Revista do Brasil nº 041

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PERIGO NA MESA Obesidade é o novo bicho-papão que assombra as crianças

nº 41

novembro/2009

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Protesto do Greenpeace em frente a fábrica em Berlim

O GÁS DO FIM DO MUNDO

Protocolo de Kyoto não freou aquecimento nem terá fase 2. Clima exigirá dos países metas mais duras de redução de emissões, sem afetar desenvolvimento dos pobres VALE DO PATY Na Chapada Diamantina, comunidade resiste dentro do Parque Nacional


O Brasil tem uma dívida consigo mesmo: mais de 140 famílias de desaparecidos políticos que, mesmo depois de décadas, ainda não conseguiram enterrar seus mortos.

Ajude o Brasil a conhecer seu passado e seguir em frente. Encontrar esses corpos não é apenas respeitar o direito sagrado de seus familiares, mas a forma mais digna do país encerrar um triste período da sua história, olhar para a frente e seguir adiante.

Se você tem informações ou documentos sobre o período de 1964 a 1985, acesse www.memoriasreveladas.gov.br. O sigilo de sua identidade é garantido. Manifestação de familiares de desaparecidos políticos. São Paulo, 16/12/1981.

Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.


Editorial

EDUARDO ZAPPIA

Ambiente 12 Ricos têm de arcar com parcela maior da conta do aquecimento Entrevista 16 Carlos Nobre: metas de Kyoto foram tímidas para deter efeito estufa Economia 20 Recém-saído da crise, mercado já quer voltar a ganhar mais com juros Política 22 O novo jeito tucano de governar paralisou o Rio Grande do Sul América Latina 24 Esquerda tem vitória expressiva no Uruguai, mas enfrentará 2º turno Saúde 26 Participação dos pais é essencial para detectar e tratar a obesidade infantil Raça 36 Próximo censo vai confirmar aumento da autoestima da população negra Perfil 38 Documentarista inglesa, Lorna Lavelle luta contra drogas com ONG brasileira Comportamento 40 Pode parecer inofensiva, mas internet causa danos psicológicos e até morte

Viagem 44 Beleza e histórias no Vale do Paty, no Parque da Chapada Diamantina

SEÇÕES Cartas

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Ponto de Vista

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Na Rede

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Em Transe

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Retrato

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Curta Essa Dica

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Crônica

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JIM BOURG/REUTERS

Índice

Obama e o apresentador da Fox News Bill O’Reilly: canal não faz jornalismo “de verdade”

Obama e a raposa

A

rede Fox está em guerra contra Barack Obama. Não precisamos fingir que o modo como essa organização trabalha é jornalístico. Quando o presidente fala à Fox, já sabe que não falará à imprensa propriamente dita. O presidente já sabe que estará debatendo com um partido da oposição. Rupert Murdoch tem talento para fazer dinheiro, e eu entendo que sua programação é voltada a fazer dinheiro. Só o que argumentamos é que seus veículos não são um canal de notícias de verdade. E nós vamos tratá-los assim.” Essa declaração da diretora de Comunicação da Casa Branca, Anita Dunn, mostra que o presidente norte-americano, Barack Obama, comprou briga contra a Fox News, a qual considera braço do partido republicano. O presidente não dá mais entrevista à emissora nem lhe envia mais informações oficiais. Como se lê na nota, a questão não é a crítica, mas o comportamento geral e permanente daquilo que os jornalistas chamam de mídia neoconservadora. O principal assunto que motivou o confronto foi a discussão sobre a reforma no sistema de saúde. Lá, inexiste sistema público, tudo é privado e caro. O partidarismo das empresas de comunicação ocorre em toda a América Latina. No Brasil, nos últimos anos, vários profissionais denunciam a existência de um Partido da Imprensa Golpista (PIG) e de um Programa Unificado da Mídia (PUM). O golpismo refere-se à campanha enredada a partir de 2005 para derrubar o presidente Lula, mais os ataques viscerais contra tudo o que se refere a social, sindical, popular, de esquerda, progressista, para negros, índios, desenvolvimentismo, cotas, bolsas, seja lá o nome que se dê a qualquer coisa que não o Estado reassumindo responsabilidades para dar às sociedades respostas que o mercado e o mundo privado não deram. Toda essa articulação em escala mundial pode ser explicada pelo fracasso do modelo neoliberal, o reflorescimento das políticas públicas voltadas para a redução das desigualdades, do alinhamento entre países do Hemisfério Sul, do crescimento econômico no Terceiro Mundo a partir de uma lógica socialmente inclusiva. A crise mundial, a derreter a ideia de que a desregulamentação de mercados seria melhor para o crescimento, foi o mais duro golpe nessa ideologia superada. A reação a Obama confirma a articulação midiática neoconservadora, estimula o trabalho de denúncia contra as raposas por aqui e ajuda na construção de uma nova mídia para um novo Brasil, da qual a Rede Brasil Atual se orgulha de fazer parte. NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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A Petrobras desenvolveu tecnologia para chegar aonde nenhuma outra empresa chegou: 6 mil metros de profundidade, na camada do pré-sal. Lá, a Petrobras descobriu uma quantidade gigantesca de petróleo. Em alguns anos, a produção no Brasil vai dobrar. É um novo país que vai nascer do fundo do mar. Com mais riquezas, mais desenvolvimento, mais indústrias, mais empregos, mais capacitação profissional

Pré-sal.

e um futuro melhor.

Futuro que vem

E é nesse Brasil

do fundo do mar.

que você vai viver.

www.petrobras.com.br/presal


Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Bernardo Kucinski, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jessica Santos, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Thiago Domenici, João Peres e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Johannes Eisele/Reuters Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Nominal (11) 3063-5740 Poranduba (61) 3328-8046 Adesão ao projeto (11) 3241-0008 Atendimento: Claudia Aranda Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Admirson Medeiros Ferro Jr., Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Alberto Grana, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Edílson de Paula Oliveira, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sebastião Geraldo Cardozo, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Vinicius de Assumpção Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Luiz Cláudio Marcolino Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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Promotoras Parabéns pela capa sobre as promotoras legais populares (Basta de covardia, ed. 40). Como militante da causa, sinto que ainda temos muito a caminhar. Os municípios não têm uma política e muito menos uma rede de atendimentos, com núcleos de defesa especializados, abrigos de proteção à mulher, protocolo de atendimento etc. Mulher em situação de violência, os filhos sofrem, e a sociedade toda perde. Celina Aparecida Simões, São Paulo (SP) celinasimo@yahoo.com.br Viva o Saci Parabéns ao Mouzar Benedito, que escreveu uma bela crônica (Que raloín que nada, ed. 40) sobre as comemorações do raloín (halloween), que não tem nada a ver com a nossa cultura. Viva o Dia do Saci. Igor Souza dos Santos, Rio de Janeiro (RJ) igorsouza@petrobras.com.br Mesmo saco, não Meu caro José Carlos Vaz Pezeta (Mesmo Saco, Cartas, ed. 40), fiquei muito entristecido. Afirmar que Veja, Época, IstoÉ e Revista do Brasil são iguais é não conhecer nenhuma. Quando você se refere à edição nº 39, não percebeu ou não leu os resultados de várias pesquisas que evidenciam o grande diferencial entre Brasil e outros países em relação à crise mundial? José Eudes (Profeta), S.B. do Campo (SP) profeta.abc@bol.com.br Fígado de Jaguar Excelente a entrevista com Jaguar (ed. 39), o cara é genial. Ficou uma sensação enorme de quero mais; quer dizer, poderia ser mais extensa. Parabéns ao Tom Cardoso. Carlos Roberto da Silva, Ribeirão Pires (SP) atillacarlos@terra.com.br Impressionante dar destaque a uma entrevista com um senhor que somente incentivou vícios, além de utilizar um linguajar incompatível com qualquer veículo decente de comunicação. Por favor, não merecemos isso. Welinton G Oliveira, São Paulo (SP) wellgo@ig.com.br

Águas Claras Fiquei feliz com a reportagem “Paz, amor, bossa nova e rock’n’roll”, (ed. 40). Como professor de história, faltam-nos informações sobre como nossa juventude reunia-se pacificamente, e como tantos ex-exilados, hoje artistas consagrados, conseguiram influenciar positivamente jovens a buscar seus direitos, apesar da ditadura que reinava. Parabéns por mais essa aula de cidadania. José A. M. Freitas, Lorena (SP) millet.freitas@hotmail.com Outras alternativas Com a reportagem de capa da edição 38 (Justiça para todos), pode-se visualizar o árduo trabalho desenvolvido pelas Defensorias Públicas. Cumprimentamos a iniciativa da Revista. Mas esse não é “o único caminho”. Diversos são os postos de assistência jurídica gratuita disponibilizados pelos municípios. E diversas são as faculdades que prestam esse valoroso serviço. Na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, que é uma autarquia municipal, foram atendidas mais de 30 mil pessoas de da comunidade em 2008. Simone Dias, Fac. de Direito de S.B. do Campo comsocial@direitosbc.br Esperando a banda passar A telefonia no Brasil está um caos e as empresas estão ganhando cada vez mais (Lenta, falha e cara, ed. 38). Dia 4 de setembro estive na cidade de São Raimundo Nonato (PI), e os serviços de banda larga estavam fora do ar. Ao reclamar, fui informado de que os sistemas não acusavam problemas. Fui contatado pela empresa apenas no dia 11, quando não estava mais na cidade. Fiquei três dias sem acesso à internet. Indaguei diversos clientes da região e fui informado de que não adianta reclamar, as empresas não fazem nada mesmo. João de Moura Neto, Teresina (Piauí) jmnxx@oi.com.br revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

A terra e o sangue As reformas agrárias sempre foram atos de astúcia dos governantes e fazem parte da história das grandes democracias. Mas alguns se esquecem disso

A

CPI que os barões do agronegócio – e sua pronunciamento, no princípio de outubro, o desembarbancada no Congresso – querem mover gador Amílton Bueno de Carvalho foi incisivo: “Nós, contra o MST é perigosa provocação com juristas, podemos fazer a reforma agrária, sem nenhuobjetivos eleitorais. Se a senadora Kátia ma nova lei. Apenas exigindo o cumprimento da funAbreu e o deputado Ronaldo Caiado, seus ção social da terra, prevista na Constituição”. No caso vociferantes porta-vozes, dedicassem ao estudo da His- brasileiro, 90% das grandes glebas foram griladas no tória parte do tempo que passam contando seus bois último século. Se o governo promover a perícia nas e verificando os limites de suas fazendas, seriam mais escrituras lavradas, principalmente nas áreas de ocucomedidos. As reformas agrárias sempre foram atos de pação mais recente, descobrirá que quase todas as esastúcia dos governantes. Os homens se alimentam da crituras são falsas. terra, que produz e reproduz a vida, como é óbvio, mas O MST, ao contrário do que diz a grande imprensa, alguns se esquecem disso. A primeira refortem evitado o pior. Reúne a esperança dos ma agrária bem documentada, a de Sólon, É mentira que habitam a miséria e contém a revolta na Grécia, ocorreu 594 anos antes de Cristo. corrente latente dos desempregados e dos expulsos Naquele tempo os lavradores eram que sem o pelo latifúndio. Parte da classe média urobrigados a dar aos donos da terra cinco bana ainda não percebeu que, sem a ocuagronegócio sextos da produção, ficando apenas com pação de terras improdutivas, a fome levaum sexto para a ali mentação das famílias. não seria ria a rebeliões sangrentas, como tantas ao A situação chegara a um ponto insusten- possível longo da História. Em 1358, os camponetável e, logo que eleito arconte (naquele alimentar ses de extensa região da França se revoltatempo, principal governante) de Atenas, o povo ram contra os nobres senhores. A revolta Sólon mandou libertar os servos, deter- brasileiro. O foi derrotada e sufocada com sangue, mas minando a destruição dos marcos que lia nobreza, dizimada diante da ira dos poagronegócio mitavam as áreas trabalhadas pelas famíbres. Famílias inteiras dos barões e condes lias, anulou os débitos dos trabalhadores e produz para foram degoladas, poupando-se apenas as abriu caminho para que o Estado atenien- exportar. Para crianças. No Brasil, o que tem ocorrido é se florescesse nos dois séculos seguintes. o massacre dos trabalhadores. Nos últio consumo Em Roma, a primeira tentativa de re- interno, mos anos, mais de 1.600 militantes foram forma agrária, a do nobre Espúrio Cássio, produz a assassinados por pistoleiros de latifundiá486 a.C., foi abortada com o sangue de seu rios e forças policiais. sufocada criador. A reforma agrária geral, encetada No caso recente da invasão da fazenda por Tibério e Caio Graco 350 anos depois, agricultura da Cutrale, as terras pertencem à União, trouxe efeitos práticos, mas custou a vida familiar que nelas estabeleceu uma colônia agrícodos dois irmãos, assassinados pelos nola em 1909. O MST ocupa terras ociosas bres. A retomada da situação anterior, com sua injustiça e ilegais. O Censo de 2006 revela 15 mil proprietários estrutural, fomentou a grande Rebelião de Espártaco. para 98 milhões de hectares. Um por cento dos donos Mas, se muitas das reformas agrárias romanas foram controla 46% das terras cultiváveis. frustradas, Pompeu conseguiu realizar uma, de grande Uma mentira corrente é que, sem as grandes planastúcia política. A fim de combater os piratas do Me- tações do agronegócio, não seria possível alimentar o diterrâneo, distribuiu terras nas costas férteis da Áfri- povo. Ora, o agronegócio produz para exportar. Para o ca romana aos que deixassem a atividade. Foi a forma consumo interno, principalmente no interior do país, inteligente de liberar o mar para os barcos de Roma. produz a agricultura familiar, que vem sendo sufocada Os latifundiários brasileiros alardeiam o direito de pelos tentáculos do latifúndio, hoje negócio dos granpropriedade, a fim de impedir a reforma agrária. Em des banqueiros e corporações multinacionais.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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RAQUEL CAMARGO

Aquecimento para Copenhague JAILTON GARCIA

NaRede

SIDNEY MURRIETA/IPEA/DIVULGAÇÃO

Com suas campanhas salariais, bancários e metalúrgicos injetam mais dinheiro na economia

A roda da economia

Por Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Thiago Domenici

Parece incrível que trabalhadores ainda precisem fazer greve para melhorar o salário. Os lucros convertidos em salários, abonos, participação nos resultados – enfim, renda – representam uma injeção de dinheiro que faz girar a economia. Apesar disso, a renda não melhora sem pressão. Foi o que aconteceu com algumas das maiores categorias em campanhas salariais neste semestre, como bancários e metalúrgicos, depois de alguns dias parados e muito protesto. Acordos coletivos asseguraram a cerca de 58 mil empregados de montadoras e de 75 indústrias de autopeças na região do ABC paulista 6,53% de reajuste salarial – que vai injetar R$ 123 milhões na economia da região até fevereiro de 2010. Os bancários, que têm convenção coletiva nacional válida para 459 mil pessoas, fizeram de 15 a 28 dias de paralisação para alcançar, entre outros pontos, índice de 6%. Depositado na conta dos trabalhadores, o dinheiro representará R$ 106 milhões a mais por mês na economia, ou R$ 1,3 bilhão em um ano ano. A primeira de duas parcelas da PLR dos bancários a ser paga ainda neste semestre representa uma soma estimada em R$ 1,6 bilhão. Para José Silvestre Prado de Oliveira, coordenador de Relações Sindicais do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as greves vão continuar. “É um dado: aumento real é sinônimo de mais recursos que estimulam a roda da economia. Mas para os patrões significa elevação de custo, que, dependendo da conjuntura econômica, não pode ser repassado aos produtos.” Silvestre ressalta que, independentemente disso, é uma prática do segmento patronal dificultar aumentos nos salários. “Com a perspectiva de queda da inflação, significa dizer que os salários médios (elevados por esses aumentos reais) serão maiores que os observados no período anterior. São aspectos que justificam, por assim dizer, a intransigência patronal, em que pese o fato positivo de que aumento real é crescimento.” http://migre.me/9H4z

Destilados são mais poderosos

Deste lado é pior Apreciadores de uísque, cachaça, vodca e outras bebidas destiladas têm maior dependência alcoólica, mais recaídas e menor aderência ao tratamento para parar de beber. A conclusão é de um estudo inédito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que comparou os consumidores de diferentes drinques. http://migre.me/9Gkf

“Negro desaforado” A recém-lançada biografia do líder negro Abdias Nascimento, 95 anos, de autoria da jornalista Sandra Almada, é uma referência para combater o racismo e as desigualdades raciais. O escritor Nei Lopes o define como “o elo maior” do movimento. “É o nosso boabá (árvore sagrada no candomblé), que guarda toda a vida e história de nossa africanidade”, afirmou. Abdias se diz um “negro desaforado” ao explicar as contradições raciais no Brasil. http://migre.me/9vt4.

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Nos preparativos para a Convenção sobre Mudanças Climáticas da ONU, em Copenhague, em dezembro, o economista Ladislau Dowbor falou à RBA que o evento é um momento em que o mundo faz um balanço. “Estamos destruindo o planeta. Que melhorias devemos fazer?”, indagou. “Está evidente que o modelo de vale-tudo não funciona. Ético é quanto a pessoa conseguiu contribuir para melhorar o planeta, e não quanto arrancou dele. Essa é a virada básica, é a condenação da ética do neoliberalismo.” http://migre.me/9Gim

Abdias Nascimento


IOF: “Quem rosna é suspeito” FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

A decisão do governo de taxar investimentos estrangeiros no país causou queda de Luiz 2,9% na Bolsa de Gonzaga Valores de São Belluzzo Paulo no dia 20 de outubro. O “mercado” se aborreceu com a alíquota de 2% de IOF sobre os investimentos estrangeiros na Bolsa e em fundos de renda fixa. “Tem gente aí chiando porque está interessada em seus ganhos pessoais, em ganhar o Copom (taxa Selic) mais a valorização do dólar. As pessoas que estão rosnando são muito suspeitas”, disparou o economista e professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista ao repórter Rodrigo Rodrigues, do Jornal Brasil Atual. Para Belluzzo, o temor do mercado não se justifica. A medida serve para desestimular aplicações que fiquem por pouco tempo no país. Luiz Nassif também criticou a cobertura da imprensa, que ouviu apenas analistas contrários à medida. “Quando se pega a imprensa financeira de maneira geral, ela só reflete esse segmento (de especuladores)”, lamentou. A intenção do governo é impedir que uma queda brusca do dólar frente ao real prejudique o setor exportador. Desde o início do ano, a moeda americana já se desvalorizou 25%. Nassif observa que, apesar de a taxação só ter efeito no curto prazo, é necessária para evitar que o dólar chegue à temida casa de US$ 1 a R$ 1,60. A reportagem pode ser ouvida na íntegra em http://migre.me/9GKO. O Jornal Brasil Atual é sintonizado de segunda à sexta, das 7h às 8h, nos 98,1 FM (para a Grande São Paulo) ou a qualquer momento na internet, em www.redebrasilatual.com.br/radio.

