VACINAS DEMOCRÁTICAS Depois de virar líder política, falta a Dilma virada econômica
DIEESE, 6O ANOS Produção de conhecimento mantida pelos trabalhadores
nº 112 novembro/2015
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O ESTRAGO DE ALCKMIN População reage ao plano de fechamento de escolas do governo de São Paulo
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ÍNDICE
EDITORIAL
10. Educação
A comunidade responde ao desmonte do governo de SP
16. Política
Quando a economia também põe em risco a democracia
30. Trabalho
Dieese, 60 anos. Conhecimento a serviço dos trabalhadores
20. Economia
Microcrédito pode promover outro modelo de desenvolvimento
24. Entrevista 1
DANILO RAMOS/RBA
Inclusão pelo trabalho no plano diretor da cidade de São Paulo
36. Ambiente
Em Mariana, memórias de vidas e afetos que a lama cobriu
38. Cidadania
Pará: privatização da água afeta a saúde e o bolso de famílias
44. Entrevista 2
Rodrigo Ogi, da adrenalina do spray às crônicas rimadas do rap
48. Cultura
Com Celia e Celma, a cultura popular corre o país mineiramente
54. História
Superada a tese da superioridade branca, restou a desigualdade
56. Viagem
Kalunga, terra de resistência, consciência e liberdade negra
Seções Cartas
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Na Rede
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Marcio Pochmann
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Mauro Santayana
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Emir Sader
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Atitude
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Estado precisa ser indutor da cidadania, e não lavar as mãos. Estudantes de SP reagiram
Paralisias e movimentos
Q
uando esta edição era concluída, governantes – União, estados e municípios – buscavam meios de fazer o Congresso apoiar a recriação da CPMF, uma medida de baixo impacto no bolso e alto impacto no combate à sonegação. A proposta pode ser considerada um acerto no varejo, embora no atacado o governo deixe a desejar – já que não discute impostos justos sobre fortunas, ganhos sobre lucros, grandes propriedades. Outro fato, tema da capa deste número, punha o estado de São Paulo em polvorosa: indignados com uma política de “reorganização” do ensino proposta pela gestão Alckmin, alunos, professores e comunidade passaram a se organizar em ocupações nas escolas, defendendo o direito ao ensino de qualidade. Um movimento que já tem o seu lugar na história, seja qual for o desfecho. No final de novembro, o governo tucano viu-se obrigado a debater o programa, que prevê fechamento de quase 100 unidades. No plano nacional, a política de juros causa danos múltiplos: tira investimentos em produção, a arrecadação cai, crescem os gastos com investidores na dívida pública, a economia encolhe, a renda e os empregos idem. E como se verá nesta edição, ausência de democracia econômica põe em risco a democracia política. A estimativa negativa para o PIB nacional neste ano, entre -2% e -3%, só pode ser revertida mais à frente se o governo aliviar a dose de ajuste e tomar a frente na promoção do crescimento. Em São Paulo, a ausência de políticas locais de desenvolvimento derruba a participação do estado na riqueza nacional. E isso não é de hoje. Em 1995, a riqueza produzida no estado correspondia a 37,8% do PIB nacional. Em 2013, foi a 32,1%. O resultado são quedas sucessivas na arrecadação e na qualidade dos serviços públicos. Entre eles, a educação, exposta a um estrago que só não será maior do que o inicialmente imaginado pelo governador Geraldo Alckmin porque este deseja o Planalto em 2018. E não há blindagem da imprensa que faça milagre. Quando a população sente na pele, reage. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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CARTAS Panair E ainda existem idiotas pedindo a volta da ditadura, episódio vergonhoso na história do Brasil. E pensar que a maioria desses canalhas morreram sem punição é de dar asco. ("Do céu para a sucata", ed. 111) Cássia Farias
www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Blend Images/Getty Images (lápis); Kevin David/Sigmapress/Folhapress (manifestantes); Roberto Stuckert Filho/PR (Dilma) e Sidney Corrallo/AE (Dieese) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 131 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior
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Frente Brasil Nós, democratas e progressistas do Brasil, temos todos de fortalecer essa Frente, em nome do que dissemos nas urnas e em nome do que o Brasil conquistou nestes útlimos 12 anos. Do contrário, não será apenas a perplexidade diante de um golpe, como aconteceu em 1964, mas um descrédito nas instituições cujo saldo será mais danoso do que a ditadura. (“De frente para o Brasil”, ed. 111) Gilberto Gavão Marco Aurélio Mello Muito boa a entrevista com Marco Aurélio Mello, perguntas muito bem colocadas e respostas à altura – tirando o julgamento da AP 470, onde os ministros, em minha modesta opinião, perderam o rumo. Sem dúvidas, Marco Aurélio é um dos mais centrados da casa. (“Não é bom, Gilmar”, ed. 111) Nilson M. M. Quintanilha Realmente, foi uma grande vitória do povo brasileiro a proibição das “doações” empresariais. Obviamente, bancos, construtoras, planos de saúde etc. não doam dinheiro desinteressadamente. Por exemplo, Eduardo Cunha teve sua campanha financiada pelos planos de saúde. Sua atuação na Câmara foi sempre de defender os interesses dessas empresas. Agora, acabou, empresa não pode "doar" pra ninguém. Roberto Locatelli
Nesse tempo militar tudo era muito melhor. Não tinha mortos, eram desaparecidos. Não tinha corrupção, era tudo encoberto. Nao tinha punição para a elite, os donos da Rede Globo se tornaram os mais ricos do Brasil. Para muitos era muito melhor. Ao não saber a verdade, são mais felizes. Sandro Trecapelli
Crise A crise é antes (e mais) política do que econômica. Única saída, política de base progressista e desenvolvimentista. O sistema financeiro não responde às políticas do governo e trava o desenvolvimento nacional. A única saída que resta à Dilma é voltar-se às bases progressistas que a elegeram e, mesmo, às que estiveram às margens; voltar-se aos movimentos sociais, voltar-se a micro e pequenas empresas, agricultura e negócios familiares e de vizinhança; voltar-se a políticas sociais, educação, saúde e segurança pública, a reformas políticas e tributária; e abandonar o sistema de metas inflacionárias. Não atino outro
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
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caminho. ("A CUT contra a recessão", edição 110) Odorico Nilo
Vandré Grande homem, grande músico. Sinto-me privilegiada por ter vivido essa época. ("Em busca da beleza", edição 110) Magda Santos Como opinião pessoal, assento que censura não se faz apenas proibindo que algo seja do conhecimento da sociedade mas omitir informações também o é. O PIG, e sua expressão máxima brasileira, a Rede Goebbels, tem pós-doutorado nisso. Seleciona da realidade apenas o que interessa a ele e aos biltres a ele associados. “Liberdade de imprensa”... sei, me engana que eu gosto. Luiz Mourão Gosto muito de Vandré e acho que ele foi muito injustiçado nos festivais por não ter tido o reconhecimento que merecia. Uma de suas músicas que gosto muito é Pátria Amada Idolatrada Salve Salve, que foi magistralmente gravada pelo cantor Manduka, com participação da cantora Soledad Barros. É uma pena que essa música tenha sido pouco divulgada no Brasil. Saudade do Vandré. Que bom seria se fosse feita uma grande comemoração pelos seus 80 anos. Elena Osawa Amo as musicas do Vandré. Para mim, Pátria Amada Idolatrada Salve Salve é uma das mais bonitas, dentre muitas outras composições maravilhosas. Amo a interpretação do Manduka e da Soledad Bravo. Manduka é outro admirável poeta, que não teve o reconhecimento que deveria! Mas, salve Vandré. Fabiana Dias Basicamente retratando fatos vividos por brasileiros (anos atrás e estendendo-se até dias de hoje), são letras muito fortes, verdadeiras. E saber que não pudemos cantá-las é muita tortura. Então, de que valem letra e música do Hino Nacional Brasileiro? Quanta cultura perdida por este Brasil afora. Que bom se pudésse-
mos resgatar tudo o que foi perdido (enterrado por força) e ter de novo a beldade cultural de tempos que fomos obrigados a deixar de viver. Maria José dos Santos Rêgo
Educação Em se tratando da má qualidade da educação brasileira – sou professor aposentado da rede oficial do Distrito Federal – não culpo nenhum governante. Culpo a sociedade brasileira que nesse aspecto se contenta com as migalhas que caem da mesa – migalhas cada vez mais minguadas, diga-se de passagem. No Chile os estudantes não aceitam nada sem ir pras ruas. Na França também não. O Brasil merece. ("Para se livrar do dever de casa", edição 110) Marcvs Antonivs
Permitam-me discordar do que a professora Bebel afirma – que a educação deteriorou quando incluiu a classe pobre e, em consequência, a classe “rica” se afastou. Então, por que muitos professores têm seus filhos em escolas particulares? A educação começou a piorar a partir do momento em que professores aceitaram o que os governos impunham. As greves sempre foram em busca de melhores salários... Tenho 75 anos e conheci a escola boa, professores respeitados, alunos respeitosos, desempenhos avaliados realmente etc. A aceitação de medidas como aprovação automática, nivelamento de alunos, extinção de disciplinas, criação de outras, aprovação por conselhos, e muitas outras medidas foram enfiadas goela abaixo, e permanecem. (“A omissão deseduca”, ed. 107) Clovis Justo da Siva
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Houcine Abassi
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A era da intolerância O impacto midiático da carnificina terrorista em Paris faz momentaneamente esquecer outras. Ankara, o avião russo no Sinai, o duplo ataque suicida em Beirute, dois na Nigéria, em Yola e Kano. Os mortos desses ataques chegam a 545. Se Eric Hobsbawm, historiador autor da série das “Eras” (das Revoluções, do Capital, dos Impérios e dos Extremos), fosse vivo, talvez escrevesse agora A Era das Intolerâncias. O desdobramento mais odioso e problemático dos acontecimentos é o maior eco à pregação intolerante das extremas-direitas contra os refugiados, como se deles fosse “a culpa” pelos ataques. Na verdade, estes mesmos estão fugindo do terror. A chegada desses refugiados, e as políticas sociais que demandam, é uma oportunidade valiosa para pôr fim à segregação das periferias das grandes metrópoles, onde viceja a raiz-tronco do terrorismo na Europa. O combustível principal de recrutamento da juventude por organizações como Estado Islâmico, Al-Qaeda, Boko Haram e outras é ódio anti-islâmico projetado pelas direitas. bit.ly/rba_intolerancia
Brasileira na UNI Finance A diretora do Sindicato dos Bancários de São Paulo Rita Berlofa foi eleita presidenta da UNI Finance. A UNI (sigla em inglês para Rede Sindical Internacional) é uma central global que reúne 900 entidades representantes de 20 milhões de trabalhadores do setor de serviços, com escritório em Nyon, O antecessor Suíça. O segmento bancário reúne 237 Edgardo Lozia faz sindicatos do ramo, com 3 milhões homenagem de pessoas em suas bases. A eleição à nova ocorreu durante a 4ª Conferência presidenta da UNI Mundial da entidade, em 23 de outubro, na Turquia. “É a primeira vez que alguém de fora da União Europeia é eleito. E também que uma mulher ocupa o cargo. Vejo isso como um reconhecimento do trabalho feito no Brasil, um reconhecimento dos princípios cutistas que norteiam nossa ação sindical”, declarou Rita, que considera um dos principais desafios o enfrentamento às práticas antissindicais nos Estados Unidos contra os trabalhadores do setor. bit.ly/rba_uni_finance UNI GLOBAL UNION
FETHI BELAID/AFP/GETTY IMAGES
“Respeite os direitos dos refugiados”: manifestação em Paris dias antes do ataque
O Nobel da Paz anunciado em 9 de outubro foi dado a quatro entidades tunisianas que atuaram conjuntamente pela reorganização democrática do país: a União Geral dos Trabalhadores da Tunísia (UGTT), a Utica (entidade patronal), a Ordem Nacional dos Advogados (Onat) e a Liga Tunisiana de Direitos Humanos (LTDH), que formam o Quarteto de Diálogo Nacional. O secretário-geral da UGTT, Houcine Abassi, presente ao encontro da Confederação Sindical Internacional (CSI) realizado em outubro, em São Paulo, pediu “solução humanitária de urgência” para a questão dos refugiados e atribuiu a premiação ao reconhecimento dos que lutam por regimes democráticos estáveis e pela paz. A central celebrou a premiação para a sociedade civil de um país em desenvolvimento. “É uma honra para minha organização, e um prêmio a todo movimento sindical”, disse Abassi. bit.ly/rba_nobel_paz 6
LAETITIABLABLA/FLICKR/CC
Nobel, democracia e paz
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Unaí: mortos não serão esquecidos
Demorou 11 anos e nove meses, mas os acusados de serem mandantes da chacina de Unaí (MG) foram enfim julgados. Os irmãos Mânica, o ex-prefeito Antério (por dois mandatos, à época no PSDB) e o fazendeiro Norberto, foram condenados a 100 anos de prisão. A sentença a ser efetivamente cumprida cai um pouco pelo desconto do período em que ficaram detidos. Mas, por serem primários, eles podem recorrer em liberdade. Outros dois réus, apontados como intermediários, também foram condenados. O mesmo aconteceu no ano passado, com três executores, que cumprem a pena. Assim, dos nove réus iniciais, sete tiveram condenação. O crime ocorreu em 28 de janeiro de 2004, quando quatro funcionários do Ministério do Trabalho (três fiscais e um motorista) foram executados a tiros. bit.ly/rba_unaí; bit.ly/rba_chacina; bit.ly/ rba_antério; bit.ly/rba_norberto; bit.ly/rba_nilmário
THIAGO SILVA/SBSP
Enfim, o julgamento
Metalúrgicos de Sorocaba: campanha vitoriosa
AGÊNCIA PETROBRAS
Para não afundar As centrais sindicais Indústria naval: em querem envolver não busca de soluções só o Estado e setores produtivos, mas organismos de controle como TCU, Cade, STF, Ministério Público e a Advocacia Geral da União, em um esforço para permitir que empresas investigadas por corrupção possam firmar contratos com o poder público. A ideia, apoiada pelo Dieese, está sendo discutida com empresários. Segundo dados citados pelo diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, o Estado investiu mais de R$ 1 trilhão nas dezenas de empresas (petróleo e gás, indústria naval, construção civil e infraestruttura) afetadas pela Lava Jato, em obras envolvendo a Petrobras. Permitir que essas empresas quebrem estenderia o prejuízo inclusive ao setor financeiro, já que os avalistas desses negócios são bancos privados. “Alguém vai ter de pagar”, afirma Clemente. A ideia é buscar soluções jurídicas para as empresas, enquanto os responsáveis por atos de corrupção, pessoas físicas, continuam sendo processados. bit.ly/rba_economia
Bancários aprovam acordo
FOGUINHO/SMETAL SOROCABA
RENATO ALVES/MTE
Acordos sem perdas
A conjuntura atrapalhou, mas algumas das principais categorias com database no segundo semestre conseguiram fechar acordos com, pelo menos, a inflação acumulada no período, barrando a intenção patronal de impor perdas salariais. No caso dos bancários, que têm convenção coletiva nacional, foi necessária uma greve que durou 21 dias, até 26 de outubro, para garantir reajuste de 10% nos salários e de 14% nos vales alimentação e refeição, além do prêmio de participação nos lucros ou resultados (PLR) – bit.ly/rba_bancários. Os metalúrgicos na base da CUT no estado de São Paulo também precisaram fazer paralisações por fábrica para arrancar aumentos com base na variação do INPC – bit.ly/rba_metalúrgicos. Também no estado, os químicos conseguiram acordo com reposição da inflação a partir de 1º de novembro. As campanhas refletiram as dificuldades do momento. No primeiro semestre, por exemplo, segundo o Dieese, os acordos com aumento real (acima da inflação) foram 68,5% do total, ante 92,7% em 2014. bit.ly/rba_quimicos
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JAILTON GARCIA/RBA
Para relaxar os apressadinhos
Um hospital da prefeitura de São Paulo, na zona leste, lançou mão do uso de redes para cuidar de bebês nascidos de parto prematuro. Com um modelo pequeno, adaptado às incubadoras, recém-nascidos descobrem o que já sabemos: no balanço da rede é mais fácil relaxar. “Apesar de não haver literatura médica que comprove a eficiência, percebemos que eles ficam mais calmos, não se movimentam tanto. Isso é essencial para que ganhem peso, porque só respirar e manter a pressão arterial consome muita energia deles”, diz a médica coordenadora da unidade neonatal do Hospital Alípio Correa Neto, Márcia Dia Zani. A prática, inspirada em hospitais do Nordeste, é parte de um projeto de humanização do atendimento aos prematuros, que permite também que mães e pais fiquem com os bebês mais tempo, toquem e os mantenham junto ao corpo, no chamado Método Canguru, recomendado pelo Ministério da Saúde. bit.ly/rba_prematuros
O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães considera importante o Brasil ter assento no Conselho de Segurança da ONU. Entre as razões, alerta que a Amazônia pode ser usada como argumento para a ruptura de paz firmada em acordos internacionais, ao sabor da conveniência dos países desenvolvidos. A afirmação foi dada durante gravação do primeiro programa Entrevista Coletiva, produzido pelo coletivo Jornalistas Livres, com apoio da TVT. Guimarães exerceu cargo de secretário-geral das Relações Exteriores do Itamaraty e de ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, no governo Lula. Foi o alto representante-geral do Mercosul e teve papel importante nas articulações para formação do Brics. “A criação do Banco dos Brics permitirá ao países membros acesso a linhas de crédito sem terem de se submeter ao crivo de organismos como FMI e Banco Mundial. Ou seja, e isso afeta o cerne do mecanismo internacional de controle”, diz. bit.ly/rba_samuel_pinheiro
WILSON DIAS/ABR
Samuel Pinheiro e a ONU
Bebê prematuro ganha aconchego na rede
Participação dos negros entre os ocupados passou de 35,2% em 2013 para 37,9% em 2014
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Desigualdade persistente Pesquisa da Fundação Seade e do Dieese mostrou indicadores positivos quanto à presença dos negros no mercado de trabalho da região metropolitana de São Paulo, mas também desigualdades cuja superação ainda deve demorar. “Apenas com longos períodos de crescimento econômico em conjunto com ações de políticas afirmativas é possível diminuir as desigualdades no mercado de trabalho e melhorar as oportunidades de inserção para a população negra”, afirmam as entidades, que destacam o crescimento da participação dos negros entre os ocupados, de 35,2% em 2013 para 37,9% em 2014. Mas observam que o rendimento/hora dos negros representava 63,7% do recebido pelos não negros: R$ 8,79, ante R$ 13,85. bit.ly/rba_desigualdade
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MARCIO POCHMANN
Juros e inflação no Brasil
Os gestores da política econômica do país atuam em posições contraditórias. Enquanto Fazenda e Planejamento clamam por austeridade fiscal, o Banco Central esbanja recursos do setor público
A
s instituições operadoras da política econômica no país indicam atualmente não assumir uma posição convergente. De um lado, a postura dos ministérios da Fazenda e Planejamento aponta mais fortemente no ano de 2015 em favor do cumprimento do programa de austeridade fiscal. De outro, o Banco Central caracteriza-se por esbanjar recursos do setor público. Isso não é um fato novo. Mas enquanto os ministérios econômicos cortam gastos públicos, sobretudo nas áreas sociais e de investimento, o BC aumenta as despesas financeiras por decorrência fundamental da elevação da taxa de juros e do uso de swaps cambiais. A cada 1% de ampliação na taxa de juros, o custo da dívida pública cresce, por exemplo, em quase R$ 14 bilhões ao ano. Por conta disso, o Brasil pode chegar a comprometer quantia equivalente a 8,4% de todo o Produto Interno Bruto de 2015 somente com pagamento dos serviços da dívida pública. O que equivale a quase 45% do orçamento público. Como se sabe, o governo Dilma mudou a estratégia na condução da política econômica neste início do segundo mandato presidencial. Em vez do gradualismo, que tradicionalmente marcou os governos liderados pelo PT desde 2003, observa-se a predominância do choque de medidas econômico-financeiras. Tal como Maquiavel, que sugere fazer o mal de uma vez só, o Brasil assistiu a um só golpe a decisão governamental de provocar simultaneamente o choque de juros, de câmbio, de liberação dos preços administrados, de aumento da carga tributária e de redução dos gastos públicos a partir de janeiro deste ano. Dez meses depois, os resultados alcançados indicam situação econômica mais desfavorável. Ademais da elevação da inflação e da queda na atividade econômica, constata-se a piora das
finanças públicas, com aumento no grau do endividamento do setor público. Isso sem mencionar a inflexão na trajetória dos indicadores sociais, que vinha, desde 2004, convergente com a redução do desemprego, da pobreza e da desigualdade na renda do trabalho. No que se refere especialmente ao Banco Central, que afirma seguir objetivamente o combate à inflação, cabe analisar melhor o seu desempenho e eficácia nessa tarefa. Duas comparações apresentam-se importantes a serem consideradas. A primeira relacionada aos meses de abril de 2013 e de setembro de 2015, período em que cuja taxa anual de juros subiu de 7,25% para 14,25%, equivalendo à elevação acumulada de 96,6% no custo do dinheiro. São 30 meses de trajetória altista da taxa de juros básica do Banco Central. Em relação ao comportamento da taxa de inflação acumulada em 12 meses, percebe-se que ela passou de 6,6% em março de 2013 para 9,5% em setembro de 2015. Isto é, crescimento acumulado no mesmo período de tempo de 43,9%. Noutras palavras, para cada aumento de 1 ponto percentual na taxa básica de juros do Banco Central, a inflação aumentou quase meio ponto nesses dois anos e meio. A segunda comparação a ser feita relaciona os meses de julho de 2011 e de março de 2013, uma vez que convergem para o comportamento de queda de 42% na taxa básica de juros do Banco Central. Nesse período, a taxa de juros caiu de 12,50% para 7,25% ao ano. No caso da taxa de inflação, por outro lado, assistiu-se também à sua queda relativa de –4,3%, pois passou, em julho de 2011, de 6,9% acumulada nos últimos 12 meses, para 6,6% em março de 2013. Em síntese, constata-se que a cada 1 ponto percentual a menos na taxa básica anualizada do Banco Central, a taxa de inflação acumulada em 12 meses caiu 0,1 ponto percentual. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Com apoio de pais e professores, movimento histórico de estudantes protagoniza lição de cidadania e democracia ao ocupar ruas, avenidas e suas próprias escolas em defesa da educação pública Por Cida de Oliveira 10
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A ESCOLA É NO REVISTA DO BRASIL
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EDSON LOPES JR/A2 FOTOGRAFIA/GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Desmonte
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é o número de escolas fechadas pelos governos tucanos de Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra entre 1995 e 2007 na capital paulista. Algumas foram transformadas em unidades administrativas da Secretaria da Educação ou em unidades da PM. O governo vendeu os terrenos das extintas José Alves de Camargo Vila Mafra, na Vila Formosa, e Martim Francisco, na Vila Nova Conceição, que deram lugar a condomínios
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é o número estimado de escolas fechadas ou transferidas no estado desde o Programa de Reorganização das Escolas da Rede Pública Estadual, de 1995 Fonte: Gilberto Cunha Franca – Urbanização e Educação: Da escola de bairro à escola de passagem/FFLCH-USP 2010
DEFESA DO ENSINO PÚBLICO Estudantes na ocupação da Fernão Dias Paes, escola da zona Oeste de São Paulo
NOSSA P
erto de acabar, 2015 entra para a história como o ano em que os alunos da rede estadual paulista fizeram da própria escola a grande trincheira em defesa do ensino público de qualidade – termo que a maioria deles só conhece de ouvir falar. Contra o fechamento de 94 escolas em todo o estado, a extinção do ensino médio noturno em centenas de unidades e o desemprego de professores e demais servidores, a comunidade protagonizou um movimento inédito. E resistiu à tentativa do governo
ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL
SEM TRANSPARÊNCIA Como na crise da água, governador negou as evidências
de Geraldo Alckmin (PSDB) de reduzir a presença, e os investimentos, do Estado no setor – embrulhada em um pacote que tentou empurrar à população sem debate com nenhum setor afetado. Na terceira semana de novembro, quando os alunos estavam envolvidos com trabalhos, provas e exames para ingresso na faculdade e as férias, a defesa da escola ganhou importância maior. Organizados em comissões de limpeza, preparo das refeições, contato com a imprensa, controle dos portões e organização de atividades culturais, todas constituídas a partir de assembleias, eles cuidavam das mais de 60 escolas ocupadas em várias regiões. De proporções surpreendentes, as ocupações incomodaram o governo. Em reunião de conciliação em 19 de novembro, no Tribunal de Justiça, o secretário da Educação, Herman Voorwald, chegou a propor a suspensão da reorganização do ensino paulista até 4 de dezembro, mediante a desocupação imediata dos prédios. Pela proposta, as instituições receberiam, em até 48 horas, um material explicativo sobre o projeto e sobre como ele atingiria as unidades. Depois disso, pais, alunos e professores discutiriam com a diretoria de ensino e apresentariam uma nova proposta. Questionado pela Defensoria Pública, Voorwald não
garantiu que as propostas de estudantes, pais e professores seriam acatadas pelo governo. “Se surgir alguma proposta melhor que a nossa, por que não?”, limitou-se a dizer, admitindo que a política pública de reorganização não será suspensa. Foi a senha para que as organizações estudantis decidissem não recuar, mantendo o movimento.
