Revista DASartes 99

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REN HANG JAN VAN EYCK AUBREY BEARDSLEY J. CARLOS NICOLAS DE STAËL FÉLIX FÉNÉON




DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO . NEGÓCIOS André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA dasartes@dasartes.com

Capa: Ren Hang, Untitled, 2015 Courtesy OstLicht Gallery and Ren Hang Estate

DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br REVISÃO Angela Moraes

Frank Walter, Sem título, sem data. Foto: Axel Schneider.

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Contracapa: Aubrey Beardsley, Illustrations for Oscar Wilde's Salome 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate


NICOLAS DE STAËL

10 REN HANG

8 96

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AUBREY BEARDSLEY

Agenda

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Dossier (Residências Artísticas)

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Resenhas

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Alto Falante

JAN VAN EYCK

J. CARLOS

FÉLIX FÉNÉON

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Barsaat, 2017

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AGEnda

NITCHO Com larga experiência na arte pública, o artista se debruça sobre a paisagem urbana a partir dos estudos do nãolugar e da heterotopia: o Espaço do Outro, no conceito criado por Michel Foucault para falar de lugares reais que estão fora dos lugares 'aceitos'. Nestes espaços estão contidos os conflitos, as tensões, o contraditório. Lugares dentro de outros lugares, que se tornam perturbadores para o que está fora. A produção de Nitcho reúne elementos e características desse Espaço do Outro, em que protagonistas e coadjuvantes desempenham seus papeis em uma profusão criativa constante. 8

Em suas palavras, "os trabalhos são apresentados em formatos dinâmicos como esses tais espaços públicos podem ser". Matéria, tempo e intervenções que se sobrepõem em camadas para contar histórias de outras histórias e fazer emergir novas narrativas que se sucedem ao infinito.

Nitcho • Mostra online • Martha Pagy Escritório de Arte • marthapagy.com.br



ALTO relevo


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NICOLAS de staël

Sicile, 1954, © Adagp, Paris, 2018, Foto © Jean Louis Losi.


O CENTRO POMPIDOU REÚNE PELA PRIMEIRA VEZ EM MÁLAGA TODAS AS OBRAS DE SEU ACERVO DO ARTISTA RUSSO NICOLAS DE STAËL. ESTA COLEÇÃO MARCANTE, ENRIQUECIDA POR PELA GENEROSIDADE DO PRÓPRIO ARTISTA, REÚNE AS OBRAS MAIS IMPORTANTES DE NICOLAS E ILUSTRA A JORNADA ARTÍSTICA DESTE TALENTOSO E NOTÁVEL PINTOR DO SÉCULO 20

POR CHRISTIAN BRIEND

Nicolas de Staël (São Petersburgo, 1914-1955) é um dos artistas mais relevantes do panorama artístico francês desde 1945. A exposição pretende mostrar, por meio de várias das suas obras mais significativas a trajetória excepcional deste artista, que colocou a dialética entre a figuração e abstração no cerne de seu trabalho. No final da Segunda Guerra Mundial, em Paris, até então considerada a capital internacional das artes, a linguagem abstrata, geométrica e gestual, triunfa no cenário artístico. É nesse contexto que se dá a conhecer um jovem exilado russo: Nicolas de Staël. Nascido na Rússia, Nicolas de Staël estudou na Bélgica antes de se mudar para a França, em 1938, onde se tornou conhecido por meio de uma exposição na Galerie Jeanne Bucher, em Paris, em 1944. Depois disso, por um período predominou em seu trabalho a abstração até que, em 1952, voltou à figuração, incluindo em sua obra formas recortadas e bem construídas. Em 1953, mudou-se para o sul da França. No auge e no sucesso de sua carreira, em 1955, o artista decidiu dar fim à vida, aos 41 anos. 12


Les Musiciens, souvenir de Sidney Bechet, 1953. Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI / Service de la documentation photographique du MNAN Dist. RMN-GP


Agrigente, 1953. © Adagp, Paris, 2018, Foto © The Fitzwilliam Museum.

Essa retrospectiva oferece ao visitante uma viagem pela carreira do artista em quatro sequências. O primeiro período ocorre entre 1946 e 1948, e mostra obras pintadas e desenhadas do artista que, na época, se baseavam em uma abstração austera. A próxima seção cobre o período entre 1949 e 1951. A seleção de obras mostra sua evolução para uma pintura em que predominam linhas grossas. Na terceira sequência, que se passa entre 1952-1953, o retorno do artista à figuração é revelado em suas telas, coincidindo com sua chegada a Antibes e a descoberta da luz mediterrânea em suas obras. Nessa época, ele retratou paisagens e nus, usando cores significativamente mais vivas. Também coincidiu com uma época em que a música desempenhava um papel significativo na vida dele. O último dos períodos artísticos que podem ser vistos nesta exposição apresenta seus últimos trabalhos, que procuram refletir a vida no ateliê. 14


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À direita: Composition, 1946 e Composition, 1949. © Adagp, Paris. Foto © Peter Willi / Dist. RMN-GP

1946-1948 Nicolas de Staël respondeu aos debates entre figuração e abstração que animavam a cena artística parisiense do pós-guerra com uma demanda por intensidade e densidade. Nas pinturas desse período, formas desequilibradas se enredam, emergindo das profundezas. , pintura emblemática da obra de Staël, de 1946, já revela com o título as difíceis condições que o artista enfrentava: vivia na miséria, não tinha ateliê de pintura adequado e acabava de perder a parceira dele, Jeannine Guillou. Em contraponto à pintura, Staël desenhou grandes pinceladas de nanquim que cobrem quase toda a superfície da folha, onde o branco do papel cria espaços de luz. A partir de 1948, as vigas de linhas finas foram desdobradas e emaranhadas em tintas de formato maior. 1949-1951 No início de 1949, Nicolas de Staël foi para a Holanda e a Bélgica e se inspirou nas paisagens e no claro-escuro dos mestres holandeses. Ele renunciou às formas complexas dos anos anteriores para privilegiar os planos de sombras e de luz, dando uma nova amplitude às suas pinturas. Cruzadas por fortes linhas que cortam o espaço, essas composições se caracterizam por um material grosso aplicado com faca. Interessado no que chama de (Faixa bordada ou de renda que se costura entre dois tecidos), Staël conseguiu criar uma vibração dos contornos brincando com formas e cores. A partir de 1951, o material pictórico se estruturou em uma infinidade de paralelepípedos dispostos na tela como as tesselas de um mosaico. As composições eram erguidas como paredes, com blocos formados por um magma de tinta. “Não oponho a pintura abstrata à figurativa. Uma pintura deve ser abstrata e figurativa. Abstrato na condição de parede, figurativo como representação de um , 1952. espaço.” Nicolas de Staël, 16


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1952-1953 Em 1952, Staël se dedicou à pintura de paisagens ao ar livre, inspirando-se particularmente no sul da França, onde foi dominado pela força da luz mediterrânea. De volta ao seu estúdio parisiense, ele criou pinturas com tons brilhantes e contrastantes. Os desenhos de nus revelam uma busca semelhante: Staël generaliza os planos de tinta preta que, ao contrário das áreas deixadas em reserva, definem massas traçadas abruptamente. Durante esse retorno à pintura figurativa, o artista muitas vezes se interessou pelo e música contemporânea. Suas cores vibrantes tema da música, em particular evocam a vivacidade de sons e ritmos, enquanto os tons suaves refletem harmonias mais sutis. “Fiquei um pouco assustado, em princípio, por essa luz do conhecimento, provavelmente o mais completo que existe, com aqueles diamantes que brilham apenas com um brilho muito breve e muito violento. O “azul desgastado” é absolutamente maravilhoso, depois de um tempo o mar fica vermelho, o céu amarelo e as areias roxas.” Nicolas de Staël, carta para René Char, 23 de junho de 1952.

Abaixo: Paysage,1953. Belem, Berardo Collection, Centro Cultural de Belem, Lisbon, Portugal

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Acima: Arbre rouge, 1953. Abaixo: Agrigente, peint en Provence 1953. Š Adagp, Paris, 2018.

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“ ” Les Toits, 1952. © Adagp, Paris. Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI / Bertrand Prévost / Dist. RMN-GP

1954-1955 No final de 1953, Staël visitou a Itália, onde desenhou sem descanso, especialmente entre as antigas ruínas da Sicília. De volta à Provença, suas paisagens pintadas e desenhadas mostram uma economia formal que lembra a dos desenhos de Matisse. Essa expropriação coincide com a solidão do pintor, que, em setembro de 1954, instalou seu ateliê em Antibes, às margens do Mediterrâneo. Staël então começou uma nova pesquisa focada em naturezas mortas. Em grandes desenhos a carvão, variações sutis de cinza transcrevem a vibração da sombra e da luz. Na pintura, nesse período, usou um material mais fluido criando transparências. Uma atmosfera misteriosa e melancólica emerge dessas obras e desses nus fantasmagóricos que aparecem entre as últimas criações do artista, que se suicidou em março de 1955. “Não te atormenteis pensando em mim, 21



Agrigente, 1953. © Adagp, Paris. Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI / Bertrand Prévost / Dist. RMN-GP


L’Orchestre, 1953. À direita: Le Lavandou, 1952. © Adagp, Paris Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI / Georges Meguerditchian / Dist. RMN-GP

do abismo mais profundo se volta se as ondas o permitem, e se ainda estou aqui é porque sem esperança quero chegar ao fim das minhas lágrimas, à sua ternura. Você me ajudou muito. Vou chegar à surdez, até o silêncio, mas vai demorar um pouco. Fico sozinho e choro diante das minhas pinturas, que se humanizam aos poucos, muito devagar e ao contrário.” Nicolas de Staël, carta para Pierre Lecuire, 27 de novembro de 1954.

Christian Briend é curador-chefe do depto de coleções do Musée National d'Art Moderne, Centre Pompidou, Paris.

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NICOLAS DE STAËL • CENTRE POMPIDOU MÁLAGA • ESPANHA • 23/7 A 8/11/20


surgem como ilhas utópicas: os últimos lugares onde as máscaras ainda não são obrigatórias. Talvez as cores expansivas de Katharina Grosse, ao devassarem certas fronteiras, sussurrem-nos que repensar os espaços é também ressonhá-los.


REN CApa


hang ,

3 backs, 2015. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estate.


Untitled, 2015 Courtesy OstLicht Gallery and Ren Hang Estate.

