concreto, total e múltiplo, com visões de uma cidade tomada pela máfia. Está em jogo o próprio ato de ver. As fotos ficam suspensas por fios, preenchendo o espaço (e não as paredes), organizadas de modo simétrico, não cronológico e sem legenda: eis a flutuação, uma leveza multi-imagem. Nos enquadramentos, vemos corpos de jovens, crianças, velhos, adultos, alguns deles mortos; 94
corpos existindo, chorando, sangrando: aí está a concretude, o peso do contexto de uma Palermo entre 1970 e 2000. Em uma parede, edições de revistas publicadas por Bataglia que, além de fotógrafa, é também jornalista, política-ativista pelo Partido Verde e editora. A formação múltipla explica a variedade visual. Nas imagens de assassinato, vemos um fotojornalismo, também presente em fotos de prisões, funerais: crueza do registro, denúncia de execuções. Mas, em outra foto, dois meninos encaram a câmera, fumam seu cigarro ao lado da – olhares que nos
À esquerda: Exposição, 1961. Abaixo: Desenho com autorretrato, 2001. Fotos: Acervo Millôr Fernandes / Instituto Moreira Salles
Vista da exposição. Fotos: Nicholas
transpassam e evidenciam um interesse etnográfico-poético. Ainda no meio disso, composições artísticas: o de uma mulher dividido por uma luz cortante, o nu feminino de um corpo inteiro, posando diante de uma fachada. São composições variadas que formam uma constelação visual de Palermo, uma totalidade imaginária que, no entanto, abriga o múltiplo e é capaz de destoar de si mesma, desconcertando o espectador. A ausência de legendas impede a domesticação da imagem pela palavra, faz de cada foto uma esfinge, uma foto-coisa que, ao mesmo tempo, ataca e atrai. E o foto-fluxo então se complexifica: se ele mimetiza a torrente de imagens anônimas nos meios de comunicação atuais, imagens de choque que se prestam a qualquer notícia ( ou não), ele o faz de forma crítica, contrapondo-se a esse contexto por meio das próprias
contradições internas, que nos obrigam a ver – e não só olhar. Assim, a visão de um corpo executado, deixa de ser mero mecanismo de choque (como é a tendência do fotojornalismo, segundo Susan Sontag) e passa a se demorar em nós. A imagem de uma menina magrela, de roupas sujas, que segura uma límpida bola de futebol, nos olha de volta e nos desafia – como fazem os meninos da . Nossos olhos tocam os olhos da foto. São imagens que perdem sua instantaneidade e dão lugar a uma duração própria, lastreada de em , diria Roland Barthes. É a duração de um lugar: Palermo. Mas Palermo também é aqui e agora.
Nicholas Andueza é doutorando bolsista em Comunicação e Cultura na UFRJ, é professor de cinema em cursos em Nova Friburgo e trabalha como editor de cinema e audiovisual.
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RESENHAS exposições
Ralph Gehre: Jogo de Simples • Referência Galeria de Arte Brasília • 25/5 a 13/7/2019 POR LAÍSE FRASÃO
“Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: lá estão um martelo, uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, cola, pregos e parafusos. Assim como são diferentes as funções desses objetos, assim são diferentes as funções das palavras. (E há semelhanças aqui e ali).” WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Abril, 1975. (Os Pensadores). Nesse sentido, a pintura, para Ralph não é apenas consequência de um conjunto de elementos da linguagem visual e/ou intencionalidade, mas resultante direta de um trabalho contínuo imbricado pela vivência com pessoas; interações com coisas e situações diversas; e leituras/ repertório visual. O ato de pintar seria, nesse caso, simultaneamente, uma maneira de olhar o mundo e uma transcrição desse olhar. “Pintar é difícil, mas é possível!”, afirma Gehre. 96
Apesar da utilização do termo “jogo”, a individual de Ralph não é permeada pela concepção de duelos entre artista, obra e fruidor, por exemplo. O jogar aparece em um contexto de manipulação visual e de entrega das incertezas de um processo criativo que, sutilmente revelado por marcas de pinceladas e camadas aparentes, parte de um afastamento da necessidade de cumprimento de um projeto prévio em sua totalidade. A possibilidade da pintura, aqui, se faz pela nítida presença do ruído – enquanto materialização de um percurso de produção operado a partir do encontro com o contentamento. Contentamento esse que também conduz o fruidor, quase automaticamente, a um percurso sem qualquer lógica sequencial e/ou linear, já que é a própria conexão compositiva e/ou cognitiva entre as obras que parece conduzir o caminhar. Ademais, é a percepção que, por aproximação ou distanciamento, revela a luminosidade branca, ora como luz, reflexo e, até mesmo, sombra, em meio
ao jogo de uma escala cromática, predominantemente, composta de tons primários e terciários – tendentes ao petróleo. “Penso jogos. Ou melhor, penso-os como formas de encontro, relação própria da pintura. Ela se dá por aproximação”, afirma Ralph. Sendo assim, por inferência nossa, talvez a maior aproximação das obras expostas em seja com a linearidade e a sobreposição de planos, aspectos inerentes ao desenho – linguagem vinculada à formação em Arquitetura e Urbanismo do artista. As linhas e os volumes reforçam efeitos compositivos que são, consequentemente, expandidos para o espaço expográfico a partir de rebatimentos e projeções de sombra/luminosidade na parede branca da galeria. Caso outra disposição luminotécnica fosse realizada, por exemplo, teríamos Fotos: Jean Peixoto.
outras obras e outras exposição. Afinal, a pintura, embora vinculada a um substrato, avança! Avança de tal forma que não se limita ao espaço a ela designado (suporte e/ou moldura). Suporte que nas telas de Ralph é condicionante e condicionado pela obra, na medida em que ora se distancia (sendo mais evidente e sem acabamento, gerando ruptura), ora é parte integrante da obra (com suas faces acompanhando e/ou contrastando com o acabamento frontal da tela, gerando continuidade). Portanto, contrariando uma nefasta categorização, a pintura em Ralph também é espaço, é escultural!