Ocupações
Na ocupação da escola Ana Rosa Araújo, na Vila Sônia, zona oeste de São Paulo, havia sessões de cinema ao ar livre, shows, teatros, saraus e leituras de poesias – uma vida cultural inédita por ali. “Ocupar era nossa única alternativa de conseguir continuar estudando aqui. Foi o que fizemos”, conta o estudante do primeiro ano do ensino médio José Vinicius Soares, lembrando da extinção do ensino médio na escola e a transferência compulsória e automática dos alunos para outras unidades. “Precisamos sim de uma reorganização, mas que ela seja discutida com a comunidade escolar, e não imposta”, completa a colega Marissol Dias, interrompida por uma moradora do bairro, que de dentro do carro encostado em frente gritava: “De que vocês estão precisando na ocupação?”. Os estudantes, que logo pediram proREVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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GERARDO LAZZARI/RBA
EDUCAÇÃO
BAIRRO VALORIZADO Denise Elisei: “O Saboia está no centro de uma luta de classes. Os novos moradores preferem ver aqui um shopping”. Revoltados com a possibilidade de fechamento, os alunos também foram às ruas defender sua escola
dutos de limpeza, contam com a solidariedade de vizinhos, professores e ex-alunos, que fazem doações muitas vezes compartilhadas com outras ocupações. “Os pais, que apoiam desde o início, são bem-vindos. Podem comprovar a ordem aqui e incentivar a resistência, já que também não querem nossa mudança de escola”, diz José Vinicius. Na escola Godofredo Furtado, em Pinheiros, também na zona oeste, os alunos começavam a organizar as doações, ainda sobre as mesas. “A diretora não entregou as chaves da cozinha, nem do banheiro que tem chuveiro, mas nossa escola está ocupada”, diz uma jovem, que preferiu não se identificar. “Temos medo da superlotação. Como vão colocar mais gente nas salas de aula que já estão tão cheias?”, questiona outro aluno. Enquanto ele limpava uma mesa, uma mulher chegava com uma sacola com produtos de higiene. “Obrigada, meninos! Vocês estão dando uma lição para todos nós.” Na escola Oscavo de Paulo e Silva, em Santo André, na região do ABC, os saraus também se incorporaram a uma rotina que os alunos classificaram de “manter 12
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a educação”. Pelo termo, em resposta a versões que atribuíam aos ativistas o interesse em depredar a escola, entenda-se uma troca lúdica de conhecimentos e leituras, a divisão de tarefas para manter a casa em ordem, a divisão de papéis em igualdade de condições entre meninos e meninas, o veto ao sexismo, ao machismo, ao preconceito. “Estamos aqui não só em reação à desorganização que o estado quer impor, mas em defesa da escola que queremos”, dizia um aluno.
Dignidade à frente
Mãe de uma estudante de 17 anos, da ocupação da escola Fernão Dias Paes, também em Pinheiros, a socióloga e professora universitária Rosemary Segurado não esconde o orgulho apesar do “coração na mão” durante o período mais tenso, com a escola sitiada por Força Tática e Tropa de Choque da Polícia Militar. “A gente sabe de outras experiências que a truculência da polícia é o diálogo que o governo conhece. Como cidadã e como professora, vejo jovens contra o fechamento de escolas. Uma aula de cidadania para nós ao defender o direito a
educação pública. Isso de maneira organizada, pacífica. Só tenho a ficar feliz num momento em que a escola pública ocupa o debate.” Em Mauá, na escola estadual Maria Helena Colônia, um pai visivelmente emocionado, visita a ocupação, afirmando não aceitar que tirem alunos de uma escola a 600 metros da porta de casa para jogá-los dois quilômetros e meio mais longe. “E também não posso aceitar o que uma diretora vem falar para mim, que ela tem 13 anos de serviço e que a preocupação no momento é com sua aposentadoria. A minha é com ele”, diz, olhando para o filho, do ensino médio. “Como vai ser o futuro dele e dos outros é a minha preocupação.” Na Saúde, bairro da zona sul da capital, a dona de casa Márcia Clemente acompanhava os dois filhos até a porta da Escola Estadual Raul Fonseca quando foi informada da decisão da ocupação, em 17 de novembro. “Eles merecem o nosso apoio. Estou muito orgulhosa do meu filho. Ele disse que vão separá-lo dos amigos, transferir para outra escola onde não conhece ninguém. Chega de engolir tudo
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DANILO RAMOS/RBA
DARIO OLIVEIRA/CÓDIGO 19/FOLHAPRESS
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VIDA CULTURAL Na ocupação da escola Ana Rosa Araújo, Vila Sônia, havia sessões de cinema, shows, saraus – vida cultural. Ocupar era única alternativa dos alunos
o que vem do governo. Esses jovens vão ser os eleitores de amanhã. A gente tem uma esperança, e a nossa esperança são eles. Vamos apoiar”, afirma. Conhecido pela atuação em defesa dos direitos humanos, o padre Julio Lancellotti estendeu a solidariedade aos alunos. “Nós temos um modelo de ensino que perpetua as desigualdades, mas esses jovens estão lutando pelo direito de poder conviver. Estão indo contra este mo-
delo. Essa foi a aula mais importante que eles tiveram no ano: a aula de desobedecer, de enfrentar o poder, de questionar e de descobrir a força que tem.” A solidariedade entre os estudantes foi outra marca da jornada de ocupações. Presidente do grêmio estudantil e repórter do Saboia News, Pedro Vieira, aluno do segundo ano do ensino médio na Escola Estadual Padre Saboia de Medeiros, na Chácara Santo Antônio, zona
sul da capital, esteve no Fernão Dias e na EE Cefam Diadema. “Fui levar o apoio e solidariedade do Saboia a todos esses colegas que vão resistir até o governador voltar atrás”, diz o estudante. Os 800 alunos do Saboia, a maioria trabalhadores, moradores da favela Real Parque, Capão Redondo e Guarapiranga, foram alguns dos primeiro a ir às ruas, com apoio da direção. “Devemos continuar mobilizados, alertas a quaisquer manobras do governo”, diz a diretora Denise Elisei. Para Denise, o temor se justifica pelo fato de a escola estar no centro de uma luta de classes. Moradores antigos ou que herdaram suas casas naquele que foi um bairro operário defendem a escola e matriculam ali os seus filhos. “Para os que se mudaram depois da valorização da região, com prédios de alto padrão, melhor fechar e fazer aqui um shopping”, diz. A desativação de cursos noturnos, uma das principais críticas dos alunos, fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante a estudantes trabalhadores ou aprendizes o direito de acesso ao ensino noturno. O estatuto prevê ainda que irmãos não sejam separados em abrigos e nem na escola – o princípio do direito à convivência familiar – um outro aspecto presente na separação das escolas por ciclos únicos de ensino. Assim, irmãos maiores não estudarão com os menores nem poderão mais acompanhá-los, criando um problema para os pais. O projeto de Alckmin desrespeita ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), espécie de constituição do setor, que determina que todo processo de reorganização deve envolver a participação de alunos e pais no processo de construção. Além do direito à educação, os alunos querem também o direito à participação. “Muitos diretores de escola não incentivam nem respeitam os grêmios estudantis. Além disso, o movimento estudantil nem sempre consegue autorização para entrar na escola”, diz o advogado Ariel de Castro Alves, consultor em direitos humanos, infância e juventude e segurança pública, que acompanha de perto a reação da comunidade ao pacote supostamente pedagógico de Alckmin.
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No final de setembro, quando já tinham vazado listas das escolas que seriam extintas, os alunos perceberam que, em 2016, estariam sendo transferidos compulsoriamente para outras escolas, longe de suas casas, e que seriam separados de seus professores. Surgiram então manifestações a princípio externas, que logo se espalharam por ruas e praças, até tomar grandes avenidas, como a Paulista, na capital, chegando às portas da sede do governo estadual, no Morumbi.
Reação
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COMUNIDADE UNIDA Em Diadema, as crianças se juntaram aos jovens na defesa da escola
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Castro Alves considera que o movimento que culminou com a ocupação das escolas em várias regiões do estado, ameaçadas ou não de fechamento – sem contar escolas técnicas, em apoio – foi uma das mais importantes reações da sociedade à postura autoritária que sempre pautou a atuação do governo de Geraldo Alckmin. “A reação veio assim que tomaram conhecimento das mudanças. Embora tenham contado com apoio dos pais, professores, movimentos e sindicatos – nem teria como ser diferente, já que precisavam de transporte e outros recursos –, os alunos são os protagonistas.” Para ele, a falta de diálogo levou à ocupação da escola Diadema, no município do ABC, e movimento começou a crescer a partir da Fernão Dias. “Quando o estado cerca uma escola, impondo um estado de sítio, o movimento começou a se alastrar. Na tarde do primeiro dia de ocupação, a polícia queria invadir a escola e levar alguns adolescentes para a delegacia. Só não levaram porque recorremos a diversas instâncias, inclusive à ouvidoria da polícia”, diz. Em 13 de novembro, o juiz Luís Felipe Ferrari Bedendi, da 5ª Vara da Fazenda Pública, não acatou pedido do governo para reintegração de posse da Fernão Dias, deixando claro que a reivindicação dos estudantes configurava política pública e não disputa pela posse do espaço. Além de suspender a reintegração, Bedendi suspendeu estendeu a decisão para todas as escolas da capital paulista, atendendo a um recurso impetrado pelos advogados do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado (Apeoesp), da Defenso-
ria Pública e do Ministério Público. Na tarde do seguinte, houve violência policial contra alunos e professores que ocupavam a Escola Estadual José Lins do Rego, no Jardim Ângela, zona sul da capital. Sem mandado expedido pela Justiça, policiais ignoraram decisão judicial da véspera e ordenaram a desocupação. Um professor foi agredido, machucado e levado preso para o 47º Distrito Policial, no Capão Redondo. As agressões ocor-
reram no chamado “Dia E”, dedicado a reuniões em todas as escolas para esclarecer a comunidade sobre as mudanças, as transferências de alunos e até mesmo sobre o eventual fechamento da unidade. A princípio, a data incluía a participação dos professores. Porém, com o apoio aos estudantes e as manifestações, o governo mudou de ideia. As diretorias de ensino soltaram circular no meio semana, desconsiderando o dia como letivo,
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razão pela qual alunos e professores não poderiam participar da reunião. A cobertura dos atentados em Paris chamou a atenção de muita gente, mas não escondeu a violência na zona sul. Naquele mesmo sábado, a Escola Estadual Mary Moraes, no Morumbi, havia sido ocupada. E na segunda-feira seguinte, foram 13 novas unidades espalhadas pela capital, Região Metropolitana e interior. O governo que não consultou pais, estudantes, professores, diretores, conselhos tutelares e outras instâncias de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes na elaboração de seu projeto, continuou intransigente. Na noite
de 9 de novembro, quando perceberam que não poderiam renovar matrículas na EE Diadema, os alunos deram início à ocupação da escola. Foi a primeira. Na manhã seguinte, a Fernão Dias Paes, em Pinheiros. Para o estudante Júlio César Máximo, de Diadema, nada havia sido combinado. Mas também não se podia falar em coincidência. Os estudantes, que seguiam sem ser ouvidos pelo governo, precisavam apenas de um “gatilho” para a ocupação. “Os pais estão apoiando a nossa manifestação, que é contra o fim do ensino médio aqui, que vai prejudicar estudantes e muitos professores. A maioria deles não vai seguir para a outra escola. Ninguém sabe para onde vão. Temos um elo com nossos professores”, diz Júlio. Durante a entrevista, ele era interrompido por pais que vieram trazer colchões e alimentos. Outros vieram saber se os estudantes precisavam de algo e havia ainda os que queriam se juntar ao movimento. O impulso para mais ocupações veio da presença ostensiva da PM na Fernão Dias, que impediu a entrada de advogados e observadores de direitos humanos, sob a alegação de garantir a integridade de todos. “Só quem não conhece escolas e estudantes pode dizer um absurdo desses para quem tem experiência no acompanhamento aos direitos humanos da população carcerária”, diz Ariel de Castro Alves. Para ele, os excessos demonstram o despreparo do estado autoritário para lidar com situações em que é confrontado pela sociedade. “Um governo que abre cadeia, defende a redução da maioridade penal, a ampliação do tempo de permanência de jovens infratores nos siste-
mas socioeducativos e que criminaliza a juventude.” No dia 17, o juiz Bedendi suspendeu novamente as liminares que ameaçavam as escolas Salvador Allende Gossens e Fernão Dias Paes, agendando a negociação para dois dias depois. A medida, considerada mais uma vitória importante do movimento, abriu precedente para todas as demais ocupações. Para Castro Alves, o juiz deixou claro que se decidia pelo direito da criança e do adolescente e não pela posse da escola ao Estado. “Esperamos que a decisão seja parâmetro para os juízes de outras cidades. Verdadeira aula de direitos humanos, foi um tapa na cara do governador”, diz. “Além disso, decidiu que a Tropa de Choque da polícia não poderia ser usada em nenhum processo de reintegração de escolas”. Outra vitória foi o recuo do governo ao anunciar que a Escola Estadual Augusto Mélega, na zona rural de Piracicaba, no interior, continuaria em atividade, e a decisão do Tribunal de Justiça de proibir o fechamento da EE Braz Cubas, em Santos, no litoral sul, especializada no atendimento de alunos com deficiência. Durante as ocupações, intimidações aos direitos humanos como telefonemas de dirigentes de ensino para os pais acusando alunos de quebrar escolas e colocar diretores em cárcere privado, quando nenhum dano ou ameaça foi registrado. Ou mesmo a proibição de advogados na escola ocupada. O que se assistiu, até aqui, foi a luta pelo que é dos estudantes. “Além da família, eles têm a escola”, diz Castro Alves. Colaborou: Sarah Fernandes
De governo que não dialoga se deve duvidar O mesmo governo estadual que em 2015 asfixiou o mais longo movimento grevista dos professores, durante três meses, sem negociar nem salários, nem condições de trabalho, pode fazer o mesmo em relação às reivindicações dos alunos. Ou seja, deixar que o movimento dos estudantes seja desgastado, minguado pelo tempo, pelo cansaço ou mesmo abatido pelas demonstrações de força policial – que bate em professores e alunos sentados dentro de uma escola simbolicamente ocupada. “Mesmo que isso aconteça, o governo de Geraldo Alckmin já saiu desgastado e amedrontado com o movimento protagonizado pelos estudantes que se levantaram contra a
imposição de seu projeto de reorganização”, diz o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo e integrante do Ministério Público Democrático, Plínio Gentil. De acordo com ele, de um governo que decreta sigilo nas investigações sobre o Metrô, Sabesp e da própria atuação da polícia, que “deu uma banana para os professores”, deve-se sempre duvidar. Sobretudo diante de sua influência sobre setores do Judiciário na busca por criminalizar um movimento social que não é crime. “Fazer reforma educacional fechando escola é a mesma coisa que dizer que se faz reforma agrária tirando terra”, compara Gentil. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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DEMOCRACIA ECONÔMIC Dilma conseguiu reunir as forças em defesa do mandato e afinou discurso em direção a sua base social. Mas enquanto não mudar a condução de sua política econômica, não terá sossego
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assado pouco mais de um mês de uma reforma ministerial calculada pelo governo como meio de reorganizar sua base no Congresso, os resultados ainda não são palpáveis. Paira no ambiente político, no entanto, a sensação de que o mandato de Dilma Rousseff ganhou fôlego. Tornaram-se frequentes os sinais de que o Planalto pretende corrigir um defeito antigo: a ausência de diálogo. As reuniões com governadores, prefeitos e parlamentares de partidos que em tese compõem a coligação governista – mas não dão segurança sobre de que lado estarão em votações importantes para fechar o ano – tornaram-se mais frequentes nas agendas da presidenta e dos ministros escalados para tocar a articulação política: Jaques Wagner (Casa Civil) e Ricardo Berzoini (Secretaria de Governo). Por votações importantes entenda-se as que devem transformar em leis medidas provisórias fundamentais para o Executivo, os projetos de adversários que podem transformar planos do governo em pesadelos e, por fim, os que podem levar adiante no Legislativo um processo de impeachment. A fragiliza-
COM A VERDADEIRA BASE DE APOIO Dilma no congresso da CUT ao lado de Carmen Foro, Lula, Vagner Freitas e José Mujica: discurso duro e otimista
ção de um dos principais inimigos declarados do governo petista, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ainda não bastou para o governo pôr ordem na base. Atolado em evidências de que tem dinheiro sujo depositado em contas na Suíça, Cunha só não foi destroçado politicamente por ser a penúltima cartada da oposição, inclusive a midiática, no in-
tuito de manter o governo acuado. O tratamento dado a ele e seus familiares por lideranças de PSDB, DEM e SD – a tropa de choque do golpe –, pelos jornais e por setores do Judiciário chega a ser mais indecente do que as suspeitas que a qualquer momento podem encerrar seu mandato. Além desses respiros, a presidenta fez gestos mais contundentes em direção à
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MICA, A PRÓXIMA FASE
base social que proporcionou a vitória eleitoral do ano passado. Ensaiados desde o início do segundo semestre, com a recepção de movimentos sociais e eventos no Planalto, esses sinais tiveram como ponto alto a participação de Dilma na abertura do congresso da CUT, em 13 de outubro. Confirmada de última hora, a presença deixou uma marca de otimismo entre seus apoiadores pelo discurso mais
duro desde 2014 dirigido aos opositores. Dilma definiu sem rodeios os que pretendem “criar uma onda” que leve ao “encurtamento” de seu mandato como golpistas e “moralistas sem moral”. “Vivemos uma crise política séria no nosso país, que se expressa na tentativa de nossos opositores de fazer um terceiro turno. Jogam sem nenhum pudor no quanto pior, melhor. Pior para a popula-
ção e melhor para eles. Envenenam a população todos os dias nas redes sociais e na mídia. Espalham o ódio e a intolerância”, afirmou a presidenta. Ela mandou indireta a Cunha de que não negociaria sobre a situação dele – “Jamais negociaremos com os malfeitos” – e desafiou detratores: “Quem tem força moral, reputação ilibada e biografia limpa suficientes para atacar a minha honra?”. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Antes de partir para o ataque contra os adversários, porém, Dilma começou sua intervenção na defesa, tentando explicar “escolhas dolorosas” de início de mandato, em busca de governabilidade e equilíbrio fiscal. Voltou a afirmar que os programas sociais são o “centro e espírito deste governo” e o objetivo de fazer uma transição para um “novo ciclo de desenvolvimento”. “Não estamos parados. Sabemos que existem dificuldades econômicas. E fazemos tudo para que o país volte a crescer.” A presidenta deixou o local após concluir seu discurso. Não presenciou as falas que se seguiram. Teria ouvido do presidente reeleito da CUT, Vagner Freitas, que a central rejeitará qualquer tentativa de “golpe” e irá às ruas para defender a democracia e a manutenção de conquistas sociais, mas que caberá ao governo tomar decisões políticas com mais diálogo e menos rigor fiscal. Freitas cobrou redução dos juros, ampliação do crédito do BNDES para micros e pequenas empresas, tributação dos mais ricos e ressaltou: “O ajuste não pode sufocar o país. Com essa política econômica é impossível retomar o crescimento com distribuição de renda. Não é possível que o ajuste seja a única proposta econômica para o Brasil”. Em seguida, Lula registrou com entusiasmo que Dilma começou a fazer história como líder política. “É essa Dilminha que elegemos”, disse, ao defender que a presidenta precisa de “paz” para exercer o mandato, e que isso exige também mudanças na economia. “Não tem um país no mundo que tenha feito ajuste e que tenha melhorado a economia”, afirmou o ex-presidente, alertando para o risco de adotar o discurso “da direita”, de que é preciso ter desemprego para não haver inflação. “A impressão que passamos à sociedade é que adotamos o discurso dos que perderam a eleição.” Mas a eleição não foi totalmente perdida pelo campo conservador, como observou, no dia seguinte, o sociólogo Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). “Há uma pauta regressiva e antipopular. Ho-
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É a economia, companheira
Há uma pauta regressiva e antipopular. Hoje a direita não está unificada em sua tática, mas está na estratégia de fazer um programa de contrarreformas” Guilherme Boulos
Quem faz mudança social é o povo organizado, não é dirigente de movimento. A política foi sequestrada pelos empresários” Gilmar Mauro
je talvez a direita não está unificada em sua tática, mas está na estratégia de fazer um programa de contrarreformas”, avalia Boulos, que vê três táticas distintas em operação pelo conservadorismo: uma, capitaneada pelo “moleque chamado Aécio Neves”, de anular o resultado das urnas por meio de processos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE); outra “mais esperta e mais perigosa”, representada pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e pelo ex-presidente Fernando Henrique, que não quer o impeachment, mas “sangrar” o governo até 2018 com objetivo de destruir moralmente as conquistas; e uma terceira posição, que seria a de Michel Temer e José Serra, que trabalha pelo impeachment via Congresso. “Neste cenário complexo e difícil estamos diante do desafio de evitar dois erros fundamentais. O primeiro seria, em nome de enfrentar o ajuste fiscal, subestimar a ofensiva conservadora e o golpis-
mo, achando que essa onda antipetista é só contra o PT. Tenho clareza que esse antipetismo que está nas ruas é antiesquerda. O problema deles é com as causas populares. Se alguém da esquerda achar que vai tirar algum caldo dessa onda, vai é se afogar nela”, alertou. “O segundo erro a evitar seria, em nome da necessidade clara e definida de combater o golpismo da direita, silenciar sobre o ajuste fiscal e ignorar ataques a direitos. Achar que fazer crítica é fazer o jogo da direita também é um erro cruel, um tiro no pé, porque nos tiraria a capacidade de dialogar com os trabalhadores e com a maioria que está insatisfeita.” Para Boulos, esse diagnóstico põe a esquerda no fio na navalha. “Temos de defender a democracia, mas não apenas a democracia política. Precisamos também defender a democracia econômica. Não há democracia no mundo em que 1% da população tem mais do que os ou-
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tros 99%. Precisamos recuperar um espaço que perdemos de se fazer política, as ruas, e não há espaço vazio. Se o perdemos, a direita vem e toma.” Os debates do congresso da CUT conduziram a alguns consensos em relação ao momento das esquerdas. Um deles foi essa constatação de que a democracia política por si só não se sustenta. A associação foi feita em vários momentos por personalidades o assessor especial da Presidência Marco Aurélio Garcia, o presidente da Confederação Sindical Internacional (CSI), João Felício, e o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Gilmar Mauro. Os oradores apontaram para situações de golpes contra a democracia econômica em direção à qual os governos da América do Sul vêm tentando caminhar desde o início do século 21. Garcia lem-
brou que a ausência do acesso das maiorias da população a conquistas materiais e sociais ao final das ditaduras sangrentas do século passado quase frustraram as sociedades. Mas, para ele, foi com a democracia que a reconstrução dos movimentos sindicais e sociais e dos partidos de esquerda após os períodos autoritários levou à conquista dos governos pós-neoliberais. “Chile, Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador, todos foram sacudidos pela vontade popular por mais igualdade”, observou. “Foi essa a demanda que moveu a revolução democrática em curso no continente.” E seria esse processo social o maior ameaçado pelas pretensões golpistas, das quais fazem parte as corporações mais preocupadas com a competitividade em escala global do que com a realidade social dos países em que atuam, co-
mo lembrou João Felício. “Sabemos que muitas se envolveram na derrubada de governos democráticos e muitas participaram em episódios de tentativas de desestabilização.” Mais que desestabilização, “tempestade”, classificou Gilmar Mauro. “Mas quem tem raízes não teme tempestade. No mundo todo os movimentos sociais sofrem ataques”, destacou, traduzindo como democracia econômica combater a “coisificação do ser humano”. Para ele, inverter essa lógica é disputar a democratização dos recursos do petróleo, do direito à educação, à informação, à terra. “Quem faz mudança social é o povo organizado, não é dirigente de movimento. A política foi sequestrada pelos empresários.” Com reportagens de Helder Lima, Paulo Donizetti de Souza e Vitor Nuzzi
O predomínio dos interesses empresariais no Congresso é objeto de advertência do diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) Antônio Augusto de Queiroz, o Toninho. A esquerda, além de buscar a unidade nas diversas frentes de resistência que vêm se formando no âmbito dos movimentos sociais, precisa de uma estratégia institucional. Para Toninho, o campo progressista deve evitar erros para que não seja “atropelado pela direita e perca o trem da história nas próximas eleições”. Em sua avaliação, cita o que considera equívocos na formação de alianças eleitorais, lembrando que o PT se coligou em Pernambuco, por exemplo, com a centrodireita e não elegeu nenhum deputado – se tivesse saído sozinho, teria elegido três. “Em Brasília, se tivesse saído sozinho elegia dois, mas na coligação elegeu um cara da extrema-direita. Essa lógica dos partidos de querer fazer aliança para ter mais recursos
do fundo partidário contribuiu para distorcer a representação, favoreceu os conservadores.” O analista ilustra o teor nocivo dessa falta de coerência no processo de discussão do orçamento da União para 2016. O relator, deputado Ricardo Barros (PPPR), sugeriu corte de R$ 10 bilhões do Bolsa Família. “Absurdo completo sobre um programa social estrutural do governo. Isso significa que não há coerência nessa vontade da base”, avalia Toninho. Barros é vice-líder do governo na Câmara. “Esses caras entraram para implementar sua própria agenda e não a do governo. As forças à esquerda no espectro político não estão percebendo isso e não vão para o enfrentamento. Fica nessa coisa de compor e fazer concessões, não faz o menor sentido”, critica. O diretor do Diap admite que a atual legislatura piorou em relação à anterior em parte como resultado da campanha “moralista, justiceira, de associar a esquerda a corrupção, houve
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Deseducação política
SEM COERÊNCIA O relator do Orçamento da União para 2016 sugere corte de R$ 10 bilhões do Bolsa Família
uma série de movimentos que foram determinantes para a alteração dessa composição”. E teme que isso piore nas próximas eleições. Para o cientista político Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília, os ataques indiscriminados da oposição ao governo, sobretudo aos programas sociais, seguem uma lógica perversa. “A eficiência do governo está sendo colocada em xeque principalmente pelo problema da corrupção,
que não tem relação direta com os programas sociais, mas trabalha a percepção das pessoas no sentido de dizer que o governo não cumpre bem seu papel. E aí surge uma confusão traiçoeira. Em vez de discutir o aperfeiçoamento do processo, você começa a discutir o fim do processo, algo do tipo ‘então vamos acabar com isso, vamos acabar com o Estado’. É uma opção de não avançar na solução dos desequilíbrios estruturais e históricos da sociedade.”
