OTOBONG NKANGA CHRISTIAN BOLTANSKI JOSEF BAUER MARCIA PASTORE PIERRE BONNARD MATIAS MESQUITA
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SOCIAL MEDIA Thiago Fernandes
Capa: Otobong Nkanga, The Weight of Scars, 2015. Cortesia da artista e Lumen Travo, Amsterdam, In Situ/Fabienne Leclerc, Paris and Mendes Wood DM, São Paulo, Brussels, New York. Foto: Christine Clinckx - MHKA.
DESIGNER Moiré Art REVISÃO Angela Moraes SUGESTÕES E CONTATO dasartes@dasartes.com APOIE A DASARTES Seja um amigo Dasartes em recorrente.benfeito ria.com/dasartesdigital Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ
Christian Boltanski, Animitas blanc, 2017. Archives Christian Boltanski. Foto © DR © Adagp, Paris, 2019
Contracapa: Pierre Bonnard, The Garden, 1936. Foto: Musée d'Art moderne de la Ville de Paris/ Roger-Viollet.
OTOBONG NKANGA
14 PIERRE BONNARD
8 De arte a Z 77 Livros 78 Coluna do meio
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JOSEF BAUER
MARCIA PASTORE
CHRISTIAN BOLTANSKI
MATIAS MESQUITA
72
62
40
50
ANDREA PECH
ADRIANA VIGNOLI
MANASSÉS MUNIZ
FELIPE GÓES
RAFAEL BA
RENATA PELEGRINI
ARON
concurso GARIMPO 2019/2020
Vote em seu ARTISTA preferido. O mais votado ganhará MATÉRIA na Ed. 93 (Fevereiro 2020). Votações abertas até 20 DE JANEIRO em
DE ARTE A Z Notas do circuito de arte TESOURO ESCONDIDO Um retrato de Gustav Klimt, roubado há quase 23 anos, pode ter sido descoberto, escondido na parede perto de onde havia sido exibido pela última vez. Embora os especialistas ainda estejam verificando a autenticidade da obra, pode ser (1917), uma das principais obras de arte ausentes do mundo. O Klimt desaparecido está avaliado em US$ 66 milhões.
SENSAÇÃO DA ARTBASEL
VITÓRIA DA SOTHEBY’S
CRISE NAS FEIRAS DE ARTE?
Em Miami
No Reino Unido
Feira congelada
Os compradores de duas edições da controversa obra de banana de Maurizio Cattelan, (2019), foram revelados. Os colecionadores de arte de Miami, Billy e Beatrice Cox, compraram uma versão da obra – que consiste em uma banana presa a uma parede com fita adesiva – por US$ 120 mil, enquanto Sarah Andelman, fundadora da boutique parisiense Colette, comprou outra edição.
Uma empresa de investimentos em arte deve agora cerca de US$ 6 milhões à Sotheby's pela venda de uma pintura falsa de Frans Hals, determinou o tribunal comercial de Londres. A Fairlight Art Ventures, foi uma das duas partes que adquiriram a obra em 2010 do negociante de arte francês Giuliano Ruffini, que está sujeito a um mandado de prisão por inúmeras falsificações.
A empresa organizadora da feira Art Berlin cancelou temporariamente edições futuras do evento, citando falta de fundos e estabilidade como fatores-chave por trás da decisão. A Art Berlin, uma feira de arte moderna e contemporânea, encerrou sua terceira edição no Aeroporto Tempelhof em setembro passado, mostrando obras de cerca de 110 galerias.
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GIRO NA CENA LABORATÓRIO DE ARTES VISUAIS Inscreva-se até 20/01
Pelo sexto ano consecutivo, a OMA galeria abre inscrições para o processo seletivo do seu programa de acompanhamento de jovens artistas. Criado com o intuito de auxiliar artistas em início de carreira, o projeto já recebeu mais 70 artistas ao longo dos seus seis anos de existência. O edital prevê a seleção de 20 nomes para acompanhamento gratuito durante o ano de 2020. Inscrições em www.omagaleria.com.
Censura nunca mais Telas do artista Gabriel Grecco, que levaram ao cancelamento de exposição no Espaço Cultural Correios, são apresentadas no Ingá. São cerca de 30 pinturas que demonstram perplexidade e resistência que o artista impõe em meio às adversidades que encontra para articular seus pensamentos e inquietações. Solar do Jambeiro, Niterói Até 31/01/2020.
Para analisar “Há muitas coisas que eu não fiz, metade delas são lixo e devem ser queimadas.”
Tony Cragg chega ao MuBE Gerhard Richter, referindo-se à tentativa de venda de seus desenhos antigos por US$ 5-6 milhões pelo negociante de arte Helge Achenbach, atualmente preso por fraude. Enquanto isso, um especialista de uma casa de leilões diz que os desenhos valem consideravelmente menos - cerca US$ 110 mil.
Expoente da arte contemporânea e reconhecido internacionalmente por sua obra escultórica, o artista britânico Tony Cragg apresenta um representativo conjunto de sua produção na exposição no MuBE — Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia. MuBE, São Paulo Até 1/3/2020.
GIRO NA CENA
Arte urbana de Tinho Um dos precursores do grafite no Brasil e um dos principais nomes da arte urbana na América Latina, o paulistano Walter Tada Nomura, (Tinho) abre a individual com 16 trabalhos (15 pinturas e uma instalação) de duas séries complementares do artista, que tem obras espalhadas por muros e paredes de inúmeras cidades mundo. Paço Imperial, Rio de Janeiro Até 16/02/2020
UM BANSKY PARA O NATAL No espírito do Natal e das eleições gerais do Reino Unido, Banksy criou um novo mural que chama a atenção para os sem-teto. Em um vídeo, postado em sua rede social, um homem chamado Ryan deita em um banco que foi transformado em um trenó com a adição de duas renas pintadas na parede. Uma versão de aparece em segundo plano, enquanto Ryan cochila. O trabalho apareceu na rua Vyse, em Birmingham, no centro da Inglaterra.
Musicais no MIS A partir de fotografias, vídeos, cartazes, figurinos e depoimentos, a mostra reúne filmes musicais destacando marcos para o gênero, como (1952), (1961) e (2000). Ainda há destaque para figuras importantes como Fred Astaire, Julie Andrews, Cyd Charisse e John Travolta. MIS, São Paulo Até 16/02/2020
10 DE ARTE A Z
VISTO POR AÍ
foi aberta no Museu de Belas Artes da Virgínia (VMFA). A mostra apresenta mais de 60 obras, incluindo pinturas a óleo, aquarelas, desenhos e um quarto de hotel totalmente funcional onde os visitantes podem dormir na famosa pintura , de 1957.
