Revista do Brasil nº 043

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SAÚDE Em Bauru, atendimento humanizado, especializado e por conta do SUS

janeiro/2010

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nº 43

R$ 5,00

Kassab e Serra, em pose para propaganda

VOCÊ ACREDITA? Até quando a milionária estratégia de publicidade que inunda São Paulo vai encobrir os descasos dessa dupla?

INFORMAÇÃO O clamor pela banda larga pública para democratizar o acesso à internet


Harmonia na informação...

...no compasso do leitor.

Jornal Brasil Atual. De 2ª a 6ª feira, das 7h às 8h, na FM 98,1, Grande São Paulo. E a qualquer hora, de qualquer lugar, no site

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Índice

Editorial

RICARDO STUCKERT/PR

Política 8 O contraste entre os descasos com São Paulo e o mundo milionário e encantado da propaganda oficial Internet 14 As transformações no dia a dia da primeira cidade digital do país e a importância da banda larga pública Mídia 20 Conferência de Comunicação teve o mérito de reunir vozes diversas e até plantou sementes de mudança Ambiente 24 Postura do mínimo esforço de países ricos deu à conferência do clima, em Copenhague, sabor de fracasso Memória 26 A luta das famílias de perseguidos, torturados e mortos pela ditadura por justiça e contra o esquecimento Saúde 36 Tratamento humanizado, equipes médicas especializadas, pacientes bem atendidos. Sim, o SUS pode Cidadania 40 Encontro de saber popular, ciência e política pública: país descobre o poder das tecnologias sociais

Conferência: por nova regulação de concessões, banda larga pública e mais democracia

Zunidos da Confecom

E YNAIE DAWSON

Árvore de pedra no Salar de Uyuni

Viagem 44 A Bolívia tem quase 3.000 km de fronteira com o Brasil e um mundo de preciosidades a ser descoberto SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista Na Rede

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Em Transe

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Curta Essa Dica

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Atitude 50

xemplos de falhas e omissões da cobertura da imprensa não faltam. Quem acompanhou as privatizações da telefonia, das elétricas e dos bancos pelos grandes jornais não ficou com a verdade, engoliu versões. O noticiário do mundo do trabalho costumeiramente deforma o papel dos sindicatos, das greves e das negociações. Quem se deixou levar pelas manchetes da crise também ficou mal informado. Empresas demitiram movidas a catastrofismo. O mesmo já havia acontecido com a febre amarela e as vacinações. Ou com a corrida indiscriminada aos prontos-socorros e ao Tamiflu para se prevenir (do medo) da gripe suína. O escândalo no Distrito Federal – que tem o DEM à frente e atinge uma penca de partidos – é o mais recente retrato da perna curta dos jornalões. A oposição parlamentar e os movimentos sociais de Brasília há muito apontavam irregularidades. A mídia nada publicava. Exatamente como a blindagem em São Paulo – estado e capital –, das gestões Serra e Kassab. Sem voz, oposição e sindicatos do DF gestavam um plano de mídia independente quando a casa de Arruda caiu. Da mesma forma no Rio Grande do Sul. As contradições da mídia concentrada e movida a versões explicam o êxito da 1ª Conferência Nacional de Comunicações (Confecom), que teve a participação de 2 mil comunicadores, entre delegados, convidados e observadores. A comunicação no Brasil foi esquadrinhada e propostas inovadoras foram apresentadas. Mesmo em meio a um público tão diverso, com gente do empresariado, da sociedade civil, de um mundaréu de rádios comunitárias, blogs, sites, jornais, revistas, professores, jornalistas, sindicatos, associações e movimentos. Buscam-se novos mecanismos de difusão de informação no Brasil e uma nova regulação, desde as leis de concessões de rádios, passando por programas públicos de banda larga, chegando à distribuição da verba publicitária do governo. Enfim, mais democracia. A conferência sistematizou ideias esparsas, gerou uma plataforma de ação e acabou com a ingenuidade de muitos segmentos que ainda esperam algo dos grandes jornais. O escritor uruguaio Eduardo Galeano referiu-se ao primeiro Fórum Social Mundial, em 2001, como a ousadia de uma nuvem de marimbondos dispostos a incomodar o rinoceronte (a mídia submissa ao Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça). A Confecom foi um zunido da outra comunicação possível. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Bernardo Kucinski, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jessica Santos, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Thiago Domenici, João Peres e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Raimundo Paccó/Folha Imagem Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Nominal (11) 3063-5740 Poranduba (61) 3328-8046 Adesão ao projeto (11) 3241-0008 Atendimento: Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Admirson Medeiros Ferro Jr., Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Alberto Grana, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Edílson de Paula Oliveira, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sebastião Geraldo Cardozo, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Vinicius de Assumpção Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Luiz Cláudio Marcolino Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2010

É proibido beber Os fumantes vêm se tornando, há alguns anos, alvos cotidianos da repressão exercida por não fumantes e ex-fumantes, reforçada agora legalmente pelo governo paulista, que proíbe o fumo em locais públicos fechados ou mesmo externos, se cobertos. Fumar tornou-se definitivamente out! Faz mal à saúde do fumante ativo e do passivo e, no limite, sobrecarrega o sistema de saúde público. Mas, quanto ao custo social, quem já viu um fumante inveterado perder emprego, família, amigos? Como bem abordou reportagem da edição de dezembro (“O drinque das oito”), a bebida é a estrela do horário nobre. Tal como o cigarro hollywoodiano fez uma geração inteira apostar que, com ele entre os dedos, cada um seria um galã ou uma diva, hoje o drinque, o chope, a caipirinha, o uísque vendem a imagem do sucesso, do chique, do descolado, do bem-nascido. Mas o bebedor inveterado perde a saúde, o emprego, a família, os amigos. Alguém se habilita? Marcela Goes, São Paulo (SP) marcelagoes@hotmail.com Consciência negra A revista está cada vez melhor e realmente é um sucesso. Gosto bastante dos temas, quase sempre completamente desconhecidos do grande público. Sempre buscando inovar, o que é ótimo, mas por vezes deixando de realizar o óbvio. Para uma revista que sempre, a cada número, mostra como se pratica a igualdade racial na escolha dos temas, a edição de novembro deixou um pouco a desejar. Era óbvio que a capa deveria ser o 20 de novembro, e não algo meio nebuloso como um CO2 em chamas. Quando levei vários exemplares da revista para uma atividade do Dia da Consciência Negra, tive de explicar para muitos estudantes o que aquilo significava e também que havia uma entrevista com o ministro Edson Santos, perdida no interior da edição. Talvez fosse melhor que o destaque de aquecimento global ficasse para dezembro, quando todos estariam discutindo em Copenhague. Roberto Barros Mateus Fouto, Registro (SP) robertobmfouto@uol.com.br

Aquecimento Os textos sobre aquecimento global publicados na edição de novembro da Revista do Brasil (“A conta da estufa” e “Muito além de Kyoto”) não citam o fato de que mais de 80% das emissões brasileiras vêm do desmatamento. Essa informação enfraquece a tese segundo a qual cortar emissões equivale a limitar o crescimento econômico (a não ser para quem acha uma boa crescer acabando com a Amazônia). Danilo Pretti di Giorgi, São Paulo (SP) danilodigiorgi@hotmail.com Pré-sal Muito importante a reportagem sobre o pré-sal, na edição 40 (“Para onde vai o présal”), pois é preciso que o povo brasileiro tenha clareza do valor dessa riqueza para que esta não caia em mãos erradas e deixe de beneficiar a população que tanto necessita que o governo a ajude. Gilberto Paulino de Oliveira, João Pessoa (PB) gilbertopaulino13@hotmail.com Terceirização Trabalho para uma empresa terceirizada. A reportagem “A casta inferior” (ed. 38), da jornalista Solange do Espírito Santo, foi muito interessante e realmente tratou um assunto sério com muita clareza. Eu e uma colega já fomos penalizadas com a transferência para outra unidade da empresa por termos denunciado um caso de assédio. Aproveito este espaço para expressar o quanto estou triste e indignada com essa situação. Estamos trabalhando em um ambiente no qual nem sequer podemos conversar. Claudia Ap. de Lima, São Paulo (SP) claudinhainfo@hotmail.com revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

O brasileiro Lula

Sua liderança assombrou estadistas e borrou de inveja e preconceito a fatia da classe média saudosa da velha direita. De tal maneira ele se fez grande que sobrecarregará de expectativas quem o suceder

T

itulou o jornal espanhol El País que 2009 foi desde que não cometa calúnia, injúria ou difamação. o ano de Lula, em artigo de elogio ao presi- A melhor resposta foi a de Ricardo Berzoini: por que dente brasileiro assinado pelo primeiro-mi- a oposição não faz um filme sobre Fernando Henrinistro da Espanha, José Luis Zapatero. Ao que Cardoso? O que dirão de um jovem filho de gemesmo tempo em que crescem os elogios neral, sobrinho de generais, que se insurge, na prática, internacionais ao trabalhador, parcelas da classe média depois de velho, contra as ideias nacionalistas do pai, e a velha direita no Brasil se assanham, pela imprensa e chefia o mais impatriótico de todos os governos nae pela internet, em seus ataques ao líder. É o desespe- cionais? Como vão explicar que, aos 37 anos, ele tenha ro da inveja, a explosão do preconceito. sido aposentado do cargo de professor da USP, obtido A reação desses inconformados e de seus porta-vo- seu passaporte regular e viajado para o exterior, sem zes na imprensa não se dirige a Lula, mas ter nunca sido incomodado? Ele, que se ao trabalhador. Não admitem que um pau Como poderia exilara em 1964, voltou ao Brasil exatade arara represente hoje, diante do mun- um filme, mente em 1968, a fim de disputar uma do, um país das dimensões geográficas, se fosse cátedra na USP, da qual foi afastado pelo econômicas, culturais e políticas do BraAI-5, premiado com uma boa aposentaproduzido, sil. Para essas socialites e esses senhores doria, de que continua a desfrutar. que frequentam as colunas sociais e aque- explicar que Como poderia um filme, se fosse proles que vivem muito bem, não se sabe com Fernando duzido, explicar que Fernando Henrique recursos, é um desaforo que o tornei- Henrique que criasse o Cebrap em 1969 – no auge ro mecânico seja recebido pelos reis e rai- criasse o do regime militar, com a Junta e com Ménhas, que se assente ao lado de Elizabeth Cebrap em dici – com financiamento da Fundação II, nos salões do Palácio de Buckingham, O ex-presidente faria homenagem 1969, no auge Ford? enquanto Obama se encontra, de pé, na à sua biografia se usasse seus dias na medo regime segunda fila dos presentes. ditação metafísica e na produção inteO presidente não recebe os aplausos so- militar, com lectual de que se orgulha. mente por causa de sua história ou simpa- financiamento Lula está com sua biografia completa. tia pessoal, que cativa quase todos os que o da Fundação Ocupou, queiram ou não seus adversáconhecem, mas – e principalmente – por- Ford? rios, os últimos 30 anos da vida nacional que o povo brasileiro, sob sua liderança, em posição destacada. Emergiu do quatem trabalhado arduamente e vencido o pessimismo se anonimato na hora certa, liderou grande parte dos que nos atingia até poucos anos atrás. Lula tem dado trabalhadores de São Paulo, antes de atrair a atenção o exemplo de que o povo é capaz de tudo. “Se o Lula dos intelectuais e de parcela ponderável da Igreja. Mas chegou ao governo, por que não posso montar o meu demonstrou, logo, que seu compromisso era com o ponegócio?” é a pergunta que muitos se fazem, antes de vão. Criou um partido que pudesse reunir os trabalhacriar sua pequena empresa, buscar financiamento, con- dores, que estavam órfãos de uma liderança a partir do tratar trabalhadores de sua mesma origem, e promover golpe de 1964, e ajudou a conduzir o processo político o desenvolvimento do país. até eleger-se, em 2002. Ainda agora, diante do lançamento do filme Lula, o Sua grande dificuldade é substituir-se no comando Filho do Brasil, os ataques recrudesceram. O cineasta, da vida nacional. De tal maneira ele se fez grande que dos mais conhecidos e bem-sucedidos de nosso país, sobrecarregará de expectativas quem o suceder, para é acusado pela oposição de ter feito um filme laudató- que consiga o mesmo desempenho à frente do Estado. rio, que não aponta os defeitos de Lula. Ora, qualquer Mas o país é grande, e o povo já aprendeu, com Lula, a um pode fazer o filme que quiser sobre quem quiser, participar do processo político.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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NaRede

www.redebrasilatual.com.br Família reunida quando o DEM queria Arruda vice de Serra

ACM Neto Marco Maciel

Demóstenes Torres

Jorge Bornhausen

Gilberto Kassab

José Agripino

Rodrigo Maia

Ronaldo Caiado

Paulo Otávio

Por Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Thiago Domenici

Democratas...

...e panetones

Cláudio Lembo, ex-governador de São Paulo, conhecido quadro do ex-PFL, disse à reportagem da Rede Brasil Atual não ver surpresa no desvendamento do esquema de corrupção que envolve seu colega José Roberto Arruda, acusado pela Polícia Federal de coordenar a arrecadação de R$ 600 mil com empresários do setor privado para Lembo a divisão entre seus colaboradores na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Lembo classificou o episódio como mais um “espetáculo da vida política brasileira”. Afirmou, inclusive, que seu partido ficará enfraquecido nas eleições deste ano. Mas não prevê abalo na parceria com o PSDB. “Foi um fato transitório. E também o PSDB teve membros envolvidos em mensalões”, argumentou. http://migre.me/ecnR

Estudantes que ocuparam a Câmara Legislativa do Distrito Federal para pedir a saída do governador Arruda – que justificou o uso da verba para compra de panetones – criaram o site www.foraarruda. com, no qual disponibilizam jingles e sugestões de camisetas e banners de protesto. Com pouco mais de um mês os criadores afirmaram ter recebido mais de 40 mil acessos. http://migre.me/ecsp

A grita dos descontentes

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ANTONIO CRUZ/ABR

O ex-coordenador-geral de Infraestrutura do Ibama Leozildo Tabajara da Silva Benjamin criticou o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, Edison por pressionar pela rapidez na Lobão concessão da licença ambiental para a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). “O Ibama não é cartório para dar só a licença”, retrucou Benjamin pela RBA. “Não adianta, que no grito não dá para sair.” Benjamin deixou o cargo alegando más condições de trabalho. O diretor de Licenciamento Ambiental Sebastião Custódio Pires foi exonerado. Em seu lugar, Pedro Alberto Bignelli descartou ter assumido sob condição de agilizar a licença, embora admita priorizá-la. http://migre.me/echR e http://migre.me/eci8

Fanfarrão na tevê

Conhecido em Santa Catarina por suas posições rea­ cionárias, o comentarista Luiz Carlos Prates, da RBS, afiliada da Rede Globo, ganhou holofotes fora do seu quintal ao valer-se do direito à liberdade de expressão conquistada com o fim da ditadura para elogiar censores e torturadores a serviço da dita cuja. Ao analisar os 30 anos da Novembrada, manifestação popular realizada em Florianópolis em 1979 durante visita do ex-presidente João Baptista Figueiredo, Prates afirmou que o protesto foi de “perdedores” e que Figueiredo “ensinou o caminho da verdadeira luta e da verdadeira e legítima Prates democracia”. http://migre.me/egna

DIVULGAÇÃO

Roberto Arruda


Sobrenome do amor

Numa decisão inédita, o magistrado Guilherme Madeira Dezem, da 2ª Vara de Registro Público de São Paulo, autorizou um casal homoafetivo a usar o mesmo sobrenome. “Entendo que eles constituem uma unidade familiar. A tônica da existência da família é o amor, pouco importando o gênero da união. Como o companheiro pode adotar o nome da companheira, e vice-versa, estendi para eles o raciocínio”, sentenciou. http://migre.me/ecyN

COP 15 e Confecom

A Conferência Nacional de Comunicação, em Brasília, e a Conferência das Nações Unidas sobre o Clima, em Copenhague, na Dinamarca, tiveram coberturas especiais pela Rede Brasil Atual. Para entender os desdobramentos dos eventos que podem representar divisores de águas para a democratização da comunicação e para a luta contra o aquecimento global, o site reuniu um acervo de informações e análises: http://migre.me/ ecFG e http://migre.me/ecJI O último dos Beatles

Na Rádio: eterno ‘Abbey Road’ O último álbum dos Beatles, Abbey Road, de setembro de 1969, foi considerado por muitos o melhor da banda, e os 40 anos do disco foram lembrados numa matéria especial do Jornal Brasil Atual. Em entrevista ao apresentador Oswaldo Luiz Colibri Vitta, o jornalista e escritor Fernando Nuno, que traduziu o livro The Beatles – A Biografia, de Bob Spitz (Ed. Larousse), e Ricardo Pugialli, autor de Beatlemania (Ediouro), analisam a obra do quarteto inglês, sua importância para a cultura do século 20, os tumultos, os bastidores e até questões políticas envolvendo os rapazes de Liverpool. Pugialli avalia que para não terminar de forma “melancólica” Jonh Lenon e Paul McCartney uniram-se em prol de um álbum “irretocável”, com inovações vocais e instrumentais, permeadas pelos geniais Ringo Starr e George Harrison. Para Nuno, a frase de John Lenon na última faixa do disco Let it Be – lançado em 1970 (“Espero que vocês tenham gostado e que nós tenhamos sido aprovados no teste”) – é uma “versão Lennon” para o fim do grupo. Já em Abbey Road, disse Pugialli, os dizeres da última faixa, The End – “O amor que você recebe é igual ao amor que você dá” –, sintetizam a carreira dos Beatles. O bate-bapo descontraído foi uma aula sobre

o quarteto que vai além da música, já que ambos comentam as circunstâncias de quase todas as 12 faixas do álbum, seus bastidores, brigas, ciúme e curiosidades gerais do grupo. A entrevista pode ser ouvida na íntegra em duas partes (Lado A. http://migre.me/eh55 e Lado B. http://migre.me/eh4V). O Jornal Brasil Atual é sintonizado de segunda a sexta, das 7h às 8h, nos 98,1 FM (para a Grande São Paulo) ou a qualquer momento na internet, em www.redebrasilatual.com.br/radio

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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POLÍTICA

O

catador de papelão Francisco Oliveira de Lima, de 45 anos, morreu durante o sono no último dia 8 de dezembro. Foi soterrado pela lama que deslizou sobre sua casa, em uma área de risco no Jardim Elba, zona leste de São Paulo. Nem ele, nem ninguém tem culpa de ter caí­do naquela única noite um terço da chuva esperada para o mês inteiro. Mas ficou evidenciado que a cidade de São Paulo nunca esteve tão despreparada para prevenir ou minimizar tragédias decorrentes da triste combinação de intempéries com ocupação urbana desordenada. E áreas de conhecido risco acabam mais expostas com a inversão das prioridades na administração pública. Duas semanas depois, algumas áreas da zona leste ainda estavam submersas, e a população, sujeita a contaminações. Em algumas áreas alagadas a água da chuva se misturava a esgotos não tratado por problemas de bombeamento de uma estação da Sabesp, a empresa de saneamento do estado. E isso não é obra da natureza. Colado nos passos do governador José Serra (PSDB), de quem herdou a prefeitura, o governo de Gilberto Kassab (DEM) passa ao largo das questões em que a cidade é mais carente e frágil. De 2006 a 2009 a prefeitura cortou R$ 353 milhões em ações de combate a enchentes. Dados da liderança do PT na Câmara dos Vereadores mostram que, em