REN HANG (1987-2017) É CONHECIDO SOBRETUDO POR SUAS PESQUISAS SOBRE O CORPO, A IDENTIDADE, A SEXUALIDADE E A RELAÇÃO ENTRE O SER HUMANO E A NATUREZA, TENDO COMO PROTAGONISTAS JOVENS CHINESES DA NOVA GERAÇÃO, LIVRES E REBELDES. EXPLÍCITA E TAMBÉM POÉTICA, A OBRA DESTE ACLAMADO FOTÓGRAFO E POETA CHINÊS É EXIBIDA PELA PRIMEIRA VEZ NA ITÁLIA


POR TEREZA DE ARRUDA

A mostra NUDES, do artista chinês Ren Hang, apresenta um compêndio de 90 obras, sendo uma retrospectiva com os trabalhos produzidos por este fotógrafo autodidata em sua breve existência, entre 1987 e 2017. A exposição acontece sob a curadoria de Cristiana Perrella, também diretora do museu Centro per l’Arte Contemporanea Luigi Pecci, localizado em Prato, região da Toscana, na Itália, cidade esta com aproximadamente 195 mil habitantes. A China está no holofote das críticas por ser apontada até o momento o local originário e de disseminação do Covid19. Justamente a cidade de Prato, onde a mostra acontece, tornou-se nas últimas décadas um grande centro têxtil, onde vivem hoje 50 mil chineses empregados em 2.500 empresas locais que asseguram uma produção têxtil de qualidade europeia com a agilidade da 29


indústria chinesa. Todos eles abandonaram a China à busca de melhores oportunidades de trabalho, sofrendo em seu exílio, segundo o relato de alguns, discriminação e má condições de trabalho. Contudo, a ilusão de uma oportunidade de vivência na Europa lhes proporciona um de respeito diante muitos de seus conterrâneos residentes em sua terra natal. Espera-se não ser otimismo almejar que esses trabalhadores tenham ou achem o acesso a esta exposição. O fato da exposição NUDES ser a primeira aí inaugurada após o provocado pela pandemia do Covid-19 pode ser visto como um elo para apaziguar os ânimos do público europeu afetados pelos transtornos dos últimos meses, desde o surgimento do novo vírus ainda indomável. A obra de Ren Hang tem em si uma sutileza repleta de pureza, ironia e introspecção. Exposta nesse contexto, ela acentua ainda mais não somente a importância artística cultural de seu legado, mas também a importância de sua atuação como protagonista, provocador e sensível militante em prol da liberdade de expressão. Seu reconhecimento internacional foi adquirido a partir de sua participação na mostra coletiva FUCK OFF 2, realizada em 2013, no Groninger Museum, sob a curadoria do artista Ai Weiwei, e desde então evoluiu de ordem crescente. A fotografia é o foco de sua produção artística tendo como objeto a representação do ser humano e, mais especificamente, da juventude em seu país de origem com um grande toque de rebeldia e humor. Jovens nus, isolados ou em grupo e acompanhados de atributos singulares da natureza como fauna e flora, surgem em 30


À esquerda: Kissing Roof, 2012. Abaixo: Girl with Ants, 2014. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estate

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Untitled, 2012. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estate.



À esquerda: Entryway Banner #2. Abaixo: Boadaceia plate from The Dinner Party, 1974-79. © Judy Chicago

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fotografias encenadas fazendo uso de poucos artifícios. O olhar voltado ao espectador, o lábio acentuado pelo batom vermelho, as unhas em destaque pelo esmalte também vermelho, o posicionamento escultural dos corpos emana em poses acrobáticas ou de descanso simultaneamente atração e tensão. Corpo, identidade, sexualidade e gênero são aí enfatizados em um ato de protesto a dar voz e visibilidade à juventude chinesa oprimida sob os padrões de uma sociedade conservadora a demandar cada vez mais êxito dos indivíduos de forma padronizada para o bem da Nação. Os trabalhos de Ren Hang vão muito além de uma mera representação da realidade chinesa, pois lá o nu é visto como um dos maiores tabus desde os primórdios até a atualidade. A pureza experimental enfatizada em sua fotografia sempre foi maldosamente taxada de pornografia, o que, desde 1949, é tido por lei na China como delito e ato punível. Por esse motivo, sua produção foi em todo seu percurso demarcada como alvo de críticas acirradas, censura e grande agressão ao seu criador, tido em seu País como pessoa não grata, levando-o inúmeras vezes à prisão. Restava-lhe sempre se defender com os argumentos mais singelos possíveis: “Nascemos nus... só fotografo as coisas em sua condição mais natural”. Para Ren Hang, sua obra tinha uma importância além do contexto da arte contemporânea. Ela era vital para sua sobrevivência como forma de expressão autêntica de sua crença, luta e ambição sociocultural. As pessoas retratadas eram, no início, colegas da Universidade de Pequim, onde ele iniciou o estudo de Comunicação, abandonando-o para se dedicar plenamente à fotografia. Posteriormente, ele trabalhou com modelos contratados, mas muitas obras tinham o caráter autobiográfico explícito com o próprio artista assumindo o papel de protagonista de sua fotografia em autorretratos. Ren Hang não somente se expunha fisicamente como também nos revelava sua psique. Ele falava abertamente sobre sua depressão , encaixada dedicando a ela uma seção especial em seu

Nude, 2016. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estate. 35


“ ”

Untitled, 2015. Courtesy OstLicht Gallery and Ren Hang Estate.

quase imperceptivelmente entre suas fotografias e seus poemas. Ele se mostrava ser uma pessoa que procurava intensamente as formas corretas de expressão e atuação sem esconder ou camuflar sua própria vulnerabilidade. “A dor e o tédio são normais, a felicidade e a alegria são um descuido”, afirmou ele em seu poucos meses antes de falecer, em 24 de fevereiro de 2017, por suicídio. A mostra NUDES é uma das mais complexas realizadas sobre Ren Hang até a atualidade por apresentar não somente fotografia, mas também documentação nos bastidores de uma sessão de fotos realizada em Wienerwald, em 2015, e uma ampla seleção dos livros fotográficos que ele criou e inúmeros poemas por ele escritos simultaneamente à produção fotográfica. Seu dom de comunicação ultrapassava a narrativa visual chegando a concretizá-lo na verbalização como nos poemas a seguir citados: 36



Portrait Plant, 2012. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estateourtesy of Through the Flower.



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Peacock, 2016. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estate.

A vida é de fato um precioso presente mas muitas vezes penso parece enviado para uma pessoa errada

Eu sou um pássaro sem cabeça, sem asas, sem pernas, sem bunda, sem cauda. Qualquer um é bem-vindo para me tratar como se fosse uma bola de futebol, ser chutado desta maneira e daquela

O potencial de Ren Hang fez com que ele rompesse por si só a lacuna entre seu próprio senso de naturalidade e seu papel na sociedade. Sua fragilidade agigantou sua existência. Seu legado perpetuou poeticamente sua defesa pela liberdade de expressão.

Tereza de Arruda é historiadora de arte formada pela Universidade Livre de Berlim. Curadora convidada da Kunsthalle Rostock desde 2016, Bienal de Curitiba, de 2009 a 2019, e da Bienal de Havana desde 1996. Curadora da mostra Chiharu Shiota - Além da Memória, em cartaz no circuito do Centro Cultural Banco do Brasil.

REN HANG: NUDES • CENTRO PER L’ARTE CONTEMPORANEA LUIGI PECCI • ITÁLIA • 4/6 A 23/8/2020 39


Illustrations for Oscar Wilde's Salome 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate

DEStaque


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LYNETTE yiadom-boakye


AUBREY BEARDSLEY CHOCOU E ENCANTOU A LONDRES DO FINAL DA ERA VITORIANA COM SEUS DESENHOS SINUOSOS EM PRETO E BRANCO. ELE EXPLOROU O ERÓTICO E O ELEGANTE, O HUMORÍSTICO E O GROTESCO, CONQUISTANDO ADMIRADORES EM TODO O MUNDO COM SEU ESTILO DISTINTO. ABRANGENDO SETE ANOS, EXPOSIÇÃO NO TATE COBRE A CARREIRA INTENSA E PROLÍFICA DE BEARDSLEY COMO DESENHISTA E ILUSTRADOR, INTERROMPIDA POR SUA MORTE PREMATURA AOS 25 ANOS DE IDADE

Com pouco mais de seis anos de produção, Aubrey Beardsley não apenas marcou uma época e inseriu seu nome na História da Arte, como abordou em sua obra assuntos que parecem ter cada vez mais espaço nas discussões contemporâneas, mesmo passado mais de um século de sua morte. Isso se evidencia na recentemente reaberta exposição que leva o nome do artista na Tate Britain, em Londres. A maior mostra dedicada a Beardsley nos últimos 50 anos (que encerraria em maio, mas devido ao fechamento da instituição, devido à pandemia, segue até setembro) traz os principais trabalhos do artista, indica suas influências, o quanto sua produção marcou sua geração e o que viria posteriormente na arte e ainda faz paralelos com discussões relevantes para 2020, como sexualidade, gêneros fluidos e muitas outras. De aparência magra, elegante e ostentando certa artificialidade, Aubrey Beardsley exibia uma imagem que fazia com que fosse facilmente associado a certa morbidez presente em parte de sua geração. Morbidez essa que se refletia em sua obra e se enfatizava por sua própria biografia. Diagnosticado com tuberculose aos sete anos, em toda a vida dele, Aubrey teve que conviver 44

Illustrations for Oscar Wilde's Salome 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate

POR LEANDRO FAZOLLA


Citrine by the Ounce, 2014 © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.


Complication, 2013. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

How Arthur saw the Questing Beast,1893. Victoria and Albert Museum.

com a sombra da morte o rondando: durante sua carreira, teve ataques recorrentes, chegando a sofrer hemorragias pulmonares que, muitas vezes, o incapacitavam de trabalhar ou sair de casa. Ainda assim, antes de sucumbir à doença de forma precoce, aos 25 anos de idade, trabalhou intensamente e legou ao mundo uma vasta produção com mais de mil ilustrações, chocando e deleitando os espectadores com obras em traços delicados e sinuosos, pelos quais explorava o erótico, o grotesco e o satírico. Composta por mais de duzentas obras divididas em 15 diferentes núcleos, a mostra na Tate é a primeira dedicada ao artista na instituição desde 1923. Além de suas obras icônicas, os curadores Stephen Calloway, Caroline Corbeau-Parsons e Alice Insley selecionaram diversos trabalhos que lhe serviram de inspiração, influenciando definitivamente sua produção, como as obras de Edward Burne-Jones e Gustave Moreau, e as gravuras japonesas, nas quais buscou referências importantes para seu trabalho, como a exploração de grandes áreas vazias. Uma das primeiras salas 46


The Lady with the Rose Verso, 1897. Harvard Art Museums/Fogg Museum, Bequest of Scofield Thayer.

da mostra é dedicada já a um de seus principais projetos, sobre o qual se debruçou por cerca de dois anos: entre 1892 e 1894, desenvolveu 353 desenhos para Le Morte Darthur, uma versão da lenda do rei Arthur, publicada por J. M. Dent, incluindo alguns desenhos de menor escala, outros de páginas duplas e até mesmo cabeçalhos para os capítulos, entre muitos outros. Nesse período, confrontado com o resultado de impressões e reproduções, foi gradualmente adaptando e aprimorando seu trabalho de acordo com necessidades técnicas da época, ao mesmo tempo em que começava a criar um estilo particular e a inserir, aos poucos, figuras grotescas e mitológicas em sua produção. Outro grande destaque na mostra vai para as ilustrações de Salomé. Escrita por Oscar Wilde, em 1893, a peça narra a história da personagem bíblica, filha da rainha Herodias, que pede a Herodes a cabeça de João Batista em uma bandeja. Depois de fazer um desenho inspirado pelo espetáculo, Aubrey foi convidado por Wilde (de quem veio a se tornar amigo próximo) e seu editor, John Lane, para ilustrar a publicação do texto em inglês. O 47