LE SALON DES REFUSÉS Casa da Luz convida artistas a participar de uma exposição “guerrilha”, onde cada um recebeu como restrição: o tamanho da obra. Em um momento em que restrição pode soar de mau tom, neste caso, teve somente o objetivo de acomodar o maior número de obras, de pensamentos, de expressões possíveis, e celebrar a amizade, a união e a diversidade da nossa sociedade, ideais estes prezados pela iniciativa independente da Casa da Luz de promover a cultura livre e plural. O foi uma série de exposições dos artistas, que se reuniram em revolta, ao serem 12 AGENDA
sistematicamente recusados no salão oficial do governo francês no século 19, criando um forte concorrente à arte oficial, servindo de berço para a arte moderna e aos movimentos de arte independentes, considerados, mais tarde, como degenerados pelo regime nazista. Acima: Obra de Veridiana Leite.
Le Salon des refusés • Casa da Luz • São Paulo • 7/12/2019 a 6/2/2020
OTOBONG NKANGA
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DEPOIS DE EXPOR NA BIENAL DE SÃO PAULO E RECEBER MENÇÃO ESPECIAL NA BIENAL DE VENEZA, A ARTISTA NIGERIANA MULTIDISCIPLINAR OTOBONG NKANGA GANHA SUA PRIMEIRA INDIVIDUAL NO REINO UNIDO
POR ANNE BARLOW Otobong Nkanga, nascida em 1974 no Kano, Nigéria, vive e trabalha em Antuérpia, na Bélgica. Sua prática multidisciplinar abrange tapeçaria, desenho, fotografia, instalação, vídeo e performance, e aborda a política da terra e sua relação com o corpo, bem como as complexas histórias de aquisição e propriedade de terra. Nkanga conecta fios que revelam os emaranhados de corpos, terras e recursos naturais. Suas obras refletem sobre os processos e as consequências da extração de recursos naturais a partir de perspectivas éticas, humanas e materiais. Ela explora a transformação de minerais em mercadorias desejáveis – incluindo o uso de mica na maquiagem para dar brilho e cintilar – como um comentário sobre o valor atribuído à cultura material, geralmente às custas do meio ambiente. Um número desses trabalhos se relaciona com a pesquisa de Nkanga em locais como a antiga mina de Tsumeb, na Namíbia, que reflete seu interesse mais amplo em lugares que foram “esvaziados” por meio dos processos de extração, ambos em termos de terra e pessoas. Outros trabalhos, como (2015), contêm ecos das ações mecânicas da própria escavação, enquanto o (2015) atua como um espaço de questionamento e reflexão.
Em busca de Bling, 2014. Cortesia da artista. © Otobong Nkanga.
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“De onde você está, qual é a sua própria posição? Como você vê alguma coisa? Qual é a história que sai do que você viu?” A grande instalação de carpete (2015-16) leva seu padrão gráfico e contorno geométrico a partir de flocos de mica ampliados. Pequenos fragmentos de mica são fotografados por meio de um microscópio eletrônico e apresentados em uma escala maior que o corpo humano. A estrutura cristalina da mica é revelada como facetada, quebradiça e fraturada, termos também usados para descrever os estados humanos do ser. Para o grande trabalho têxtil e fotográfico (2015), Nkanga incorpora temas recorrentes, da mecanização do corpo no trabalho industrial e da interdependência de pessoas e terras. O trabalho ressoa com as histórias da mineração da Cornualha e com os mineiros que levaram suas habilidades e conhecimentos para todo o mundo.
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O peso das cricatrizes, 2015. Cortesia da artista. © Otobong Nkanga. Foto: Christine Clinckx - MHKA
Duas figuras fragmentadas estão conectadas a uma rede de cordas e tubulações que convergem para fotografias de minas abandonadas. Seus braços são mostrados em várias posições, sugerindo o “empurrar e puxar” das relações de mudança. Devastado pela extração de conhecimento, pessoas e recursos. As tapeçarias de Nkanga são influenciadas pelas práticas de fabricação têxtil da África Ocidental e do país onde vive, a Bélgica. Aqui, ela tece fios coloridos e fios metálicos que dão um efeito “cintilante”, característico dos minerais. A série (2014-16) explora o consumo humano da paisagem, revelando as transformações ocultas da mica mineral em produtos desejáveis, como cosméticos. Nkanga contrasta o valor que damos a essas mercadorias com os danos que sua extração causa às comunidades e ao meio ambiente.
ConsequĂŞncias Sociais I: Crise, 2009.
Cortesia da artista. Š Otobong Nkanga
Um lugar de vazio é o monumento para nos lembrar que não há possibilidade de voltar ao que foi.
Em busca de Bling, 2014. Cortesia da artista. © Otobong Nkanga.
Duas tapeçarias formam o elemento central do trabalho. Temas com pessoas, terras e mercadorias são continuados por meio de uma série de fotografias. Em uma delas, Nkanga segura um pedaço de mica na frente da boca, sugerindo a interdependência entre corpo, mineral e terra: “Quando começo a pensar em minerais como algo que engolimos para fazer nosso corpo funcionar, também começo a pensar em como o corpo passa a ser composto desses minerais e, quando apodrecemos gradualmente após a
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morte, tornamo-nos componentes minerais novamente. Então, o gesto de engolir um comprimido ou pílula de vitamina é tão mágico, ou digamos, sobrenatural, como queremos, porque realmente estamos engolindo uma pedra.” Durante sua visita a Tsumeb, Namíbia, Nkanga procurou a Colina Verde, um marco famoso por seus abundantes recursos de minerais raros. Em seu lugar, ela descobriu um poço abandonado atingindo profundamente o solo. Nkanga considera a mina um “monumento
Manobras sólidas, 2015. Cortesia da artista. Š Otobong Nkanga.
De onde eu estou, 2015-16. Cortesia da artista. © Otobong Nkanga.
negativo”, uma paisagem esvaziada cujas matérias-primas foram transportadas em todo o mundo para uso em edifícios, produtos cosméticos e tecnologias. Em , três plataformas representam camadas geológicas com vazios e ausências, lembrando a paisagem minada da Cornualha. Nkanga combina matérias-primas, como areia, com materiais processados, incluindo maquiagem, sal e vermiculita. “O que poderia ser um monumento? É o que construímos ou o que retiramos? Um lugar de vazio é o monumento para nos lembrar que não há possibilidade de voltar ao que foi.”