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Crédito micro. Resu País tem 21 milhões de microempreendedores, mas apenas 10% participam da rede solidária dos bancos populares, que oferece empréstimos para capital de giro e investimentos, e promove oportunidades de renda e inclusão social Por Helder Lima
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ma das várias faces da exclusão no Brasil é a de serviços bancários – sobretudo, de crédito para quem tem uma boa ideia na cabeça e nenhum recurso à mão. O país conta com 21 milhões de microempreendedores, a maioria informais, que só encontram empréstimos para investir no próprio negócio, seja um tabuleiro de algodão-doce ou algo mais sofisticado, em bancos populares e redes de crédito solidário, que se expandem lentamente. No primeiro semestre deste ano, as operações de microcrédito movimentaram R$ 5,4 bilhões, beneficiando 2,4 milhões de pessoas, pouco mais de 10% do universo estimado desses empreendedores. “É pouco. Tivemos um seminário com especialistas e técnicos do Banco Central em que se falava que o microcrédito representa 0,2% do crédito nacional. Temos um grande caminho a percorrer”, afirma o diretor-executivo Almir da Costa Pereira, do Banco do Povo Crédito Solidário, em Santo André, no ABC paulista, e também diretor da Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (Abcred), que congrega 39 instituições. O microcrédito produtivo, voltado não ao consumo, mas a atividades de geração de renda, é amparado pelo Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO), estabelecido por
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uma lei gestada no então Ministério do Trabalho e Emprego em abril de 2005. “A nossa intenção com essas linhas de crédito é fortalecer as atividades, é dar a esses empreendedores um maior poder de barganha junto aos fornecedores, melhorar a apresentação dos estabelecimentos comerciais, quando é o caso, criar a possibilidade para que eles possam ter estoques mais competitivos e atraentes para os clientes”, afirma a gerente do Ambiente de Microfinanças Urbanas do Banco do Nordeste, Rosa Ribeiro. Atualmente, o Banco do Nordeste é o que tem a maior operação de microcrédito da América do Sul, com experiência de 18 anos nesse segmento. O banco público mantém duas linhas para o setor, para microempreendedores urbanos e rurais. Segundo os dados mais recentes do agora Ministério do Trabalho e Previdência Social, os tomadores urbanos de crédito são a maior parte dos clientes, com predominância de 74,51% no período de abril a junho deste ano. Uma das exigências para contrair um financiamento é que o empreendedor tenha faturamento bruto anual de no máximo R$ 120 mil. Nove em cada dez contratantes de crédito buscam recursos para capital de giro. As mulheres são predominantes nos empreendimentos – respondem por 62,5% dos valores concedidos e por 64,8% das operações realizadas no segundo tri-
CAPITAL DE GIRO Flávia, dona Maria, Carmelita, Edna e Maria das Dores: crédito alavanca pequenos negócios
mestre. E 80% do movimento no mesmo período beneficiou empreendedores da região Nordeste, graças à atuação da instituição financeira federal, de acordo com o ministério. Desde que atua nesse segmento, o Banco do Nordeste atendeu a mais de 3,5 milhões de trabalhadores, em um total de operações que ultrapassam R$ 26 bilhões.
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esultado gigante
Bons pagadores
Tudo isso só é possível com juros relativamente atraentes no país que mantém as mais altas taxas de juro real do mundo. Segundo Almir Pereira, as taxas para o microcrédito variam entre 2,5% e 4% ao mês, o que não é exatamente dinheiro barato, mas nem se compara com o ágio exorbitante praticado pelos bancos comerciais em suas diferentes linhas para o consumidor final. Ele destaca que os usuários do microcrédito são bons pagadores e sempre fazem planos condizentes com sua capacidade, devido à orientação
que recebem. “Se o cliente está investindo e a gente quer que o negócio dê certo, para que ele possa fazer outros investimentos, temos de ter em mente que por trás do microcrédito há famílias, mais de 60% dos clientes de microcrédito são mulheres. Então, é um crédito acima de tudo muito responsável”, define o diretor do banco de Santo André. “O dinheiro empenhado no negócio ajuda a dar um dinamismo, e eu aplico o recurso em produtos de qualidade”, afirma a cabeleireira Flávia da Silva, moradora da Vila Feital, da vizinha Mauá, con-
firmando a necessidade do recurso para capital de giro. Flávia participa há três anos de um grupo solidário, com mais quatro mulheres, e os empréstimos foram incorporados à rotina de trabalho do grupo, de tal modo que eles são renovados assim que quitados. Uma característica do grupo solidário é que cada participante funciona como garantia da credibilidade do outro. Se um falha com a prestação, os outros cobrem. O sistema resulta em baixíssima inadimplência, em alguns casos, inferior a 1%, como no Banco do Nordeste. Pereira acredita que a fórmula dos grupos solidários está consagrada. Juridicamente, os bancos solidários são representados pela figura da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). “É comum se uma pessoa, em um determinado mês, tem algum problema, ou fica doente, ou alguém da família tem dificuldade, ela conversa no grupo e nós orientamos para isso. O grupo diz ‘este mês você não está podendo pagar, então nós vamos ratear a sua parcela, mas no mês que vem você devolve’, e assim vai. Essa conduta ajuda a enfrentar momentos difíceis e a manter um ciclo virtuoso: as pessoas encontram de fato solidariedade e capacidade de investir juntas”, defende Pereira. O Banco do Povo de Santo André mantém atualmente cerca de 1.200 grupos solidários. Para Maria das Dores Souza de Oliveira, participante do grupo de Flávia e vendedora de roupas, queijos e chocolates na época de Páscoa, o dinheiro é bem-vindo principalmente para sua atividade com as roupas, pois comprando seus estoques à vista ela consegue descontos nos fornecedores. “Pretendo continuar no grupo”, afirma. Para este final de ano, a ideia era renovar seu empréstimo pela terceira vez desde que passou a integrar o grupo, agora aumentando o valor de R$ 1.000 para R$ 1.500. O pagamento é dividido em parcelas quinzenais. “Nun-
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ca tive problema para pagar, eu vou para a rua todo dia e sempre entra dinheiro”, diz. A chefe da equipe solidária, Carmelita Maria Leandro, há nove anos conta com os recursos do microcrédito para trabalhar. Ela busca roupas no interior paulista, principalmente em Ibitinga, Jacutinga e Monte Sião, para vender em Mauá. “Viajo a cada três meses para fazer compras, pago uma parte à vista e outra a prazo. O dinheiro do banco me ajuda a fazer essas compras”, afirma, destacando que as parcelas quinzenais são mais adaptadas ao perfil do grupo, que tem faturamento constante, mas de pequenas quantias. Nesse tempo, o único problema que tiveram foi com uma pessoa que participou para dar golpe, e aca-
bou levando R$ 1.200 depois que pagou uma prestação e tomou chá de sumiço. O valor total das parcelas do grupo é lançado num mesmo carnê.
Abaixo da cota
Apesar da predominância do setor urbano na concessão de microcrédito, na região Sul projetos ligados à agricultura familiar estão consolidando experiências positivas com o microcrédito, segundo o coordenador-geral da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS), Ari Aloraldo. “O dinheiro é carimbado quando se pensa em crédito, é preciso encontrar soluções para isso”, afirma Ari, referindo-se ao baixo volume de recursos do sistema bancário destinados ao segmento. Uma resolução do Banco Central determina que o dinheiro dis-
ponível ao microcrédito deve representar 2% do total de recursos “carimbados” para o crédito no país – dez vezes mais do que o volume relatado no início da reportagem. Criada em 1999 pela CUT, com apoio do Dieese e outras instituições que representam os trabalhadores, a ADS atua em diferentes projetos envolvendo economia solidária e percebe o quanto este setor ainda pode crescer no país, se houver suporte. “As cooperativas de crédito funcionam, deram certo, e os empreendimentos na região Sul também participam desse processo, nas áreas de alimentos e bebidas. O próprio MST tem o arroz orgânico, é o maior produtor desse produto na América Latina. O pessoal do Sul é pioneiro em cooperativismo, tem muita coisa bacana”, diz Ari.
Importância do poder local
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R$ 1,2 milhão por mês do orçamento da prefeitura, mas para o próximo ano ele será ampliado para famílias com renda de até três mínimos, elevando seu orçamento para R$ 4 milhões por mês. Também está nos planos da prefeitura promover ações de microcrédito para incentivar o empreendedorismo. O incentivo será destinado a todos os empreendedores, formais e informais. No próximo ano, serão inaugurados ainda dois centros públicos de economia solidária, que abrigarão incubadoras de empreendimentos. Segundo o secretário-adjunto de Economia Solidária, André Braga, o município planeja ainda realizar outra inovação, que é a plataforma “e-dinheiro”, um aplicativo de celular que funcionará em qualquer tipo de aparelho, mesmo sem internet, permitindo operações de depósito, transferência, pagamento de contas com código de barras. A tecnologia também foi desenvolvida pelo Instituto Banco Palmas e vai fazer parte da rede nacional de bancos comunitários. Para
2016, a prefeitura entrará na área de abastecimento, abrindo mercados de economia solidária, com produtos de assentamentos da reforma agrária. Inicialmente, serão construídos três mercados, dois deles próximos a conjuntos habitacionais do programa Minha Casa, Minha Vida.
Enquanto a candidata a “capital de economia solidária” no país planeja ampliar seus projetos, consumidores e comerciantes experimentam na prática uma expansão de negócios já consolidada com a mumbuca. “É uma moeda que veio como benefício para a população”, afirma
André Braga: município deve implantar o “e-dinheiro”
FERNANDO SILVA/ PREFEITURA DE MARICÁ, RJ
Maricá, na região metropolitana do Rio de Janeiro, com 150 mil habitantes, foi a primeira cidade no país a adotar a tecnologia de cartão eletrônico, de débito, para dar suporte à sua moeda social, a mumbuca. Essa iniciativa, adotada desde 2013, surgiu para combater a pobreza e estimular a economia da cidade. A prefeitura investe na moeda social eletrônica, garantindo um subsídio mensal de 85 mumbucas (cada mumbuca equivale a R$ 1) para 13 mil famílias com renda de até um salário mínimo, e como a moeda social só é aceita em estabelecimentos comerciais cadastrados, a economia regional também experimenta aumento de vendas. O país tem hoje mais de 100 moedas sociais reconhecidas pelo Banco Central. Mas a tecnologia eletrônica ainda é novidade. A mumbuca eletrônica foi desenvolvida com suporte do Instituto Palmas, de Fortaleza, referência em projetos de economia solidária no país. Em Maricá, o programa absorve
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A desigualdade entre as políticas de crédito para as grandes e pequenas empresas não é compatível com o potencial do setor, que movimenta apenas 27% do PIB, segundo o Sebrae, por meio de 9 milhões de empreendedores – em países como Alemanha e Itália, esse segmento da economia chega a concentrar 60% do PIB. Em um momento em que 1,2 milhão de vagas com carteira assinada são eliminadas em 12 meses, até setembro, e milhões procuram emprego devido ao aprofun-
damento da recessão, pode ser importante olhar para esse público potencialmente interessado em se candidatar ao autoemprego. O Banco do Povo de Santo André deve fechar o ano com aumento de 20% do volume de operações. “Uma política de microcrédito mais profunda para um período de dificuldades poderia ser uma das saídas. Assim como a gente descobriu que o Bolsa Família produziu o aquecimento de muitas economias locais, o microcrédito pode ter efeito semelhante”, afirma Pereira.
FOTOS CLARILDO MENEZES/ PREFEITURA DE MARICÁ, RJ
Desde 2005, no entanto, o conceito do microcrédito vem se consolidando. “O BC, os bancos privados, os bancos públicos, as organizações sem fim lucrativo, as cooperativas, todos os que estão operando dentro do sistema ou na periferia, como é o caso das Oscips, têm clareza desse conceito. Houve um período antes do programa que era muito comum os bancos quererem adotar o argumento de que o microcrédito era para conduzir o recurso da exigibilidade para outros fins e nós superamos isso”, diz Pereira.
IMPULSO Em Maricá, no Rio, na farmácia ou na casa de material de construção, o freguês paga em mumbucas no cartão eletrônico
Flávio Carvalho Pinto, que gerencia uma farmácia a preços populares no centro de Maricá. Segundo ele, os clientes valorizam ao máximo o dinheiro no cartão eletrônico. “As pessoas deixavam de comprar xampu, por exemplo, para comprar leite e fraldas para as crianças”, diz Flávio, que viu suas vendas aumentarem de 15% a 20%. O gerente de loja de material de construção Cláudio Barbosa confirma o aumento de negócios com a moeda social, em torno de 20%. “Todos ganham e o cliente tem facilidade de pagar porque não é preciso boleto, é tudo automático.” Crédito e cidadania E para quem acha que cidade grande não tem o que
a aprender com as pequenas, em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad inaugurou no início de novembro um centro destinado a pessoas em situação de vulnerabilidade, que vai desenvolver ao mesmo tempo projetos pautados por direitos humanos e economia solidária, com suporte de uma incubadora pública de empreendimentos voltada ao cooperativismo. “É uma iniciativa importante pela reunião da economia solidária com os direitos humanos. É extremamente interessante. O que conseguimos fazer aqui serve de inspiração a todo o Brasil”, afirma o secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Previdência, Paul Singer,
destacando que nem por isso as demais regiões deixam de ter experiência em empreendimentos solidários. “Temos também muito a aprender com amazonenses, nordestinos, indígenas e quilombolas.” Quem visita o centro tem a oportunidade de conhecer iniciativas concretas que se consolidam na perspectiva da economia solidária. Uma delas é a experiência do polo de ecoturismo criado na zona sul de São Paulo, envolvendo os bairros de Parelheiros, Marsilac e Ilha do Bororé. Segundo o diretor executivo do polo, Roberto Carlos, o projeto envolve 80 empreendimentos. “O polo é uma conquista da ação política dos movimentos populares”, afirma. Graças ao projeto, desde março os
empreendedores trabalham de forma coletiva, realizando compras, por exemplo, de insumos comuns. Este ano foi realizado o primeiro festival de inverno do polo, envolvendo 55 empreendedores, atraindo 22 mil visitantes e com renda de R$ 675 mil. “Com as metodologias da economia solidária, todos saem ganhando.” Para saber mais
Associação Brasileira das Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças: www.abcred.org.br Banco do Povo Crédito Solidário: www.bpcs.org.br Banco do Nordeste: www.bnb.gov.br Instituto Palmas: www.institutobancopalmas.org Prefeitura de Maricá: www.marica.rj.gov.br
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Ajuste solidário n Para Artur Henrique, secretário de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo da capital paulista, é tarefa do município promover arranjos locais e enfrentar a crise Por Helder Lima
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ouve um tempo em que se falava em empreendedorismo e economia solidária como alternativas para enfrentar o desemprego e o processo de extinção de vagas formais no mercado de trabalho. Os ideólogos do conceito, no entanto, consideram equívoco tratar o tema como “alternativa”, como algo para “quebrar o galho” em tempos de crise. Para eles, trata-se da construção de um outro modelo econômico, sustentável, autogestionário, com igualdade no acesso à gestão dos negócios e no compartilhamento dos resultados. E tanto melhor quando há apoio do poder público. O estímulo a cadeias produtivas regionais e a economias locais é uma forma de promover oportunidades, inclusão social e, de quebra, construir um novo desenho de cidade – mesmo em um ambiente mundial, e nacional, contaminado por políticas de austeridade ditadas pelo capital financeiro. Na cidade de São Paulo, a administração do prefeito Fernando Haddad tem apostado num planejamento que descentralize a intensidade econômica do miolo congestionado e promova a lógica de que os empregos e os estudos estejam próximos de onde as pessoas moram. “É evidente que precisa ter crescimento econômico, liberação de crédito, superar a agenda negativa do ajuste fiscal e entrar em uma agenda positiva de promoção de empregos e renda e tudo o mais, pois não dá para ficar apenas esperando para ver o que vai acontecer com a economia”, afirma o secretário municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, Artur Henrique, ao analisar os impactos do ajuste fiscal no cotidiano do município e na arrecadação. Para ele, um das formas de enfrentar os impactos negativos da macroeconomia é atuar na micro. 24
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o na cidade Nessa perspectiva, Artur defende que a gestão municipal direcione esforços para promover o acesso à cidadania por meio do trabalho. “O prefeito Haddad sancionou um decreto de compras públicas, que permite que o enorme potencial da prefeitura, de R$ 16 bilhões anuais para se contratar serviços, obras ou adquirir produtos, seja um dos vetores de desenvolvimento. Compras da prefeitura de até R$ 80 mil serão feitas exclusivamente de micro e pequenas empresas, ou cooperativas, e acima desse valor você tem de ter uma cota de 25% para micro e pequenas empresas”, afirma. A prefeitura prepara também a inserção de empreendimentos de economia solidária nas compras públicas. “Temos, por exemplo, 2 mil costureiras cadastradas nos programas da nossa secretaria. Essas costureiras vão constituir uma cooperativa, que vai poder participar de um processo de licitação para uniformes da guarda municipal”, diz. Como o ajuste no país atinge a cidade?