“ ”

material inclui uma série de imagens recheadas de sensualidade, erotismo e flerte com a morte. Os desenhos roubaram a cena a tal ponto que se tornaram praticamente indissociáveis do espetáculo, sendo, muitas vezes, usados como referências imagéticas essenciais para suas montagens ao redor do mundo. Em uma das principais , podemos ver o momento obras desta série, icônico em que Salomé segura a cabeça decapitada de João Batista próxima à sua própria. Na ilustração, a delicadeza dos traços de Beardsley se contrapõe à agressividade do assassinato que ali se registra. O contraste se apresenta ainda na forma sinuosa e elegante com a qual o sangue escorre da cabeça do santo católico, desembocando em uma poça com formas curvilíneas, de onde nasce uma singela flor. O uso preciso de grandes espaços pretos e brancos ajudam a dividir a imagem em dois planos e a destacar cada detalhe narrativa. Já em Enter Herodias, Bearsdley se permitiu inserir uma homenagem ao próprio autor da peça e incluiu uma caricatura de Wilde abraçado à própria publicação de Salomé, no canto inferior direito. Essa foi uma das imagens que sofreu com a censura da época (das 18 imagens criadas para a peça, apenas 10 foram publicadas na primeira impressão), obrigando Beardsley a cobrir a nudez de um personagem com uma folha de figueira. Apesar de atender à ordem, o espírito provocador do artista tratou de inserir velas e candelabros em uma alusão direta ao falo encoberto. Entretanto, se na ilustração para Salomé, Aubrey teve que cobrir os genitais nos personagens, o mesmo não aconteceu em parte considerável de sua produção. Tanto que os desenhos com alto grau de erotismo e nudez mais explícita recebem uma sala só para si na mostra da Tate, incluindo toda uma sorte de genitais, falos gigantescos The Climax, 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate 49


A photo guide to Rankyo 1927–35.

Ever The Women Watchful, 2017. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

...\Ever The Women Watchful, 2017. Courtesy the artist, Corvi-Mora, London; and Jack Shainm...


Repose III, 2017. © Courtesy Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York. Popular musicofscores 1928-32

C:\Users\andre\Dropbox\DASARTES EDIÇÕES\2020\Dasartes 97 junho 2020\LYNETTE YIADOM

Illustrations for Oscar Wilde's Salome 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate


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Black Coffee, 1895. À esquerda: The Examination of the Herald, 1896. Stephen Calloway. Foto: © Tate

(como os de e ) e até mesmo violência sexual ( ). Ainda que com uma vasta produção tendo o sexo como temática principal, a sexualidade do próprio artista permanece um mistério (cercado de indícios paradoxais que vão de incesto com irmã e confidente Mabel, a outros que indicariam assexualidade). Apesar disso, no campo de sua produção, Aubrey se mostrava interessado em retratar diversas formas de sexualidade, incluindo a homossexualidade tanto entre homens quanto entre mulheres. Esta aparecia em suas obras não apenas de forma literal, mas, por vezes, de maneira apenas indicada, como em , em que duas mulheres tomam um café juntas, sentadas lado a lado, mas com diversas insinuações que levam a crer em uma relação afetiva entre elas. Pesquisadores mais recentes consideram o artista pioneiro em representar o que hoje chamamos de identidade queer, ainda que as nomenclaturas, siglas e discussões atuais sobre as diversas identidades LGBTQIA+ não existissem na Europa de fins do século 19. Sobre esse aspecto, é bastante interessante assistir ao curta The Art of Being a Dandy, disponível no site da Tate, no qual o curador e historiador Stephen Calloway conversa com a drag Holly James Johnston sobre o artista aos olhos da contemporaneidade, utilizando a associação de Beardsley ao dandismo, para suscitar questões de gênero e do universo drag atual, traçando relações entre os artistas de hoje e a imagem pública que o artista forjou para si em sua época. Cabe 53


ressaltar que o canal da instituição no YouTube também disponibiliza uma visita pela mostra, acompanhada de um bate-papo entre as curadoras Caroline CorbeauParsons e Alice Insley sobre a produção do artista. Ambos os vídeos foram recursos utilizados pela Tate para manter a exposição ativa enquanto mantinha as portas fechadas devido à pandemia do novo coronavírus. Outro ponto fundamental da biografia de Beardsley enfatizada na exposição datada do ano de 1894, quando cofundou e se tornou editor da Yellow Book, revista que se tornaria a publicação mais icônica da década. Seu primeiro volume foi instantaneamente um sucesso que não deixou de gerar inúmeras controvérsias devido ao seu teor ácido, que unia arte e literatura. Em seus primeiros números, Beardsley atuou como editor de arte e produziu grande parte das ilustrações da revista, até que sua relação com Wilde (condenado à prisão por "cometer atos imorais com rapazes") e uma suposta associação deste com a Yellow Book, levou Aubrey a ser injustamente demitido. Nos anos seguintes, seguiu trabalhando em publicações como a revista The Savoy, e ganhou ainda mais notoriedade com a publicação de The Rape of the Lock. Feitas já na fase final de sua vida, essas obras

Illustrations for Oscar Wilde's Salome,1893. À direita: Peacock Skirt, 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate 54


Giant, 2016. Pirelli Hangar Biccoca, Milรฃo, Itรกlia. Foto: Sha Ribeiro.

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The Cave of Spleen À direita: Self-Portrait, 1892. British Museum

permitem perceber o alto grau técnico e de detalhamento que o artista foi adquirindo ao longo dos anos, e foi se tornando cada vez mais marcante em sua produção. Nesse sentido, pode se , que pensar na obra surpreende por sua riqueza de elementos e mostra o alto nível e domínio técnico que adquiriu ao longo de tão curta trajetória. Em decorrência da tuberculose, Beardsley morreu no ano de 1898, em Menton, na França, menos de uma década depois de ser contratado para seus desenhos do rei Arthur. Mesmo com um período tão curto de produção, sua obra refletiu sua época de forma tão contundente, que influenciou o trabalho de diversos artistas que vieram posteriormente, como os simbolistas franceses e muitos artistas da Art Nouveau. Sua existência foi tão marcante que a década de 1890 até hoje é chamada por muitos de Período Beardsley.

AUBREY BEARDSLEY • TATE BRITAIN • REINO UNIDO • 4/3 A 20/9/2020

Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea. Bacharel em História da Arte. Ator e produtor da Cia. Cerne, com a qual foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural.

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JAN ey

FLASHback


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VAN ck

Musea Brugge © Lukas - Art in Flanders vzw, Foto: Hugo Maertens.


JAN VAN EYCK FOI UM DOS FUNDADORES DA PINTURA FLAMENGA DOS SÉCULOS 15 E 16 E TROUXE SEU ESTILO INOVADOR E IMPRESSIONANTE REVOLUCIONANDO TODA A ARTE EUROPEIA COM PINCEL E TINTA À ÓLEO. SEU REALISMO DETALHADO TEM UM APELO IRRESISTÍVEL. ESTA RECENTE EXPOSIÇÃO TRAZ UMA NOVA LUZ SOBRE A INTRIGANTE VIDA E OBRA DO FAMOSO MESTRE INDISCUTÍVEL DOS PRIMITIVOS FLAMENGOS

POR VICTORIA LOUISE

Foi o historiador Gombrich quem disse que “um simples recanto do mundo real fora subitamente fixado no painel como que por mágica!”. Assim nos deparamos com as obras de Jan Van Eyck (1390? -1441). Conhecemos hoje mestres da pintura que por séculos trabalharam sob os mais impressionantes detalhes e representações das superfícies, mas é a Van Eyck que nos voltamos para descobrir como tudo começou. Nascido no final do século 14, nos Países Baixos – hoje, a Bélgica – foi no início do século 15 que Van Eyck trabalhou mais intensamente. Viajou por alguns lugares, fixou-se em Bruges, na Bélgica, por volta de 1430, e lá teve sua própria oficina junto a seu irmão Hupert Van Eyck. Pintou motivos religiosos e personalidades da corte e foi no retrato que se encontra a maior parte de suas produções. Mas não são os temas retratados que mais chamam atenção em suas pinturas. Definitivamente, o nome de Van Eyck está associado diretamente à sua habilidade na composição das cenas que chocaram seus contemporâneos. A maneira realista com a qual tratou a anatomia humana e a superfície das formas vai muito além do que a sociedade da época estava preparada. 60

Portret van Margaretha van Eyck © Lukas - Art in Flanders vzw, Foto: Hugo Maertens.

JAN VAN EYCK ESTEVE AQUI




Madonna de Chancellor Rolin, c. 1435. © Museu do Louvre, Paris.

Vejamos a tela , uma encomenda feita por Nicolas Rolin, por volta de 1435, para a capela da igreja de Autun. Aqui vários pontos são dignos de nota. A cena representa o momento de encontro entre o chanceler, a Virgem Maria e o bebê Jesus. A tela tem dois planos – o primeiro, no qual as três personagens estão em destaque em um ambiente parcialmente fechado, e o segundo, no qual se vê uma extensa cidade se desenvolvendo ao fundo. Há uma dicotomia entre o plano público e o privado. O chanceler encontra com as figuras divinas no espaço privado, demonstrando a proximidade com a qual se quer entender a figura do chanceler – apenas ele está em contato com o divino no meio de uma grande cidade mundana. A proporção das figuras é a mesma. Não se representa o divino como uma figura iluminada ou em destaque, como se fazia até então, mas se tem ambos os personagens nivelados no mesmo degrau de hierarquia. Inclusive, as cores vermelha e azul trocam de lugar em comparação com as imagens produzidas no período anterior, o gótico. Em Giotto, grande representante do período gótico, as figuras divinas estão representadas pela cor azul enquanto elevação do sangue mundano, representado pela cor vermelha. Em Van Eyck, a Virgem se veste com uma grande manta vermelha e o chanceler, está coberto com a cor azul. Essa composição 63


Acima: Triptych of Mary and Child, St. Michael and the Catherine. À direita: Retable de l'Agneau mystique. Madonna van Joris van der Paele, Musea Brugge © Lukas - Art in Flanders vzw Foto: Dominique Provost

traz uma credibilidade à figura do chanceler enquanto um ser relacionado ao divino, uma espécie de mensageiro. Não é Nicolas de Rolin que visita a Virgem, mas a Virgem que o visita e Jesus o abençoa, a imagem traduz uma enorme autoridade do chanceler. Para além dos motivos, o que se percebe como grande elemento de inovação é a representação das formas. Contemporâneo a Van Eyck, o arquiteto Bruneleschi trouxe o pensamento científico para a composição artística e transformou a construção imagética a partir da descoberta da perspectiva, um elemento que passou a ser fundamental nos períodos seguintes. Van Eyck trabalhava com a perspectiva, mas foi além dela. Não só compunha a cena de forma cientificamente construída e a tornava mais crível do que as pinturas de períodos anteriores, mas também estudava os minuciosos detalhes da cena. A luz, a sombra, as dobras das roupas e o brilho das superfícies eram cuidadosamente representados por ele. 64


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Interieur Donaas, Musea Brugge © Lukas - Art in Flanders vzw, Foto: Hugo Maertens.