Anne Barlow é curadora e diretora no campo da arte contemporânea internacional e atualmente é diretora artística no Tate St Ives.
Otobong Nkanga: From Where I Stand • Tate St Ives • Reino Unido • 21/9/2019 a 5/1/2020
Desenho para tapeçaria de Em Busca de bling: A descoberta, 2014. Cortesia da artista. Š Otobong Nkanga.
PIERRE
BONNARD a cor da memória
Nude Crouching in the Tub, 1918 Foto: © Musée d'Orsay, Dist. RMN-Grand Palais/Patrice Schmidt
Dining Room in the Country, 1913. Foto: Š Minneapolis Institute of Art Images.
A PRIMEIRA RETROSPECTIVA NA ÁUSTRIA DEDICADA AO ENIGMÁTICO PINTOR PÓSIMPRESSIONISTA PIERRE BONNARD (18671947) SE CONCENTRA NO SEU TRABALHO MAIS MADURO, QUE COMEÇA A TOMAR FORMA APÓS SUA PRIMEIRA VISITA AO LITORAL DO SUL DA FRANÇA, EM 1909, E SUA PROFUNDA EXPERIÊNCIA COM A LUZ DO MEDITERRÂNEO. SUA PALETA MUDA E AS CORES INCANDESCENTES DO SUL COMEÇAM A DEFINIR SUA OBRA – E A CARACTERIZAM TAMBÉM ATÉ O FIM DE SUA VIDA
POR MATTHEW GALE Pierre Bonnard, tímido em público, tinha uma boa vivência do mundo, mas teve que se afastar dele para lidar consigo mesmo artisticamente. A atitude de observação desse pintor intensificou a percepção de sua fuga para a esfera privada. Diz-se que ele recusou uma visita indesejada com um educado “Monsieur Bonnard não está em casa” à porta, onde seu casaco de trabalho lhe dava credibilidade. Mas não se deve confundir reclusão com esquecimento: o extraordinário da pintura de Bonnard é que ela nos mostra uma realidade familiar e estranha. É uma prova de que a aparência de simplicidade pode ocultar a maior complexidade da arte. Pode-se argumentar que Bonnard teve duas carreiras: a primeira, seu sucesso inicial como membro da boêmia parisiense da década de 1890 e, a segunda, suas realizações como artista maduro, dolorosamente consciente dos problemas do século 20. 27
Por volta de 1912, inspirado nas realizações artísticas de contemporâneos como Henri Matisse, mas também por artistas mais jovens, como Pablo Picasso e Georges Braque, ele mudou fundamentalmente a maneira como usava as cores. Um olhar mais atento às suas obras mostra os meios sutis com os quais Bonnard processou no estúdio suas impressões, transformando-as em composições inovadoras. Muitas vezes, os detalhes e até as figuras se misturam tão intimamente com o ambiente que não são reconhecíveis à primeira vista. Se olharmos para a obra de Bonnard em um contexto maior, momentos importantes se tornam reconhecíveis. A “primeira impressão”, como ele a chamava, pode vir de um evento particular ou de uma nova percepção do comum. Bonnard encontrou seus temas típicos na vida cotidiana, como os retratos íntimos de sua parceira Marthe de Méligny no banheiro, os momentos de silêncio na rotina diária, os animais de estimação leais, as visões do mundo ou as impressões de seus passeios diários. Sabemos por evidências fotográficas que Bonnard trabalhou esses temas tão diferentes em paralelo. 1912: A COR ME VARREU Essa mudança, que ocorreu por volta de 1912, deveu-se a vários fatores. Em junho de 1909, pela primeira vez, Bonnard passou um longo período no sul da França. Lá, visitou Henri Manguin, envolvido nos experimentos de cores com os quais os Fauves haviam causado um rebuliço em Paris. Quatro anos mais tarde, ficaria impressionado com a forma como a luz radiante influenciou este grupo em sua 28 FLASHBACK
The Window (Le Fenêtre), 1925 À esquerda: Coffee (Le Café), 1915 Fotos: © Tate
In the Bathroom c. 1940 À direita: Window Open on the Seine (Vernon). 1911-12 (c) Ville de Nice Musée des BeauxArts Jules Chéret Foto: Muriel ANSSENS
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percepção das cores das coisas, suas sombras e reflexos. Em 1912, ele adquiriu uma pintura em pequeno formato de Matisse, , de 1911. Ao mesmo tempo, estava ciente do desenvolvimento de Robert Delaunay ou Sonia Delaunay-Terk, que levou as possibilidades pictóricas de cores complementares ao limite da “pintura pura”. A abordagem analítica de Bonnard estava se desenvolvendo gradualmente. Passava longos períodos em pensamento antes de trabalhar rapidamente na tela. Lucie Cousturier definiu essa estratégia mais útil de “perda de tempo” da seguinte forma: “[...] quando ele, após uma olhar para a natureza, inicia um trabalho em seu estúdio, no dia seguinte, pela memória cria a mágica naquilo que ele tão lentamente observara.” Bonnard se dedicou constantemente a seus temas e motivos preferidos: a localização imediata em relação à paisagem mais ampla, a natureza morta de objetos familiares, os interiores habitados e o nu feminino, que mostra principalmente sua parceira e (a partir de 1925) sua esposa Marthe de Méligny realizando rituais cotidianos. Bonnard nunca perdeu o fascínio pela cor (nem na teoria e nem na prática), e seus trabalhos mais recentes já sugeriram em que direção sua abordagem se desenvolveu. Quando combinados, todos esses incentivos liberam uma nova intensidade cromática que moldou os próximos 35 anos de seu trabalho.
Quando ele, após uma olhar para a natureza, inicia um trabalho em seu estúdio, no dia seguinte, pela memória cria a mágica naquilo que ele tão lentamente observara.
Summer, 1917 Fondation Marguerite et AimĂŠ Maeght, Saint-Paul- France.