Professores merecem mais

Estudo inédito da Unesco concluiu que o magistério representa 15,9% das vagas femininas geradas no Brasil. No entanto, a questão de gênero não foi superada e a maioria das docentes está na educação básica, especificamente no ensino fundamental, com salários mais baixos e problemas na formação. http://migre.me/9vpW. A Rede também publicou série sobre o Dia do Professor. Não fosse a luta por melhorias como o piso salarial nacional – atual­mente um dos menores de profissionais de nível superior –, não haveria o que comemorar. http://migre.me/9vrl.

Verba vai, chuva vem

STRINGER BRAZIL/ REUTERS

Kassab e Serra: firmeza na propaganda

Os orçamentos da prefeitura e do governo de São Paulo serão reduzidos em algumas áreas essenciais em 2010, enquanto as verbas de publicidade darão um vultoso salto: 240% somente no município. Saúde, transportes, esportes, infraestrutura e obras, cultura e ações relacionadas às pessoas com deficiências e mobilidade reduzida sofreram perdas, assim como todas as subprefeituras do município, de 30% a 40%. A publicidade de Serra e Kassab, juntos, chega a R$ 225 milhões. A esse bolo de contradições, acrescentem-se a previsão de fortes chuvas e a redução de R$ 52 milhões nas verbas estaduais de combate a enchentes. http://migre.me/9vlg

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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Por Rodrigo Savazoni (emtranse@revistadobrasil.net)

JOSHUA ROBERTS/REUTERS

EmTranse

O efeito Obama Nova lei eleitoral libera uso da rede nas campanhas de 2010. Mas o que cidadãos e candidatos pretendem fazer com a liberdade?

A

pós o terremoto midiático ocasionado pela campanha eleitoral de Barack Obama, o Legislativo brasileiro se moveu e modificou a lei eleitoral para permitir o uso da internet. O novo marco regulatório começa a vigorar a partir do ano que vem, quando haverá eleições para deputado estadual, federal, senador, governador e presidente. O principal legado da campanha de Barack Obama é a percepção definitiva de que são os eleitores e suas articulações que fazem a diferença em qualquer processo eleitoral. Como afirma Ben Self, o estrategista digital da campanha de Obama, que vai trabalhar para o Partido dos Trabalhadores no ano que vem, não existe mágica. “Quando você contamina as pessoas com a paixão por uma causa real, a técnica e a tecnologia são meros suportes”, afirmou Self à revista Meio Digital. No Brasil, no entanto, a técnica e a tecnologia estavam parcialmente inacessíveis. Agora, barreiras de impedimento à livre utilização da rede foram removidas. 10

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Na campanha de Obama, Self foi responsável por acumular, em doações on-line, mais de US$ 500 milhões. Com a nova lei, o eleitor brasileiro também poderá financiar seu representante, o que constitui, potencialmente, o formato mais democrático de financiamento público. O alerta fica por conta do parágrafo 6º do artigo 23 da nova lei. Nele, define-se que fraudes e erros cometidos na doa­ção “sem conhecimento dos candidatos, partidos ou coligações” não são de responsabilidade dos beneficiados. Ou seja, é bom ficar de olho no formato do recibo oferecido por seu candidato. Se der problema, o culpado pode ser você. Outra evolução é que candidatos e eleitores poderão fazer uso de blogs, redes sociais, mensageiros instantâneos para promover seu candidato. Aquela medida que obrigava o candidato a manter um único website, registrado no Comitê Gestor com o domínio “.can”, é passado. Campanha paga, no entanto, está proibida. Candidatos não podem fazer anúncios na rede.


Com o Congresso assumindo sua prerrogativa de legislar (o que não é atribuição do Judiciário), as regras ficaram mais claras. O anonimato é vedado e o direito de resposta deve ser concedido “no mesmo veí­ culo, espaço, local, horário, página eletrônica, tamanho, caracteres e outros elementos de real­ce usados na ofensa, em até 48 horas após a entrega da mídia física com a resposta do ofendido”. Isso significa que a observação do comportamento dos usuários em seções destinadas a comentários e nos sites baseados em colaboração deverá ser redobrada.

Dúvidas

“Quando você contamina as pessoas com a paixão por uma causa real, a técnica e a tecnologia são meros suportes”

Mesmo com inúmeros avanços, algumas questões ainda estão em aberto. Uma delas diz respeito à promoção de determinado candidato antes do início do período regular de campanha (5 de julho de 2010). No ano passado, o blogueiro Pedro Dória, hoje Ben Self editor-chefe de Conteúdos Digitais do Estadao.com, teve de remover de sua página um banner de promoção da candidatura de Fernando Gabeira à prefeitura do Rio. Como ficará a rede social Marina Presidente, hospedada no endereço www.marinasilvapresidente.org? Como ficará o Blog da Dilma http://dilma13.blogspot.com? Ou o blog Eu Quero Serra http://euqueroserra.blogspot.com? A lei permite o debate de ideias na rede, mas veda o pedido de voto. Esses exemplos podem ser considerados pedidos de voto a um candidato? A interpretação ficará, mais uma vez, com a Justiça Eleitoral. E aí reside o problema, porque se tomarmos o referencial da eleição municipal de 2008 constataremos que a Justiça não compreendeu que a rede não é só um meio de comunicação de massa. É um espaço de conversação. Imagine Zé e João num botequim discutindo uma ideia. Você acha que eles conseguiriam expor de que lado estão sem identificar o candidato que defende aquelas ideias? Na vida, isso é propaganda indevida ou conversa legítima? E na rede? A rede é diferente da vida? Também não há na lei nenhuma menção específica à retirada do site do candidato do ar 48 horas antes da eleição, como havia na anterior. Se não há, conclui-se que o conteúdo pode ficar disponível mesmo no período em que demais formas de propaganda são proibidas. Depreende-se, inclusive, que o conteúdo poderá ser analisado no futuro em caso de vitória do concorrente (o que é um respeito à memória na era digital, sem dúvida). Será assim? A Justiça vai dizer.

De baixo para cima

Você talvez já tenha ouvido a expressão bottom-up, em inglês. Significa de baixo para cima. Faz menção a um modelo de comunicação de muitos para um ou de muitos para muitos, que emerge com a rede mundial de computadores. Com as mídias eletrônicas de massa, o que tínhamos era um fluxo de informação de um para muitos, como a televisão. Você se senta no sofá, e o William Bonner diz o que acontece. Exemplo de atividade “de baixo para cima” é a Wikipedia, a enci-

clopédia colaborativa, em que todos podemos trabalhar para produzir um verbete melhor. A campanha de Barack Obama foi um exemplo de uso dessa energia em favor da transformação social. Segundo Ben Self, “não fizemos mágica, apenas dotamos o eleitor de poder, voz e tecnologia”. Ele fez o resto. Existem boas práticas de mobilização política que ganham ainda mais força com a rede. Ben Self: “Ali (no portal de Obama), o internauta encontrava as ferramentas que precisava para criar sua própria comunidade, organizar eventos, promover debates etc. Nosso objetivo primário nunca foi gerar tráfego para o site. Ao contrário, era fazer com que as pessoas, uma vez dotadas de nossas ferramentas digitais, nunca mais voltassem lá. Vital era que, na internet ou em sua comunidade na vida física, real, elas replicassem nossa mensagem”. Candidatos vão se destacar se adotarem soluções tecnológicas simples que os ajudem a falar direto e sempre com as pessoas, de forma transparente e verdadeira. Outras boas medidas são ouvir o que os cidadãos têm a dizer e usar isso em seu favor, estimular a militância espontânea e promover seu envolvimento no processo, o que é sempre positivo. No mais, é ser capaz de inspirar e propor a melhora de vida das pessoas e não fazer concessões e alterações de discurso para diferentes públicos, porque na rede tudo está sendo visto.

FIQUE DE OLHO Candidatos e partidos podem n Promover ideias e participar de discussões antes do início

da campanha oficial (em 5/7/2010), sem pedir votos. n Receber doação pela internet, inclusive por meio de cartão

de crédito. O doador tem de ser identificado e um recibo deve ser emitido. n Criar quantos sites quiser, usar redes sociais, como Orkut e Facebook, mensageiros instantâneos, ferramentas como Twitter e YouTube etc. n Enviar mensagens por e-mail, com consentimento do eleitor. n Pedir direito de resposta. n Pedir a suspensão do site de quem infringir a lei.

Candidatos e partidos não podem n Fazer propaganda antes do dia 5 de julho. n Fazer propaganda paga, de qualquer natureza. n Comprar mailing para enviar mensagens eletrônicas (spam). n Vender mailing dos eleitores cadastrados em seu site. n Fazer propaganda em sites de pessoas jurídicas,

com ou sem fins lucrativos. n Fazer propaganda em sites de órgãos públicos.

Sim, você pode n Fazer campanha pela rede, usando websites,

blogs e redes sociais. n Contribuir financeiramente, por meio de cartão de crédito,

para a campanha de candidatos. n Fiscalizar a propaganda na rede com base em regras mais claras. n Exigir que seu nome seja retirado da mala direta de um candidato

em 48 horas. Se o candidato for denunciado, terá de pagar à Justiça multa de R$ 100 por dia de infração. n Ser punido se for pego fazendo propaganda eleitoral falsa na internet.

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AMBIENTE

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a grande conferência sobre mudanças climáticas convocada para dezembro em Copenhague, na Dinamarca, há um risco de que o Protocolo de Kyoto seja simplesmente enterrado. E que nada de melhor surja no lugar. Se isso acontecer, como parece provável depois do fiasco da conferência preparatória do mês passado em Bangcoc (Tailândia), será um gigantesco retrocesso civilizatório. A conferência de Bangcoc terminou em fracasso depois que delegados dos 130 países menos desenvolvidos abandonaram o plenário em protesto contra uma sugestão dos países ricos, de criar um novo acordo sobre o clima em vez de discutir a implementação da fase 2 do Protocolo de Kyoto, para 2012 em diante. Nova conferência preparatória, em Barcelona, neste início de novembro, seria a última chance de aproximar posições antes de Copenhague. O Protocolo de Kyoto é o único mecanismo compartilhado entre nações ricas e pobres que limita emissões de gás carbônico sem limitar o desenvolvimento de países pobres. Firmado em 1997 para ter sua primeira fase de metas de redução de emissões entre 2005 e 2012, é o primeiro tratado internacional desse porte em toda a história da humanidade regido pelo princípio da equidade: tirar dos que já têm muito para dar aos que têm de menos. E único criado a partir de uma lógica científica de interesse público, e não a lógica do poder. Pelo protocolo, os 37 países ricos signatários – que já atingiram níveis altíssimos de bem-estar social e que mais produzem gases de efeito estufa, como o CO2 – comprometem-se a reduzir gradualmente suas emissões, de modo a atingir, em 2012, os mesmos níveis de 1990. Os países pobres ficam isentos dessas obrigações, já que ainda precisam criar muito emprego, tirar o atraso em relação a infraestrutura e geração de energia, construir moradias e redes de saneamento básico, para atingir padrões aceitáveis de sustentabilidade humana. No jogo tradicional do poder, os mais fortes retêm privilégios e ditam regras. No tratado de não proliferação de armas nuclea­ res, por exemplo, as potências nucleares ficam autorizadas a manter seus arsenais e ganham poder de punir os que ousarem tentar construí-los. O Protocolo de Kyoto faz o contrário: estabelece obrigações que limitam os ricos e não amarram as mãos 12

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A conta da Fracasso em negociações para combate ao aquecimento mostra que, mesmo estando em jogo uma catástrofe ecológica, países ricos não abandonam estratégias de dominação. No Brasil, empresários antecipam-se na busca de novo padrão de produção e por lucro com a transição Por Bernardo Kucinski

HAJA PULMÃO Fina camada de poluição cobre a cidade de Pequim

dos países pobres. E mais: pelo engenhoso Mecanismo do Desenvolvimento Limpo (MDL), os países ricos podem cumprir metas de redução de gás carbônico dando dinheiro para projetos que reduzam essa emissão em países pobres. Pode-se plantar uma floresta no Brasil ou instalar um projeto de reciclagem de lixo e, com base no cálculo da quantidade de gás carbônico a ser retirada da atmosfera, vender um certificado correspondente a um governo ou empresa de país rico, que com isso cumpre sua obrigação contratada no tratado, de cortar emissões. Esse papel, chamado Redução Certificada de Emissão (RCE), é negociado em diversas bolsas de valores do mundo, incluin-

do a Bovespa. Como não importa para o planeta Terra se o corte da emissão foi no Brasil ou na Alemanha, cumpre-se o objetivo maior do tratado, de impedir uma catástrofe pelo aquecimento global, e incentivam-se países pobres a atingir níveis adequados de desenvolvimento humano. É tudo racional, engenhoso e edificante. Com o Protocolo de Kyoto, pela primeira vez, cientistas alinharam-se não aos mais fortes, e sim aos mais fracos. Um marco na história das relações da ciência com o poder.

Velho imperialismo

A mudança de posição dos países ricos na conferência preparatória de Bangcoc assustou o bloco dos pobres. O principal item


DAVID GRAY/REUTERS

estufa

O planeta cada vez mais sujo Emissão total de gases causadores do efeito estufa (em bilhões de toneladas/ano) 6,1

5,7 3,9

O Brasil está abaixo do 20º lugar, com 352 milhões de toneladas/ano

1,5

China

EUA

Emissão de gases causadores do efeito estufa por habitante (em toneladas/ano)

19

O Brasil emite apenas 1,9 tonelada e está em 123º lugar 16,7 10,1

1,2

União Rússia Japão Europeia e Índia

9,7 3

EUA Canadá Japão Alemanha China

em discussão é a proposta do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU, de impor aos países ricos, na fase 2 do Protocolo de Kyoto, uma redução de 20% a 45% nas emissões de gases de efeito estufa até 2020 (em relação a 1990). É o que foi estimado como necessário para impedir que a temperatura da atmosfera da Terra suba mais do que 2 graus Celsius. Como os europeus estão cortando as emissões além do que manda o protocolo, não é por essa obrigação que querem acabar com o tratado. Mesmo os americanos, que não aderiram às metas de Kyoto, agora estão discutindo uma proposta de Barack Obama, já enviada ao Congesso, de limitar voluntariamente as emissões em 5% até 2020. Por que, então, os europeus querem enterrar Kyoto? A única explicação é que se opõem à outra parte do tratado, o Mecanismo do Desenvolvimento Limpo, que permite aos países pobres se desenvolver sem limites de emissão e, ainda mais, financiados pelos ricos. Não querem que o protocolo sancione a rápida subida de poderio econômico dos países periféricos, pondo em risco seu próprio controle sobre os destinos do mundo e seus recursos naturais vitais, como o petróleo. É o velho imperialismo europeu, que formatou o mundo na era nas navegações e nunca quis entregar a rapadura, mesmo depois do ascenso do império americano. O problema principal dos europeus é a China, que apesar de ainda pobre, com renda per capita média inferior a um décimo da dos americanos, é o maior emissor de gás carbônico do planeta e, não por acaso, um dos que desafiam diretamente a atual hegemonia euro-americana. O argumento dos europeus é que o Protocolo de Kyoto não resolveu o problema do aquecimento global, tanto assim que continua aumentando a concentração de CO2. O argumento é, em parte, válido. Um dos problemas de concepção do protocolo é que os governos assinaram o tratado, mas não controlam as emissões. Ignacy Sachs, o maior especialista mundial em desenvolvimento sustentado, diz que o problema não é propriamente o protocolo, mas o neoliberalismo, que destruiu nossa capacidade de pensar a longo prazo, subordinando tudo ao imediatismo do mercado, míope e insensível a questões sociais e ambientais. Sachs prega não o fim de NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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CHRIS WATTIE/REUTERS

E O ACORDO DE KYOTO? Fantasiado de urso polar (espécie ameaçada de extinção por causa do aquecimento global), manifestante faz pose diante do Parlamento canadense. Os países desenvolvidos querem outro acordo sobre o clima antes de 2012

Kyoto, e sim a reintrodução do planejamento para organizar a transição em direção a uma economia biossustentável. Mesmo com todas as limitações apontadas pelos céticos, só no ano passado os novos créditos de carbono movimentaram US$ 120 bilhões, duas vezes mais que em 2007. Ou seja, agora é que o mercado de compensação de emissões pegou no breu. Obviamente, como a maioria dos 14

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países decidiu entrar firme na reciclagem em direção a uma economia biossustentável, o valor dos créditos tende a crescer exponencialmente, o que ajuda a entender o recuo dos europeus. Enquanto era “para inglês ver”, posavam de altruístas. Agora que o tratado ganha dimensão econômica mensurável, podendo influir nas relações mundiais de poder, não querem mais brincar.

Só no Brasil já foram movimentados US$ 400 milhões em créditos de carbono, beneficiando 417 projetos. Mas a bronca dos europeus é obviamente a China, destino de 37% dos projetos financiados com créditos de carbono. Depois vem a Índia, com 27%, e só então o Brasil, com 4%, empatado com o México. Está claro que o que incomoda os europeus é a ascensão da China, disputando recursos mundiais, almejando padrões mais elevados de vida e ao mesmo tempo recebendo financiamentos a custo zero da fortaleza europeia. Muito espertamente, o governo chinês anunciou a adoção dos princípios de sustentabilidade em todo o seu planejamento econômico de hoje em diante, propondo-se a ocupar a vanguarda da mudança de padrões de produção em direção a uma economia biossustentável. Lula, na mesma direção, prometeu na ONU que o Brasil vai abraçar voluntariamente metas ambiciosas de redução das emissões. A mesma luta entre nações em torno do controle do padrão de desenvolvimento está se dando dentro de cada país, entre empresários, governos e ambientalistas, à medida que cresce a convicção de todos de que mudanças de grande impacto são inevitáveis. No Brasil, restrições severas já afetam a pecuária, a construção pesada e a cana-de-açúcar. Só as novas regras do Código Florestal para manutenção de reservas legais nas propriedades podem reduzir em R$ 71 bilhões ao ano o valor da produção do setor, na estimativa dos pecuaristas. Embora devam estar exagerando, dá para ter uma ideia do que está em jogo. Por isso, os pesos pesados do empresariado brasileiro acabam de se unir numa entidade própria, com o objetivo específico de entrar na briga das mudanças climáticas. No mês passado, 14 associações de empresas dos setores de bioenergia, celulose e papel e agronegócio anunciaram a criação da Aliança Brasileira pelo Clima, já com um documento-base de posicionamento sobre as negociações de mudanças climáticas que deseja ver encampadas pelo governo brasileiro em Copenhague. Os empresários têm duplo objetivo: ganhar hegemonia no debate das novas regras e ao mesmo tempo detectar as novas oportunidades de investimento nos processos de reciclagem de energias e produções sujas, que devem movimentar centenas de bilhões de reais no mundo todo.