Propaganda

126

milhões de reais estão previstos no Orçamento municipal de 2010

Tesoura

353

milhões de reais foi o corte da prefeitura no combate às enchentes De 2006 a 2009

LUIZ CARLOS MURAUSKAS/FOLHA IMAGEM

TRAGÉDIAS DO

CRIADOR E CRIATURA Ninguém pode dizer que Kassab não aprendeu as lições de Serra: aparenta fazer mais do que realmente faz

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Resultados de campanhas publicitárias que fizeram o eleitor acreditar no que não viu, as gestões de Kassab, principal obra de Serra em São Paulo, apostam na propaganda e desprezam o combate às desigualdades, único meio de melhorar a metrópole Por Antonio Biondi e Marcel Gomes


LEONARDO WEN/FOLHA IMAGEM

MARKETING

ALMEIDA ROCHA/FOLHA IMAGEM

ENCURRALADOS Enchentes de dezembro foram das piores que São Paulo já experimentou. Milhares ficaram presos no trânsito e outros tantos perderam tudo na inundação

ALAGADOS No Jardim Romano, zona leste, as águas demoraram mais de dez dias para recuar

vez de executar R$ 1,1 bilhão previstos para essa finalidade nos últimos quatro anos, o democrata utilizou R$ 751 milhões. Nesse mesmo período, empenhou R$ 216 milhões para dar publicidade a outros “feitos”. O descaso assemelha-se à inépcia dos investimentos feitos pelo governo do Estado ao longo de mais de 20 anos para conter as enchentes do rio Tietê. Em 2009, Serra deixou de gastar R$ 114 milhões nas obras de desassoreamento da bacia do Tietê. E o Orçamento de 2010 prevê um corte de outros R$ 51 milhões para ações antienchentes. O Departamento de Água e Energia Elétrica do Estado de São Paulo, responsável pelas obras da calha do Tietê, terá R$ 42 milhões subtraídos dos seus investimentos. Na capital, o prefeito utilizou menos de 8% dos R$ 18,4 milhões previstos no Orçamento de 2009 para a construção de piscinões, que poderiam amenizar os efeitos das enchentes. E gastou R$ 80 milhões em publicidade. Para 2010, a equipe de Kassab prevê R$ 25 milhões para obras e gerenciamento de áreas de risco, um quinto do que pretende destinar a publicidade – R$ 126 milhões, novo recorde na história da cidade. Repetem-se no município as práticas de Serra, que este ano separou R$ 561 milhões para a rubrica comunicação. Em 2006, último ano antes de Serra, o estado despendeu em publicidade R$ 37 milhões. A gastança tem objetivos. Kassab trabalha com a possibilidade de suceder Serra no governo do Estado. Nessa hipótese, também abandonaria a prefeitura antes do fim do mandato. Isso enquanto estiver nos planos do governador manter-se na briga pela sucessão de Lula – porque o temor da derrota já faz sua desistência ser cogitada. Na mesma toada, Serra abusa da verba publicitária para promover seu governo. Pois a opção, se desistir do Planalto, será tentar a reeleição. E, aí, interessa também a prefeitura sair bonita na foto, já que sua obra mais concreta foi ter deixado a cadeira para Kassab. Mesmo que o casamento não vá muito longe (o democrata já vê cara feia por parte de setores do PSDB), a lama da capital tende a espirrar na campanha tucana. Assim, a principal preocupação da dupla, que já conta com a omissão da mídia – pois não se vê notícia ruim sobre eles –, é a consJANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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trução da imagem. Só não se sabe até que ponto o marketing competente que criou o Kassabinho de brinquedo bastará para fazer frente à desconfiança crescente da população. Impostos mais altos, privatizações e corte nos gastos com saúde e nas vagas de escolas e creches, falta de investimento em transporte coletivo, trânsito caó­tico, déficit de moradias, ausência de participação popular, coleta de lixo deficiente, abandono da população de rua, desmantelamento da Guarda Civil Metropolitana são apenas alguns carimbos da gestão. A reportagem da Revista do Brasil fez um giro por todas as regiões de São Paulo, conversou com moradores, parlamentares e especialistas, e apurou que a cidade não carece somente de verbas, mas de rumo. A assessoria de imprensa da prefeitura não respondeu aos questionamentos sobre os problemas levantados. Os argumentos da administração foram extraídos do site da prefeitura e de depoimentos a outros veículos.

Prá inglês ver

Segundo o cientista político José Paulo Martins Jr., professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, as discrepâncias entre o proposto e o executado fazem do Orçamento municipal uma peça de ficção, e não há nenhum controle social sobre os gastos. “Os políticos fazem o que bem entendem, exercem o Orçamento de acordo com seus interesses”, aponta. Em 2009, por exemplo, foram previstos R$ 90 milhões para o início da construção de três hospitais: na Brasilândia, em Parelheiros e na Vila Matilde. Apenas R$ 43 mil foram gastos (na sondagem do terreno da Brasilândia). A saúde ainda é um dos setores mais carentes da cidade. A administração aposta no papel das Organizações Sociais (OSs) na gestão do setor, o que precariza o atendimento e reduz a pó os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), de universalidade, integralidade e equidade. Em hospitais entregues à administração de entidades religiosas existe até a denúncia de que são proibidos procedimentos de planejamento familiar, como laqueadura e vasectomia. Quanto à aposta da prefeitura nas Assistências Médicas Ambulatoriais (AMAs), especialistas e técnicos do setor afirmam que, por um lado, o novo equipamento pode trazer aspectos positivos, como a

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Atraso

50

milhões de reais, dos 218 milhões previstos, foi o que a prefeitura repassou para a expansão do metrô

Mais carros

4,4

bilhões de reais é o quanto Kassab anuncia investir em obras viárias nos próximos anos

Lentidão

17

km/h é a velocidade média atual do tráfego nas horas de pico na cidade. Em 1980 eram 27 km/h

Números de 2009

resolução imediata de alguns problemas, além de aperfeiçoar a triagem dos pacientes. Por outro, peca por apresentar integração frágil com as demais unidades de atendimento do SUS. Muitas vezes, o paciente tem de ir da AMA para o hospital, ou voltar para um posto de saúde (UBS). A falta de continuidade – que leva ao enfraquecimento de ações como o Programa Saúde da Família – é outro problema. No Conselho Municipal de Saúde, que define as políticas do setor, as disputas paralisaram por meses os trabalhos dos conselheiros. Reuniões são feitas sem a presença dos representantes da prefeitura, decisões foram desrespeitadas e conselheiros eleitos, não empossados. Os usuários, por exemplo, viram questionada a eleição de seus representantes pelo próprio secretário municipal de Saúde, que preside o conselho. Maria Cícera de Salles, represen-

tante dos usuários, avalia que a gestão atual da prefeitura “não quer o povo opinando, nem quer controle social”. Situação idêntica se dá no Conselho Estadual.

Desigualdade

Estima-se que existam 20 mil moradores de rua na capital. O número praticamente dobra em relação a 2003, quando o mesmo estudo constatou que essa população era formada por 10.400 pessoas. Os dados estão num censo dos moradores de rua feito pela Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe) da USP. Contribuíram para esse quadro a mudança na política de assistência social e o fechamento de albergues. Uma pesquisadora do censo, que não quis se identificar, afirmou que o cenário de abandono nos pontos centrais da cidade é chocante: “Ninguém conhece a realidade dessas pessoas, a mídia não mostra. Os moradores recla-


Centro vai criar investimentos, empregos, melhorias e moradias. Nesse sentido, a valorização da região do Mercado Municipal é estratégica, e os prédios populares na área devem dar lugar a estacionamentos. Selma Maria de Andrade morou 24 anos no Mercúrio. Ela conta que as famílias eram unidas e viviam perto de tudo. “Na primeira ordem de despejo, a polícia veio, minha perna bambeou, a vista escureceu, chorei, me senti humilhada”, lembra-se. “Teve gente que saiu apavorada, até saiu da cidade. Outros nem têm como alugar imóvel, porque a imobiliária acha que não vão pagar o aluguel.” Paulo Garcia, diretor da Associação dos Comerciantes do Bairro da Santa Ifigênia, integra um dos grupos que resistem às propostas do prefeito de realizar uma concessão urbanística de um bairro inteiro, na região da Luz. Para a prefeitura, o projeto geraria uma transformação importante para o Centro e para o restante da cidade. “Para aprovarem esse novo projeto, fizeram uma campanha contra a região, como se ali só tivesse drogado e contrabandista”, acusa Garcia. Segundo o diretor, o prefeito Kassab não fala com a associação: “Ele está blindado pela mídia e por grandes gastos publicitários”. Longe do Centro, a desatenção à questão da moradia não é diferente. A construção em sistema de mutirão, apontada por especialistas como uma das formas mais baratas e indicadas para enfrentar o déficit habitacional, apresentou queda de 75% entre 2004 (R$ 22,4 milhões) e o Orçamento de Kassab (R$ 5,8 milhões) para 2010.

TRANSBORDANDO Difícil escolha: metrô abarrotado ou ônibus lotado

Estelionato

FOTOS JAILTON GARCIA

mam do fechamento de albergues e dizem que são levados de um lado a outro pelas peruas do São Paulo Protege. Mas não há política de inclusão. Eles têm consciência disso, mas não têm como reagir”. A análise pode ser reforçada também pelo fechamento da Boraceia, estação coletora de lixo reciclável, reconhecida pela ação reintegradora da população de rua. Ali, os catadores tinham abrigo até para seus cachorros. O projeto e 15 outras estações coletoras foram encerrados. Faz parte da linha higienista imposta à região central. Assim como a evacuação dos prédios São Vito, Prestes Maia e Mercúrio, que simbolizavam a resistência e a chance de as classes mais pobres viverem no Centro – mediante um projeto de recuperação dos imóveis para posterior inclusão em política habitacional que já não existe. Hoje, na avaliação da prefeitura, o projeto de revitalização do

Em 2008, imagens de Kassab entregando a Serra cheques gigantes estamparam jornais e campanhas. Um de R$ 200 milhões em março e outro de R$ 198 milhões às vésperas da eleição municipal. Os cheques “simbolizavam” partes do R$ 1 bilhão que a prefeitura investiria na expansão do metrô naquele ano. Outro bilhão seria repassado até 2012. Mas a verba não chegou por inteiro nem há garantia de que chegará. Naquele ano, a verba transferida para a Linha 5 - Santo Amaro não alcançou a metade da prometida. E em 2009 a prefeitura previa destinar R$ 218 milhões para a expansão do metrô, mas só repassou R$ 50 milhões, e agora em dezembro. Para 2010 estão previstos somente R$ 5 milhões, outros R$ 720 JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Falta diálogo

De acordo com a Secretaria Municipal de Habitação, atualmente cerca de 1,3 milhão de pessoas vivem em mais de 1.600 favelas. Essa população tem crescido a taxas de quase 4% ao ano. A administração considera que os programas de urbanização de favelas e revitalização dos mananciais são essenciais, e os benefícios – ambientais, sociais, de saúde e até de turismo e lazer –, muitos maiores que os problemas. Maria

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Carência

1,3

milhão de pessoas vivem em 1.600 favelas na capital paulista

JAILTON GARCIA

milhões viriam do que espera arrecadar do Banco do Brasil com a migração dos salários do funcionalismo para lá. O teatro não para nos repasses parciais. A prefeitura ainda transferiu para o Metrô a continuidade do corredor Expresso Tiradentes, o trecho do velho fura-fila que irá da Vila Prudente a Cidade Tiradentes. O combate às desigualdades em São Paulo certamente tem nos investimentos em transporte coletivo um elemento central. Mas a prefeitura pretende investir cerca de R$ 4,4 bilhões em obras viárias nos próximos anos, priorizando a circulação de automóveis. O recurso daria para cerca de 20 quilômetros de metrô. Não é à toa que a velocidade média do tráfego nas horas de pico, que já foi de 27 km/h em 1980, hoje está em 17 km/h. Não se deu continuidade à expansão dos corredores de ônibus. A SPTrans, responsável pela gestão do transporte por ônibus, foi contemplada com R$ 1,35 bilhão no Orçamento aprovado para o ano passado. Na prática, o valor caiu R$ 110 milhões. E para 2010 a proposta enviada aos vereadores prevê R$ 1,07 bilhão. Uma queda de R$ 280 milhões em um ano. O descompasso é prejuízo certo para a cidade e põe em xeque metas fixadas para 2012, por uma lei de 2002. Para tentar não ficar muito longe do que estabelece o Plano Diretor Estratégico, Kassab encaminhou duas medidas à Câmara dos Vereadores. A primeira, uma proposta de reforma do Plano, que ainda nem sequer foi regulamentado. “Antes de fazer uma revisão, é preciso cumprir o que estava escrito”, afirma o empresário Oded Grajew, um dos coordenadores do movimento Nossa São Paulo. A segunda, o pedido de aumento no IPTU de boa parte dos imóveis da capital a partir de 2010, com o objetivo de faturar mais R$ 564 milhões com o imposto, o que lhe rendeu o apelido de “Taxab”.

DESPEJADA Selma viveu 24 anos no Edifício Mercúrio: moradores foram expulsos pela polícia

Gorete Barbosa, moradora do Parque Cocaia desde 1989, enfrentou em 2009 meses de grande preocupação, diante do projeto de revitalização da Billings, de Guarapiranga e outros mananciais. O projeto receberá aportes do município, estado e União que somam quase R$ 1 bilhão. E muitas famílias terão de deixar sua casa. Gorete conta que, quando iniciaram as atividades ligadas ao projeto em sua região, ninguém tinha claro quais casas teriam de ser demolidas. “As pessoas não sabiam se iam sair ou se seriam beneficiadas.” De acordo com moradora, a prefeitura foi convencendo os moradores a assinar os papéis e a pegar o cheque oferecido, de R$ 5.600. “Quando fizemos manifestação, fechamos a avenida, alguns conseguiram R$ 8 mil, outros, cadastro para a CDHU”, recordase. Para ela, a prefeitura deveria explicar o que pretende fazer e discutir com as pessoas suas necessidades para obter nova moradia. “O diálogo com as comunidades e o respeito às pessoas são tão fundamentais quanto o investimento em saneamento, parques e recuperação das margens e áreas verdes.”

O diálogo está ausente também em outros setores. Em Cidade Tiradentes, bairro tão grande e populoso que faz jus ao nome, há muita vegetação nativa, mas poucas praças e parques. Na avenida dos Metalúrgicos concentram-se equipamentos como Centro Educacional Unificado (CEU), hospital, pontos de cultura, clubes, até um pequeno mercado municipal. A perder no horizonte, conjuntos habitacionais e moradias populares. Tito, do Núcleo Cultural Força Ativa, atuante na região, afirma que hoje o CEU – pensado na gestão da prefeita Marta Suplicy para ser um centro de atividades esportivas e culturais à disposição da comunidade – está ao deus-dará. Apesar de a cidade ter dobrado o número de unidades desde o início de 2005, o público das atividades culturais despencou, por falta de diálogo e de política para elas. “A piscina está vazia, o sol a pino, a molecada em casa. Aí invade, dá confusão”, diz. “A grande preocupação do CEU kassabiano é a polícia, não os instrutores, a linha política, a visão de cultura. Em termos de educação e cultura, não há diferença entre escolas de lata e CEUs”, lamenta Tito.


Abandono

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PIERRE DUARTE/FOLHA IMAGEM

mil moravam nas ruas da cidade em 2009. Quase o dobro de 2003

GUARIDA Moradores de rua fazem de abrigo a marquise do posto abandonado da GCM na Sé. A política de Kassab é fechar albergues

Não bastasse a descaracterização dos CEUs, a situação não foi melhor em creches e Escolas Municipais de Ensino Infantil (Emeis). Em 2004 havia 44.796 crianças nas creches diretas (administradas pela prefeitura), 27.526 nas indiretas (apenas construídas pela prefeitura) e 40.344 nas particulares conveniadas. Em 2009, as diretas abrigavam 43.198 crianças e as indiretas e conveniadas, 114.829. No último ano de Celso Pitta, em 2000, as Emeis disponibilizavam 208 mil matrículas. Em 2004, final do governo Marta, 275.875. E, em 2009, 268.048. Estima-se que entre 35 mil e 45 mil crianças não estejam nas Emeis por falta de vagas.

JAILTON GARCIA

Trabalho esvaziado

“INICIATIVA” PRIVADA Paulo Garcia resiste ao projeto de concessão da região da Santa Ifigênia. Para ele, a mídia protege Kassab

O Orçamento da administração direta aprovado em 2004 ficou em R$ 14,3 bilhões de reais, dos quais foram empenhados R$ 13,2 bilhões. Em 2009, chegou a R$ 24,1 bilhões. Apesar do substancial aumento, um dos setores nevrálgicos da administração viu despencar seus valores na gestão Kassab: a Secretaria do Trabalho. Chamada

anteriormente de Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento e Solidariedade, a pasta então comandada pelo economista Marcio Pochmann, hoje presidente do Ipea, foi um dos destaques da gestão Marta. Em 2004, teve empenhados R$ 190 milhões. Para 2008, o Orçamento previa R$ 137 milhões para a secretaria, mas menos de R$ 40 milhões foram empenhados. Em 2009, destinava R$ 127 milhões, depois atualizados para R$ 130 milhões. Mas até 15 de dezembro apenas R$ 28 milhões haviam sido liquidados. E as políticas de geração de emprego e renda nas regiões mais vulneráveis à pobreza – responsáveis por sensíveis melhoras nos indicadores de violência em anos anteriores – parecem continuar fora dos planos da gestão Kassab. No Orçamento 2010, a previsão para a Secretaria do Trabalho é de somente R$ 103 milhões. A se repetir o “hábito” de usar menos de 25% do planejado, como nos dois últimos anos, a expectativa para os programas sociais é ainda mais desoladora do que o Orçamento permite prever. Colaborou Evelyn Pedrozo JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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INTERNET

Não é normal Sud Menucci (SP) é exemplo para as discussões do acesso à internet no país Por Thiago Domenici

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ão podemos dizer que não somos famosos, ou que esta cidade do interior paulista não faz a diferença, pois fomos a primeira a se tornar cidade digital (Wi-Fi) no Brasil, fato inédito. (...) cidade pequena, pacata, calma, mas grande em tecnologia.” O texto a estudante Juliana Buzetti fez quando estava na 4ª série da escola municipal Professor Victor Padilha, há três anos, e começou a ver a tecnologia como “chave para as portas do conhecimento, da sabedoria e do mundo”. Lá, até a seta que indica o último quilômetro a ser percorrido (de um total de 614 desde a capital) na estrada Feliciano Alves da Cunha (SP-310) para chegar a Sud Menucci lembra a do cursor do mouse. No desembarque, 6 da manhã na vizinha Pereira Barreto, o calor já castiga. A banca da rodoviária ergue as portas. As primeiras bicicletas circulam. Os 7.700 habitantes da cidade cercada por plantações de cana-de-açúcar e com pouco mais de 50 anos de história podem ver o rio Tietê passar limpinho antes de encontrar o rio Paraná. Na padaria, à espera do café, o secretário de Desenvolvimento Econômico e Social, Marcos Izumi Okajima, 41 anos, engenheiro agrônomo de formação, explica: “Todos os moradores podem ter, em casa ou em locais públicos, acesso grátis à internet”. O usuário precisa ter o computador. E pagar R$ 300 por uma antena receptora e um kit básico para se conectar, sem pagar provedor nem mensalidade.

