LISTA SUJA Por trás do açúcar que adoça seu bolo pode ter trabalho escravo
fevereiro/2010
www.redebrasilatual.com.br
HUMANIDADE SOLIDARIA A cooperação entre nações e pessoas é ponto de partida para um mundo melhor e menos vulnerável a tragédias como a do Haiti
Exemplar de associado. Não pode ser vendido.
nº 44
R$ 5,00
VITÓRIA DA IGUALDADE Com Invictus, Clint Eastwood leva às telas um golaço de Mandela
No compasso do leitor Jornal Brasil Atual. De 2ª a 6ª feira, das 7h às 8h, na FM 97,3 Grande São Paulo. E a qualquer hora, de qualquer lugar, no site
Receba a Revista do Brasil em casa durante um ano por apenas R$ 50. Acesse www.redebrasilatual.com.br e confira. Para pacotes acima de dez assinaturas, você ou sua organização podem pagar até 50% mais barato. Consulte a editora: (11) 3241-0008
Índice
Editorial
CESAR FERRARI/REUTERS
Artigo 5 O século 21 nasceu com o Fórum Social Mundial em Porto Alegre Mundo 8 O Haiti e o mundo agora perplexos ante outro furacão: o da história Trabalho 16 Por que uma gigante do setor de açúcar foi parar na “lista suja” América do Latina 20 Algumas pedras no caminho da efetiva integração no continente Ambiente 22 Metas antidesmatamento exigem outra economia para a Amazônia Brasil 26 A solidariedade na reação à fúria do clima e aos descuidos do homem Saúde 32 O despreparo das pessoas e até da classe médica para lidar com o AVC Entrevista 38 Luiz Pereira, o zagueirão, sua história e as novas raízes em Madri Cultura 40 Em Invictus, Mandela combate a segregação com espírito esportivo Tradição 44 De geração a geração, o carnaval que preserva o ritmo do maracatu
Zilda Arns, vida dedicada às crianças do mundo, levada pelo terremoto de 12 de janeiro
Um novo planeta possível
C DIVULGAÇÃO
Teleférico Minerva, em Las Leñas
Viagem 46 Las Leñas, na Argentina, é diversão garantida no inverno ou no verão SEÇÕES Cartas 4 Na Rede Ponto de Vista
6 14
Crônica 29 Curta Essa Dica
48
Atitude 50
omeçou em 31 de dezembro, quando o mundo festejava a virada de ano. No meio da tarde, um manto escuro subiu do Polo Sul e cobriu parte do sudes te brasileiro. No primeiro dia de 2010, chuvas nunca antes vistas produziram os deslizamentos da Ilha Grande e de Angra dos Reis; fizeram subir o rio que varreu São Luiz do Paraitinga, cidade histórica da serra do mar paulista; cau saram inundações dia após dia no interior e na capital de São Paulo. O Rio Grande do Sul sucedeu a Santa Catarina em catástrofes e Minas Gerais viveu dias de transbordamentos. A mitológica Machu Pichu, no Peru, teve seu dia de fúria. Durante dois meses, movimentos desiguais de ventos provocados pelo calor e pelo aquecimento do oceano – que produzem o El Niño – trouxeram monções diárias para a parte debaixo do Equador, enquanto na par te norte do planeta temperaturas abaixo de zero bateram recordes. Embora haja quem enxergue nessas catástrofes as agressões ao planeta, as “águas de mar ço”, já diagnosticadas nos versos de Tom Jobim, sempre estiveram entre nós. Porém, a enor me concentração urbana e o distanciamento da natureza emburreceram o homem, desde o humilde cidadão que constrói sua casa em qualquer área de risco até a classe média que busca a melhor vista no platô, passando pelo poder público, que não hesita em asfaltar mais e mais vazantes e mangues para dar lugar aos carros, símbolos de um modelo de desenvolvimento e de urbanização esgotado. A humanidade foi sábia com a agricultura a partir da observação dos fenômenos naturais, cidades levaram em conta solo, vegetação, planaltos, planícies, rios, lagos, mar para ser erguidas. Hoje nada disso parece ser ponderado nas decisões. Entretanto, vem do Haiti – sucumbido por seguidos terremotos, sendo os primeiros deles a colonização e a escravidão – o exemplo de que há uma nova ideia de desenvolvimento sendo gestada no mundo. A uma