ENTREVISTA

JAILTON GARCIA

Muito além de Kyoto

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Carlos Nobre, integrante dos órgãos da ONU sobre mudanças climáticas, não considera o Protocolo de Kyoto fracasso total. Mas alerta que o mundo não tem escolha: a partir de 2012, precisa se impor metas muito mais ambiciosas contra o aquecimento, sem agravar as desigualdades entre os ricos e pobres Por Paulo Donizetti de Souza

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O

Protocolo de Kyoto, redigido em 1997, estipulou que, a partir de 2005, os países ricos deveriam começar a reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa de modo a atingir em 2012 uma emissão 5% menor que em 1990. Mesmo com a comunidade científica considerando tímida essa meta para deter o processo de aquecimento global, o mundo desenvolvido acabou nunca sendo muito cobrado nem o tema comovia a mídia de massas. O soco no estômago da humanidade foi o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU, divulgado em 2007. Esse relatório pela primeira vez demonstrou convicção de que a emissão de gases como dióxido de carbono (CO2), óxido nitroso (N2O) e metano (CH4) não só esquentam demais o planeta como, a seguir nessa toada, a temperatura da Terra pode subir até 4º C antes da virada do século. Para evitar uma catástrofe biológica semelhante à de milhões de anos, quando os dinossauros começaram a desaparecer, os países ricos terão de reduzir drasticamente suas emissões e ainda encontrar um jeito de ajudar as nações mais pobres a crescer, e se tornarem menos vulneráveis a doenças, desnutrição e outros danos do aquecimento já em curso e irreversíveis, como chuvas, tempestades e secas além da conta. O trabalho conferiu ao IPCC, junto com o ex-vicepresidente dos EUA, Al Gore, um Nobel da Paz. Compartilha desse prêmio o brasileiro Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, integrante do painel da ONU sobre o clima e um dos autores do relatório. Para ele, o trabalho mostra que as metas de Kyoto são mesmo insuficientes para deter o efeito estufa. E o mundo vai ter de se desdobrar para um pós-2012 (“para nem usar a expressão pós-Kyoto”, diz) mais rigoroso com os grandes emissores.

Desde os anos 1980 se intensifica a constatação de que o aquecimento global é provocado pela ação do homem. Mesmo assim, não temos conseguido frear como deveríamos esse fenômeno?

Se não alterarmos essa curva de aquecimento e de emissão dos gases, podemos perder 40% ou mais da biodiversidade do planeta até o final do século. É uma catástrofe biológica do tamanho daquela da época da extinção dos dinossauros. Somos uma força transformadora como foi o enorme meteorito que caiu 65 milhões de anos atrás, mudou o clima do planeta e iniciou o desaparecimento de inúmeras espécies. A mudança climática, passada de um certo ponto, torna-se irreversível. Um exemplo é o gelo flutuando sobre o Oceano Ártico. A cada verão o gelo fica mais fino, e cobrir uma área menor é um sinal precursor muito claro de que o que estamos causando é uma transformação que não tem paralelo na história humana, nem na do Homo sa­­piens, nem na da civilização. O gelo no Ártico é o primeiro precursor que está mostrando: é muito rápida,

abrangente, séria e grave essa desestabilização. A ciência previu que talvez até o final do século isso pudesse acontecer, se continuássemos a aquecer o planeta. Já as previsões de hoje são “não dá mais para voltar”. O gelo do Ártico vai desaparecer no verão, mesmo que a gente pare de emitir os gases amanhã. Essa rapidez mostra que não entendemos tudo, podemos ter muitas surpresas – e, infelizmente, as surpresas estão se mostrando desagradáveis. Há propostas de cientistas de um tratado internacional para o Ártico, que reproduza o espírito que conduz o Tratado da Antártida, terra de ciência, com exploração só científica. Há um movimento internacional agora para fazer do Ártico a mesma coisa, para que não haja possibilidade de começar uma exploração econômica em cima de uma tragédia ambiental sem precedentes. No Hemisfério Sul há menos gente, mas mais pobreza, e outros impactos. O Lago Chade, na África Central, um dos maiores do mundo, está secando.

Isso é um capricho das mudanças climáticas. As emissões são mais altas no Hemisfério Norte, sobretudo e historicamente nos países desenvolvidos, que emitiram 65% de todos os gases e têm 20% da população mundial. A África, principalmente a parte seca, o Lago Chade, é a região que, na minha opinião, é a mais vulnerável. É ali que os impactos, no que concerne às necessidades humanas, serão mais duros. Tem a ver com menos água.

E também com a estrutura daquelas sociedades, muito menos desenvolvidas em termos de acesso a saúde, educação, alimentação, proteção social...

Nos países pobres, a capacidade da sociedade de absorver o choque e dar a volta por cima não é comparável com a do mundo rico. O continente africano inteirinho é responsável por 4% das emissões históricas de gases estufa; os Estados Unidos, por mais de 25%. Então tem uma questão muito importante de justiça na discussão das mudanças climáticas. Se não houver ajuda substancial, as mudanças climáticas serão mais uma barreira ao desenvolvimento desses países. Isso é grave porque não foram eles que causaram o problema.

Esse cataclismo social também está na agenda das reuniões sobre o clima nos últimos anos?

Essa questão se tornou muito importante. Mas, mesmo dois anos depois do relatório do IPCC, essa preocupação ainda não se transformou num plano de ações, não se materializou. E aí não tem muita dúvida, são necessárias duas respostas. Por um lado, diminuir o risco, não deixar o planeta superaquecer, é só uma maneira de proteção para as futuras gerações, principalmente dos países que precisam se desenvolver. E a segunda maneira é com desenvolvimento. O desenvolvimento dos países pobres é uma ferramenta muito importante.

As nações ricas têm de criar fundos, e esse dinheiro tem de ser transferido para os países em desenvolvimento mudarem as matrizes de emissão sem afetar sua possibilidade de reduzir a pobreza

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O mercado de crédito de carbono é suficiente para que os países que já têm bom nível de bem-estar social consigam manter seu padrão e, ao mesmo tempo, financiar o desenvolvimento sustentável em países menos desenvolvidos?

O Banco Mundial estimou que a transferência dos países ricos para os países em desenvolvimento e pobres deve ser de US$ 400 bilhões por ano, hoje.

O carbono movimentou US$ 120 bilhões em 2008?

O Protocolo de Kyoto nasceu fraco, aquém das necessidades do planeta. Se tivesse sido mais arrojado nas metas de redução de emissão, mesmo sem a adesão dos Estados Unidos, teria mostrado um caminho

Esse número está um pouco equivocado. O mais correto desse mercado e para essa conta é menos de US$ 20 bilhões. O resto é de países ricos trocando, entre si, direito de emitir mais – US$ 91.220 bilhões foram movimentados por esse esquema. Se os países desenvolvidos assumirem metas importantes agora em Copenhague, o mercado de carbono vai se tornar mais vibrante, mas está longe de chegar a US$ 400 bilhões.

Os ricos vão ter de ser mais tolerantes com as nossas emissões?

Precisam ser é mais solidários. Se todos decidirmos que é importante reduzir em 80% as emissões até 2050, isso significa 100% de redução deles – descarbonizar, zerar a emissão –, para que os países em desenvolvimento possam ainda emitir. Mas aí estes terão de reduzir também, porque não dá para aumentar, senão o mundo vai superaquecer. E, para os países em desenvolvimento diminuírem, para os pobres se adaptarem, o número do Banco Mundial é esse. É muito mais do que o mercado de carbono pode possibilitar. A solidariedade exigida dos ricos não é gratuita, é uma obrigação. Os ricos têm de criar fundos, e esse dinheiro tem de ser transferido para os países em desenvolvimento mudarem as matrizes de emissão sem afetar sua possibilidade de reduzir a pobreza.

Será que Brasil, China e Índia podem chegar a Copenhague fortalecidos e influenciar os ricos a investir nesse padrão solidário de desenvolvimento?

O Brasil deu um passo importante ao se comprometer a reduzir o desmatamento na Amazônia. Essa política, que o presidente Lula anunciou em 3 de dezembro do ano passado, segue firme, está cada vez mais sólida, os governos estaduais amazônicos começam a abraçá-la. E se o Brasil conseguir cumprir essa promessa, de reduzir em 80% os desmatamentos até 2020, terá dado um passo muito significativo. Podemos diminuir o desmatamento no Cerrado; o país tem grande potencial de reflorestamento; numa agricultura moderna, científica, com técnicas já existentes que só precisam ser mais disseminadas, os solos agrícolas podem também retirar gás carbônico da atmosfera, e as raízes enriquecem o solo de matéria orgânica, que mantém o carbono. E, por último, fazendo com muito cuidado, o Brasil tem potencial de substituir combustíveis fósseis por etanol.

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Sem com isso correr o risco de sufocar todas as su­­as­ terras com monoculturas?

O Brasil tem, em média, uma baixíssima eficiência agrícola. Tem uns 500 mil, 600 mil quilômetros quadrados de culturas agrícolas e 2 milhões de quilômetros quadrados de pastos. Poucos países do mundo têm tanto pasto, uma cabeça de gado por hectare. Uma pecuá­ ria minimamente eficiente tem quatro. O Brasil, com 2,5 milhões de quilômetros quadrados de pecuária e agricultura, pode ser o que a gente sempre imaginou que um dia seria: celeiro do mundo. E para isso não precisa desmatar a Amazônia, o Cerrado, não precisa destruir o restinho de Mata Atlântica que existe. Tem de ter ideia de conservação do solo, de eficiência, de preservação dos ecossistemas, de agricultura sustentável. E tudo isso custa caro. Uma maneira belíssima de o Brasil usar seu potencial de armazenar carbono é uma parte desse recurso modernizar a agricultura brasileira.

Como o senhor avalia a fase 1 do Protocolo de Kyoto (2005-2012) e o que o espera do encontro de Copenhague? Existe o risco de se rasgar o Protocolo?

Acho improvável que se acabe com o espírito do Protocolo de Kyoto, no sentido de uma divisão muito clara de responsabilidades. Os países ricos, os que mais emitiram no passado, têm de assumir responsabilidades. Não seria diplomaticamente aceitável não assumirem. Minha avaliação do protocolo é que desde a origem ele nasceu fraco, aquém das necessidades do planeta. Se tivesse sido mais arrojado nas metas de redução de emissão, mesmo sem a adesão dos Estados Unidos, teria mostrado um caminho: como é que os países reduzem 20%, 30%? Mas já nasceu fraquinho, acanhado. Os Estados Unidos não vão mais entrar no Protocolo de Kyoto porque expira em 2012. Mas terão de entrar no esforço, qualquer que seja o novo mecanismo. Muitos preferem chamar de um novo mecanismo, não de renovação de Kyoto. Não é fase 2, já está decidido. Falase em pós-Kyoto e muitos, até para não se referirem a Kyoto, dizem “pós-2012”.

E qual vai ser o grande acordo?

Certamente não é Kyoto. Há demanda por uma série de transformações, inclusive algumas que faltaram em Kyoto. E a diplomacia brasileira tem muita responsabilidade, porque lá atrás, em Kyoto, faltou incluir as florestas. Permitiram-se vários Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, e o Brasil lutou para não permitir as florestas. Agora há uma discussão avançada de inclusão da proteção das florestas, através de um conceito chamado Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD). Quer dizer, se diminuirmos o desmatamento, reduzimos a emissão. Então, vamos trabalhar com a intenção de criar um mecanismo de auxílio financeiro. As centrais sindicais têm se posicionado, no Brasil, contra essa possibilidade de utilizar créditos de carbono na área de floresta. Eu acho isso um erro.


As centrais sindicais têm de entender que nós vivemos num sistema econômico globalizado. É preciso admitir isso. Aceitar as externalidades ambientais. Alguém paga a conta de qualquer externalidade. E isso não entra na economia. Olhando do outro lado da externalidade ambiental, os ecossistemas estão fazendo um tremendo serviço para manter nossa qualidade de vida. E nós não computamos esse serviço dos ecossistemas no cálculo econômico. Por exemplo, na cidade de Extrema, divisa de São Paulo com Minas Gerais, a prefeitura estabeleceu um imposto com o qual paga agricultores que mantêm a Mata Atlântica, o que tem muito a ver com a redução dos deslizamentos de encosta e de inundação e com a qualidade da água no município. Está certo! Porque, como a gente sabe, em países em desenvolvimento os lucros são privados e os prejuí­ zos são socializados. É a pobreza que vive nas áreas de risco de inundação e de deslizamento de encosta. Que morre por falta de qualidade da água, por não se tratar o esgoto. Tudo isso é degradação ambiental, é externalidade econômica que ninguém está pagando – quer dizer, os pobres estão. Se o valor dos ecossistemas fosse contabilizado, o sistema econômico teria de se ajustar com esses dois termos: o lado positivo, alguém tem de receber pelo serviço de preservação; e o lado negativo, quem polui tem de pagar. O carbono é um primeiro exemplo de que é possível mensurar isso. Hoje custa US$ 20 a tonelada. Daqui uns cinco anos será US$ 50. E as propostas que temos defendido é que os demais serviços ambientais também entrem nessa contabilidade. Eu aceitaria um convite da CUT para debater sobre isso.

Como isso pode se dar na prática?

Os mecanismos REDD são o seguinte: o Brasil desmatava em média 20 mil quilômetros quadrados por ano e tem um plano de baixar para menos de 5 mil até 2020; emitia 250 milhões de toneladas e vai passar a emitir 60 milhões, 70 milhões. Então deixaremos de emitir 180 milhões de toneladas. Esse é um serviço ambiental que a redução de desmatamento traz para o mundo. Agora, tem um grupo lá na Holanda que precisa reduzir 50% das emissões de sua atividade e estima que não vai conseguir. Então tem de ir ao mercado de carbono. E o Brasil terá esse “estoque” de 180 milhões de toneladas, do qual poderá comercializar até 10%, 18 milhões, e alguém lá da Holanda compra, paga por essa redução de emissões.

Qual a sua visão em relação à expectativa com o pré-sal? Seria um contrassenso tanto investimento numa fonte de energia que deve deixar de ser utilizada ou ter seu uso reduzido no médio prazo?

Seria irrealista imaginar que valiosos recursos energéticos fósseis, principalmente o petróleo, não serão utilizados nas próximas décadas, até porque toda a economia do mundo é totalmente “viciada” nessa fonte de energia.

A humanidade reluta em abandonar esse “vício”, ainda que isso seja tão fundamental para a sustentabilidade a longo prazo. Assim, o realismo pragmático nos diz que os recursos energéticos do pré-sal serão utilizados, de uma maneira ou de outra. Alguns cuidados são mandatórios: que não signifiquem uma distração da tarefa maior de desenvolver rapidamente o gigantesco potencial do país em fontes renováveis, limpas, de energia; que a grande quantidade de gás carbônico misturado ao petróleo não seja despejada na atmosfera, isto é, deve ser recuperado no processo de extração do petróleo e reinjetado no próprio reservatório do pré-sal; e que essa riqueza mineral seja quase exclusivamente utilizada para permitir vencer grandes lacunas típicas do nosso subdesenvolvimento, e cito a educação de qualidade e em massa em todo o país e a capacidade de inovação científica e tecnológica, pois ambas são nossa porta para o futuro. E o cidadão, além de cobrar governos, empresas, sindicatos, pode individualmente fazer alguma coisa contra o aquecimento? Ou qualquer esforço individual não fará a menor diferença?

Faz toda a diferença. É impossível o mundo continuar­ com o consumo em cima dos recursos naturais que temos tido nos últimos 50, 60 anos. A percepção do indivíduo do que é felicidade, do que ele busca, é fundamental. Ele tem de sair da sociedade de consumo. Alguém vai gritar: “Vai acabar com a produção!” Não vai. Os empregos se transformam. As necessidades da sociedade pósconsumo são muito grandes, mas são menos materiais. Na sociedade pós-consumista os empregos vão estar na área de atendimento à saúde, intelectual­, softwares, serviços. O cuidado à pessoa, à criança, a educação, as artes, a cultura. Essas são as grandes indústrias do futuro. A reciclagem vai ser a grande indústria material do futuro. O indivíduo tem de querer deixar de ser presa fácil da sociedade de consumo. Quando meu pai comprou o primeiro carro – ele operário, minha mãe operária –, a família inteira comemorou. Mas aquele veí­culo era mais um símbolo do que uma necessidade. A valorização excessiva do bem material é a característica da sociedade de consumo e da qual o sistema todo de mercado se beneficia, exacerbando o desejo das pessoas de ter, e acumular... Pra quê? O importante é viver bem. Ninguém está projetando uma diminuição da qualidade de vida. E ninguém deve abrir mão de se organizar para cobrar que seu sindicato lute, que o governo trabalhe, que suas condições de trabalho melhorem, isso faz parte da sociedade, da democracia. Mas a transformação principal de que precisamos é comportamental. O Brasil não pode cair na tentação de seguir o modelo fóssil, que nos levou à crise ambiental, de máxima utilização de recursos não renováveis. E o novo modelo depende do indivíduo. A expectativa dele, a vontade dele, é que transforma a sociedade.

FOTOS JAILTON GARCIA

O senhor vê um componente ideológico comprometendo o enfrentamento das questões ambientais?

A percepção do indivíduo do que é felicidade, do que ele busca, é fundamental. Ele tem de sair da sociedade de consumo. A produção não vai acabar. Os empregos se transformam

Íntegra disponível em www.redebrasilatual.com.br NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

A mesma

LADAINHA Os videntes do mercado financeiro não previram a crise mundial e raramente acertam as previsões de inflação. Na dúvida chutam alto para, quem sabe, empurrar também os juros Por Roberto Rockmann

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REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2009

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ão é novidade. Passada a tempestade, mal surge a bonança e o mercado financeiro arregaça as mangas para que os juros voltem a subir e para que o Estado pare de gastar, a pretexto de manter a inflação sob controle. Quando a crise atingiu o Brasil, os estoques de montadoras e distribuidoras de aço chegaram a níveis recordes, enquanto a construção civil suspendeu lançamentos. Para recuperar o ritmo, o governo começou a reduzir os juros, ampliou gastos em infraestrutura, impulsionou o crédito por meio dos bancos públicos e desonerou impostos. E conseguiu fazer o PIB retomar o crescimento a ponto de terminar este ano no positivo, revertendo a conta de analistas que chegaram a prever queda de até 2%.