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Todos se conhecem, e os curiosos reconhecem o “forasteiro” acompanhado do fotógrafo da região. “Você veio ver a internet também?”, indaga a dona do bar defronte à praça. Até 2002 não existia provedor comercial nem cobertura das teles. A única opção era o acesso à web via discagem interurbana, que, além de lenta, encarecia os trabalhos da prefeitura. O jeito foi reduzir despesas criando uma rede própria, voltada para a gestão municipal. As contas mostraram que a fibra óptica era inviável e vingou o Wi-Fi no município com pouco mais de R$ 20 milhões de orçamento anual. O investimento começou com R$ 18 mil em antenas, servidores e rádio, e chegou a R$ 100 mil ao final de 2008. A abertura do sinal para a comunidade em 2003 e a atenção da mídia deram visibilidade à cidade. “Até então não sabíamos quão importante é esse negócio de as pessoas poderem acessar a internet”, esclarece Okajima. Em Sud é normal para o cidadão ter internet de graça. “Só que para fora daqui não era”, pondera o secretário. A antena instalada ao lado da prefeitura envia o sinal para 1.510 pontos cadastrados, mais de 75% das residências. As secretarias municipais estão interligadas numa intranet com rádios de frequência 5,8 GHz e a comunidade na frequência 2,4 GHz. O sinal de rádio sai da torre principal e chega à antena receptora, o adereço mais visível nos telhados das casas. Até no distrito de Bandeirantes, a 22 quilômetros, a antena enfeita a residência de madeira à

Antenas de banda larga fazem parte dos telhados mais simples


margem da rodovia. A da igreja fica junto ao sino. O padre Sebastião Alástico usa o serviço diariamente. “Entro na página da CNBB e faço pesquisas para dar suporte às minhas pregações”, conta. “A ideia é louvável, mas anda sobrecarregada”, provoca. A prefeitura admite o problema na qualidade de distribuição de sinal. “Nos picos de acesso simultâneo o sinal fica ruim. A gente vai descentralizar e colocar outras antenas ao redor da cidade para descarregar a central, porque a banda de sinal é suficiente”, explica Rogério Nogueira Campos, responsável pela Infraestrutura. Com a melhora do sinal, os downloads e uploads a 64 kbps poderão chegar a 128 kbps, suficientes para baixar músicas, ver vídeos e usar o Skype.

Campo sem limites

OUTRO MUNDO Entre fazer sabão e cuidar das vaquinhas, Francisca conversa com o filho no Japão via net

FOTOS WILSON MARTINS FERREIRA

AJUDA DIVINA O padre Sebastião Alástico: pesquisa para os sermões

A estrada de terra a caminho da zona rural é margeada pela plantação de cana. Alguns quilômetros adiante, e o carro encosta no gramado. “Dona Francisca?”, chama o repórter. As dez vacas à direita da entrada do pequeno sítio olham curiosas. No telhado, a antena! “Aqui tem internet?”, surpreende-se o fotógrafo. Francisca Cardoso dos Reis, 70 anos, sorri. “Estava fazendo sabão”, diz. Os três cômodos da casinha são simples, divididos entre o marido, Constantino, 80 anos, e a filha, Sonia, 47, que tem deficiência mental. O outro filho, André Rodrigues dos Reis, 29 anos, está um pouco mais longe, no Japão. “O André é um presente mesmo. Menino esforçado e estudioso. Sempre quis voar!”, diz do filho que se formou em agronomia, aprendeu inglês e japonês, sempre com o apoio dessa cearense de Missão Velha. Desde 1974 no mesmo pedaço de chão, Francisca vive da sua aposentadoria e da do marido, mais o pouco que recebe com arrendamento de terras. “Quando vi que o André ia mesmo embora, decidi entrar na informática e aprendi a navegar.” Aprendeu mesmo. E ganhou o computador do filho, que em Tóquio faz seu Ph.D. em Engenharia Ambiental. “Não é tão difícil como se pensa”, brinca. O minuto de uma ligação telefônica para o Japão custa, em media, R$ 1,40, mas, com o sinal de internet gratuito via rádio que chega ao sítio, Francisca mata as saudades do filho no Oriente. “A gente fala no mesinger. Ainda hoje nós conversamos um bocado”, diz. E da primeira vez a gente não esquece. “O que a senhora achou, mãe?” “Eu acho que entrei num campo sem limites”, teclou de Sud ao Japão.

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FOTOS WILSON MARTINS FERREIRA

EDUCAÇÃO Sandra Valeria e Sandra Rodrigues: o mundo ficou menor

As discussões em voga sobre o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), com vistas à inclusão digital, podem mirar no exemplo de Sud. “Tudo que a gente fez foi no bom senso, sem muita estrutura, com orçamento próprio”, discursa o prefeito Celso Junqueira (PSDB), que vê com bons olhos o esforço do governo federal.

Impactos

A cidade prospera com a tecnologia. O comerciante pressionado pelo cliente que viu item mais barato na internet pressiona o fornecedor a fazer preço menor. Três empresas de informática dão manutenção aos computadores. Eletricistas autônomos instalam e concertam antenas. A manicure agenda horários por e-mail e os mensageiros instantâneos antecipam as fofocas. O site da prefeitura divulga a campanha contra a dengue e a população comenta. As três escolas públicas, duas municipais e uma estadual, são equipadas com 60 computadores, e 2 mil alunos podem navegar todos os dias. Nas horas vagas, principalmente à noite e nos fins de semana, o uso é extensivo a toda a população, com direito a monitores treinados para ajudar os usuá­rios. Além disso, na biblioteca municipal e no telecentro com dez computadores o acesso é livre. Com as pessoas frequentando a biblioteca, o empréstimo de livros cresceu 25%. A cidade gasta R$ 8 mil por mês com as operadoras que fornecem o sinal. A média, que era de R$ 28 mil com ligações, agora é compensada com transações do Departamento de Compras por meio eletrônico e

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NEGÓCIO Vainer cobra apenas o aluguel dos computadores

parte dos telefonemas feita com o progra- nicos de informática se formaram e 90% ma de ligações gratuitas por computador. A têm emprego garantido na região. A escola prefeitura tem perfil no Twitter e anunciou da menina Juliana está entre as mais bem na última postagem que vai ter oportunida- colocadas no Índice de Desenvolvimento de de emprego na cidade com o Censo 2010 da Educação Básica (Ideb). O curso Básico do IBGE. Duas lan houses surgiram. Em de Informática da comunidade já formou uma delas, o proprietário, Vainer Robson 240 cidadãos. Existem dois cursos privade Conte, utiliza o sinal gratuito da prefei- dos. Na Saúde, por conta da integração virtura e só cobra o uso do computador: “R$ tual entre as secretárias, toda a população está monitorada no Cadastro 2 por hora”. Com o “aluguel” Único do Cidadão. “A gente gerado pelos 200 visitantes A maior sente no depoimento da propor semana paga as presta- parte dos ções dos seis computadores. computadores fessora, na postura do aluno, no churrasco do fim de semaAs transações bancárias – na cidade é de na, as pessoas falam com ora cidade possui apenas duas mesa, mas a gulho da cidade”, diz Sandra agências – foram facilitadas e na unidade dos Correios população tem Rodrigues. Segundo Celso Junqueio carteiro já não dá conta de migrado para ra, a cultura local era muitanta encomenda que chega. os portáteis to apoiada no paternalismo. A funcionária diz que a agência teve de adquirir uma moto com baú para “O emprego na usina ou na prefeitura já agilizar o serviço e que é preciso mais fun- não são a única alternativa”, acredita o prefeito. O sonho, conta Rogério Campos, da cionários. A internet ajuda na educação. “O professor Infraestrutura, “é melhorar a tecnologia fala sobre um assunto hoje, amanhã os alu- cobrindo 100% com banda larga de alta nos trazem um mundo de coisas a respeito, velocidade”. Está chegando a hora de tomar a fresca e isso impulsiona a formação do professor”, avalia Sandra Valeria Muniz, secretária de no banco da praça. Mesmo com as limitaEducação. A coordenadora dos laboratórios, ções enfrentadas nestes seis anos, o muniSandra Rodrigues, relembra: “Uma professo- cípio lapidou sua “chave do conhecimenra veio me falar que estava orgulhosa dela. to”, como citou a menina Juliana em sua Há três anos, na primeira aula de informáti- redação. E são muitas as lições mostradas ca, quando eu disse ‘vamos ligar o computa- na prática, num único dia. João Fernando dor’, ela pensou: ‘Meu deus, onde que eu vou Nogueira, 21 anos, morador e técnico em apertar?’. E hoje ela já consegue fazer um site”. informática, empresta o laptop. O sinal não A maior parte dos computadores na cida- está dos melhores, mas permite dar uma de é de mesa, mas a população tem migra- espiada no e-mail antes de pegar a estrado para os portáteis. Duas turmas de téc- da de volta.


EmTranse

Por Thiago Domenici

O direito à banda larga Enquanto países têm aprovado leis que obrigam o Estado a proporcionar acesso à internet, o Brasil ainda convive com operadoras que nem universalizaram a telefonia fixa

ANDRES STAPFF/REUTERS

A

Finlândia tem 338 mil quilômetros quadrados de extensão, pouco menos que Goiás e com os mesmos 5 milhões de habitantes. As semelhanças param aí. No gelado país do norte da Europa, o acesso universal à internet de banda larga é questão de cidadania. A lei finlandesa determina que a partir de julho deste ano o Estado terá de assegurar a todos o direito de navegar na web a uma velocidade mínima de 1 megabyte por segundo, com previsão de chegar a 100 Mbps em 2015. A medida segue o preceito segundo o qual a informação é direito tão fundamental quanto saúde ou educação. Mas não falta muito. O governo finlandês estima que 83% da população entre 16 e 74 anos já utiliza a internet e, destes, 80% diariamente. Na Estônia, do tamanho do Espírito Santo e com 1 milhão de habitantes, uma lei de 2000 também tornou o acesso direito fundamental. Em 1991, após a independência da União Soviética, menos da metade dos estonianos nem sequer tinha uma linha telefônica, hoje todos têm internet. A Austrália investiu US$ 43 bilhões em seu Plano Nacional de Universalização, com conexão de fibra óptica de 100 Mbps para 90% das localidades até julho deste ano. Essa velocidade é 12 vezes mais rápida que a fornecida pelo pacote considerado mais veloz da Telefônica, com o Speedy de 8 Mbps. O modelo australiano em andamento é gerenciado por uma empresa estatal. Também a Itália, mesmo envolta em escândalos do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, esforça-se para incluir todos os seus cidadãos neste ano. São € 800 bilhões previstos para fornecer acesso a 2 Mbps, com recursos de fontes públicas e privadas, segundo Renato Brunetta, ministro da Administração Pública. O órgão regulador das telecomunicações do país sugeriu em julho passado a criação de uma parceria público-privada para a instalação da rede de alta velocidade.

CIDADANIA No Uruguai, aluno de escola pública acessa internet com seu laptop entregue pelo governo

Os Estados Unidos, precursores da internet e do acesso em alta velocidade, também discutem melhorias. Na campanha, Barack Obama prometeu que “todo norte-americano deverá ter a melhor forma de acesso a banda larga, não importa onde more ou quanto dinheiro tenha”. O Congresso pediu à FCC (órgão regulador que também formula políticas públicas no setor) que prepare o esboço de um plano mais amplo que o atual, que já disponibilizou US$ 7,2 bilhões para levar acesso às zonas rurais. No caso do Brasil, onde caberiam 25 territórios da Finlândia ou 40 vezes sua população, menos de um quarto dos cidadãos tem acesso à rede mundial de computadores e apenas 5% em “alta” velocidade, menos que os vizinhos Argentina (8,8%) e Uruguai (7,6%). Considerando-se que o estado de São Paulo sozinho concentra 40% das conexões em banda larga, conclui-se que a situação no restante do país é ainda mais delicada. Isso acontece porque os serviços das operadoras de telefonia não estão adequados às necessidades dos brasileiros, especialmente nas áreas mais afastadas dos centros, seja pelo alto custo de implementação, seja pela indisponibilidade do serviço.

Até quando?

Desde meados de setembro o governo brasileiro discute com mais afinco o cami-

nho da universalização da internet de alta velocidade no país, onde metade dos municípios está fora da rede. Existem três propostas na mesa do presidente Lula – originadas nos Ministérios do Planejamento e das Comunicações e na Casa Civil – para dar início ao Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). O Ministério do Planejamento propõe uma gerência estatal. A ideia é reativar a Telebrás e utilizar as redes de fibra óptica ociosas da Petrobras e Eletrobrás, incluindo Furnas, que somam 31.448 mil quilômetros de extensão e alcançam 75% dos municípios. Também aventa a possibilidade de usar a rede da Eletronet, empresa falida que possui 16 mil quilômetros de fibras. Com a proposta, o Estado poderá concorrer com os serviços privados já existentes e oferecer o serviço ao cidadão onde houver mais carências, se assim desejar. O ministro Hélio Costa, das Comunicações, entregou em dezembro documento de 197 páginas em que propõe gerência privada do PNBL. O governo entraria com investimentos públicos e incentivos fiscais e forneceria as redes de fibra óptica das estatais para as empresas privadas fomentarem a universalização do acesso. O plano pede R$ 75 bilhões de investimentos públicos e privados nas redes nos próximos quatro anos, para que 50% dos domicílios tenham acesso de até 1 Mbps. A Casa Civil defende um modelo misto. A Telebrás atuaria como gerente da nova rede, a serviço de centenas de pequenos provedores incumbidos de levar a conexão ao usuário final. As discussões têm suscitado uma celeuma especulativa tanto nos noticiários quanto nos debates – técnicos e políticos – sobre qual deve ser o projeto mestre da universalização digital. Ao presidente da República cabe a decisão final. Leia na página seguinte entrevista em que o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Marcos Dantas, professor de Sistemas de Comunicação e Novas Tecnologias, analisa essas propostas. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ESPECIAL

Acesso de alta velocidade tem de ser socializado

Marcos Dantas, especialista em telecomunicações e professor da UFRJ, defende o emprego de recursos de regiões onde as teles têm lucro naquelas onde operadoras não querem investir em banda larga Por Thiago Domenici

P

ara analisar as possibilidades do Brasil de proporcionar acesso mais rápido à internet para mais gente, como forma de assegurar seus direitos de cidadão num mundo em que a informação é valiosa, a reportagem conversou com Marcos Dantas, professor de Sistemas de Comunicação e Novas Tecnologias na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dantas é mestre em Ciência da Informação pela ECO-UFRJ. Foi secretário de Educação a Distância do MEC (20042005) e secretário de Planejamento e Orçamento do Ministério das Comunicações (2003). Atualmente é integrante da União Latino-Americana de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura e da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação. Também trabalha como consultor e na produção de artigos científicos em sua área.

O único serviço de comunicação realmente universalizado no Brasil é a televisão aberta, que compreende 90% dos lares do país. A televisão aberta é um meio unidirecional de comunicação. Você só vê e escuta. Você não fala. Não devolve. Com a evolução que vem ocorrendo por conta da internet, a comunicação precisa ser interativa – e só a banda larga pode confluir para essa evolução. Se não tivermos um programa público de universalização da banda larga, vamos ter parte da sociedade brasileira usufruindo todos esses benefícios e outra parte excluída, apenas assistindo passivamente à TV. A televisão levou mais de 40 anos para se universalizar. Vamos aguardar 40 anos ou mais até para universalizar a banda larga? Ou vamos ter uma política pública agressiva que permita num prazo razoável, de 10 a 15 anos, ter banda larga em todos os lares?

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Marcos Dantas

RODRIGO QUEIROZ

Qual a importância de ter internet de alta velocidade, fomentada pelo governo, em todos os municípios brasileiros?


O senhor tem acompanhado as discussões em torno dos projetos para o Plano Nacional de Banda Larga. Dois deles falam em criar uma estatal, reativar a Telebrás, para gerenciar o plano, semelhante ao que ocorre na Austrália. Qual a sua avaliação?

A Telebrás exerceu um papel importantíssimo no passado e, ao contrário do que dizem, foi completamente exitosa. A empresa fez a única revolução que já foi feita nas telecomunicações deste país. Até os anos 1970, em termos de telecomunicações, estávamos perto do zero – e a Telebrás nos tirou do zero. O que se fez depois foi em cima de uma infraestrutura que ela proporcionou. Portanto, o Estado brasileiro executou muito bem essa tarefa, e nada impede que venha a executar novamente. Por outro lado, esses tipos de proposta podem acabar sendo favoráveis às empresas privadas. Por quê? Ora, elas são concessionárias exatamente porque têm obrigações de serviço público, têm de obedecer por contrato a um conjunto de exigências do Estado e da sociedade – incluindo universalizar as telecomunicações com qualidade. Se você cria uma estatal, você diz “a partir de agora você não precisa mais cumprir essa obrigação de concessionária”. Defendo que as empresas concessionárias devam ser cobradas e obrigadas pela sociedade a cumprir suas obrigações. Hoje, elas nem sequer universalizaram a telefonia fixa.

Mesmo com a privatização, os serviços de banda larga continuam longe do ideal, e ainda falta concorrência. De um lado, o serviço não melhora, de outro, a Anatel não soluciona os gargalos.

Não podemos esquecer que todos os diretores da Anatel foram indicados pelo atual governo. Então, o governo tem alta responsabilidade na incompetência da Anatel. O que me assegura que uma estatal também indicada pelo governo que não conseguiu indicar dirigentes competentes para a Anatel possa ser melhor? Não creio que um governo que tenha o ministro das Comunicações que tem possa ter uma estatal melhor. O problema da Anatel hoje, depois de oito anos de administração Lula, pode ser completamente debitado ao governo, que teve oportunidade de mudar e não mudou.

Nas três propostas aventadas para o plano há possibilidade de utilização das linhas estatais de fibras ópticas ociosas. É uma solução interessante?

O problema fundamental da universalização não é o tronco, é a chamada última milha (usuário final). Essa fibra óptica das estatais não tem a última milha, forma apenas um tronco. Você teria de construir uma imensa infraestrutura para chegar à casa das pessoas. As operadoras concessionárias já têm a base da infraestrutura. Então, como o problema é a disseminação, a capilarização da rede, essa infraestrutura estatal não resolve. Você vai precisar ou fazer o acordo com as concessionárias e com pequenos provedores, ou fazer um investimento brutal para capilarizar sozinho a rede.

Qual das três propostas (Ministério das Comunicações, do Planejamento ou Casa Civil, veja texto à página 19) o senhor vê como o caminho possível?

A proposta da Casa Civil parece ser a mais razoável, embora eu não veja por que usar essa infraestrutura estatal se as concessionárias já têm seus troncos instalados. Essa infraestrutura estatal deveria ser usada exclusivamente para a rede fechada do serviço público, até por razões de segurança nacional. Hoje, quando você manda um e-mail da Presidência da República para um ministro, esse e-mail passa por dentro da rede das concessionárias ou de outras empresas, fisicamente falando, e está sujeito a todo tipo de invasão, vírus, hacker, mesmo com essa criptografia toda que existe. Então, apenas para os órgãos públicos o investimento se justifica. Eu ainda penso que a melhor solução para universalizar a banda larga, já que o modelo hoje é esse – a não ser que a gente esteja falando de uma completa revisão do nosso modelo, reestatizar tudo, e não parece essa a discussão –, é recuperar, fortalecer o princípio de serviço público, que pode ser prestado por empresas privadas. O ônibus, o transporte coletivo urbano é um serviço público prestado por empresa privada. Recuperar, insistir nele vai implicar por um lado, claro, criar a lei que permita isso. O Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust, composto de 1% das receitas das concessionárias) pode ser usado para subsidiar a conta da banda larga. E, claro, a Anatel precisa começar a funcionar.