velocidade surpreendente, a globalização pôs em xeque as relações imperialistas entre as nações. Brasil, Cuba, Venezuela, Irã, EUA, Europa e África, Israel e Pa lestina praticam uma cooperação jamais vista no planeta. Tanto quanto os acordos em defe sa do clima e do ambiente, a solidariedade diante das catástrofes, do homem e da natureza, é um desafio para já. Como lembrou o jornalista Ricardo Kotscho em seu blog, o publicitário Carlito Maia dizia conhecer dois tipos de gente: os que vieram ao mundo a serviço e os que vieram a passeio. Com mais gente a serviço, a exemplo do que faziam dona Zilda Arns e ou tros brasileiros no Haiti antes do terremoto, o planeta terá jeito. FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
3
Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Bernardo Kucinski, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jessica Santos, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Thiago Domenici, João Peres e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Eduardo Muñoz/Reuters Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Adesão ao projeto (11) 3241-0008 Atendimento: Claudia Aranda Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
www.redebrasilatual.com.br
Conselho diretivo Admirson Medeiros Ferro Jr., Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Alberto Grana, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Edílson de Paula Oliveira, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sebastião Geraldo Cardozo, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Vinicius de Assumpção Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Luiz Cláudio Marcolino Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa
4
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Erros e acertos Comecei a leitura da edição 43 do fi nal, “Guardião do Vale dos Dinos”, para a frente. Achei muito boa a repor tagem “Tesouros bolivianos” e mais ainda a “Engenho sa sabedoria popular”. Passei para “Revisão da anistia”. Gostei da carta da leitora Marcela Goes, de São Paulo, sobre “É proibido beber”. A reportagem de capa, “Tragédias do marke ting”, me parece estar incompleta. A revista deveria começar pelo poder central, onde o governo do PT está gastando horrores, prin cipalmente nos últimos anos, para tentar via bilizar a candidatura da ministra Dilma, que deve ser eleita no primeiro turno. Até porque o tema enfocado não é recente. Bastaria aos repórteres dar uma chegada no Museu Pau lista para ver um quadro da época do Império que registra enchentes na capital paulista. De lá para cá ninguém fez nada. E dificilmente alguém o fará. Mas, entre mortos e feridos, o Brasil está excelente. Arlindo Ribeiro, Diadema (SP) arlindoligeirinho@uol.com.br As críticas da edição 43 aos governos es tadual e municipal de São Paulo deveriam ser estendidas também ao governo fe deral, ou não? Por este ser um veículo de informação, deveria proporcionar todas as verdades, independentemente de par tidos e ideologias políticas. Quem sabe em uma próxima edição estampem na capa as figuras de Lula, Dilma e Sarney e façam esta pergunta: Vocês acreditam? Nair Kato, São Paulo (SP) nair.h@hotmail.com Adorei a edição 43. A mídia não mostra a ver dade a respeito da política em nossa cidade. Estamos lutando pela Escola Estadual Parque Novo Santo Amaro II, ainda de lata, alvena ria só por fora. Kassab, em uma propaganda de televisão, disse que tinha acabado com as escolas de lata (mentira). A unidade tem vá rios problemas e ainda está sem quadra para a prática de educação física. Fizemos um abai xoassinado, fomos para a Secretaria da Edu cação, mas estamos sem resposta. Amanda de Paula, São Paulo (SP) amandacineco@hotmail.com
