GEORGIA O’KEEFFE CHRISTO E JEANNE-CLAUDE OSGEMEOS IVAN SERPA NICOLAES MAES
Georgia O’Keeffe, Jimson Weed, White Flower No. 1 1932. © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London.
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO . NEGÓCIOS André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA Thiago Fernandes dasartes@dasartes.com DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br
Capa: Georgia O'Keeffe, Grey Lines with Black, Blue and Yellow, c. 1923. © Georgia O'Keeffe Museum/ Licensed by Scala / Art Resource, NY
REVISÃO Angela Moraes PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com VERSÃO IMPRESSA assinatura@dasartes.com Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou CMS/RJ
Contracapa: Nicolaes Maes, Portrait of a Girl with a Deer, ca. 1671 © 2006 Christie’s Images Limited
CHRISTO E JEANNECLAUDE
12 GEORGIA O’KEEFFE
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De Arte a Z
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Agenda
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Notas do mercado
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Livros
OS GEMEOS
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NICOLAS MAES
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IVAN SERPA OBRA DOS SONHOS
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IMPRESSA em sua casa a partir de R$ 28 mensais assinatura@dasartes.com
de arte
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CURIOSIDADES • Artistas decoram UTIs hospitalares com pôsteres encorajadores. A artista Elizabeth Jaeger e Cady Chaplin, uma enfermeira do Hospital Lenox Hill em Manhattan, NY, iniciaram a campanha para artistas enviarem ilustrações, pinturas e desenhos digitais agradecendo aos profissionais de saúde. Mais de 70 artistas estão expressando seu apoio e gratidão a esses trabalhadores em diversos hospitais.
PELO MUNDO • A comissão da artista Kara Walker para o Turbine Hall do museu Tate Modern, Reino Unido, a enorme (2019), será fonte desmontada, destruída e reciclada para uso posterior. Sua exibição terminou quando o grupo de museus Tate fechou em meados de março devido ao Covid-19. A obra, aclamada pela crítica, foi construída com materiais principalmente recicláveis – como cortiça e madeira reutilizáveis – de acordo com a dedicação do Tate à sustentabilidade ambiental.
GIRO NA CENA • Durante uma pandemia, a arte pode ser colocada ao serviço de uma consciencialização. Foi precisamente isso que o grupo argentino POA Estudio fez ao adaptar grandes obras-primas históricas aos tempos atuais. Máscaras e luvas foram adicionadas em personagens icônicos como e nas de Diego de Velazquez. 8
EDITAIS • Com o objetivo de movimentar a economia criativa de maneira rápida e eficaz, em tempos de pandemia mundial, o Itaú Cultural (IC) lança o Os editais são voltados para artistas impedidos de se apresentar presencialmente nas áreas de cênicas (já encerrado), áreas de música e artes visuais (em breve). Para mais informações e para inscrever-se acesse ou . nosso site
VISTO POR AÍ
VISTO POR AÍ • O Jardim Botânico de Nova York (NYBG) reagendou sua tão aguardada exposição de Yayoi Kusama, para a primavera de 2021 em resposta à pandemia mundial. A mostra reunirá várias instalações, além de exposições florais sazonais de horticultores.
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• DISSE O ARTISTA Nelson Leirner em trecho de entrevista cedida à Dasartes, em 2014. O artista faleceu no último dia 8 de março, aos 88 anos.
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Obra de Deise Paiva.
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AGEnda
DESVIO PARA O vermelho No dia 15 de abril de 2020, a galeria Zagut vai abrir a exposição com 215 artistas participantes usando técnicas como pintura, técnica mista, fotografia, impressão sobre canvas, gravura, colagem, acrílico, objeto, escultura, assemblage, entre outras. A coletiva será apresentada de forma virtual por conta da quarentena e fazendo o lançamento da sua plataforma de catálogos e obras virtuais. Mantendo a programação do vernissage e não suspendendo a exposição, Isabela Simões, sócia da galeria, lançará no mesmo dia o 10
catálogo da exposição no site da galeria e nas redes sociais com uma live comemorativa com todos os artistas participantes num bate-papo sobre suas obras e a relação com a do artista Cildo Meireles. Além disso, no canal do youtube da galeria, serão colocados uma seleção de filmes com mais de duzentos artistas, obras e depoimentos.
DESVIO PARA O VERMELHO: UMA HOMENAGEM A CILDO MEIRELES • GALERIA ZAGUT • www.espacozagut.com
ENTREvista
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CHRISTO &
jeanne-claude
Valley Curtain, Rifle, Colorado, 1970-72. Foto: Wolfgang Volz. Copyright: Christo 1972
ENTRE 1958 E 1964, CHRISTO E JEANNECLAUDE VIVERAM EM PARIS. ESSES ANOS FORAM ESSENCIAIS PARA A EVOLUÇÃO DO TRABALHO DE CHRISTO. ELE SE LIBERTOU DA PINTURA EM SUPERFÍCIES, ENVOLVEU OBJETOS DO COTIDIANO E CRIOU OBRAS TEMPORÁRIAS NO ESPAÇO PÚBLICO EM DIMENSÃO MONUMENTAL EM DIFERENTES PROJETOS PARA A CIDADE. RELEMBRE ENTREVISTA EXCLUSIVA DO CASAL À DASARTES, EM 2009, A ÚLTIMA ANTES DA MORTE DE JEANNECLAUDE, ALÉM DA PRÉVIA DE UM NOVO PROJETO DE CHRISTO PARA 2020
POR REDAÇÃO
OS ANOS PARISIENSES, 1958-1964 Christo (Christo Vladimirov Javacheff) e Jeanne-Claude (Jeanne Claude Marie Denat) nasceram no mesmo dia, 13 de junho de 1935, respectivamente em Gabrovo (Bulgária) e Casablanca (Marrocos). Christo fugiu da Bulgária comunista para ir a Praga, em 1956. Conseguiu escapar do bloco soviético em 1957, passando primeiro por Viena, depois por Genebra, e finalmente se estabeleceu, em março de 1958, em Paris, onde conheceu Jeanne-Claude, aos 23 anos. Apesar de seu treinamento clássico na Academia de Belas Artes de Sófia, Christo desenvolveu sua própria linguagem artística durante esses anos parisienses, trabalhando na superfície, nas texturas, na embalagem de objetos e na apropriação escultural do espaço. Posteriormente, começou a desenvolver com JeanneClaude os projetos monumentais temporários pelos quais eles agora são famosos. 14
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Wrapped Coast, Little Bay, Australia, One million square feet, 1968-69. © Christo 1969.
Petit cheval empaqueté, 1963. © Christo 1963. Foto: © Dirk Bakker
Após sua chegada a Paris, para ganhar a vida, Christo produziu retratos em óleo sobre tela de famílias da alta sociedade, assinando a maioria de suas obras com seu sobrenome, “Javacheff”. No quarto de empregada que ele usava como ateliê, começou a criar o que chamava de Inventário – um conjunto de caixas de metal, garrafas, estojos e, posteriormente, barris, embrulhados em tecido, laca e cordas, que ele assina com o nome de artista, “Christo”. Antes de se estabelecer em Nova York em 1964, com Jeanne-Claude, Christo iniciou novas pesquisas em torno de vitrines de lojas e reconstruiu as fachadas escondendo o interior com papel ou tecido. A série confirma o interesse do artista pela dimensão arquitetônica, que constitui os projetos urbanos posteriormente desenvolvidos com Jeanne-Claude. SÉRIE EMBALAGENS Christo se tornou particularmente interessado no trabalho de superfície: “Não se tratava tanto de criar um objeto, mas da textura do próprio objeto”, disse ele. As superfícies de embalagem resultam dessas experiências realizadas com papel, às vezes tecido, ao qual Christo dá uma aparência danificada por vincos e dobras que ele endurece com laca, aplicando a tinta para melhorar os relevos. 16
Cratère, 1960 © Christo 1960. Foto © Wolfang Volz.