As operadoras não levam internet de alta velocidade para os municípios que hoje estão longe de se conectar devido a altos custos de infraestrutura que não seriam revertidos em lucro. Qual a saída?

Essa questão do lucro, veja bem, isso sempre foi sabido. Por isso é que foi criado o Fust, não é nenhuma novidade. A própria Telebrás só operava com lucro na Embratel (estatal então responsável pelas ligações interurbanas) e em algumas regiões do Brasil, o resto dava prejuízo. O que se fazia? Ela pegava parte do lucro nas regiões lucrativas, sobretudo da Embratel, e transferia para onde dava prejuízo. Isso aí não tem novidade. Porque não tem novidade foi criado o Fust, que deveria cumprir esse déficit. Só que nunca foi posto em prática. Agora, seu argumento é correto.

Alguns países transformaram o acesso à informação, inclusive pela internet, em direito tanto quanto saúde e educação. Aqui seria só mais uma lei não cumprida se existisse algo semelhante?

Acho que todo mundo tem de ter direito a internet, sim. O problema é custo. Ao garantir que todo cidadão tenha direito a saúde, por exemplo, o país criou um sistema chamado SUS, que funciona com as suas qualidades e os seus defeitos. Alguém tem de pagar a conta do SUS, certo? Isso vale para a internet também, levando-se em conta o tamanho do país e sua população.

Não acredito que um governo que tenha o ministro das Comunicações que tem possa esperar por uma estatal (de serviço de banda larga) melhor

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MÍDIA

Próximo passo, a prática Em meio a diferenças entre empresários, movimentos e governo, Conferência de Comunicação consegue ao menos pôr as partes para dialogar e aponta avanços na democratização da área. Mas será preciso pressão da sociedade para que diretrizes ali sugeridas saiam do papel Por Anselmo Massad

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ma panela de pressão, embate de classes, vermelhos contra azuis. A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) foi peculiar. Apesar de não ter caráter deliberativo, o evento representou um primeiro momento em que movimentos sociais, empresários e governo discutiram temas intocáveis no Congresso Nacional e no próprio Ministério das Comunicações, responsável pela convocação. Depois de 11 meses de organização, Brasília recebeu 1.684 delegados de todo o país para quatro dias de debates. O desafio era analisar e buscar consensos a respeito de 1.400 propostas sistematizadas a partir de outras 6 mil, apresentadas durante conferências estaduais. O espaço para embates foi amplo. Além de haver delegados por setores da sociedade e do poder público, dentro de cada segmento havia suas divisões. Empresários das telecomunicações (telefonia) e de radiodifusão comercial (emissoras de rádio e TV) têm pontos em comum e temas em

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que não se bicam. Ainda dentro desse segmento estava uma minoria de “empresários progressistas”, advinda de projetos alternativos como Caros Amigos, Carta Maior, Revista Fórum e Revista do Brasil. No governo, são pelo menos três frações. Os Ministérios das Comunicações e da Cultura e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República têm visões distintas do cenário em termos de necessidade de democratização do setor e de tratar o tema como direito humano, por exemplo. No movimento social, há ainda mais diversidade. Entre todos os segmentos com que a reportagem conversou, a maior conquista apontada é mesmo a própria realização da conferência. Para o presidente da Comissão Organizadora, Marcelo Bechara, o debate se colocou em outro paradigma. “Independentemente de propostas e polêmicas, a conferência reúne pessoas que não estavam habituadas a dialogar entre si”, comemorou. Apesar disso, Bechara, consultor jurídico do Ministério das Comunicações, reconhece que o clima era de


FABRÍCIO FERNANDES/ASCOM/MC

panela de pressão, especialmente no início do processo. Juarez Quadros, conselheiro da Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil) e ex-ministro das Comunicações, celebra o aprendizado do setor empresarial e de seus representantes – a maior parte funcionários em cargos de gerência e direção. “O setor não tinha essa vivência que os segmentos sociais têm, porque participam de atividades em diversos campos, como conferências de saúde, ambiente... E esta é a primeira de comunicação, uma experiência nova e boa de saber negociar com a sociedade também”, contemporizou. “Inauguramos um novo momento em que a comunicação deixa de ser uma caixa-preta sem debate nem avaliação da sociedade”, sustentou Celso Schroder, coor­ denador-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). “A presença do setor empresarial, ou de parte dele, é muito importante, e demarca esse novo momento.” Única parlamentar participante, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), delegada pelo Congresso Nacional, acredita que manter os empresários exigiu tolerância e maturidade dos movimentos sociais para lidar com as “distensões e chantagens feitas”. E que o saldo de organização e politização é irreversível. “Está se entendendo esta como uma conferência preparatória, a primeira, que enfrentou muitas resistências. Isso dá à mobilização uma condição plena de sair daqui com (a certeza de) uma segunda”, analisou. O governo não se arrisca a apresentar uma data para a próxima Confecom, mas uma diretriz aprovada estabelece um processo bienal. Após um processo que levou três anos de mobilização e pressão dos movimentos sociais para ser conquistado, é difícil garantir que essa periodicidade será mantida.

ABRANGÊNCIA Brasília recebeu 1.684 delegados de todo o país nos quatro dias de debate. Foram apresentadas 1.400 propostas

FOTOS FABRÍCIO FERNANDES/ASCOM/MC

Embates e conquistas

Houve avanços, do ponto de vista dos movimentos, em questões como equilíbrio de concessões de canais digitais entre a iniciativa privada e a pública, limites à propriedade cruzada de emissoras e promoção de controle social. Outra resolução sugere garantias à viabilidade comercial de veículos alternativos, assim como o direito de antena a movimentos e organizações sociais. Entre as conquistas, está o Conselho Nacional de Comunicação, provavelmente JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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NORMATIZAÇÃO A promoção de controle social foi um dos principais objetivos do evento

FOTOS ALESSANDRO DANTAS/PHOTOCÂMERA/DIVULAGAÇÃO

uma autarquia análoga à que foi apresentada em 2004 pelo Executivo para ser votada no Congresso. Na ocasião, foi barrada pela reação das grandes empresas de comunicação. “É uma das reivindicações históricas nossas, é um dos grandes avanços da conferência”, considera Rosane Bertotti, secretária nacional de Comunicação da CUT. Schroder explica que o conselho, com autonomia em relação ao poder público, é um passo importante para garantir o controle social, que nada tem a ver com censura. “Das 6 mil propostas (apresentadas), nenhuma apontou para qualquer tipo de censura”, avalia. “A liberdade de expressão prevista na Constituição é a do cidadão, garantida por muita concorrência, muita diversidade, trazendo o contraponto – o que não está acontecendo”, diz. Fazer com que a proposta de criação do Conselho seja posta em prática são outros quinhentos e envolverá batalhas no Congresso Nacional. “Com certeza um tema como esse não passará por decreto”, sentencia o jornalista João Brant, do Coletivo Intervozes. “Precisa de uma proposta legislativa, que vai começar a ser pensada, envolvendo formas de composição, mecanismos etc.” Embora não seja o tema preferido dos empresários, a proposta foi aprovada por unanimidade em um dos grupos de trabalho. O setor – sem a participação das associações que representam a Globo e os jornais mais tradicionais do país – conseguiu garantir parte de sua agenda, mas esbarrou em um dos pontos mais almejados, a redução da carga tributária. Três fundos (Fust, Finttel e Fistel) são cobrados em contas de telefonia e não são aplicados, segundo os empresários. Há ainda a queixa de bitributação em telefonemas interurbanos e de exageros que levam a R$ 40 bilhões os impostos arrecadados das teles. “A gente defende que, em vez de usados apenas para financiar a dívida pública, sejam usados para financiar a criatividade do brasileiro”, explica Walter Vieira Ceneviva, vice-presidente executivo do Grupo Bandeirantes e um dos cabeças do processo pela Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), em entrevista ao Jornal Brasil Atual. “Infelizmente a sociedade civil entende que (as telecomunicações) têm de pagar mais imposto”, lamenta Quadros, da Telebrasil. Sindicatos e outros ativistas defendem a redução na margem de lucro das compa-


TERRENO DESCONHECIDO Pela primeira vez movimentos sociais, empresários e governo discutiram temas até então intocáveis

nhias antes da redução tributária. Querem ainda recursos arrecadados entre as empresas para promover aumento do acesso à banda larga, entre outras demandas. Além disso, manifestaram descrença em relação às intenções empresariais de baratear custos de acesso à telefonia e à banda larga. Para delegados do setor empresarial, essa divisão se manteve expressa na postura de “vermelhos contra azuis”, uma referência à cor dos crachás dos representantes da sociedade civil e das corporações, respectivamente. Isso mostra que, apesar da celebrada quebra da desconfiança, ainda são interesses e visões antagônicos. “Obviamente tem tensões, porque havia uma demanda reprimida de muitos anos e uma não apropriação dos temas por todos os lados”, pondera Schroder. O que ele sugere é que muitas questões foram barradas por dificuldade de entendimento entre as partes. Rosane Bertotti, da CUT, vai além. “Somos uma sociedade de classes, aqui temos governo, empresário e trabalhador, e nem sempre empresários e trabalhadores estão do mesmo lado”, resume.

Próximos passos

Foram encaminhadas ao relatório final mais de 650 propostas. Da criação de um conselho nacional de comunicação a garantias de conteúdo não discriminató-

rio a mulheres, negros e homossexuais, há resoluções apontando em direções variadas. Parte delas depende de passar pelo Congresso Nacional para virar lei. Apenas Erundina compareceu, entre os oito delegados apontados pelo Legislativo federal, o que indica dificuldade de consolidar a condução das pautas. Outras questões envolvem ministérios e governos estaduais ou municipais. “Agora, vem a articulação, que é pressão e negociação, para serem efetivadas ou por ações de governo ou de novas leis”, prevê José Luiz do Nascimento Soter, da Associação Brasileira de Radiodifusores Comunitários (Abraço). Soter lembra que a conferência não terminou, apenas cumpriu uma etapa de elencar gargalos que impedem a democratização da comunicação. “Criamos canais de negociação entre os segmentos e, com a quebra da desconfiança, podemos sentar com o setor empresarial para discutir com uma nova mentalidade”, explica. A Abraço, aliás, tem motivos para comemorar. Todas as propostas trazidas pela rede foram aprovadas, incluindo direito a antena e o fim da criminalização do movimento. A avaliação é de que sinalizações políticas podem desbloquear o cenário, ou eliminar a inércia que impedia mudanças no setor. Mas com muita negociação pela frente.

Poucas horas antes da conferência, a Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra) – que representa as redes TV! e Bandeirantes – entrou com um recurso ante a comissão organizadora exigindo uma espécie de direito de veto, por meio de um recurso chamado “questão sensível”, nos grupos de trabalho. Caso um setor recorresse a isso, seriam necessários 60% dos votos, dos quais pelo menos um de cada segmento – e não mais maioria simples. O mecanismo já existia na própria comissão desde maio, assim como era previsto para a plenária final, que definiria as propostas. A exigência era preventiva contra possíveis decisões desagradáveis ao setor empresarial. A Abra ameaçou se retirar da Confecom. A

O presidente conseguiu conter empresários manobra coroava um histórico de ações dos empresários para minar a conferência – como a exigência de contar com uma representação de 40% dos delegados. Mesmo essa atitude favorável não impediu a saída de entidades do setor, como a Associação Brasileira de Rádio e TV (Abert) e a Associação Nacional de Jornais e Revistas (ANJ), da comissão organizadora,

RICARDO STUCKERT/PR

Por pouco, um último golpe com o objetivo de pôr a legitimidade da Confecom em xeque. Na comissão organizadora, inicialmente, os movimentos sociais foram contrários à medida, temendo um embarreiramento da discussão e uma conferência sem avanços. O governo se dividia. Meia hora antes do início do evento, o recurso foi aprovado. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, confirmado para a abertura, ao ser informado da ameaça de abandono do barco em cima da hora, condicionou a própria participação à presença da Bandeirantes no processo. Parte dos movimentos sociais considerava que a manobra era um blefe, mas outros, incluindo a CUT, o Vermelho, ligado ao PCdoB, e a Rede Abraço, temiam

comprometer a conferência conquistada a muito custo. A pressão do Planalto gerou uma celeuma dentro das entidades da sociedade civil não empresarial. A situação foi contornada apenas na plenária de abertura, quando um novo acordo eliminou o veto dentro dos 15 grupos. Um número fixo de propostas, proporcional ao tamanho de cada setor, poderia ser levado à plenária final mesmo que tivesse sido rejeitado no GT. A “questão sensível” foi mantida na plenária. Sendo um blefe ou excesso de concessão por parte do governo, o fato é que os empresários ficaram. Ganharam elogio rasgado de Lula durante o discurso de abertura e a permanência foi celebrada por diversos setores.

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AMBIENTE

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e o clima fosse um banco privado, esse assunto já estaria resolvido há muito tempo.” A sarcástica afirmação, feita pelo presidente venezuelano Hugo Chávez durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 15), encerrada em dezembro em Copenhague (Dinamarca), foi reveladora da pouca vontade política demonstrada pela maioria dos líderes mundiais na tentativa de se chegar a um acordo com força de lei para combater o aquecimento global. A tímida proposta dos Estados Unidos fez com que outros países ricos se movessem pouco. União Europeia e Japão, por exemplo, não cumpriram o prometido, que era avançar nas propostas iniciais de redução de emissões de gases de efeito estufa (20% e 25%, respectivamente) que levaram à Copenhague. Do outro lado, os países em desenvolvimento, como China e Índia, também fincaram pé em não aceitar metas obrigatórias de redução de emissões nem a criação de mecanismos externos de verificação das metas voluntárias assumidas. A posição do governo dos Estados Unidos não foi além do prometido corte de 17% de suas emissões de gases de efeito estufa até 2020, tendo como base o ano de 2005. Se levado em conta o ano-base estabelecido no Protocolo de Kyoto, que é 1990, a redução proposta por Barack Obama é de apenas 4%. O impasse já era claro na primeira semana. Os rumores entre os diplomatas nos corredores da conferência davam conta de que dois documentos seriam alinhavados. O primeiro seria o rascunho da segunda fase do Protocolo de Kyoto, com metas mais ambiciosas de redução de emissões para os países ricos e a não obrigatoriedade dos paí­ ses em desenvolvimento em assumir metas, respeitando o princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”. O segundo almejava trazer os EUA para dentro de um acordo e, ao mesmo tempo, contemplar a exigência dos países ricos de que aqueles em desenvolvimento também assumissem metas. Chamado de Compromisso de Longo Prazo, esse documento não teria força de lei e faria menção a todas as metas assumidas em cada país. Outros objetivos, como a manutenção do aumento médio da temperatura da Terra em no máximo 2 graus Celsius nas próximas décadas, também eram mencionados, assim como a promessa de redução global das emissões em 80% até 2050. 24

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FICA PARA A PRÓXIMA Apesar dos alertas dos efeitos das mudanças climáticas em diversos pontos do planeta, a COP 15 deixou escapar uma oportunidade histórica de acordo internacional para conter o aquecimento global Por Maurício Thuswohl

Apesar de as discussões para o “pós-Kyoto” terem sido iniciadas há dois anos, diplomatas e negociadores chegaram ao último dia do encontro sem desatar os principais nós da discussão ambiental. A tarefa ficou para os chefes de Estado. Os mais impor-

tantes líderes estavam lá: Wen Jiabao (China), Angela Merkel (Alemanha), Nicolas Sarkozy (França), Gordon Brown (Reino Unido), Manmohang Singh (Índia), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) e Barack Obama (EUA). Alguns deles vararam a madrugada em uma reunião convocada por Sar­ kozy e Lula. Mas a queda de braço com os EUA não foi solucionada. A COP 15 nem sequer conseguiu cumprir o objetivo de apresentar os dois documentos. Sobre a prorrogação de Kyoto, nada foi decidido. As discussões foram empurradas para “ao longo de 2010” e nova tentativa de decisão na COP 16, em novembro, no México.


Muita barganha No documento final da COP 15, reduzido a uma carta de boas intenções políticas, nem sequer a meta de diminuir 80% das emissões globais até 2050 foi incluída, aumentando o sabor de fracasso do encontro de Copenhague.

Em discurso, Lula afirmou estar “um pouco frustrado” com os resultados e fez duras críticas aos países ricos: “Os cientistas estão dizendo que o aquecimento global é irreversível. Portanto, quem tem mais recursos e mais possibilidades precisa garantir a contribuição para proteger os mais necessitados. Todo mundo diz estar consciente de que só é possível concluirmos esse acordo se os países assumirem com muita responsabilidade as suas metas. E, mesmo as metas, que deveriam ser uma coisa mais simples, tem muita gente querendo barganhar”, criticou.