O ajuste afeta o Brasil como um todo, e a cidade está dentro dessa perspectiva. A redução, não só do crédito, mas também dos empregos, está demonstrando as consequências para os trabalhadores. Daí a importância de iniciativas que enfrentem essa situação. É evidente que você precisa ter crescimento econômico, liberação de crédito, superar a agenda negativa do ajuste fiscal e entrar em uma positiva, de crescimento, que produza emprego, renda e tudo o mais, pois não dá para ficar apenas esperando para ver o que vai acontecer com a economia. A centralidade do trabalho no modelo de desenvolvimento da cidade de São Paulo abarca três pilares: emprego formal, apoio a micro e pequenos empreendedores e economia solidária. No primeiro, trabalha-se com a possibilidade de promover o encontro das empresas com quem procura as vagas. Temos uma situação no Brasil em que infelizmente grande parte das empresas ainda não utiliza o sistema público de emprego. Preferem gastar com recrutamento e seleção privada, quando poderiam utilizar o sistema público. Você se refere a essas agências ligadas ao Ministério do Trabalho, e que atuam em conjunto com estados e municípios, integrados a programas de qualificação e outros?
Sim. E também com a própria área de treinamento e RH das empresas. É preciso superar um certo preconceito do setor empresarial. Por exemplo, na cidade de São Paulo temos no Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo (CATe), nesta semana (início de novembro), muitas vagas até R$ 2.500, e algumas para R$ 5.000 ou R$ 6.000. É muito pouco diante da possibilidade de, mesmo em situação de crise, oferecer vagas de qualidade via sistema público. O segundo pilar é apoiar o empreendedorismo, o microempreendedor individual e a autonomia econômica, ou seja, aquele que não pretende voltar a procurar emprego formal e quer mudar de vida, buscar seu próprio negócio. Trabalhamos com a possibilidade de dar assessoria jurídica, técnica, contábil, microcrédito e de gestão de plano de negócios. Temos parcerias com Sebrae, Caixa Econômica, Banco do Brasil... Esse trabalho é feito junto à Agência São Paulo de Desenvolvimento, vinculada à nossa secretaria. E como isso é feito na prática?
O prefeito Haddad sancionou um decreto de compras públicas como investimento social, que permite que o enorme potencial de compras e contratações da prefeitura, de R$ 16 bilhões anuais em serviços, obras ou produtos, seja um dos vetores de desenvolvimento do empreendedorismo. As compras da prefeitura de até R$ 80 mil serão feitas exclusivamente com micro e pequenas empresas, ou cooperativas, e acima desse valor há uma cota de 25% para micro e pequenas empresas. Além disso, temos uma margem de preferência de 10% a mais do valor da compra para aquelas micro e pequenas empresas ou cooperativas nas áreas consideradas prioritárias na cidade. Isso representa o quê? Que nos locais, principalmente na zona leste e na zona sul, onde você tem grande concentração da população, mas pouca vaga de emprego, será incentivado que as pessoas possam fornecer produtos e serviços para a prefeitura. Uma hipótese: se você tiver em São Miguel Paulista, na zona leste, uma lojinha de ferragens que venda parafuso para uma obra da prefeitura 10% mais caro do que a Leroy Merlin lá da Marginal Tietê, na zona oeste, isso vai ser mais eficiente para a economia local?
Quem mais reclama da carga tributária é quem não precisa de serviços públicos. O presidente da Fiesp, por exemplo. Quando se baixam os impostos, como foi feito pelo governo Dilma, não se vê um empresário abaixar o preço
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É por aí. Ele vai gerar o desenvolvimento local e essa renda vai propiciar que ele contrate mais alguém. É a possibilidade de o recurso ser gasto na compra de alimento no mesmo bairro, é o fortalecimento do desenvolvimento local como uma maneira de superar a crise. Isso é importante em uma cidade com R$ 16 bilhões de potencial de compras. A gestão do Haddad fez a política, aprovamos o decreto, nossa secretaria articulou com outras secretarias. O próximo passo é a Agência São Paulo de Desenvolvimento organizar os micro e pequenos para que se capacitem para participar desses processos licitatórios. Estamos falando de um segmento que responde por quase 90% dos empregos. Às vezes, a gente olha para as grandes empresas, empreiteiras, elas são importantes, mas são minoria na fatia de empregos formais. Então, fortalecer as pequenas tem potencial de enfrentar essa crise. E o terceiro...
O terceiro pilar é a economia solidária, que queremos transformar em possibilidade econômica real, em um modelo de desenvolvimento. O próximo passo que vamos dar será usar os empreendimentos da economia solidária para as compras públicas. Temos, por exemplo, 2 mil costureiras cadastradas em programas da nossa secretaria. Além de participar dos programas de formação que estamos promovendo, elas vão se constituir numa cooperativa, que vai poder participar de um processo de licitação para uniformes da guarda municipal. Construir essa estratégia dá a possibilidade de fortalecer a economia solidária. Foi também inaugurada, no início de novembro, a primeira incubadora pública da cidade, dentro do Centro Público de Direitos Humanos e Economia Solidária. A incubadora reúne setores econômicos como gastronomia, reciclagem, confecção, economia criativa, artesanato... Que estão se organizando e serão incubados durante períodos de 12 meses. Há uma bolsa para que as pessoas tenham condição de sobrevivência, recebam qualificação e, ao mesmo tempo, a gente está fazendo política pública para eles terem condição de viver do próprio esforço.
Como está a questão do trabalho no programa De Braços Abertos?
É um grande desafio nosso a inclusão social dos beneficiários do programa – dependentes de crack – no trabalho. Estamos falando de uma população que tem acompanhamento, primeiro, da saúde, depois, da assistência social. Há muitas oscilações em uma semana. Nós temos as pessoas que estão no artesanato, na fábrica verde, é um acompanhamento diário, porque a pessoa pode ter recaídas. Na sexta-feira ela recebe a bolsa, aí vem algum traficante querer pegar o dinheiro e a alicia a consumir... Lá na incubadora tem algumas pessoas que estão em uma outra fase, deixaram de consumir, estão mexendo e vendendo seu artesanato. É um caso, uma exceção, de o Estado se fazer presente para esse público vulnerável ao crime e à droga sem que seja por meio da polícia... 26
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Precisamos garantir emprego próximo ao local de moradia. Hoje, as pessoas se deslocam pela cidade inteira para trabalhar. É preciso incentivar essa proximidade Sim, e isso é uma estratégia nova. Eu costumo dizer que as gestões anteriores faziam as pessoas sumirem – você descia o cacete com a polícia, espalhava a população pela cidade, fazia as pessoas irem para baixo de viaduto, enfim, ficarem escondidas pela cidade. Isso era feito como se tivessem atacando o problema. O De Braços Abertos é diferente, não é uma internação compulsória, nem há obrigatoriedade de botar a polícia para “higienizar” o bairro, ao contrário, trabalhamos com a perspectiva de redução de danos, com acompanhamento, de fazer com que a pessoa diminua o consumo e possa entrar no mercado de trabalho. É um objetivo de longo prazo, não adianta querer resultados rápidos. E esse curto prazo não precisa do trabalho da polícia para coibir o tráfico?
Essa é a grande questão. Estamos vendo uma redução do efetivo policial quando deveria ter, junto à ação da prefeitura, uma ampliação da prisão de traficantes, que é o papel da polícia. Não é o papel da prefeitura ou da Guarda Civil pegar um traficante. Então, essa é a perna que falta. Você percebe que o número de veículos diminuiu, o número de PMs diminuiu, então, é uma decisão do governo do estado retirar a polícia daquele local que mais precisa.
O plano diretor atribui à sua secretaria pensar a distribuição de postos de trabalho na cidade. Como é esse desafio?
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O plano diretor coloca como estratégia para os próximos anos o desenvolvimento econômico e social. Primeiro, precisamos superar a situação e garantir emprego próximo ao local de moradia. Hoje, as pessoas se deslocam pela cidade inteira para trabalhar. Para isso, você precisa ter um plano diretor que incentive essa proximidade. Pouca gente sabe que nós temos uma política de incentivo para as empresas se deslocarem à zona leste, com IPTU grátis, ISS menor, 2% em vez de 5%. Mas o limite que temos é que é preciso ter um governo de estado articulando junto com a prefeitura programas de incentivo relacionados também ao ICMS. A prefeitura tem governabilidade sobre o IPTU e ISS, não sobre ICMS. A falta de políticas locais de desenvolvimento explica um pouco a redução da participação de São Paulo no PIB nacional, de 37% para 28% em 20 anos?
Você tem uma nova estrutura produtiva sendo montada há alguns anos no estado de São Paulo que se desloca da indústria para serviços e comércio, o que para nós é importante. Mas estamos falando de uma indústria que agrega mais valor com empregos de mais qualidade, e a fragilização desse setor leva a essa situação no estado. Acompanhar o legado da construção da Arena Corinthians para a economia na região de Itaquera está também na sua rotina de trabalho?
Eu, como palmeirense (risos), sou responsável pela assinatura dos CIDs, os Certificados de Incentivo ao Desenvolvimento. As empresas daquela região da zona leste podem adquirir esses certificados e descontam o valor no pagamento dos impostos. Isso é um mecanismo contábil posto em vigor na gestão anterior e ao qual demos continuidade. Já no caso de Parelheiros, por exemplo, no extremo sul, nós também temos uma área de incentivo, ligada à segurança alimentar e nutricional, com os trabalhadores da agricultura familiar. E também incentivamos cooperativas, o turismo, por meio desse decreto mais recente do prefeito de estimular empresas que forem pra lá. Estamos falando de hotéis, pousadas, agências de turismo, tudo isso voltado a promover emprego e renda. Em Itaquera, quando o estádio foi concebido, falava-se que a vocação para a área ali seriam as empresas de telemarketing. Essa avaliação ainda é mantida?
Algumas empresas de telemarketing, dentro desse
programa de incentivo, já se deslocaram para lá. Você tem também a IBM, que está adquirindo um terreno e deslocando uma das suas áreas para Itaquera. A gente quer ampliar não só para serviços, mas para a indústria, para maior valor tecnológico. Por isso, um parque tecnológico está em vias de formatação para que seja constituído na zona leste. As pessoas acham que já pagam muitos impostos e não têm retorno.
Mas quem mais reclama que a carga tributária é alta é quem não precisa de serviços públicos. O presidente da Fiesp (Paulo Skaf), por exemplo, não utiliza o SUS, nem escola pública, nem segurança. Quando se baixam os impostos, como foi feito pelo governo Dilma, não se vê um empresário abaixar o preço. Só aumenta a margem de lucro. Nosso problema não é 35% de carga tributária, se você comparar com outros países. O que o Paulo Skaf quer é que a gente se transforme em uma El Salvador ou em uma Nicarágua, onde temos 5% ou 6% de impostos e não há nenhum serviço oferecido para a população. E aquele projeto do Arco do Futuro, apresentado como promessa de campanha, que previa repensar o desenvolvimento da cidade nos eixos dos rios Tietê e Pinheiros, que concentram antigas áreas industriais?
Acabou transformado, com a aprovação do Plano Diretor. O chamado Arco do Futuro, que são eixos de desenvolvimento para a cidade previstos pelo PDR (Plano Diretor de Regionalização), pega toda aquela parte da Avenida Jacu-Pêssego (zona leste) para trabalhar. Há muitas coisas a serem feitas: 70% do comércio e das residências precisam ter a regularização fundiária. Temos de fazer uma legislação mais fácil para quem já está ali e, no caso de um comércio, regularizar também seus trabalhadores. Para dar um exemplo: estamos elaborando um decreto, chamado decreto de centros comerciais de interesse social. Hoje, é comum quando se constroem condomínios, inclusive Minha Casa, Minha Vida, ter aquele espaço com boxes em que podem ser montados estabelecimentos comerciais. Pela legislação atual, a Secretaria do Trabalho teria de fazer uma licitação aberta à cidade inteira para montar um hortifrutigranjeiro embaixo de um prédio de apartamentos populares na zona leste. O que vai fazer o decreto? Vai dizer que em primeiro lugar está o desenvolvimento local. Portanto, nós vamos fazer uma licitação local, restrita àquela região. Incentivar quem já está. Parece simples, mas nunca foi feito. Temos de incentivar que a política, o marco regulatório, seja adaptado a esse novo modelo de investimento.
As micro e pequenas empresas respondem por quase 90% dos empregos. Às vezes, a gente olha para as grandes, elas são importantes, mas fortalecer as pequenas tem potencial de enfrentar essa crise
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O Brasil dos jatos e o Brasil da Lava Jato Neste singular momento da vida nacional, o país está dividido, cada vez mais, em dois que parecem não compartilhar a mesma realidade ou o mesmo território
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Seria bom se o Brasil da Lava Jato se concentrasse em prender os corruptos, aqueles com milhões de dólares em contas na Suíça, e não em libertá-los – como está fazendo com o Sr. Paulo Roberto Costa 28
ara o Brasil da Lava Jato, do impeachment, da mídia seletiva e conservadora, o que defende a volta da ditadura, a tortura e a quebra do Estado de Direito, este é um país podre, quebrado, mergulhado até o talo na corrupção, política e economicamente inviável até não poder mais. Para o Brasil dos jatos Gripen, cuja transferência de tecnologia a presidenta Dilma Rousseff foi negociar em outubro na Suécia, o Brasil da Força Aérea, da Aeronáutica, do Exército, da engenharia, da indústria bélica, da indústria pesada, da indústria naval, da indústria de energia, do petróleo e do gás, do agronegócio, da mineração, este é o país que, mesmo com todos os seus problemas, depois de anos e anos de abandono e estagnação, pagou a dívida com o FMI; voltou a pavimentar e a duplicar rodovias; retomou obras ferroviárias e hidroviárias; retomou a produção de navios e passou a fabricar plataformas de petróleo, armas, satélites, sistemas eólicos, mergulhando, na última década, em dos maiores programas de desenvolvimento de sua história. Seria bom se o Brasil da Lava Jato se concentrasse em prender os corruptos, aqueles com milhões de dólares em contas na Suíça, e não em libertá-los – como está fazendo com o Sr. Paulo Roberto Costa, dispensado até mesmo de sua prisão domiciliar –, no lugar de manter aprisionados, arbitrariamente, quase que indefinidamente, dirigentes de partido sem nenhum sinal ou prova de enriquecimento ilícito e executivos de nossas maiores empresas. A maioria delas ligada, direta ou indiretamente, a um amplo e diversificado programa de rearmamento e infraestrutura que engloba a construção de nossos novos submarinos convencionais e atômicos; de nossos novos caças Gripen NG BR; do nosso novo avião cargueiro militar multiuso KC-390 – a maior aeronave já fabricada no Brasil; de 1.050 novos tanques blindados Guarani; de nossos novos rifles de
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assalto IA-2; de nossos novos sistemas de mísseis de saturação e de cruzeiro, como o Astros 2020 e o AVTM-300 da Avibras – com alcance de 300 quilômetros; de nossos novos mísseis ar-ar como o A-Darter; de nossos novos radares como os Saber; de nossos novos e gigantescos complexos petroquímicos e refinarias de petróleo, como Abreu e Lima e Comperj; de nossas novas plataformas de petróleo com capacidade para produção de centenas de milhares de barris de óleo por dia; de nossas novas e gigantescas usinas hidrelétricas, como Jirau, Santo Antônio e Belo Monte – a terceira maior do mundo; de nossa nova frota de navios da Transpetro, do tipo Panamax, com capacidade de transporte de 650 mil barris de combustíveis cada um; de nossas novas embarcações de guerra, que voltamos até mesmo a exportar; de nossos novos satélites de comunicações; ou de portentosas obras de engenharia como a ponte sobre o Rio Negro, em Manaus, e a ponte Anita Garibaldi, em Laguna, Santa Catarina. Esse é o Brasil da estratégia, do longo prazo, que a mídia conservadora nacional optou, há muito tempo, como fazem os ilusionistas das festas infantis, por esconder com uma mão, enquanto mostra como uma grande novidade, com a outra mão, o Brasil de uma “crise” e de uma “corrupção” seletiva e repetidamente exageradas e multiplicadas ao extremo. Há um Brasil que deveria estar acima das disputas político-partidárias, que cabe preservar e defender. Quem quiser fazer oposição precisa, se quiser chegar ao poder, mostrar, com um tripé baseado no nacionalismo, na unidade, e no desenvolvimentismo, que estará comprometido com o prosseguimento desses programas, fundamentais para o futuro da Nação. Com todos os seus eventuais problemas, que podem ser solucionados sem dificuldades, eles conformam um projeto de Nação que não pode ser interrompido, cuja sabotagem e destruição só interessa aos nossos inimigos, muitos dos quais, do exterior,
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tão da corrupção sem partidarismo e seletividade, preparando-se para o pleito do próximo ano, já que não há melhor lugar do que uma urna para que o desejo e a determinação – e até mesmo a eventual indignação – de um povo livre, civilizado e democrático possam se manifestar. Seria bom, muito bom, se o Brasil da Lava Jato, o do impeachment, o de quem defende uma guerra civil e o “quanto pior, melhor” permitisse, em benefício do futuro, da soberania e da economia nacional, que o Brasil dos jatos Gripen, da oitava economia do mundo, dos US$ 370 bilhões de reservas internacionais, de uma safra agrícola de 200 milhões de toneladas, o terceiro maior credor individual externo dos Estados Unidos – e que pertence não a um ou a outro partido, mas a todos os brasileiros – pudesse continuar a trabalhar.
PASSO PARA O FUTURO A presidenta Dilma na cabine de um jato Gripen: transferência de tecnologia
ROBERTO STUCKERT FILHO/PR
se regozijam com o atual quadro de fragmentação e esgarçamento da sociedade, antevendo o momento em que retomarão o controle de nosso destino e o de nossas riquezas. Seria bom que o Brasil da Lava Jato – considerando-se os que comandam a operação homônima – trabalhasse com responsabilidade e cidadania em sua missão, separando o joio do trigo, prendendo quem tiver de prender, mas evitando, no lugar de incentivar, os danos colaterais para empresas e projetos estratégicos que empregam milhares de pessoas, nos quais já foram investidos bilhões e bilhões de dólares – protegendo e não arrasando, como já está ocorrendo, parte da indústria pesada e da engenharia nacionais. Seria bom se o Brasil da Lava Jato – considerando-se os que torcem pela “operação” – tratasse a ques-
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A PARTILHA D Dieese foi criado há 60 anos por sindicatos desconfiados dos índices oficiais. Tornou-se caso único de convivência entre diferentes visões políticas, em nome do conhecimento a serviço dos trabalhadores Por Vitor Nuzzi
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NO ESCURO Greves dos bancários, têxteis, gráficos, marceneiros e metalúrgicos, entre 1951 e 1954, levaram à constatação: sindicatos precisavam de números confiáveis para negociar
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JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM/1979
A NOITE, 06/07/1951. ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO
m 18 de setembro, um grupo de 24 alunos recebeu o certificado de conclusão de curso superior em Ciências do Trabalho. Era a formatura da primeira turma organizada pelo Dieese, iniciada em 2012, completando um percurso histórico de 60 anos. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos foi criado em dezembro de 1955 com a ideia, entre outras, de ser um centro de estudos e formação, aproximando-se da academia, mas tendo como base o mundo do trabalho. Completadas seis décadas, o instituto consolidou-se no cenário econômico como referência de análise. Para isso, teve de superar obstáculos políticos e financeiros. A convivência entre técnicos e dirigentes sindicais teve momentos ásperos, mas o Dieese conseguiu equilibrar-se entre o rigor científico e o atendimento a demandas, cada vez mais complexas, dos sindicatos. Paraninfa da turma, a socióloga Heloísa Helena de Souza Martins, diretora técnica do Dieese de 1966 a 1968, falou aos formandos sobre a conjuntura em que o instituto foi criado: “Explicar os dilemas de uma sociedade envolvida com o projeto desenvolvimentista com ênfase no processo de industrialização era o desafio dos intelectuais e pesquisadores comprometidos com a ideia da superação das desigualdades e injustiças sociais”. E destacou a figura do primeiro diretor, José Albertino Rodrigues, que alimentava uma utopia socialista, mas também defendia a necessidade de uma “compreensão científica da realidade brasileira”.
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A DO SABER
CONTRAPONTO Durante os anos de hiperinflação, e índices manipulados pelo governo, o Dieese fez a diferença
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TRABALHO Heloísa Martins recorda de momentos tensos, quando chegou a ouvir de um dirigente: “Não vim aqui para ter aulinha de estatística. Quero discutir o nosso reajuste”
Lenina Pomeranz: “A gente tinha muito apoio do núcleo duro”
Walter Barelli: “Tem uma coisa que ninguém tira do Dieese, que é a característica técnico-científica”
FOTOS: ACERVO IEA/USP (LENINA); ALEXANDRE MACHADO (HELOÍSA); MARCIA MINILLO/RBA (BARELLI)
“Ouça o que eles (sindicalistas) falam, observe o comportamento”, foram recomendações que a socióloga Heloísa, indicada a Albertino pelo professor Azis Simão, recebeu ao chegar ao Dieese, “o primeiro que levou a discussão do sindicalismo para a universidade”. E lembra de uma conversa com Azis: se a universitária queria estudar o movimento sindical, deveria aproveitar a oportunidade para conhecê-lo “por dentro”, conviver com as questões do dia a dia. “Pude compreender, então, que antes de se constituírem como problemas teóricos, eram problemas sociais”, disse a paraninfa aos formandos. Ela chegou para ajudar a calcular o Índice do Custo de Vida (ICV) na cidade de São Paulo. Eram duas pessoas para fazer coleta de preços em feiras livres e centros comerciais. Professora doutora aposentada e colaboradora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Heloísa observa que desde o começo Albertino enfatizava a importância da objetividade e do critério científico. O instituto deveria produzir conhecimento para sustentar a prática.
Desmascarar
A inflação também está na gênese da criação do Dieese. Era tempo de grandes greves e negociações, e os sindicalistas desconfiavam do índice oficial, na época calculado pela prefeitura paulistana. Fundador do instituto, o dirigente bancário Salvador Losacco contou – em depoimento de 1987 ao pesquisador Miguel Chaia – que a ideia era formar um organismo que estudasse e calculasse o custo de vida, inclusive para “desmascarar” o índice oficial. As primeiras conversas nesse sentido surgiram no Pacto de Unidade Intersindical (PUI), formado nos anos 1950. “O Dieese é fruto desse pacto”, diz o sociólogo Fausto Augusto Júnior, autor de uma dissertação de mestrado, em 2010, para a Faculdade de Educação da USP, justamente sobre o ICV como “produção de conhecimento” entre 1955 e 1964. Primeiro, houve uma apropriação do conhecimento produzido pela ciência histórica. E a aproximação entre intelectuais e sindicalistas avançou à medida que o ICV adquiriu solidez. “A ideia de ‘perda salarial’ e ‘reajuste necessário’ contribuiu para se revelar o constante arrocho salarial sofrido pelos trabalhadores, transformando assim o ICV/Dieese em instrumento de 32
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denúncia e bandeira de luta política contra a carestia”, escreve Fausto na dissertação. Ao analisar os boletins daquele período de dez anos (1955/1964), o técnico – que hoje atua na subseção do Dieese no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – nota as tentativas de “fazer a migração de um texto acadêmico para o sindical”. Assim, o instituto foi conquistando campos de negociação, observa Fausto. E atuando em diversas frentes. Enquanto isso, muitos dirigentes sindicais tornaram-se gestores públicos. “Isso demanda mais conhecimento.” A economista Lenina Pomeranz, professora na Faculdade de Economia e Administração da USP, lembra dos primeiros tempos, em uma sala “grande, mas escura” e com uma máquina Olivetti chamada de “jacaré, muito barulhenta e grandona”. Além do ICV, o Dieese começou a organizar um fichário de empresas, analisando os balanços que saíam nos jornais, o que representava um subsídio a mais na mesa de negociação. Apesar de alguma incompreensão por parte dos sindicalistas em relação à importância da estatística, Lenina avalia que a relação com os dirigentes era de intercâmbio e confiança. “A gente tinha muito apoio do núcleo duro.” Diretora técnica a partir de 1962, no lugar de Albertino, ela saiu em setembro do ano seguinte, para fazer um curso na Polônia. Só voltaria em 1967. Heloísa Martins recorda momentos mais tensos, como em uma reunião sobre política salarial em que um dirigente lhe disse: “Não vim aqui para ter aulinha de estatística. Quero discutir o nosso reajuste”. Ou quando convocou uma reunião para um domingo de manhã, incluindo trabalhadores da base, em São Paulo. “Técnico não fala com trabalhador, fala com dirigente. Nós falamos com trabalhador”, ouviu. Também não era incomum reclamarem do índice de inflação apurado, argumentando que determinado produto estava aumentando muito de preço.