Defesa do SUS Parabéns pelas reportagens publicadas na edição 42 “Doença pública, saúde priva da” e 43 “A casa do sorriso”, cujas abor dagens passam pela valorização e afirma ção do Sistema Único de Saúde (SUS) e de seus profissionais. O SUS está presente, cotidianamente, em nossa vida, como nas campanhas de vacinação e na qualidade da água que bebemos, nos tratamentos de alta complexidade e nos transplantes, no tratamento da aids, no Programa Saúde da Família, na saúde do trabalhador, no me dicamento que tomamos para curar uma doença, na Unidade Básica de Saúde em nosso bairro etc. Reportagens assim, que resgatam a existência e a importância da saúde pública no país, só conseguimos ver na Revista do Brasil. Walcir Previtale Bruno, secretário de Saúde e Condições de Trabalho do Sindicato dos Bancários de SP, Osasco e Região - CUT walcir@spbancarios.com.br Adorei a revista. Principalmente a reporta gem sobre o Centro de Reabilitação de Ano malias Craniofaciais da USP, em Bauru (“A casa do sorriso”, ed. 43). Tenho um filho com fissura labiopalatal e conheço muito bem a realidade descrita no texto. Wilney Alves Martins, São Paulo (SP) Em aula Sou professor, filiado ao sindicato dos pro fessores de São Paulo, e gosto muito da RdB. Uso os textos em sala de aula, pois a visão crítica que a revista sustenta é de grande importância para os filhos de tra balhadores para os quais leciono. Márcio Luís Nunes, Salto (SP) CORREÇÃO Não é Hélio Bicudo que está ao lado de Clara Charf na foto à página 28 (“Revisão da anistia”) da ed. 43, mas sim o professor Antonio Candido.
revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Polêmica em progresso Em sua décima realização, o Fórum Social Mundial “retornou a Porto Alegre”. Ou será que foi Porto Alegre, seu berço, que “retornou ao Fórum”? Por Flávio Aguiar
SERGIO MORAES/REUTERS
O
que mudou na trajetória da cidade de Porto Alegre e do Fórum, depois que este já passou pelos cinco continen tes? Isso não é pergunta sobre o sexo dos anjos nem retórica. Tanto é que desta vez não foi só a capital gaúcha a sua referência, mas a Grande Porto Alegre. E o encontro nessa Região Metropolitana abriu uma série de outros, a começar pelo Fórum Temático da Bahia (de 29 a 31 de janeiro), o Catalão, em Barcelona, o de Madri, mais os de Kpomassé, no Benin (África), e em Praga, Brno e Usti nad Labem (na Repú blica Tcheca). Hoje, há quem veja o Fórum como fra casso: “O discurso autonomista, tão proe minente nas primeiras edições do FSM, apresenta-se agora como uma relíquia exó tica, desprovido de vida e conexão com a realidade. O que explica a irrelevância à qual, pouco a pouco, vai sendo condenado o próprio Fórum” (“FSM, décima edição”, de Breno Altman, em www.cartamaior. com.br 6/1/2010). Ou como esperança: “O FSM e o chamado ‘espírito de Porto Ale gre’ ganharam o mundo, constituindo-se como um espaço em movimento e como um espaço dos movimentos em luta por uma mundialização alternativa” (“FSM – 10 anos Grande Porto Alegre”, de Eduardo Mancuso, idem, 9/1/2010). Essas opiniões opostas são a ponta de um iceberg que acompanha o Fórum des de sua primeira edição em Porto Alegre, em 2001, e por todas as demais – Porto Alegre, 2002, 2003, 2005; Mumbai, 2004; Caracas/ Bamako/Karashi, 2006; Nairóbi, 2007; po licêntrico (A Global Call for Action), 2008; Belém, 2009. Para os entusiastas, o caráter descentrado do Fórum, que não tira docu mentos finais únicos desde sua fundação, é prova de sua vitalidade e pertinência. Para os críticos, essa falta de “centralidade” é prova de que o Fórum pode ser um evento bonito, mas inócuo. Na verdade, uns e ou tros têm pontas de razão. O FSM surgiu como resposta ao Fórum Econômico de Davos, na Suíça. Com o fim dos regimes comunistas, Davos ad quiriu uma espécie de autoridade plane tária para refletir e recomendar orienta
MEMÓRIA Passeata de abertura do Fórum de 2003 percorre as ruas de Porto Alegre