Lula reafirmou o compromisso do Brasil com o Protocolo de Kyoto: “Todos nós poderíamos oferecer um pouco mais se tivéssemos assumido boa vontade nos últimos meses. Todos nós sabemos que, para manter os compromissos das metas e do financiamento, a gente tem que, em qualquer acordo feito aqui, manter os princípios adotados no Protocolo de Kyoto”. E também criticou os que defenderam um documento que contenha somente intenções políticas: “Eu não sei se algum anjo ou algum sábio descerá neste plenário e irá colocar na nossa cabeça a inteligência que nos faltou até agora”. Chefe da delegação brasileira, a ministrachefe da Casa Civil, Dilma Rousseff­, apresentou na COP 15 as propostas do país: metas voluntárias de redução de 80% do desmatamento da Amazônia e de redução de suas emissões entre 36,1% e 38,9% até

BOB STRONG/REUTERS

“PAÍSES RICOS, ACERTEM SUAS CONTAS COM O CLIMA” Manifestantes cobram a responsabilidade do Primeiro Mundo

2020, com ações nos setores de energia, agricultura e siderurgia, entre outros. Segundo Dilma, nessas ações de combate e adaptação ao aquecimento global, o país investirá US$ 166 bilhões de dólares nos próximos dez anos. Apesar do mau resultado da COP 15, o Brasil saiu fortalecido. A decisão de apresentar propostas voluntárias de redução das emissões e a postura dos negociadores brasileiros foram muito elogiadas nos bastidores. E a intervenção de Lula no plenário foi o discurso de chefe de Estado mais aplaudido da conferência. Lula anunciou ainda a intenção do Brasil de colaborar com o fundo global: “Se for necessário fazer um sacrifício a mais, o Brasil está disposto a colocar dinheiro para ajudar os outros países. Não é uma tarefa fácil, mas foi necessário tomar essa medida para mostrar ao mundo que com meias palavras e com barganhas a gente não encontraria uma solução nessa conferência de Copenhague”. Mas a questão do financiamento e da transferência de tecnologia para os países mais pobres também não ficou completamente resolvida. Os EUA defenderam a destinação de US$ 100 bilhões para o combate ao aquecimento global nos próximos anos, mas faltou combinar de onde virá o dinheiro e qual seria a participação americana no bolo. A tolerância para elevação da temperatura da Terra em até 2 graus Celsius nos próximos anos também desagradou, pois diversos cientistas afirmavam que um aumento acima de 1,5 grau bastaria para fazer desaparecer do mapa países insulares e provocar grandes enchentes em regiões sensíveis. Chefe da delegação de Tuvalu, um dos países “condenados”, Ian Fry, manifestou todo o seu desapontamento: “Se for mantido o patamar de 2 graus, a população de todo o país terá de ser evacuada. Tuvalu terá uma data para acabar”. Coordenador do Vitae Civilis, organização brasileira que integra a Climate Action Network, Rubens Born lamentou a postura de alguns países: “Permaneceu a postura tradicional de defesa de interesses nacionais e setoriais, sem visão global da questão. O impasse, a tentativa do primeiro-ministro da Dinamarca de rascunhar dois novos textos de decisões que não levam em conta o que foi negociado pelos delegados, a busca de empurrar para outros as razões das dificuldades, tudo isso mostrou que nem a ciência nem a ética e justiça com os mais vulneráveis têm servido de base para acordos em mudança de clima”. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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MEMÓRIA

A revisão da anistia Usada como argumento para não punição dos que praticaram e disseminaram a tortura e a barbárie, a Lei de Anistia, de 1979, é vista como afronta à Constituição, segundo a qual crimes contra a humanidade não prescrevem Por Eloísa Aragão Maués

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ão Paulo, alameda Casa Branca, número 806, 4 de novembro de 1969. O assassinato de uma figura que atravessou o século 20 em luta de resistência, Carlos Marighella, prenuncia a agonia da luta armada contra a ditadura. Ter sido deputado constituinte em 1946 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e depois romper, em 1967, com a perspectiva pacífica de atuação

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proposta pelo partido diante da repressão militar para criar, ao lado de dissidentes, a Ação Libertadora Nacional (ALN) são fatores centrais de sua trajetória. O militante ganhou título de Cidadão Paulistano in memoriam no dia em que sua morte completou 40 anos, iniciativa do vereador Ítalo Cardoso. Na manhã do mesmo 4 de novembro, no endereço da emboscada armada pelo delegado Sérgio Paranhos

Fleury, foram colocadas flores em sua homenagem, em um ato que reuniu cerca de 300 pessoas. Flores que remetem à sensibilidade vista em outro traço do homenageado. As agruras da vida clandestina, a perseguição e as sevícias não tiraram de Marighella a ternura, expressa em poemas. “Eu canto o amor por exaltar a vida/ a liberdade, a humanidade e o belo/ Mas que o amor seja como a natureza/ simples, real e


tortura é crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível. Atualmente, há vários debates em torno do tema, em que se destacam a ação de familiares, a produção de seminários, audiências públicas e até uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, encaminhada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Supremo Tribunal Federal. Desse modo, vai saindo de cena a ideia de que a anistia significa esquecimento para, lentamente, dar lugar à reivindicação de justiça, tal como aconteceu em países como Argentina e Chile, em que os torturadores tiveram de comparecer aos tribunais – e muitos foram condenados e presos. Há o caso recente da ação movida em São Paulo pela família Teles para que a Justiça declare Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) paulista e hoje coronel reformado do Exército, como responsável por torturas sofridas por seis pessoas da família. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu, em 9 de outubro de 2008, que o militar cometeu crime de tortura, um grande avanço, porém limitado em seu desdobramento. Eugênia Fávero e Marlon Weichert, procuradores da República, também

EMOÇÃO Fon, na cela que ocupou no antigo Dops, hoje Memorial da Resistência

nunca fantasia”, diz em sua Balada do Amor. De um lado, a evocação de fatos do passado que aos poucos vão saindo das sombras da história oficial. De outro, pessoas que prestigiaram a ocasião por conhecer a fundo o significado daquela luta. E mantêm candentes a causa da reinterpretação da Lei de Anistia. No Brasil, a lei foi aprovada ainda no regime de exceção, sob o comando dos militares. Embora o texto legal não afirme que

O jornalista Antonio Carlos Fon trabalhava no Jornal da Tarde, em São Paulo, em 1969, quando seu apartamento foi invadido pela polícia. Buscavam seu irmão, Aton Fon Filho. Antonio Carlos foi encarcerado, sofreu torturas na Operação Bandeirantes e depois no Dops, de onde foi levado para o Presídio Tiradentes. Em 1978, fez uma investigação de cerca de cinco meses, para uma revista semanal, que resultou em duas reportagens publicadas em fevereiro de 1979. No mesmo ano, publicou o livro Tortura: a História da Repressão Política no Brasil, pela Editora Global. “Não é bom para a sociedade brasileira, para as Forças Armadas, para suas vítimas e até para os torturadores o silêncio covarde”, afirma. Fon emocionou-se muito durante o evento em homenagem a Marighella. No dia seguinte foi acompanhado pela reportagem em visita ao Memorial da Resistência, no antigo prédio do Dops de São Paulo. “Em 4 de novembro de 1969 eu seria morto aqui na porta desse prédio. Eu estava com as pernas paralisadas em função da tortura e o Takao Amano tinha sido baleado na perna. Na noite anterior soubemos que o Fleury nos metralharia, alegando que tentávamos fugir. O delegado Rui Franceschi (já falecido), que estava detido por ter se envolvido em um acidente durante uma festa, naquele dia me carregou no colo para não me matarem – e certamente o Paranhos Fleury não poderia atingi-lo. Eu e o Takao tivemos a vida salva. Estar aqui, e entrar pela porta da frente, onde eu teria sido morto, é muito forte” (suspira). “Agora, fiquei contente de ouvir uma professora, durante a visita de um grupo de estudantes aqui no Memorial. Ela não falou somente do passado. Falar sobre os horrores que envolvem a história desse prédio é importante, para que não se esqueça, mas tão importante quanto é o futuro. E essa educadora estava falando para a meninada: ‘Olha, quanto maior a desigualdade social, maior é a criminalidade, a violência’. Isso me encheu de esperança na garotada.”

os torturadores teriam seus crimes anistiados, a ambiguidade da redação possibilitou a interpretação da existência de reciprocidade entre crimes de tortura e execuções contra opositores e crimes políticos cometidos pelos que combatiam a ditadura. No entanto, cabe ao Estado zelar pela integridade física das pessoas mantidas sob sua guarda, independentemente do delito que tenham cometido. A Constituição vigente estabelece que a

FOTOS GERARDO LAZZARI

Fé na garotada

INTERPRETAÇÃO Criméia nunca entendeu a lei como de anistia a torturadores JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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FOTOS GERARDO LAZZARI

HOMENAGEM Marighella virou Cidadão Paulistano em novembro. Na solenidade, seu filho Carlos, Clara Charf, Hélio Bicudo e Ítalo Cardoso

encaminharam ação à Justiça contra Ustra e o tenente coronel Audir Maciel (também ex-chefe do DOI-Codi, já falecido, mas com base na lei é possível transferir a responsabilização a descendentes) para que devolvam aos cofres públicos o dinheiro pago pela União como indenização aos familiares de presos políticos mortos no órgão repressivo durante os anos em que ambos o comandaram. A Advocacia-Geral da União (AGU) decidiu que assumirá a defesa de Ustra e Maciel. No caso do processo também movido contra Brilhante Ustra em decorrência da tortura e morte de Luiz Eduardo Merlino, em 1971, a família pretende recorrer ao STF, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo, em 23 de setembro de 2008, suspendeu o processo, aceitando recurso dos advogados de defesa.

Escombros

A reportagem foi ouvir de alguns personagens que sofreram os horrores dos porões da ditadura o que pensam da reinterpretação – ou a interpretação correta – da Lei de Anistia. Uma delas é Rose Nogueira. Nascida em Jacareí (SP) em 1946, militava na Ação Libertadora Nacional (ALN) quando foi presa aos 23 anos e ainda amamentava seu bebê de 2 meses. “O significado daquela experiência é que é preciso aprender com a vida todo dia”, diz Rose. “A vida passou a ter um significado muito grande para mim. Porque a cadeia ensina

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isso, eu já estive naquela situação de extremo sofrimento.” Ela é membro do Grupo Tortura Nunca Mais e foi presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). Rose faz referência ao caso da tortura acontecida na Penitenciária São Pedro de Alcântara, em Santa Catarina, em novembro deste ano, para explicar: “Se os torturadores no passado tivessem sido punidos, um fato como esse não teria ocorrido hoje. A muitos setores da polícia a democracia não chegou, então se dá o mesmo treinamento da época da ditadura, de que o outro é sempre inimigo e que se vive em guerra. No passado, eles torturaram, sequestraram, assassinaram. E continuaram na ativa, em muitos casos dentro da polícia, e o ensinamento que eles passaram foi esse. Um jeito de parar com isso é responsabilizar os torturadores”, comenta. Criméia Alice Schmidt de Almeida (irmã de Maria Amélia, da família Teles), 61 anos, foi do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e sobreviveu à guerrilha do Araguaia. Hoje enfermeira aposentada, tem efetiva participação no movimento feminista e na busca do esclarecimento dos crimes cometidos pela ditadura e das circunstâncias em que se deram as mortes e desaparecimentos dos opositores políticos. “Nunca fiz uma leitura da lei como de anistia a torturadores. Essa é uma questão política de interpretação que visa manter a impunidade, com um discurso de que o Exér-

CLAREZA Espinosa: “A ditadura só vai acabar no Brasil no momento que os torturadores forem responsabilizados por seus crimes”


cito de hoje não é mais o mesmo. Discurso que o próprio Exército nega em suas ordens do dia, dizendo-se o mesmo desde Caxias. Só existe uma forma de acabar com a impunidade: punir os responsáveis. Isso não foi feito com relação aos militares que usurparam o poder em 1964 nem tem sido feito com os policiais que torturam e matam ainda hoje nas delegacias”, enfatiza Criméia. Antonio Roberto Espinosa, 63 anos, é professor de Relações Internacionais na Escola Superior Diplomática e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Também jornalista, manteve por 16 anos o jornal Primeira Hora, em Osasco, e é autor de Abraços Que Sufocam (Viramundo, 2000). Foi dirigente da Vanguarda

Popular Revolucionária (VPR) e da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares). Ficou preso por quatro anos. “A interpretação de que a anistia foi recíproca é falsa. A ditadura só vai acabar no Brasil no momento que os torturadores forem responsabilizados por seus crimes, no momento em que houver clareza. Anistia não quer dizer esquecimento. A memória desse período tem de ser recuperada. Se não for possível, por questões de correlação de forças, punir os torturadores, que pelo menos a tortura fique registrada com toda a clareza e que exista a responsabilização.” Para Espinosa, os militantes da luta armada não foram vitoriosos militar e politicamente, mas moralmente. “A ditadu-

ra perdeu todos os limites, porque apelou para a tortura. E a nossa vitória moral foi o precedente político para que a ditadura chegasse ao fim.” Para ele, enquanto as responsabilidades não ficarem claras, a luta não terminou. “Porque a tarefa de reconstrução democrática não está pronta. Não sei se ela ficará pronta um dia, mas nosso papel é ter clareza sobre aquele momento da nossa vida, naquele momento histórico. E os panos que encobriam aquele momento não foram todos retirados.” Esse passado sobre o qual se forjou um forte silêncio insiste cada vez mais em vir à tona e exigir esclarecimento, em respeito aos direitos humanos, à democracia, à justiça e à memória.

Operário da resistência Faz 40 anos que morreu sob tortura nas dependências do DOICodi, em São Paulo, Virgílio Gomes da Silva, o militante da ALN que comandou a ação do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Nascido em Santa Cruz (RN), ele veio jovem para a capital paulista em busca de uma vida melhor. Acabou se tornando militante do Sindicato dos Químicos de São Paulo e, mais tarde, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), até a dissidência liderada por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, que resultou na formação da ALN. Virgílio foi operário da Nitro Química, em São Miguel Paulista, na zona leste. Em outubro de 1957, os operários da fábrica iniciaram greve por reajuste salarial e melhores condições de trabalho. Na liderança de uma dessas mobilizações, Virgílio conheceu Ilda Martins, com quem se casou em 1960. Com ela teve quatro filhos: Vlademir, Virgílio, Gregório e Isabel. Moravam em Ribeirão Preto (SP) no momento da queda de Virgílio Gomes, codinome Jonas, em 1969. Quando a polícia invadiu o local, começou o pesadelo: Gregório tinha ficado sob os cuidados de uma tia, mas Ilda e as crianças foram sequestradas. Ela ficou presa nove meses e passou pelos horrores da tortura. Logo no início a separaram dos filhos, conduzidos para o Juizado de Menores. Vlademir tinha 8 anos, Virgílio, 7, e Isabel, 4 meses. Todos têm o sobrenome do pai: Gomes da Silva. O livro Virgílio Gomes da Silva: de Retirante

Virgílio a Guerrilheiro, de Edileuza Pimenta e Edson Teixeira, lançado no ano passado pela Plena Editorial, e a revista Virgílio Gomes da Silva: Direito à Memória e à Verdade, publicada pelo Sindicato dos Químicos de São Paulo, são boas oportunidades para quem tem interesse em se aprofundar nos episódios marcantes relacionados ao tema. Um deles está ligado a um aspecto feliz dessa trajetória turbulenta: Ilda e seus filhos conseguiram exílio em Cuba, onde viveram por 18 anos. Lá receberam todo tipo de ajuda. Há um brilho nos olhos muito azuis de dona Ilda, hoje com 78 anos, quando comenta: “Meus quatro filhos saíram da ilha com diploma universitário”. Vlademir (48 anos) é geólogo, Virgílio Filho (47) é engenheiro mecânico e industrial, Gregório (42), engenheiro civil e Isabel (40 anos), geóloga e dona de uma escola de idiomas. Hoje a família ainda luta pela recuperação da memória de Virgílio

Gomes, o que inclui um processo contra o filme O Que É Isso, Companheiro? (de Bruno Barreto, 1997), baseado no livro de Fernando Gabeira; e a descoberta, em 2004, de um laudo que comprova ter o Estado sido o responsável pelo seu assassinato. Luta também para que sejam reconhecidas as barbáries contra ele cometidas, que resultaram em sua morte, mais uma questão inserida na rediscussão da Lei de Anistia. Com o apoio do Grupo Tortura Nunca Mais, do Sindicato dos Químicos de São Paulo e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ilda Martins e seus filhos protocolaram, em setembro de 2009, duas representações no Ministério Público Federal. Exigem que o Estado encontre os restos mortais de Virgílio Gomes (sabe-se que estão em algum canto no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo), e também que torturadores que ainda hoje ocupam cargos públicos sejam imediatamente afastados. De acordo com Virgílio Filho, o objetivo é desmascarar os agentes que promoveram a tortura ou faziam sua ocultação, como Paulo Maluf e Romeu Tuma. “A esperança de que sejam punidos me motiva. Sem revanchismo. O que está em evidência é o fator moral, de deixar uma lição para as novas gerações.” Para Ilda Martins, é preciso que os culpados sejam reconhecidos. “Eles devem ser afastados da vida política. Isso não quer dizer que sejam apenas o Maluf e o Tuma, mas todos os que estiveram envol-

vidos. Por tudo o que fizeram, não merecem estar em funções públicas.” Para ela, caso não seja possível encontrar os restos mortais do marido, com pelo menos um “restinho da ossada fariam o sepultamento”. “Se ainda isso não for possível, queremos que seja erguido um memorial, no cemitério da Vila Formosa, em homenagem a todos os que foram torturados e mortos nessa condição. É o mínimo que poderia ser feito”, defende Ilda. Isabel, a filha caçula, observa o percurso político do pai como um desempenho heróico. “Assim como minha mãe também é para mim uma heroína, pois sempre penso no significado imenso da luta que ela travou para nos criar.”

Efeito bumerangue A procuradora da República Eugênia Fávero falou para o Jornal Brasil Atual sobre a ação civil pública proposta pela Procuradoria da República contra o senador Romeu Tuma (PTBSP) e o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), para que sejam declarados responsáveis pela ocultação de corpos de presos políticos mortos durante o regime militar. O Jornal Brasil Atual vai ao ar de segunda a sexta, das 7h às 8h, nos 98,1 FM para a Grande São Paulo. A entrevista com a procuradora foi ao ar no dia 8/12 e pode ser ouvida na internet por este link: http:// migre.me/euQ2

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ENTREVISTA

Mezzo cineasta, mezzo político

EDUARDO SEIDEL

Pino Solanas e sua batalha cultural para democratizar a democracia Por Clarissa Pont

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ernando “Pino” Solanas hoje é deputado nacional pela cidade de Buenos Aires e encabeça o Proyecto Sur, movimento político que reú­ne o Partido Socialista Autêntico, a ala social da Central de los Trabajadores Argentinos (CTA), além de outras frentes importantes da esquerda argentina. Diretor e roteirista de um dos mais importantes filmes latino-americanos da década de 1980, Solanas se dedica a registrar a Argentina pós-crise em documentários. Enquanto Sur, de 1988, melhor direção em Cannes e Prêmio do Júri do Festival de Havana, despeja na tela uma história de amor ao país em ficção, Memória do Saqueio, A Dignidade dos Ninguéns, Argentina Latente e A Próxima Estação montam hoje o mosaico cinematográfico da Argentina contemporânea. Não apenas em filmes Solanas denunciou o saqueio promovido pelos delírios neoliberais de Carlos Menem. Depois de uma série de entrevistas nas quais abria fogo contra o então presidente argentino, levou seis tiros nas pernas em 1991, episódio que ficou claro como um atentado. O novo alvo de Solanas é o casal Kirchner. Tanto que, pela frente de esquerda Proyecto Sur, pretende concorrer às próximas eleições presidenciais na Argentina, em 2011. A candidatura se baseia em um plano de governo em que as principais linhas estão na nacionalização da mineração e da exploração do petróleo argentino. Em setembro, Solanas lançou o primeiro de uma nova série de filmes que expõe a contaminação e a destruição do meio ambiente na zona de cordilheira que o Chile e a Argentina compartilham. “A água é mais importante que o ouro”, afirmou o cineasta durante a apresentação de Tierra Sublevada – Oro Impuro, no cinema Gaumont, em frente à Praça do Congresso, em Buenos Aires. A película é uma viagem pela depredação e saqueio dos recursos minerais e pelas lutas comunitárias contra a crescente contaminação das terras. Oro Impuro teve estreia movimentada e quase não pôde ser exibido em Buenos Aires. Na primeira noite, ônibus de sindicatos patronais das mineradoras recrutaram trabalhadores sob a alegação de que o filme seria responsável caso os empregos na região sumissem. A briga polarizou trabalhadores e moradores das comunidades atingidas pela mineração e atrasou a projeção em algumas horas. As explorações ao ar livre com cianureto que as corporações instalaram no noroeste argentino – San Juan, La Rioja, Catamarca, Tucumán e Salta – provocaram verdadeiros levantes contra a contaminação do solo e da água. Nas jazidas, colinas voam com explosivos e se utilizam diariamente de 80 milhões a 100 milhões de litros de água potável, que são misturados com 10 toneladas de cianureto. Depois da estreia do filme, Solanas recebeu a reportagem da Revista do Brasil em casa, num sábado frio e seco em Olivos, na Grande Buenos Aires. Nesta conversa, regada a chá verde, ele revisa a história política argentina, fala de cinema e cultura, não poupa críticas ao casal Kirchner e apresenta o Proyecto Sur.

Sur não é seu primeiro filme, mas ficou conhecido pelas premiações. O que mudou desde Sur até hoje?