A taxa básica de juros, que estava em 13,75% ao ano em dezembro, caiu para 8,75% em julho, a mais baixa da história. Apesar do patamar inédito, a Selic empacou nos 8,75% nas duas reuniões seguintes do Copom, depois de cinco sucessivas quedas. “Tecnicamente, haveria condições para que caísse outra vez em outubro, porque a inflação mantém sua trajetória declinante”, diz o economista e sócio da RC Consultores Fabio Silveira. A inflação em setembro chegou a 0,24%, quase metade do 0,47% apurado em maio e praticamente o mesmo nível de setembro de 2008. Mas o retrato não é compartilhado por todos. Para 2010, muitos bancos e consultorias financeiras preveem crescimento do PIB de no mínimo 4% – alguns mais otimistas falam em expansão de 6%. Mas o


Palpite ou desejo

PAULO WHITAKER/REUTERS

ESPECULAÇÃO O mercado e seus índices de bola de cristal: atrás do ganho fácil

mercado financeiro já começa a influenciar para que a Selic volte a subir. A LCA Consultores, de São Paulo, estima que a taxa básica chegue a 10%, com a primeira elevação feita em setembro do próximo ano. Já para a Quest Investimentos, gestora de recursos capitaneada pelo ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, o crescimento do PIB deverá ser de 6% em 2010, mas os juros ficarão entre 11,25% e 11,75%, com a primeira alta no segundo trimestre. Os argumentos para subir os juros: gastos públicos em alta, oferta de crédito crescente e mercado de trabalho aquecido, o que incentiva aumentos reais de salário. Os juros elevados em relação à inflação vêm engordando os resultados do setor bancário desde o início do Plano Real, em 1994.

O setor financeiro tem um papel de destaque na influência das expectativas de inflação e de juros. Semanalmente, o Banco Central conduz uma pesquisa com cerca de 100 instituições financeiras, para captar suas percepções sobre a economia brasileira. Publicada todas as manhãs de segundafeira no site do BC, a pesquisa, chamada Focus, mensura as expectativas futuras de inflação, crescimento do PIB, câmbio e juros e é um importante mecanismo para a tomada de decisões. “As previsões do mercado financeiro influenciam as do BC, e vice-versa, razão pela qual são normalmente muito próximas”, escreve o economista especialista em contas públicas Amir Khair, em recente trabalho sobre o assunto. Khair buscou entender se a pesquisa e suas previsões realmente se aproximam da realidade, ou seja, se de fato conseguem com­preender o momento econômico e são uma ferramenta útil para calibrar juros. Com dados desde 2002, ele chegou à seguinte conclusão: “Será que essas previsões se aproximam da realidade? Infelizmente a resposta é negativa, pois o coeficiente de correlação entre a inflação prevista e a ocorrida foi de apenas 17,2%. A razão disso é simples: são inúmeros os fatores que influenciam a inflação, e esses fatores podem sofrer alterações significativas de comportamento ao longo do tempo”. O economista ainda nota que as expectativas de inflação do Banco Central são muito próximas às do mercado financeiro. “O último boletim Focus já prevê que a taxa Selic deverá subir em 2010 e 2011; essa taxa seria em média de 10% ao final de 2010 e de 10,3% ao final de 2011. Como as entidades do mercado financeiro ampliam seus lucros com a elevação da Selic, é possível que essas previsões tenham um viés distorcido”, destaca. Desde 1999, o país tem obedecido, invariavelmente, a um tripé macroeconômico: câmbio flexível, metas de superávit primário (dinheiro que tem de sobrar no caixa para pagar juros) e de inflação. Variáveis importantes, como emprego ou investimentos do Estado, vêm sendo deixadas de lado, o que não ocorre nem nos maiores defensores do liberalismo no mundo – os Estados Unidos têm nos números do mercado de trabalho um dos principais indicadores de orientação de sua política monetária. Taxas elevadas de desemprego fazem

com que o BC norte-americano passe a defender a queda dos juros. Qual a lógica? Juros menores estimulam o investimento das empresas e aumentam a oferta de crédito ao consumidor, que pode gastar mais, o que incentiva a maior produção das indústrias. Ex-ministro do Planejamento durante o regime militar e interlocutor frequente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o economista Delfim Netto também vê problemas nos juros elevados. Para ele, a questão é que o BC mira a inflação em 2022 e utiliza para ajustar suas metas uma consulta feita com analistas do mercado financeiro, que têm interesses divergentes e emitem sinais cruzados. “Esses analistas não sabem o que vai acontecer nesta semana; imaginem saber o que vai acontecer no fim do ano”, ironizou em recente seminário. Os juros ainda elevados para padrões internacionais – o Brasil tem uma das seis maiores taxas reais de juros do mundo – acabam tendo influência sobre o câmbio, valorizando o real. Se um americano tivesse trazido US$ 1.000 para o Brasil na primeira semana de janeiro e ingressasse na Bolsa, teria obtido até a última semana de junho retorno mensal de 5,6%. Nos Estados Unidos, em um papel do governo de dois anos, seu rendimento seria de 1% ao ano, de acordo com Delfim Netto. “Nós somos o último peru com farofa do Dia de Ação de Graças”, afirma. Para ele, a taxa real de juros deveria estar em 2,5% ou 3% ao ano, e não nos atuais 4,5% e 5%. Se o câmbio valorizado faz a festa de investidores internacionais, traz maciças doses de dor de cabeça para o setor industrial que emprega e exporta suas mercadorias. Com um real forte, os produtos brasileiros vendidos lá fora ficam mais caros. Com menor competitividade, as exportadoras reduzem investimentos e a contratação de novos funcionários. Em paralelo, a alta taxa de juros aumenta o capital especulativo no país. Segundo o governo, entre janeiro e o início de fevereiro ingressaram US$ 20 bilhões de estrangeiros na Bolsa em investimentos em ações. Para atenuar esse problema, em outubro o Ministério da Fazenda anunciou que vai taxar em 2% a entrada em dólares com prazo inferior a 12 meses para aplicações em Bolsa ou títulos de renda fixa. A medida visa reduzir a ação de especuladores, que voltou a crescer com a expansão da liquidez no mercado financeiro mundial. NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

O pesadelo U

m fato divulgado muito discretamente pela imprensa gaúcha serve de exemplo da situação do governo de Yeda Crusius (PSDB) no Rio Grande do Sul. No dia 19 de outubro, o site Coletiva.net (www.coletiva.net) divulgou a contratação, pelo PSDB, da empresa FSB Comunicações, sediada em São Paulo, para ajudar a melhorar a imagem do governo tucano. Daniel Andrade, que acumulava então as funções de secretário-geral do PSDB local e secretário estadual de Infraestrutura, coordenou a negociação com o escritório paulista. Entre as ações previstas para “construir um modelo de governo para o partido”, estão “sugerir pautas, orientar agendas e avaliar diariamente o noticiário político veiculado nos meios de comunicação”. O valor do contrato, conforme a mesma fonte, é de R$ 240 mil, por seis meses, e “não implica a ida de funcionários da FSB a Porto Alegre”. Ou seja, segundo essa versão oficial, o PSDB contratou uma empresa de São Paulo para “construir um modelo de governo para o partido” no final do terceiro ano de governo tucano no Rio Grande do Sul. E essa “construção” poderá se dar a distância. A terceirização da função definidora de um governo, eleito com o lema “um novo jeito de governar”, fornece um nítido e eloquente retrato da situação política. Atolado em denúncias de corrupção, o governo Yeda Crusius está totalmente paralisado, e paralisando o estado inteiro. Sua principal atividade, nos últimos meses, foi procurar defender-se das pesadas acusações de corrupção vindas de vários órgãos de fiscalização e movimentar sua base parlamentar para evitar que as investigações da CPI da Corrupção e o processo de impeachment, movido pelo Fórum dos Servidores Públicos, avançassem na Assembleia Legislativa. Yeda tem sólida maioria no Parlamento e vem se valendo dela para barrar as investigações do maior escândalo de corrupção da história dos pampas. 22

REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2009

“UM NOVO JEITO DE GOVERNAR” Yeda e seu séquito: para os tucanos, investigação só é boa na esfera federal

No dia 14 de outubro, a governadora conseguiu um alívio com a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, excluindo-a da ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal. A decisão não entrou no mérito da ação que acusa a governadora de envolvimento com a fraude de R$ 44 milhões no Detran gaúcho. Segundo entendimento do TRF, “a governadora, como agente política, não pode responder por improbidade administrativa, mas apenas em caso de crime de responsabilidade”. O MP Federal anunciou que vai recorrer da decisão no Supremo Tribunal Federal (STF).

Rodin e Solidária

Mesmo com esse respiro e com a ação da sua base parlamentar na Assembleia, a governadora tucana segue em maus lençóis. Quase no mesmo momento em que o PSDB e seus aliados (PMDB, PTB, PP e PPS) comemoravam a decisão do tribunal, o procurador-geral do Ministério Público de Contas, Geraldo da Camino, pedia uma inspeção extraordinária nas contas da Casa Civil e da Casa Militar para identificar, item por item, o que foi comprado com recursos públicos para a residência de Yeda. O tema veio à tona na CPI da Corrupção. No


DANIEL MARENCO/FOLHA IMAGEM

Yeda

início de 2007, a governadora reformou e mobiliou sua casa com recursos públicos. As compras incluíram itens como lençóis, almofadas, toalhas, móveis infantis e piso emborrachado para garagem. Além disso, investigações em curso no âmbito da Procuradoria-Geral da República sobre a compra da casa da governadora em uma área nobre de Porto Alegre, logo após o final do segundo turno em 2006, podem gerar a abertura de um processo criminal contra ela. Os dois principais focos de denúncias contra o governo do PSDB giram em torno

Atolado em denúncias de corrupção, modelo tucano paralisa o Rio Grande do Sul Por Marco Aurélio Weissheimer

das Operações Rodin e Solidária, desencadeadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. Segundo estimativas preliminares das autoridades, as fraudes investigadas pela Solidária envolvem valores cerca de sete vezes maiores que os da fraude no Detran, podendo chegar a R$ 300 milhões. A Solidária nasceu em novembro de 2007, no mesmo mês em que a Operação Rodin apontava a existência de um esquema criminoso no Detran, com a participação de importantes funcionários do governo Yeda Crusius. Surgiu a partir da investigação da terceirização do fornecimento de merenda escolar em Canoas, durante a administração municipal de Marcos Ronchetti (PSDB). O lema da gestão tucana em Canoas, “Administração Solidária”, deu nome à operação que descobriu fortes indícios de fraudes em licitações para obras de saneamento, construção de estradas e sistemas de irrigação. Os casos foram de início tratados separadamente. O desenvolvimento das investigações acabou revelando evidências de conexão entre os dois esquemas. Nomes de envolvidos na fraude do Detran passaram a aparecer também nas investigações da Solidária. Por essa razão, a Justiça Federal autorizou, em 2008, a pedido do MP Federal, o compartilhamento de informações entre as operações. O ex-secretário-geral da administração Ronchetti, Chico Fraga, teve telefonemas gravados com autorização judicial. Ele é réu no processo do Detran e um dos principais investigados na Solidária, que levantou um patrimônio de mais de 25 imóveis e mais de uma dezena de veí­ culos em seu nome. No dia 25 de março deste ano uma reportagem da revista IstoÉ tratou do envolvimento do deputado federal Eliseu Padilha (PMDB) no caso. Segundo o texto do repórter Hugo Marques, investigações da Polícia Federal e do MP Federal descobriram um depósito de R$ 267 mil da empresa Magna Engenharia na conta da empresa

Fonte Consultoria Empresarial, cujos sócios são Eliseu Padilha e sua mulher, Maria Eliane. Um inquérito que tramita sob segredo de Justiça no STF investiga o envolvimento de Padilha em crimes de tráfico de influência e fraude em licitações. A investigação envolve também o deputado estadual e ex-presidente da Assembleia Legislativa Alceu Moreira (PMDB) e o secretário estadual de Habitação, Saneamento e Desenvolvimento Urbano, Marco Alba (PMDB). A conexão Padilha-Chico Fraga é um dos aspectos mais importantes dessa investigação. Os dois tiveram grande influência na formação do governo Yeda e foram consultados em decisões sobre definições de cargos. Todas as licitações importantes passavam pelas mãos de Chico Fraga, como secretário-geral da Prefeitura de Canoas. Padilha está sendo investigado por indícios de envolvimento em fraudes de licitações nesse município e em outros. Os dois estão umbilicalmente ligados nesse caso que pode revelar um dos maiores esquemas de fraude e desvio de recursos públicos da história do Rio Grande do Sul. Outro nome envolvido na investigação é o de Walna Vilarins Meneses, principal assessora de Yeda Crusius. Ela foi indiciada pela PF pelos crimes de corrupção passiva e formação de quadrilha. Walna é acusada de interferir no resultado de licitações em favor de algumas empresas. Em ligações telefônicas, conversa com Neide Bernardes, representante da Magna Engenharia, uma das empresas investigadas pela Solidária sob suspeita de pagar propina para agentes públicos em troca da interferência em licitações. Essas ramificações, envolvendo figuras importantes do PMDB gaúcho, o maior partido da base aliada de Yeda, ajudam a entender por que as investigações não avançam na Assembleia. É a sobrevivência política da aliança PSDB-PMDB que está em jogo no estado. NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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AMÉRICA LATINA

POLITIZAÇÃO O viés social da Frente Ampla manteve os militantes fiéis

Resultado do primeiro turno das eleições presidenciais no Uruguai põe coligação de esquerda à frente, mas mantém uma chance de partidos tradicionais sucederem ao governo do bem avaliado socialista Tabaré Vázquez Por Fred Vasconcelos 24

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Meio cheio, meio vazio

O

primeiro turno da eleição do sucessor de Tabaré Vázquez na presidência do Uruguai pode ser avaliado de maneiras distintas. O candidato José “Pepe” Mujica, da coligação Frente Ampla, de esquerda, apoiada pelo atual presidente (a lei não permite a reeleição de Vázquez), teve 47,5% dos votos, contra 45,2% dos blancos e colorados. Mas terá de enfrentar o segundo turno. O mais votado terá o desafio de não repetir o que ocorreu com Tabaré Vázquez nas eleições perdidas de 1999. Ele liderou o primeiro turno, mas foi derrotado no segundo por Jorge Batlle, beneficiado pela união entre blancos e colorados, que por mais de 170 anos se revezaram no poder até aquele 2004, quando a vitória de Vázquez veio no primeiro turno, com mais de 50% dos votos. Agora, há algumas diferenças em relação ao ocorrido há dez anos. À época, Tabaré atingiu 40% no primeiro turno, bem menos que os outros partidos somados. Agora, não. Mujica já obteve mais votos que os

principais adversários juntos. Em 1999, Tabaré cresceu 6% entre um turno e outro, o que não foi suficiente. Agora, Mujica precisa manter seus votos e aumentar em apenas 1% a 2%. Difícil acreditar que todos os eleitores da oposição, incluído o pequeno Partido Independente, que teve 2,4%, passem para Luis Alberto Lacalle, do Partido Blanco, e que este consiga ainda grande vantagem entre aqueles que anularam votos no primeiro turno. Outra diferença é que, se com a eleição da Frente Ampla rompeu-se uma tradição secular que impunha restrições a um candidato de esquerda no poder, agora Mujica tenta suceder a um presidente com aprovação próxima de 60% da população, segundo recentes pesquisas. Tabaré trouxe avanços econômicos e sociais em seu mandato, que se estende até março de 2010. A dívida externa, por exemplo, passou de 69% do PIB no fim de 2004 para cerca de 30% atualmente. As reservas internacionais saltaram de US$ 2,5 bilhões para US$ 6,3 bilhões no mesmo período. Ironicamente, uma das


custou US$ 260, com serviços de manutenção e conexão à internet, o que representou cerca de 5% do orçamento do Ministério da Educação durante sua implementação. É destaque também na área social a redução da pobreza extrema, de 4% para 1,7%, e da pobreza, de 32% para 21% da população, assim como a diminuição na mortalidade infantil, de 13,2 por mil nascidos vivos, em 2004, para 10,6, atualmente.

RETA FINAL Comício da Frente Ampla em Montevidéu

FOTOS GERARDO LAZZARI

Melhora real

acusações feitas à esquerda era que não saberia conduzir a economia. O tempo e a prática derrotaram a tese – e os brasileiros já viram esse filme. Uma importante mudança nessa área se deu com a reforma tributária, que diminuiu o imposto sobre as mercadorias, IVA, e recriou o imposto de renda, extinto desde 1974. Segundo Tabaré, a ideia foi simplificar o sistema e cobrar mais de quem tem mais. Houve também maior taxação sobre proprietários de terras e imóveis. No campo social, um dos principais programas do governo da Frente Ampla foi a distribuição de um notebook de baixo custo para cada aluno do ensino fundamental. Batizado de Plano Ceibal, teve sua primeira fase encerrada neste mês de outubro, com a entrega final de máquinas em Montevidéu. Beneficiou mais de 300 mil alunos e 18 mil professores. Foi baseado na ideia de Nicholas Negroponte, de um computador para cada criança. O Uruguai foi o primeiro país do mundo a fazer essa distribuição em massa. Cada computador

A estudante universitária Eliza Lopes, de 20 anos, diz que ainda falta muito para o Uruguai se desenvolver, mas, em sua avaliação, o Plano Ceibal, os investimentos em educação e outras medidas de Tabaré fizeram com que muitas pessoas deixassem de votar nos partidos tradicionais e passassem a apoiar a Frente Ampla, por conta de uma melhora real no país. Já a florista Laura Raimundes, de 32 anos, eleitora de Lacalle, acha que o governo atual ajudou os mais pobres, mas deveria dar trabalho, e não dinheiro a eles. “Não é justo que aumente meu imposto para que meu vizinho receba para ficar tomando mate em casa”, reclama. O empregado de supermercado Robert Ramos, de 33 anos, afirma que o país está melhor em todos os sentidos, principalmente para os mais pobres. A dona de casa Beatriz Arias, de 48 anos, reconhece os avanços dos últimos anos, mas avalia como negativo o aumento de impostos. Diz que a definição de seu voto ocorreu pelo fato de “Pepe” Mujica ser um tipo sem ambições financeiras. O presidente da Frente Ampla, Jorge Brobetto, ao falar do mandato de Tabaré, classifica o governo como revolucionário por conta da busca da equidade social e dos investimentos em saúde e educação. A estratégia da oposição é tentar separar a imagem do atual presidente da do candidato Mujica. Brobetto destaca que em caso de vitória quem vai governar é a Frente Ampla. “O presidente e os parlamentares são muito importantes, mas as decisões são do partido. Foi assim na definição do programa de governo executado por Tabaré, como será com Mujica”, afirma.