Após essa pesquisa, ele criou a série . Pouco conhecida, é caracterizada por uma forte materialidade: areia e poeira misturadas com tinta e cola criam uma paisagem lunar que invade a superfície do trabalho, poupando asperidades e fendas. As crateras produzidas por Christo podem ser consideradas uma resposta ao trabalho material de Jean Dubuffet a partir da década de 1950. A maioria das características de Christo foi produzida entre 1958 e o início dos anos 1960, usando objetos do cotidiano. O tecido, primeiramente amassado e lacado, depois deixado áspero, simplesmente amarrado com cordas e cordões, gradualmente cede lugar ao polietileno. A transparência e a rigidez escultural deste filme plástico o tornarão um material de preferência para a embalagem de estátuas e modelos vivos. ESPAÇO PÚBLICO As primeiras obras de Christo no espaço público foram estruturas temporárias, feitas de colunas ou acúmulos de barris. “Eu pensei que os barris de petróleo já pareciam esculturas”, disse ele, “as manchas de óleo, as cores desbotadas, a ferrugem, as colisões – eu as achei fascinantes, muito bonitas.” 17
Mur provisoire de tonneaux métalliques, 1962. © Christo 1962. Foto © Jean-Dominique Lajoux.
Em reação à construção do muro de Berlim, em 1961, Christo e Jeanne-Claude imaginaram barrar uma das ruas mais estreitas de Paris com um muro composto por 89 barris. Erigido na noite de 27 de junho de 1962, o (1961-1962) foi sua segunda intervenção no espaço público. Já em 1961, Christo e Jeanne-Claude planejavam pela primeira vez empacotar um prédio público: sala de concertos, sala de conferências, prisão, parlamento... Naquela época, Christo, que morava perto do Arco do Triunfo, realizou vários estudos sobre esse monumento, incluindo a fotomontagem ( (1962-1963). Este projeto deve finalmente estrear no outono de 2020. Christo, em estreita colaboração com o Centre des monuments nationaux (CMN) e o Centre Pompidou, criará um trabalho temporário em Paris chamado ( ). Este trabalho ficará visível por 16 dias, de sábado 19 de setembro a domingo 4 de outubro de 2020. Serão necessários 25 mil metros quadrados de tecido reciclável de polipropileno prata azulado e 7 mil metros de corda vermelha.
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Projeto para o Arco do Triunfo, Paris, 1962-1963. © Christo.
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LE PONT-NEUF EMPAQUETÉ, PARIS (1975-1985) A partir de 1975, Christo e Jeanne-Claude conceberam a ideia de embalar a Pont-Neuf com lona de poliamida de cor dourada, que cobriria os lados e as abóbadas dos 12 arcos da ponte, seus parapeitos, bordas e calçadas (o público poderia andar sobre a lona), seus 44 postes de iluminação, bem como as paredes verticais medianas da ponte ao oeste. “Por mais de quatro séculos, a Pont-Neuf foi objeto de centenas de obras”, explica Christo, “uma vez embalado por duas semanas, tornou-se uma obra de arte por si só.” Seguindo a tradição de Jacques Callot, Turner, Renoir, Brassai, Pissaro, Picasso e Marquet, Christo e Jeanne-Claude escreveram um novo capítulo na história da ponte parisiense. Trabalho temporário, em contato com a realidade, essa transformação sublinha as qualidades arquitetônicas da ponte e renova nossa relação com a apreensão de seus volumes e com a perambulação. Como todos os trabalhos temporários de Christo e Jeanne Claude, (1975-1985) foi apresentado por um período muito curto, de 22 de setembro até 6 de outubro de 1985. Esse projeto exigia um sistema técnico e humano colossal, sem contar os dez anos de negociação com políticos e moradores. 19
Abaixo:Wrapped trees, Fondation Beyeler and Berower Park, Riehen, Suiça, 1997-98. Foto: Wolfgang Volz. © Christo 1998. À direita: Le Pont-Neuf Empaqueté, Paris, 1975-1985.
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Os artistas financiaram suas realizações monumentais exclusivamente por meio da venda de colagens, desenhos preparatórios, modelos feitos por Christo como parte dos projetos e da venda de obras das décadas de 1950 e 1960. Os artistas nunca se beneficiaram de financiamento público ou particular. “Todos os nossos projetos temporários têm uma natureza nômade e transitória, estão em movimento perpétuo”, especifica Christo: “Essas obras são visíveis apenas uma vez na vida, mas permanecem gravadas em nossas memórias. Esse aspecto é essencial em nossa abordagem e lembra um princípio resolutamente humano: nada dura para sempre e essa é a beleza da vida”. ENTREVISTA POR ADOLFO MONTEJO NAVAS
J: Bom, para começar, isto que você chama de ação não é uma ação, mas a obra de arte em si. Quando você fala de embalagem, está se referindo aos primeiros trabalhos, dos anos 1950 e 1960. C: É importante dizer que essas são obras de arte temporárias em áreas urbanas ou rurais, e não naturais. Interferimos apenas onde existe a ação do homem, e não na natureza. As ações estão em fazendas, ranchos, vilas, locais feitos pelo homem para o homem. Um dos motivos pelos quais fazemos isso é para que se possa ter uma real noção da escala ao observar as fotografias das obras, pois apenas quando se compara a obra de arte a objetos que conhecemos, como postes, ruas, casas, é que se percebe a enorme dimensão física de nossos projetos.
C: Não se deve referir a nossa obra como embalagens, mas como projetos. O trabalho com os prédios é uma embalagem, o trabalho com uma cerca que corre por quarenta quilômetros não é uma embalagem ( , EUA, 1972-1976), o trabalho com milhares de guarda-chuvas não é embalagem , EUA-Japão, 1984-1991)... ( J: Respondendo à sua pergunta, nossa intenção é criar obras de arte de alegria e beleza.
C: Não, porque tudo no mundo pertence a alguém. Para cada trabalho, precisamos de permissão. Não existe um único metro quadrado no mundo sem dono, onde possamos trabalhar com total liberdade. É por isso que a parte mais difícil de nosso trabalho é conseguir permissão e por isso nossos projetos levam 20, 25 anos para se concretizar. Fazemos nós mesmos os projetos, pagamos por eles, e por isso não temos restrições econômicas na qualidade do material e dos trabalhadores, mas sempre há o problema das permissões. Na verdade, projetos externos são muito mais difíceis que as exposições em galerias e museus.
C: Para começar, é necessário deixar claro que nunca repetimos um trabalho. Nunca embrulharemos o parlamento de novo ( , Alemanha, 1971-1995), nunca espalharemos guarda-sóis novamente. Cada um de nossos projetos é único e produz uma imagem única. Ou seja, para cada projeto, temos uma preparação totalmente diferente e singular, o , em que o trabalho não existe: ele está apenas nos nossos sonhos e 22
The Umbrellas, Japan-USA, 1984-91 (USA site). Foto: Wolfgang Volz. © Christo 1991.
Running Fence, California, 1972-76. Foto: Jeanne-Claude. © Christo 1976.
Wrapped Reichstag, Berlin, 1971-95. Foto: Wolfgang Volz. Š Christo 1995.
nossas mentes e na mente dos milhares de pessoas que tentam nos ajudar e dos milhares de pessoas que tentam nos impedir. termina no momento em que J: O conseguimos a permissão para executar o trabalho. Aí começa a produção, o . C: O são os verdadeiros quilômetros, os verdadeiros tecidos, o verdadeiro sol, o verdadeiro rio. Antes disso, são apenas propostas e ideias. E as pessoas discutem o , mas estão falando sobre algo que não existe. Ora, ninguém discute uma pintura que ainda não foi pintada ou uma escultura que não foi esculpida... Mas, no nosso, caso existem enormes discussões, críticas, aprovações, desaprovações, tudo isso sem que nada ainda exista.
J: Nós completamos vinte projetos e temos 39 projetos que abandonamos, simplesmente porque eles não estavam mais em nossos corações. Foram projetos para os quais não obtivemos permissões e nos quais não quisemos insistir.
C: Não, não. Enquanto um projeto está em nossos corações, continuamos tentando. O projeto do Reischtag, em Berlim, foi recusado três vezes, mas nós ainda queríamos fazer, estávamos animados com ele, e insistimos. Mas se não sonhamos mais com um projeto, se a vontade desapareceu, por que fazê-lo?
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The Umbrellas, Japan-USA, 1984-91 (Ibaraki, Japan site). Foto: Wolfgang Volz. © Christo 1991.