Arnolfini Portrait, 1434.

, uma das pinturas mais conhecidas pelo público, foi pintada em 1434 e pode representar o momento da união do casal ou, como interpretam alguns pesquisadores, pode ser uma homenagem póstuma do marido à esposa falecida. Na cena, Giovanni Arnolfini, comerciante influente, e Giovanna Cerami, sua esposa, estão em um pequeno cômodo. Para além de especulações sobre a história dos personagens, o destaque neste trabalho são principalmente as técnicas que ultrapassam todos os limites conhecidos até então. O artista aperfeiçoou todas as técnicas de representação das superfícies. Um de seus grandes feitos foi a reformulação dos processos de produção de pigmento. Na época, a têmpera predominava, na qual os pigmentos naturais, moídos e pulverizados, eram misturados à clara de ovo para atribuir a textura líquida que possibilitava a aplicação na superfície a ser pintada. A clara de ovo acabava por secar com rapidez, impossibilitando a um pintor como Jan Van Eyck a dedicar tempo a todas as minúcias que pretendia. O artista realizou testes com outras bases líquidas e obteve, na mistura com óleo de linhaça e amêndoa, a textura ideal. Conseguiu, a partir dela, trabalhar detalhe por detalhe das superfícies e adicionar um tom aveludado e certa transparência nas camadas. Suas obras foram especialmente recebidas pela comunidade artística da época, que se surpreendeu e passou a adotar prontamente o uso dos óleos para o preparo dos pigmentos. Por isso, hoje, o nome de Van Eyck é atribuído à invenção da tinta a óleo, tão usada nos períodos posteriores. Assim como na tela da Madona do Chanceler Rolin, o segundo plano é de fundamental importância na análise do quadro. No fundo se vê um espelho de formato arredondado no qual está refletido o que seria, em termos cênicos, a quarta parede. O que, nós, como espectadores, não vemos, enquanto observamos a cena principal. Aqui, Jan Van Eyck 68


Acima: Young Woman Sewing, 1655 e The Account Keeper, 1656. © St. Louis Art Museum.


Johannes Stradanus, Musea Brugge © Lukas - Art in Flanders vzw, Foto: Dominique Provost.

detalhou, ao redor do espelho, cenas da vida de Jesus Cristo, indicando a religiosidade dos retratados. No centro, o reflexo do que acontece na frente do casal: o outro lado da sala com uma porta e duas pessoas. Uma delas sendo o próprio pintor e a outra possivelmente uma testemunha do evento ou até um assistente do pintor. Acima, a assinatura escrita na parede com a frase “Johannes Van Eyck esteve aqui” – a primeira assinatura em frase a ser encontrada em quadros dessa época. O espelho levou ao limite a nova técnica da perspectiva e influenciou obras de pintores como Quentin Matsys e Robert Campin, que também se debruçaram sobre a representação em reflexos nas superfícies côncavas e convexas. Jan Van Eyck trabalhou em uma oficina com o irmão. Uma gravura do artista Johannes Stradanus retrata o que seria a oficina e mostra detalhes da produção 70


Retrato de Jan de Leeuw, 1436 e Retrato de homem com lenço azul, 1430–1433.

do trabalho artístico. Na época, era comum o mestre da oficina ensinar aos aprendizes as técnicas e este permanecer como aprendiz por cerca de oito anos até abrir a própria oficina. Na gravura, Van Eyck está em posição central – pinta uma tela enquanto seus aprendizes se envolvem nas funções-base da produção: preparo da superfície, preparo das tintas e esboço de figuras. O artista era o mestre de sua época e influenciou diretamente seus contemporâneos a ponto de direcionar diversos aspectos da arte nos séculos posteriores, principalmente o Renascimento. Esse dado gerou indicações de que ele seria o responsável por iniciar o movimento renascentista. Outros historiadores o identificam como representante do Gótico Tardio. Ignorados os rótulos, o fato é que as obras de Van Eyck têm elementos muito próprios que o colocam em destaque sob qualquer categoria histórica que seja inserido.


O que se sabe é que o Renascimento que se estendeu após Van Eyck foi altamente influenciado por suas técnicas e materiais. As figuras humanas de Van Eyck são extremamente realistas em cada parte, podendo ser vistas na época até com uma certa crueza demasiada. , feito em 1433, é um dos retratos do artista e se especula que seja um autorretrato. A rigidez dos lábios do personagem, as sombras na lateral do rosto e as ondulações das rugas ao redor dos olhos demonstram a crueza e a propriedade no conhecimento a cerca das superfícies que a técnica de renascentista buscou encobrir. Apesar de serem extremamente agradáveis as formas renascentistas por seu caráter circular e macio, a tela de Van Eyck renuncia a esses recursos e adota o domínio na fidelidade da representação do mundo real em um período de pouco entendimento nesse tema. Observar Van Eyk, mesmo que seis séculos depois, é uma experiência que continuará tirando o fôlego e, qualquer um que observa atentamente uma tela pintada por ele, saberá que ele esteve lá.

Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP.

VAN EYCK IN BRUGES • MUSEA BRUGGE • HOLANDA • 12/3 A 8/11/2020


Danaë,1612. © Saint Louis Art Museum.


A velha Europa (Charge polĂ­tica).

GIRO na cena


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J. CARLOS


O ARTISTA CARIOCA J. CARLOS ATUOU COMO UM CRONISTA VISUAL, TRAÇANDO OS JOGOS POLÍTICOS, AS DICOTOMIAS SOCIAIS E AS NUANCES DOS PRIMEIROS 50 ANOS DE REPÚBLICA NO BRASIL, TEMPERADOS POR UM SENSO DE HUMOR ÁCIDO, DEBOCHADO E CRÍTICO

J. Carlos (1884-1950), como ficou conhecido José Carlos de Brito e Cunha, era carioca de Botafogo, e viveu grande parte de sua vida no bairro da Gávea, onde produziu um acervo de obras e que agora, grande parte delas, foram restauradas para esta nova exposição. A amplitude da obra de J. Carlos ultrapassa as fronteiras temporais de sua época. Sua presença transformou o ambiente das publicações de periódicos no Brasil de modo definitivo, ao incorporar uma visão ampla da revista como um produto estético em si. na Danielian Galeria, delineou-se Para a exposição um panorama de temas e aspectos recorrentes nos seus 48 anos de produção. A seleção foi feita a partir de um conjunto de 300 obras que pertenceu a Carlos Eduardo de Brito e Cunha, bisneto do artista, dado que permitiu um olhar diversificado dentro da cornucópia criativa que é a obra de J. Carlos. No escopo dessa coleção, os cinco segmentos escolhidos: As capas, A política, A sociedade, A revista e , em vez de serem restritivos, propõem um olhar atento à versatilidade e à sensível observação social que fazem de J. Carlos um cronista não só de seu tempo, mas de aspectos gerais da nossa sociedade, positivos e negativos, que ainda se fazem presentes. A revisitação de sua obra não se limita tão somente ao aspecto histórico, como também permite ampliar o olhar sobre a qualidade formal, estética e poética de sua produção. A liberdade criativa, impressa na fluidez precisa de suas linhas, instiga a repensar seu lugar no cenário artístico brasileiro, assim como na formação de um imaginário nacional que supera os limites do tempo. 78

Viciados. Não entre sem bater.

POR RAFAEL PEIXOTO



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Capa para a Revista Fon Fon.

AS CAPAS O crescimento do número de publicações nos primeiros anos da República acompanhou um movimento de modernização da sociedade e uma concentração da população nos centros urbanos. Durantes quase cinco décadas de produção, J. Carlos contribuiu com a maioria das revistas desse período, mas foi nas capas onde mais elaborou suas composições. Soube adequar a relação entre o público-alvo e os perfis editoriais, alcançando grande alcance e , marcadas por popular. Em publicações como seu posicionamento político, apresentou um relato ácido e crítico pertinente aos conflitos bélicos da primeira metade do século 20. ea Em contrapartida, nas revistas de variedades como a , pode-se observar uma maior leveza: na primeira, a tendência de um perfil anedótico inspirado na vida cotidiana da cidade e, na segunda, um verdadeiro Olimpo de figuras femininas, em composições envoltas em uma atmosfera sensual e onírica. A POLÍTICA A periodicidade na publicação das revistas possibilitou que o conjunto da obra de J. Carlos traçasse um panorama sobre as questões inerentes ao cenário vivido entre as duas grandes guerras mundiais. Nelas, fica clara sua posição antifascista. No ambiente de uma ainda frágil república brasileira, o caráter de denúncia de suas obras (carregadas de deboche e sarcasmo) estimulou a reflexão de nossa sociedade pouco habituada à política, fundamentada em bases democráticas instáveis e constantemente ameaçada por dinâmicas de privilégios e episódios ditatoriais, como foi o exemplo da Era Vargas. A precisão do seu traço e sua aguda observação fizeram com que muitas vezes seus desenhos alcançassem inclusive repercussão internacional. Suas charges e caricaturas são, portanto, uma fonte para o entendimento histórico desse período tão conturbado. 81


Baile de Carnaval (Revista Para Todos)

A SOCIEDADE Os eventos do final do século 19 no Brasil, como a república e o processo de abolição da escravatura, geraram um verdadeiro cabo de guerra em nossas estruturas sociais. De um lado, o protagonismo de uma crescente burguesia mercantil e industrial; e, de outro, um grande contingente populacional que se vê obrigado a buscar sua subsistência sem qualquer amparo governamental. O adensamento da malha urbana e o desenvolvimento do trabalho informal agravaram a ideia de marginalização social. A cidade se transformava em palco de tensões e assunto para as crônicas de J. Carlos. Para essa exposição, foram selecionadas 82


Casal

obras em que aparecem cenas cotidianas de ambas as partes e algumas em que esse conflito se torna o tema central. A imagem do Brasil como o país do Carnaval se origina nas primeiras décadas do século e a contribuição de J. Carlos para isso foi fundamental. De forma sensível, o artista voltou seu olhar para as dinâmicas dessa festa popular, em diálogo com o modo de viver da nossa sociedade. A alegria festiva, o humor debochado e certa vontade de subversão se refletem nos foliões, nas melindrosas e colombinas e na figura urbana do malandro. A despeito de vantagens ou desvantagens, esse imaginário nacional permeia nossa cultura e vem sendo transformado e desenvolvido por diversos artistas até hoje. 83


“ ”

LES FEMMES J. Carlos tinha um fascínio pelas mulheres e criou um panteão de musas e personagens femininos. Suas charges e tirinhas revelam a dicotomia experimentada pela mulher na sociedade daquela época: a busca por independência dos padrões patriarcais em choque com uma visão sexualizada da figura feminina, que ainda hoje atravessa nossas estruturas. A figura da Melindrosa é icônica na obra de J. Carlos. Impressa pelo artista no imaginário nacional, ao mesmo tempo em que insinua malícia e sensualidade, também sugere uma libertação moral vanguardista em sua época. O artista influenciou ainda a estética e a moda. Seus desenhos sintéticos, por vezes, inspiraram a confecção de roupas para a classe burguesa sedenta por novas tendências. Observe-se que, em razão desses fatos, a produção de J. Carlos não se limitou apenas a ser crônica de um período histórico, mas, sobretudo, expandiu seu papel para a formação do gosto e da opinião pública. 84


Sem titulo . À esquerda: E Deus fez a mulher.