1925: O EPÍTOME DO LUXO Nos anos entre guerras, a produtividade contínua e o sucesso artístico ocultavam uma violenta turbulência na vida privada de Bonnard, que deu ao seu trabalho uma profundidade emocional cada vez maior. A morte de sua mãe, em 1919 e, um pouco mais tarde, a de sua cunhada e cunhado, mudaram o relacionamento com a casa da família em Le Grand-Lemps. Outra fase crítica se seguiu em 1925: em agosto, Bonnard se casou discretamente com Marthe de Méligny em Paris, depois de mais de 30 anos morando juntos; em 9 de setembro, Renée Monchaty, sua modelo e amante, cometeu suicídio. Embora esse trágico incidente tenha afetado os Bonnards, em 27 de fevereiro de 1926, eles compraram outra casa pequena em Le Cannet, acima de Cannes, possivelmente para proteger seu relacionamento. O trabalho de renovação necessário e a estadia de Bonnard nos EUA (como jurado na Exposição Internacional Carnegie) atrasaram a mudança para “Le Bosquet” até janeiro de 1927. Em 1925, Bonnard pintou a primeira de quatro pinturas mostrando Méligny deitada na banheira. Ela data de antes da mudança para “Le Bosquet” (onde os outras emergiram mais tarde), mas introduz o formato. Embora as referências a obras de arte mais antigas possam ser reconhecidas, o artista encontrou sua própria forma para essa topografia iconográfica. A reprodução distorcida das partes do corpo sob a água, particularmente onde o pescoço e a cabeça se projetam, e os reflexos da luz na sala são notáveis. Além desses efeitos ópticos, a imagem também tem algo assustador. O corpo nu, nivelado e mole de De Méligny, flutuando na água, foi descrito como uma “imagem perturbadora e erótica”, e em outros lugares é mencionado como o “isolamento em forma de sepultura na banheira”.
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1944: SERVINDO A HUMANIDADE PINTANDO Em setembro de 1939, após a mobilização geral francesa na segunda quinzena de agosto, os Bonnards se mudaram para “Le Bosquet”, para ali suportar a guerra. Sete meses depois, em abril de 1940, por sugestão do pintor Augustus John, Bonnard foi eleito como membro honorário da Royal Academy of Arts, em Londres. Nessas circunstâncias, a mudança dos Bonnards para Le Cannet foi uma decisão sábia. A saúde de De Méligny piorou lentamente, mas constantemente, e ela ficou cada vez mais alienada do mundo exterior. Enquanto estava em casa, Bonnard andava pela cidade todas as manhãs fazendo esboços – trabalho preparatório para suas paisagens cada vez mais abstratas. A correspondência com Matisse mostra que refugiados de toda a França já chegaram à região e que agora era difícil obter materiais para pintura a óleo, carvão e desenho. Carne e ovos não estavam mais no cardápio dos Bonnards, os produtos de sua horta em Le Cannet haviam se tornado essenciais para a sobrevivência – um sentimento de privação que acrescentou importância ao surgimento sazonal de frutas nas naturezas-mortas da época. Durante a guerra, a preocupação do pintor com sua esposa durante o inverno rigoroso de 1941 - o sofrimento dela é descrito como “uma espécie de distúrbio cerebral que dura várias semanas” - o colocou em contato com os círculos do governo, resultando no retrato do chefe de estado em Vichy, Philippe Pétain.
Nude in an Interior c. 1935 National Gallery of Art, Washington, USA À esquerda: Nude in the Bath, 1936-38 Musée d'Art moderne de la Ville de Paris/ Roger-Viollet
Após uma doença grave nos pulmões e intestinos, de Méligny morreu de um ataque cardíaco em janeiro de 1942, com 73 anos. Relembrando meio século de convivência, Bonnard confidencia a Matisse seu desespero: “minha dor e solidão cheias de amargura e minha preocupação com a vida que ainda posso levar”. Pouco depois, ele também teve problemas de saúde e, no final de 1942, passou algum tempo em uma clínica em Cannes. O que Bonnard estava experimentando no final de sua vida pode ser visto nas obras nas paredes de seu estúdio, que foram capturadas por vários fotógrafos. Os registros confirmam que ele seguiu seu próprio conselho “de trabalhar em várias pinturas no mesmo horário todos os dias”, ao mostrar que ele vagueava entre as telas fixadas na parede. Essa abordagem simultânea pode explicar em parte o longo processo de criação de obras individuais. Além de trabalhos comissionados, este método era aplicado a projetos em andamento, como a
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The Studio with Mimosas 1939-46 Foto (C) Centre Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais
última das cenas no banheiro, que ele completou apenas alguns anos após a morte de Méligny, bem como (1939-1946). Devido ao amplo formato panorâmico e aos ricos tons de rosa e amarelo contra o fundo azul, a pintura parece convidativa e enigmática ao mesmo tempo. Parece que o pintor está nos pedindo para entrar na imagem, mas ele não determina um foco preciso, de modo que a ampla visão se abre para o irreconhecível. No contexto da época, poderia ser entendido como o exame do artista sobre seu lugar no mundo: tanto a incerteza quanto as novas possibilidades são traduzidas em cores, por assim dizer. Como em , que Bonnard projetou no final da Primeira Guerra Mundial, o terraço se abre para um mundo que é visto com otimismo cuidadoso. Pode ser visto como a vontade de um artista que estava ciente de que esse futuro pertenceria a outros.
The Dining Room, Vernon c. 1925 Foto © Ny Carlsberg Glyptotek, Copenhagen
Matthew Gale é historiador da arte e curador de Arte Moderna e chefe de exposições da Tate Modern.
Pierre Bonnard • The colour of memmory • Bank Austria Kunstforum Wien • 10/10/2019 a 12/01/2019
Ateliergarten, 1990. Foto: Š Archiv Josef Bauer Archive.
Josef b ueR A
Albion Rose c. 1793.
MUSEU BELVEDERE 21 APRESENTA UMA ABORDAGEM VISIONÁRIA DA OBRA DE JOSEF BAUER, UM DOS PRINCIPAIS PROTAGONISTAS DA ARTE CONCEITUAL NA ÁUSTRIA DESDE OS ANOS 1960. JUNTO DO WIENER GRUPPE (GRUPO DE VIENA), BAUER DESENVOLVE UMA LINGUAGEM ESCULTURAL – NO SENTIDO MAIS VERDADEIRO DA PALAVRA – QUE FAZ UMA CONEXÃO ENTRE CORPOS E OBJETOS
POR HARALD KREJCI A GUERRA Josef Bauer, nascido em 1934, cresceu em Gunskirchen, na Alta Áustria, como filho de um fazendeiro. No final da guerra e da libertação do campo de concentração de Mauthausen e do campo satélite de Gunskirchen, Bauer tinha 11 anos: jovem demais para entender a dimensão da guerra e do crime, mas velho o suficiente para ser tocado. Uma época em que a apropriação emocional do mundo influencia o desenvolvimento de uma criança. O fato de a guerra desempenhar um papel significante na produção artística de Bauer é um pouco desconcertante, pois, em suas exposições anteriores, superficialmente, a abordagem conceitual-concreta dele foi reconhecida, mas não a dimensão sociocrítica ou política de seu trabalho. Em uma inspeção mais detalhada, porém, fica claro como sua arte – das primeiras pinturas sobreviventes à série de de Heimrad Bäcker sobre o terror nazista à mais recente e a – foi
À esquerda: Soldatenserie, 2011, Abaixo: Aneignung, 2018–19 BW photos with brushstrokes, repro photo: Johannes Stoll / Belvedere, Viena. Cortesia Josef Bauer; Krobath, Vienna; Galerie Karin Guenther, Hamburg.