Científico
A ata de fundação do Dieese foi assinada às 20h30 de 22 de dezembro de 1955 por 19 entidades, no sétimo andar do Edifício Martinelli, centro de São Paulo, prédio onde ficava a sede do Sindicato dos Bancários – e para onde a entidade voltou em 1993. Teve dezenas de presidentes, mas apenas seis diretores técnicos. Entre eles, ninguém permaneceu mais tempo do que o economista Walter Barelli, cujo nome se confunde com a
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Zenaide Honório destaca o papel do conselho formado pelas centrais: “Acho que mostrou a importância do Dieese e o papel que desempenha no movimento sindical”
instituição. “Tem uma coisa que ninguém tira do Dieese, que é a característica técnico-científica”, diz Barelli, que permaneceu 22 anos à frente da direção técnica, de 1968 a 1990. Formado em Economia na USP em 1964, ele não teve formatura, porque a cerimônia ocorreria justamente no dia do golpe e havia um carro de combate diante da faculdade – ele seria o orador. Essa conduta técnica às vezes provocava queixas. Convidado por Heloísa para trabalhar no instituto, Barelli lembra que muitas vezes o índice de inflação calculado pelo Dieese era inferior ao oficial. “E era dureza falar para o dirigente sindical. Você tem de ser fiel à metodologia.” No final dos anos 1950, conta, o ICV passou a ter três faixas, conforme a renda familiar, padrão mantido até hoje. Diretor técnico de 1990 a 2003, o economista Sérgio Mendonça também testemunhou algumas crises internas por causa do resultado das análises feitas pelo instituto. Como no Plano Cruzado, em 1986, quando o Dieese apontou aspectos negativos e positivos e recebeu críticas dos sindicalistas, principalmente da CUT, mas também da então CGT. Dizer que o Plano Real, lançado em 1994, seria duradouro “incomodou muita gente”, lembra Sérgio. “Havia um movimento mundial de estabilização das economias. Não era muita novidade imaginar que o Brasil também se estabilizaria, como aconteceu.” Também houve algum atrito quando algumas entidades resolveram criar seus próprios departamentos econômicos. “Acho que hoje essa tensão está superada”, avalia o ex-diretor, atualmente secretário de Relações de Trabalho do Ministério do Planejamento.
Diversidade
A recomendação para os técnicos sempre foi a de não externar posições políticas. Já a direção sindical procurou blindar o instituto de posições partidárias. Dirigente pré-1964, Luiz Tenório de Lima, o Tenorinho, integrante do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), atestou essa preocupação em depoimento ao próprio Dieese, dez anos atrás. “Nunca aceitamos – inclusive eu não aceitei, mesmo como dirigente do Partido Comunista, reagi e não permiti, como outros companheiros não permitiram – que um partido comunista instrumentalizasse o Dieese, fizesse dele, vamos dizer assim, um trampolim político para certas ocasiões. Nós nunca fizemos isso para garantir a unidade daqueles que vinham com o Dieese.”
Clemente Ganz Lúcio: “Há um esforço de ser sempre muito transparente, mostrar a metodologia”
Barelli também se recorda de uma recomendação feita por Albertino: “Não deixe os dirigentes sindicais perceberem qual é a sua tendência política, senão eles perdem o respeito”. Autor do livro Intelectuais e Sindicalistas – A Experiência do Dieese, Miguel Chaia afirma na obra que o instituto nasceu de uma consciência operária: só os trabalhadores poderiam promover o conhecimento de sua situação. “Escudando-se no binômio ciência-trabalho, cria sua própria natureza e evita confrontos ideológicos e partidários, quando referentes à diversidade da classe trabalhadora”, escreveu. O pesquisador lembra ainda que a conquista da legitimidade tornou o Dieese referência não apenas para o mundo sindical, mas para vários setores da sociedade. Com turbulências, o departamento conseguiu estabelecer uma relação de equilíbrio entre as diversas forças políticas que o sustentam. O atual diretor técnico, Clemente Ganz Lúcio, no cargo desde 2003, diz que há clareza sobre o papel do instituto: “O propósito da instituição é ser uma assessoria técnica. Nossa posição tem uma influência, mas não é deliberativa. Há um esforço de ser sempre muito transparente, mostrar a metodologia”. Além disso, existe um acordo político para que as disputas sindicais não se reflitam no Dieese. Um conselho formado por oito centrais sindicais, com três representantes de cada, ajusta a dar essa sustentação e tornar o departamento uma espécie de território neutro. “Acho que isso mostrou a importância do Dieese e o papel que desempenha no movimento sindical. Facilitou o diálogo com as centrais”, afirma a presidenta do instituto, Zenaide Honório, diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp). A presidência é ocupada em sistema de rodízio: a cada mandato – o atual vai até 31 de janeiro de 2017 –, revezam-se dirigentes da CUT e da Força Sindical. Em termos históricos, pode-se dizer que de alguma maneira essa alternância ocorreu desde o princípio: Salvador Losacco (Bancários de São Paulo) foi o primeiro presidente e Remo Forli (Metalúrgicos de São Paulo), o sucessor.
Sobrevivência
Se a questão política foi relativamente resolvida, a financeira continua sendo um problema. Barelli se refere a um “padrão Dieese” de resistência a crises. “O Dieese sempre viveu com REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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FOTOS: VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL (SÉRGIO); JORDANA MERCADO (ZENAIDE); SECRETÁRIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (CLEMENTE)
Sérgio Mendonça: “A grande escola é o trabalho coletivo”
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ALEXANDRE MACHADO
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FESTA Formatura da primeira turma do curso superior de Ciências do Trabalho: instituto pensado para produzir conhecimento
dificuldades financeiras”, diz Sérgio Mendonça, que nos anos 1990 passou por um período doloroso, com corte de áreas e demissões. “Estou aqui há mais de 30 anos. Não tem tempo fácil”, acrescenta Clemente. “O Dieese tem um equilíbrio de longo prazo, operado por um desequilíbrio recorrente permanente. O nosso grande problema é o padrão de financiamento de curto e médio prazo.” As receitas do Dieese vêm das entidades filiadas e de convênios com órgãos públicos, como o que mantém a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), um dos vários estudos permanentes do instituto, junto com o que apura o custo da cesta básica, o poder real de compra do salário mínimo e o comportamento das negociações salariais. A relação varia – este ano, 60% da receita deve vir do movimento sindical. O momento econômico difícil causa preocupação. “Vamos trabalhar para
atravessar essa crise sem tormentas”, diz Zenaide. Durante a ditadura, houve uma tentativa do governo de sufocar financeiramente o Dieese. Segundo Barelli, o ministro Julio Barata (à frente da Pasta do Trabalho no pós AI-5) reuniu os delegados regionais e determinou que os sindicatos não podiam contribuir para o instituto – na época, a contabilidade das entidades tinha de ser aprovada pelo Ministério do Trabalho. Os sindicalistas conseguiram driblar a medida. Chaia anota, em seu livro, que nos anos 1970 um sindicalista ligado à Arena (partido da ditadura), Orlando Malvezi, foi eleito deliberadamente para a presidência “como tática para evitar as crescentes pressões contra a instituição e os ataques contra os técnicos”. Até hoje, o instituto não tem sede própria. A atual, no centro de São Paulo, pertence ao poder público. A estrutura compreende 64 subseções – escritórios atuantes em entidades sindicais – em nove estados, 18 escritórios regionais e 342 funcionários, sendo aproximadamente 200 técnicos, dos quais 150 economistas. “A grande escola do Dieese é trabalhar técnica e coletivamente”, define Sérgio Mendonça. “É uma escola de formação. A gente aprendeu a trabalhar para a classe trabalhadora.” Com o tempo, a pauta também se ampliou, observa o economista. “Nos anos 50, 60, quando o inimigo da classe trabalhadora era a inflação, o Dieese atuava quase monotematicamente. Hoje é uma agenda voltada para as políticas públicas. É uma sociedade bem mais complexa.” As demandas contemporâneas levaram à criação da escola do Dieese, um sonho antigo. “É um campo de conhecimento não clássico, mas interdisciplinar, trazendo o escopo de produção do Dieese”, diz Clemente. Com isso, também se combate uma visão de que o trabalho é um simples recurso, um insumo, desconsiderando o fator humano. “O conflito básico (as relações capital-trabalho) não é mais objeto de atenção.” Para ele, isso se reflete na academia tradicional, que já teria dedicado mais espaço ao estudo desse universo.
Consciência a partir da realidade Um episódio que deu visibilidade – e credibilidade – ao Dieese aconteceu no segundo semestre de 1977. Na edição de 31 de julho, o jornal Folha de S.Paulo publicou um relatório do Banco Mundial, revelando que o índice oficial de inflação no Brasil em 1973 (perto de 15%) não era válido – os preços no atacado teriam variado, na verdade, 22,5%. O indicador que mais se aproximava da realidade era o do Dieese (26,7%). Imediatamente suspeitou-se de manipulação. O ministro da Fazenda na época era Delfim Netto. 34
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No dia seguinte ao da publicação da reportagem, uma segunda-feira, Barelli conta que recebeu dois telefonemas: dos presidentes do Sindicato dos Bancários de São Paulo (Francisco Teixeira) e do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (atual ABC), Luiz Inácio da Silva, o Lula. Queriam que o Dieese calculasse as perdas causadas pelo fato de o índice oficial ter subestimado a inflação. “Choveu pedido do país inteiro. Foi importante para criar um fator mobilizador para o movimento sindical.” Aquele fato impulsionaria as
campanhas salariais do ano seguinte. Dias depois de divulgado o relatório, o ministro Mário Henrique Simonsen foi à Câmara dos Deputados falar do assunto. Em setembro, ele e seu colega do Planejamento, Reis Velloso, se reuniram com sindicalistas. O empresário Herbert Levy, filiado à Arena e na ocasião dono do jornal Gazeta Mercantil, chegou a comentar que “o tal do Dieese” é que estava certo. Para Barelli, o instituto ajudou a criar “uma consciência de perdas, de espoliação, usando os dados da realidade”.
Em 1990, o Dieese viveu outro confronto, já no governo Fernando Collor. O então porta-voz da Presidência da República, Cláudio Humberto, questionou cálculos do Dieese sobre a inflação, tentando desqualificar o instituto ao lembrar que Barelli, então licenciado, trabalhava na assessoria econômica do candidato Lula. A ilação provocou uma reação indignada do economista: “O movimento sindical tem a sabedoria de nunca pedir para que o Dieese manipule. A classe operária é muito mais digna do que os governantes”.
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EMIR SADER
A Guerra Fria do século 21 O fortalecimento do bloco Rússia-China, mesmo em inferioridade militar, econômica e tecnológica, projeta para a primeira metade do novo século uma nova configuração de poder no mundo
“É
a mais significativa virada nas re- taurou o clima da nova Guerra Fria. As represálias lações entre as grandes potências econômicas das potências ocidentais contra a Rússia desde o colapso da União Sovié- causam danos reais a esse país, que reciclou compras tica”, confessa a revista The Econo- de produtos agrícolas da Europa para a América Lamist em editorial, depois de enun- tina e faz um movimento estratégico fundamental de ciar que a dominação norte-americana está sendo acoplamento da sua economia à da China, enquanto desafiada, com capa em que jogam cartas os chefes revela seu novo poderio militar na Síria. de Estado dos Estados Unidos, da Rússia e da China. Foi-se configurando um bloco que questiona a A operação militar russa na Síria e os acordos a que hegemonia do bloco ocidental dirigido pelos Estaos norte-americanos foram obrigados a chegar para dos Unidos, tanto no plano econômico como polítentar evitar choques entre seus bombardeiros e os tico e militar. Os Estados Unidos continuam sende Moscou terminam de constituir a do potência hegemônica no mundo, ideia de que há uma nova Guerra Fria mas ficou para trás – como constata em curso. A Rússia intervém num The Economist – o período de cerca país que considera sua área de influde duas décadas e meia de sua hegeência e empurra Washington a um monia absoluta no mundo. Hoje se acordo que formalize essa definição. pode dizer que, com o Brics (o bloco Tudo se encaminhava, há dois que reúne Brasil, Rússia, Índia, Chianos, para uma convergência de inna e África do Sul), já existe uma esteresses entre os Estados Unidos a pécie de multipolaridade econômica Rússia, quando esta, valendo-se da no mundo, com uma arquitetura disincapacidade norte-americana de tinta da de Bretton Woods – apoiada criar as condições políticas para atano FMI e no Banco Mundial – em car a Síria, conseguiu impor os meios China e Rússia desafiam a processo de construção, centrada no para o acordo. O ataque à Síria seria o hegemonia americana na sul do mundo. As alianças da Rússia capa da revista inglesa prenúncio do ataque ao Irã – sempre com a China constituem o eixo desdesejado por Israel – e da generalizasa nova configuração – que incorpoção de conflitos na região e com a Rússia. ra América Latina, ou parte dela, e parte da Ásia. O acordo abriu as portas para o entendimento com Os elementos de força do campo dirigido por o Irã – com o isolamento de Israel e Arábia Saudita Washington estão no plano militar, tecnológico e – e tudo permitia prever um tempo de mais acordos econômico, mas os próprios Estados Unidos, como entre norte-americanos e russos. De repente, explo- principalmente Europa e Japão, vítimas de prolondiu a crise na Ucrânia, um limite para a Rússia e para gada estagnação econômica e intranscendência poos Estados Unidos. A Rússia não podia permitir que lítica, estão em processo de decadência. Enquanto um país nas suas fronteiras ingressasse na Otan – fe- o bloco dirigido por Rússia-China, mesmo em inrindo os acordos assinados por Mikhail Gorbachev e ferioridade militar, econômica e tecnológica, está Ronald Reagan. Washington não podia tolerar que a em processo de fortalecimento. A primeira metade Rússia recuperasse a Crimeia impunemente. do novo século encontrará uma nova configuração Foi o estopim que reverteu aquela tendência e ins- de poder no mundo. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Histórias soterradas a ferro e lama Atingidos pelo rompimento das barragens em Minas Gerais aguardam respostas concretas. Mas nenhuma extrairá vidas, memórias, afetos que se foram Por Juliana Afonso
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omingo era dia de comer feijão com pé de porco no Bar da Una. O prato era preparado um dia antes, para pegar consistência. Enquanto a panela borbulhava, as crianças passavam pelo bar: “Ô, tia, me dá uma bala!”. O potinho de guloseimas já estava reservado. Agora, as lembranças de Darliza das Graças Azevedo, 49 anos, fazem parte do passado. Suas guloseimas, seu bar e sua casa, em Bento Rodrigues, ficaram debaixo da lama após o rompimento das barragens de rejeitos da mineradora Samarco. O desastre de 5 de novembro em Fundão e Santarém esparramou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. O mar de lama atingiu Águas Claras, Ponte do Grama, Paracatu, Pedras e Bento Rodrigues, distritos de Mariana, em Minas Gerais. A situação mais dramática foi, sem dúvida, a de Bento Rodrigues. Além das 25 vidas desaparecidas, 613 pessoas desabrigadas, alocadas em hotéis. Darliza é uma delas. “Eu queria que dessem solução para as famílias que têm criança pequena, porque no hotel tá muito difícil. As crianças tinham liberdade e aqui não dá.” No estabelecimento, cerca de 70 desabrigados ocupam os quartos. A situação é mais delicada quando se leva em conta que não houve critério de relação na divisão dos atingidos, fazendo com que familiares e amigos próximos ficassem separados. Em comunicado, a Vale – que já foi “do Rio Doce” – e a BHP Billiton, proprietárias da Samarco, se responsabilizaram pela reconstrução das casas de todos os atingidos. A prefeitura de Mariana faz reuniões com os moradores para compreender as demandas. Os de Bento Rodrigues querem que o distrito seja reconstruído em outro local. Os de Paracatu, que o distrito seja reconstruído no mesmo lugar. Enquanto as residências definitivas não ficam prontas, os atingidos serão alocados em habitações já existentes. 36
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A Samarco mapeou centenas de casas em diferentes distritos e será responsável pelo valor do aluguel. As garantias financeiras, porém, não reconstroem o Bento Rodrigues que seus moradores conheciam. “Essa foto é da praça lá. A gente sempre reunia os amigos aqui para conversar”, rememora Rosileia Martins, 30 anos, mostrando o que salvou no celular. Quem vê as fotos da tragédia de Bento Rodrigues mal consegue imaginar como era o distrito, com suas belas casas coloridas, ruas arborizadas e praças ensolaradas. Sua história remonta ao ano de 1697, quando um cabo de mesmo nome chegou em busca de riquezas. Ciente do ouro em grandes quantidades, levantou o acampamento, depois vilarejo, onde se vivia da extração do metal e da troca de mercadorias com os tropeiros. O local exibia um importante patrimônio arquitetônico, do qual faziam parte a Capela de São Bento, construída em 1718, e a de Nossa Senhora das Mercês, de meados do século 19, ainda de pé. O interior da igreja também contava com peças importantes. O artista plástico Eduardo Campos, 44 anos, foi responsável pela restauração das imagens de Nossa Senhora do Rosário, Santana Mestra, Nossa Senhora do Amparo e São Bento. Todas do século 18, todas agora debaixo da lama. “A sensação é de perda de uma parte da história, do nosso patrimônio”, lamenta. Eduardo lembra dos festejos do distrito: a Festa de São Bento, em julho, e a Festa de Nossa Senhora das Mercês, em setembro. “O pessoal de Bento é muito religioso e a comunidade inteira se mobilizava. Aconteciam novenas e procissões de bandeiras e de imagens de santos.” Era a força do trabalho dos seus moradores, no entanto, que fazia de Bento Rodrigues um local acolhedor. Valdemar Batista, 75 anos, aposentado, fala das muitas casas que ajudou a erguer
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FOTOS RICHARDSON PONTONE
ANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
O que sobrou de Bento Rodrigues
Darliza: “Eu queria que dessem solução para as famílias que têm criança pequena”
Claudia: “Lá de cima deu pra ver a lama varrendo tudo. De 200 casas, sobraram 22”
no distrito. “Teve casa construída lá que eu nem recebi dinheiro”, orgulha-se. Ao pensar no que ficou para trás, Valdemar chora pelos amigos que perdeu.
Comunidade tenta se salvar
Cada morador começa a história de um jeito. Douglas diz que caçava iscas para pescar, com o irmão, quando ouviu o barulho da lama se aproximando. Cláudia conta que estava na sala de professores quando notou a gritaria dos alunos. Darliza estava em casa. Ao saber o que estava acontecendo, começaram a correr. “Teve muitos heróis. Muitos voltavam para tirar mais gente da lama. A comunidade se salvou”, conta Rosileia. Parte dos moradores subiu para o ponto mais alto, onde ainda se encontram as últimas residências do distrito. “Lá de cima deu pra ver a lama varrendo tudo. De 200 casas, sobraram 22”, afirma a historiadora Claudia Rodrigues Novais, 51 anos, professora de Artes na escola do distrito. Ela conta que depois do primeiro momento de desespero, os moradores olhavam atô-
nitos para o que tinha acontecido lá embaixo. Alguns observavam se ainda havia algum pedido de socorro, outros gritavam pelos seus filhos e parentes desaparecidos. O corpo de bombeiros chegou sem equipamentos suficientes para resgatar pessoas e animais. Quando a lama começou a baixar, chegaram máquinas para tentar abrir passagem e levar as pessoas para o centro. O caminho só foi liberado às 8 da manhã do dia seguinte. Os atingidos tiveram o apoio dos moradores da parte de cima. Foi difícil acreditar na paisagem de lama que se erguia frente aos olhos. Os desabrigados seguem aguardando respostas concretas da prefeitura de Mariana e das empresas. Há ainda o risco de a terceira barragem de rejeitos do complexo minerador, Germano, se romper. É a maior das três. Dez dias depois da queda de Santarém e Fundão, Germano tinha uma trinca de 3 metros. Ainda assim, os atingidos defendem a continuação da atividade mineradora. “Na região de Mariana, 80% da renda vem da mineração”, afirma o estudante Douglas Elienay Santos, 18 anos. No ano passado, a Samarco pagou cerca de R$ 54 milhões em royalties pela exploração em Minas Gerais. Desse total, R$ 20 milhões ficaram em Mariana. O que a cidade recebeu não chega a 1% do lucro líquido da mineradora no mesmo ano, que foi de R$ 2,8 bilhões. Bento Rodrigues sempre foi um local humilde, com poucos recursos, e as pessoas trabalhavam com agricultura, fabricação de carvão, garimpo e outras atividades. A chegada da Samarco, em 1977, pouco alterou essa lógica. Alguns atingidos afirmam que dos quase 500 moradores menos de 20 trabalhavam na empresa, com maioria de terceirizados. Segundo cartilha feita em 2013 pela Samarco, 36% da população extraía sua renda por meio de trabalhos formais ou informais, como agricultura e outros serviços, 20% era de aposentados ou pensionistas e 17%, estudantes. Os demais são donas de casa, desempregados, contratos temporários e funcionários públicos. Havia espaço para iniciativas coletivas, como a Associação de Hortifrutigranjeiros. As mulheres que trabalhavam no local desde 2002 apostaram no plantio e colheita de pimenta biquinho e na transformação da especiaria em geleia. “A gente participava de editais e reinvestia em equipamentos. O dinheiro da venda era dividido entre nós de acordo com as horas trabalhadas”, explica Marinalva dos Santos Salgado, 43 anos. A associação produzia cerca de 500 potes de geleia por mês. Apesar de não ter produzido muitos empregos diretos para a população de Bento Rodrigues, os moradores afirmam que a Samarco ajuda o distrito com projetos e doações, como equipamento para a escola. Mas o preço a se pagar por esse tipo de empreendimento é caro. “De 2013 pra cá a gente começou a sentir falta de água. Tinha que buscar lá na bica com balde e superlitro (garrafa pet)”, afirma Darliza. Bento Rodrigues fica entre dois rios. “O Ouro Fino ainda está limpo. O pessoal vai lá para torcer roupa, lavar vasilha, mas o Gualaxo está condenado.” Esses rios fazem parte da bacia hidrográfica do Rio Doce, que neste novembro de 2015 foi vítima de um dos maiores crimes ambientais já vistos. Contra a natureza e contra a vida – e que não se sabe se voltará a existir um dia. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Onde a água é abundante.