A crise social dos fins de 2001, com a queda do governo de (Fernando) De la Rúa, marcou um antes e depois na Argentina. Eu voltei a filmar pelas ruas e foi nascendo a ideia de fazer um filme sobre a crise mirando, sobretudo, uma geração jovem que não entendia direito o que estávamos passando. Era um momento no qual o país contava milhares de desnutridos, uma alta porcentagem de mortalidade infantil e de indigentes que não tinham atenção médica. Os dados oficiais somaram mais de 35 mil mortos em 2001. Tudo aquilo me levou a pensar em um filme retomando o que eu havia começado há quase 40 anos, que era o filme La Hora de los Hornos. Retomei um pouco esse caminho inicial de películas de investigação, de correr o país, viajar, olhar as pessoas. No final, tudo era tão grande que eu me dei conta de que teria de fazer vários capítulos de uma obra. Memória do Saqueio é tentar explicar os anos 90, o neoliberalismo do governo de (Carlos) Menem. A Dignidade dos Ninguéns é a resposta dos populares às políticas neoliberais, como se defendeu a gente frente à falta de trabalho, de comida, de segurança social. São dez histórias reais contadas por seus protagonistas, que vêm de distintos setores sociais unidos pela cooperação e pela solidariedade. Professores, um assistente social de um grande hospital, indigentes de um bairro que se organizaram para dar o que comer às crianças, fábricas recuperadas, tomadas e recolocadas em funcionamento. Argentina Latente, por sua vez, fala sobre as potencialidades técnicas, industriais e científicas do país. Finalmente, a quarta película foi sobre a destruição do sistema ferroviário, A Próxima Estação.

Esses filmes formam um importante mosaico da história recente na Argentina. O cinema pode funcionar como terapia coletiva de um país e ajudar uma nação a entender o que se passou?

Isso é muito importante. Um filme ou um livro não mudam a realidade de um país, mas ajudam muito. Passei os últimos dez anos falando sobre o saqueio da mineração no país e sobre a contaminação. Os que estão ao meu redor já escutaram mil vezes meus argumentos e podem repeti-los letra por letra. Mas eles não tinham as imagens. Quando saímos do cinema depois da exibição de Oro Impuro, as pessoas me diziam “que coisa extraordinária!” E eu respondia: “Pô, vocês já me escutaram falar sobre isso mil vezes”. E eles disseram que não imaginavam que era assim. Entende? Esse é o valor do cinema, e isso não se apaga. O valor do cinema de testemunho é levar o espectador até regiões que ele não conhece e dificilmente conheceria. Descobrir um país e explicá-lo é importante. Não é um simples filme de denúncia, ele se explica. É cinema de ensaio, de investigação. Qualquer uma dessas películas não se faz em menos de um ano e meio...

A crise social dos fins de 2001, com a queda do governo De la Rúa, marcou a Argentina. E foi nascendo a ideia de fazer um filme sobre a crise mirando uma geração jovem que não entendia o que estávamos passando

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Os filmes sobre a mineração levaram dois anos apenas em filmagens...

EDUARDO SEIDEL

Sim, pelo menos. E ainda existe toda a parte de montagem. Nos documentários, é na montagem que se compõem de verdade o roteiro e o filme. Quando você sai a buscar, filmar, investigar, não sabe o que vai encontrar e tudo isso modifica suas ideias iniciais. Em março ou abril do ano que vem, estreia a segunda parte de Tierra Sublevada, que é Oro Negro, sobre o petróleo.

Um filme ou um livro não mudam a realidade de um país, mas ajudam muito. O valor do cinema de testemunho é levar o espectador até regiões que ele não conhece e dificilmente conheceria

Entender o peronismo e as últimas correlações de forças no país nos parece bastante difícil...

Bueno, o peronismo nasce em 1945 frente a uma Argentina oligárquica, aristocratizante, uma semicolônia inglesa. E houve um movimento impulsionado pelo nacionalismo popular frente à crise e ao esvaziamento da política. Ali se juntaram várias causas. O peronismo se junta com uma migração do velho Partido Radical, mas também de todos os setores dos distintos pontos da esquerda. Foi como o nascimento de uma causa patriótica protagonizada pelos trabalhadores, foi nossa pequena revolução social. Claro que todo o sistema midiático, oligárquico e os partidos conservadores e tradicionais o acusaram de fascista, outros de bolchevique e até comunista. E era um movimento nacional popular que havia tomado alguns setores das Forças Armadas, seguindo noções de um nacionalismo popular da independência, não do nacionalismo da burguesia norte-americana, por exemplo, que é um nacionalismo imperialista. Pense que o primeiro bloqueio norte-americano na América Latina no pós-Segunda Guerra é aqui na Argentina. Pela primeira vez, a greve não era delito, se construíram mais escolas que em toda a história da Argentina, as oito horas de trabalho se estabeleceram, assim como o sábado de folga. Para a burguesia foi terrível. O processo de desenvolvimento industrial também foi marcado pelo peronismo.

E o que Juan Domingo Perón diria sobre o casal Kirchner hoje?

Que não são peronistas. As duas grandes causas democráticas e progressistas de massa que aconteceram na Argentina foram esvaziadas de conteúdo. Aos fins do século 19, a Revolução do Parque é encabeçada por uma figura ética extraordinária, o fundador do Partido Radical, Leandro Alem. O movimento vai crescendo e, em 1912, pela primeira vez há o voto obrigatório e secreto e triunfa o governo radical de (Bernardo de) Irigoyen, cuja base de sustentação era formada por grandes setores médios e trabalhadores. O radicalismo foi um momento democrático muito importante. Em 1930, o primeiro golpe oligárquico militar da Argentina do século 20 acontece. Cai o governo de Irigoyen e, nos 15 anos seguintes, temos ditaduras e governos pseudodemocráticos. Até Perón, em 1945, que ganha uma eleição por enorme maioria. Bueno, radicalismo e peronismo possuem conteúdos democráticos e trans-

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formadores muito parecidos, mas aquelas causas desapareceram, fica a pele, ficaram as estruturas partidárias, que é outra coisa. Ficaram os partidos, os instrumentos, a burocracia partidária, negociadora, traidora e corrupta. Tu vais dizer: “Ah, não digas assim”, mas é a história da Argentina. E o kirchnerismo descende disso. Difícil ganhar deles em picardia. Los Kirchner? No les dé la espalda, ni te agaches, que te hacen cuatro hijos. E a atuação da Argentina na Unasul, como o senhor avalia?

O projeto da Unasul é fundamental para a América Latina, sem ele não há destino para nenhum de nós. Dependeremos da sabedoria dos nossos dirigentes, e não falo apenas dos políticos, mas dos dirigentes econômicos e industriais, que saibam interpretar bem as coisas. E que cedam, cada um, para conquistar algo. Ninguém vai conquistar tudo. A sabedoria está em nos aproximarmos e enxergarmos a longo prazo. Nossa tragédia é que são tantos os problemas do dia a dia que só vemos fogo aqui, fogo ali, e não vemos o incêndio completo, ou não vemos que no final está o sol, está amanhecendo logo adiante.

E os planos do Proyecto Sur convergem de que forma nesse cenário?

Nas próximas eleições, o Proyecto Sur ganhará a cidade de Buenos Aires. Porque os distintos partidos de centro-esquerda e esquerda que concorrem sozinhos, em uma eleição polarizada, votam conosco. Somos companheiros de toda a vida, mas vamos em listas separadas porque todos querem eleger deputados. Nós nascemos em 2002, como um núcleo que estudava uma proposta para a Argentina. E, em 2007, quando Kirchner autorizou a prorrogação das concessões das petroleiras por 30 anos mais sem debater o tema, nos demos conta de que havia um enorme vazio no país e era necessário nos transformarmos em força política. Em 45 dias de campanha em nossa primeira eleição, saímos em quinto lugar, na frente de alguns partidos tradicionais, e conseguimos eleger um deputado na capital. Nosso projeto incluiu nacionalizar o petróleo e o gás e revisar todas as concessões. Temos um terço da população na pobreza, e com a renda anual gerada pelas nacionalizações poderíamos acabar com os indigentes no país. O outro ponto que nos é caro é relançar uma verdadeira revolução no ensino, na ciência, na tecnologia e na saúde. Democratização da democracia. Não se pode fazer tudo isso sem um aprofundamento da democratização das instituições da República. Precisamos democratizar os partidos políticos, o futebol, os sindicatos. A maior parte das indústrias terceiriza as funções, 55% dos trabalhadores argentinos trabalham sem seguridade social. Essa é uma batalha cultural de democratizar a sociedade para caminhar rumo a uma democracia participativa e social de verdade. E, em 2011, nos apresentaremos. É prematuro dizer se ganharemos, mas já fui candidato à Presidência e, em Buenos Aires, estamos no topo das pesquisas.


HISTÓRIA

Victor Jara, 36 anos depois Cantor e dramaturgo, assassinado em 1973 pela ditadura chilena no estádio que hoje leva seu nome, teve enfim seu funeral. Agora sem medo, e com povo Por Vitor Bari Neto RUIZ CABALLERO/REUTERS

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m 18 de setembro de 1973, dias depois do sangrento golpe que derrubou o presidente do Chile, Salvador Allende, uma cerimônia praticamente clandestina ocorria em Santiago. O cantor Victor Jara – preso logo após o golpe – era enterrado às escondidas, acompanhado apenas pela companheira, a bailarina inglesa Joan Turner, e mais duas pessoas. Passados 36 anos, a história ganhou novo capítulo, e as canções de Jara voltaram às ruas. Em 4 de junho de 2009, os restos mortais foram exumados, diante de Joan e de suas filhas Amanda e Manuela (esta com o coreógrafo Patricio Bunster), e levados ao Serviço Médico Legal do Chile, para perícia. Constatou-se o que todos sabiam: que o cantor passara por torturas antes de ser definitivamente silenciado. Jara sofreu um “choque hemorrágico agudo, produzido por múltiplos impactos de projéteis no crânio, tórax, abdome, pernas e braços”, informou o SML, já no final de novembro. Assim, a morte aconteceu em consequência direta “das feridas por armas de fogo distribuídas em todo o corpo”. Mais de 30 ferimentos causados por balas. Os peritos encontraram diversas lesões provocadas por “objetos contundentes”. Um assassinato bárbaro, sem responsáveis até hoje. Assim morreu Jara, pouco antes de completar 41 anos: espancado e fuzilado. “O assassinato de Victor Jara continua impune. Nossa exigência de verdade e justiça se reafirma com a dor que significou

TARDIO A presidente Michelle Bachelet no funeral de Jara, 36 anos depois de sua morte

remover sua tumba”, protesta a fundação que leva seu nome. Militante comunista, o compositor, cantor e diretor teatral apoiava o governo Allen­de, eleito em 1970 – pelo qual fora nomeado embaixador cultural. Como muitos, estava na Universidade Técnica do Estado, hoje Universidade de Santiago, tentando resistir ao golpe, quando foi preso e levado ao Estádio Chile, hoje rebatizado Estádio Victor Jara. O local onde tantas vezes se apresentara, em 1969 ganhara o primeiro festival da chamada Nova Canção Chilena, foi o cenário de sua morte. Em junho, na véspera da exumação, Joan recebeu o título de cidadã chilena. “Nosso interesse nessa causa, como em todas as causas de direitos humanos, é que se investigue até as últimas consequências, até o último detalhe, e que os culpados – especialmente os que deram as ordens – enfrentem a Justiça e sejam castigados”, disse na ocasião o ministro da Justiça, Carlos Maldonado. Não se sabe se tal castigo virá, mas Amanda já via algum alento nas homenagens. “Nosso pai recebeu a melhor justiça, a justiça do povo”, disse.

Os pais de Victor chamavam-se Manuel e Amanda, personagens de uma de suas mais conhecidas canções (Te Recuerdo, Amanda), assim definida pelo cantor: “Uma canção que fala de amor e de operários, desses que vemos pelas ruas e às vezes não nos damos conta do que existe dentro da alma, desses operários de qualquer fábrica, de qualquer cidade, de qualquer lugar de nosso continente”. Em entrevista ao jornal argentino Clarín, em 2005, o cantor Victor Heredia disse acreditar que muitos artistas conhecidos se salvaram com o assassinato de Victor Jara, “devido ao repúdio mundial a esse crime da ditadura de Pinochet”. No último dia 5 de dezembro, após dois dias de funerais, os restos de Victor Jara foram novamente enterrados no Cemitério Geral de Santiago. No mesmo lugar do primeiro enterro. Mas sem medo, e com uma multidão cantando. “Hoje, seu corpo destroçado pela tortura e pelo metal voltará à terra, envolto pelo amor de suas filhas e sua mulher, e pelo enorme amor de seu povo”, disse Joan, na última despedida. JANEIRO 2010

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Depois de Raposa

Problemas que os índios enfrentam para garantir seus direitos ainda são muitos. E os riscos de conflitos também Por Spensy Pimentel e Christiane Melo

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Monte Roraima, limite setentrional do Brasil, é a morada final do herói Makunaima. Coletados por viajantes do início do século 20 entre os Taurepang, um dos cinco povos que hoje habitam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), os mitos da região inspiraram Mário de Andrade a criar o personagem que se tornou símbolo da própria brasilidade. Mesmo sendo “coautores da ideologia nacional”, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os 20 mil índios da Raposa tiveram trabalho para ter suas terras reconhecidas. Antes, durante décadas de conflitos, foram tachados de ameaça ao ambiente, ao desenvolvimento e à própria nação brasileira.

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Apesar do prazo de cinco anos que a Carta Magna determinou para o processo de demarcação de suas terras, até hoje ele não está completamente finalizado – falta demarcar áreas especialmente no Centro-Sul e no Nordeste. Estão na Amazônia 99% dos mais de 110 milhões de hectares de terras indígenas (quase 13% do território nacional). Porém, algumas das maiores populações indígenas, entre as mais de 220 etnias que somam quase 1 milhão de pessoas, estão fora da Amazônia. O caso mais complicado são os Guarani-Kaiowa, de Mato Grosso do Sul. São mais de 40 mil pessoas vivendo em 40 mil hectares – compare-se com o 1,7 milhão de hectares de Raposa, para uma população que é a metade dessa.

O resultado não podia ser outro: os índices sociais, que já não são bons para os índios, entre os Kaiowa são os piores. Levantamentos feitos pelo Conselho Indigenista Missionário indicam que ocorrem ali 70% dos assassinatos registrados entre indígenas em todo o país – 42, de um total de 60, em 2008. Também há alto índice de suicídios (34) e problemas como alta taxa de mortalidade infantil, desnutrição e alcoolismo, além do encarceramento, com, literalmente, centenas de índios presos. “Nós alertávamos que a situação já era a pior do país dez anos atrás, quando fui presidente da Funai”, lembra o jurista Carlos Frederico Marés de Souza Filho, que deixou o cargo depois da repressão à mani-


nidades guarani-kaiowa. As lideranças estiveram reunidas em outubro na Aty Guasu (Grande Encontro, em guarani), quando deram ultimato à Funai: ou os grupos de identificação reiniciam logo seu trabalho, ou as comunidades que aguardam as demarcações vão ocupar as fazendas. “Por uma causa justa a gente morre”, declararam os caciques, citando o líder guarani Marçal de Souza, morto em 1983. No fim de outubro, os professores guarani Genivaldo Vera e Rolindo Vera desapareceram após confronto na fazenda Triunfo, que integra a área indígena reivindicada como Y’poi, ou Po’i Kue, em Paranhos. As mortes ainda não foram esclarecidas.

DO LADO DA JUSTIÇA Em Brasília, índios pedem a demarcação de suas terras

festação indígena que lembrou os 500 anos da chegada dos portugueses. “O problema é que se fez em Mato Grosso do Sul exatamente o que se queria fazer em Roraima, a demarcação em ilhas”, diz, para explicar o processo de colonização do estado, promovido principalmente durante o governo Vargas, entre as décadas de 40 e 50 do século passado. Pouco a pouco, os índios foram empurrados para pequenas reservas, enquanto o entorno foi todo desmatado e ocupado por gado, soja e agora cana. Atualmente, a Funai trava uma cruzada contra a resistência de fazendeiros e políticos para viabilizar a ida a campo de seis grupos de trabalho que farão a identificação de mais de 30 áreas reivindicadas por comu-

JOSÉ CRUZ/ABR

Ameaça

Se ainda há pendências fundiárias a enfrentar, cresce também a preocupação com o futuro das terras já demarcadas. Na própria Raposa as comunidades já estão em intensa discussão. “Nosso objetivo é evitar que ainda passemos necessidade, por exemplo, na questão alimentar”, explica o macuxi Jonas Marcolino. Outrora opositor da demarcação, hoje ele, que é secretário do Índio do estado de Roraima, preocupa-se com as multinacionais: “O fato de a legislação prever que o ‘interesse nacional’ pode permitir a ocupação de nossas terras deixa uma brecha para que, no futuro, seja autorizada a exploração das terras, à revelia dos interesses das comunidades”. Para o antropólogo Ricardo Verdum, da ONG Instituto de Estudos Socioeconômicos, o temor procede. Ele questiona a forma como é tratada a regulamentação da mineração em terras indígenas. “Falam sobre que tipo de compensação os índios querem em troca dos projetos, em vez de enfatizar a necessidade de consulta livre, prévia e informada às comunidades”, diz Verdum. Tem se acirrado a contradição entre esse direito à consulta, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, já ratificada pelo Congresso em 2002, e a realidade atual de retomada do desenvolvimentismo. No mesmo documento em que confirmou a demarcação da Raposa, o STF também impôs, entre “19 condições” para as políticas aplicadas nas terras indígenas, que “a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai”.