ções políticas e econômicas. Entretanto, sempre houve protestos contra essas ma nifestações. Um particularmente gigan tesco foi o de Seattle, em 1999. Esses pro testos levaram à criação do Fórum. Com o passar do tempo, o FSM “libertou-se” desse caráter de “resposta a Davos”, pas sando a ditar a própria agenda e o próprio caminho. Quem hoje carece de identida de é o Fórum suíço. Apesar da autonomia do FSM em rela ção a governos e partidos, não dá para se parar a escolha de Porto Alegre como sede das primeiras edições do sucesso das vá rias administrações populares na cidade. E a perda dessas gestões não deve ser descar tada como uma das causas do afastamento do FSM de seu berço. Nem se pode sepa rar esse “retorno” à Grande Porto Alegre do fato de várias atividades acontecerem em municípios administrados por gover nos de esquerda. O fator político explica também por que muitas das atenções se voltaram preferencialmente para o Fó rum Temático da Bahia. Um dos êxitos do Fórum de Belém foi a presença de cinco presidentes sul-americanos: Lula (Brasil), Hugo Chávez (Venezuela), Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e Fer nando Lugo (Paraguai). Na Índia, o Fó rum teve apoio organizacional do Partido Comunista. Por último, vale destacar que além de promover temas da agenda mundial, como os do meio ambiente e da cultura da paz, o Fórum reuniu e potenciou em escala mundial a atuação de uma “geração” muito diferenciada de intelectuais que passaram a se identificar com seu espaço: Eduardo Galeano, Susan George, Vandana Shiva, Tariq Ali, Samir Amin, Emir Sader, Ig nacio Ramonet, Hazel Anderson, Daniel Bensaïd (falecido em janeiro deste ano), Bernard Cassen, Michel Löwy, Noam Chomsky, Walden Bello, Immanuel Wal lerstein, Arundhati Roy, Leonardo Boff, entre muitos outros e muitas outras. Seja de que ângulo se olhe para ele, o século 21 nasceu com o Fórum Social Mundial em Porto Alegre, e não (espe remos) com o 11 de setembro de 2001 em Nova York. FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
5
NaRede
www.redebrasilatual.com.br
NELSON ANTOINE/FOLHA IMAGEM
Manifestação no pedágio da Castello
Emidio de Souza (PT), diz que a medida causará prejuízos à infraestrutura do município, já que suas ruas estarão na rota de quem quiser fugir do pagamento da taxa. E o governador José Serra (PSDB) classificou o entrevero como “disputa polí tico-partidária”. http://migre.me/hmnF
Licença valendo
A Receita Federal regulamentou, enfim, o Programa Empresa Cidadã, que permite a am pliação da licença-maternidade de 120 para 180 dias. A medida saiu depois de ter sido cobrada pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo. Os bancos vinham resistindo a conceder a amplia ção da licença a suas funcionárias sob a alegação de falta de regulamentação. No setor, a licença estendida é determinada pela convenção cole tiva nacional da categoria. Pela lei, as empresas não são obrigadas a aderir ao programa. As que aderem ganham em dedução de impostos. Para os bebês e mamães, o tempo maior de amamen tação resulta em mais saúde e qualidade de vida. http://migre.me/hmns
Movimento estranho O Sindicato dos Jornalistas de São Paulo divulgou nota em repúdio à in timidação sofrida durante a realização do ato em defesa do Plano Nacional dos Direitos Humanos, no dia 14 de janeiro. Na ocasião, policiais entraram no auditório lotado, com cerca de 50 entidades participantes, mas não sou beram explicar o que faziam ali. http://migre.me/hmmT 6
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Luiza Erundina
“Nem todos são iguais” A ex-prefeita de São Paulo Luiza Erundina conse guiu quitar a dívida de mais de R$ 350 mil, resultado de uma condenação judicial por defender uma gre ve em 1989. O episódio, em sua opinião, serviu para mostrar aos jovens que, na política, nem todos são iguais: “É realmente algo que não só comove, mas impressiona e nos põe em reflexão para descobrir o significado de tudo isso. Mais do que um gesto de solidariedade material, há todo um significado polí tico”. http://migre.me/hmnf