A REVISTA J. Carlos era autodidata e assumiu a direção artística de importantes revistas muito jovem. A falta de uma formação acadêmica, que poderia ser fator limitante, foi importante no desenvolvimento de sua liberdade criativa. Orientado por sua sensibilidade estética apurada, influenciou o gráfico no Brasil. Como diretor artístico, criou identidades visuais que se alinhavam com o público-alvo de cada revista. Dado que contribuiu ao conceito de perfil editorial totalmente inovador para o ambiente brasileiro. No âmbito da diagramação, propunha soluções e recursos que ainda hoje surpreendem por seu caráter arrojado e dinâmico. Com o uso de vinhetas, elementos gráficos e capitulares, por exemplo, dotou de leveza a experiência da leitura. Na publicidade, elaborou importantes campanhas, como as da Caixa Econômica Federal e as do Cigarros Belmonte, onde chamava a atenção a composição de uma cena dramática baseada em imagens domésticas e cotidianas. A concepção de diversas fontes e tipologias, ao longo de sua carreira, aproximou sua produção das principais vanguardas internacionais da época. O olhar panorâmico sobre sua obra mostra que a habilidade de J. Carlos como ainda merece receber um olhar mais atento.

J. CARLOS: ALÉM DO TEMPO • DANIELIAN GALERIA • RIO DE JANEIRO • 7/8 A 7/9/2020



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DO mundo

FÉLIX fénéon


Félix Vallotton, Félix Fénéon à La Revue Blanche, 1896. © akg-images / Erich Lessing


POR IASMINE SOUZA

Nunca é demais reforçar: no mundo da arte, nem tudo é sobre o artista. De fato, a arte moderna parece tê-lo alçado a um lugar sagrado. Vieram estereótipos de solitários, perturbados, egocêntricos e estrelas, semideuses. Mas você já se perguntou quem estava nos bastidores? Quem era o galerista predileto de Matisse, por exemplo? As duas perguntas conduzem a Félix Fénéon. Provavelmente, você ainda não o conhece, mas, não fosse por ele, não haveria tantas obras de Paul Signac, Pierre Bonnard, Matisse e Modigliani expostas nas paredes dos museus. Você também não teria lido da mesma forma Rimbaud, Proust, Apollinaire, Jane Austen, Dostoiévski e James Joyce. Félix Fénéon foi um agitador da arte e da literatura no em Paris. É burburinho da vanguarda da possível se perder na extensão de sua biografia, com grande chance de pecar pelo esquecimento: anarquista convicto, foi editor, crítico de arte, jornalista, galerista e colecionador. Simplifico: Fénéon era, sobretudo, um apaixonado por arte. É Signac o responsável pelo retrato do amigo, de 1980, que agora é a peça central da exposição “O Anarquista e a Vanguarda – de Signac a Matisse e Além”, no MOMA, em Nova Iorque. Na imagem, o homem de cavanhaque inusitado, magro, alto e vestido cuidadosamente surge diante de um turbilhão de cores que se movimentam. Com uma atitude misteriosa e um quê de mágico, ele segura o chapéu com uma das mãos, enquanto, na outra, generoso, estende uma flor. A estética é tão enigmática quanto a trajetória daquele que segue fazendo o capitalismo se render a um 88

Paul Signac, Opus 217. Sur l'émail d'un fond rythmique des mesures et d'angles, de tons et des teintes, portrait de M. Félix. © Digital image, MoMA, New York/Scala, Florence

ANARQUISTA, CRÍTICO DE ARTE, EDITOR, DIRETOR DE GALERIA, COLECIONADOR, FÉLIX FÉNÉON FOI UMA FIGURA IMPORTANTE NO MUNDO ARTÍSTICO DO FINAL DO SÉCULO 19 E INÍCIO DO SÉCULO 20. COMO UMA PERSONALIDADE MULTIFACETADA, DESDOBRA UMA ENERGIA CONSIDERÁVEL EM MUITAS ÁREAS ENQUANTO CULTIVA UM CERTO MISTÉRIO SOBRE SI MESMO



Maximilien Luce, Portrait de Félix Fénéon au verso : Le travail de l'argile, 1903

espirituoso francês anarquista: uma história curiosa que envolve bombas, twitter e arte moderna. Fénéon nasceu em Turim, na Itália, mas, aos 20 anos, se mudou para Paris, para trabalhar no Ministério de Guerra. Complexo, levava uma vida dupla: um funcionário burocrata exemplar que contribuía em segredo para revistas e periódicos anarquistas. Desconfiados das instituições estatais, Fénéon e seus pares intelectuais ferviam os círculos anticapitalistas franceses do final do século 19. Em 1894, uma bomba explodiu na janela do restaurante do Hotel Foyot, frequentado por figurões diplomatas e políticos, logo em frente ao Senado francês. Após a polícia encontrar detonadores de mercúrio no armário do seu escritório, Fénéon foi preso. O que se segue é um grande espetáculo processual. Ele e outros 29 anarquistas suspeitos acabaram envolvidos em um julgamento sensacionalista conhecido como “Julgamento dos Trinta”. A postura audaciosa e irreverente logo fez de Fénéon a estrela do tribunal. Arrancou risos do júri e da plateia e irritou promotores e juízes. Sobre a acusação de ter sido visto conversando com outro réu atrás de uma lâmpada a gás, retrucou: “mas qual lado de uma lâmpada é o lado de trás?”. 90


Paul Signac, Soleil couchant. Pêche à la sardine. Adagio. Opus 221 (de la série La Mer, les Barques, Concarneau) 1891. Foto © John Wron.

Fénéon acabou absolvido, mas o episódio, obviamente, custou-lhe o emprego no Ministério. Passou a se dedicar exclusivamente aos mais importantes veículos da vida cultural francesa da época: dirigiu a , onde publicou, traduziu e editou textos de inúmeros nomes da literatura mundial, foi repórter do e, por fim, em 1906, redator do jornal . Estava certo o poeta Stéphane Mallarmé quando disse, sobre o atentado: “Para Fénéon, não há detonadores melhores do que seus artigos”. E foi no que ele explodiu suas implacáveis bombas literárias. Caneta afiada em punho, publicava diariamente minicríticas cortantes da sociedade parisiense pretensamente democrática. Eram curtas histórias de acontecimentos cotidianos que escondiam o imenso mal-estar da Paris da época. Na seção, intitulada “ ”, Fénéon fazia malabarismos para que as suas narrativas irônicas, ácidas e, por vezes, cruéis, coubessem nos restritos 135 caracteres do de uma parte pouco prestigiada do jornal. Em três linhas de 45 caracteres cada uma, dizia apenas o suficiente: “Se o meu candidato perder, eu me mato, havia declarado o Sr. Bellavoine, de Fresquienne (Sena-Inferior). Ele se matou”. Aqui uma pausa: isso não soa familiar? Campeão indiscutível da 91


comunicação veloz, direta e bem-humorada, não há como negar que Fénéon seria, hoje, um fenômeno de na internet. Isso explica a quantidade de críticas especializadas que lhe destinam a alcunha de precursor do Twitter, mais de cem anos antes da invenção da rede social. Ele publicou mais de 1.200 pílulas literárias desse tipo, que no Brasil foram reunidas no livro , publicado pela editora Rocco. Aos 45, Féneon se dedicou à galeria de arte BernheimJeune como diretor artístico. Como colecionador e revendedor, voltou-se para o mundo comercial da arte e foiassim que, suportando os artistas em que acreditava, deixou uma marca duradoura no desenvolvimento da arte moderna, de impacto supreendentemente atual. Enquanto todos zombavam da geração de vanguarda que sucedeu os impressionistas, Fénéon os incentivou, promoveu suas ideias e exibiu seus trabalhos. Nunca se deixou intimidar ou constranger pela opinião do público, nem mesmo quando foi pessoalmente criticado pela aparente contradição entre o comercialismo e suas fortes convicções políticas. Estava seguro de suas apostas na arte como um poderoso veículo para uma sociedade mais justa e livre. Não que de longe isso seja o ponto mais importante de sua biografia – e até incomoda a excessiva importância que se dá ao fato –, mas foi Fénéon, inclusive, quem cunhou o termo “neoimpressionistas” para descrever a técnica dos amigos pintores que estavam utilizando pontos de cor pura para criar o resultado na tela. Aficionado pelo processo criativo científico do pontilhismo, tinha pelo menos 50 pinturas e 180 desenhos de Georges Seurat. Com o olhar apurado, trabalhou para as tendências artísticas que ele acreditava que seriam importantes, muito antes de realmente serem. Foi ele que conseguiu o primeiro contrato de Matisse, até então um desconhecido pintando com uma vívida paleta de cores, e promoveu a primeira exposição que fez os futuristas italianos estourarem, em 1912.


Georges Seurat, Un dimanche après-midi sur l'île de la Grande Jatte, Etude, 1884 © The Metropolitan Museum of Art, Dist. RMN-Grand Palais / image of the MMA


Henri Matisse, Intérieur à la fillette (La Lecture), 1905-1906 New York, The Museum of Modern Art, don de Mr. and Mrs. David Rockefeller, 1991. Foto © Paige Knight © Succession H. Matisse

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Como se não bastasse, Fénéon foi um pioneiro colecionador de arte não ocidental e acumulou umas das maiores e mais importantes coleções europeias de arte africana e oceânica da primeira metade do século 20. Mais do que isso, desprezava os condicionamentos discriminatórios do sistema da arte, recusando-se a utilizar termos como arte “primitiva”, por exemplo. Um objeto que, para a sociedade da época, era apenas uma curiosidade selvagem e exótica, associada necessariamente ao desprovimento de saber, tinha, para ele, o mesmo valor artístico que o de qualquer outra obra de sua coleção. Certa feita, por ocasião da publicação de uma pesquisa em 1920, indagou: “A arte de lugares remotos será admitida no Louvre?”. Por meio da seleção de mais de 130 trabalhos, entre desenhos, pinturas e esculturas que pertenceram à sua vasta coleção, o MOMA pretende levar Fénéon ao conhecimento do público e festejar a rica personalidade de um homem visionário, , à frente do seu tempo. Destaque para de 1884, de Georges Seurat; “ ”, 1896, de Paul Signac, a alegoria de uma ”, 1905-06, sociedade utópica e harmônica; “ de Henri Matisse; “ ”, 1896, de Félix Vallotton; e, ainda, além de um retrato de quando foi preso, em 1984, de Alphonse Bertillon, uma escultura do Congo utilizada em rituais de cura, cravada com inúmeros pedaços de metal. Enquanto as portas do museu permanecem fechadas, isso basta como garantia de que vale a visita . Último fato sobre Félix Fénéon: ele detestava holofotes. Nunca permitiu a publicação dos seus ensaios, usava pseudônimos e se esforçou seriamente para não deixar rastros de uma vida fascinante. “Aspiro apenas ao silêncio”, disse certa vez. Ele, se aqui estivesse, estaria incomodado com a quantidade de palavras dedicadas a jogar luz à sua história. E, nesse ponto, Fénéon, minhas gentis desculpas, mas o seu enorme legado não é passível de compressão em 135 caracteres.