Laíse Frasão é arquiteta e urbanista e graduanda do curso Teoria Crítica da História da Arte pela Universidade de Brasília (UnB).
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LIVROS lançamentos
Patricia Leite: Olha pro céu, meu amor Organização: Rodrigo Moura Editora Cobogó • 200 pg • R$ 110,00 As pinturas de cores marcantes criadas nos últimos 15 anos pela mineira Patricia Leite, que utiliza diferentes referências para experimentar sensações e retratar o mundo, fazem parte da primeira monografia dedicada à artista, organizada por Rodrigo Moura, antigo curador do Inhotim em Minas Gerais, e hoje curador do El Museo del Barrio, em Nova York. Em , estão reunidas mais de 100 pinturas, que vão desde as origens na abstração gestual à posterior pintura de paisagem. "Para uma pintora com quase 40 anos de carreira, Patricia está longe de ser alguém com uma visão fechada sobre sua maneira de pintar", escreve o organizador, em ensaio crítico sobre a trajetória artística dela.
Encontro com Liuba: Claudia Jaguaribe
Editora Tuí • 40 pg • R$ 200,00 Livro de fotos e serigrafias que cria uma narrativa visual e um diálogo a partir das obras de LIUBA, artista plástica búlgara radicada brasileira. O projeto, produzido especialmente para a trilogia de Jaguaribe sobre mulheres modernistas nas artes no contexto histórico do pós-guerra, é uma extensão autoral da instalação formada por fotografias feitas pela fotógrafa nos ateliês de LIUBA em Paris e em São Paulo. Nascida na década de 50, período de consagração do modernismo brasileiro, Claudia Jaguaribe propõe a construção de uma narrativa visual das obras da artista búlgara, que privilegia a imagem como linguagem expressiva dos aspectos da modernidade presentes nas esculturas de LIUBA, em um diálogo com as questões do mundo contemporâneo. 98
Rodrigo Sombra: Noite Insular: Jardins Invisíveis Edição: Patricia Karallis • Coordenação: Regina Boni Editora Paper Journal • R$ 75,00 A publicação é resultado de uma imersão de cinco meses do fotógrafo baiano Rodrigo Sombra em Cuba e tem por referência o imaginário marítimo da ilha, explorando uma concepção subjetiva de "insularidade". Traço decisivo da cultura cubana, a insularidade se faz sentir na obra de Sombra para além do seu sentido meramente geográfico. Neste projeto - composto por exposição na Galeria São Paulo Flutuante, sob curadoria de Regina Boni, e pelo presente fotolivro -, o conceito serve como chave para explorar as dinâmicas do desejo na Cuba contemporânea, evocando tensões entre o senso de isolamento e o anseio por cruzar os limites da ilha.
Verifique se o mesmo Nuno Ramos Editoria Todavia • 304 pg • R$ 64,90 Literatura, artes plásticas, cinema, futebol, canção popular. São muitos os temas de interesse de Nuno Ramos, artista plástico e escritor consagrado nas duas áreas. Mas uma obsessão é comum a todos os textos: o Brasil. Por trás de ensaios sobre Tunga, Caetano Veloso, Glauber Rocha, Graciliano Ramos, Oscar Niemeyer ou Nelson Cavaquinho, há uma interpretação complexa do país. Capaz de condensar reflexões de alto grau de abstração, referências diversas da cultura popular e voz autoral numa prosa cristalina e jamais previsível, Nuno deixa claro neste livro que além de grande artista e ficcionista de mão cheia, é também um dos maiores ensaístas de sua geração.
COLUNA DO MEIO Fotos: Wilson Ribeiro Jr.
Quem e onde no meio da arte
Nivalda Assunção, Karla Osório e Grace de Freitas
Lúcia Bahia, Arthur, Natanry e Diva Osorio
Lucia Tallova Galeria Karla Osorio Brasília Karla Osorio e Lucia Tallova
Josafá Neves e Tainá
Malú e José Manuel Grossi
Fotos: Paulo Jabur.
Georg e Sabine Witschel
Fernanda Lopes, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale
Fernanda Junqueira e Alexandre Dacosta
Ana Bella Geiger MAM Rio de Janeiro Sílvia e Carlos Alberto Gouvêa Chateaubriand
Simone Cadinelli e Úrsula Tautz
Suzana Queiroga
Marta Fadel e Anna Bella Geiger
Fotos: Zé Carlos Barretta.
Juliana Perdigão, Afonso Tostes e Iky Castilho
Rita Faria e Mônica Novaes
Afonso Tostes SESC Pompeia São Paulo Afonso Tostes e Ana Mazzei
Daniel Rangel
Sofia Carvalhosa
Fotos: Paulo Jabur.
Mallu Galli e Debora Bloch
Martha Pagy e Regina Silveira
Hildebrando de Castro, Tereza de Arruda e Marcelo Fernandes
50 anos de Realismo CCBB Rio de Janeiro Tereza de Arruda e Valeria Prata
Efrain Almeida e Gilberto Grawonski
Danon Lacerda, Regina Silveira e Marcelo Fernandes
Luiz Carlos Vasconcelos e Valéria Prata
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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