ANTONIO CRUZ/ABr
Duas praças de pedágio na pista expressa da rodovia Castello Branco fizeram o clima esquentar em Osasco. Agora, para pe gar o Rodoanel, que dá acesso a outras rodovias, os motoris tas têm antes de passar no caixa da concessionária Via Oeste. A prefeitura acionou a Justiça contra a cobrança. O prefeito,
VANDER FORNAZIERI
Por Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Thiago Domenici
Castelo de pedágios
Megafone & NaRede
“Que merda: dois lixeiros desejando felicidades... Do alto das suas vassouras... O mais baixo na escala do trabalho.” O áudio que Boris Casoy deixou escapar referindose aos que desejavam feliz 2010 a seus espectadores vai render uma ação civil pública contra o apre sentador e o Grupo Bandeirantes, informou o presidente do sindicato da categoria, Moacyr Pereira. http://migre.me/hmnX
Na Rádio Guinada à direita?
Sebastián Piñera comemora a vitória no Chile
Em entrevista ao apresentador do Jornal Brasil Atual, Oswaldo Luiz Colibri Vitta, o professor Antônio Roberto Espinosa, da Fun dação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, analisou o úl timo pleito presidencial chileno, vencido pelo direitista Sebastián Piñera. Espinosa fez um balanço do retorno da direita ao poder no Chile e da influência para a América Latina. Segundo ele, rachas e candidato sem carisma explicam o resultado na eleição. “Um go verno bem avaliado não é suficiente para que o candidato apoiado por ele seja bem votado”, alertou, em referência ao derrotado Edu ardo Frei, apoiado pela atual presidente Michelle Bachelet. Ela dei xará o governo em março com uma das maiores taxas de aprovação do mundo, 81%. Para Espinosa, o candidato de Bachelet não con seguiu empolgar a opinião pública e, sobretudo, a juventude chi lena. O professor considera o caso chileno um alerta para outros governos de esquerda da América Latina. http://migre.me/hmrf
IVAN ALVARADO/REUTERS
Mais baixo da escala
Um fotolog foi colocado à disposição do leitor da Rede Brasil Atual, ampliando o es paço de participação do público no conte údo da página. É a seção “Megafone”, para quem se manifesta e é ignorado pela mídia comercial. Proteste: envie fotografias para redebrasilatual@gmail.com com dados so bre o ato e o nome do fotógrafo. O site criou também o blog NaRede, com análises dos bastidores da política e da mídia e reper cussão de blogs parceiros. (http://migre. me/hmm4) Para saber mais, siganos tam bém no Twitter: http://www.twitter.com/ redebrasilatual
O Jornal Brasil Atual é sintonizado de segunda a sexta, das 7h às 8h, nos 97,3 FM (para a Grande São Paulo), ou a qualquer momento na internet, em www.redebrasilatual.com.br/radio
A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
7
MUNDO
D
e tão traumáticas e devastado ras, certas experiências esca pam à razão. A perplexidade do encontro com o que existe para o “além-razão” está sem pre presente no olhar e nas narrativas dos personagens das grandes tragédias, como esta que já se credenciou entre as maiores do século 21: no dia 12 de janeiro de 2009, a natureza condensou energia equivalente à explosão de 25 bombas atômicas em um único minuto, liberando-a de uma só vez em Porto Príncipe. Foi o suficiente para fa zer a terra tremer sob os 2 milhões de habi tantes da capital do Haiti. Nas ruas, sobrevi ventes à deriva tentavam reconectar-se com alguma referência estável depois que as de concreto e ferro vergaram e caíram. Sobrou o apelo, “Jesu... Mon Dieu”, evocado insis tentemente por cânticos religiosos em bus ca catatônica de uma resposta: “Pourquoi, mon Dieu, pourquoi, mon Dieu? Não foi só em