Iasmine Souza Encarnação Novais é Procuradora do Município de São Paulo, entusiasta da história da arte e autora do perfil @minutodearte.

FÉLIX FÉNÉON: THE ANARQUIST AND THE AVANT-GARDE • MOMA • NOVA YORK • ONLINE


DOssier

RESIDÊNCIA


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artĂ­stica

Marcelo Moscheta no Polo Norte.


NESTES DIAS, ALGUNS COMENTÁRIOS FORAM CONSTRUÍNDO ESTE TEXTO, CONTRIBUINDO COM A MISSÃO DE ESCREVER SOBRE RESIDÊNCIA ARTÍSTICA E A NOÇÃO ESTÁTICA QUE AINDA EXISTE SOBRE O QUE É HOJE UM ORGANISMO HÍBRIDO DE INICIATIVAS ESSENCIAIS AO SISTEMA DA ARTE

POR MÁRIO VITOR MARQUES

O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO - SOBRE AS RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS E A MISSÃO DOS ENCONTROS Trabalhando junto a artistas e uma coleção particular até os dias de hoje, pude colaborar, desde 2011, também, com residências e projetos independentes. De lá para cá, foi notável a multiplicação e a capilarização de organizações independentes que se fortaleceram a ponto de ampliar sua missão cultural, lutando para sobreviver em um jogo competitivo por capital ao mesmo tempo em que contribuem significativamente para a “cadeia alimentar” do mercado de Arte. As missões das organizações e funções do mercado se complementam em um ciclo lógico de produção, exibição, reputação, representação e posicionamento. Mas, mais do que nunca, é necessária uma base educativa, talvez pedagógica, para em especial desenvolver de forma horizontal não somente a função/missão da Arte inserida na tríade do pensamento humano, junto à Ciência e à Filosofia. De forma menos complexa, antes se deve entender genericamente que instituição não é um espaço expositivo sem fins lucrativos e mercado não é um berço ou escola onde se forma a Arte contemporânea. Qual é a matéria-prima, essencial para este organismo? Hoje, o conceito sobre residência artística foge das noções de superfície, na qual falaríamos de um local no qual reside um artista iniciante a experimentar certo isolamento criativo por determinado período de tempo. Dada a expansão comercial, e consequente produção contemporânea nestas últimas duas décadas em especial, é admirável a participação das instituições independentes em todo o país que fomentam as residências artísticas, apesar de os holofotes apontarem mecanicamente para galerias, feiras, leilões e do Sudeste. Já a falta das feiras, das ceias, dos esbarrões ao acaso em vernissages, das áreas em aeroportos, do capital cifrado aos sussurros junto às informações sobre o artista e obra que não se escrevem, são como um véu que cobre a alma regente da prática e pensamento artístico. O mercado e o circuito parecem ter direcionado 98


maliciosamente a discussão sobre a Arte Contemporânea, em especial a dos tempos de hoje. Mas, justiça seja feita, este casal (mercado e circuito) é um símbolo do ato do encontro, do embate entre a expectativa da ficção e o ensaio da realidade, onde se multiplicam as operações comerciais e institucionais. “

” (R. Barthes). No meio deste cenário, a experiência da residência artística é uma multiplicadora, ou potencializadora, de encontros. Desde o início deste novo século, inúmeras residências surgiram no mundo propondo as mais diferentes situações ao artista, desde uma imersão em dentro de megalópoles ao isolamento pleno no Ártico ou na Amazônia para produção e pesquisa. Nesses encontros possíveis, o ânimo do artista é colocado à prova em nome de sua obra e experiência de vida. De forma objetiva, creio que as incertezas desta crise global nos favorecem a vista para olhar de perto o que é este trabalho institucional para a Arte enquanto a experienciamos. Como mencionado, a missão vai além do acolhimento, acompanhamento de produção ou projetos expositivos. Programas educativos, intercâmbios internacionais, parcerias com galerias, museus e colecionadores integram o corpo de agentes, favorecendo uma articulação colaborativa e cooperativa necessária. 99


Gonçalo Ivo, O jogo das contas de vidro. Fotos: Gabi Carrera.

Gonçalo Ivo nasceu em 1958, brincou, ouviu música e aprendeu com Iberê, Carvão, amigos, família, livros e viagens, muito da poesia da vida. Com um trabalho conduzido de forma maestral há mais de três décadas, e sua vida dividida entre três continentes, era questionável aceitar uma experiência como esta neste momento. No entanto, esse mesmo momento pareceu ser o mais oportuno para aceitar novas experiências e trocas entre diferentes gerações em um contexto que não imaginava. No fim de 2019, após alguns encontros fortuitos que consolidaram uma oportunidade “fora da caixa” na qual estava, o artista embarcou para uma sequência de residências artísticas no Nordeste dos EUA. Primeiro, participou da Residency Unlimited, em Nova York, que celebrou uma década de fundação focada em criar conexões e estabelecer uma plataforma para artistas internacionais. Passaram por lá diferentes gerações, como Arjan Martins, Rodrigo Braga, Alice Miceli e Bárbara Vagner, citando alguns que foram premiados com a residência pelo prêmio Pipa. Em março, partiu para a Fundação Albers, em Bethany, uma pequenina cidade a quase duas horas de Nova York. Fundada pelo casal Josef e Anni Albers, nos anos 1970, a instituição é hoje responsável pela conservação do acervo e patrimônio dos artistas, promovendo exposições e publicações com ênfase na pesquisa e educação conduzido pelo também artista Fritz Horstman. Além disso, a fundação conta com o programa de residência imersiva, no qual o artista tem acesso a um espaço pensado para pesquisa e produção mergulhado na floresta de Connecticut. Hoje, Gonçalo enfrenta a incerteza da volta junto a um novo corpo de obra e histórico de encontros que certamente continuarão a reverberar por algum tempo. 100


O INVENTÁRIO DAS PEDRAS SOLITÁRIAS Vivi quatro meses na cidade de Nova York, do dia 1° de outubro de 2019 até 28 de janeiro de 2020, graças ao convite da instituição Residency Unlimited e do suporte dos colecionadores norte-americanos Marco e Maria Gabriela Schnabl. Frequentei diariamente o ateliê da 110 Suffolk Street no , ao lado da Williamsbourg Bridge. Caminhava todos os dias até lá, do apartamento que aluguei no , na Rua 9. Durante o período da residência, mantive contato com artistas, curadores, críticos e marchands. Nova York é uma cidade frenética onde os dias nunca são longos. Às vezes me deslocava ao Brooklyn para reuniões na sede da Residency Unlimited. Foi um período intenso onde participei da vertiginosa oferta cultural que Nova York oferece. Iniciei várias séries que depois se desdobrariam no corpo do meu trabalho. , de em praças e, na beira do Criei obras a partir de Hudson, pintei com as ancestrais técnicas de óleo, aquarela e têmpera, produzindo uma quantidade expressiva de obras. Foi um período prolífico e variado. Manhã clara, céu azul no Aeroporto JFK, dia 1° de março de 2020. Convidado pela Fundação Joseph and Anni Albers em Connecticut, não supunha que iria ter a mais interessante, assustadora e surpreendente experiência da minha vida como homem e artista. Localizada a 200 quilômetros da cidade de Nova York, “no meio do nada”, incrustada na floresta de um parque nacional em Bethany, a paisagem oferecia aos meus olhos um inverno pleno e rigoroso. Meu ateliê/casa era um espaçoso chalé dúplex com janelas amplas, uma grande mesa de trabalho e um fogão à lenha que utilizei todos os dias, mesmo no final do mês de maio, quando resolvi partir e voltar ao Brasil. Na semana seguinte à minha chegada, a crise sanitária se agravou no mundo todo. Denise, minha mulher, voltou para o Brasil. Por ordem de Nicolas Fox Weber, presidente da Fundação Albers, a sede administrativa, a reserva técnica e a biblioteca, onde trabalhavam aproximadamente vinte pessoas, foram fechadas. O sentimento de impotência e indecisão eram frequentes. Fiquei “preso” por três meses no meio desta floresta que aprendi a amar e a perceber sua constante transformação, suas infinitas pedras, seu grande lago, seu colorido cambiante, seus animais, pássaros, seu silêncio e seus ruídos quando se dava a aurora. Este período de isolamento quase total só era quebrado quando John Doyle, da manutenção, levava-me os mantimentos, ou quando o diretor cultural e artista plástico Fritz Horstman apareciam por breves minutos. A paranoia do medo da contaminação era latente. Trabalhei incessantemente, quase 15 horas por dia, de domingo a domingo. Quando o inverno deu lugar à primavera, percebi que, para mim, também era hora de mudar. Saí de Bethany no dia 27 de maio. Gonçalo Ivo Vargem Grande, 16 de junho de 2020. 101




Marcelo Moscheta é conhecido pelo seu trabalho experimental. A partir de viagens e interações com o ambiente encontrado, o artista cria desenhos, fotografias, instalações e objetos a contar da noção de enfrentamento com o espaço natural/natureza, assim como a noção de limites, fronteiras e território. Com uma experiência ampla junto a residências, desde 2007, Marcelo pôde produzir e ampliar sua pesquisa na Itália, Polo Norte, China, Colômbia e EUA, para citar algumas das tantas fronteiras. Seu critério para a escolha envolve primariamente a liberdade de deslocamento, essencial em sua pesquisa sobre território e limites. . Junto a um Em 2011, financiou sua ida ao Polo Norte no projeto grupo variado de profissionais, na maior parte artistas, enfrentaram não somente o frio polar e a longa navegação marítima, mas lidaram com os perigos naturais que abarcam a região inóspita, das intempéries climáticas aos ursos polares. Seu livro e exposição foram lançados em dezembro de 2012 no Paço Imperial do Rio de Janeiro. Em 2013, foi ao deserto de Atacama, no Chile, e este conjunto de experiências extremas culminaram na exposição , na galeria Vermelho, em 2016, exibindo sua reflexão sobre tempo, espaço, paisagem e deslocamento. Segundo o artista, essas experiências e o isolamento reverberam até os dias de hoje em seu pensamento e pesquisa. Essa reverberação evolui por meio de distintas técnicas com uma potência criativa inerente aos encontros fortuitos e desafios naturais encontrados no processo de deslocamento e imersão. Junto ao projeto , de Sarina Tang, fundação que desenvolve inúmeros projetos culturais e intercâmbio entre Brasil e China, Marcelo também pode experienciar a generosidade institucional de agentes privados como Sarina, embarcando em uma residência de pesquisa sem o compromisso imediato de uma contrapartida ou exibição. Já com a premiação da Bolsa ICCo/SP-Arte 2016, 102