DESTAQUE 41
indiretamente motivada pelas experiências passadas, pela vivência da guerra e pela forma como ele pensava sobre o sentimento então estruturalmente dominante de medo e abuso de poder. O poder e sua representação, a manipulação como meio criativo e a reconciliação dos opostos são características centrais de sua arte. ABSTRAÇÃO E LINGUAGEM Nas décadas de 1950 e 1960, grandes descobertas foram feitas em vários 42 JOSEF BAUER
O poder e sua representação, a manipulação como meio criativo e a reconciliação dos opostos são características centrais de sua arte.
À esquerda: Foto mit Pinselstrich, 2013 Foto: Johannes Stoll / Belvedere, Vienna Cortesia Josef Bauer; Krobath, Vienna; Galerie Karin Guenther, HamburgPrudence Cuming Associates Ltd. Abaixo: Installation mit Steckdose, 1965 Cortesia Josef Bauer
campos da ciência. Uma delas foi a decodificação do genoma humano. Vale ressaltar que, para essa decodificação, ou melhor “legibilidade”, nosso alfabeto e, portanto, também nosso sistema de linguagem foi usado. Isso despertou grande interesse entre alguns artistas concretos. Quando Bauer decidiu adotar o mundo em um nível novo e abstrato, a escrita se tornou cada vez mais importante para ele na formulação de suas “linguagens de imagem”. Pela linguagem, ele percebeu que as coisas
ganham importância apenas em relação umas às outras ou alcançam uma complexidade de significado, que ele considera expressão artística. A arte de Bauer se torna legível como uma declaração espacial e, como a própria linguagem, a relação dos objetos no espaço entre si é amarrada em uma instalação. É assim em sua primeira exposição individual, em 1971, na Galerie im Griechenbeisl: o grande N escultural une o conjunto de botões ou o grande A junto ao quadro de letras, o gesso de uma pedra do rio Traun, a letra minúscula t, a forquilha 43
Taktile Poesie, Handalphabet, 1969. Cortesia Josef Bauer; Krobath, Vienna; Galerie Karin Guenther, Hamburg
com letras coladas nele e grudadas em uma massa verde biliosa, assim como outros objetos. Como instalação, surgem várias narrativas – mas nunca arbitrárias. São as concentrações formais que começam a se articular no espaço. A unificação da dimensão da linguagem e da dimensão do objeto, da linguagem e da imagem, é a preocupação básica de Bauer, e é isso que representa sua ideia conceitual de . Antes de tudo, eram formas orgânicas que os observadores podiam e deveriam tocar, então essas ações performativas foram documentadas fotograficamente, antes que a dimensão do manuseio do objeto fosse abstraída por meio de impressões manuais.
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1968 também foi o ano de manifestações e revoluções. A supressão da primavera de Praga, as imagens geradas pela mídia de manifestações contra a Guerra do Vietnã e a inquietação estudantil nas principais cidades da Europa expressaram protesto contra as estruturas da sociedade. Quando Josef Bauer usa um gesto ,a demonstrativo em criação de objetos aparentemente escolhidos aleatoriamente, essa é também a representação de uma ação ou um impulso na forma de um imperativo linguístico. Acima de tudo, o uso da cruz em , como referência à Igreja Católica, torna-se concentrado e simultaneamente
Kreuz aus der Serie / da série Verfügbare Pinselstriche, 2001
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discursivo como resultado de sua leitura como a letra t. Um nativo dos arredores profundamente católicos de Wels, Bauer se refere à cruz como um sinal ambíguo também nas estruturas de poder da igreja. Da mesma forma, Bauer usa a cruz na obra , onde ocorre uma inversão absurda de significados, na qual a cruz dominante é representada com o gesto de servir. Bauer também lembra que, na adolescência, pendurou telas em uma árvore para ver o que lhes acontecia. Ele esperava, como ele diz, um sinal de Deus, uma intervenção divina contra a ofensa de fazer algo proibido. Um tanto decepcionado, mas também aliviado, Bauer viu que, além do clima e de alguns pássaros, ninguém interveio nas telas.
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Verschränke Formen, 1969 © LENTOS Kunstmuseum. Foto: Reinhard Haider À esquerda: Série NS-Skulpturen, 2018; SW-Fotos mit Pinselstrichen.