Mas falta
No sudeste do Pará, a privatização da água pela Odebrecht caiu pesado nas contas das famílias. A escolha é pagar a conta ou cortar na alimentação das crianças Por Sarah Fernandes. Fotos Danilo Ramos
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tarde estava quente. Depois de quatro dias de viagem e de 660 quilômetros percorridos pelo sudeste do Pará, cortando latifúndios, remanescentes de florestas e pequenas vilas, uma pausa às margens do Rio Araguaia para rever o roteiro. Difícil se concentrar. Diante da imensidão de água, a exuberância da Amazônia era ofuscada 38
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pela intimidade quase paternal entre o rio e as crianças, de todas as idades e cor da pele, em meio a risadas, canções e gritinhos de alegria, que ali brincavam. Algumas estavam com os pais e mães, que pescavam ou lavavam roupa. Outras vinham sozinhas, trazendo as menores pela mão. Quem diria que a água, central na vida ribeirinha, viesse a se tornar elemento de
conflito nos municípios paraenses de São João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara? Apesar da abundância de recursos hídricos, a população passou a ter de pagar, caro, pelo bem essencial que chega às suas torneiras desde que a Odebrecht Ambiental assumiu a sua distribuição. As famílias reclamam: a conta subiu e a qualidade caiu. A saída é recorrer a fontes alternativas, mesmo arriscan-
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ÁGUA AOS MONTES Meninos se divertem no Rio Araguaia
DILEMA Rosa Maria, de São Geraldo do Araguaia: entre a água ruim da torneira e a água mineral, que não dá para todos
ABUSO CORPORATIVO Cavalete da Odebrecht: contas entre R$ 150 e R$ 300, em alguns casos para água sem tratamento REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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do a saúde das crianças. “Não há no Pará uma agência reguladora, que discuta valores com a prefeitura e a população. Eu tenho de garantir a operação da empresa, que é privada, e visa lucro. Não adianta ser hipócrita”, afirma uma das engenheiras da concessionária, que teve a identidade preservada. Só no Pará, a Odebrecht possui dez concessões de serviços de água e esgoto. No Tocantins, são 47. Em cada município há metas a cumprir, descritas nos planos municipais de água e esgoto. “A região amazônica tem riquezas como minério, terra, água. As empresas vêm com a intenção de se apropriar da água e do bem público. A lógica da Odebrecht é outra: mercantilizar a água. E para isso tem suas estratégias”, diz o integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Cristiano Medina. A Odebrecht é uma das empresas investigadas na Operação Lava Jato. Em julho, comprovantes bancários enviados pelo Ministério Público da Suíça comprovaram transferências entre contas da Odebrecht e ex-diretores da Petrobras. No mesmo mês, o juiz Sérgio Moro, responsável pelos inquéritos, aceitou a denúncia do Ministério Público Federal contra o presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, e mais quatro executivos. Ele se tornou réu, sob acusação de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa e está preso em Curitiba desde 19 de junho.
EXCESSO DE CLORO Ana Carolina, de Xinguara, tem de medicar a filha de 5 anos (acima) que está com infecção nos rins e no estômago porque tomava a água da companhia
Ou comida, ou água
A notícia da chegada de duas pessoas de São Paulo correu a zona rural do pequeno São João do Araguaia. Famílias inteiras saíam de suas casas de madeira, em quintal de terra batida, e esperaram junto às cercas de arame farpado – um modelo de construção quase que padronizado ali. Nas mãos, as contas de água dos últimos meses, com avisos de corte. No rosto, a expressão da esperança de resolver o problema que tira o sono – e o sustento – de todos eles. “Não... Nós não somos da Odebrecht.” A apresentação de repórter e fotógrafo frustra aqueles que aguardavam uma resposta da companhia. “Mas gostarí40
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O QUE VAMOS FAZER? Claudiborges: “Somos obrigados a pagar a água, mesmo sem poder. Muitas vezes tiro dinheiro da merenda dos meninos para dar conta desse gasto”
amos de conversar um instante. É possível?” Como as portas das casas que se abriam, abria-se um roteiro dramático: nas pequenas casas, sem banheiros acabados, onde habitam famílias numerosas, sustentadas basicamente com auxílio do Bolsa Família, os valores das contas de água consomem mais da metade do rendimento das famílias. “Às vezes é preciso escolher: comprar comida para as crianças ou pagar a água”, explica a dona de casa Marines Cardoso de Oliveira, que vive em um cômodo mais um banheiro inacabado, com o
marido e nove filhos, três deles com deficiência mental. Quando aparece oportunidade, faz bicos em um bar ou em alguma fazenda, por uma diária de R$ 30. “O Bolsa Família só dá para comprar comida para os meninos, e vez ou outra algo para eles vestirem. O dinheiro para a água vem do meu trabalho, que nem sempre aparece”, diz. Com uma conta de R$ 208,87, vencida há um mês, teme o corte do serviço. Com isso, o jeito é recorrer a um lago ali próximo, de onde criadores retiram água para o gado. “Já me deram aviso. Se eu não
pagar, vão cortar. Como eu vou fazer para ter água e dar de comer aos meninos?” A história se repete de casa em casa. Quem não consegue pagar recorre a fontes alternativas e inseguras, como poços, cisternas e os próprios rios, que tem deixado muita criança contaminada por vermes e bactérias. A Secretaria de Saúde do Pará não tem dados sobre casos de diarreia e vômito, sintomas mais comuns, porque não são de notificação compulsória. “Agora somos obrigados a pagar a água, mesmo sem poder. Muitas vezes tiro dinheiro da merenda dos meninos para dar conta desse gasto. Vai chegar a hora em que não vamos dar conta de pagar. E o que vamos fazer?”, lamenta o trabalhador rural desempregado Claudiborges Leal, que mora em uma casa de três cômodos, sem banheiro, com a mulher e cinco filhos. “Tem que tirar dos meninos, não tem jeito”, completa a servente de escola Raimunda Carvalho dos Santos, que vive em três cômodos com o marido e três filhos. A conta de julho, quando foi feita a entrevista, era de R$ 168. “Para pagar tem que tirar da alimentação das crianças e do material da escola. Como vou pagar se não fizer assim?”, lamenta olhando para o chão, envergonhada. “Se cortarem, vou ter que pegar no poço do vizinho. Mas não é boa. Fico entre a cruz e a espada.”
Água para quem?
O drama da água de São João do Araguaia começou em março de 2014, quando o prefeito João Neto Alves Martins (PTB), lançou o edital 49/2014 para se-
Cidade alagada O esforço da Odebrecht para assumir os serviços de água e esgoto de São João do Araguaia não deve durar muito: em aproximadamente cinco anos, a cidade será uma das dez alagadas na construção da Hidrelétrica de Marabá. A obra será tocada pela construtora Camargo Corrêa e a estatal Eletronorte, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O projeto terá duas eclusas e um lago. Serão inundados 1.115 quilômetros quadrados de terras em Marabá, São João do Araguaia, Bom Jesus do Tocantins, Brejo Grande do Araguaia, Nova Ipixuna e
Palestina do Pará, no Pará; em Ananás, Esperantina e Araguatins, no Tocantins, e São Pedro da Água Branca e Santa Helena, no Maranhão. A obra custará R$ 12 bilhões e terá capacidade de produção de 2.160 megawatts. A Odebrecht não atendeu à reportagem para falar sobre investimentos em saneamento em uma cidade que será alagada. Para Cristiano Medina, do Movimento dos Atingidos por Barragens, trata-se de empresas que disputam e administram tudo ali. “É o controle do território dos rios e a mercantilização dos recursos naturais.”
Cristiano: a Odebrecht quer o controle do território
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lecionar concessionária para os serviços de água e esgoto. Em 2007, uma lei municipal foi aprovada para atrair investimentos e “manter adequadamente esse serviço essencial”. Até então, a prefeitura distribuía gratuitamente a água sem tratamento que retirava do rio Araguaia. Porém, a gratuidade foi proibida pelo decreto que regulamentou o Plano Municipal de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário (PMAE), de março de 2014. A população não foi ouvida sobre a mudança. A única audiência pública reuniu representantes do poder público e da iniciativa privada. Para piorar, o PMAE permite que as tarifas sejam definidas no contrato de concessão. A empresa Hidro Forte Administração e Operação, de Tocantins, venceu a concorrência ao prometer a menor tarifa. Em setembro do ano passado, porém, foi comprada pela Odebrecht Ambiental Pará, que não falou sobre a negociação. Por telefone, um dos diretores, que não se identificou, disse apenas que foi criada uma subsidiária a partir da cisão das empresas. “Não temos condições de dar mais precisão pela situação contratual”, disse. A mudança é ilegal, conforme o advogado especialista em direito administrativo e societário Flávio Guberman. “Para ser legal, a possibilidade de alteração deve estar descrita no contrato.” O prefeito se limitou a dizer que possui toda a documentação e que houve opção por uma água de qualidade “porque as águas estão muito poluídas. E a Odebrecht tem conhecimento, recursos e uma trajetória em saneamento básico. Preferimos migrar”. Ele afirmou ainda que a empresa faz obras de ampliação e tratamento da água, mas não soube dizer o que está sendo feito. “Fomos surpreendidos pelos contratos com a Odebrecht. Não pudemos fazer audiência pública nem consultar a população. Quando o serviço era público, não havia cobrança. A Odebrecht assumiu, não implantou melhorias, não trata a água e cobra caro”, reclama o vereador Benisvaldo Bento da Silva (PMDB). “Passaram três meses e a conta que chega 42
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na casa das famílias fica entre R$ 150 e R$ 300. Tem pessoas que não têm renda nenhuma e têm que pagar isso”. A tarifa mínima cobrada em São João do Araguaia é de R$ 18,28 para 12 metros cúbicos, segundo a Odebrecht. Em São Paulo, por exemplo, é de R$ 20,62 por 10 metros cúbicos. Já a tarifa social, para famílias de baixa renda, é R$ 7. No Pará, onde há sistemas públicos de distribuição em muitos municípios, a tarifa média é a segunda mais barata do país: R$ 1,64 por metro cúbico, atrás apenas do Maranhão (R$ 1,62). Os dados são do Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto de 2013, do Ministério das Cidades.
Água mineral
“Mãe, mãe, o retratista pode tirar retrato de eu mais o papagaio?”, pergunta Rafaela Dias Palone, de 7 anos, correndo para dentro de casa, no distrito Rio Vermelho, mais conhecido como Gogó da Onça, em Xinguara. Apesar de mais desenvolvida entre as visitadas – única com Índice de Desenvolvimento Humano médio (0,659) –, toda sua população mora em casas de madeira. A mãe de Rafaela, Ana Carolina Dias Palone, cuidava da filha mais nova, de 5 anos, que há uma semana tinha problemas no estômago e rins devido ao excesso de cloro na água. “O médico disse que muitas crianças estão doentes por causa disso. O jeito foi começar a comprar água mineral, mas é muito caro.” Segundo o posto de saúde do distrito, muitas crianças ainda adoecem por causa do cloro na água. “Antes era mais, porque os níveis de cloro eram muito altos. Para ter uma ideia, a faxineira nem estava usando água sanitária para lavar os lençóis do posto”, conta. “Depois de muita reclamação melhorou, mas as pessoas mais sensíveis, sobretudo crianças, ainda sentem dor de estômago, diarreia e vômito. Algumas também chegam com irritações na pele, porque tomaram banho com água com muito cloro.” Não há dados sobre esses casos na Secretaria de Saúde do Pará e nem na de Xinguara. “Sabemos que há três anos eram mais frequentes, mas não sabemos se por conta da água ou do alcance dos
ARRISCAR A SAÚDE VIRA ALTERNATIVA Silvia Moreira, de São Geraldo: “A água da rua vem suja ou cheia de cloro. Para tudo que preciso uso o rio”
programas do governo federal, como vacinas e vitaminas”, diz a secretária-adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa. De acordo com a Odebrecht, são seguidos todos os padrões de tratamento de água preconizados pelo Ministério da Saúde e há monitoramento constante da qualidade da água. A prefeitura nega. De acordo com o coordenador de monitoramento Marconi Ribeiro, o acompanhamento deveria ser mensal, com o envio de amostras de diferentes locais a um laboratório central, em Conceição do Araguaia. “A última coleta foi feita em maio e não tivemos acesso aos resultados. Está parada por causa de uma licitação para compra de materiais”, afirma Ribeiro. Segundo ele, por causa do excesso de
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PESO DESPROPORCIONAL NO ORÇAMENTO Marines de Oliveira: “Às vezes é preciso escolher: comprar comida para as crianças ou pagar a água”
cloro e das contas altas, as famílias pegam água em poços. “Há muitos coliformes fecais nesses poços porque o saneamento básico é ruim. Por isso até as famílias de baixa renda acabam tendo de comprar galões de água mineral”, diz. Em Xinguara, apenas 30% da população tem acesso à água tratada, que a Odebrecht retira de uma barragem num pequeno córrego. A barragem deverá ser ampliada para triplicar sua capacidade, bem como a rede distribuidora. “Não atendemos mais porque o córrego é pequeno. Na estiagem a qualidade piora com aumento da matéria orgânica, escura, que requer mais produtos químicos. Com um lago maior e mais profundo, a qualidade melhora”, diz a engenheira da Odebrecht que não quis se identificar. A água sem qualidade é problema também a 200 quilômetros dali, em São Geraldo do Araguaia. Muitos dos moradores precisam comprar água mineral por causa do excesso de cloro. As contas são as mais caras da região: R$ 31,10 para 10 metros cúbicos. Desde agosto, o promotor de Justiça no município, Agenor de Andrade, está reunindo as reclamações. “Vamos instaurar procedimento administrativo para uma possível ação civil pública contra a Odebrecht”, afirma. O Rio Araguaia é outra alternativa a que a população recorre contra as contas caras. Na pequena São Geraldo, com suas casas de madeira e ruas de terra por onde circulam pessoas, porcos e galinhas, as roupas são lavadas onde também há pescaria. “A água da rua vem suja ou cheia de cloro. Para tudo que preciso uso o rio”, reclama a pescadora Silvia Moreira, que mora em uma casa onde só há uma torneira e um vaso sanitário, sem descarga. “Uma vizinha contou que colocou a roupa de molho e no dia seguinte apareceu manchada por causa do cloro”, diz a dona de casa Rosa Maria, de São Geraldo do Araguaia, mãe de duas meninas, uma de 10 anos e outra de 9 meses. “Às vezes a água vem muito suja, outras com bastante cloro. Chega a arder para beber. Acabamos tendo que comprar água mineral para dar para a bebê. Mas não temos dinheiro para as duas. O que vamos fazer?” REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Cronicas de um rimador
Para o rapper Rodrigo Ogi, o cotidiano da metrópole – a cidade cinza – é matéria-prima. Seu novo álbum, Rá!, se destaca no cenário do hip-hop. E a adrenalina das pichações é aventura superada Por Felipe Mascari e Paulo Donizetti de Souza
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O ex-pichador morou no Jardim Celeste, região do Sacomã, entre o sul e o leste de São Paulo, e conta que o local era violento. Diz que ter trilhado o caminho das pichações o ajudou driblar a vulnerabilidade às drogas e ao crime. “Aposentado” da rotina das latas de spray, o rapper relata em Noite Fria um dia de pichação. “Decidimos cair pra zona norte/ Adrenalina era o nosso esporte/ Logo que eu desci do buso eu vi um beiral de pastilhinha de 89/ Meu comparsa sorri, já pensa em subir...” Com agenda bem servida de shows, depois de década e meia de experiência, Ogi considera-se satisfeito por viver da música e dispensa ostentação. “Já consigo pagar minhas contas. Se conseguir comprar minha casa, já tá bom.” Por que você entrou no universo da pichação? Sensação de aventura?
Nos anos 90, eu morei no Jardim Celeste, e havia três tipos de caras no bairro: os que roubavam, os que usavam drogas e os pichadores. Roubar e usar droga não era a minha pegada, então posso dizer que a pichação meio que me salvou. Além do que eu queria fazer alguma coisa para me destacar, mas não do jeito que eles faziam. Então, foi onde eu comecei a rabiscar alguns muros, o que me livrou de cometer outro tipo de crime. Não é só aventura, é também para ser visto. Quando você vem da periferia não tem muita coisa, não tem um centro cultural, não tem biblioteca, não tem um jeito de se destacar, e a pichação era uma forma. A pichação é mais uma competição entre os pichadores. Na minha época não havia essas escaladas, era pichação de chão, muro, beiral, nada tão arriscado como hoje. No meu tempo tinha a competição, mas era algo mais para ser visto, se mostrar vivo para a sociedade. Quem conhece o movimento entende o que eu digo.
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om 35 anos, Rodrigo Hayashi, ou simplesmente Ogi, segue como um compositor fora dos padrões do cenário do rap. “Percebo dois estranhos que me notam/ Esses canas de repente brotam/ Tento escapar, mas me abordam/ E sair fora de cena eles dois me forçam/ Um deles se chamava Delfim/ Carrasco como Adolf ”, narra o cronista em uma das faixas do disco Rá!, recém-lançado, repleto de histórias e personagens, em que as faixas se sucedem em continuidade, como um conto. Ogi é respeitado no movimento hip-hop. Nomes como Rashid e Emicida pedem sua participação em lançamentos. Seu trabalho é citado por Criolo na música Fio de Prumo (Padê Onã): “Muros de concreto infeto/ De pedra, cal, cimento e dejeto/ Aponta pra cabeça, ori/ A cidade um cronista, Ogi/ E a dobra do dorso do operário na rua/ Labirinto, fauna, sombra, luz da lua...” Nos versos, Criolo homenageia o primeiro trabalho de Ogi, Crônicas da Cidade Cinza, de 2011. O vício de observador dos detalhes da vida urbana facilita o processo de criação diferenciado, avalia. Sua vivência na “adrenalina” das pichações – outro vício, este superado junto com a adolescência, nos anos 1990, também proporciona inspiração. E o consumo obstinado de música, sobretudo os sambas de raiz do Rio e de São Paulo, cinema e literatura completam a veia criadora. A voz arranhada tempera suas rimas, e permite interpretar diferentes personagens com diversas entonações, do motoboy e do taxista, do policial e do ladrão durante tiroteio. “Gosto de misturar minha realidade com uma pitada de ficção”, conta o MC que começou a carreira no rap no coletivo Contrafluxo. REVISTA DO BRASIL
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Você sentia resistência da população? E por que se aposentou? Foi difícil, já que era um “vício”?
Muita. A minha família nunca aprovou, meus vizinhos também não, os pais dos meus amigos que também não. Ninguém entendia por que a gente fazia. Parei por causa da idade e dos processos. Chega a hora que cansa. Mas tem caras que ficam afastados e evitam ter contato, porque sabem que se fizer de novo, uma vezinha, voltam. Tem cara com mais de 40 anos de idade que ficou dez anos afastado, fez um, descabelou. A adrenalina vicia. Sim, é só ver o que aconteceu aos caras na Mooca (em 31 de julho de 2014, dois pichadores que tentavam atuar em um prédio do bairro foram levados por policiais militares ao apartamento do zelador e executados com tiro no peito, à queima-roupa). Eles estavam pichando, não roubando, eram bem conhecidos no meio do movimento porque invadiam qualquer prédio para rabiscar, eles não eram de roubar. Aquilo foi execução. Na década de 90, eu apanhei muito da polícia, já voltei com a cara pintada e vários hematomas, mas eu estava sujeito, porque estava fazendo coisa errada. Naquela época, a violência policial era bem grande. No começo dos anos 2000, as abordagens ficaram mais brandas. Mas, pelo que ouço, está tenso novamente. Como se descobriu no rap?
Foi através de um amigo chamado Edvan, que era DJ e tinha um irmão mais velho que apresentava as músicas para nós, e quando ele apresentou o rap eu já fiquei louco e daí pra frente comecei a acompanhar e consumir. Antes de pichar eu já escrevia rap, mas era por hobby, não levava a sério, porque as letras não tinham nada a ver com minha realidade. Até minha mãe me dizia isso. Ainda em 1993, fui escrevendo, e aprendi a contar o tempo das batidas e comecei a rimar. Mas desencanei um tempo, parei de fazer rap e comecei a pichar mais. Em 2002, comecei a ouvir uns raps mais parecidos com as ideias que eu tinha. Foi quando voltei a escrever sério. Quais eram essas ideias com que você se identificou?
Era uma música chamada Sétimo Volume da Enciclopédia Letra H, do grupo Mzuri Sana com outro grupo, o Rua de Baixo. Era uma coisa mais próxima da minha realidade, um conceito de música mais livre, não era algo falando só de crime e morte e essas coisas da quebrada. Lembrava um pouco os grupos americanos, de Nova York, que eu gosto, como A Tribe Called Quest e De La Soul, uma letra mais positiva, como rolava na época.
Você começou no Contrafluxo. Como foi?
Eu já tinha um amigo da pichação, o Mascote, e a gente se reencontrou na internet. Eu já estava com a ideia de montar o grupo, e chamei o Mascote, o Dejavu, o Edy e o William. Começamos o primeiro disco, Missões e Planos, em 2004, saiu em 2005.
Como você avalia sua evolução pessoal do começo da carreira para cá? 46
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Tem muita violência contra quem picha?
Quando fiz o Crônicas, era outra pessoa. Aperfeiçoei, li, vi filmes. E também mudei como pessoa, evoluí Quando eu estava gravando o primeiro disco do Contrafluxo minha mãe faleceu, eu era filho único, meu pai morreu cedo. Como sou descendente de japonês, arrumei um esquema para morar no Japão. Mas de última hora resolvi ficar, sabia que daria certo. Depois que minha mãe morreu virei homem na marra. Lancei dois discos com o grupo, fazíamos muitos shows, mas eram de graça, ou dividíamos o cachê em seis, não sobrava. Profissionalmente, eu tenho mais técnica, mais bagagem. O que o inspira a rimar as crônicas?
Eu sempre tive facilidade para escrever nesse formato. Minhas redações na escola sempre contavam uma história. Sou observador, gosto de andar de ônibus, isso facilita. Seu primeiro disco, Crônicas da Cidade Cinza, tem a capa feita pel’Os Gêmeos, grafiteiros reconhecidos no mundo. Como foi? E as criações do álbum?
Eles me conheceram na época da pichação, e quando eu passei a ideia e pedi para eles fazerem a capa, fizeram numa boa. A pichação trouxe uma bagagem, qualquer lugar que você me perguntar eu conheço, já rodei os quatro cantos da cidade. Do centro, eu ia para Taipas, Jaraguá, Guaianases pichar, então fui conhecendo a capital de ponta a ponta. Mas ideia de falar sobre a cidade eu já tinha. As músicas narram contos que acontecem e se aplicam em todas as grandes cidades, não só aqui.
E de onde surgiram as inspirações para o álbum Rá!, lançado recentemente? O disco aborda uma história com começo, meio e fim.