Marcelo Moscheta no Polo Norte.

embarcou para a Casa Flora na Colômbia, em 2016, onde sua pesquisa e produção acompanharam uma programação de encontros, ampliando o do artista, assim como na renomada Lab Verde, coordenada por Lilia Fraiji, onde experimentou no leito amazônico uma bateria de conversas e palestras com premiados nomes da arte e ciência. Em sua experiência com residências, confirmou a necessidade de autonomia e informação por parte do artista para engajar nos programas mais pertinentes com a pesquisa e prática adotadas. É difícil encontrar uma fluidez entre galerias, instituições e residências com o fim de viabilizar, ou mesmo fomentar, o processo. é ainda a melhor estratégia para encontrar Com isso, a busca de editais e uma próxima jornada, facilitada pelas mídias sociais e canais como ResArtis, possibilitando o interessado a encontrar algo sob medida. Marcelo pontua como um dos principais combustíveis da residência o ato de nutrir possibilidades acima do retorno ou mesmo desenvolvimento de pesquisa. Isso é algo marcante na produção de um artista, pois possibilita a fuga da produção por demanda, o ato comercial, e, junto a isso, um enriquecimento da pesquisa, protegida da interdependência e relações mais complexas do mercado. Seguindo este pensamento, sua visão é que haja uma crescente integração entre residências e demais instituições de Arte, ainda que seja prematuro prever a nova organização e o gerenciamento de todo esse sistema, mais institucionalizado e enxuto. Acredita que o artista de hoje tem mais do que nunca um anseio pela expansão cultural, decorrente da saturação da informação local e diminuição das fronteiras do mundo contemporâneo. Marcelo Moscheta nasceu em São José do Rio Preto, em 1976. Vive e trabalha em Campinas-SP. 103


Rodrigo Braga tem a performance como elemento quase indissociável de seu trabalho. Notável desenhista, sua obra se expandiu para terra, mares, lagos e florestas, explorando a relação entre o ser e a paisagem. Exposições importantes como na 30ª Bienal de São Paulo, em 2012, na esplanada entre o Palais de Tokyo e o MAM de la Ville, em Paris, no ano de 2016, são exemplos bem documentados de sua prática, frutos de encontros, deslocamentos e imersões que propiciaram registros dotados de uma forte poética da ação e do olhar. Sua experiência com residências é de longa data. Primeiramente, não é simples definir o conceito de residência, amplo e dúbio. Mas, ao expandi-lo ao ato experimental do deslocamento, da imersão e pesquisa, foi neste ato que Rodrigo encontrou uma força motriz para seu trabalho contínuo. E na residência são vários os fatores que integram sua produção e pesquisa. A mudança de “ares”, observação, conversas e contos sobre o local em que se encontra, a experiência sensorial e todo o contexto imersivo contribuem além do tempo da experiência em si para a gestação de ideias e obras finalizadas. Ainda assim, para o artista, cada experiência se conclui em seu período, ressaltando que não se trata de um processo contínuo e interligado, ainda que haja uma conexão visual e formal em seus trabalhos.

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Rodrigo Braga, Mar Interior, Foto: Edu Monteiro.


Sendo um artista conectado com as instituições públicas desde sua formação acadêmica, pôde ser contemplado por diferentes editais da época em que incentivos públicos notáveis como o Rumos Itaú Cultural e a Rede Nacional de Artes Visuais Funarte, hoje extintos, assim como o Programa de Intercâmbio e Difusão Cultural, do antigo Ministério da Cultura. Rodrigo segue sua jornada junto a parceiros como Sandra Hegedüs, fundadora do SAM Arts Project – projeto filantrópico privado criado para fomentar o intercâmbio e a produção artística internacional. Também no Brasil participou como um dos primeiros artistas selecionados para as residências Terra Una, na serra da Mantiqueira, em 2008, e para o Lab Verde, na Amazônia, em 2013. Também explorou o Sertão Pajeú e Sertão do Cariri... No mundo, passou pela residência do Museu In Flanders Fields, na Bélgica, pela Residency Unlimited, em Nova York, e SAM Arts Projects, em Paris, que culminaram , em projetos distintos e potentes como e , respectivamente. Mais recentemente, Rodrigo trouxe a ação de residência para dentro da galeria. , enfrentou um processo curto de criação e produção. Em Em um mês, estreou a instalação e as obras que ocuparam a Galeria Anita Schwartz, em setembro de 2018, antes de sua partida para a França. Ali, concebeu e produziu toda a exposição, ficando por quase todo o período, e sempre que possível, da abertura ao fechamento da galeria “sob o calor das emoções e reflexões dos últimos quatro anos”, como exposto em seu texto de exposição. “Com tanto barulho, ficamos surdos. (Na surdez encontramos o silêncio?) Com tudo o que ofusca, ficamos cegos (Onde está a nitidez?). Com tantos gritos, a fala perde a razão. (Calar-se produz outros sentidos?) Talvez nos reste meditar com as pedras, observar a beleza de uma gipsita bruta antes que a transformem em gesso.” - Rodrigo Braga, trecho do texto para a exposição . Rodrigo Braga nasceu em Manaus, em 1976. Vive e trabalha na França

ESTE DOSSIER SOBRE RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO Nº 100.

Mario Vitor Marques (Rio de Janeiro - RJ, 1981) colabora desde 2011 com artistas, galerias e agentes no campo das Artes Plásticas como assessor e gestor executivo. Foi gerente administrativo e financeiro do atelier de Tunga (2011 a 2016) e segue sua missão junto a diferentes agentes para incentivar a produção do artista, viabilizar a estrutura profissional, projetos de exposição e intercâmbio internacional. 105


GARlimpo

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RESenhas

POR RENATA MARTINS

NORBERT SCHWONTKOWSKI

“ ” (Norbert Schwontkowski) O Museu de Arte de Bremen ( Alemanha) prestou um potente tributo póstumo ao artista plástico alemão Norbert Schwontkowski (1949-2013) por meio da individual . Composta de cerca de 80 pinturas e 40 cadernos de rascunho, a mostra, cuja abertura foi postergada em dois meses devido à pandemia, teve sua recepção ressignificada justamente em virtude deste de isolamento social e atmosfera de incertezas e incompletudes. nosso , título que remete ao seu portfólio de ilustrações do ano de 1988, revela aos observadores, por um lado, dois temas recorrentes nas criações pictóricas do artista natural de Bremen: a (in)existência humana e os pequenos absurdos do cotidiano. Por outro lado, desvela alguns de seus segredos, ou melhor, algumas de suas lembranças embaçadas que logram uma atmosfera surrealista onírica gerada especialmente por sua paleta composta de cores terrosas, predominantemente. Ainda que, inicialmente, tons terrosos possam nos remeter a uma ideia de fundamento, superfície do solo, sustentação ou estabilidade, nas mãos de Schwontkowski eles se despegam do chão, assim como de qualquer intento de racionalizar ou entender suas pinceladas. Seus tons terrosos permitem a formação de um ambiente único em pleno estado físico de sublimação que envolve tanto os seres (humanos ou animais) quanto os objetos presentes nas narrativas que constrói meticulosamente em cada obra. Nesse ambiente embaçado e turvo, uma penumbra espessa parece pairar sobre as grandes telas a óleo fazendo com que o primeiro plano e o plano de fundo se fundam em um toque magistral de Schwontkowski. ( , 1998) pode ser tomado como um bom exemplo desse exercício. Aqui, a existência humana parece estar em um momento em suspenso e pronta para se integrar ao seu meio aquoso e gasoso. Nessa penumbra onírica, os poucos corpos humanos isolados e retratados, ou melhor analisando, esboçados pelo artista, são como espectros vagantes a procura de um rumo seguro, como em ( , 2006). Tais corpos, ao se fundirem com o seu ambiente, causam certo estranhamento no olhar do observador, que busca encontrar um ponto de descanso para sua mirada.


Abaixo: Belgische Autobahn, 2000; Hochwasser, 2006; Alle wollen nach Hause, 2010 © Nachlass Norbert Schwontkowski – Contemporary Fine Arts, Berlin. Fotos: Jochen Littkemann

Porém, esse descanso não existe: quer seja pelo fluxo contínuo e infindável percorrido tanto por seres quanto por veículos esboçados como em ( , 2010) ou em ( , 2000); quer seja no próprio de Schwontkowski que, pelas inúmeras camadas de óleo justapostas em cada tela, busca atingir a materialidade desejada por meio de um exercício altamente laborioso. Por outro lado, o excesso dessa materialidade poderia ser observado como um ato do artista em tentar encobrir e velar alguns de seus segredos ou sensações internas entre as inúmeras camadas de tinta.