Questionado se ocorreriam mudanças nas relações internacionais, Brobetto diz que as relações com o Brasil, com o governo do presidente Lula, são quase “imelhoráveis”, porque existe uma relação de amigos, em que os dois governos trabalham de maneira fraternal. A oposição, na tentativa de fugir das comparações de governo, tenta desde o primeiro turno usar estratégia que deve se repetir por todo o segundo: centra o foco no passado de Mujica. Em seu comício final, em 22 de outubro, Lacalle afirmou que os eleitores devem tomar “cuidado” porque o problema não é que Mujica não seja Vázquez, mas sim que o atual presidente representa o socialismo europeu, mais socialdemocrata, enquanto o atual candidato está ligado aos mais radicais. O candidato diz que quer um país equilibrado, que trate diferentemente aqueles que precisam sair da pobreza, mas que não destrua quem produz. Enfim, repete lá o discurso do “medo” que já o Brasil já viu. A diferença é que agora os uruguaios têm o resultado prático de um governo de esquerda para avaliar.

À FRENTE Mujica obteve mais votos que todos os adversários juntos, não sendo eleito apenas por conta dos brancos e nulos NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

U

ma doença alimentada pelas mudanças – para pior – da rotina de todos, pelo pouco investimento em educação alimentar, pela falta de tempo dos adultos e até pela dificuldade dos pais em lidar com o assunto. Não alivia o problema, mas dá algum conforto saber que a obesidade infantil é um fenômeno globalizado. Atesta a pesquisa da International Obesity Taskforce que o número de crianças no mundo acima do peso já representa o dobro do de subnutridas. Isso significa cerca de 350 milhões de pimpolhos. No Brasil, fala-se do assunto usando um termo pomposo: transição nutricional. Expátria de desnutridos, o país apresenta quedas expressivas dos índices nas últimas décadas – segundo o IBGE, 16,6% de nossas crianças eram desnutridas há 35 anos, número que caiu para perto de 4%. As pesquisas mais recentes da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) revelam que 30% das crianças brasileiras estão com sobrepeso (10% a 20% acima do peso ideal) e 15% estão obesas (20% ou mais acima do peso ideal). A porcentagem é menor entre os adultos, de 10% a 13%. “O horror é que a doença é resultado da mudança de hábitos das famílias, pois a genética não pode ser alterada nesse curto período de tempo”, diagnostica Marcio Mancini, responsável pelo Grupo de Obesidade do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). A obesidade é uma doença peculiar e resulta em múltiplas complicações, como diabetes, alterações músculo-esqueléticas, diminuição das funções respiratórias, alterações de colesterol e triglicérides e hipertensão arterial. É transmitida por hereditariedade e envolve diferentes genes. O primeiro sinal da doença é o ganho de peso. Seja ele justificado pelos hábitos ou não: há pessoas, por exemplo, cujo organismo não produz leptina, hormônio que dá a sensação de saciedade. No entanto, grande parte dos casos constatados diz mesmo respeito à combinação de predisposição genética e meio ambiente – e daí entra uma característica cruel da doença. Se a pessoa é propensa à obesidade, mas mantém hábitos de vida saudáveis, pode ser que nunca venha a ganhar peso. Ou não: mesmo mantendo boa alimentação e atividade física, não tem controle so-

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Dois pesos, duas medidas Há não muito tempo uma das maiores preocupações de governos, escolas, entidades médicas e o resto do universo era a desnutrição infantil. Nas últimas décadas, o menos virou mais: a obesidade é o bicho-papão que assombra nossas crianças Por Miriam Sanger

OBESIDADE ENTRE AS CRIANÇAS BRASILEIRAS

ENTRE OS ADULTOS OS ÍNDICES DE OBESIDADE SÃO MENORES

30%

15%

sobrepeso

obesas

13%

mulheres

10%

homens


bre os quilos que se acumulam. Regra geral, depois que a doença se instala, inicia-se a eterna luta contra a balança. “Você a mantém sob controle, nunca se livra dela. É progressiva, fazendo com que o obeso ganhe peso ao longo da vida”, explica Mancini. Por todas essas razões é ainda mais preocupante quando se manifesta na infância: 80% das crianças que chegam obesas à adolescência se tornarão adultos obesos.

MORTEN SMIDT/IMAGEFORUM/AFP

Hora do alerta

Até os 10 anos de idade existe um padrão de peso médio que norteia o diagnóstico médico, e o sinal amarelo se acende quando a criança acumula um excedente de 15% do peso indicado para sua faixa etária. Mas, como “cada um é cada um”, esse não é um diagnóstico que se faz em casa. “É papel do pediatra acompanhar a evolução da criança e orientar os pais”, diz Mancini. Passada essa idade, é feita uma conta matemática com o peso e a altura. Renata Zoppello Kanashiro, estudante de psicologia, conhece bem essa matemática cruel. Ex-obesa mórbida, ela fez cirurgia de redução de estômago há cinco anos e perdeu 45 quilos. Sua doença está sob controle e, agora, ela apoia o filho mais velho, Gabriel, na luta com a balança. Desde pequeno Gabriel, assim como seus dois irmãos mais novos, apresenta alterações de colesterol. Ele esteve dentro do peso ideal­ até os 7 anos. “Nessa época, nossa família passou por um momento complicado e não pude dedicar muita atenção a ele. Daí misturou tudo: a predisposição genética, o momento de fragilidade emocional e o pouco controle que podemos ter sobre o que uma criança dessa idade come fora de casa”, conta Renata. A sorte de Gabriel é o alto nível de informação da mãe, que percebeu o problema desde o início. Este é, aliás, um fator-chave: os pais precisam estar atentos e combater o problema. Não bastassem o cotidiano que dificulta oferecer alimentação de qualidade e o fato de muitos acreditarem que oferecer doces é expressar carinho, gordura é um tabu na maioria das sociedades. Quem nunca ouviu a expressão “criança gordinha é criança saudável?” Segundo Fabio Ancona Lopez, vice-presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo e médico nutrólogo, a miopia dos pais em relação ao assunto dificulta o tratamento da doença. O que ele atesta está comprovado em um NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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Inimigos de peso

Ultrapassadas todas as dificuldades de oferecer aos pimpolhos alimentação saudável dentro de casa, arrancar os cabelos para criar lanchinhos gostosos e nutritivos sem

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ouvir palavrão, além de enfiar a família inteira no meio da história, é preciso ainda lutar contra dois inimigos de peso: as propagandas da TV e a cantina da escola. O único consolo é que são adversários conhecidos. O estado de São Paulo quase conseguiu sair à frente nessa batalha, quando, em abril deste ano, a Assembleia Legislativa aprovou o Projeto de Lei nº 1.356/07, que além de proibir a comercialização, em cantinas e restaurantes escolares, de lanches e bebidas que não adicionam nada além de gordura desnecessária – salgadinhos, frituras, biscoitos recheados, pipocas industrializadas, balas, refrigerantes, sucos artificiais etc. – as obrigava a oferecer opções de frutas. A lei não passou da mesa do governador José Serra. Alegou que a carência de rigor técnico inviabilizava a aplicação e fiscalização. Curiosamente, a dificuldade de fiscalização não atrapalhou a aplicação da lei antifumo.

Dentro de casa, a tentação chega via massacre televisivo. Crianças são o alvo preferido das propagandas de alimentos. Segundo pesquisas do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), 71,6% dos alimentos anunciados na TV são: fast-food, guloseimas e sorvetes, refrigerante e suco natural, salgadinho de pacote e biscoito doce ou bolo; e 73,1% dos produtos estão prontos para consumo – a maioria rica em gordura, sal e açúcar. “Esse marketing é perturbador. Até nos supermercados as crianças são provocadas: doces e salgadinhos ficam nas gôndolas mais baixas, ao seu alcance”, afirma o médico Marcio Mancini. Fabio Ancona Lopes concorda. “Nos rótulos dos alimentos as informações nutricionais têm letras ilegíveis e linguagem que ninguém entende, obviamente. A TV devia dedicar tempo à instrução da população.”

GERARDO LAZZARI

estudo britânico, que demonstrou que os pais têm dificuldade de perceber a obesidade dos filhos, sobretudo quando também sofrem com o sobrepeso. Na pesquisa, somente 25% dos pais reconheceram que os filhos eram obesos. A relutância dos familiares atrasa o diagnóstico e aumenta o risco de complicações. Na infância, a doença é tratada com dieta alimentar e exercício físico, às vezes combinados com acompanhamento psicológico – e é revertida em 20% dos casos. Se o problema é abordado na adolescência, o índice de recuperação cai em 20% e o tratamento pode requerer medicação. Na fase adulta, somam-se intervenções mais agressivas, como a cirurgia de redução do estômago. Mas a essa altura o obeso já acumula outras doenças, que precisam ser simultaneamente controladas. Com o apoio do pediatra e de um endocrinologista, Renata está ajudando Gabriel. Também adotou uma dieta saudável em casa – estendida a todos da família, uma regra para o jogo dar certo – e aumentou a frequência de atividades aeróbicas do filho. Na idade de Gabriel, normalmente não se prescrevem medicamentos nem se busca eliminar peso, mas simplesmente não ganhar mais. Crescendo, o organismo resolve sozinho a relação enEM FAMÍLIA tre peso e altura. Renata dá A atividade física é o suporte a Gabriel outro fator de equilíbrio na luta contra a balança e não para a saúde das crianças, que nunca estiveram tira os olhos dos filhos mais novos, tão confinadas em casa. que apresentam alteração no Ficar em casa ou peramcolesterol bular em shopping centers são atividades mais procuradas pelas famílias do que passeios de bicicleta ou caminhadas em parques. As próprias crianças tendem a buscar atividades preguiçosas. De resto, a modernidade não ajuda em nada. O mundo do delivery permite comer sem nenhum esforço – e comida de má qualidade. O computador e a televisão fazem com que os pequenos fiquem quietos por horas, para alívio dos pais que trabalharam a semana toda e querem sossego.

Movimente a galerinha n Primeira lição, reflita: você está sendo um bom modelo à mesa? n O pediatra de seu filho deve ser aquele profissional em que você realmente confia. Esteja

aberto às orientações e acompanhe com atenção o desenvolvimento do peso e da altura de seu filho. n Controle e balanceie as refeições servindo-as diretamente no prato. A regra vale para toda a família. n Sirva sempre maior quantidade de alimentos frescos e de baixo valor calórico, como saladas e legumes. n Mantenha na geladeira alternativas de lanches saudáveis, como frutas, iogurte e hortaliças. n Insista na saúde: não adote o discurso “já ofereci brócolis, mas meu filho não come”. n Você pode quebrar a rotina de alimentação saudável, desde que haja regras bem pensadas para isso. Por exemplo: só permitir refrigerantes na refeição do domingo. n Jogue em time: os pais têm de estar de acordo com as regras alimentares da família. n Criança precisa de movimento. Descubra atividades esportivas prazerosas. n Sedentarismo é vilão – e você também cede a ele. Esqueça a preguiça e aproveite o fim de semana para se mexer: pedalar, caminhar em praças, brincar nos parques...


Essa é uma saída muito usada pelas crian- ou ao controle. Mas ainda existe um tabu ças, principalmente os meninos. “O Lucas a ser quebrado, segundo o qual só engornão se queixa muito”, conta a empresária da quem tem dinheiro para fartura na mesa. Luciana Aparecida Araújo Lacerda Orosco. Os números dizem o contrário: é nas classes “Mas sei que rolam histórias chatas. Os gor- mais baixas que crescem com maior velodinhos sempre rendem comentários mal- cidade os índices de obesidade, em função dosos.” Ele não reclama, mas do pouco acesso a informação. busca discrição – e não quis ser Impor “Comida ruim é barata”, afirma fotografado. A mãe conta que dieta a uma Alessandro Danesi, pediatra forLucas sempre teve uma relação criança não mado pela Medicina da USP que descomedida com a alimenta- é tarefa atende no Hospital Sírio-Libanês ção: “Foi um bebê que mamava (SP). “Hoje sabemos que a obesifácil. Mas demais, uma criança que comia dade tem muito mais a ver com bastante e hoje é um garoto que, é regra más escolhas, desinformação e para que a enquanto tem comida, come”. orçamento familiar.” A família está investigando o reeducação Lopez partilha do ponto de problema. A sucessão de regi- alimentar vista. “Historicamente, os obemes não funcionou. “As dietas funcione sos tiveram maior poder aquidos endocrinologistas são imsitivo. Mas estamos assistindo a possíveis. Uma delas recomendava tofu. uma transição: a população de menor poder Outra, torradinhas diet com gosto de iso- aquisitivo e baixa escolaridade está se torpor. Para outra compramos pão integral – nando obesa. No Nordeste há mais obesos ninguém aguentou”, descreve Renata. nas classes de menor escolaridade do que na Impor dieta a uma criança não é fácil – classe alta no Sudeste”, observa o nutrólogo muito menos fazê-la junto. Mas é regra para da Unesp. “Já está na hora de nos mobilique a reeducação alimentar funcione. Gil- zarmos para criar campanhas de conscienmar Vieira da Silva, assessor do sindicato tização para a população, a começar pelas dos químicos de Piracicaba, empenha-se em escolas. Campanhas contra tabaco estão ajudar sua filha Maria, de 8 anos. “O pediatra funcionando, outras em prol da boa alimenfalou muito sobre a importância do exemplo tação também funcionarão.” Faz sentido. dos pais. Quando estamos juntos, sempre a levo para caminhar, e controlamos o que comemos. Quando ela elimina um quilo, comemora”, conta o pai. Com terapia, aulas de balé e dieta, Maria tenta fazer as pazes com a balança, com conquistas e derrotas. É óbvio que a consciência da doença significa 50% do caminho em direção à cura, MAURICIO MORAIS

O curioso é que até os fabricantes de brinquedos estão achando alternativas lucrativas para “ajudar os pais” a movimentar a galerinha. A mais nova febre é o Wii, videogame que obriga os jogadores a se movimentar. Essa foi a mais recente tentativa da dona de casa Marisa Maria Ribeiro Broaska para tirar seu filho do sofá. Além do jogo, Tiago, de 11 anos e 15 quilos acima do peso, ganhou um cachorro. “Ele sai emburrado, mas vai caminhar”, conta. A reação começou cedo, aos 2 anos. “Sirvo a mesma refeição para todos em casa. Por que o corpo dele reage diferente?”, ela se pergunta. A resposta está, provavelmente, em deficiências no metabolismo de Tiago. Aos 7 anos, começaram a surgir alterações em seus exames de sangue e ficou mais difícil controlar o que ele come fora de casa. “Ele exagera e minha impressão é que come por ansiedade. Além disso, estou mais preocupada do que ele e o pai. Se toda a família não está envolvida, fica quase impossível reverter a situação”, lamenta Marisa. Como defesa em relação aos colegas de escola, Tiago se tornou o palhaço da turma.

QUEDA DE BRAÇO Marisa procura controlar o apetite de Tiago por guloseimas. Fora de casa é que o bicho pega

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JANE CAVALCANTE/REPÓRTER BRASIL

BRASIL POBREZA Ignorando a miséria, o ex-governador colocou seu nome na cidade

POBRE

MUNICÍPIO RICO

Dominada por grandes proprietários que nem sequer vivem na cidade, Campos Lindos tem a maior sojicultura do Tocantins, e o maior índice de pobreza do país – 84% Por Maurício Hashizume

A

os olhos dos grandes produtores de municípios como Campos Lindos (TO), soja é sinônimo de riqueza. O cultivo do grão pelo Projeto Agrícola Campos Lindos movimentou R$ 74,3 milhões no ano passado, 3.377% mais do que há uma década. No período, a produção do grão cresceu de 9.300 para 126 mil toneladas, aumento de 1.346%. Multinacionais como Bunge e Cargill contribuíram para a expansão da monocultura com a instalação de silos de armazenamento, compra antecipada de produção e fornecimento de insumos. A cidade se tornou campeã estadual no cultivo e exportação de soja. Essa posição, no entanto, não se reflete 30

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na realidade dos cidadãos “comuns”. Campos Lindos ocupa o primeiro posto entre os municípios do país no Mapa de Pobreza e Desigualdade, do IBGE, divulgado no final de 2008. O estudo revelou que 84% da população vive na pobreza, dois terços dela na condição de extrema indigência, ou seja, sem ingerir o mínimo de calorias diárias para sobreviver. A cidade mudou o nome original de Montes Lindos para ganhar o sobrenome do primeiro governador do Tocantins, José Wilson Siqueira Campos (PSDB). Quando ainda fazia parte do estado de Goiás, no início dos anos 1980, a área do projeto em questão passou pela primeira “titulação” suspeita, com terras alienadas sem os ri-

tos legais. Na ocasião, processo conduzido pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (Idago) congratulou 27 proprietários vindos de outras regiões do país (parte produtores de grãos, parte especuladores imobiliários), com áreas de mais de 2 mil hectares. O Projeto Agrícola Campos Lindos surge na segunda “titulação”, em 1997, na qual o governador homenageado declara como de utilidade pública (sob a alegação de improdutividade) os 105,6 mil hectares de terras da antiga Fazenda Santa Catarina, então desapropriada. Pequenos agricultores, cerca de 80 famílias com média de 40 anos de posse da área, receberam indenizações de R$ 10 por hectare.