O atual foco de conflito, com possibilidade de enfrentamentos nos próximos anos, se dá em torno do projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), área onde se encontram 19 terras indígenas e dez unidades de conservação contíguas, num total de quase 28 milhões de hectares. A situação está no seguinte pé: o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, acusa “forças demoníacas” de tentar prejudicar o projeto, que prevê a geração de 11 mil megawatts (Itaipu gera 14 mil MW). A sociedade civil da região se mobiliza, expressamente contrária à usina. Outro campo para embates são as políticas públicas. Está parado há quase um ano no Congresso um projeto de lei com medidas que buscam melhorar a atuação da Fundação Nacional de Saúde, responsável pelo atendimento da população indígena. Loteado politicamente pelo PMDB, uma vez que agrega responsabilidades como saneamento em pequenos municípios, o órgão sofre repetidas acusações de corrupção e incompetência. As condições de saúde dos povos indígenas até melhoraram – a mortalidade infantil caiu, de 75 por mil nascidos vivos em 2000 para 46 em 2007 –, mas é também verdade que persistem a desigualdade em relação ao restante da população (a média brasileira é próxima de 20 por mil) e os problemas localizados. No Vale do Javari, por exemplo, fronteira com o Peru, a comunidade é amea­ çada há anos por uma epidemia de hepatite. Na educação, a vinculação das escolas indígenas aos municípios também era outro fator de graves dores de cabeça, em muitos lugares, e por isso um decreto presidencial de maio de 2009 criou os chamados territórios etnoeducacionais. Assim, as políticas de educação poderão ser definidas de acordo com as comunidades, culturas e línguas indígenas – ainda existem 180 delas no país, e as escolas estão longe de se adaptar para aproveitar melhor esse imenso patrimônio cultural. “A questão da sustentabilidade das terras indígenas é a preocupação do movimento hoje. Nosso desafio é manter a diversidade cultural dos nossos povos, mesmo com obras do PAC, com invasões de terra”, diz Marcos Apurinã, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Para isso, precisamos de capacitação dos jovens indígenas, para brigar de igual para igual pelos nossos direitos. E aí a educação é fundamental.” JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

A casa do sorriso O Centro de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP, em Bauru (SP), é referência no tratamento de fissuras nos lábios e céu da boca e de deficiências auditivas. O atendimento é humanizado, com profissionais especializados, e tudo pelo SUS Por Suzana Vier. Fotos Olicio Pelosi 36

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pequena Laiza escolheu uma roupa de bailarina para usar. Vestido de tule amarelo, tiara prateada, bonequinha nas mãos. Está distraída com os coleguinhas, assistindo aos bonecos Areta e Aretuso. Nem parece que ela, de 4 anos, e Ana, a mãe, estão num hospital. Aguardam o telefone tocar e a “tia” avisar que é hora de ir para o centro cirúrgico, onde vai ser submetida a uma operação de correção


CARINHO Everton passa pela consulta com a dentista

DESCONTRAÇÃO Atividades lúdicas fazem parte do dia a dia. Roberto (à direita) é paciente do hospital desde os 8 anos

labial. Como ela, cerca de 250 pacientes de todo o Brasil, em geral crianças, passam diariamente pelos corredores decorados do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (USP), na cidade de Bauru, interior de São Paulo. Conhecido como Centrinho, o hospital combina atendimento multidisciplinar integrado, humanização, aconchego, brincadeiras e arte. Tudo para aliviar a dor e as dificuldades dos pequenos pacientes e familiares. O tratamento é longo e pode ir dos 3 meses aos 18 anos. Quando Ícaro nasceu com fissura labial, Cristiane nunca tinha ouvido falar de ano-

SEM ESTRESSE De bailarina, Laiza brinca enquanto aguarda a cirurgia JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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malias craniofaciais. “Foi um choque. Não deixaram nem eu ver. Eu já sabia que tinha alguma coisa errada”, lembra. “Eu só não suspeitava que fosse tanto. Mas depois o próprio pediatra, na maternidade, me falou do Centrinho.” Aos 3 meses, Ícaro passou pelo primeiro atendimento. Aos 12 anos e três cirurgias depois, ele e a mãe comemoram. “Nós nos consideramos vencedores, porque do jeito que eu vi... A gente não imagina que vai ficar perfeito do que jeito que é”, afirma Cristiane. Para a mineira de Ipatinga, o tratamento e, principalmente, a forma como é feito foram essenciais para o restabelecimento de Ícaro, que quer ser técnico de informática quando crescer. “Eles tratam a gente como ser humano. A gente tem tudo pelo SUS”, destaca. “Tendo dinheiro ou não, o tratamento tem a mesma qualidade.” Segundo a mãe, o diferencial está na atenção às crianças e famílias. “O carinho que eles têm com o filho da gente é especial.” Desde 1967 o Centrinho já atendeu 75 mil pessoas. O hospital acompanha casos de pessoas nascidas com anomalias craniofaciais, como fissuras labiopalatinas, deficiência auditiva e síndromes relacionadas. Cada criança ou adulto passa por uma equipe de muitas especialidades. Dentistas, fisioterapeutas, psicólogos, pediatras, otorrinolaringologistas, fonoaudió­logos, neurologistas, cirurgiões plásticos, neurocirurgiões, geneticistas, biólogos, fisiolo-

ABAIXA O VOLUME! Yuri, de Belo Horizonte, viajou com a mãe até Bauru para fazer um implante coclear. Já está ouvindo e até pede para diminuir o volume

gistas, pedagogos, assistentes sociais, recreacionistas, nutricionais e enfermeiras são responsáveis por dar o atendimento humanizado e integral aos pacientes. Iure, de 3 anos, brinca com massinhas na mesma sala que Laiza. Ele vai passar por uma cirurgia para colocar um implante coclear – uma prótese de alta tecnologia,

também conhecida como ouvido biônico. A mãe, Luciana, é só alegria. O procedimento de aproximadamente R$ 46 mil, custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), vai permitir que o garotinho ouça pela primeira vez. Iure e Luciana são de Brasília e depois da operação, como a maioria dos pacientes, voltam para casa de ônibus.

O Tio Gastão O professor doutor José Alberto de Souza Freitas dirige o Centrinho há 42 anos. Mas ninguém o conhece. Já o Tio Gastão, homem alto, sorridente, de avental branco, sentado no jardim do hospital, conversando com as mães, todo mundo sabe quem é. O pesquisador conta que descobriu a importância de tratar anomalias craniofaciais de forma integrada, humanizada e multidisciplinar ao acompanhar casos de crianças na década de 1960. Inicialmente, a correção de fissuras labiopalatinas se restringia à operação plástica dos lábios, que com o crescimento da criança voltavam a surgir, junto com outros problemas. Também percebeu que as crianças com essas anomalias não completavam o ensino médio, porque recebiam

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apelidos e sofriam discriminação pela voz fanha, lábio e nariz achatados. O Centrinho já nasceu em 1967 com visão multidisciplinar.

Mas Tio Gastão disse que não está contente. “As crianças precisam de tratamento em outras áreas”, afirma. Por isso, em alguns meses, assim que o

novo hospital for inaugurado, o Centrinho vai atuar na área de cardiopatologias congênitas. “O professor Zerbini nos disse: quando tem uma fissura na face, tem uma no coração. O coração e a face se formam mais ou menos no mesmo período embrionário”, revela. A morte precoce de crianças é resultado da falta de diagnóstico de problemas do coração. A expectativa é que o hospital também atenda crianças com deformidades múltiplas e complemente a reabilitação craniofacial com cirurgias estéticas. “O paciente só é reabilitado quando gosta de se olhar no espelho. Quando você tem raiva do espelho, é muito difícil vencer outras barreiras na vida”, ensina Tio Gastão.


Raridade Raphaela, de 8 anos, está internada no Centrinho desde a segunda semana de vida. Ela tem uma síndrome rara. Menos de dez pessoas no mundo têm a síndrome Carey-Fineman-Ziter, e Rapha é o único caso brasileiro. O principal sintoma da doença, de tratamento ainda desconhecido, é a falta de força muscular para respirar. Ela também sofre com o comprometimento de outros órgãos, como rins e estômago, e paralisia facial. “Desde que ela nasceu, dizem que vai morrer. Mas ela desmente qualquer prognóstico médico”, afirma a avó Elisabeth. Rapha já passou por cinco cirurgias de alto risco, só respira com a ajuda de equipamentos e continua lutando pela vida. Depois de tantas operações, de tantos “chamados finais”, Beth está otimista com a evolução. A menina é considerada a princesa da Unidade de Cuidados Especiais (UCE), onde bebês portadores de síndromes congênitas também recebem atenção. Beth e toda a família estão todos os dias na UCE. Em 2009, a avó comemorou os 8 anos de Rapha com uma festa em homenagem ao hospital. Para ela, a neta ensina que é preciso comemorar, viver e agradecer a cada dia. “Por que eu vou reclamar, se um bebezinho suporta tudo isso?”

É bom saber Anomalias craniofaciais são deformidades que acometem a região do crânio e da face. As mais comuns são as fissuras labiopalatinas. Se a fenda for só no lábio é chamada de fenda labial ou fissura labial. Se for só no palato (céu da boca), então é fissura palatina. E, se atingir ambos, é fissura labiopalatina. Um em cada 650 bebês nasce com anomalia craniofacial no Brasil.

O que provoca?

De acordo com Maria Irene Bachega, diretora da Divisão Hospitalar e ouvidora do Centrinho, uma combinação de fatores genéticos e ambientais pode ser a causa da fissura. Os genéticos envolvem uma inter-relação de várias informações genéticas (genes) herdadas dos pais. Entre os fatores ambientais, podem provocar malformações o uso de álcool ou cigarros pela mãe; a realização de raios X na região abdominal da gestante; ingestão de medicamentos como anticonvulsivantes ou corticosteroides nos primeiros três meses de gravidez.

Agendamento

Quando uma mãe ou familiar telefona para o Centrinho, a central de agendamento explica todo o tratamento, solicita documentação e exames e em poucos dias a família já recebe retorno com o agendamento da consulta. “Nossa central é complexa e já informa à família que o tratamento pode durar até 18 anos”, diz Maria Irene.

Assistência social

O tratamento do Centrinho é gratuito. Há programas de assistência social que auxiliam financeiramente as famílias de outros estados no transporte e hospedagem. Saiba mais em www.redebrasilatual.com.br. Encontre também no site uma relação de hospitais credenciados pelo SUS para realizar procedimentos na área de malformações labiopalatinas.

No mesmo dia, a Revista do Brasil encontrou outro Yuri, também de 3 anos, de Belo Horizonte. Tem a cabeça enfaixada porque fez o implante coclear um dia antes. Mãe e filho fariam novamente o trajeto de 13 horas entre Belo Horizonte e Bauru, um mês depois, para que o ouvido biônico fosse ligado. A reportagem foi conferir. Ao ouvir os primeiros ruídos, Yuri reagiu rapidamente, emocionando a mãe: “A emoção é muito grande. Não é uma cura, mas saber que ele vai poder ouvir, falar ‘mamãe’, ‘papai’, é maravilhoso”, disse Adriana.

Arteterapia

Silvana, de Unaí (MG), está na sala de espera cirúrgica aprendendo a fazer um lápis decorado. Assim tenta se acalmar. Seu filho Hugo, que ainda não completou 2 anos, estava recebendo seu ouvido biônico. “Eu estava mais nervosa quando cheguei”, conta. “Esse é um aconchego para quem passa por um momento difícil.” O hospital oferece a sala, materiais e funcionárias para ensinar as mães a fazer tapetes, bordados, artesanato enquanto esperam. “Elas chegam tensas, choram, mas depois uma começa a partilhar com a outra sua história e nós oferecemos artesanato para se distraírem”, explica Lurdes Feriato da Silva, uma das professoras de artesanato. Mariana, de Cariacica (ES), acompanha o neto em sua oitava cirurgia no Centrinho e também aprende a decorar um lápis. Roberto, o neto, veste paletó, calça e peruca para o teatro que vai começar. Todo dia é assim. “De repente, sai uma peça com pacientes e familiares, um show de bonecos, uma dramatização, uma fábula ou uma sátira”, descreve a terapeuta ocupacional Márcia Almendros Moraes. Roberto nasceu com fissura labiopalatina. “Eu tinha uma cavidade só, do nariz até a boca”, comenta. Desde os 8 anos faz tratamento no Centrinho. Já operou o nariz três vezes, o palato uma vez e fez enxerto ósseo e de gengiva. Por último, realizou a segunda rinosseptoplastia. “Quando ele nasceu, mamava a contagotas”, lembra Mariana. O tratamento deu vida nova ao jovem, hoje com 21 anos. “Mudou tudo. Melhorou minha fisionomia, meu bem-estar, minha vida pessoal”, detalha Roberto. “Antes eu era chamado de fanhoso, gaguinho. Hoje sou normal, faço artes marciais, nado, namoro.” Como em muitos casos, Roberto e Mariana têm ajuda do SUS para a viagem e alimentação e complementam o restante. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

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uando aquela mulher humilde, com os pés descalços sobre a terra, usou o termo “sustentabilidade” para falar sobre o que acontece em sua propriedade, o significado da palavra ganhou forma. Rosemeire Ramos da Silva Leal, de 56 anos, recebeu do Incra concessão de uso de 25 hectares no assentamento União Flor da Serra, em Planaltina (GO). Isso foi há três anos e meio. Com um crédito inicial de R$ 2.400, comprou ferramentas e uma vaquinha. Outros R$ 5 mil foram destinados a melhorias na casa, erguida no chão castigado pela antiga plantação de soja. Depois de uma década acampados como semterra, ela e o marido, Reginaldo, tornaramse então assentados da reforma agrária. As dificuldades de sobrevivência começariam a ser abrandadas no ano seguinte, quando chegou por lá uma tal de “tecnologia social” chamada Produção Agroecológica Integrada Sustentável (Pais), com técnicas de agricultura simples, baratas e limpas. E a sustentabilidade entrou na vida do casal. A família recebeu sementes de hortaliças, calcário, tela, pregos, galinhas e um galo, mais um kit de irrigação com caixa d’água e mangueiras. Assim, foi construído um viveiro, ao redor do qual crescem as culturas cultivadas com adubo orgânico e irrigação por gotejamento. A horta e o galinheiro são complementados com uma agrofloresta, cujo plantio dispensa a derrubada da mata nativa. Nas terras tem tomate, abóbora, maxixe, pimenta, feijão, salsa, alho, café, fumo, quiabo, verduras, frutas, flores e folhagens decorativas. Tudo interligado. E o cheiro do cravo-de-defunto espanta as pragas. Para infecção? Mastruz. A semente da erva-de-santa-maria dá um ótimo vermífugo e cura também inflamações. “Na nossa floresta, toda orgânica, a gente tem solução prá todo tipo de doença. Ninguém precisou mais de remédio. A gente se alimenta sem veneno”, gaba-se Rosemeire, guerreira que sua de sol a sol para semear, plantar e colher e nas noites de lua cheia, “com o céu bem claro”, também não sossega. A primeira fase do sistema Pais é buscar o incremento da produção de alimentos de qualidade, gerando segurança alimentar e a redução de doenças e problemas derivados da desnutrição. “Para nós, já é ganho a família assentada não ter de pagar a própria comida”, declara Ageu da Rocha, representante da Associação para o Combate à

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ENGENHOSA SABEDORIA POPULAR Com baixo custo de implementação e alto potencial transformador, as tecnologias sociais surgidas do conhecimento das comunidades apontam saídas para problemas cotidianos da população Por Evelyn Pedrozo Fotos Martim Garcia

Exclusão Social e Preservação Ambiental Chico Mendes. Numa segunda etapa, a proposta é vender o alimento excedente. “Mas só se houver sobra”, destaca Ageu. E para Rosemeire, mineira que aos 7 anos já era vaqueira, qualquer desafio é pouco. Do que viceja nos seis hectares plantados, entre orgânicos e agrofloresta, sobra muito para ser vendido na região. “A gente tira o suficiente para a prestação do carro”, comemora, ao lado do Uno branco que leva as hortaliças e ovos valorizados por serem orgânicos. “Na cidade, cobro R$ 7 a dúzia de ovos. Aqui em casa posso vender por R$ 5.” Ageu observa que, como resultado dessas etapas, filhos de agricultores começaram a voltar para o campo e algumas famílias já dispensam cestas básicas e outras formas de auxílio público. Rosemeire consegue manter sob suas asas dois filhos e seis netos. No


VITALIDADE José Moreira, aos 73 anos, planta de tudo e até vende o que viceja em suas terras, no assentamento Itaúnas (GO), onde se beneficia do Pais

TECNOLOGIA VERDE Galinheiro integrado ao cultivo de hortaliças e agrofloresta

EMPREENDEDORA Rosemeire, beneficiada pela reforma agrária, faz milagre em 6 hectares

pasto, aquela vaquinha já tem a companhia de mais quatro. O próximo passo é levar os produtos para a feira de orgânicos da região. E conseguir um motor para processar a cana e adoçar um pouco mais a vida. O projeto Pais foi desenvolvido pelo agrônomo senegalês Aly N’Diaye, que testou durante cinco anos com 30 famílias, incluindo a dele, um projeto de agricultura e criação de animais menos dependentes de insumos químicos e água. Depois de certificado em 2007, o Pais foi incluído no Programa de Geração de Trabalho e Renda da Fundação Banco do Brasil (FBB), em parceria com Sebrae, Ministério da Integração Nacional e outras entidades. De quase 6 mil unidades implantadas em 19 estados, 4 mil são apoiadas pela FBB, com outros 29 parceiros. “Depois de mais de 10 mil pessoas diretamente envolvidas com o Pais, posso afirmar que uma nova visão de como fazer agricultura sustentável toma conta do meio rural brasileiro. Um dos meus sonhos é conseguir parceiros para levar o Pais ao Senegal, onde nasci”, diz Aly. O programa exige investimento médio de R$ 9 mil por unidade e a FBB já aportou R$ 14,5 milhões no projeto.

Humano e sustentável

Na propriedade de Virgílio Pereira Braga em Pontezinha, na zona rural de Santo Antônio do Descoberto (GO), a aplicação de uma tecnologia social desenvolvida pela Embrapa Instrumentação Agropecuária, de São Carlos (SP), resolveu uma questão de saneamento básico. A fossa séptica biodigestora, criada pelo pesquisador Antônio Pereira de Novaes, deu um jeito simples e barato no esgoto. A tubulação dos vasos sanitários é desviada para caixas de cimento armado e a sujeira ainda vira adubo orgânico de qualidade. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Ao utilizar o rejeito como adubo orgânico, evitam-se gastos com adubação química e cria-se uma agricultura mais responsável. Uma família de cinco pessoas produz mil litros de adubo líquido por mês. O lençol freático fica livre da chamada fossa negra, comum na zona rural, que contamina águas subterrâneas e os poços de água que abastecem os estabelecimentos agrícolas, o que traz risco de contaminação da população rural por doenças como hepatite, cólera e salmonelose, provocadas por fezes e urina. Já foram instaladas 100 fossas sépticas como essa no entorno de Brasília e outras 436 unidades estão sendo implantadas em localidades de Goiás e Pernambuco. Tudo isso ao custo de impressionantes R$ 1.300.

Invenção do povo

As tecnologias sociais, conceito que vem sendo construído no Brasil apenas ao longo desta década, unem o saber popular e tradicional ao técnico. Estão espalhadas em diversas áreas, como educação, saúde, meio ambiente e agricultura. Nascem, geralmente, não em um laboratório, mas dentro das comunidades. Com baixo custo de implementação e alto potencial transformador, apontam saídas para problemas cotidianos. Um exemplo clássico é o soro caseiro feito com uma pitada de sal e duas colherinhas de açúcar misturados a um copo de água. A receita já salvou milhares de crianças da desidratação. Na saúde, também se destaca a multimistura, que combate a desnutrição. Uma tecnologia social se diferencia por se adequar a pequenos produtores e consumidores de baixo poder econômico. Não provê controle, segmentação, hierarquização e dominação nas relações de trabalho. Não desperdiça recursos. É orientada ao mercado interno de massa. Incentiva o potencial e a criatividade do produtor direto e dos usuários. Enfim, é capaz de viabilizar economicamente empreendimentos como cooperativas populares, incubadoras e pequenas empresas. “O conceito de desenvolvimento que consideramos precisa ter incorporada a dimensão do humano, porque deve estar voltado para as pessoas; precisa ser social por ser dirigido à maioria das pessoas e precisa ser sustentável para manter o compromisso com as gerações futuras”, define a secretária executiva da Rede de Tecnologias Sociais (RTS), Larissa Barros. “Todo projeto tecnológico é eminentemente político. É

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DIVERSIDADE Reginaldo colhe frutas e legumes nas terras do assentamento União Flor da Serra

SIMPLICIDADE O kit, que inclui caixa d’água, mangueiras, sementes e galinhas, pode mudar a paisagem e melhorar as condições de habitação. Famílias assentadas também recebem crédito do Incra para melhorar a casa


SANEAMENTO Nas terras de Virgílio Braga, em Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, a instalação da fossa séptica permitiu transformar os rejeitos em adubo orgânico de qualidade, e o resultado foi o desenvolvimento de toda a plantação: sucesso pelo custo de R$ 1.300

construído incorporando valores e interesses. Havia necessidade de um enfoque tecnológico para a questão da inclusão social. As tecnologias surgiram para atender prioritariamente às necessidades de, por exemplo, cooperativas populares, associações de trabalhadores e fábricas recuperadas.” De acordo com Larissa, o eixo da tecnologia social é a reaplicação. Em vez de apenas copiada, ela precisa ser reaplicada, para ser recriada, a cada vez que é adotada por diferentes atores.