Porto Príncipe que a capa cidade de expressão secou diante da catás trofe. Jornais importantes do mundo todo aumentaram o corpo de seus títulos na ten tativa de compensar a fragilidade das pala vras para relatar o indescritível. No Brasil, quem chegou mais perto do sentimento di fuso de impotência e dor foi O Globo. Na edição do dia 14, o diário conservador es tampou uma única palavra em letras gar rafais: “Desespero”. Não se esforçou para explicar a origem desse sentimento. E tal vez nunca possa fazê-lo com rigor. Quan do a poeira baixou, outro furacão passou a repartir a responsabilidade pelo desalento
POURQUOI, dos haitianos e a perplexidade da humani dade: o furacão da história. A ausência do Estado nas ruas de Porto Príncipe causava tanto desconcerto quanto a exposição de corpos insepultos e a pro cissão dos sobreviventes sem destino. Sem estrutura estatal, sem funcionalismo públi co capacitado, sem planos de emergência nem estoques de segurança de alimentos ou remédios, com uma carga fiscal de ape nas 12% do PIB, que soa como música nos
8
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
O Haiti é uma expressão doentia de tudo o que o neoliberalismo idealizou: Estado mínimo, governo fraco, sociedade descarnada de máquina pública, economia sem planos de desenvolvimento e agricultura destruída pelo livre mercado Por Saul Leblon
MARCELLO CASAL JR /ABR
DOR SEM FIM Menina ferida acompanha o pai na fila de distribuição de alimentos
A menos de 80 quilômetros do Haiti, ou tra pequena ilha do Caribe, Cuba, igual mente pobre e suscetível à fúria de furacões e tufões, sugere que não se pode transferir apenas à geografia certas calamidades cuja explicação só se completa na investigação da história. Mas o grande divisor de águas em relação à trajetória cubana ocorreu nos anos 1950. Enquanto Cuba, em 1959, derrubava o ditador corrupto Fulgêncio Batista, o Haiti ingressava numa longa e tenebrosa noite de submissão a um poder sanguinário coman dado por François Duvalier, o Papa Doc, sucedido pelo filho Baby Doc, até 1986. A sustentá-los a violência impiedosa de uma polícia secreta apropriadamente conhecida como Tonton Macoute, o bicho-papão, que matou no Haiti tanto quanto Pinochet no Chile, cerca de 30 mil opositores. Quando a democracia fez seu frágil des pertar no país, nos anos 1990, o mundo rezava pela cartilha do pensamento úni co neoliberal. O credo, apoiado no tripé de abertura de mercados, Estado mínimo e privatização das empresas estatais, reafir mou a trajetória de uma sociedade exau rida em direção ao abismo. O presidente, René Préval, que substituiu Jean Bertrand Aristide, eleito e derrubado duas vezes, não afrontou o dogma. Em 2007, a exemplo de seu antecessor, retomou um programa de privatizações das poucas empresas públicas existentes, a Companhia Nacional de Tele comunicações foi a primeira a ser vendida. Cerco implacável, igual ou pior que o desfechado pelos europeus contra o Haiti no século 19, condiciona a história de Cuba.
MON DIEU? ouvidos dos colunistas conservadores d’O Globo, o Haiti, a rigor, já não era um país antes de 12 de janeiro. A partir de então acentuou a condição de uma ilha de des terrados em seu próprio país.
Asfixia
O pecado original do Haiti foi o pionei rismo na luta contra a escravidão, abolida em 1804, poucos anos depois da Revolução Francesa, seguido da proclamação da pri
meira república negra do planeta. As po tências coloniais jamais perdoaram o mau exemplo do líder negro Toussaint Louver ture. A jovem nação caribenha foi cerca da e asfixiada, sobretudo para aniquilar seu internacionalismo libertário, que incluía o apoio a rebeliões em outras colônias e o abrigo a escravos fugidos e alforriados. Ao cerco da ordem colonial sucedeu-se a ocu pação norte-americana (leia artigo de Mauro Santayana, à página 14).