Em novembro de 2003, fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontraram 20 pessoas em condições análogas à escravidão no Lote 64 da Fazenda Santa Catarina (conhecida como Fazenda São Simeão). O responsável, Iakov Kalugin, está na atual “lista suja” do trabalho escravo.

vem atrás do dinheiro. Os filhos daqui não recebem os benefícios que deveriam receber”, desabafa. Com 7.600 habitantes, Campos Lindos também sofre com falta de água tratada e escolas insuficientes (são duas, uma de ensino fundamental e outra de médio). A energia elétrica é inacessível financeiraCanjica por R$ 1 mente à maioria da população e a arrecaCada copo de canjica tirado da panela dação municipal chega a R$ 600 mil por quente de Lucinda Campos Rodrigues, 47 ano, segundo o secretário de Finanças, Geanos, ex-trabalhadora rural, é vendido por nelito de Morais. R$ 1. Na região desde 2001, ela mantém A isenção do Imposto de Circulação de nove crianças (quatro filhos em idade es- Mercadorias e Serviços (ICMS) para as emcolar, três netos e dois sopresas de soja obriga a gesA energia brinhos) com renda refortão estadual a repassar peçada pelo programa Bolsa elétrica é quena parcela dos outros inacessível Família. impostos ao município. A Cargill alega que não receLucinda mora numa re- financeiramente be benefícios fiscais (fedegião em que o único pos- à maioria da ral, estadual ou municipal) to de saúde, na área cen- população e não dispõe de financiatral, não tem estrutura para partos ou cirurgias, laboratório ou leitos. mentos públicos. “O principal problema é Sem médicos suficientes, a cidade encami- que a maioria dos produtores não mora no nha casos graves para municípios vizinhos. município e, com isso, não temos o efeito “Não há sequer os remédios mais simples multiplicador que temos visto em outras recontra vermes”, descreve a freira Ilda Ma- giões”, justifica a empresa. A Bunge não resria de Oliveira, que atende os moradores pondeu à reportagem. desamparados que a solicitam em busca de fórmulas caseiras e de massagens. Parte das Maurício Hashizume é jornalista doenças é fruto da falta de saneamento bá- da Repórter Brasil. Colaborou Jane sico e da desnutrição. “Quem vem para cá Cavalcante

RIQUEZA Multinacionais exploram a área rural do município que virou campeão estadual de exportação de soja

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MOACYR LOPES JÚNIOR/FOLHA IMAGEM

Em 1999, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet) indicou alguns de seus representantes para tomar parte dessa reforma agrária às avessas. À época presidente da Faet, a hoje senadora e presidente da Confederação de Agricultura e Pecuária (CNA), Kátia Abreu (DEM-TO), e seu irmão Luiz Alfredo receberam lotes de 1.200 hectares. O presidente da Companhia de Promoção Agrícola (Campo) àquela época, Emiliano Botelho, recebeu 1.700 hectares. Pessoas próximas ao Instituto de Terras do Tocantins (Itertins) também foram atendidas. Procuradas pela reportagem, não responderam às indagações. Sem nunca obter licenciamento ambiental, o primeiro pedido da Faet, de 2000, encaminhado ao Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), não previa impactos socioambientais. No mesmo ano, áreas de desmatamento ilegais foram flagradas pelo Ibama e pelo Ministério Público Federal no Tocantins. Nenhum dos pontos dos planos de manejo foram cumpridos. Atualmente o requerente da licença é a Associação de Plantadores do Alto Tocantins (Planalto), formada pelos fazendeiros. “Para fazer o projeto funcionar, houve um atropelamento de suas fases”, afirma o prefeito de Campos Lindos (TO), Jorlênio Menezes Santos (PMDB). “Até hoje não conseguiram resolver bem a questão ambiental.”

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CIDADANIA

DE FLORES E PALAVRAS “Era 27 de setembro de 1987, início de tarde, Joaquin jogava bola com os amigos. Ouviu uma explosão, correu para ver. Quando chegou, sua infância e adolescência estavam enterradas” Por João Peres

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o pequeno barracão de madeira gesticula, mexe as sobrancelhas, fala com propriedade. Os olhos pequenos informam a mestiçagem de nossos povos, é careca e sorri mais para esconder o nervosismo do que quando está de fato contente. Durante uma hora, ou muito mais, esquiva-se como um boxeador. Toda vez que um cruzado ou um direto vem em sua direção, ginga ou atraca-se com o adversário imaginário. O golpe, no caso, é o passado. O clinch é a religião, à qual ele apela a cada segundo para manter-se de pé. Pudera. Não é fácil pedir que fale sobre algo tão doloroso. Joaquin Calle Ramirez, Juaco, tem 38

anos e há seis reintegrou-se à sociedade. Viveu década e meia como ladrão, traficante e paramilitar – uma “ascensão” hierárquica que no geral é interrompida antes que se chegue aos degraus mais altos. Como escapou vivo de tantos erros não sabe. Durante os anos pelo “caminho escuro”, teve três filhos com três mulheres diferentes – o quarto nasceu depois da desmobilização. Juaco fazia suas batalhas no mesmo local em que hoje trabalha. Na época, eram montes e montes de lixo em um terreno baldio abandonado pela prefeitura que servia de trincheira para os combates entre grupos armados. No baixo escalão, a batalha não se dava por ideologia. Medellín é o epicentro do terremoto que


LEÓN DARÍO PELÁEZ

HERANÇA DO BEM Cerro dos Valores: jardim com vista para Medellín

ao longo dos anos 1990 matou 35 mil pessoas em toda a Colômbia. A cidade formou aos montes mão de obra para o combate. No caso de Juaco e de seus amigos, uma tragédia em comum catalisou um processo que ocorreria “naturalmente” para alguns deles. Era 27 de setembro de 1987, início de tarde, Joaquin jogava bola com os amigos. Ouviu uma explosão, correu para ver. Quando chegou, sua infância e adolescência estavam enterradas: era o fim dos filmes de Bruce Lee com o pai, da escola, dos livros. O deslizamento de terra, de investigações inconclusas até hoje, levou a vida dos pais de Juaco, de dois irmãos e de outras 500 pessoas. “Nós, como órfãos e vítimas dessa tragé-

dia, víamos que estávamos sozinhos e o Estado não nos amparou. O mais fácil era pegar em armas porque era a cultura em que a gente vivia”, diz. Aos 15 anos já estava em Bella Vista, uma casa de detenção. Ele sabe que a tragédia não é justificativa: serve antes como pretexto para os erros que cometeu na sequência. Agora, do alto do Morro dos Valores, como eles mesmos nomearam, vê-se uma cidade cor de tijolo. O centro de Medellín, com uma classe média orgulhosa de seu poder de compra, está lá ao fundo ostentando prédios, carros novos que se espremem pelas avenidas, que não acompanharam o ritmo de crescimento, estátuas de Fernando Botero. A geografia da cidade e os problemas sociais fazem lembrar o Rio de Janeiro. Seus habitantes gostam de ser chamados de paisas. Um paisa é um sujeito que se orgulha de ter de tudo o maior, mesmo quando o maior é o negativo. Levanta cedo, esconde com classe a ressaca e trabalha por 11 ou 12 horas. Na volta para casa, mais aguardente até iniciar um novo dia. Juaco tem orgulho de ser paisa. Os ex-paramilitares têm pela frente dois desafios: ficar longe do crime e manter o trabalho do Morro dos Valores. A primeira tarefa é complicada: atualmente, cada um recebe em torno de R$ 400 por mês como ajuda de custo da prefeitura por estar inserido em um projeto. Nenhum deles hesita em confessar que pensou – ou ainda pensa – em retornar ao crime, e ganhar esse valor em um dia. Por isso, manter-se ocupado é manter-se longe de problemas. Juaco acorda às 5 manhã e assim que nas- ce o sol já está trabalhando. Sai para almoçar, descansa, retorna e fica até 8 da noite. Volta para casa, dorme e começa tudo outra vez. De segunda a segunda.

Se vai, vai rápido

A outra missão, o trabalho da Corporação Campo Santo, como se chamam, conta com interlocutor privilegiado. Encontramos Luz García, ou simplesmente doña Luz, em uma rua de Caicedo conversando com as vizinhas. A cirurgia que fez recentemente nas costas e as recomendações médicas não são capazes de pará-la. Aos 79 anos, ela carrega bobes nos cabelos brancos,

rugas na pele escura, usa uma roupa verde encardida e pantufas nos pés. Líder comunitária há quase 40 anos, doña Luz brinda perdão a quem necessita e pede à prefeitura que dê aos ex-paramilitares a posse definitiva sobre o terreno do morro. O poder de interlocução rendeu-lhe as dezenas de placas que ostenta na parede de sua casa – é uma Gestora de Paz. Ingressamos num recinto bastante simples, com sofás castigados, aquário antigo, dezenas de livros. Da porta aberta vaza uma mistura de cheiros de comida e alguns raios de sol que iluminam o rosto de doña Luz. Seu neto entra e não tarda a ouvir a recomendação: “Mataram alguém pa’ aí em cima. Se vai pa’ casa, vai bem rápido”. Como os brasileiros, os colombianos comem letras e sílabas com propriedade. Cortar, abreviar, dar novos sentidos são especialidades. Doña Luz sabe aonde quer chegar. “Não sei o que está acontecendo com os garotos, que de novo estão com essa raiva. É preciso pedir a Deus que haja outra vez uma reunião para que eles possam entrar em um diálogo. O bairro esteve muito tranquilo, mas acontece que mataram há mais ou menos três meses um jovem aí abaixo pela questão das drogas.” A fala de doña Luz sintetiza o momento de Medellín. No caminho da pacificação desde 2003, quando as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) decidiram pela desmobilização,

VIRADA Juaco lutava sua guerra no mesmo local onde hoje trabalha


JÚLIO CÉSAR HERRERA

Hoje, além das flores, os paramilitares reinseridos trabalham com reciclagem e com bonecos de Natal, feitos de arame e iluminados, que já renderam quatro prêmios a cidade vê neste ano um crescimento perigoso dos índices de violência. Já ocorreram mais assassinatos que em todo 2008: muitos desmobilizados estão voltando às armas. Dos 60 que iniciaram o projeto da Corporação Campo Santo, ficaram apenas 12 – a maioria voltou ao crime e muitos já perderam a vida. Além disso, segundo estudos da Fundação Ideias para a Paz, sediada em Bogotá, em torno de 20% dos paramilitares jamais respeitaram a ordem de deixar o combate. É possível que doña Luz tenha de entrar novamente nas negociações, como cansou de fazer nos 1990. Com autoridade, era procurada pelos grupos armados que queriam negociar tréguas. Garantiu pequenos períodos de calmaria. Quando fala disso, fecha os olhos por muito tempo, gesticula com habilidade, sabe trocar o tom de voz a torto e a direito, e por fim decreta: “Não digo que vou condenar. Eles mesmos se condenam, sim ou não? Porque são donos de seus atos, donos de suas ex34

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pressões. Eu não os condeno, apenas me dói profundamente o que acontece”.

Todos perderam

É difícil imaginar um lugar no continente com uma cicatriz tão grande quanto a colombiana. Todos no país perderam um parente no tráfico, no paramilitarismo, nas guerrilhas. E continuam perdendo. No caso da Corporação Campo Santo, o segredo para não perder mais integrantes está em trabalhar muito. E, goste-se ou não, em apegar-se à religião, que de alguma maneira ajuda a esquecer o passado e a segurar-se no presente. É onde entra a segunda parte dos projetos. Em Villatina, Campo Santo está construí­ da exatamente sobre o local que marcou a tragédia de Juaco e de outras centenas de famílias. Logo na entrada há uma capela que serve para o culto das quartas à noite e para que outros coletivos possam desenvolver seus trabalhos. Entramos, e está sendo

realizada uma atividade para pessoas com deficiências físicas ou mentais. No barranco de grama bem aparada há mais flores, algumas cruzes e lápides simbolizando o triste fato de 1987. Por fim, um mural não concluído e descascando. Juaco mostra com orgulho a trajetória da corporação: a tragédia de Villatina, a orfandade, a entrada para o crime, a desmobilização e o reinício da vida. Hoje, além das flores, que o Jardim Botânico deve começar a comprar em breve, os paramilitares reinseridos trabalham com reciclagem e, em dezembro, com os bonecos de Natal, feitos de arame e iluminados, que já renderam quatro prêmios. Os moradores reconhecem o esforço de Juaco e de seus parceiros. Acenam para ele, dão bom-dia, sorriem, gestos que valem mais que mil palavras. Doña Luz, novamente, adverte: “Há muita gente que diz que perdoa, mas está sempre recordando e recordando. Tem o coração enfermo”.


Retrato

Por Xandra Stefanel. Foto de Mauricio Morais

Fé no futuro

L

afaiete Simões Machado não é estreante na Revista do Brasil. Em novembro de 2006, ele estampou a capa da sexta edição, cujo tema era a promoção da igualdade racial. Beneficiário das políticas de inclusão, é bolsista do curso de Relações Públicas da Universidade Metodista de São Paulo e já vai concluir o penúltimo semestre. O ingresso nesse universo não foi nada fácil. Depois de ser reprovado no vestibular para Artes Plásticas, na USP, estudou um ano na Educafro – rede comunitária de cursinhos pré-vestibulares com foco na inclusão de negros nas universidades – e conseguiu a vaga. Hoje Lafaiete, aos 27 anos, tem outra perspectiva de vida: “Descobri que o maior poder que a pessoa tem é o conhecimento. Quando você tem conteúdo, autoestima, sabe de onde vem e o que quer,

de excluí­do passa a representante, deixa de ser aquela coisa estereo­ tipada”. Apesar de já se sentir preparado para o mercado de trabalho, por enquanto só percebeu mudanças intelectuais em sua vida. Na prática, a realidade de 2006, quando era serigrafista e ganhava R$ 490 por mês, ainda não mudou com o trabalho de vendedor numa loja de artigos esportivos. “No Brasil, o racismo é velado e os negros são excluídos nas entrelinhas. Apesar de ter estudado inglês e árabe e feito vários cursos de arte, ainda não consegui emprego na minha área.” Lafaiete também é professor de cidadania da Educafro. “Sei que sou uma referência. Depois que saí na Revista do Brasil, muita gente veio me procurar e consegui colocar alguns amigos na Educafro. Eu servi de exemplo, e as pessoas passaram a acreditar que é, sim, possível mudar.” NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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RAÇA

AUTOESTIMA

em ascensão

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os anos 1980, as políticas de ação afirmativa e igualdade racial ainda eram uma bandeira de luta do movimento negro, sem respaldo nas políticas de governo. Na época, o atual ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Edson­ Santos, debutava como líder estudantil na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), onde cursava Ciências Sociais. Fora da academia, participava do debate comunitário e chegou a ser presidente do Conselho dos Moradores da Cidade Deus, no Rio de Janeiro. A militância na área de planejamento urbano, especialmente transporte e habitação popular, levou Edson­Santos à Câmara Municipal do Rio e, em seguida, à Câmara dos Deputados. Com 105 mil votos, ele foi eleito em 2006 o deputado federal mais votado no PT no estado e o deputado negro mais votado do país. Em 2008, assumiu a Seppir e responde pela implementação das políticas de igualdade racial do governo federal. Este ano, durante a 2ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial

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Lamento que ainda existam visões elitistas das ações afirmativas. Quem ‘racializa’ a sociedade são os que negam a existência do racismo e não contribuem para alterar a imobilidade da pirâmide social

ANTONIO CRUZ/ABR

Para o ministro Edson Santos, as políticas afirmativas postas em prática nos últimos anos já elevam a identidade da população negra, e o IBGE confirmará isso no próximo censo Por Juliana Cézar Nunes


(Conapir), Santos declarou que pretende deixar como legado da sua gestão a aprovação, no Congresso Nacional, do Estatuto da Igualdade Racial e da lei de cotas para negros nas universidades – as cotas já vêm sendo aplicadas, mas precisam virar lei para se converter em política de Estado e não depender do governo de plantão para acontecer. “Tem um camarada aí lançando livro contra o Estatuto, contra as cotas. Lamento que ainda existam visões conservadoras e elitistas das políticas de ação afirmativa. Quem continua ‘racializando’ a sociedade são esses senhores e senhoras que negam a existência do racismo e não contribuem para alterar a imobilidade da pirâmide social”, diz. Nesta entrevista, o ministro fala também sobre as prioridades para os próximos meses, rebate críticas da imprensa e de setores do movimento negro que consideraram insuficiente o Estatuto da Igualdade Racial aprovado em comissão especial da Câmara e encaminhado ao Senado. “As pessoas precisam olhar o Estatuto como um todo. Devemos estar mais voltados à defesa do texto final. A oposição ao que conquistamos é forte”, afirma. Como o senhor avalia a trajetória das políticas de ação afirmativa no país?

Este ano tem sido decisivo na consolidação da política de igualdade racial. O Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Planapir) é um instrumento importante para que as políticas públicas sejam reforçadas. Elas foram inseridas em um sistema de planejamento. Fizemos todo um esforço com relação ao Estatuto, que prevê as obrigações do Estado com a população negra. Neste final de ano, teremos um esforço do governo para dar celeridade ao Brasil Quilombola, como ações de educação, saúde, projetos de geração de renda. As políticas têm elevado a autoestima da população negra. Prova disso são os estudos do IBGE que apontam aumento no número de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas. O Censo de 2010 vai confirmar essa tendência.

E a lei de cotas para a população negra nas universidades e escolas técnicas?

Está no Congresso. O Senado ficou sem discutir por muito tempo. Houve uma paralisia geral. Hoje já temos uma possibilidade de retomar esse debate. Setores da mídia seguem nos atacando. Tivemos um ganho muito grande com a adesão de várias correntes partidárias e ideológicas que reconheceram a necessidade de políticas específicas para a população negra. Prova disso foi a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial na Câmara.

Alguns críticos das ações afirmativas dizem que as cotas e outras políticas podem estimular a violência. Como o senhor responde a essa avaliação?

Quem tem uma visão desprovida de preconceito já deve ter percebido que as cotas não levam a conflito. Mais de 60 universidades estão adotando ações afirmativas, independentemente de arcabouço legal, com aprovação de conselhos universitários e excelente desempenho de estudantes cotistas. O que tem aumentado na sociedade são os crimes de racismo. Esses, sim, precisam ser combatidos. Este mês teremos encontros com vários secretários de Justiça do país. Vamos fazer uma exposição no que se refere à denúncia e criminalização do racismo. Tem aumentado a violência, mas também a reação da sociedade às agressões sofridas pela população negra.

O Supremo Tribunal Federal deve julgar em breve ações que dizem respeito às cotas e ao direito à terra das comunidades quilombolas. Como a Seppir pretende atuar na defesa dessas ações afirmativas?

Estamos dialogando com muitos ministros, levando subsídios. Temos uma forte adesão da sociedade civil, por meio de parceiros importantes como CUT e Força Sindical. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem feito a defesa da questão do acesso a terra e das políticas afirmativas. São ações importantes para mostrar que essa postura do governo brasileiro encontra respaldo na sociedade civil.

E o diálogo com a iniciativa privada?