Política pública

Durante a cerimônia de entrega da quinta edição do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, no final de novembro, o presidente da FBB, Jacques Pena, observou que o Brasil é um país rico, mas sua história construiu uma sociedade desigual. “As tecnologias sociais podem ajudar a construir um país diferente”, disse. Oito anos atrás, havia 30 instituições de apoio a tecnologias sociais. Hoje são 800, a maior

parte formada por ONGs. Integram o grupo de apoiadores também ministérios, governos estaduais, prefeituras, universidades e empresas públicas. A RTS é mantida por nove instituições que mais intensamente identificam e apoiam soluções de impacto: os Ministérios do Desenvolvimento Social, da Integração, do Trabalho e da Ciência e Tecnologia, além da Fundação Banco do Brasil, Sebrae, Petrobras, Caixa Econômica Federal e Finep. Dentre as tecnologias sociais, o projeto Pais e o sistema de captação de água de chuva, do semiárido brasileiro, são os mais reaplicados e os mais transformadores. “O Pais está próximo de ser convertido em política pública e o outro sistema já virou”, observa a secretária executiva da rede. A RTS organiza para o mês de maio a quarta edição da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. O objetivo é reunir pessoas e instituições envolvidas no tema e discutir uma política de Estado para os próximos dez anos. Ou seja, garan-

tir que o estímulo à difusão da tecnologia social não oscile ao sabor das mudanças de governo. De acordo com Larissa, já é altamente positivo o fato de a “tecnologia para a inclusão social” ser um dos eixos temáticos do evento. “Porém, o sistema de tecnologia ainda não reconhece as iniciativas sociais, mas apenas as que saem das empresas e universidades. Daí a necessidade de batalhar pela participação da sociedade civil.” O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, afirmou que assuntos como utilização sustentável da biodiversidade, mudanças climáticas, energia, recursos naturais, desigualdades regionais, educação científica de qualidade, uso da ciência e tecnologia para o desenvolvimento social e saúde estarão entre os principais abordados no encontro. De acordo com o secretário-geral da conferência, Carlos Aragão, haverá abertura para inclusão de temas sugeridos pelos interessados nas cinco reuniões regionais prévias a serem realizadas no início deste ano. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

Tesouros bolivianos A Bolívia ainda é um destino pouco conhecido dos brasileiros, mas rico em preciosidades históricas e naturais

U

ma das maneiras mais conhecidas de chegar ao país é pelo chamado “Trem da Morte”. Ele sai de Puerto Quijarro (ou Puerto Suárez), logo depois da travessia da fronteira em Corumbá (MS), e vai até Santa Cruz de la Sierra, no oriente boliviano. A opção é mais barata e oferece desde o início uma imersão na rica cultura de nosso vizinho. Segunda maior cidade do país, com quase 1,5 milhão de habitantes, Santa Cruz não tem as famosas cholas andando pelas ruas. Sem maiores atrações turísticas, o interessante de Santa Cruz é observar e tentar entender o movimento autonomista da chamada “Bolívia branca” – e não indígena –, majoritariamente contrária a Evo Morales. Se a opção é avião, melhor é chegar pela capital mais alta do mundo: La Paz. O avião

aterrissa em El Alto, 4.100 metros acima do nível do mar e a 10 quilômetros do centro. A chegada é emocionante. A asa parece raspar os picos da Cordilheira dos Andes forrados pelas “neves eternas”. El Alto tem 20 anos de idade e meio milhão de habitantes. A maior parte da população é Aymará e Quéchua – as duas principais etnias bolivianas. Aos domingos acontece uma imensa feira, onde se vendem roupas, televisores e geladeiras usados, grãos e cereais, instrumentos musicais e edições baratas e “piratas” de livros que vão de Eduardo Galeano a Paulo Coelho em espanhol. Na descida do aeroporto ao centro de La Paz é outra surpresa a vista da cidade lá embaixo, dentro da cratera de um meteoro. La Paz é linda, riquíssima culturalmente, mas ainda um pouco suja. A geografia impressiona, dentro de uma grande depressão rodeada pela cordilheira. Chegar de avião

VENEZUELA COLÔMBIA EQUADOR

PERU BRASIL Lago Titicaca

BOLÍVIA • La Paz PARAGUAI

CHILE ARGENTINA URUGUAI

LA PAZ Plaza Murillo, onde estão os palácios Legislativo e Presidencial

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FOTOS PAULA SACCHETTA

PICOS NEVADOS Montanha de Chacaltaya, a 5.395 metros de altitude

exige calma. Ninguém fica impune à altitude. Nos três primeiros dias podem aparecer uma dorzinha de cabeça, enjoo e tontura, mas aos poucos o corpo se aclimata e permite explorar a pé – pelas inúmeras subidas e descidas – a cidade que mais tem a cara da Bolívia. O centro urbano é pequeno por conta dos limites naturais. O transporte público e os táxis são baratos, mas o trânsito é caótico. Ande. Há hospedagens dos mais variados tamanhos e preços. Uma noite de luxo e conforto no Ritz por US$ 120 ou num albergue limpinho e arrumado por B$ 20 (pesos bolivianos), menos de R$ 10. O Museu de Etnografia e Folclore, perto do centro histórico, é obrigatório. Guarda a história do país, tem salas divididas entre as regiões e exposições temporárias imperdíveis. Ainda no centro, na Plaza Murillo, estão os palácios Legislativo e Presidencial. Todas as paradas e festas oficiais acontecem ali. A Calle Jaén, ruazinha antiga toda em ladrilhos e onde não entra carro, também está perto. É onde fica a maior parte das construções coloniais que sobraram em La Paz, além de diversos museus, como o do Litoral Boliviano – a Bolívia perdeu sua saída para o mar em 1879, na Guerra do Pacífico contra o Chile, e até hoje tenta reconquistá-la. A Calle de las Brujas, perto da Igreja San Francisco, não tem esse nome à toa. Além de ponchos e casacos de lã para turistas, vende produtos místicos e pouco convencionais, como fetos de lhama envoltos por pedaços de lã colorida para serem oferecidos a Pachamama – a Mãe Terra. Fora de La Paz, as ruínas Tiahuanaco, próximas às margens sul do lago Titicaca, ficam a pouco mais de uma hora e guardam um sítio arqueológico do povo que ocupou o altiplano boliviano por mais de 3 mil anos. É o maior exemplo arquitetônico da cultura pré-incaica na América do Sul. Passeios de um dia podem ser programados em agências do centro de La Paz, com a entrada do parque, transporte e visita guiada incluídos. Imperdível. Para os mais aventureiros há opções muito interessantes. Descer de bicicleta a “Estrada da Morte”, até Coroico, ou subir até Chacaltaya, montanha a 5.395 metros de altitude. A primeira exige muito, mas a paisagem é impagável. O percurso de 65 quilômetros, só descida, leva cerca de cinco horas. Vale a pena fazer com uma agência de viagens com a qual você se sinta seguro e confiante, já que é perigoso. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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VIDA NO IMPROVÁVEL Flamingos no Salar de Uyuni

Para Chacaltaya é possível subir até 5.265 metros de carro. A partir daí, base da estação de esqui mais alta do mundo, muito fôlego: são 130 metros de caminhada. No gelo do inverno ou na montanha seca do verão, a caminhada exige muito, por causa do ar rarefeito. A vista lá de cima compensa o sacrifício. Dali, pode-se ver La Paz inteirinha, o altiplano e lagoas das mais diversas cores, do azul-turquesa ao laranja, formadas pelas águas do degelo da montanha. Bolívia toda guarda surpresas para os mais diferentes interesses. Históricos, como a escola em La Higuera onde Che Guevara foi morto, e Vallegrande, em Lavanderia, onde seu corpo ficou exposto para os militares e para a imprensa, em 1967. Ou simplesmente fotográficos, como o Salar de Uyuni, um dos lugares mais inóspitos e impressionantes do continente; e Isla del Sol, no lago Titicaca, onde vale passar ao menos uma noite em algum dos simpáticos albergues. E ver o sol se pôr e o alvorecer bem no meio do lago navegável mais alto do mundo.

Onde o tempo não existe

Com 12 mil quilômetros de extensão, o Salar de Uyuni é um imenso deserto de sal nos Andes, a 3.600 metros do nível do mar. E assombra com paisagens congeladas, onde nada se move, exceto os poucos habitantes das comunidades. A região já foi mar há milhares de anos e hoje é a única fonte de sal da Bolívia, que não tem litoral. Em cada uma das casas do pequeno povoado de Colchani o quintal é recoberto de sal grosso extraído à mão. No fundo, famílias inteiras enfileiram-

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PAULA SACCHETTA

INÓSPITO Salar de Uyuni, gelado deserto de sal

se de cócoras para separar e embalar o sal já seco depois de dias exposto ao sol. Cada 50 quilos de sal é vendido pelo equivalente a R$ 0,10. Fechando cada pacotinho com um maçarico, Cecílio tem 18 anos, mas parece ainda adolescente; masca folhas de coca e fala pouco. Perguntado se se incomoda com os turistas, é seco: “Sim”. Apenas as 15 casas de Colchani dão alguma cor ao horizonte. O chão tem rachaduras, como num semiárido. O céu azul é pontilhado por poucas nuvens. Entre dezembro e março, por causa das chuvas, a água chega a se acumular de 20 a 25 centímetros sobre o chão branco amarelado de sal, que vira um espelho. A paisagem surrealista se duplica – as nuvens, os vulcões, as montanhas. Parada obrigatória para quem parte da pequena cidade de Uyuni – a cinco horas de Potosí – é a ilha Incahuasi e seus cactos gigantes. Outra atração são os hotéis construídos com blocos de sal – como suas camas e mesas –, com diárias por US$ 20. Tudo é esculpido. O chão é revestido de carpetes com temas andinos e colchões e almofadas ajudam a combater o frio, que no inverno chega a menos 18 °C. O pôr do sol aos pés do vulcão Tunulpa colore o céu e o chão de vermelho. Nas bordas do Salar existem rastros de antiga civilização préincaica que ocupava a região de Coquesa, ao norte. Para quem tem tempo para um tour de quatro dias, vale uma volta pela região árida a oeste, em direção à fronteira com o Chile. No Parque Nacional Eduardo Avaroa, lagoas coloridas servem de habitat para milhares de flamingos.

Destino ainda pouco conhecido na América do Sul, por causa da precária infraestrutura (a primeira estrada de asfalto, que liga a cidade de Uyuni até Potosí, ainda está em construção), o Salar deve ganhar notoriedade este ano, quando começam a ser produzidas as primeiras toneladas de carbonato de lítio. O minério é usado em baterias de longa duração, pela indústria automobilística para ser combustível de carros elétricos. É o “pré-sal” boliviano, visto pelo governo Evo Morales como tesouro do futuro industrial do país – sua reserva de 9 milhões de toneladas é a maior do mundo. Vale uma visita antes que a letra se espalhe. O turismo é pouco ordenado e barato, com centenas de agências oferecendo tours em jipes apinhados de gente, estadia em alojamentos frios e sem estrutura por cerca de US$ 25 por dia. Os tours costumam ser apressados e com pouca preocupação ambiental, próprios para quem não se importa em passar por cenas desagradáveis, como ter de esperar o motorista ficar sóbrio. Vale pesquisar bem: www.boliviacontact.com/OperadoresdeTurismo_Uyunis.html.


YNAIE DAWSON

TRABALHO Extração no Salar ainda é manual

YNAIE DAWSON

Estude o roteiro

PAULA SACCHETTA

NAS ALTURAS Lago Titicaca, a 3.821 metros acima do nível do mar

Aos poucos começam a aparecer empresas com prática mais sustentável. A Senda Andina busca e devolve passageiros em La Paz por US$ 85 a US$ 105 por dia. Leva no máximo cinco pessoas por jipe e possui instalações próprias e ambientalmente corretas. Com latrinas que produzem composto orgânico, luz solar e construídas com material reciclado, elas ficam em locais mais

sossegados e afastados – aos pés do vulcão Tunulpa e da reluzente lagoa Hedionda. “Queremos que pessoas de todas as idades possam visitar essa maravilha no futuro”, diz o proprietário Mueses Calcina. Informações: www.boliviadesiertos.com. Reportagens de Paula Sacchetta, Eloisa Benvenutti, André Berger e Natalia Viana

Para quem escolhe ir de Quijarro a Santa Cruz, há opções de ônibus, táxis ou o “Trem da Morte”. Neste caso, leve garrafas de água, sopas instantâneas, produtos integrais e, se puder, garrafa térmica, copo e talheres, pois as condições higiênicas no trem são desoladoras. Em qualquer tempo, a madrugada é muito fria. De Santa Cruz para La Paz de ônibus será mais um dia de viagem, com parada obrigatória em Cochabamba. A Rota do Che, de Santa Cruz a Vallegrande, leva à região onde o guerrilheiro e seus companheiros foram enterrados. Seus corpos estão em um mausoléu. Nas ruínas de El Fuerte Samaipata, “descanso nas alturas” em quéchua, a 2 mil metros de altitude, fica a chamada “colônia de férias” dos chefes incas. Na cidade, um museu (patrimônio da humanidade) abriga relíquias incas e a memória da guerrilha. A viagem até Samaipata custa B$ 15 (pesos bolivarianos); para Vallegrande, B$ 35. O trajeto é belíssimo. O passeio nas ruínas pode ser feito em uma tarde, B$ 60 para o táxi e B$ 50 para entrar no parque e no museu. Por fazer parte do Mercosul, basta estar munido de carteira de identidade (a de motorista não é aceita, somente o RG ou o passaporte). Não aceite cobrança de nenhum valor para a travessia na fronteira, que é livre de tarifação. Os pacotes vendidos em território brasileiro são muito mais caros. Vale estudar previamente a viagem para, com atenção, contratar os serviços localmente.

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CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Jürgen Vogel, em cena de A Onda

Deu errado Rainer Wegner (Jürgen Vogel) é um professor que, no início do ano letivo, fica com a disciplina de Autocracia numa escola de ensino médio na Alemanha. Para despertar o interesse da turma, Rainer se denomina líder do grupo e propõe um exercício que explique na prática os mecanismos do fascismo e da ditadura nas pessoas. O sentimento de união e controle cresce e A Onda – nome do grupo e do filme – começa a se propagar até fugir ao controle. Baseado numa história real ocorrida na Califórnia, o filme, assustador, mostra como não é impossível o ressurgimento do autoritarismo mesmo quando o ambiente é de democracia. Em DVD.

Memória tardia

Santiago Badariotti Merlo

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Poliglota, viajado, de origem humilde e com uma cultura extraordinária, Santiago dedicou sua vida a servir a “aristocracia”. Em 1992 João Moreira Salles captou imagens do mordomo que trabalhou durante 30 anos na casa onde o documentarista cresceu, mas por “incapacidade de editá-las” retomou essa história apenas em 2005. E, um pouco tarde para reconhecer, descobriu muita coisa sobre essa figura emblemática e solitária que tinha tantas coisas para contar. Santiago é um documentário tão delicado e intenso que é quase possível viver o sofrimento de João e do mordomo. Em DVD.


Viajantes

Fogo! A Chapada Diamantina é cenário da exposição Heróis da Floresta. O ensaio registra a luta da comunidade local – e do próprio fotógrafo, Eduardo Zappia, colaborador da Revista do Brasil – para proteger a região dos incêndios e conter o fogo que em 2008 devastou 75 mil hectares. Em algumas imagens, tem-se a impressão de que o ambiente é um país em guerra. A mostra ficará até 30 de janeiro nas unidades Jardins (Alameda Lorena, 1430, 11 3061-0195) e Itaim do Suplicy Café (Rua Renato Paes de Barros, 198, 3079-7926), ambas na capital paulista.

Juvenil

Nada de festa, viagem, presente... Quando fez 15 anos, Maria Luiza de Arruda Botelho Pereira de Magalhães pediu dinheiro à família. Assim pôde gravar quatro músicas que colocou no MySpace. Foi com Tchubaruba, J1 e Vanguart que a precoce Mallu Magalhães estourou na net com seu rockfolk-indie e voz rouca de menininha no primeiro álbum. Em outubro de 2008 gravou DVD ao vivo e agora, aos 17, lança outro álbum (também autointitulado). As letras continuam inocentes e juvenis, o charme da obra. Na primeira faixa ela anuncia: “I’m no longer aged ten” ou “Não tenho mais 10 anos” (My Home Is My Man). Oxalá a magia não se perca com a idade. Preço sob consulta (Sony).

Uma parceria entre a editora Companhia das Letras e as produtoras Academia de Filmes e RT Features lançou o desafio e 16 autores brasileiros foram enviados sozinhos, em 2007, para várias cidades ao redor do mundo. Teriam de escrever histórias de amor ambientadas nesses locais. Já foram publicados três romances do projeto Amores Expressos – Cordilheira, de Daniel Galera, vivido em Buenos Aires; Filho da Mãe, de Bernardo Carvalho, em São Petersburgo; e Estive em Lisboa e Lembrei de Você, de Luiz Ruffato, na capital portuguesa (de R$ 29,50 a R$ 39). A editora programa mais um lançamento ainda neste primeiro semestre de 2010, mas até agora não definiu de quem. Chico Mattoso (Havana), Lourenço Mutarelli (Nova York), Daniel Pellizzari (Dublin), Antonio Prata (Xangai) e João Paulo Cuenca (Tóquio) são alguns dos autores que publicarão romances.

Música como refúgio

Para quem gosta de world music, Livre Cantar é um prato cheio com um tempero bem especial: as 12 canções foram compostas e executadas por refugiados que vivem no Brasil. Angolanos, colombianos, congoleses, cubanos e palestinos mostram a diversidade de povos que buscam segurança no país onde vivem quase 4 mil refugiados. Em Mi Terra, a tristeza de estar longe de casa: “Sinto uma dor no meu peito e o coração se acelera... quando penso em minha terra”, canta Antara. O CD está disponível para download em www.acnur.org/t3/portugues/recursos/livre-cantar. JANEIRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Atitude

Por João Correia Filho, texto e foto

Guardião do vale dos dinos

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REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2010

A

lgumas vacas do rebanho de Anísio Fausto da Silva fugiram para a caatinga de Souza (PB), e ele, ao buscá-las, achou o que chamou em 1890 de “rastros do boi e da ema” cravados nas pedras. Na verdade, estava diante de maior trilha de pegadas de dinossauros do mundo. “Foi um tipo de herança que ele, meu avô, me deixou. Aqui está a minha vida”, diz Robson Marques, 65 anos, conhecido como Guardião do Vale dos Dinossauros. Em 1975, Robson teve a dimensão do que aqueles rastros representavam ao guiar o paleontólogo italiano Giuseppe Leonardi pelo sertão paraibano. O lugar hoje é tido como um dos mais importantes sítios da paleontologia mundial, com dezenas de pegadas de dinossauros carnívoros do Período Cretáceo, há mais de 65 milhões de anos. Com pouco mais de 60 mil habitantes, Souza é bastante influenciada pelas descobertas do avô de Robson, como indicam as placas de vários estabelecimentos – Motel Dino, Forró dos Dinossauros, Açougue do Vale, e até o time da cidade, o Souza, tem o apelido de Dinossauro Verde. Há dez anos a área é protegida por lei e ganhou um pequeno museu. Robson recebe pesquisadores do mundo todo, dá entrevistas, cuida da conservação e da limpeza e mistura a história de sua vida com a das pedras. E ainda escreve crônicas e cordéis. “Foi um pacto que fiz com Leonardi. Eu pedi a ele prá ajudar a transformar isso num parque e prometi cuidar de tudo até morrer. E quero ser enterrado aqui, no Vale dos Dinossauros”, diz Robson, que já foi chamado de maluco. “Mas não me importo. O que seria do universo sem nós, os cândidos malucos?”


Jornal Brasil Atual

de 2ª a 6ª feira, das 7h às 8h FM 98,1 - Grande S. Paulo

Informação que transforma www.redebrasilatual.com.br



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