Bauer está sempre à busca de uma nova linguagem artística que lhe permita “recapturar” o mundo. A Segunda Guerra Mundial deixou traços devastadores, e a década de 1960 foi amplamente determinada pela tentativa de neutralizar as consequências da guerra, não apenas em nível social, mas também no campo da arte. Naquela época, um círculo de novas figuras literárias foi formado em Linz, que se atreveu a realizar experimentos de vanguarda na poesia concreta. Além disso, as jornadas de Bauer o colocaram em contato com novas tendências, como a pop art, que se apropriou do mundo dos bens de consumo e dos objetos da cultura cotidiana. É precisamente aqui que a prática artística de Bauer foi transformar, com a linguagem, objetos do cotidiano em constelações e situações precisas, como ele chama suas obras. A questão da época não era mais: “O que eu represento na arte?”, Mas: “Como faço para criar uma nova linguagem através de objetos, escritas e imagens e, portanto, também, novas narrativas abstratas?” , explora esse fracasso do reflexo em coincidir com a figura que (1968), a está em frente ao espelho. Em superfície retangular reflete um rosto rachado ao meio, beirando o irreconhecível,
Harald Krejci é historiador da arte e curador chefe do museu Belvederre 21
Josef Bauer: Demonstration • Belvedere 21 • Vienna • 5/9/2019 a 12/1/2020 49
Frestas em mรกquina, 2019 Foto: Isabella Matheus
MARCIA PASTORE
, NA A MOSTRA PINACOTECA, EXIBE UM RECORTE DA PRODUÇÃO DA ARTISTA PAULISTA MARCIA PASTORE, COM OBRAS PRODUZIDAS AO LONGO DE QUASE TRÊS DÉCADAS. O CONJUNTO DE PEÇAS SE SITUA NA INTERSEÇÃO ENTRE AS ARTES PLÁSTICAS E A ARQUITETURA AO ENFATIZAR AS RELAÇÕES POÉTICAS ENTRE FORÇA, MATÉRIA E ESPAÇO
Este é um recorte da produção da artista paulista, ativa desde fins dos anos 1980, em amplo campo experimental que se abre à nova geração de escultores. Atuando em contraponto à racionalidade construtiva, a mostra revolve heranças da prática escultórica e toca a materialidade do mundo cotidiano, passível de manejo. A atividade de Marcia Pastore revela um empenho singular do próprio corpo, que percebe e se apropria das coisas. Tal atividade transparece no modo peculiar de submetê-las às sucessivas transformações até realocá-las no espaço ao redor, pela ação artística. Pode-se notar uma vida transitória de obras em percurso, que são também recicladas a cada mostra. Atenta às propriedades de cada objeto e desprendida de convenções em uso, a artista entra em interação com esses objetos por meios perceptivos primordiais, arraigados na experiência corporal desde a infância: o peso, o balanço, o movimento, o descanso, o perto, o longe. Imagina trabalhos a partir de componentes já prontos, facilmente encontráveis no comércio de equipamentos de construção, lançando o olhar para uma vasta gama de “modos de fazer”, do artefato à arquitetura, atraída pelo vocabulário da engenharia civil. 52 ALTO RELEVO
Frestas em máquina, 2019 Foto: Isabella Matheus
POR ANA MARIA BELLUZZO
Um tal “corpo a corpo” é, em última análise, uma contingência da arte no mundo de hoje. Enfrentamento, oscilações e tensões geradas no contato imediato com o mundo, assim como a possibilidade de manejo sensível de materiais brutos, produtos e mecanismos encontrados à disposição. Marcia evita individualizar os constructos. Impede que se tornem corpos autoportantes e repousem sobre o próprio equilíbrio. Suas obras, persistentes e instáveis, adquirem teor provisório, transitório e sobrevivem em contínua transformação, revistas e adaptadas, aptas à vida transitiva pelos lugares que as recebem. As obras, quase sempre organizadas pela conexão viva de suas partes, mais parecem organismos sensíveis, que encontram estabilidade ao serem configuradas em dimensão ambiental e retiram coordenadas das particularidades locais e de sua articulação transformável. A linha do horizonte é um fenômeno intangível, percebido, a distância, pelo olhar do observador lá longe onde o céu parece encontrar a Terra. Risca horizontalmente o nível do mar e a base das montanhas, guardada a altura do olhar lançado pelo observador. é o nome do dispositivo espacial feito por Marcia Pastore para dar corpo à horizontalidade, capturá-la, torná-la presente, tangível. O paradoxo
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da linha de horizonte no interior da Pinacoteca aparece armado pelo alinhamento da água em sucessivos recipientes, pressionados por sargentos dispostos contra a parede. Com essa obra, a artista se mostra totalmente equipada para um simples gesto de aproximação intensificado pelo efeito de lente do recipiente transparente. A FORÇA PRODUTIVA DA PERFORMANCE CORPORAL Admitindo que a forma da escultura decorre do modo de circunscrever um corpo no espaço e fazê-lo entrar em jogo no espaço-ambiente, Marcia performa atos para moldar corpos. Ainda que sob vaga sensação, a ação praticada incide no que materializa, enquanto dimensão simbólica. nascem em relação transitiva com o mundo, abertas As obras da série entre corpo e propriedades do material. Umas surgem por contato imediato, outras tendem à abstração, em que o corpo convida à imaginação de formas derivadas. Em muitos casos, transportam sinais de origem, adquiridos nos esforços praticados. Sem antecipar ideias, a artista dispensa lápis e papel. É o corpo que desenha pela superfície curva do quadril, pelo volume da perna. 56 ALTO RELEVO
Vistas de exposição na Galeria Baró Sena, São Paulo, 2000. Fotos: Eduardo Ortega.
Desde os primeiros trabalhos em que o corpo se torna componente ativo na formação da obra, Marcia mantém no piso de seu ateliê uma receptiva cama de gesso, na qual ensaia marcas e rastros. Material de antiga memória, branco, indiferente, o gesso é, por si mesmo, parte da tradição da escultura moldada. Cedo, a artista concentra atenção nas propriedades plásticas desse material, passível de aceitar o contato humano direto, receber a inscrição do sujeito e transportá-lo ao espaço, por meio do molde. Explorando o molde – tradicional fundamento do trabalho escultórico –, a artista especula sobre conteúdo e continente, inverte relações entre dentro e fora. Nasce assim uma série de esculturas-molde, que levam contornos corporais para dentro de espaços cúbicos, entrelaçam dimensões orgânicas e geométricas, configuram, em suma, formas de sujeição do corpo ao objeto, do humano ao mundo construído. Trabalhos de teor orgânico, compatíveis com a articulação flexível de suas partes, acentuam cantos vivos e evitam junções definitivas por encaixe ou complemento. Marcia Pastore dá primazia ao vigor do contato das partes por pressão e ao espectador, convidado a permear o espaço da obra.
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A artista simula um jogo de forças contrárias entre dois lados em disputa para vencer a imobilidade de pesadas massas cúbicas de gesso fundido por meio de . situa outra atual tendência da artista que funda as operações no lugar em que a obra nasce, baseada em prospecções e em condições ali encontradas. É o que ocorre ao atuar em escala arquitetônica, visando estabilizar duas colunas pressionadas entre piso e teto ( ), ao lado das demais existentes na sala do museu. Para fazê-las, atinge o desvão do edifício – buraco entre o telhado e o forro –, no qual abre frestas que dimensionam as placas comprimidas e pressionadas pelas hastes. O vão descortina a estrutura de forças do edifício e indica a viga na qual é possível apoiar a coluna. O nome atribuído à obra se associa ao esqueleto da construção, termo usado por arquitetos modernos e, por outro lado, à triste memória política do edifício que hospeda a Estação Pinacoteca. O JOGO DE FORÇAS NO CORPO DA OBRA Enquanto moldes e frestas decolam do próprio corpo, dispositivos espaciais, elaborados desde anos 1990, exploram a dinâmica entre materiais ativos e passivos e indagam a respeito das
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Abaixo: Beijo. À esquerda: Corpo de prova. Fotos: Romulo Fialdini.
forças estruturadoras do corpo da obra. Marcia torna visível uma experiência da realidade que pertence ao domínio artístico: o jogo de forças relacionado às formas. De início, trabalha com poucos elementos, apropriando-se de forças presentes nos materiais. Contrapõe diretamente dois componentes, levando um a estruturar o outro. Tenciona forças ao limite, a fim de garantir a unidade do conjunto, ainda que esteja prestes a se romper e a desmoronar como um castelo de cartas. Pratica articulações por contato, sem fixação definitiva. A artista indaga como sustentar materiais no espaço, colocados em equilíbrio provisório, a fim de desafiar o corpo do espectador. Com humor, aborda o frágil equilíbrio do conjunto, explorando formas que se revelam indissociáveis do espaço ao redor.