J: Quando começamos os planos para embrulhar uma grande rocha em Sidney, na Austrália, houve manchetes dizendo que iríamos matar os pinguins. Mas não existem pinguins em Sidney! Os pinguins ficam em Perth, a mais de quatro mil quilômetros de distância. E aí ainda devo acrescentar que, quando embrulhamos a costa a nove quilômetros de , 1968-1969), era um Sidney ( lixão. Com toda sua preocupação ecológica, Sidney joga no mar seu lixo. Isso não se vê nas fotos da nossa obra porque está abaixo do tecido.
The Gates, Central Park, NYC, 1979-2005. Foto: Wolfgang Volz. © Christo e Jeanne-Claude, 2005.
C: Como qualquer artista, faço desenhos, colagens, maquetes, planos. Esse material tem um valor no mercado, e são obras de arte em si. São chamados de “trabalhos preparatórios”. Claro que esses trabalhos só podem ser feitos antes da execução do projeto. J: Christo trabalha sozinho em seu estúdio, sem assistente, ele faz até as molduras sozinho.
J: Na verdade, não foi a mesma cor nos dois projetos – usa uma cor mais amarelada, açafrão, e usa um laranja avermelhado. De qualquer forma, a escolha da cor é sempre uma questão estética. C: Preciso explicar que estamos sempre sujeitos às estações em nossos projetos. Por exemplo, em , escolhemos o inverno, pois queríamos as árvores sem folhas, para que os portões pudessem ser vistos através dos galhos nus. E como era inverno, os galhos das árvores 27
tinham uma coloração prateada e poderia haver neve; por isso, escolhemos usar a cor açafrão para dar contraste.
J: Cada um de nossos trabalhos é parte de nossas vidas, são como filhos, cada um é único, tem sua personalidade e suas qualidades. Seria como perguntar a uma mãe se ela tem um filho preferido.
J: Hoje em dia, os humanos constroem trabalhos muito maiores que os nossos, como arranhacéus e aeroportos. Esses trabalhos é que poderiam ser análogos à arqueologia contemporânea.
C: Nossas esculturas são trabalhos permanentes.
J: O segredo é amor. Para nós, trabalhar como um casal não é uma dificuldade, é uma grande vantagem. O amor pelo outro e o amor pela arte é o que nos faz viver. 28
Torse empaqueté, 1958. Foto: Wolfgang Volz. © Christo 1958.
CHRISTO ET JEANNE-CLAUDE: PARIS! • CENTRE POMPIDOU • FRANÇA • 18/3 A 15/6/2020
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GEORGIA
From the Faraway, Nearby, 1937. © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London. Foto: Malcom Varon
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o’keeffe
ACLAMADA TRAJETÓRIA DA PINTORA AMERICANA GEORGIA O’KEEFFE NOS MOSTRA AS CONEXÕES INDELÉVEIS QUE ELA CRIOU COM TODO CUIDADO ENTRE SUA ARTE, SEU ESTILO DE VESTIR E SUA PERSONALIDADE PÚBLICA
POR WANDA M. CORN Georgia O’Keeffe (1887-1986), uma artista americana de enorme criatividade, acreditava que tudo o que uma pessoa criasse ou escolhesse viver com – arte, roupas, decoração – devia refletir uma estética moderna, unificada e agradável. Até os menores atos da vida cotidiana, ela gostava de dizer, deveriam ser feitos lindamente. O caminho de O’Keeffe começou com os primeiros anos de sua florescente carreira em Nova York nas décadas de 1920 e 1930, e depois se consolidou quando ela se mudou para sua longa vida no Novo México. Desde a juventude, fica claro que ela se vestia de maneira simples e sem adornos. Costurada com suas próprias mãos, sob medida ou comprada, a escolha de roupas de O’Keeffe enfatizava as formas compactas, linhas fluidas e formas orgânicas que distinguem suas pinturas. Seu estilo marcante tanto em roupas quanto em arte foi profundamente influenciado por seu estudo ao longo da vida das culturas japonesa e chinesa. A presença da câmera no universo estético de O’Keeffe é notável. Ao longo de sua vida, a artista se vestiu e modelou para cerca de cinquenta fotógrafos, ajudando a gerar e promover uma identidade pública como uma mulher independente e inconformista que, no final de sua vida, havia se tornado um ícone do feminismo e o rosto da modernidade. Uma mostra dessas fotografias, objetos e obras de arte no Norton Museus dos Estados Unidos nos incentiva a considerar o quão desafiador e inspirador pode ser criar e sustentar um estilo pessoal que se reflete em todos os aspectos da vida. Music, Pink and Blue No. 1, 1918. Foto: Paul Macapia.
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INÍCIO Nascida em uma fazenda de gado leiteiro em Wisconsin, em 1887, O’Keeffe passou seus anos de formação na Virgínia. Ela se destacou nas aulas de arte do ensino médio e, posteriormente, fez dois anos de treinamento formal em arte em Chicago e Nova York. Quando as finanças da família pioraram, ela procurou emprego como professora de arte, uma das poucas profissões abertas a mulheres com suas habilidades. Em 1916, ela era chefe do departamento de arte de uma nova faculdade de professores em Canyon, Texas, localizada ao sul de Amarillo, onde se apaixonou pela fronteira ocidental e pelas vastas planícies do Panhandle. Seus métodos de ensino progressivo e seus vestidos folgados “reformados” – principalmente branco ou preto – usados com meias grossas e sapatos baixos, eram radicalmente fora de caráter dos trajes femininos tradicionais, gerando curiosidade e fofocas locais. Durante seus anos de ensino, O’Keeffe entrou em contato com os tratados e a pedagogia de Arthur Wesley Dow, pintor e gravador que descartava a ideia de arte como um meio imitativo e defendia a abstração moderna. Seus ensinamentos levaram O’Keeffe a se concentrar na beleza do padrão e do , não apenas na arte, mas em todos os aspectos da vida moderna. Ela gostava de resumir a filosofia de Dow como “preencher o espaço de uma maneira bonita”, e isso pode ser tão mundano quanto colocar um carimbo em um envelope ou como alguém que se veste de formas claramente definidas em preto e branco. Tornou-se o princípio impulsionador de sua vida estética. 34
À direita: nº 8-Special (Drawing nº 8), 1916. Abaixo: Abstraction White Rose 1927. Fotos: © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London.
Hotel Lobby, 1943. Foto: © 2019 Heirs of Josephine N. Hopper / Artists Rights Society (ARS), NY.
VARIAÇÕES ABSTRATAS Em 1915, depois de anos como estudante obediente e artista comercial ambiciosa, O’Keeffe tomou a decisão radical de renunciar a seu treinamento e, como ela dizia, “pensar nas coisas” por si mesma. Purgando seu portfólio de tudo, menos o que ela considerava seus trabalhos melhores e mais originais, iniciou uma extraordinária série de desenhos a carvão, objeto de exposição no Seattle Museum. Como o título (1915), a sugere, em inspiração do desenho é a música, uma forma de arte fundamentalmente separada da natureza e da narrativa. “Quero coisas reais – pessoas vivas para tomar – para ver – e para conversar – Músicas que faça buracos no céu”, escreveu O’Keeffe em 1916. Dois anos depois, ela realizou sua alegre visão nas (1918), pinturas cujas formas em redemoinho ressoam quase audivelmente enquanto envolvem um vazio azul profundo. O’Keeffe havia se mudado recentemente para Nova York por sugestão do fotógrafo e empresário Alfred Stieglitz. Imersa na energia criativa da cidade, ela foi além dos íntimos desenhos de carvão que estava fazendo e redirecionou seus esforços para o formato mais popular e ambicioso, o óleo sobre tela. Estas foram suas primeiras pinturas a óleo e funcionaram como um ponto de apoio na obra de O’Keeffe, anunciando sua independência como artista, posicionando a abstração no centro de seu trabalho e formando a base visual para as pinturas subsequentes.
À esquerda: Music, Pink and Blue No. 2, 1918. © Whitney Museum of American Art /Licensed by Scala / Art Resource, NY
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Grey Lines with Black, Blue and Yellow, ca. 1923. © 2019. Georgia O'Keeffe Museum / Artists Rights Society (ARS), New York.