A partir do Programa Universidade para Todos (ProUni) e das cotas nas universidades, temos conseguido mostrar que os jovens negros e negras estão em condições de ingressar no mercado de trabalho com boa qualificação. As empresas precisam se despir de vários preconceitos. Com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), temos feito um diálogo intenso, assim como com a Petrobras e a CPFL. Vários programas para jovens gestores estão em andamento. É importante garantir que, além da inserção no mercado de trabalho, esses jovens possam chegar aos cargos de chefia.

A 2ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial aprovou uma série de resoluções em várias áreas. Como a Seppir­pretende encaminhar as propostas aprovadas?

Elas já estão sendo encaminhadas. Estamos empenhados em dar celeridade ao Programa Brasil Quilombola, vamos elaborar um plano de apoio às religiões de matriz africana e continuaremos na defesa das cotas na universidade no sentido de regulamentar essa ação afirmativa no Congresso Nacional. O recém-criado Comitê Gestor da Planapir também vai possibilitar um diálogo mais efetivo com os órgãos de governo, o que agilizará a implementação das políticas de igualdade racial.

Durante e depois da conferência alguns setores do movimento negro protestaram contra a versão final do Estatuto da Igualdade Racial, especialmente no que diz respeito a cotas, terras quilombolas e meios de comunicação. Como o senhor avalia essa crítica?

Avalio com naturalidade. As pessoas precisam olhar o Estatuto como um todo. As cotas estão previstas no texto como política de ação afirmativa. Agora precisamos regulamentá-las no Congresso. No que diz respeito à questão quilombola, a polêmica está sendo dirimida pelo Supremo Tribunal Federal. Os ministros vão avaliar a Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o decreto de regulamentação do artigo constitucional que já garante o direito à terra às comunidades. No Estatuto, nós reafirmamos o direito à terra, a necessidade de assistência técnica para comunidades rurais e outras ações. Devemos estar mais voltados à defesa do Estatuto. Tem um camarada aí lançando livro contra o Estatuto, contra as cotas. Lamento que ainda existam visões conservadores e elitistas das políticas de ação afirmativa. Quem continua ‘racializando’ a sociedade são esses senhores e senhoras que negam a existência do racismo e não contribuem para alterar a imobilidade da pirâmide social. NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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PERFIL

Das ruas para as

telas

Vivendo a um Oceano Atlântico de distância, Lorna Lavelle nem conhecia os versos de Paulo Vanzolini. Mas levantou, sacodiu a poeira, deu a volta por cima, foi ao cinema e descobriu o Brasil Por Morena Madureira. Foto Eduardo Zappia

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os 26 anos, ela se divide entre projetos de sua carreira de diretora e as tarefas de mãe solteira de uma menina de 8 anos. Entre seus trabalhos há vídeos para nomes de peso como os estilistas Alexander McQueens e Vivienne Westwood, o rapper Lupe Fiasco, a banda Peth, do ator Rhys Ifans, feito depois de “um acordo estabelecido em uma noite de bebedeira com Rhys”. No entanto, é como documentarista que Lorna Lavelle se define. “Quando eu era criança, ia à casa da minha avó, ficava conversando com as amigas dela e pedia que elas me contassem suas histórias, mostrassem suas fotos. Aí eu ia pra escola e contava aquelas histórias pros meus colegas”, relembra. Mas, até chegar aonde está, teve de percorrer um árduo caminho. Lorna cresceu rodeada pelo fantasma da violência doméstica nos conturbados relacionamentos de sua mãe. Adolescente, mergulhou nas drogas e, com medo que a família descobrisse a extensa ficha criminal que se esforçava para esconder, aos 15 anos fugiu de casa e foi morar na rua. “Tenho a sorte de viver num país privilegiado: havia organizações que nos davam comida, ofereciam abrigo. Mas, como não se podia usar drogas nesses abrigos, eu preferia ficar na rua e achar qualquer jeito possível para comprar drogas. Acabei formando uma família com as 38

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pessoas que viviam comigo, e aí me sentia segura”, conta. Por 30 meses, Lorna viveu nas ruas de Londres sem que a família soubesse seu paradeiro. Anúncios eram colocados na revista The Big Issue (publicação semelhante à Ocas brasileira, vendida por pessoas em situação de rua), mas sem sucesso. “Um dia fui presa por posse de drogas e, quando me soltaram, descobri que dois garotos canadenses que costumavam dormir na rua comigo tinham sido assassinados. Decidi que tinha de sair dessa, resolver minha vida”, relata. Como ocorre com todas as pessoas que têm problemas com vício em drogas, a mudança não foi fácil. Logo veio a gravidez precoce, mas o que poderia ser mais um problema foi apenas mais um desafio. “Até ter minha filha, aos 18, eu não tinha autoconfiança, nunca tinha tido identidade, nunca tinha pensado no meu passado. Foi bem difícil, pois tive de cuidar dela sozinha – mesmo tendo um ótimo pai. E foi essa a época em que mais aprendi e que fiquei limpa pelo tempo mais longo da minha vida. Aprendi quem eu realmente era, do que realmente gostava.” E do que gostava? De contar histórias.

Autodidata

Lorna largou a escola antes dos 14 anos. Foi aprendendo aos poucos como funcionava o mundo das câmeras. “Assistia às fil-


Tenho a sorte de viver num país privilegiado: havia organizações que nos davam comida, ofereciam abrigo. Mas, como não se podia usar drogas nesses abrigos, eu preferia ficar na rua

magens de gente que eu achava interessante para aprender o básico e comecei a sair por aí filmando coisas que gostava, seguindo pessoas que queria conhecer”, explica. Na sequência vieram os primeiros vídeos, e agora Lorna está imersa em quatro projetos. Um sobre a história da banda inglesa Unkle. Uma remasterização de um filme de 1970, Brand X, sátira social pop ao estilo Andy Warhol. Conquest, baseado em livro de Andrea Smith que trata de teste de medicamentos em mulheres indígenas das Américas nos anos 1980. E, por fim, Weapon of Choice, uma competição mundial entre novos artistas do grafite que se desdobrará em um documentário acompanhando os finalistas por 12 países – entre os quais Brasil, Reino Unido, China, Austrália, Turquia, França, Alemanha, EUA e Japão –, durante um ano, até o dia da grande final, no Rio de Janeiro, em pleno Carnaval de 2011. Em seguida, será organizada uma exposição que circulará pelos diferentes continentes. A empreitada contará com o apoio de nomes já consagrados da arte de rua, como os brasileiros Speto e Calma (que também é parceiro de Lorna em outro trabalho: um videoclipe da banda N.A.S.A). Weapon of Choice, em fase de pré-produção, trouxe a inglesa ao Brasil e à descoberta de um outro país, muito além dos clichês. “Eu não estava preparada para a receptividade dos brasileiros, para tantas cores, energia. Você vê fotos, assiste a filmes, ‘ah, o feeling brasileiro’, mas na verdade estar lá é diferente. A mentalidade dos artistas, por exemplo, é outra. Aqui, muitos estão fazendo arte apenas pelo dinheiro, não querem que ninguém se aproxime deles, e no Brasil muitos vêm de famílias de baixa renda, têm consciência da desigualdade social, querem fazer algo contra ela. E eu não sabia que iria encontrar isso lá”, relata. As filmagens do documentário começaram em outubro. Lorna aproveitará a viagem com os finalistas para travar outra batalha, essa mais pessoal, com um filme que produzirá para a ONG AA Criança. “Indo pro Brasil, trabalhando com essa organização, com projetos de reabilitação para usuá­ rios de drogas, quero mostrar às pessoas que não existe isso de alguém se tornar viciado e depois ‘seguir 12 passos’ e pronto, estar limpo. Não é assim. É uma luta longa, e quero mostrar com minha arte que se consegue sair dessa situação, que qualquer pessoa pode.” NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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COMPORTAMENTO

O ALERTA DA

CIBERDEPE A compulsão diante de um computador conectado à internet e seu uso prolongado e contínuo afastam pessoas do mundo real, atrapalham o rendimento escolar ou profissional, causam danos físicos e psicológicos. Podem até matar Por Thiago Domenici

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PENDÊNCIA O que diferencia um indivíduo dependente do não dependente é que este entra na internet, realiza a atividade e sai. O dependente cria um mundo virtual para ter experiências de vida. Alguns fatores são predisponentes ao uso abusivo da internet. Desconforto emocional, depressão, problemas nas relações interpessoais, bipolaridade, autoestima e confiança rebaixadas, timidez, falta de proatividade. “Meu filho tem 13 anos, faz dois que começou a ficar conectado. Passa o tempo todo agressivo. Quando sai, precisa tomar medicamentos fortes. É desesperador”, relata uma mãe. Aderbal de Castro Vieira Jr., do Programa de Sexo Compulsivo e Internet da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que a dependência de internet não é química: “Qualquer coisa que cause prazer, bem-estar, alegria para algum tipo de desconforto pode ser vivida com uma dinâmica de dependência”. E o que é dependência? “Basicamente é uma relação disfuncional e patológica com alguma coisa. Pode ser com uma substância, comportamento ou pessoa. O que define a dependência de internet serve para qualquer outra dependência”, explica Aderbal. Um relatório da entidade de psicologia britânica Advances Psychiatric Treatment estima que entre 5% e 10% dos internautas do planeta sejam dependentes. Segundo a Internet World Stats,

A pessoa tem problemas e acaba usando isso como válvula de escape. Às vezes lida bem, às vezes não, a culpa não é só do computador e do jogo

J.J.

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FOTOS REGINA DE GRAMMONT

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eu nome é D., 33 anos, e acabei com a minha vida. Perdi meu marido, minha casa é uma bagunça, fui mal na faculdade e tudo por causa da internet. Fico violenta e irritada, parei de fazer comida, não vou ao banheiro, nem água bebo. Preciso de ajuda. Sinto tontura, tenho vômitos e tremedeiras.” Dez pedidos de socorro chegam toda semana ao e-mail do psicólogo Cristiano Nabuco de Abreu, coordenador do ambulatório de dependência de internet do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), um dos poucos centros do país a tratar desse distúrbio. “O brasileiro é líder no mundo em tempo de conexão. Ninguém ainda se deu conta da onda que está se formando. Na hora que ela quebrar vai levar muita gente”, alerta o psicólogo. De ferramenta libertadora, para muitos a internet se tornou instrumento de controle e refúgio. “Tenho diversos problemas na escola, no namoro, na vida social, não consigo me concentrar. Tenho 17 anos e não sei mais o que fazer”, desabafa um dependente. Apesar de pouco estudada e ainda não classificada pelos manuais­ e livros de referência da psiquiatria mundial, a questão é tida como um transtorno que vai acometer cada vez mais pessoas neste século­.

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organização que monitora estatísticas da rede, o mundo tem 1,7 bilhão de conectados. O Brasil, com 45 milhões, e aplicada essa conta, pode ter cerca de 4 milhões de dependentes. E-mails, salas de bate-papo, jogos on-line, compras, sites com conteúdo específico (erotismo, relacionamentos, bolsas de valores, busca de informações etc.) são recursos que podem viciar se o autocontrole não for posto em prática. “Meu casamento de 15 anos está acabando por causa da internet. Meu marido está completamente viciado em salas de bate-papo, vai dormir mais de 3 da manhã. Quero salvar meu casamento”, diz outro relato. Cristiano dá a dica: “Fique de olho quando você não consegue fazer qualquer atividade prazerosa que não esteja conectada com a internet, se vai para a internet quando não tem o que fazer, ou está entediado ou deprimido, ou a utiliza como maneira de regular o humor. Um paciente nosso descrevia: ‘É meu prozac virtual’ ”. A dependência não está necessariamente relacionada ao excesso de horas na frente do monitor. É o propósito por trás da conexão que revela um dependente. “Quem usa a internet como forma de se refugiar do mundo por não estar bem já pode ser um dependente com uma hora de uso”, esclarece Cristiano.

“Sensação fenomenal”

O jogo na internet é um apêndice relacionado à dependência de web. Jogadores compulsivos passam mais de 30 horas seguidas em frente ao computador diante de desafios e objetivos que tornam o jogo praticamente sem fim. Em muitos casos, jogos são projetados para manter a atenção ininterruptamente com recompensas a conta-gotas. A cada fase, são novos “poderes” para os personagens e revelações sobre a sequência da história, quase sempre num mundo de seres virtuais com forças sobrenaturais. Consequência inevitável do excesso é o esgotamento físico e mental. Alguns casos chegam ao extremo. Em 2005, na Coreia do Sul, um homem morreu depois de jogar durante 50 horas. Três anos antes, haviam morrido dois sul-coreanos. Um passou 86 horas na frente do computador e o outro, 32. Em 2007, um chinês de Pequim teve parada cardíaca depois de jogar três dias seguidos. No Brasil, não se tem notícia de morte causada por compulsão de jogos de computador. Cristiano Nabuco recorda um caso dramático de uma mãe que pediu ajuda para o filho de 16 anos, que desde os 14 não saía de casa. “Ele ficava em média 45 horas ininterruptas jogando e se alimentava na frente do computador. Perguntei como ele ia ao banheiro: ‘Ele fica 45 horas sem levantar e faz tudo nas calças’. Jogava com uma e com a outra mão tirava a cueca suja e arremessava pela janela”, conta. O caso foi de internação devido ao estágio de comorbidade. J.J., 25 anos, trabalha em uma lan house. Publicitário de formação, demonstra consciência ao falar dos jogos eletrônicos e não se considera viciado compulsivo. Joga Word of Warcraft – maior Role Playing Game (RPG) on-line do mundo e ponto de encontro virtual de milhares de adeptos. Para chegar à fase máxima da atual edição (o jogo é pago e tem atualizações anuais), J.J. ficou 552 horas, 49 minutos e 5 segundos em frente ao PC. Em 23 dias, cumpriu 1.489 tarefas e matou 21.357 criaturas. Seu personagem é um Rogue da raça Undead (morto-vivo) e ataca principalmente pelas costas. “Eu jogava umas 12 horas por dia nos últimos tempos para chegar nessa fase”, conta. “Você se prepara como para uma maratona e seu corpo se acostuma. Planejei na minha cabeça quando comecei a jogar, há uns sete anos, que

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por mais que eu fique ligado tantas horas preciso ir ao banheiro, comer, me hidratar, dormir. Coisas que o jogador consciente deve fazer”, ensina. “Se tem gente que cansa com seis horas, eu canso com 12. Depois de todo esse esforço, conseguir o título, o item ou acabar com o chefão é uma sensação fenomenal.” Essa misto de prazer e euforia ao jogar é efeito de descargas elétricas entre neurônios induzidas pela dopamina, uma substância liberada no cérebro também durante os atos de comer, beber e fazer sexo. Quanto mais, maior a sensação de prazer. No dependente de computador a liberação desse neurotransmissor também é causada por movimentos repetitivos. No viciado em drogas, pelo estímulo químico. J.J. diz ter uma vida social fora dos jogos e com amigos reais, muitos vindos das relações do jogo virtual. Para ele, não se pode pôr a culpa no computador e nos jogos pelos casos extremados de mortes e assassinatos. “A pessoa tem problemas e acaba usando isso como válvula de escape. Às vezes lida bem, às vezes não, a culpa não é só do computador e do jogo”, afirma. Na lan house onde trabalha durante a madrugada, J.J. mostrou à reportagem um pouco do seu universo e em vários momentos era interrompido por frequentadores com dúvidas ou desejosos de trocar informações, sempre numa linguagem muito particular. “Aqui é como se você estivesse dançando num lugar onde todo mundo dança do jeito que você dança. Você vai dançar da forma mais ridícula, mas vai se sentir bem porque está todo mundo dançando igual”, compara.


Marijane Martins

Fique esperto Se apresentar pelo menos 5 destes 8 sintomas, procure orientação 1. Preocupação excessiva com a internet. 2. Necessidade de aumentar o tempo conectado (on-line) para ter a mesma satisfação. 3. Exibir esforços repetidos para diminuir o tempo de uso da internet. 4. Apresentar irritabilidade e/ou depressão. 5. Quando o uso da internet é restringido, apresenta instabilidade emocional (internet como forma de regulação emocional). 6. Permanecer mais tempo conectado do que o programado. 7. Ter o trabalho e as relações familiares e sociais em risco pelo uso excessivo. 8. Mentir aos outros sobre a quantidade de horas conectadas. Fonte: www.dependenciadeinternet.com.br

Nos EUA, universidades como Harvard e Yale têm departamento para o tratamento desses pacientes. China, Coreia do Sul, Inglaterra e Holanda também têm. No Brasil, os três principais locais a estudar e tratar o distúrbio gratuitamente estão em São Paulo: USP - R. Dr. Ovídio Pires de Campos, 785, Cerqueira César, (11) 3069-6975. www.dependenciadeinternet.com.br Unifesp - Rua dos Otonis, 887, Vila Mariana, (11) 5579-1543. www.proad.unifesp.br PUC - Rua Monte Alegre, 961, Perdizes, (11) 3670-8040. www.pucsp.br/nppi

“Não sou a única”

LUCIANA WHITAKER

Muitas vezes eu chegava em casa sem meu pagamento. E como explicar ao meu marido? Eu inventava assalto, pedia pra entrar de graça no ônibus...”