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Tinha muita coisa onírica e lúdica no álbum, e um amigo deu a ideia de colocar as introduções e interlúdio como se eu estivesse no psiquiatra. No disco, cada faixa tem uma história, e todas se encaixam em um contexto. É como se fosse um livro e cada música um capítulo. Eu gosto de seguir esse modelo. Demorei dois anos para fazer esse disco. Quando fiz o Crônicas, eu era outra pessoa, era mais novo. Agora, aperfeiçoei as técnicas, li mais, assisti mais filmes, isso ajudou a chegar nesse ponto. E também mudei como pessoa, evoluí. Você tem uma música clássica chamada Eu tive um Sonho, que conta a história de nordestinos na capital. A onda migratória agora é outra. Como você vê a xenofobia em São Paulo?
Atualmente está mais para os imigrantes que vêm de fora, principalmente os haitianos. Esse bairro onde moro é muito errado. Vejo panelaço direto aqui. Antes tinha uma banca de jornal aqui na rua, mas agora o dono abriu uma revistaria. Eu fui lá durante as eleições do ano passado, e ele perguntou em quem eu votei, respondi que foi na Dilma, então ele começou a me xingar, e eu apenas disse: “Não vamos discutir mais. Só analisa, antes do Lula você tinha uma banca de jornal capenga, agora, você progrediu”. Mas não adianta. Hoje está mais aflorada a divisão na cidade?
Está. Aliás, por que não falam da corrupção que havia antes? Ninguém está vendo que nesse governo está havendo mais denúncias do que antigamente, a corrupção era mais encoberta. O pior é que o Aécio não soube perder a eleição e fica nessa onda de impeachment. Pô, teve passeata de estudantes sobre as escolas que o Alckmin quer fechar, por que esse povo que se veste de verde e amarelo para ficar falando groselha, pedindo volta da ditadura, não vai ajudar os estudantes? Estão falando de crise, mas provavelmente a crise deles é não poder ir a Miami duas vezes por mês. Você se arrependeu de ter votado na Dilma?
Não, tem muita coisa lá dentro que não depende só dela. É um jogo de poder, só estando lá pra saber. Ela me inspira confiança. Aécio é que não dava. Minha mãe era funcionária pública federal, e a época do Fernando Henrique Cardoso foi a pior fase da vida. E na cidade, tem observado mudanças?
O transporte coletivo continua ruim. Se você vai no terminal do Parque Dom Pedro, vai ver um monte de gente enlatada. Agora tem esse lance das ciclovias... Ontem, um amigo meu estava andando e chamaram ele de comunista, só porque estava andando de bicicleta.
Como foi seu trabalho na Fundação Casa?
Trabalhei lá um ano e meio, entre 2005 e 2006. Fiz serviço na unidade do Tatuapé, quando era aquela guerra, cheia de rebelião. Me jogaram logo na pior, mas me dei bem, porque eu era uma distração para eles. Uma ONG gostou do disco Missões e Planos do Contrafluxo, acharam as mensagens positivas e convidaram a gente para fazer o trabalho lá. Dávamos aula de rima para a molecada, mas era difícil, porque eles mal sabem ler, então eles iam fazendo de cabeça. O funk de crime já dominava naquela época, então tínhamos que tentar mudar um pouco a cabeça da molecada. Mas por essa experiência pude perceber a situação da educação. Havia muitos analfabetos, só nas minhas aulas 90% só sabia desenhar o nome, não sabia ler e escrever, e era uma molecada de 14 a 17 anos. Foi uma experiência bacana, mas não voltaria ali. Nunca fizeram nada comigo, mas ao mesmo tempo que eles me davam sossego espancavam um funcionário. Era ruim de ver. A mentalidade deles é diferente, não têm perspectiva de nada. A ideia deles é roubar, comprar uma moto, um tênis e uma roupa de marca, não pensam em estudar. Ainda fui transferido para a unidade do Brás, que já não é na mão dos moleques, era difícil se manifestarem na aula porque eram contidos. Uma vez, consegui fazer um menino retraído cantar, aí entrou um guarda na sala e queria bater no menino, mas não deixei. Foi quando eu saí, não concordei com aquilo, e a diretoria achou que desacatei o guarda. É impossível ressocializar na Fundação Casa, não tem tratamento bom. E se colocar em presídio de adulto, piorou. Não é por aí, é com educação. Você gosta de MPB, samba?
Eu gosto de um sambista paulista do Bixiga, o Geraldo Filme, ouço Germano Mathias, Adoniran Barbosa. No samba carioca, sou fã de Sidney da Conceição e Aniceto do Império. Ouço música brega, Elino Julião e Roberto Muller, são muitas referências. Das gerações mais novas sou fã de Metá Metá, do Thiago França, Juçara Marçal, Kiko Dinucci (o trio que forma o grupo), que mistura vários gêneros. Gosto de Rodrigo Campos, ótimo letrista, curto Criolo e Emicida. Busco conhecer, ajuda nas batidas que produzo. Você consegue viver de música?
Desde que lancei o primeiro disco, comecei a fazer show e consigo viver disso, pago minhas contas com música. Não fiquei rico, mas pagar as contas consigo. Nem quero ficar rico, só pagar uma casa. Ficar velho, fazendo shows e sem comprar uma casa é difícil. Mas sem essa coisa de glamour, isso eu não acho legal, porque você não consegue sair na rua, todo mundo fica em cima de você, isso não é meu intuito.
Nunca fizeram nada comigo, quando trabalhei na Febem,mas ao mesmo tempo que eles me davam sossego espancavam funcionário. Era ruim de ver. A mentalidade deles é diferente, não têm perspectiva de nada
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Endereço: estrada. Estilo: brasileiro
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As irmãs e cantoras Celia e Celma saíram de Ubá, em Minas, para percorrer o país, registrar cores, costumes e ritmos, em defesa da cultura popular
stridente, o apito da chaleira invade a sala e outros cômodos da casa, avisando sobre o café, ao lado do fogão a lenha, enquanto se espera os tucanos aparecerem do lado de fora. Costumam ser pontuais. Dia desses, um pica-pau quebrou um vitrô, ficou com o bico preso e precisou de ajuda para sair. O local lembra o interior de Minas Gerais, mas fica em uma área tranquila da zona norte de São Paulo. Não há o que estranhar – ali ficam as irmãs Celia e Celma, cantoras, artistas, pesquisadoras de cultura popular, que a qualquer momento podem pegar o carro e sair pelo país, filmando e gravando, atrás de algum violeiro ou grupo de dança, em mais um registro de tantas expressões de arte às vezes esquecidas. Elas lembram que, naquela mesma casa, Wilson Simonal era presença constante – e certa vez protagonizou um encontro memorável do samba brasileiro com o semba angolano, com um grupo de músicos do país africano. Teve também uma turma de 26 violeiros tocando catira e quase derrubando o terraço. A dupla Cacique e Pajé, o cacique Juruna, o cantor e compositor Geraldo Vandré, muita gente já andou por ali. E as irmãs já andaram por muitos lugares. Além de percorrer o Brasil todo, fizeram temporada de seis meses no Japão, em um bar chamado Saci Pererê, com músicos japoneses. “O nosso violonista era um Baden Powell”, lembra Celma. Ela e a irmã praticamente introduziram o carnaval no Oriente.
Por Vitor Nuzzi
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Desde pequenas elas sabiam o que queriam: fazer arte. Celia foi para a bateria, Celma aprendeu a tocar baixo acústico. Até formaram um grupo, chamado Garotas. As irmãs mais velhas ensinavam – uma tocava acordeom, era locutora de rádio. Também tiveram forte influência do pai, Celidonio Mazzei. “Um toscano, amante das artes”, lembra Celia. Inicialmente tocador de bombardino, um instrumento de sopro, na banda da rua, Celidonio foi um conhecido fotógrafo de Ubá, interior de Minas Gerais, onde as irmãs nasceram. Não se sabe qual delas chegou antes ao mundo. “Há controvérsia”, brinca Celia. “A parteira não sabia que eram duas. Mamãe também não.” Assim, uma das meninas nasceu e a outra ficou esperando ainda três horas. Antes de partir definitivamente para o mundo da cultura, Celia e Celma tornaram-se professoras. Passaram três anos alfabetizando crianças. Dos pais dos alunos, na zona rural, recebiam o pagamento: galinha, fubá, feijão, cana... E iam ouvindo música, que sempre tocava, principalmente ópera, praticando balé aquático, basquete, aprendendo a cozinhar, a fazer artesanato. A casa tem vários “anjinhos” feitos por elas. Em algumas paredes, fotos do pai, inclusive a de um zepelim sobrevoando Ubá, em 1930.
Tiro de sal no pomar
Até que elas foram para o Rio de Janeiro. “E batemos na porta da televi-
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são”, recorda Celma. Foram contratadas como humoristas, as moças, Celidonio – muitas imagens raras podem ser vistas pe“gêmeas Bond”, por Moacyr Franco. “A gente fazia o que apare- la casa. “Ele estava sendo completamente esquecido (em Ubá)”, cia.” Ainda no Rio, cantaram na orquestra de Ed Maciel e desta- conta Celia. Em 1997, elas lançaram o LP Ary Mineiro, mostrancam a importância de serem crooners na formação musical, pois do faces desconhecidas do autor de Aquarela Brasileira. No gatinham de aprender todo tipo de estilo. Entre tantas atividades, rimpo, descobriram pérolas como Aquarela Mineira, composta cursaram Licenciatura em Música, pelo Instituto Villa-Lobos. 11 anos depois da obra mais conhecida do compositor. E tamJá em São Paulo, as duas trabalharam com gente como o pia- bém Mês de Maria, que remete à religiosidade tão presente no nista Luiz Carlos Vinhas e os diretores e produtores Luíz Carlos interior de Minas. Tem também Teus Óio, primeira composiMiele e Ronaldo Bôscoli. Ainda no início da carreira, conhece- ção de Ary. ram Carlos Imperial e formaram – com ele, Ângelo Antônio e De 1998 a 2007, as irmãs apresentaram um programa no CaGastão Lamounier Neto – um grupo vocal chamado A Turma nal Rural. “Dez anos”, arredonda Celia. “Nove e meio”, corrige da Pesada, sucesso nos anos 1970. Pouco antes, no final da dé- Celma. Quando uma irmã fala, a outra acompanha atentamencada anterior, ganharam um festival em Juiz de Fora, com a mú- te. Às vezes fazem pequenas correções, em outras acrescentam sica Mandinga (Ataulfo Alves e Carlos dados. Complementam-se. No canto, CeImperial), ao lado da também mineira lia faz a primeira voz e Celma, a segunda. e iniciante Clara Nunes. Partilham uma brincadeira desde a infânA cultura entrou na vida das menicia, de falar “ao contrário”, de trás para nas desde cedo, quando aprendiam os a frente. Vale como um código entre as bordados, o artesanato popular, com duas, usado também quando não querem a participação nas encenações litúrque alguém entenda o que estão falando. gicas e acompanhando manifestações Chegam a cantar algumas canções nesse folclóricas da região, as folias (de Reis “idioma”. No trabalho, a seleção de repertório não causa atritos: “Escolhemos june do Divino), os congados. Em 2011, tinhas, sem nenhuma desavença”. elas gravariam o CD Lembrai-vos... O programa do Canal Rural retratava a das Procissões e Devoções de Minas, diversidade da cultura popular. Ali, o viocom os cânticos sacros dos tempos de lonista gaúcho Yamandu Costa fez a sua infância e adolescência. “É um trabalho de resgate, de uma das vertentes primeira apresentação. Ali passaram João que fizeram parte da nossa formação, Pacífico, Mario Zan, Pena Branca e Xaque é a religiosidade”, diz Celma. vantinho, Dominguinhos, entre dezenas A cozinha era outra fonte de conhede artistas. Hoje, elas alimentam a ideia de cimento: a mãe, Gioconda, cozinhava voltar à TV. E, em tempos de redes sociais, em fogão a lenha, com panela de pepensam qual a melhor maneira de entrar dra. Mais tarde, as irmãs sairiam pela no chamado mundo virtual. região colhendo receitas típicas, que As irmãs com Cauby Peixoto, no Rio, em 1984 As duas lembram com carinho de passagens como as gravações de Ana Raio e resultariam em dois livros – Cozinha Zé Trovão, novela exibida na extinta TV Caipira de Celia e Celma e Do Jeitinho de Minas – e um CD com receitas cantadas. Do Jeitinho de Mi- Manchete, em 1990. Ou as temporadas com Cauby Peixoto, no nas ganhou prêmio internacional em 2006, na categoria Culi- Rio, em 1984. Agora, Celia e Celma preparam novo projeto, nária Regional, com premiação em Pequim. o disco Canto com C, que trará estilos cujos nomes começam Foi uma infância com direito a travessuras, como pular o com essa letra e remontam à mistura entre índios, africanos e muro do vizinho para apanhar frutas. Um casarão. “Um po- portugueses que desaguou na arte brasileira: congada, ciranda, mar!”, exclama Celia, como que visualizando as carambolas, cana verde, chimarrita, cavalo-marinho. Cantarolam, afinadas, mangas, jabuticabas, laranjas, mexericas, frutas-do-conde, os fazendo percussão na mesa: Vem, meu boi bonito/ Vem dançar pêssegos. “Não dava para obedecer pai e mãe...”, completa Cel- agora/ Já deu meia-noite/ Já rompeu a aurora... ma, responsável por receber as frutas, estendendo a saia, que “Nossos discos são atemporais”, diz Celma. “São temáticos”, Celia e um irmão jogavam lá do alto. Uma vez, a aventura comenta Celia. Como o CD Brasil na Mesma Toada (2000), terminou com um tiro de sal que atingiu Celia em região es- um mergulho nesse gênero musical, com obras dos tradicionais João de Barro, João Pacífico e Herivelto Martins e de autotratégica. res como Raul Seixas, Ivan Lins e Caetano Veloso. “Ninguém Aquarela de Minas pode nos cobrar um estilo. Nosso estilo é brasileiro”, concluem. O casarão era da família de um filho famoso de Ubá, o comA tarde cai, o café é servido novamente, e os tucanos não apapositor e locutor Ary Barroso (1903-1964). As irmãs colheram recem. Em compensação, lá fora um bando de papagaios faz preciosidades da obra de Ary, que foi fotografado pelo pai das algazarra passando de uma árvore para outra. 50
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LALO LEAL
TV digital, será que agora vai?
A digitalização deve ser vista como avanço para o telespectador. Além de imagem melhor, o público terá um leque maior de opções que podem servir de contraponto à televisão comercial
O
primeiro desligamento dos sinais da TV analógica no Brasil – essa que estamos acostumados a ver há mais de 60 anos em nossas casas – está previsto para este 29 de novembro, em forma de teste, na cidade de Rio Verde (GO). Só quem tiver providenciado acesso aos sinais digitais verá televisão na cidade. Ano que vem a previsão é que o desligamento passe a ocorrer em grandes centros urbanos: Distrito Federal, 3 de abril; São Paulo, 15 de maio; Belo Horizonte, 26 de junho; Goiânia, 28 de agosto; Rio de Janeiro, 27 de novembro. Até 31 de dezembro de 2018 a TV digital terá substituído a analógica em todo o país. Pelo menos é o que se espera. Já houve um adiamento, de 2016 para 2018. Pode haver outros. As possibilidades de atraso no cumprimento desse cronograma são grandes. Há entraves sérios, como dificuldade do acesso de toda a população brasileira aos televisores digitais ou aos conversores de sinal. Além do pleito das empresas de televisão de deixar de fora do sistema digital cidades com um número menor de habitantes. É mais um capítulo da tortuosa implementação da TV digital no Brasil, palco de acirrado enfrentamento entre o interesse público e aquele defendido pelos empresários da comunicação eletrônica. A disputa é pelo espectro eletromagnético por onde circulam sons e imagens, um espaço limitado e finito, e muito valioso. Uma das batalhas já vencidas pelos radiodifusores foi a obtenção, sem concorrência, dos novos canais que serão abertos com a chegada da TV digital. Onde antes circulava uma programação, agora poderão ser transmitidas quatro ou mais – é a chamada multiprogramação. Esses novos espaços foram outorgados diretamente aos atuais concessionários, sob alegação de que seriam extensões dos canais analógicos. Repetiu-se aqui a argumentação usada quando da chegada da TV ao Brasil, nos anos 1950. Os então concessionários das emissoras de rádio obtiveram as concessões de televisão sob o argumento de que
o novo veículo de comunicação era apenas uma extensão do rádio. No caso atual, esse tipo de interpretação causou até uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, que não a acolheu. Ainda assim a digitalização deve ser vista como um grande avanço, e seus resultados como benéficos para o telespectador. Além de uma imagem de melhor qualidade, o público terá um leque maior de opções na TV aberta, entre as quais a presença de novos canais públicos, capazes de servir de contraponto a programações uniformes e sem ousadia, marcas da televisão comercial. O decreto de implementação da TV digital no Brasil prevê a “exploração direta pela União” de quatro canais: do Executivo, da Educação, da Cultura e da Cidadania. O primeiro já existe, é a NBR – a televisão do governo federal –, com acesso ainda muito restrito. A expansão do sinal é importante para permitir a circulação de informações sobre ações do poder público sonegadas pelos grupos privados. A TV Escola, sob a condução do Ministério da Educação, já produz conteúdos relevantes no auxílio e complementação do trabalho de professores e alunos. Com capacidade de atingir um público maior, a expectativa é que a programação torne-se mais abrangente, à semelhança do que faz com grande sucesso na Argentina o canal Encuentro, gerido pelo Ministério da Educação daquele país. Os canais da Cultura e da Cidadania não possuem referências anteriores. Saem do zero e começam agora a ser construídos. No primeiro caso, um grupo de trabalho criado no Ministério da Cultura vem discutindo os procedimentos, a programação e os mecanismos de participação social. A ideia central é exibir as obras audiovisuais financiadas com recursos públicos, além de apoiar produções e programas regionais. O Canal da Cidadania fará uso da multiprogramação. Serão quatro subcanais para cada município: o primeiro destinado ao poder público municipal, o segundo para o estadual e os outros dois para associações comunitárias, que ficarão responsáveis por veicular programação local. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Canal 8.1 HD digital em toda Grande São Paulo; Canal 12 da NET: Grande ABCD (24h); Canal 13 da NET: Mogi das Cruzes (24h); Canal 2 da NET: São Paulo (19h às 20h30); Canal 26 da NET: Barueri, Santana do Parnaíba, Osasco, Vargem Grande Paulista, Taboão da Serra, Carapicuíba, Cotia, Embu, Itapecerica da Serra, Itapevi e Jandira (19h às 20h30); Canal 9 da NET: Brasília (19h às 20h30); Pela internet: tvt.org.br
Tevê para
CRIANÇAS Emissora estreou quatro programas para a faixa de público infantil produzidos em parceria com o coletivo Pedal 52
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om conteúdos voltados ao fortalecimento da cidadania, a TVT estreou em outubro quatro programas infantis, cada um com cinco minutos, em média. As novas atrações serão exibidas de segunda a sexta-feira, às 10h55, dentro da faixa infantil da emissora. Os programas são produzidos
em parceria com o coletivo Pedal – Pedagogias Alternativas e fazem parte de um conjunto de ações que envolvem práticas de educomunicação em escolas com metodologias inovadoras. Essa prática pedagógica consiste de interações horizontalizadas, portanto sem hierarquia, e produção colaborativa. O primeiro a estrear, em 12 de outu-
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Profissão Criança
Criança Pergunta, Criança Responde
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Hora do Recreio
bro, foi Hora do Recreio. O programa enfatiza os momentos de livre diálogo das crianças, suas brincadeiras e conversas mais inusitadas. Dois dias depois, foi a vez de Des-cionário, uma série com depoimentos de crianças que definem palavras de acordo com seu repertório e mostram que o entendimento das palavras varia bastante diante do significado oficial, sobretudo no universo infantil, despertando reflexões. No episódio de estreia, por exemplo, as crianças definem o que é a palavra “avó”, utilizando apenas seu próprio repertório, o que leva o telespectador a perceber as possibilidades de sentidos do termo na perspectiva da subjetividade ou da experiência de cada um. No dia 20 foi ao ar Profissão Criança, série
Des-cionário
baseada em pequenas cenas que ilustram como o brincar de “faz de conta”, relacionado ao desejo de profissão futura de cada criança, pode se revelar. Além das cenas de ficção, parte dos episódios é dedicada a depoimentos das crianças, que ressaltarão suas motivações na escolha de um possível trabalho futuro. E no dia 29 estreou Criança Pergunta, Criança Responde, em torno de questões sem respostas que pairam sobre a cultura e a sociedade, mas para as quais as crianças apresentam suas hipóteses. Mais do que divertido, o interessante é notar o quanto esses momentos de reflexão são importantes para o desenvolvimento da capacidade de pensar da criança e um exercício para formação de um indivíduo questionador e crítico.
As novas atrações serão exibidas de segunda a sexta-feira, às 10h55, dentro da faixa infantil da emissora
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HISTÓRIA O professor Juarez: “comportamento orquestrado”
A ciência já desconstruiu teses que atribuíam a uma suposta inferioridade genética a origem da discriminação racial. As estruturas da sociedade, porém, ainda estão em débito com o senso de igualdade Por Letícia Vidor
“J
uarez Macaco.” “Unesp cheia de macacos fedidos.” “Negras fedem.” As frases nas paredes de um banheiro no campus Bauru da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), no final de julho, escancaram o racismo crônico brasileiro. O desprezo não poupa ninguém com raízes africanas. Mesmo alguém que tenha vencido a discriminação e alcançado título de docente numa universidade estadual. Aos 55 anos, Juarez Tadeu de Paula Xavier, professsor do curso de Jornalismo, cravou, em entrevista à TV Unesp: “Os banheiros sempre serão porta para esses comportamentos. Mas de forma tão orquestrada assim é a primeira vez que eu vejo”. 54
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O preconceito de raça tem raízes profundas, do tempo em que o homem habitava as cavernas. Embora sua origem tenha explicação na necessidade de defesa para garantir assim a sobrevivência, a discriminação resulta de aspectos biológicos articulados com sociais e ambientais ao longo do tempo. No século 19, quando apenas os povos europeus eram considerados civilizados, raça era considerada fundamental para definir o potencial “civilizatório” de uma nação. Segundo a teoria predominante na Europa na primeira metade do século 19, o evolucionismo social, a espécie humana é uma só, mas se desenvolveria em ritmos desiguais e passaria pelas mesmas etapas até atingir o último nível que é o da “civilização”.