Há meio século Havana sofre os rigores do embargo econômico norte-americano. O torniquete inclui represálias contra países e empresas que mantenham negócios com a ilha. Tentativas de assassinato de lideran ças e dirigentes cubanos reforçam um clima de sabotagem permanente, potencializado pela intensa propaganda norte-americana contra o regime. A diferença com a repú blica negra de Toussaint Louverture é que a revolução cubana ao ser encurralada, nos FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
9
anos 1960, recorreu a um modelo de desen volvimento fortemente centralizado. Sec cionada da economia mundial por pressão dos EUA, Cuba se socorreu no planejamen to, na estatização dos serviços básicos e na socialização de amplos setores produtivos, inclusive a agricultura. A história dos países subdesenvolvidos não deixa espaço para comparações entre céu e inferno. Cuba e Haiti são duas ilhas do imenso purgatório do subdesenvolvimen to. Ainda assim, certas diferenças merecem ser observadas, sobretudo quando se discu te o passo seguinte da história, a reconstru ção do Haiti. Para os 9 milhões de haitianos, a história tem sido uma sucessão de terremotos so ciais que sedimentaram nessa ilha do Ca ribe a maior taxa de pobreza da América e uma das piores do planeta, 70% da popula ção está abaixo da linha da pobreza e 52% são analfabetos. O contraste com a socieda de cubana, também pobre, enseja profunda reflexão sobre as opções a serem feitas no Haiti de agora em diante. A renda per capita em Cuba é quase seis vezes superior à do Haiti. Água potável, saneamento básico e energia elétrica es tão disponíveis para 95% dos cubanos. A taxa de analfabetismo é praticamente zero e qualquer criança cubana tem acesso a edu cação gratuita e de qualidade, da alfabetiza ção à universidade. Um em cada sete traba lhadores cubanos tem nível superior; 28% dos seus professores têm título de doutor. O acesso à cultura inclui preços simbólicos de ingresso para 800 salas de cinema, 276 museus, 131 galerias de arte. Cuba tem um médico para cada 168 habitantes e o melhor acompanhamento de saúde da família do mundo: um médico para cada 120 famílias (no Haiti existe um médico para cada 10 mil habitantes). O cubano faz em média sete consultas de saúde por ano, incluindo tra tamento dentário. As crianças têm 12 exa mes obrigatórios. A mortalidade infantil é inferior à dos EUA. No Haiti, antes do ter remoto, já existiam 3,8 milhões de crianças subnutridas – e a mortalidade infantil era mais de dez vezes superior à cubana. Em 2009, o Unicef declarou Cuba o úni co país da América Latina e Caribe livre da desnutrição infantil. Uma simbiose trágica entre fome e regressão agrícola explicam parte considerável das disparidades em re
10
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
HO NEW/REUTERS
Terremotos sociais
INCALCULÁVEL Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram. Podem ser mais de 200 mil
CARLOS BARRIA/REUTERS MARCELLO CASAL JR/ABR
SOBREVIDA Haitianos se abrigam em acampamentos sem saneamento
OPERAÇÃO DE GUERRA Militares brasileiros organizam a distribuição de água e comida
lação à outra ilha caribenha, que nos anos 1950 chegou a exportar excedentes agríco las e hoje importa até banana. As imagens aéreas do terremoto são lancinantes. Mas não menos trágicas são as imagens ocultas da destruição da agricultura familiar pro movida no Haiti nas últimas décadas. Desde os anos 1980 os EUA coagiram o Haiti e outros países pobres a suspender po líticas de apoio à agricultura familiar. A jus tificativa era a capacidade de abastecimen to dos livres mercados globais (leia-se, das exportações norte-americanas) a um custo supostamente inferior ao incentivo à pro dução local. A lógica aparentemente in contestável agravou a vulnerabilidade de produção e abastecimento em muitos paí ses. Um caso especialmente dramático foi o desmonte da lavoura de arroz – produto em que o país foi praticamente autossufi ciente há três décadas. Em 