O tratamento de viciados em internet é semelhante ao de dependentes de drogas químicas, e as pessoas, em geral, dificilmente se identificam como usuárias abusivas. “Nossa experiência mostra que pessoas em estado de maior gravidade são sempre levadas por alguém, já o indivíduo que não está tão comprometido tem consciência”, pontua Cristiano Nabuco. O organismo de um viciado em internet pode reagir de maneira similar à de um viciado em drogas como crack ou cocaína. Pode sofrer crises de abstinência ou recaídas, mas é preciso diferenciar. De acordo com Aderbal de Castro, da Unifesp, há dois fenômenos orgânicos. A abstinência, quando o corpo “sente” a falta da droga, e a tolerância, quando o corpo “pede” doses mais elevadas para ter o mesmo efeito. “Com o comportamento você tem situações correlatas, mas não é a regra”, esclarece. Os casos relatados na reportagem são tratados com psicoterapia individual ou em grupo. “Aliado a isso, o paciente tem acompanhamento psiquiátrico porque existem elementos, como a ansiedade, que podem reforçar o uso da internet ou ser por ele reforçados”, acrescenta o psiquiatra. A ideia da psicoterapia é descobrir o que levou a pessoa a estabelecer aquela relação de dependência. “A resposta mora dentro dela e nossa proposta fundamental não é fazer com que as pessoas parem de usar a internet, mas compreender o que está acontecendo”, finaliza. Há dois anos a carioca Marijane Martins, de 38 anos, deixou uma mensagem no blog Confissões de um viciado em jogos eletrônicos: “Estou com apenas 11 dias de abstinência do jogo. Tá sendo muito difícil pra mim. Mas tenho tentado manter firme o propósito de parar”. Marijane começou em bingo e quando perdia queria recuperar. “Se ganhava, tinha mais pra jogar, jogar, jogar. Aí fui procurar ajuda”, relembra. “Muitas vezes eu chegava em casa sem meu pagamento. E como explicar ao meu marido? Eu inventava assalto, pedia pra entrar de graça no ônibus...”, conta. E confessa que ainda tem o vício. Só mudou o tipo de jogo, a forma e o local. As sessões em grupo dos Jogadores Anônimos (JA) do Rio de Janeiro ajudaram a controlar parcialmente o desejo. “Não estou totalmente curada. Pego R$ 50 e deixo cartão de banco em casa, porque se eu estiver lá e acabar o dinheiro sei que vou sacar mais.” Ela buscou a internet como solução para ficar mais tempo em casa e viciou-se em jogar buraco virtual. Acha que sofre menos e a atual compulsão não a incomoda a ponto de procurar ajuda novamente. É “menos pior”, não fica mais perambulando por casas de bingo e não gasta mais do que R$ 18 por mês, mas diz ter “pena” de gastar com comida e roupas. Marijane acorda às 7h30 e vai jogar por volta das 8h30. Almoça entre meio-dia e 1 da tarde e volta ao jogo até o marido chegar do trabalho, perto das 21 horas. “Ele às vezes briga comigo. Gosto quando tem futebol, porque ele fica lá vendo e me deixa em paz”, confessa. “Você começa sem nada, daqui a pouco ganha uma medalha, depois outra. Quando chega na de ouro são mil pontos. Aí você vê as outras pessoas com 2 mil, 3 mil, e joga, joga, e nunca fica satisfeito”, desabafa. Quando viaja procura a lan house mais próxima. “E se dá defeito no PC fico maluca. Vou pra uma lan house e esqueço da vida.” Marijane também sonha com o jogo. “Estou dormindo e jogando. Às vezes quero aquela carta e ela não vem, dá aquela angústia. Acordo, e essas coisas ficam na cabeça”, conta. Ela não pediu anonimato. “É um problema que existe na sociedade e que eu tenho. Achava que era só eu e, de repente, descobri um monte de gente na mesma situação.” NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

No meio do caminho Numa das trilhas para quem se encoraja a bater pernas Chapada Diamantina adentro, as poucas famílias que resistiram ao fim do café e dos diamantes completam com sua graça o esplendor do Vale do Paty Por Thais Castilho Fotos de Eduardo Zappia

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ouco importa qual o roteiro escolhido para conhecer o Vale do Paty, região que pertence ao Parque Nacional da Chapada Diamantina, bem no meio do mapa da Bahia. Para alcançar o seio do vale, só mesmo depois de andar muito. A distração fica por conta da paisagem, por todos os lados a linha do horizonte é um contorno sinuoso de cadeias de montanhas, num trajeto entre gigantes, algo majestoso e selvagem. O prêmio é chegar e ser recebido pelos hospitaleiros “patyzeiros”, os últimos moradores do Vale do Paty. Considerado um dos trekkings mais bonitos do mundo, o vale encanta pela natureza rica e diversa. E o encontro com os patyzeiros é surpreendente. São pessoas humildes como Nara, filha de seu Wilson e dona Maria, que moram numa das casas mais utilizadas como ponto de apoio aos visitantes. Aos 20 e poucos anos, Nara nem pensa em sair do Paty. Afirma que, apesar de toda a rusticidade desse lugar, aonde a energia solar acaba de chegar, sua história já faz parte da paisagem. 44

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Nara e o liquidificador manual


Conheça

BA Chapada Salvador Brasília

MG

O Vale do Paty tem 15 quilômetros de extensão. Os três principais pontos de partida para lá são: Vale do Capão, distrito de Palmeiras; pelo Guiné, distrito de Mucugê; e por Andaraí. É preciso pelo menos dois dias para conhecer lugares como Morro do Castelo, Cachoeira dos Funis, da Altina, Igrejinha, e quatro para conhecer também Prefeitura, Poção, Cachoeirão e Calixto. Os percursos – de 30 a 80 quilômetros – são lindos e silenciosos. E exigem a companhia de guias. Nas casas dos nativos há acomodações e refeições bem servidas. Todo o caminho se faz andando, o que requer certo preparo físico, calçado confortável para trekking, roupas leves para o dia, agasalhos para as noites e capa de chuva. A maneira mais prática de preparar a ida é chegar primeiro a Lençóis, que tem a melhor infraestrutura da Chapada, e contratar serviços de uma agência que ofereça toda a logística operacional e monte um desses roteiros. O custo com tudo incluído (logística, alimentação, hospedagem, transporte) varia de R$ 200 a R$ 250/dia por pessoa e pode cair 20% para grupos com quatro pessoas. Mais sobre a Chapada Diamantina: www.guiachapadadiamantina.com.br e www.guialencois.com.br

Os suprimentos chegam no lombo de burros

RECONHECIMENTO INTERNACIONAL A trilha do Vale do Paty é considerada uma das mais bonitas do mundo

Sua vizinha Renata trocou a tranquilidade dali pelas atrações de Andaraí, que fica em uma das saídas do Paty. Depois que o pai morreu, ela e a mãe decidiram deixar a casa e seguiram para a cidade. Na época, Renata estava com 18 anos. Os sete irmãos já tinham saído de casa em busca de trabalho. Só uma, Dagmar, continua por lá. As lembranças que Renata, hoje com 31 anos, guarda da vida no Paty traduzem dias de fartura do alimento cultivado nas roças das casas e dos pés de manga e de jaca, de contato intenso com a natureza, de banhos de rio sem fim e de colheitas de café, das quais ela fugia com frequência. Nessa época o plantio do café já nem era o forte da economia da região, mas alguns dos milhares de pés que haviam dominado as montanhas do vale, no auge dos anos 1920 e 1930, continuam por lá. Até hoje o cafezinho que se toma no Paty é literalmente caseiro. As histórias que contam os moradores mais antigos descrevem cenas de mulas e jegues subindo a serra do vale, conhecida como Ladeira do Império. Os animais estavam sempre abarrotados de sacas NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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ISOLAMENTO E ESCURIDÃO Painel solar fornece energia suficiente apenas para acender algumas lâmpadas da vila de 50 moradores

de café, para ser vendidas em Andaraí. Na volta, as famílias se fartavam com carnes, bebidas e objetos que o comércio permitia comprar. Não fossem a crise de 1929 e a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina – em 1985, com o objetivo de proteger o ecossistema de uma área de 152 mil hectares da Serra do Sincorá –, talvez o turismo não viesse a ser a forte e promissora atividade econômica que consegue manter os negócios dos cerca de 50 moradores do local. Incrível pensar que esses 50, juntos, não representam nem 2% do total de pessoas que já habitaram as serras do vale.

Novo ciclo

Com a crise de 1929, o governo passou a implantar a política de erradicação do café em todo o Brasil. A medida, na região, provocou a evasão das famílias, que sob concessão do governo queimavam as plantações em troca de dinheiro e abandonavam as terras. As que lá ficaram continuaram sobrevivendo de suas roças de subsistência e da venda do excedente na feira de Andaraí. Nas cidades da Chapada o garimpo de diamante aparecia como uma interessante proposta para muitas famílias em ritmo de retirada. Contando os pormenores dos acontecimentos, desde a saída das famílias até a chegada dos primeiros turistas, seu Eduardo Araújo de Oliveira, 89 anos, carrega lembranças dessa época e tem certeza de que essa história ainda será contada por ele muitas vezes, para muitos passantes: do Paty ele garante que não sai. Renata ainda era muito menina quando o turismo começou a despontar como viés econômico. Em suas lembranças estão os primeiros turistas que começaram a desvendar o vale, ao lado de guias locais. No início, as visitas não eram frequentes e era difícil imaginar que seria possível tirar o sustento dessa curiosa modalidade. As possibilidades de sobrevivência e de realizar sonhos pareciam mais promissoras do outro lado da serra. Como conseguir emprego em Andaraí não foi tão fácil, Renata

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resolveu rumar para Lençóis, já então porta de entrada do turismo na Chapada. Renata trabalha há seis anos numa pousada e, com o salário, está terminando de construir sua casa. Os moradores mais velhos que haviam se mantido no vale mesmo depois da crise conseguiram a aposentadoria pelas prefeituras das cidades vizinhas, Andaraí e Mucugê, o que estimulou sua saída. Hoje, as poucas famílias que restaram sobrevivem exclusivamente do turismo. Continuam com suas roças, mas dependem do comércio de Andaraí, dessa vez para alimentar os turistas. Enquanto a crise foi responsável pela retirada da primeira leva de moradores do local, a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina obriga as famílias remanescentes a deixar as terras por uma questão legal, pois a lei, ainda que permita a prática do turismo, proíbe a moradia de pessoas na área. O analista ambiental do parque, Pablo Casella, é enfático, no entanto, ao afirmar: “Sem que haja a indenização, nenhuma família terá de sair. Isso seria inconstitucional, além de imoral”. O plano de manejo do parque foi aprovado em março deste ano. De fato, é necessária a adoção de mecanismos para reduzir os impactos causados não só pela moradia dessas famílias, mas também pelas visitas. O acesso ao vale se dá apenas por caminhada ou no lombo de animais. Por isso, a preocupação com a preservação das águas e das trilhas deve ser prioridade. Por outro lado, o turismo foi a alternativa que os acontecimentos históricos, sociais e econômicos deixaram para o lugar. Nara, filha de dona Maria e seu Wilson, vivencia o auge desse ciclo e está acostumada com a rotina de atender os visitantes. Acorda cedo e prepara o café da manhã, que será servido na cozinha da casa. Ao redor, o cenário é de encher os olhos. E o melhor é saber que ainda se terá um dia inteiro de passeio pela frente, muito lugar lindo para conhecer, muita gente interessante para conversar e muita história para ouvir.



Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

FOTOS CICV

CurtaEssaDica

Fome na Rússia (1922)

Libéria (2009)

Nagasaki (1945)

Stalingrado (1942)

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Não faça guerra...

Depois de quase 25 mil visitas em Brasília e da passagem por São Paulo, a exposição A Humanidade em Guerra segue para o metrô do Rio de Janeiro. As imagens, brutais, traçam a história dos conflitos armados e suas consequências humanitárias no último século e meio, da Secessão americana até as guerras e situações de violência armada atuais. A mostra, organizada pelo Movimento Internacional da Cruz Vermelha, faz parte da campanha “Nosso Mundo. Sua Ação” (www.ourworld-yourmove.org) e já percorreu 50 países. Em São Paulo: até 15 de novembro na Matilha Cultural, Rua Rego Freitas, 542, de terça-feira a sábado, das 12h às 20h, (11) 3656-2636. No Rio de Janeiro: início em 25 de novembro na estação Siqueira Campos do metrô. Grátis.

Nadine Labaki

Bela receita Cinco mulheres se encontram regularmente no salão de beleza Sibelle, em Beirute. Layale (Nadine Labaki), a depiladora, é amante de um homem casado; a muçulmana Nisrine (Yasmine Elmasri) não sabe como contar ao novo namorado que não é virgem; Rima (Joanna Moukarzel) se sente atraída por uma cliente; Jamale (Gisèle Aouad) não aceita envelhecer; Rose (Sihame Haddad) abdicou de sua vida para cuidar da irmã mais velha. Em Caramelo, filme que Nadine Labaki também dirige, entre cortes, unhas e depilações feitas à base de cera de receita oriental tradicional, estão as conversas sobre relacionamentos, amadurecimento e maternidade, tudo muito feminino e delicado. Preste atenção na cena em que Nadine fala ao telefone na janela do salão e o guarda, apaixonado, do outro lado da rua, responde. Pura poesia.

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Selton Melo vive Jean Charles

Sonho interrompido Em julho de 2005 agentes do serviço secreto britânico assassinaram Jean Charles de Menezes em uma estação de metrô em Londres, ao confundi-lo com um terrorista. No filme Jean Charles, o diretor Henrique Goldman mostra, baseado no episódio, mas com alguma ficção, os últimos meses da vida do eletricista brasileiro. “Fiquei curioso de saber quem era esse cara. O que ele fazia, como ele vivia? Quem era sua família? Quem eram os seus amigos? Qual era a dele? É isso que o filme quer contar, quer responder”, explica Selton Melo, que interpreta Jean. Lançamento do DVD em novembro.


Foto de Mario Cravo Neto

Ana Cañas

Overdose na Cultura

Latinidade O Museu Afro Brasil apresenta até 25 de janeiro de 2010 Os Mágicos Olhos das Américas, exposição que traz 300 obras de artistas ibero-americanos e africanos. Os espíritos da terra: arte indígena e pré-colombiana; Na presença dos espíritos: arte africana; Sincretismos: arte sacra – Cuba e Brasil; Visões ibero-americanas: a fotografia do século XIX; Andanças pela América do Sul: Pierre Verger são alguns dos temas da mostra que homenageia o fotógrafo, desenhista e escultor Mario Cravo Neto. Uma caravela cenográfica de 6 metros de altura é um belo convite para embarcar na história. De terça a domingo, das 10h às 17h, na Av. Pedro Álvares Cabral, Parque Ibirapuera, (11) 5579-0593.

Das 9 horas do dia 28 de novembro até as 22 horas do dia seguinte a Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo (SP), estará aberta e com uma programação de mais de 40 atividades culturais, a maioria gratuita. Entre as atrações confirmadas estão os show de Ana Cañas, de Donatinho e da banda Copacabana Club, o espetáculo de balé da Cia. de Dança Borelli, as peças de teatro As meninas, baseada no romance de Lygia Fagundes Telles, e Doido, com Elias Andreato. Haverá também intervenções circenses, oficinas de brinquedos, discotecagens e palestras. O passaporte do Vira Cultura, com a programação detalhada, está disponível em todas as unidades da livraria. Informações: www.livrariacultura.com.br.

Vale ouro

Banda Sandália de Prata

A banda Sandália de Prata lançou em outubro seu segundo álbum, Samba Pesado. A levada das 12 faixas é sambarock, com requintes de gafieira, toques de jazz, soul e metais bem arranjados. É leve em Despertar, música inédita de Luis Vagner, gingada em Dida e com uma levada ao estilo Originais do Samba em Malandragem. Formado em 2003 no Capão Redondo, periferia da capital paulista, o grupo é composto por Ully Costa (vocal), Carlinhos “Creck” (baixo), Sandro Lima (violão e guitarra), Paulinho Sorriso (bateria), Dado Tristão (teclado), Tito Amorim (percussão), Marcelo Fernandes (sax), João Lenhari (trompete) e Jorginho Neto (trombone) e desde 2003 tem garantido casas cheias e pistas animadas por onde passa. R$ 10. Mais informações pelo e-mail contato@brasucaproducoes.com.br. NOVEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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Crônica

Por José Roberto Torero

A culpa é do feio A violência do futebol é um fato

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José Roberto Torero é escritor, roteirista de cinema e TV e blogueiro (blogdotorero. blog.uol. com.br)

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odo ano morrem algumas pessoas, centenas se machucam e milhares trocam o estádio pela tevê. É raro ver uma família indo ao campo e é impossível assistir a um jogo com um amigo que torça para o adversário, como eu fazia antigamente, quando ia ao Pacaembu ver Santos x Palmeiras com um colega alviverde. Mas qual a causa disso? Acho que há várias conhecidas e uma desprezada. A primeira das conhecidas é que a violência no futebol é uma consequência da violência na sociedade. Hoje há mais mortes e agressões do que antigamente nas ruas, e isso obviamente teria de se refletir em outras áreas, inclusive na grande, na pequena e nas arquibancadas. A criação das torcidas uniformizadas também é sempre lembrada. É claro que havia violência antes (conta-se que em 1935, num jogo decisivo do Campeonato Paulista contra o Corinthians, alguns torcedores santistas levaram gasolina ao estádio para causar um incêndio caso o time fosse roubado), mas as organizadas organizaram a violência. Com elas ficou fácil identificar o inimigo, marcar brigas etc. Esses dois motivos são perfeitamente aceitáveis, mas não bastam. Eles satisfazem aos sociólogos e aos delegados de polícia. Mas há mais um motivo. Um motivo importante, fundamental e desprezado: o futebol feio. Isso mesmo, esteta leitora e estático leitor, o futebol feio é um dos motivos da violência do futebol. Vocês estiveram num clássico ultimamente? Viram como muitos torcedores nem olham para o jogo, mas apenas para os torcedores adversários? Geralmente os grupos limítrofes (limítrofes no duplo sentido) assistem à partida apenas nos primeiros minutos. Depois começam a se xingar, a cantar músicas ofensivas (algumas bem sacadas, é verdade), a fazer gestos obscenos, a trocar ameaças etc. Quanto ao futebol, nem olham para o campo. A diversão dessa turma é o adversário, o inimigo, os contrários. Eles vão ao estádio não por seus jogadores, mas pelos torcedores do outro time.

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Se tivéssemos um bom futebol, daqueles em que não conseguimos desgrudar os olhos do gramado, talvez isso não acontecesse, ou acontecesse menos. Que santista iria deixar de olhar Pelé e cia. para ver os torcedores da outra equipe? Os tricolores dos dias de Telê se preocupavam com os palmeirenses? Os flamenguistas dos tempos de Zico lembravam que havia outros times? Os seguidores de Falcão e Batista lembravam-se de xingar os gremistas? Que torcedor do Galo perderia um lance de Reinaldo por olhar para a arquibancada dos visitantes? O êxodo dos jogadores brasileiros piorou muito nosso futebol. Eu, como santista, poderia ter hoje, em meu time, Alex, Renato, Elano, Robinho e Diego. Mas tenho um time bem pior (não citarei nomes para não derramar lágrimas sobre meu teclado), e por conta disso às vezes me distraio do que acontece em campo. Fico olhando para as moças, procurando o sorveteiro, vendo se há algum amigo por perto. Se tivesse alguma tendência para a briga, talvez fosse até a beirada da arquibancada xingar os outros torcedores, só para passar o tempo. O torcedor, mesmo o mais imbecil, mesmo aquele que baba feito um boi e coça a cabeça tal qual um macaco, é também um amante da arte. Ele sabe apreciar um passe inteligente, um drible inesperado, um belo gol. O problema é que ele anda vendo pouco disso ultimamente. E desconta a raiva, da vida e do mau futebol, na torcida adversária. Que me perdoem os delegados e os sociólogos, mas beleza é fundamental. Sem ela, é mais fácil tornar-se uma fera, uma besta.




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