Black, White and Blue, 1930. © 2019 Georgia O'Keeffe Museum / Artists Rights Society (ARS), New York
Na década de 1920, a abstração de O’Keeffe progrediu para o biomorfismo, a evocação de organismos vivos e forças naturais. Apesar do título neutro de (1923) e de outras pinturas, os críticos, liderados por Stieglitz, leem qualidades essencialmente femininas nas abstrações de O’Keeffe. Resistente a essas interpretações de gênero, ela respondeu se afastando da abstração nas pinturas que exibia, escrevendo: “Suponho que o motivo pelo qual me esforcei para ser objetiva é que não gostei das interpretações de minhas outras coisas.” As formas orgânicas e geométricas que frequentemente oscilam nas abstrações de O’Keeffe sugerem o fluxo e refluxo entre o natural e o urbanizado, a paisagem e a cidade – lago George e Manhattan – em torno da qual sua vida foi organizada nas décadas de 1920 e 1930. Com sua sólida vertical azul, a fatia branca que a divide e as curvas negras que a envolvem, (1930) evoca o 40
horizonte de Nova York, a complexidade emocional da cidade e a energia e alienação simultâneas da experiência urbana. ROMANCE EM NOVA YORK Em 1918, O’Keeffe deixou o ensino no Texas para se tornar uma artista profissional em Nova York. Alfred Stieglitz, fotógrafo de belas artes e defensor da arte moderna, fez uma oferta irresistível: ele encontraria um lugar para ela morar e a apoiaria se ela fosse a Nova York e pintasse em tempo integral. Na época, O’Keeffe, com 30 anos e solteira, estava desenvolvendo radicalmente sua nova arte abstrata. Stieglitz, 53 anos e infeliz no casamento, reconheceu seu talento excepcional e exibiu suas primeiras abstrações. Ela sabia que contaria com sua experiência considerável no lançamento de artistas em sua galeria de Nova York, a 291, e através de sua revista . Pouco depois de O’Keeffe chegar a Nova York, eles se apaixonaram e Stieglitz se mudou para o modesto apartamento dela. Ele já havia começado o que chamou de “retrato contínuo” dela. Por vinte anos, fez retratos fotográficos formais de sua parceira, um projeto único e ambicioso que, eventualmente, contou com 330 imagens. A partir de 1923, ele organizou exposições e apresentou seu trabalho
New York Street with Moon,1925. © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London. 41
Alfred Stieglitz, Georgia O’Keeffe, ca.1920–22. Georgia O’Keeffe Museum, Gift of The Georgia O’Keeffe Foundation, 2003.01.006.
quase anualmente, construindo a carreira artística e dando reconhecimento a O’Keeffe, exibindo e publicando suas fotografias. Seus retratos e suas pinturas abstratas lançaram a persona pública de O’Keeffe como uma mulher moderna e audaciosa. Costureira talentosa, O’Keeffe fez muitas de suas roupas à mão durante esses primeiros anos. Tinha bons olhos para sedas, algodões e lãs de qualidade, e permaneceu fiel à sua paleta de vestidos em tons de branco e preto. Caracteristicamente, suas roupas se voltaram para silhuetas fortes, naturalidade e simplicidade. Orgulhava-se de seu trabalho manual e preservou algumas de suas roupas mais antigas por mais de sessenta anos. Enquanto O’Keeffe e Stieglitz moravam no apartamento de Manhattan durante o inverno, eles passavam o verão e o outono no lago George, Nova York, onde a família dele tinha propriedades. Lá, ela pintou e modelou para a câmera de Stieglitz usando seu guarda-roupa de verão com vestidos e blusas cor de marfim, saias e blusas pretas. 42
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Morning Glory with Black, 1926. © The Georgia O'Keeffe Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York. Foto: © The Cleveland Museum of Art).
Pelvis with the Moon © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London.
NOVO MÉXICO Em 1929, fugindo das movimentadas rotinas de verão no lago George, O’Keeffe viajou de trem para a zona rural do Novo México em busca da solidão e da liberdade que precisava para fazer seu melhor trabalho. Morando em uma casa de argila em Taos, Novo México, ela se sentiu tão emocionada e produtiva que apelidou a região de “meu país”, escrevendo para Stieglitz: “Prefiro vir aqui a qualquer outro lugar que eu conheça”. Nos vinte anos seguintes, quando o clima esquentava, Stieglitz continuou seu padrão de verão com os membros da família no lago George e ela costumava deixar Nova York para pintar no norte do Novo México. Ele nunca se aventurou por lá. Quando ele morreu em 1946, O’Keeffe se mudou permanentemente para o Novo México, onde viveu até a própria morte, quarenta anos depois. A artista construiu duas casas em uma área remota, a 80 quilômetros de Santa Fé: uma pequena casa de verão em uma fazenda chamada Ghost Ranch, e uma casa maior, com árvores e jardins, na vila vizinha de Abiquiu, onde passava o restante do ano. Ambas eram estruturas de argila que ela modificou, adicionando janelas panorâmicas de meados do século e móveis de . Usou ossos de animais descoloridos, rochas lisas do rio e tapetes navajo como decoração regional. Influenciada pelas impressionantes terras cromáticas e pela cultura de vaqueiros e fazendeiros, impulsionou a paleta e “relaxou” o guarda-roupa. Em sua arte, inspirou-se nos novos motivos e nas cores arrojadas de sua paisagem adotada – céu azul brilhante, ossos de animais brancos, argila marrom e falésias de pedra rosa e vermelhas. 44
Black Mesa Landscape, New Mexico / Out Back of Marie's II, 1930. © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London.
Summer Days, 1936. © 2019 Georgia O'Keeffe Museum / Artists Rights Society (ARS), New York.
ÁSIA
Todd Webb, Georgia O’Keeffe on Ghost Ranch Portal, New Mexico, circa 1960s. © Estate of Todd Webb, Portland, ME
O professor favorito de O’Keeffe, Arthur Wesley Dow, apresentou-a à arte e à cultura do Japão e da China, e ela se tornou uma aluna das tradições orientais por toda a vida. Visitava museus americanos com grandes coleções asiáticas e construiu uma impressionante biblioteca privada que incluía livros sobre arte asiática, caligrafia, jardins, chá e poesia. Após a morte de Stieglitz, viajou para muitos lugares novos, incluindo Japão, China e Índia, visitando jardins, templos e museus nos quais encontrou reforço para a ideia central pela qual viveu: tudo no ambiente de alguém deve ser bonito e unificado em um estilo harmonioso de simplicidade e moderação. Desde seus primeiros anos, O’Keeffe teve uma queda por quimonos japoneses e montou uma coleção pessoal deles para usar em casa. Nos últimos anos, adotou um vestido tipo quimono como sua roupa mais icônica. Em viagem para Hong Kong, nos anos 1970, comprou roupas e acessórios e encomendou casacos e ternos sob medida em sedas locais, incorporando detalhes como golas verticais e fechos de botões.
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Oriental Poppies, 1927 © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London.
CELEBRIDADE A partir da década de 1920, O’Keeffe manteve um número crescente de seguidores entre os amantes da arte, e seu como uma das primeiras e mais importantes pintoras modernas do país se firmou. A partir da década de 1960, no entanto, ela se tornou uma celebridade nacional, famosa por viver em seu ambiente remoto e por sua pintura. Sua persona intrigante gerava cada vez mais publicidade para suas exposições e a mídia cobria suas casas e seu estilo de vida no Novo México com publicou uma matéria de capa sobre O’Keeffe frequência. Em 1968, a revista e, uma década depois, a transmitiria amplamente um documentário sobre ela. Nos últimos vinte anos de vida dela, feministas a abraçaram como modelo para as mulheres que queriam carreiras satisfatórias. Os artistas a procuravam em busca de inspiração e conselhos. Uma contracultura jovem admirava seu estilo de vida independente. E fotógrafos profissionais cada vez mais perguntavam se ela posaria para eles. Para ajudar a lidar com a frequência de visitantes, O’Keeffe criou dois uniformes para usar na câmera: um vestido simples e um terno sob medida. Ela encomendou várias versões desses conceitos básicos, alguns em diferentes materiais e cores, mas principalmente em preto. Como modelo para retratos, ela incorporou dureza, austeridade e individualismo condizentes com alguém que vivia a vida em seus próprios termos. Quando O’Keeffe morreu em 1986, aos 98 anos, ganhou sua reputação de uma original americana, temperada pela idade, em um estado de graça zen.
Wanda M. Corn é historiadora de arte e estudiosa de arte e fotografia dos movimentos do final do século 19 até meados do século 20.