Ana Maria Belluzzo é curadora, crítica de arte e professora universitária.
Marcia Pastore: Contracorpo • Pinacoteca • São Paulo • 23/11/2019 a 6/4/2020
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CHRISTIAN BOLTANSKI POR ELE MESMO
UMA VASTA MEDITAÇÃO SOBRE A VIDA E SEU CURSO, A EXPOSIÇÃO DA OBRA DE CHRISTIAN BOLTANSKI, NO CENTRE POMPIDOU, APRESENTA UMA SELEÇÃO DE OBRAS PELAS QUAIS ELE CONTINUA A EXPLORAR A FRONTEIRA ENTRE PRESENÇA E AUSÊNCIA. COMBINANDO MEMÓRIA INDIVIDUAL E COLETIVA COM UMA REFLEXÃO CADA VEZ MAIS PROFUNDA SOBRE RITOS E CÓDIGOS SOCIAIS, BOLTANSKI DESENVOLVE UM TRABALHO SENSÍVEL E CORROSIVO HÁ MEIO SÉCULO, COMO UM ESTADO DE VIGILÂNCIA LÚCIDA SOBRE NOSSAS CULTURAS, ILUSÕES E DESENCANTAMENTOS
“Para encontrar uma resposta para a questão do destino, fui para o norte da Patagônia, na vila de Bustamante. As baleias se reúnem lá em determinadas épocas do ano. Instalei, com a ajuda de engenheiros de som, buzinas cuja forma foi estudada para que o vento pudesse entrar e emitir sons muito próximos do canto das baleias. Esses objetos sonoros, localizados nesse local deserto, estão fadados ao desaparecimento; apenas a história permanecerá.”
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MISTÉRIOS, 2017.
ESPAÇOS VIRTUAIS: CANTOS, 1967-1968/2008/2013 63
DEPART, 2015
“Decidi me envolver no
projeto que é importante para mim há muito tempo: preservar tudo, manter um registro de todos os momentos de nossa vida, de todos os objetos que carregamos, de tudo o que dissemos e o que foi dito ao nosso redor, esse é o meu objetivo. O nome desta obra tem sua origem no título que Alain Resnais gostaria de dar ao seu último filme: . Essas duas palavras, um pouco como o traço que liga as datas de nascimento e morte em , significam para mim a vida, que flui entre as duas.”
DEPART, 2015
CHRISTIAN BOLTANSKI 65
“Durante uma exposição em Santiago, no Chile, tive a oportunidade de visitar o deserto de Atacama, um local historicamente carregado, ocupado por um campo de concentração desejado por Pinochet. Um lugar que é muito impressionante pela proximidade ao céu estrelado. O título desta série de obras, , deriva do nome dado pelos chilenos aos altares religiosos construídos ao longo das estradas, onde houve um acidente. Quero evocar a presença dos mortos ao nosso redor. Pequenos sinos pendurados em hastes longas se movem e soam ao ritmo do vento. Completei um total de quatro : além de Atacama, instalei um no norte de Quebec, um no mar Morto e um na ilha de Teshima, que é o único ainda existente. Na verdade, é um trabalho votivo em que cada sino é dedicado a um ente querido.” 66 REFLEXO
ARRASTAMENTO ANIMITAS CHILE, 2014
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MONUMENTO AO COLÉGIO HULST, 1986
“A peça evoca uma árvore de Natal composta de papel de embrulho, iluminada por lâmpadas de filamento alimentadas por fios expostos. Esse dispositivo influenciou que, com um significado muito diferente, foram feitos em homenagem aos filhos do CES de Lentillères em Dijon (trabalho de 1973 para o qual eu havia reunido as fotografias de todos os filhos da escola, alinhando em um corredor do estabelecimento). Treze anos depois, os rostos dessas crianças crescidas não eram mais os mesmos. Mais tarde, usei uma fotografia de final de ano tirada no Hulst College, onde eu era aluno. Inspirados em monumentos religiosos e, diferentemente dos memoriais, eles não foram construídos em mármore ou bronze. A instalação mais importante dessas obras ocorreu em Paris, na capela de La Salpêtrière, durante o Festival de outono de 1986.”
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CREPÚSCULO, 2015
“Todos os dias, uma das muitas
lâmpadas, componentes da instalação, é desativada. No tempo de uma exposição, a sala, que inicialmente é muito brilhante, fica completamente escura no final. Com esse trabalho, trago outra imagem para sua reflexão sobre o progresso do tempo e a precariedade da existência.”
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CORAÇÃO, 2005
“O coração é escolhido como um símbolo da vida em todas as culturas. Um dispositivo permite conectar batidas gravadas a uma luz que liga e desliga de acordo com o ritmo. Na primeira apresentação na Galeria Marian Goodman, em 2005, foi o meu batimento cardíaco. Posteriormente, instalei no arquipélago da ilha de Teshima, no Japão, onde são mantidas mais de 70 mil gravações de corações de diferentes países. Esse lugar se tornou para muitos japoneses um local de peregrinação, onde eles vêm ouvir o coração dos entes queridos. Esse arquivamento está em constante crescimento.”
Christian Boltanski: Faire son temps • Centre Pompidou • Paris • 13/11/2019 a 16/3/2020
MATIAS MES QUITA
POR THIAGO FERNANDES Nascido no Rio de Janeiro e baseado em Brasília, Matias Mesquita é o artista escolhido pela equipe curatorial da Dasartes para o concurso Garimpo deste ano. Graduado em Desenho Industrial pela PUC-Rio, com passagem pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, o artista desenvolve
trabalhos híbridos, onde a pintura encontra a arquitetura e materiais de construção, fazendo com que o suporte se torne parte da imagem construída. Distanciando-se dos suportes tradicionais da pintura, Matias Mesquita trabalha sobre materiais
como concreto, alvenaria, tijolos e chapas de alumínio, vestígios da realidade urbana que complementam as cenas pintadas e fornecem indícios de seu contexto de produção. O que a princípio poderia ser entendido como vazio, nos trabalhos de Matias têm significados mais complexos, induzidos pelos materiais utilizados. É o caso de (2014), onde figuras monocromáticas de pessoas enfileiradas – cena típica do cotidiano urbano, sintoma de uma máquina burocrática – ocupam menos de um terço dos suportes: um conjunto de placas de madeira, cimento, gesso e . Onde não há imagem figurativa, há o próprio material produzindo outro tipo de imagem, ativada pela percepção do observador. Os suportes figuram como uma paisagem urbana em um processo onde o e a tradição pictórica se encontram. Essa operação é evidenciada em um desdobramento do mesmo trabalho, produzido em 2018, ocasião em que as figuras ganham cores e os suportes adotados pelo artista são um portão de aço galvanizado e uma porta de escritório.