CRISTIANO ZANARDI/FOLHAPRESS
Racismo à brasileira No topo estaria a “civilização” europeia e na base, os povos negros e indígenas. Uma teoria criticada por considerar apenas critérios ocidentais de progresso. A partir da independência do Brasil, em 1822, a identidade nacional foi para o centro do debate. Estudiosos estrangeiros viam o país como um laboratório racial por causa da miscigenação. O naturalista alemão Von Martius, ao defender que a trajetória social brasileira funde o branco, o negro e o índio, venceu em 1844 o concurso “Como escrever a História do Brasil”, de um recém-criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Com o fim da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, é concedida igualdade jurídica a todos os
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HISTÓRIA
O livro A Curva Normal (1994) tentou consolidar um suposto conceito de raça. Segundo seus autores, os norte-americanos Charles Murray e Richard Herrnstein, a inteligência seria mais generosa entre os brancos, especialmente os mais ricos. Sem fundamento científico, o trabalho remete ao pensamento da metade do século 19, aferindo os “limites” da raça negra, biologicamente incapaz de se adaptar à “civilização” que se impunha. A ciência, no entanto, mostra que existe apenas uma raça humana: a que surgiu na África. Em 2002, pesquisadores norte-americanos, franceses e russos se dedicaram a comparar 377 partes do DNA de 1.056 pessoas provenientes de 52 populações de todos os continentes. Concluíram que 95% da diferença genética entre os seres humanos está nos indivíduos de um mesmo grupo, e que a diversidade entre as populações é responsável por menos de 5%. Ou seja, o genoma de um africano pode ter mais semelhanças com o de um norueguês do que com o de alguém que tenha nascido na África, de família negra. A descoberta veio a confirmar que raças são populações que apresentam diferenças significativas quanto à frequência de seus genes, embora exista entre diferentes raças um grande número de genes em comum, como aqueles que formam o fígado, por exemplo, conforme explica o pioneiro da genética humana no Brasil, Oswaldo Frota-Pessoa (1917-2010).
Para ele, o conceito de raça é comparativo porque a “raciação” é um processo longo e contínuo, produzindo raças dentro de raças, é o grau de diferença entre as raças varia. E mesmo que um grupo étnico indique o conjunto de suas características culturais e genéticas, as raças não são estáticas porque representam estágios de evolução em constante mudança.
O bem da mestiçagem
O determinismo racial começou a ser descartado a partir de 1933, com a publicação de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. O mestiço é alçado à principal marca da originalidade nacional e os símbolos étnicos negros são transfor-
MAURICIOPESTANA.COM.BR
brasileiros. Em 1890, é promulgado o primeiro Código Penal republicano. Quatro anos depois, o médico baiano Nina Rodrigues publica As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. Sua intenção era definir critérios diferenciados de cidadania para negros e brancos. Ganhava força o determinismo racial, teoria criada na segunda metade do século 19 por cientistas europeus. Para eles, a raça determinava as características físicas, o caráter e o comportamento dos indivíduos. A preservação de “tipos puros” seria o remédio contra a degeneração racial e social causada pela mistura de raças. Temiam as características físicas e psicológicas do mestiço, até então desconhecidas. Acreditavam que a miscigenação poderia inviabilizar o Brasil como nação.
mados em símbolos nacionais. Exemplo disso é o samba carioca, consagrado no país e no exterior como ícone da diversidade racial e cultural. Surgido na década de 1910, nos redutos negros dos bairros da Saúde, Gamboa e Cidade Nova, nas casas das lendárias “tias baianas”, como a famosa Tia Ciata, o samba foi ganhando espaço no Brasil e no mundo. Tanto que, em 1922, Paris recebeu o conjunto musical Oito Batutas, do qual faziam Pixinguinha e Donga – que assina ao lado de Mauro de Almeida a autoria de Pelo Telefone (1917), o primeiro samba gravado. A obra de Freyre foi divisor de águas para o entendimento do racismo como
subproduto de conflitos de classes, pondo abaixo qualquer interpretação de ordem biológica, genética ou evolucionista. Último país a abolir a escravidão, o Brasil ainda preserva o preconceito contra afrodescendentes, embora em diversas pesquisas a maioria declare não ser racista. O racismo definido pelo cientista social Florestan Fernandes (1920-1995) como “o preconceito de ter preconceito” leva muita gente a chamar uma pessoa negra de mulata, escurinha ou moreninha. A partir de 1989 o racismo passou a ser um crime inafiançável. A pretensa igualdade racial, porém, não se ampara no cotidiano. Os indicadores sociais também não são um atestado de fé para nossa democracia racial. O Censo do IBGE 2010 mostra que 52% da população se autodeclara negra e parda. Mas do total dos 10% mais pobres do país, 70% são negros. A renda média mensal dos que não têm instrução é de R$ 1.284 entre os brancos e R$ 1.038 entre os negros. Entre as brancas, essa média é de R$ 925, e de R$ 658, para as negras. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2014 a chance de um adolescente negro ser assassinado era 3,7 vezes maior do que a de um adolescente branco. Algumas iniciativas vêm sendo tomadas para combater o racismo. Há cinco anos foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, que determina a promoção da igualdade de oportunidades. Por meio dele foi criado o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, para articular políticas das três esferas do governo, as cotas nas universidades e no serviço público, além da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Há ainda a Lei 10.639/03, que determina o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos de Ensino Fundamental e Ensino Médio nas escolas. É possível que a partir do momento em que seja posta em prática, a disciplina possa contribuir com a formação de uma nova visão a respeito de nossa formação. Como a lei mal saiu do papel para a maioria das escolas, essa omissão ilustra tanto o racismo oculto brasileiro como o papel omisso do sistema educacional em suas origens.
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Kalunga, terra livre Na Chapada dos Veadeiros, norte de Goiás, o maior território de remanescentes de quilombolas do país abriga um patrimônio da resistência e da consciência negra Por Sérgio Amaral (fotos e texto)
Janda da Cunha Pereira e seus filhos Gabryela e Janderley no rio das Almas. Quilombo do Vão das Almas, Cavalcante, Goiás
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cidade de Cavalcante, 320 quilômetros ao norte de Goiânia, teve suas origens na atividade do garimpo de ouro. O trabalho duro era feito pelos negros escravizados. Os fugitivos do Arraial de Cavalcante se esconderam nos vãos de serra do Rio Paranã. E ali esse povo tem sobrevivido por muitos anos como um verdadeiro território de liberdade conquistada arduamente. O território Kalunga se estende para os municípios de Monte Alegre e Teresina e é banhado pela bacia do Rio das Almas. O Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga tem 230 mil hectares de cerrado, e cerca de 5 mil pessoas moram lá ou trabalham no entorno. É o maior território remanescente de quilombolas do Brasil. Sempre em agosto é realizada a Romaria de Nossa Senhora da Abadia. A tradição tem mais de 200 anos, de cunho original religioso e que retoma traços da história brasileira, do ponto de vista dos negros, que construíram um arraial com capela e casas de adobe, usado apenas para esse festejo. O evento recebe cada vez mais turistas e pesquisadores de todo o país. A impressão do forasteiro é de estar num cenário dos pintores Jean-Baptiste Debret ou Johann Moritz Rugendas, ao qual vão se incorporando elementos contemporâneos. Nos últimos tempos, a religiosidade se mistura ao profano. Geradores de energia a gasolina iluminam o arraial, que vai sendo ocupado por bares e restaurantes abertos para receber forasteiros, e multiplicam-se mascates de miudezas, como óculos escuros, e outros exotismos. Existe a tensão entre o som da sanfona, das cirandas, cânticos, do pandeiro quadrado e das violas e o som dos automóveis, que reproduz as músicas mais tocadas nos centros urbanos. Esses conflitos são resolvidos pelo Imperador, que é o organizador da festa. Mas nem tudo está ao alcance desse mediador, num território que mistura a tradicionalidade de seus fundadores com a cultura rude das sociedades que se desenvolveram sem senso de civilidade. Ali o Estado se apresenta para de alguma maneira intervir onde o poder do Imperador não chega. A maioria das famílias é beneficiária do Bolsa Família, há uma pequena escola, mantida de manhã pela prefeitura de Cavalcante e à tarde, pelo 58
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Festejos da Romaria de Nossa Senhora da Abadia: o Imperador e seu séquito, a capela e o cortejo noturno
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Gabryela (acima), Julio e Gleison: o percurso até a escola municipal tem trilhas estreitas na mata e travessia de rio
Joveci Francisco dos Santos fabrica tijolos de adobe com técnicas ancestrais: terra crua, água e palha, com secagem ao sol REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Dona Dirani Francisco Maia e sua neta Leila
governo de Goiás. O Ministério Público no estado desenvolve campanhas para combater violências como a doméstica e a prostituição de meninas quilombolas. Na edição de agosto da festa de Nossa Senhora da Abadia, houve um mutirão organizado pelo órgão para discutir o assunto com moradores e visitantes. A região, integrante da Chapada dos Veadeiros, tem rios e o cerrado ameaçados pelo agronegócio e pela construção de hidrelétricas. A reportagem visitou Vão de Almas e seus quilombolas em duas oportunidades. A primeira em maio de 2014 para conhecer alguns aspectos do cotidiano dos kalungas e seus fazeres ancestrais. Retornou para a romaria em agosto deste ano para presenciar a festa. Na documentação fotográfica, são destacados os aspectos ancestrais desse patrimônio da resistência e consciência negra. 60
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Zelmira Fernandes da Cunha e seu filho Jarlei
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Final feliz A partir da celebração da própria união, diretoras do documentário Vestidas de Noiva traçam histórico do casamento homoafetivo no Brasil Por Xandra Stefanel
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m maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça emitiu resolução em que determinava: nenhum cartório do Brasil pode se negar a realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. A cineasta Gabriela Torrezani realizou assim um sonho que cultivava desde criancinha. O amor de sua vida, Fabia Fuzeti, já vivera uma união estável de 17 anos e não fazia questão das formalidades, mas, pela namorada, topou a “maratona” de cartório e festa. E ambas se deram conta de que nunca tinham participado de uma cerimônia de casamento homoafetivo. “Isso fez com que a gente se questionasse: por que casais homoafetivos não estão se casando com a frequência que a gente gostaria, agora que podemos?” O casal documentou a própria união como proposta de reflexão. No filme Vestidas de Noiva, Fabia e Gabi registram a organização da celebração, contam outras histórias de amor e entrevistam ativistas LGBT, advogados e políticos que carregam essa bandeira. “O mais relevante é dar visibilidade aos casamentos homoafetivos. É uma maneira de desmistificar, quebrar tabus, mostrar que é um casamento como qualquer outro e que é importante, sim, que casais homossexuais se apropriem de seus direitos”, diz Gabi. O comerciante Luiz André Moresi e seu marido, o cabelereiro Sergio Kauffmam Moresi, relembram o dia em que decidiram transformar a união estável em casamento civil, o primeiro no país, em junho de 2011, em Jacareí (SP). Quando recebeu o documento com o pedido do casal, o procurador de Justiça José Luiz Bednarski foi totalmente favorável. “Existe uma igualdade de direito entre todas as pessoas, de acordo com a Constituição. Então, por que umas pessoas podem se casar e outras não?”, questiona. “Eu acho que as pessoas daqui a 100, 200 anos, quando descobrirem que antigamente os casais do mesmo sexo não tinham os mesmos direitos civis que os demais, vão achar um absurdo.” O longa explica a diferença entre união estável e casamento civil e equilibra relatos pessoais com informação legal. “O trabalho celebra conquistas já alcançadas e aponta para o que ainda precisa ser feito”, declara Fabia. Um dos pontos altos do filme é quando as diretoras vão ao Rio de Janeiro acompanhar a 5ª Cerimônia Coletiva de Casamento Homoafetivo, que reuniu 160
Fabia e Gabi: uma maneira de desmistificar e quebrar tabus
casais. “Para a gente, é a afirmação do que é ser família. Eu sou um cidadão, pago impostos e respondo ao mesmo código civil que todo mundo. Meu direito é igual ao de todos”, diz Jonatan Lopes, um dos entrevistados. “O filme é otimista, é romântico, é feliz. Queremos que os espectadores saiam da sala com a certeza de que o preconceito fere pessoas que só querem ser felizes e amar, o preconceito deve ser combatido”, declara Gabi. “Achamos importante que pais, famílias que tenham membros homossexuais assistam ao filme e entendam que essas pessoas devem ser respeitadas e apoiadas por eles.” Com 50 minutos de duração, o documentário estreou em meados de novembro em circuito alternativo. E será apresentado gratuitamente em instituições, universidades, organizações não-governamentais, cineclubes. A programação pode ser conferida no site www.vestidasdenoiva.com.br/agenda. REVISTA DO BRASIL
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curtaessadica
Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Carnaval fora de época A maior festa popular nacional desfila sua beleza na galeria de arte do Sesi São Paulo até 31 de janeiro de 2016. A mostra Carne Vale – O Imaginário Carnavalesco na Cultura Brasileira reúne 170 peças, entre ilustrações, fotografias, vídeos e objetos que constroem, em cinco núcleos, um mosaico multifacetado desta festa, com obras do século 18 até a contemporaneidade, com artistas como Helio Oiticica e Lygia Pape. No módulo Festa do Povo, são apresentadas as percepções dos fotógrafos franceses Pierre Verger e Marcel Gautherot sobre o carnaval no Rio de Janeiro, em Recife e Salvador. Entre os filmes exibidos na exposição estão Samba da Criação do Mundo, de Vera Figueiredo, e Idade da Terra, de Glauber Rocha. Marchinhas, fantasias e alegorias também ajudam a dar o clima de festa. Todos os dias, das 10h às 20h, na Avenida Paulista, 1.313, em São Paulo. Mais informações: (11) 3146-7401. Grátis.
Cascudo, descobridor do Brasil
Um rio. Cinco estados. Cinco diretores. Muitas histórias. O documentário Cinco Vezes Chico – O Velho e Sua Gente revela a fé, as paixões, tradições, lendas, as dificuldades e as lutas das pessoas que vivem nas bordas do Rio São Francisco. Gustavo Spolidoro, Ana Rieper, Camilo Cavalcante, Eduardo Goldenstein e Eduardo Nunes viajam pelo curso pulsante do Velho Chico, desde a nascente, em Minas Gerais, atravessando Bahia e Pernambuco, até chegar à foz, entre Alagoas e Sergipe. E mergulham na identidade dessas comunidades profundamente marcadas pela importância dessas águas, sempre presentes em suas brincadeiras, contos, causos, nas tradições africanas, indígenas e católicas. As cinco histórias compõem uma colorida colcha de retalhos de um Brasil que esbanja riqueza cultural. Estreia em 3 de dezembro. 62
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DIVULGAÇÃO/MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
Riquezas do Velho Chico
O rico universo de um dos maiores estudiosos da cultura popular brasileira fica em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, até 14 de fevereiro de 2016. Em O Tempo e Eu (e Vc), as obras do etnógrafo, pesquisador, folclorista e escritor potiguar Câmara Cascudo ganham formas, movimentos, cheiros, paisagens, toques, cores e sons que levam o visitante a uma viagem sensorial pela nossa cultura. A mostra interativa ocupa 600 metros quadrados, em cinco módulos: Biografia, Danças, Oralidade, Crenças e Cozinha Brasileira. Baseado no estudo História da Alimentação no Brasil, este último módulo esmiúça nossas origens alimentares em seus vários estágios: a infância do Brasil, com a ementa portuguesa, a dieta africana e o cardápio indígena. De terça a domingo, das 10h às 18h, na Praça da Luz, s/n°, (11) 3322-0080. R$ 6 e grátis aos sábados.
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FOTOS: DENISE ANDRADE/DIVULGAÇÃO
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Mais música O filme Premê – Quase Lindo, de Alexandre Sorriso e Danilo Morais, revisita a trajetória do grupo Premeditando o Breque, banda do movimento da Vanguarda Paulistana que está na ativa há quase 40 anos. O documentário, recentemente lançado em DVD, apresenta toda a irreverência do grupo e resgata imagens raras captadas em shows, ensaios, festivais e programas de TV. Está lá toda a identidade musical que o Premê mantém desde o início: as letras irônicas, as críticas bemhumoradas e as crônicas do cotidiano nacional.
Terreiros no museu
CARYBÉ – LAÔS/DIVULGAÇÃO
Hector Julio Paride Bernabó, o Carybé, era argentino de nascimento, baiano por opção e carioca por criação. Morto em 1977, o artista tem até hoje sua produção associada à Bahia, cuja essência materializou em desenhos, aquarelas, esculturas e grandes murais. A exposição As Cores do Sagrado, em cartaz até 20 de dezembro na Caixa Cultural Rio de Janeiro, apresenta 50 obras em que ele registrou as tradições do candomblé baiano. As imagens foram produzidas ao longo de 30 anos de pesquisas, entre 1950 e 1980, e são registros (reais) de suas vivências pessoais nos terreiros que frequentava. De terça a domingo, das 10h às 21h, na Galeria 2 da CCRJ, na Avenida Almirante Barroso, 25, centro do Rio de Janeiro, (21) 3980-3815. Grátis.
Nossos ritmos As páginas coloridas do livro Choro e Música Caipira (Editora
Moderna, 64 págs.) apresentam para crianças, de forma simples e divertida, a história dos dois ritmos brasileiros. Os autores, Carla Gullo, Camilo Vannuchi e Rita Gullo, contextualizam o assunto com os principais acontecimentos sociais do país e apresentam os grandes sucessos, os principais compositores, além de curiosidades sobre os dois gêneros musicais. Este é o segundo volume da coleção Ritmos do Brasil. O primeiro, Samba e Bossa Nova, foi lançado em 2014, e o terceiro, sobre Jovem Guarda e Tropicália, deve chegar às livrarias em 2016. Preço sugerido: R$ 44. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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Aventuras As expressões culturais e o cotidiano de diversos povos captados pelo fotógrafo, etnólogo e babalaô franco-brasileiro Pierre Verger estão em cartaz no Museu Afro Brasil, em São Paulo, até 30 de dezembro. As Aventuras de Pierre Verger reúne cerca de 270 imagens registradas por ele em diversas partes do mundo. Além de fotografias e vídeos, a mostra traz 11 ilustrações do artista visual baiano Bruno Marcello (Bua), com representações reais e ficcionais de diversos episódios vividos por Verger, o que acaba traçando um paralelo entre sua obra e a popular série de quadrinhos As Aventuras de Tintim, do belga Hergé. De terça a domingo, das 10h às 18h, no Parque Ibirapuera. R$ 3 e R$ 6. Informações: (11) 3320-8900.
Alger, Argélia, 1935
Suavidade
Angústia
Chegou às lojas em meados de outubro o quarto disco solo de Roberta Campos. Com 12 faixas, Todo Caminho é Sorte traz a voz doce da mineira em canções próprias sobre o amor e a vida. Com Fernanda Takai, ela compôs Abrigo, um folk tristonho sobre solidão e ausência. Amiúde tem participação de Marcelo Camelo nos vocais e de Marcelo Jeneci nos teclados. A única faixa que não é de autoria da cantora é a delicada e nostálgica Casinha Branca, versão fiel ao sucesso lançado por Gilson e Joran no final da década de 1970. Com uma pegada essencialmente folk, o álbum foi lançado em formato digital e o CD será lançado no final do mês, ambos pela Deck Disc. R$ 28,90 (preço sugerido para o CD).
O jornalista norte-americano Héctor Tobar acaba de lançar no Brasil o livro Na Escuridão (Objetiva, 328 págs.). A obra, sobre o resgate dos 33 mineiros presos durante o desabamento da mina San José, no Chile, em 2010, deu origem ao filme Os 33, com Antonio Banderas, Rodrigo Santoro e Juliette Binoche. A grande reportagem conta essa história a partir do ponto de vista dos mineiros: não apenas sobre os 69 dias em que ficaram presos sob centenas de metros de rochas, mas também sobre a vida que os levou até lá. Aceitação da morte, o desespero trazido pela escuridão, o silêncio desesperador e o som destrutivo das pedras. Tobar, que teve acesso exclusivo aos mineiros, conta uma história de terror e traz ao leitor as sufocantes lembranças daqueles homens. R$ 30 (e-book) e R$ 45.
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Fábula antibullying Era uma vez, um patinho que nasceu com uma cor diferente da de seus irmãos e dos outros animais de sua espécie… Não, esta não é a fábula O Patinho Feio, do dinamarquês Hans Christian Andersen, mas sim a história do novo livro do escritor gaúcho Esteban Rey Fontan. A Lenda do Patinho Azul (Versus Editora, 48 págs.) apresenta as dores, os sonhos e as angústias de uma avezinha que luta diariamente contra humilhações e desconfianças. Em sua jornada, encontramos uma raposa astuta e hipócrita, uma coruja perspicaz e algumas galinhas carinhosas. Com ilustrações de Cledson Bauhaus, o livro infantil é uma ferramenta antibullying, contra discriminações e pró-amizade. R$ 35.
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Ife, Nigéria
FOTOS: FUNDAÇÃO PIERRE VERGER/DIVULGAÇÃO
Kidal, Mali, 1935
Adolescência Oito anos depois de lançar um documentário sobre seu pai (Person), a atriz, cineasta e apresentadora Marina Person leva aos cinemas Califórnia, seu primeiro longametragem de ficção. Cheio de elementos autobiográficos, o filme acompanha a história de Estela, uma adolescente de 17 anos em 1984. Em meio às já conturbadas descobertas dessa fase da vida, a garota percebe que não poderá fazer a viagem dos sonhos. Seu maior ídolo, tio Carlos (Caio Blat),
ALINE ARRUDA/DIVULGAÇÃO
Rio Niger, Gao, Mali
está voltando da Califórnia muito doente, situação que vai mudar definitivamente a forma como a menina vê o mundo. Passando pelo ambiente de redemocratização, o surgimento da aids e a efervescente cultura pop, o filme de Marina traz uma trilha sonora fundamental para apresentar a época: The Cure, David Bowie, New Order, Echo and The Bunnymen, Joy Division, Titãs, Paralamas, Metrô e Kid Abelha. Estreia em 3 de dezembro. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO/DEZEMBRO 2015
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ATITUDE
Mãos à obra e pés na terra
FOTOS: JOKA MADRUGA/MST
Feira de produtos da reforma agrária, realizada em São Paulo, mostrou lado menos conhecido da atividade do MST
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urante quatro dias, de 22 a 25 de outubro, uma feira movimentou o tradicional Parque da Água Branca, na zona oeste de São Paulo, inaugurado em 1929 e um reduto de apreciadores do ambiente interiorano. Os “feirantes” eram novidade para a megalópole. Vieram de 23 estados e do Distrito Federal, de assentamentos e acampamentos. Alguns viajaram dias e noites para participar da 1ª Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ao expor os produtos feitos por trabalhadores rurais de todo o país, o MST pretendia exibir uma face menos conhecida, mas intensa, o resultado das ações dos sem-terra. Eles mostraram centenas de itens, de frutas a artesanato, passando por leite, arroz, café, açúcar mascavo, doces, queijo, mate, cachaça 66
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artesanal, feijão, sucos, rapadura, mel, castanhas, farinha. Umaextensa produção que reflete a diversidade brasileira no campo e mostra, ainda com vários desafios a superar, a organização dos assentados e acampados em cooperativas. A ideia também era debater a importância de desenvolver outros modelos de produção no campo, alternativos ao agronegócio, alertar para o perigo dos agrotóxicos e ressaltar o significado da agricultura familiar para a alimentação. Em torno de 150 mil pessoas passaram pela feira, que reuniu ainda uma área de alimentação, com pratos de todas as regiões. Foram vendidas 220 toneladas de produtos. E a cantoria também correu solta. Além de músicos, alguns anônimos, que tocavam em várias áreas da feira, o palco recebeu gente como Pereira da Viola, Chico César, Zé Geraldo e o grupo de mulheres percussionistas Ilú Obá de Min.
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