GEORGIA O’KEEFFE: ABSTRACT VARIATIONS • SEATLE ART MUSEUM • EUA • 5/3 A 28/6/2020
DEStaque
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OSgemeos
South Bronx, 2016. Foto: Cortesia dos artistas
O RICO IMAGINÁRIO DOS OSGEMEOS EM SEGREDOS, SUA PRIMEIRA PANORÂMICA NA PINACOTECA, CONTRIBUI PARA A EXPANSÃO DO ENTENDIMENTO DAS RELAÇÕES ENTRE ARTE E URBANIDADE
POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA , com curadoria de A megaexposição Jochen Volz, na Pinacoteca, já desperta discussão no seu simples anúncio. Como pode o grafite estar no “museu”? E, se está dentro do museu, o que se tem: grafite ou arte contemporânea? São inquirições que recobrem outras mais complexas: o conceito muda a forma? A forma muda o conteúdo? São tantas questões! Algumas são válidas; outras se mostram como “falsas polêmicas”. Porém, quando se sabe que a programação da Pinacoteca, em 2020, está voltada às relações entre a arte e o urbano, a realização desta exposição ganha em potência. Tido como um ato subversivo, o grafite está na vida diária das metrópoles. No final dos anos de 1960, nos guetos nova-iorquinos, o grafite foi um dos quatro elementos do , juntamente com o , . No movimento de contracultura de maio de 1968, os muros viraram suportes para inscrições e desenhos políticos. Essa práxis disseminou diferentes estilos (partindo do rabisco, passando por siglas, e até grandes murais). Sua linguagem se associou a distintos grupos periféricos, como o , os , os , os anarquistas e outras facções sociopolíticas – é de todos os – reflexos da cidade e de suas contradições. Em geral, suas imagens veiculam mensagens coloridas, irônicas e, às vezes, descompromissadas. De modo algum, seguem os cânones estéticos tradicionais e, muitas vezes, servem às reinvindicações sociais, mas, sobretudo, exigem o protagonismo sobre os códigos visuais da cidade. Essas 50
Osgemeos e Martha Cooper, The Playground, 2016. . Foto: Cortesia dos artistas
Gramophone, 2016. Foto: cortesia dos artistas.
imagens demonstram, ainda, diversos graus de transgressão. Elas podem dar voz aos que são silenciados na polifonia da cidade. Nesse quesito, a arte ativista encontra no grafite meio e suporte. É justamente por seu histórico rebelde que o grafite tem sido alvo de discussões nos campos artístico, patrimonial e urbano. Características como anonimato, ilegalidade e reapropriação territorial estão na arena desses debates. Desde os anos 1980, o grafite vem sofrendo um processo de absorção pela administração pública, pelos museus e pelas galerias de arte – estas últimas entusiasmadas com a potencialidade mercadológica que esse tipo de produção tem registrado. Tudo isso vem legitimando o grafite como arte, pelo menos dentro da teoria institucional que define ser arte o que entra no circuito artístico, constituído pelos especialistas da área. De fato, o histórico do grafite é um contínuo processo de apropriação e resistência – porém, ele nunca se encaixa completamente nas convenções. 52
O Beijo (The Kiss), 2016. Foto: cortesia dos artistas.
Já a produção do duo formado por Otávio e Gustavo Pandolfo (São Paulo, 1974) sai das “caixinhas críticas” de uma vez. Seus objetos e intervenções, sustentados pela origem vinda do grafite, podem ser ditos como arte contemporânea. Desprovidos de regras, eles trazem uma desconcertante profusão de formas, práticas e materiais. Ao mesmo tempo, seguem a tradição do retrato, com personagens centrais envolvidos por atmosfera onírica. De certa forma, discutem relações arquitetônicas, econômicas e sociais. Suas instalações incorporam carros, barcos e bonecos gigantes, ao passo que a pintura deles alcança a grande escala. A soma desses aspectos transforma essa produção em expressão da contemporaneidade capaz de mediar relações entre o espaço urbano e seus cidadãos. Nesse ponto, a escolha da Pinacoteca em iniciar sua programação anual com a dupla é instigante. Apontemos outro dado de contemporaneidade: diversos grafiteiros investem na organização e difusão de sua obra para além do grupo de origem – algo que 53
The layup afternoon train, 2017. Foto: Joshua White.
Osgemeos sabem fazer muito bem. Isso porque a trajetória deles, iniciada em 1987, nas ruas do bairro paulistano do Cambuci, além de ter atingido espaços públicos de diversas cidades do mundo, também está presente em instituições, tais como Hamburger Bahnhof (Berlim, 2019), Vancouver Biennalle (Canadá, 2014), MOCA (Los Angeles, 2011), Tate Modern (Londres, 2008), entre outras. Assim, a exposição não é a primeira experiência dos grafiteiros em espaços de exibição da arte contemporânea. Mas o que esta mostra traz de novo, então? À primeira vista, é uma exposição panorâmica com pinturas, instalações imersivas, sonoras, esculturas, intervenções, , desenhos e cadernos de anotações do tempo de adolescência. Esses cadernos, apresentados ao público pela primeira vez, antecedem os personagens amarelos – marca inconfundível da dupla. Nessas anotações, também é possível desvelar alguns dos segredos prometidos pelo título da mostra. A dupla quer apresentar ainda, como segredos, os trabalhos que nunca foram exibidos (alguns são diferentes da produção atual e outros trazem as referências do presente). Existem criações inéditas pensadas no e para o espaço do museu e obras (em painéis e telas) que guardam a similaridade formal com as intervenções do espaço da cidade. São sete salas de exposições temporárias do primeiro andar, um dos pátios, alguns ambientes 55
14th Street NY, 2017. Foto: Martha Cooper.
Giants, 2014. Foto: Cortesia dos artistas.
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internos e externos, além de uma instalação concebida para o octógono – a ocupação dos espaços externos se assemelha ao que aconteceu na mostra , de Ernesto Neto (ocorrida em julho de 2019). E são as intervenções externas que mostram uma situação atípica para os espaços institucionais: a arte que extrapola as paredes; foge do espaço “sacralizado” e contamina a cidade. Aqui, há um verdadeiro desafio: as intervenções da dupla podem alterar o modo como a Pinacoteca se integra à paisagem urbana? A fronteira entre o “dentro” e o “fora” pode esmaecer? Ao tentar integrar o edifício da Pinacoteca à paisagem urbana, pretendem quebrar a preparação do espetador que suspende o tempo para entrar em outra situação: a da arte. O espaço da arte fechado, mesmo que venha se abrindo ao grande público, não tem o poder do imaginário das ruas. Na proposta dos grafiteiros, a recompensa: o transeunte tropeça e cai na arte; é puxado para dentro. As obras e intervenções se tornam conexão entre o universo mágico d’Osgemeos, o edifício da Pinacoteca e a dinâmica do tecido urbano. Lembre-se de que os irmãos usam a cidade como inspiração e, simultaneamente, intervêm nela. Em entrevistas, já atestaram: “use a cidade ou ela lhe usará”. Assim, os reconhecidos personagens amarelos com roupas estampadas surgem entre a autorreferência, o sonho e a realidade. Vindos da cultura , em um primeiro momento, os Osgemeos se distanciam desse grafite tradicional, quando experimentam novos materiais, signos e, especialmente, quando adotam a cultura brasileira (popular e erudita), por meio de um desenho mais orgânico. Eles ainda combinam o improviso com o lúdico, resultando em imagens de uma “cidade imaginária” que pode ser apropriada pelo espectador. Em 2006, na sua primeira individual, os irmãos transformaram o prédio da galeria em uma grande cabeça – como se o público tivesse permissão para 57
entrar na mente dos artistas (no seu processo criativo). Lá dentro, painéis e instalações interativas revelavam o estilo próprio da dupla. Na Pinacoteca, a permissão será para conhecer os segredos deles. A cidade e os hábitos que ela estimula compõem o fazer artístico da dupla – a arte contemporânea, então, é vista como a mediação entre o indivíduo, o coletivo e o urbano. As obras e os questionamentos retratados pela dupla revelam as pluralidades, os conflitos diversos, expressões, representações e diferentes relações com o espaço em que vivem e se manifestam. Nessa perspectiva, não há ruptura entre arte e vida, nem mesmo o museu, no caso, a Pinacoteca, pode interromper essa interatividade. Ao contrário, o edifício é cooptado.
Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA USP), membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA).
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OSGEMEOS: SEGREDOS • PINACOTECA DO ESTADO • SÃO PAULO • EM BREVE
Giant, 2016. Pirelli Hangar Biccoca, Milão, Itália. Foto: Sha Ribeiro.
O Dia da Festa de Break (The Break Party's Day), 2016. Foto: Cortesia dos artistas.
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FLASHback
MAES
nicolaes
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The Eavesdropper, 1655. © Guildhall Art Gallery, City of London.
COM DESTAQUE PARA A SÉRIE DE PINTURAS DE GÊNERO QUE RETRATAM OS BISBILHOTEIROS DA ÉPOCA, CONHEÇA A OBRA DO PINTOR HOLANDÊS DA IDADE DO OURO, NICOLAES MAES, UM APLICADO ALUNO DE REMBRANDT
Nicolaes Maes foi um dos pintores de gênero mais criativos de sua época. Suas experiências com o espaço interior e a intimidade incomum das cenas domésticas influenciaram muitos de seus contemporâneos, incluindo Pieter de Hooch e Johannes Vermeer. Enquanto seu domínio magistral da luz e da sombra decorreu de seu aprendizado com Rembrandt, sua nova abordagem à pintura de gênero era apenas sua. Nascido em Dordrecht, onde ele pode ter treinado com um mestre local, Maes foi para Amsterdã no final da década de 1640 para estudar no estúdio de Rembrandt. Em 1653, ele retornou a Dordrecht, onde viveu e trabalhou pelos próximos 20 anos. Maes voltou para Amsterdã em 1673, onde permaneceu pelo resto da vida. Um dos pupilos mais talentosos de Rembrandt, Maes inicialmente pintava cenas bíblicas no estilo de seu mestre. Contudo, a demanda da protestante República Holandesa para pinturas religiosas era limitada e ele rapidamente voltou sua atenção para cenas do cotidiano ou pinturas de gênero, que eram populares entre as recém-enriquecidas classes mercantis. Para se destacar em um mercado competitivo, Maes desenvolveu um estilo distinto e uma abordagem inovadora nesses temas. 62
Pelican (Stag), 2003. © Peter Doig. All rights reserved, DACS & JASPAR 2020 C3120.
POR ARIANE VAN SUCHTELEN
Sacrifice of Isaac, 1653. Š Agnes Etherington Art Centre, Queen’s University, Kingston, Canada / Foto: Bernard Clark.
Durante sua longa carreira, o trabalho de Maes passou por algumas dramáticas mudanças estilísticas – das tonalidades escuras de seus primeiros trabalhos às pinturas de gênero mais leves e refinadas e às brilhantes cores e sofisticação de seus retratos comissionados. PINTURA HISTÓRICA Quando Nicolaes foi para Amsterdã estudar pintura com Rembrandt, aprendeu a pintar “histórias”, principalmente histórias da Bíblia ou mitologia, considerados os temas mais distintos e ambiciosos que um pintor poderia enfrentar. Somadas às cenas abrangentes da vida cotidiana, naturezas mortas, interiores e paisagens, davam aos alunos um treinamento completo. Copiar as composições de Rembrandt foi parte essencial desse treinamento, e algumas de suas primeiras pinturas seguem o exemplo de seu mestre. Mas Maes rapidamente desenvolveu seu próprio estilo, introduzindo tonalidades mais claras, e optou por representar momentos diferentes em uma história para criar sua própria versão. Cenas da vida cotidiana também foram retratadas no estúdio de Rembrandt, e muitos dos desenhos do mestre e gravuras tratam desse tema. Maes passou a fundir as duas categorias, incorporando as invenções pictóricas e os dispositivos estilísticos das pinturas históricas de Rembrandt em suas primeiras pinturas de gênero. A primeira pintura totalmente assinada e datada de Maes ( 1653) conta a história bíblica de Hagar, empregada de Sarah, esposa de 65
Dismissal of Hagar and Ishmael, 1653. © The Metropolitan Museum of Art, New York.
Abraão, que gerou seu primeiro filho, Ismael. Depois que a idosa Sarah milagrosamente deu à luz um filho, Hagar e Ismael foram banidos por insistência de Sarah. A composição de Maes lembra uma gravura de Rembrandt, mas, concentrando-se na emoção contida na despedida do casal, o jovem artista criou sua própria interpretação desse tema popular. (c. 1653-54) é claramente uma influência da pintura de Rembrandt de mesmo título, de 1635. Mostra Abraão sendo posto à prova final quando Deus ordena que ele sacrifique seu único filho, Isaac. Abraão obedientemente se preparou para executar o comando, ainda não ciente do anjo descendente que interviria. Rembrandt ensinou seus alunos a capturar o momento mais crítico de uma história – Abraão está prestes a sacar sua faca antes de ser impedido. PINTURAS DE GÊNERO Mulheres – jovens e velhas, ricas e pobres – desempenham o papel principal em quase todas as cenas de gênero de Maes. Muitas delas realizam tarefas comuns e tarefas domésticas, refletindo as percepções e os estereótipos contemporâneos das mulheres na sociedade e na esfera doméstica. Algumas pinturas parecem abrigar uma mensagem moralizadora, mas com um toque de humor para dar um tom alegre. A contribuição mais marcante de Maes para a pintura de gênero é sua série altamente original de bisbilhoteiros. Seu apelo reside na maneira direta em que o bisbilhoteiro se dirige ao espectador, e na intrincada interação entre as cenas principais e secundárias dentro da mesma pintura. 66
“ ”.
Acima: Young Woman Sewing, 1655 e The Account Keeper, 1656. © St. Louis Art Museum.
O interior relativamente simples sugere que (1655) é uma das primeiras da série , de Maes Ele fez seis pinturas com uma única figura espionando um incidente ocorrido em uma sala em um nível diferente da casa. A figura principal envolve o espectador com um olhar direto, tornando-nos cúmplices no ato de escutar. Aqui, os amantes no porão são surpreendidos por um velho com uma lâmpada. Em (c. 1656), uma porta aberta bloqueia a visão de uma dona de casa ouvindo na escada, enquanto nos revela o encontro erótico que ocorre nos fundos da casa. Uma criada é distraída de seus deveres de cuidar de crianças por seu amante, inclinando-se através de uma janela aberta Podemos ver o que a bisbilhoteira, sorrindo e pedindo silêncio, só pode ouvir. Como consequência, não temos escolha a não ser nos tornarmos parte de um vínculo conspiratório. Uma mulher sorri para nós, ironicamente, enquanto mexe no bolso do homem dormindo sentado à mesa em (c.1656). Usando o mesmo gesto dos bisbilhoteiros de outras pinturas de Maes, ela pede que sejamos cúmplices. Essa mulher não é uma ladra comum, mas possivelmente a amante ou outro membro da família. Seu roubo serve como um aviso: a excessiva indulgência do homem – claramente o consumo de álcool e tabaco provocou seu sono – terá consequências negativas. 68
Acima: The Listening Housewife (The Eavesdropper), 1655. © Her Majesty Queen Elizabeth II 2020. À direita: The Eavesdropper, 1656. © Historic England Photo Library.
Acima: Sleeping Man having his Pockets Picked about, 1656. © 2019 Museum of Fine Arts, Boston. À direita: Portrait of Margaretha de Geer (1583-1672), 1669. © Dordrechts Museum.
RETRATOS Pouco antes de 1660, Maes abandonou as cenas domésticas íntimas pelas quais é mais conhecido hoje e passou a se dedicar exclusivamente à lucrativa pintura de retratos pelo resto de sua longa carreira. O artista mudou seu estilo tão radicalmente que seu trabalho tardio tem pouco em comum com suas pinturas de gênero da década de 1650, e menos ainda com o caráter escuro de seus primeiros trabalhos. O primeiro biógrafo de Maes, Arnold Houbraken, observou que “as jovens mulheres preferiam o branco ao marrom” em seus retratos. O artista desenvolveu um estilo de retrato mais colorido e elegante, refletindo uma tendência internacional de estilo e refinamento, derivada do trabalho de Anthony van Dyck, bem como do retrato francês. Composições, poses, roupas e acessórios padronizados permitiram a Maes aumentar sua produção e lidar com a alta demanda. Como um dos retratistas de maior sucesso de sua época, em 1693, aos 59 anos, Maes morreu um homem rico, tendo pintado cerca de 900 retratos. 70
Two Women at a Window, 1656. © Dordrechts Museum
NICOLAES MAES: DUTCH MASTER OD THE GOLDEN AGE • NATIONAL GALLERY • REINO UNIDO • 22/2 A 31/5/2020 71
serpa
IVAN ,
ALTO relevo
Sem tĂtulo, 1957. Foto: Jaime Acioli.