Fila única, 2014 (detalhe). À esquera: Fila única, 2018.
Onde não há imagem figurativa, há o próprio material produzindo outro tipo de imagem.
Uma característica marcante da produção de Matias Mesquita é o contraste entre a delicadeza de sua pintura e a brutalidade dos materiais utilizados. O fotorrealismo, compreendido como uma corrente do “retorno à ordem” em contraponto às experimentações das vanguardas e neovanguardas, é subvertido pelo artista ao substituir a neutralidade da tela por suportes não convencionais, pelos quais a imagem pictórica se deixa contaminar. Rachaduras, imperfeições e marcas do tempo encontradas nos materiais interessam ao artista e se tornam parte da composição. Além disso, afirmam o caráter experimental de seu processo. Em trabalhos como (2014), (2014) e a série (2018), é possível perceber o uso deliberado que Matias faz dos materiais, que nunca são compreendidos como meros suportes para a pintura. Tradição e atualidade se chocam nos trabalhos mencionados, que atualizam a ideia de pintura de paisagem, gênero que começa a ganhar importância no Renascimento, quando o quadro é compreendido como uma espécie de janela. As nuvens pintadas com tratamento realista por Matias evocam uma tradição pictórica, impactada sobretudo pelos românticos e pelos impressionistas, com seu desejo de materializar o impermanente. O artista transmite esses motivos impalpáveis para materiais que, embora considerados duradouros, também têm aparência fugidia, como comprovam suas marcas de desgaste.
À direita: Notívagos I e II, 2018. Farnese - Cabeça, Troco, Membros, 2014. Fotos: Jean Peixoto.
(2018) evoca moradias populares e também faz parte da série de reprocessamentos do gênero pictórico da paisagem conduzido por Matias Mesquita, em diálogo com as vertentes construtivas da arte. Os diferentes materiais de construção adotados pelo artista reforçam a amplitude do campo da pintura, que não apenas se refere à paisagem e à arquitetura, como também se funde aos elementos que as constituem. Aqui vemos, mais uma vez, a ausência de tratamento pictórico outorgando protagonismo aos suportes, que se impõem diante dos suaves azuis gravados em parte de suas superfícies, além de reforçar a ambivalência da composição, que poderia ser compreendida como uma série de horizontes, mas também como formas abstratas, uma vez que não há qualquer elemento que indique uma intenção naturalista. Como de praxe, Matias Mesquita dá abertura à subjetividade do observador, tornando-o também agente em seu processo construtivo.
Thiago Fernandes é crítico, historiador da arte e doutorando em Artes Visuais pela UFRJ.
LIVROS lançamentos Hans Ulrich Obrist - Entrevistas brasileiras vol. 1 Autor: Hans Ulrich Obrist Editora: Cobogó - 576 p. - R$ 76,00 O curador e diretor da Serpentine Gallery, em Londres, Hans Ulrich Obrist viaja pelo mundo há 30 anos gravando suas conversas com artistas e pensadores sobre temas que extrapolam as artes visuais e alimentam discussões sobre a criatividade, a inventividade e a construção do futuro, da cultura e da sociedade. Obrist apresenta uma seleção de 36 entrevistas com artistas e intelectuais pioneiros de diferentes áreas do conhecimento que nasceram no Brasil ou adotaram o país como lugar de produção de seu trabalho. "É um livro que pode ser interpretado como um protesto contra o esquecimento", afirma o curador.
Pampulha Olhares Imagens Modernidade Organização: Denilson Cardoso 96 p. - R$ 25,00 Patrimônio cultural da Unesco desde 2016, o Conjunto Moderno da Pampulha é revelador do espírito modernista que, entre os anos 1920 e 1960, redefiniu as expressões artísticas e sociais do país. No livro, o reverenciado ponto turístico de BH é retratado segundo a sensibilidade de importantes fotógrafos mineiros. Concebida e organizada pelo publicitário Denilson Cardoso, a obra conta com imagens inéditas, feitas por ele, assim como por Alexandre Guzanshe, Guto Muniz e Glenio Campregher.
COLUNA DO MEIO Fotos: Sonia Balady
Quem e onde no meio da arte
Daniel Maranhão, Cássia Malusardi e Leonardo Servolo
Alexandre Gomes e Leonardo Tura
Anna Galeria Base São Paulo Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Cadinelli e Marcelo D2 eSimone Gina Elimelek
Ângela Od
Fernando Ferreira de Araújo, Michael Moeller e Lara Sabino
Fotos: Leda Abuhab
Effrem Bastos e Duda Muniz
Ana Rocha, Vitor Matos e Hugo Guedes
Ane Maradei e Valeria DeoFilho
Leiga convida Galeria Zero São Paulo Danila Hadas e Leonardo Russ
Daniela Cruz e Jp Possos
Carolina Cherubini e Maria Luiza Mazzetto
Ronney Bueno, Tainara Ribeiro Afonso, Lucas Tostes e Jessica Jin
Fotos: Sonia Balady
Gregorio Gruber, Renata Barros, Antonio Peticov e Cris Campana
Fabiola de Freitas, Djaya Levy, Aubert e Nana Rocha DEZ.EM.BRO Coletivo
Thomas Baccaro Art Gallery São Paulo Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Leandro Braido e Gabriela Bacchi e Gina Elimelek
Maurizio Mancioli e Thomas Baccaro
Tatiana Mereb, Bruna Mezher, Isabella Narchi, Bianca Kann, Ana Silvia Maluf, Ricardo Narchi
Vivian Teixeira e Maria Julia Arantes
Roberta Fortunato, Ricardo Schetty e Cláudia Guimarães
Georgia Costa Araújo, Duílio Ferronato e Cláudia Guimarães
Intimo/Estranho Lona Galeria São Paulo Carlito Contini e Jac Leirner
Fernando Sendyk, Carlos Keffer e Luciana Helfenstein
Teca Leopoldo e Silva e Maria Eugênia Longo
Roberta Fortunato e Neiliane Araujo
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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