Renata Martins é mestre em Literatura Alemã pela USP e especialista em curadoria de arte pela Universidade das Artes de Berlim. 109


GARlimpo

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RESenhas

POR LEANDRO FAZOLLA

SER LEONILSON

foi uma das primeiras obras de José Leonilson que me atravessou completamente. Talvez o fato de compartilhar com o artista o apelido “Léo” tenha feito com que a frase, acompanhada de um grande coração sobre fundo vermelho, parecesse dirigida a mim. Ou talvez Leonilson trate de forma tão potente de sentimentos que suas obras sempre falam diretamente a nós, como se, no fundo, todos fôssemos um pouco José Leonilson. Foi essa identificação que levou Laerte Késsimos a querer empreender um mergulho na vida, na obra e – por que não? – na alma do artista. Se o exercício do ator é, em si, viver outras vidas, como “ser José Leonilson”? A frase, título do solo escrito por Leonardo Moreira, sintetiza a busca desenvolvida até a obra final. Para o espetáculo, o ator se afastou da ideia da mimeses. Reproduzir aparência, tom de fala e outras características de Leonilson não dariam conta de se aproximar do artista. Para isso, seria necessário chegar mais perto de si mesmo. Por dois anos, Laerte experimentou os processos empreendidos por Leonilson, produziu obras similares às do artista (apresentadas em mostra simultânea ao espetáculo) e gravou pensamentos destinados a Léo, ao mesmo tempo em que vasculhava as próprias lembranças e biografia. Assim, o que o ator nos oferta é uma colcha de retalhos habilmente costurada pela diretora Aura Cunha, em que seus desabafos se misturam aos de Leonilson, convergindo suas trajetórias em um documentário-homenagem ao artista que tornou sua produção um diário aberto ao público, assim como Laerte faz agora. Por uma hora e meia, vemos um amálgama de relatos que nos conduzem à intimidade dos dois. Ou não, já que uma placa com as palavras “verdade” e “ficção” (obra de Laerte) nos recorda o tempo todo que tudo ali pode não ser verdadeiramente biográfico. Ou enfatizam uma provocação que a obra suscita: por vezes, não sabemos se o relato que sai da boca do ator é dele próprio ou da persona pesquisada. O fato é que, instigados por Laerte, de elementos como sexualidade, relações afetivas, contemplamos uma medos, política... Originalmente uma solução para tempos de pandemia, a versão audiovisual ao vivo traz inevitavelmente novas camadas à experiência. Além do já contido na obra, há agora o ator realizando sozinho seu ofício na intimidade de seu ateliê. E há o medo lá fora. Se nos anos 1980 e 1990, Leonilson desabafava as angústias de ver o vírus da aids se espalhando, consumindo seu corpo, matando pessoas ao redor, como não espelhar isso em tempos em que já somamos no país quase cem mil mortos


por um vírus que nos obriga a nos trancar? Léo não consegue mudar o mundo. Mas sua obra nos põe em contato com o mais íntimo de nós mesmos, e muda algo. Ao ser José Leonilson, Laerte também não muda o mundo. Finda a apresentação, o vírus ainda está lá fora. A homofobia e os políticos genocidas (tão letais quanto) também. Mas, dentro (de casa, do corpo), algo é revirado no público. E isso muda tudo!

Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea. Bacharel em História da Arte. Ator e produtor da Cia. Cerne, com a qual foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural.

Foto: Leekyung Kim.

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GARlimpo

ALTO falante

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POR ALEXANDRE SÁ

SIM

Herman Melville Sim. São diversas opções. Sim. Existem horários sobrepostos. Sim. Há certa sensação de democratização de acesso. Sim. Depende-se da conexão e da velocidade. Sim. . Projetos emergenciais. Cursos. Editais abertos em espaço Existem exposições curtíssimo. Artistas em estado mais profundo que o crítico. tentam manter o ritmo da e vice-versa. Há também o cansaço. A exaustão. E a sensação já sabida que alguns de nós trabalham mais agora que antes. E que essa lógica, para além da catástrofe do vírus plantado ao longo de algumas décadas de atitudes catastróficas, termina por endossar e sustentar um tipo de ganha-pão que é o sonho dourado do sistema: a produção a todo tempo. A concentração verticalizada. O corpo imóvel que se faz da tela antolho. Tudo já se sabe. Continuemos. Novidade alguma. Sim. Ou quase. Ou nada disso. Uma das urgentes questões elétricas que se descortina é passível de ser produzida a partir da verificação do tônus da negociação de forças entre o corpo individual e os regimes discursivos, bem como a mediação possível com as demandas do subsolo, que agora estão mais explícitas na profundidade do quadro. Para além da pressa injustificável em alguns casos da produção incessante de conteúdo, seja lá o que isso possa vir a ser agora, e atravessando de maneira perspicaz a potencialização da roda viva de falas, encontros e de uma temporalidade absorta, talvez, sem purismo algum, seja ainda importante escavarmos algum furo para podermos pensar as imbricadas relações entre meio, mensagem e massagem. lógico da histeria inevitável e justificada, cabe ainda mantermos Ultrapassando o algum ritmo de triagem que merece se presentificar de forma contundente sobre aquilo que é produzido e exposto, considerando a especificidade das conexões possíveis, o abismal encontro do enquadramento virtual e uma forma de experiência que abarque relações outras, potencialmente mais fantasmagóricas a partir de uma conjunção de espectros que atuam, possivelmente de forma fadada ao fracasso, na tentativa de preenchimento de espaços e exigências que antes se amparavam na vibração física. Embora haja um conjunto de teorias que já tenham indicado as curiosas relações estabelecidas em uma era de reprodutibilidade turística, como eu prefiro chamá-la, ainda há algo de concreto na entropia da experiência essa do já é, que, além de se amparar na expansão do conceito de imagem e vivência, problematiza de forma real e como em uma fita de Moebius, os regimes de visibilidade e invisibilidade, aparecimento e desaparecimento, potencializando a continuidade entre os lados e, obviamente, diluindo alguma dicotomia que, de fato, não se sustenta mais. Em outras palavras, talvez estejamos experimentando de maneira crua uma conjunção muito particular e paradoxalmente nada teórica, entre visível e invisível, presença e ausência. E se há algo 96


de destacável nessa experiência de horror, talvez seja exatamente a possibilidade de diminuição da angústia inevitável do viver a partir de uma relação prática com o apagamento de si como uma forma possível de re-existência inelutável. Em um texto imprescindível, publicado pela editora n-1, chamado , Renan Marcondes levanta, entre muitas outras questões, o diálogo entre o aparelho e a experiência da morte em um tempo que conjuga a vida e sua reprodução sem tempo para o ócio em virtude de sua inquietação diante do apagamento. Para além de muitas referências, o texto inicia com uma citação de um filme chamado , de 1983, que explora as perspectivas assombradas de presença no próprio cinema e no qual o filósofo Jacques Derrida faz uma rara aparição. Em uma das cenas, Derrida responde à pergunta se ele acreditaria em fantasmas da seguinte forma: “Primeiro você estaria perguntando a um fantasma se ele acredita em fantasmas. Aqui o fantasma sou eu”, indicando o espectro inevitável da imagem quando mediada pelo aparelho que se aproximaria de um ventríloquo, capaz de substituir seu papel concreto. Ou seja, através da mediação tecnológica, incluindo objetos aparentemente mais simplórios como o telefone, a presença que se produz é como a de um espectro, presença assombrada, ectoplasmática e obviamente, fugaz. O que parece urgente é a compreensão prévia, nada trágica e nada melancólica, de um efeito de presença que termina hoje, ganhando outros contornos diante de sua intransponibilidade eventualmente ignorada, talvez por falta de coragem, em algumas propostas de arte.

Claudia Tavares desenvolveu um trabalho durante a pandemia que explicita e sintetiza tais questões de forma contundente. O título do trabalho é Repleto de ironias, o título já nos pergunta sobre o próprio exercício de fala/ escuta nos tempos 97


atuais e as variações inevitáveis da comunicabilidade. Partindo de uma série de encontros e não tentando escapar da natureza deambulatória da atenção, a artista começa a perceber no outro o ambiente e a intimidade inevitável que a câmera indica sem apontar. Dessa forma, os elementos do entorno, capazes de construir o ecossistema de referências pessoais, tornam-se protagonistas do quadro. E aleatoriamente, pelo processo inevitável da captura do objeto projetado que é capaz de fisgar o espectador, uma cor é eleita. É essa cor que, de fato, após o enlace do olhar da própria artista, “antropofagiza” o sujeito outro que estabelecia algo de diálogo, apagando-o ou de outra forma, esfacelando qualquer ingenuidade possível de inteireza. A cor de fundo abre o fundo inerente do próprio sujeito assujeitado, ressaltando sua presença apaixonada pela ausência (e vice-versa), nutrida por sua incontestável e genética fantasmagoria. Outro trabalho que consegue articular de maneira perspicaz a relação entre a forma e o meio possíveis na atual situação pandêmica é proposta emergencial do Armazém Companhia de Teatro, que mergulha e aproveita a divisão possível de quadros e quadrados do Zoom para promover um encontro bastante particular entre público e obra. Ao longo das “cenas”, os espectadores escolhem quais personagens deverão continuar em suas epopeias íntimas a partir de uma percepção, inevitavelmente falha, dos pequenos duelos estabelecidos a cada vez por uma dupla de atores. Além de tal proposta endossar a fratura e incompletude da opinião pública, que escolhe e goza pela possibilidade ficcional de eliminação rápida e gradativa de um de seus personagens, a partir de uma compreensão superficial da situação, amparada pelo texto e inevitavelmente pela imagem enclausurada de quem seria merecedor de alguma vitória fictícia, a peça termina por apostar em um jogo de espelhamentos extremamente bem construído, que, por diversos motivos, termina fazendo com que esqueçamos que aquilo que é falado também nos representa. Se o texto dito ilustra e narra o que atravessamos hoje no Brasil e vivemos inevitavelmente, ao longo do tempo, o prazer do jogo na clausura da imagem, potencializada pela responsabilidade e pelo amoródio projetado em suas figuras também projetadas, desloca sagazmente nosso centro de atenção e desejo. Todos os textos são de Shakespeare, adaptados e postos de forma palatável para a experiência proposta. Contudo, os trechos escolhidos discutem de maneira extremamente elegante a repetição histórica inevitável e o sofrimento humano diante do seu desejo de poder e sustentação de uma opinião específica. Retirados do seu contexto original, as falas terminam por exibir, no seu fundo, a possibilidade enganada de compreensão de uma fala outra e o risco de aderência e identificação/desindentificação com personagens enclausurados em seus quadros a partir do encadeamento solitário do seu desejo de presença como imagem e perda. Puro espelho. Fantasmagoria recalcada que se exibe como eterno retorno.

Alexandre Sá é artista-pesquisador. Atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. Pós-doutor em Filosofia pelo PPGF/UFRJ. Pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e Doutor em Artes Visuais pela EBAUFRJ. E-mail: alexandresabarretto@gmail.com 114


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LIVros

Este livro reúne estudos de mestrado e doutorado sobre a pintora Artemisia Gentileschi e outras artistas do Renascimento e Barroco. Apresenta os resultados de uma década de trabalho científico e importantes contribuições para a História das mulheres e das artes. As pesquisas foram realizadas pela Drª e Profª Cristine Tedesco em arquivos históricos, museus e outras instituições de memória da Itália, em especial de Roma, Florença, Veneza e Nápoles. ARTEMISIA GENTILESCHI: TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA E REPRESENTAÇÕES DO FEMININO • Textos de Cristine Tedesco • Editora Oikos • R$ 35,00 • 318 páginas

Este livro examina contextos culturais e estereótipos, com exemplos visuais do mundo todo, e demonstra que as ferramentas de comunicação nunca são neutras, incentivando seus usuários a repensar sua visão da cultura global. Obras adicionais de artistas e designers contemporâneos mostram que a consciência política não limita a criatividade, mas abre novos caminhos para explorar uma cultura visual crítica. LEDA CATUNDA: TEMPO CIRCULAR • Textos: Paulo Miyada e Fernanda Brenner • Editora Cobogó • R$ 130,00 • 256 páginas

Suturas reúne obras criadas durante quatro anos pelo artista Gilvan Barreto, incluindo fotografias, colagens de fotos e desenhos que sugerem rupturas e tentativas de reconstrução. Corpos, imagens e memórias são remontados e reunidos por costura manual. SUTURAS • Gilvan Barreto • Edição de autor • R$ 60,00 • 68 páginas.

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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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