RETROSPECTIVA DE UM DOS MESTRES DA HISTÓRIA DA ARTE BRASILEIRA, IVAN SERPA: A EXPRESSÃO DO CONCRETO APRESENTA MAIS DE 200 TRABALHOS DE DIVERSAS FASES DO ARTISTA QUE MORREU PRECOCEMENTE (RIO DE JANEIRO, 1923/1973), MAS DEIXOU OBRAS QUE ABRANGEM UMA GRANDE DIVERSIDADE DE TENDÊNCIAS, TORNANDOSE UMA REFERÊNCIA PARA NOVOS CAMINHOS NA ARTE VISUAL NACIONAL
POR MARCUS DE LONTRA COSTA A arte de Ivan Serpa é, desde sempre, um grito de liberdade, uma busca de síntese, ímpar, arrojada e original, de construir uma estética comprometida com a vida e com o sentimento brasileiro. Por isso, ele jamais se preocupou com a construção de um estilo, determinado por forças externas, em coerência com o professor exemplar que era e exigia de seus alunos um constante exercício de pesquisa e reflexão. Alguns fatos, de origens diversas, foram essenciais para a formação artística de Ivan Serpa e moldaram a personalidade do artista. Sua sólida formação cultural, adquirida com uma tia francesa, que o integrou, desde cedo, ao mundo estético, e a sua saúde frágil, provocada por uma cardiopatia congênita, desenvolveram no artista um sentimento vital de urgência e a permanente percepção de que sua sofisticação intelectual sempre haveria de conviver com a simplicidade de seu cotidiano e com sua autêntica personalidade humanista. Homem de olhar e de pensamento universais, ele jamais abdicou de suas raízes brasileiras: carioca, morador do Méier, na padaria, no ônibus, rubro-negro e mangueirense, entre seus livros, seus alunos, sua gente, Ivan Serpa, de maneira contundente, sintetiza, em sua própria personalidade, a essência poética de uma nova estética modernista e tropical, sensível, veloz, construindo paisagens nas quais a geometria é a ferramenta essencial, gesto primeiro, o espaço artístico entendido como elemento organizador do caos da percepção, a ordem, o método, o 74
Série amazônica nº13, 1968. Foto: Jaime Acioli.
A década de 1950 marcou um processo de reconstrução do mundo após a hecatombe da Segunda Guerra Mundial. Mas a humanidade tinha em mãos, então, uma nova tecnologia bélica, capaz de destruir todo o planeta, o que exigia um engajamento maior da arte em defesa de um movimento modernista que fosse capaz de dar ética e sentido às tecnologias, resultantes dos processos de pesquisa científica e industrial do período. No Brasil, o jovem Ivan Serpa, desde suas aulas iniciais com o professor austríaco Axel Leskoschek, demonstrou interesse nos processos artesanais da criação artística e fez despertar nele a primazia da linha, do elemento gráfico, como estruturador da composição artística. Essa busca por simplicidade e clareza encontrou seu rumo a partir do contato com Mário Pedrosa, que fez surgir no artista um interesse acentuado pelo concretismo, traduzido, aqui, por um vocabulário menos rígido, sem as imposições cromáticas de matriz europeia, e buscando paisagens horizontalizadas, linhas
Sem título, cerca de 1959. Foto: Jaime Acioli.
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Sem título, 1952. Foto: Jaime Acioli.
de cor de delicada poética cromática, muitas vezes, tangenciando novos ritmos e musicalidades. É dessa época, mais precisamente, de 1953, a formação do Grupo Frente, do qual participavam o próprio Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Eric Baruch, Abraham Palatnik, Lygia Pape, Décio Vieira, Lygia Clark, Vincent Iberson, João José da Silva Costa, Carlos Val, Rubem Ludolf, César Oiticica, Hélio Oiticica, Elisa Martins da Silveira e Franz Weissman. Depois de um período de grande repercussão de suas obras, Serpa viajou para a Europa e travou contato direto com os grandes mestres da pintura. E percebeu que lhe faltavam conhecimentos técnicos na arte de pintar. Mais uma vez, a técnica e as práticas artesanais constituíam o ponto-chave de suas inquietações, atitude compreensível por sua função de restaurador de obras raras da Biblioteca Nacional. Em seu retorno ao Brasil, Serpa se desiludiu dos movimentos relacionados com a abstração geométrica. Na Europa, percebeu que o caminho inexorável desses movimentos levaria a uma ortodoxia formal, à elaboração de conceitos e à ausência 77
Biomb Concretista, 1952. Foto: Jaime Acioli.
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Acima: Série Op-erótica,1969. À direita: Série Negras. Foto: Jaime Acioli.
total da artística, que a ele tanto agradava. Por isso buscou, inicialmente, uma síntese entre elementos reais e criatividade poética, produzindo obras que, em certa medida, estabeleciam contato com os movimentos da abstração informal, deles, porém, distanciando-se, porque partiam de elementos formais, que ele identificava nos livros antigos com os quais trabalhava na Biblioteca Nacional, como restaurador. No início dos anos 1960, as grandes redes de comunicação transformavam o mundo “em uma grande aldeia global”. Surgiam imagens da fome e da miséria pelo mundo. O ideário modernista ruía diante de olhares incrédulos e diante das imagens de crianças esquálidas. No campo das artes visuais, no Brasil, nenhuma produção sintetizou esse momento, de maneira tão contundente, como a série de pinturas de Ivan Serpa, chamadas , mas que o artista preferia denominar, poeticamente, . Essas obras, de forte apelo expressionista, reafirmavam a liberdade criativa, que Serpa sempre defendeu, e revelavam um artista com amplo domínio 80
de seus meios de expressão. Em qualquer dimensão, essa série de pinturas e desenhos refletem o drama e o pavor de um mundo moderno, falido em suas promessas não realizadas, e acabam por se identificar com a questão conjuntural brasileira. reverberaram intensamente por Os movimentos da todo o mundo, valorizando as chamadas vanguardas negativas, como o surrealismo e o dadaísmo. No Brasil, eles adquiriram um caráter político mais intenso e uma nova geração de artistas surgiu no cenário da arte com imagens contundentes, repletas de violência e sensualidade. Serpa, homem de seu tempo, captou esse novo cenário e dele se apropriou à sua maneira. Artista com pleno domínio de sua linguagem, na sua obra, o s cedeu lugar a uma drama existencial da fase sensualidade tensa, na qual o corpo feminino é o abrigo de uma alma barroca, repleta de curvas, dobras, movimentos circulares, que encontram origem em trabalhos realizados anos antes, quando o artista, restaurador de obras raras em papel, observava atentamente a ação dos anóbios (térmitas, cupins) e suas trajetórias microscópicas, delicadas filigranas, pequenos labirintos, recriados pelo artista.
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Abaixo: Sem tĂtulo, 1960. Fotos: Jaime Acioli.
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As estratégias da atuaram no artista como afirmação da liberdade e instrumento essencial da criação artística, mas foi por meio de certos processos, oriundos da , que Serpa reencontrou, ainda na década de 1960, a imposição da ordem, do ritmo, da modulação e da gráfica que marcam a estética construídas pelo artista adquiriram um da arte geométrica. Assim, as caráter simbólico, como se o artista estivesse, com elas, abrindo seus arquivos mentais, seus processos construtivos, sua essência, na busca de refazer o mundo através da ordem e da simetria. Depois de tantas imagens, tantos trabalhos, tantas paisagens e tantos mundos que o artista criou em apenas duas décadas, Serpa retornou parabolicamente ao seu princípio, à sua essência. Mas não se tratava, em momento algum, de reencontro com princípios racionais rígidos que acabaram por transformar a arte em uma cidadela elitista e distanciada no mundo e dos homens, representações amarguradas de um tempo que não volta mais, de uma modernidade já devidamente direcionada para a história.
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Todas imagens: Série geomântica, 1972. Fotos: Jaime Acioli.
Trajetórias corajosas como as de Ivan Serpa acentuam a importância da ação artística como instrumento que define identidades culturais comuns, mas, também, como agente de pesquisa, questionamento e subversão. O fenômeno artístico interfere nos mecanismos da tecnologia, levando-o aos limites e direcionando-o para novas vertentes. Ivan Serpa respondia com ousadia e liberdade. Nas várias paisagens que percorreu: geométricas, informais, figurativas, em várias técnicas e vários suportes, há uma inteligência natural do artista que entende a arte como instância, agente essencial em qualquer processo humano, em qualquer campo da atividade criativa que necessita de pesquisa e poesia para permitir que o homem seja sempre o sujeito de suas próprias construções.
Marcus de Lontra Costa é curador e crítico de arte. Foi diretor da EAV Parque Lage e diversos museus, incluindo MAM RJ e Brasília e MAMAM
IVAN SERPA: A EXPRESSÃO DO CONCRETO • CCBB RJ • RIO DE JANEIRO • 4/3 A 12/5/2020 (REABERTURA EM BREVE)
GARlimpo
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OBRA dos sonhos
Felipe Camargo é reconhecido nacionalmente por seus papéis inesquecíveis na TV e no cinema. Mas poucos conhecem o fotógrafo Felipe Camargo, que já teve suas obras expostas na galeria TNT, no Rio de Janeiro. Uma de suas séries de fotografias foi realizada focando paisagens através de vidros molhados do carro em um dia de chuva. Distorcido pela água, o foco desmancha as imagens, tornando-as etéreas e surreais. A visão desfocada da paisagem nas fotografias de Felipe é influenciada pelos mestres impressionistas, especialmente o holandês Vincent Van Gogh e seus contemporâneos Claude Monet e Edgar Degas. Felipe conta que foram suas pinturas que ampliaram seus interesses artísticos quando os descobriu aos vinte e poucos anos. Este café ainda existe na cidade de Arles, localizada ao sul da França, a oeste da região de Provence. Hoje, o local foi rebatizado como Café Van Gogh e foi pintado de amarelo e verde para se assemelhar ao seu mundialmente famoso retrato. O local vive cheio. A cidade de Arles tornou-se um ponto turístico na rota dos amantes das artes, em particular do impressionismo, depois que, no início de 1888, Van Gogh mudou-se para uma temporada por lá. Um dos sonhos do pintor era transformar sua casa em uma residência de artistas como ele, que poderiam ir ao sul da França aproveitar a bela e quente luz do verão mediterrâneo, além de trocarem experiências artísticas. O primeiro e único pintor que lá residiu foi Paul Gauguin, que se instalou na casa amarela de Vincent entre outubro e dezembro de 1888. Sabe-se que este foi o início de nove semanas de convivência conturbada, que culminou com o famoso corte de uma orelha por Van Gogh na noite de Natal de 1888. Mas antes do desentendimento, Paul e Vincent descobriram algumas afinidades artísticas, tendo inclusive pintado os mesmos temas. Outras telas de Gauguin e Van Gogh mostravam o café por dentro, sua atmosfera solitária e tristonha exacerbada pela postura desanimada de seus , a luz quente que emana do café dá a clientes. Em impressão inversa, de um local acolhedor e alegre; uma pintura noturna em que a cor negra não é usada. O calor das cores teria sido influência da obra do francês Louis Anquetin, amigo com quem Van Gogh gostava de trocar dicas sobre pintura. Na tela de Van Gogh, vemos o brilho palpável das estrelas, efeito que Felipe Camargo buscou construir em suas fotografias usando a água como filtro de distorção. 86
FELIPE CAMARGO, QUAL A SUA OBRA DE ARTE DOS SONHOS?
“ ”.
Vincent Van Gogh, Terraço do Café à Noite, 1888.
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GARlimpo
NOTAS do mercado
ART BASEL HONG KONG mostra relatório de vendas sólidas, o primeiro da exibição online. Em meio ao impacto global do coronavírus, a primeira edição online da feira de arte exibiu um total de 235 revendedores e registrou um total de 250 mil visitantes na plataforma virtual. Destaque para o brasileiro Lucas Arruda , de com óleo da série 2008, vendido por US$ 100 mil para uma coleção na Ásia pela Galeria David Zwirner.
SOTHEBY'S anuncia dia de venda on-line contemporânea. Enquanto seus showrooms estão fechados, a casa de leilões está lançando uma nova série de vendas moderna e contemporânea on-line no próximo mês. Entre os destaques está a serigrafia acrílica preta sobre tela de Richard Prince, o tríptico (1987), um exemplar inicial de sua agora proeminente série dos anos 1990. O trabalho tem uma estimativa de venda de US$ 500 a US$ 700 mil.
GAGOSIAN põe à venda desenho de Picasso devolvido aos herdeiros por um vendedor alemão perseguido. O raro desenho, de propriedade do banqueiro de Berlim, Paul von Mendelssohn-Bartholdy será vendido na galeria por pelo menos US$ 10 milhões. Os vendedores de 1903, são descendentes de Paul, que receberam a propriedade da obra em um caso de restituição contra a Galeria Nacional de Arte de Washington, que era dona da peça desde 2001.
BANKSY e suas vendas online de impressões atingem US$ 1,4 milhão. O leilão da Sotheby’s ofereceu um total de 25 lotes com taxa de venda de 96%. A venda foi liderada pela imagem mais reconhecida do artista, , com um preço de US$ 375 mil. Entre os outros trabalhos que tiveram alta oferta foi , de 2003 que mostra a imagem de uma jovem mulher abraçando uma bomba contra um fundo rosa brilhante. O trabalho teve um total de 22 ofertas antes de atingir seu preço de venda de US$ 27.500 e mais do que dobrar sua alta estimativa de US$ 9 mil.
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LIVros
Dando continuidade a um trabalho que é exposição , em cartaz na Chácara Lane, em São Paulo - o livro de Guto Lacaz, traz a transformação de objetos do cotidiano em arte. Em formato de pequeno caderno, a obra reúne estas peças em tamanho real e coloca o leitor em contato com a experiência através de páginas transparentes onde é possível ver um objeto se encaixando no outro. GUTO LACAZ • Coincidências Industriais • Editora Lovely House • R$ 150,00 • 40 páginas
de Rochele Costi repete a proposta feita na exposição de 2009, no MIS, em que convidava o público a reproduzir a fotografia de nove artistas: Rosângela Rennó, Vik Muniz, Lenora de Barros, Thomas Farkas, German Lorca, Marina Abramovic, João Modé, João Castilho e um retrato da própria artista. Uma folha de acetato vermelha acompanhará o livro, para que o leitor crie novas imagens. ROCHELLI COSTI • Reprodutor • Editora Lovely House • R$ 180,00 • 200 páginas
Convivência com o artista, elementos ficcionais e uma escrita envolvente para falar de uma experiência artística, que pode ser uma obra única ou um conjunto de um único autor. Assim nasce o texto curatorial que é tendência nas artes visuais mundo afora e uma das marcas do jovem brasileiro Tiago de Abreu Pinto. TIAGO DE ABREU PINTO • Como, descontados os lindes da reticência, realizar dialeticamente metaficções historiográficas sobre artistas • Editora Lovely House • R$ 130,00 • 10 livros em diversos formatos. 90
Fotos: Paulo Jabur
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COLUNA do meio
Waltercio Caldas e Cildo Meireles
Juan Melé Mul.ti.plo Rio de Janeiro
Hugo de Leoni, Luciana Gameleira, Mario Rebehi e Ondine Melo
Vanda Klabin, Luis Paulo Montenegro, Carolina Aguiar, Mando Muller e Eduardo Capozzi
Fotos: Leda Abuhab
Toia Lena, Maria Pia, Eduardo Capozzi e Patrícia Marinho
Clea Pedroso, Francisco Almendra e Guida Carvalho
Chama o Bloco Bianca Boeckel São Paulo
Fotos: Denise Andrade
Luciana Brito
Allann Seabra
Pico Garcez e Bianca Boeckel
Francisco Almendra, Bianca Boeckel e Nelson Porto
Carla Ball e Helo Paoli
Pico Garcez Piu Iguatemi São Paulo
Flavio Ouro e Paula Sá
José Henrique Fabre Rolim
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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