1986, porém, o FMI fez um emprés timo de US$ 24,6 milhões ao país para re compor os cofres públicos dilapidados por Baby Doc. Em troca, exigiu a eliminação de tarifas que protegiam os rizicultores locais, abrindo o mercado à “eficiência da concor rência mundial”. Foi assim que o Haiti so freu o terremoto do arroz norte-americano, mais barato, que destruiu uma das mais só lidas bases da economia camponesa local. Em pouco tempo, a produção haitiana desmoronou; arrozeiros abandonaram a terra em fuga para favelas como Cité So leil, inchando uma capital incapaz de in corporá-los dignamente. E o país se trans formou no terceiro maior importador de arroz dos EUA. Em 2008 e 2009, quando a alta nos preços internacionais tornou as importações de alimentos proibitivas, a ri zicultura haitiana já não existia. O terremoto da fome explodiu nas ruas de Porto Príncipe. Quem não se lembra dos bolinhos de lama e sal vendidos nas ruas da cidade para enganar uma fome ances tral turbinada pela escassez absoluta? Far tamente documentado por jornais e TVs de todo o mundo, o sensacionalismo da cober tura, porém, a exemplo das manchetes gar rafais de agora, não elucidava a verdadeira história por trás da tragédia. Entre 2007 e 2009, o total de famintos no planeta saltou de 860 milhões para 1,1 bilhão, segundo a FAO. São números que ecoam um terremo to silencioso, não mensurável pela escala Richter, mas que continua fazendo tremer a vida no planeta. FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
11
MARCELLO CASAL JR/ABR
“Precisamos de ajuda aqui”
Senegal propõe retorno à África O presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, propôs o “retorno” dos haitianos à África. A ideia remete a teses do movimento rastafári, ao considerar possível que deixem o sofrimento caribenho para ocupar um território que, promete, será fértil, e com similaridades com o caso de Israel. A proposta de Wade prevê a criação de um novo país para abrigar os haitianos que desejem mudar de continente. “Os haitianos estão lá devido à escravidão, cinco séculos de escravidão”, disse o presidente. “Eles têm tantos direitos na África quanto eu tenho.” A tese do senegalês tem um fundo histórico que remete ao surgimento das ideias panafricanas. O jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) foi o primeiro a dar força ao sentido de retorno ao continente africano. No fim da década de 1920, defendeu a ideia de que quando um negro fosse coroado rei de uma nação
12
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
africana teria início a época de redenção. Em novembro de 1930, subia ao trono da Etiópia Tafari Makonnen, neto de uma princesa da dinastia que se proclamava descendente da rainha de Sabá e do rei Salomão de Israel. Ras Tafari (rei Tafari) logo foi proclamado Hailé Selassié (Nova Flor), Senhor dos Senhores, Leão Conquistador da Tribo de Judá, Eleito de Deus. Do outro lado do oceano, admiradores de Marcus Garvey não tardaram em ver que aquele era o cumpridor da profecia. Em 1935, o exército de Benito Mussolini invadiu a Etiópia e Hailé Selassié, que conduzia uma tentativa de modernização do país, foi à Liga das Nações pedir que interviesse no caso. A resposta foi negativa. Depois de um ano de exílio em Londres, ele conseguiu o apoio do britânico Winston Churchill para expulsar os italianos. O sucesso da operação fez Selassié fundar uma federação etíope para recompensar todos
aqueles que haviam colaborado com a causa. A primeira unidade da instituição foi aberta na Jamaica, e de lá muitas pessoas viajaram para a Etiópia, que então já tinha uma aura de terra prometida, embora o próprio imperador rejeitasse o rótulo. Nas décadas seguintes, o movimento rastafári surgido na Jamaica tornou-se conhecido internacionalmente graças ao reggae. Várias músicas de Bob Marley são trechos de discursos de Selassié ou reflexões sobre o rastafarismo, como War e Africa United. Danilo Rabelo, professor da Universidade Federal de Goiás e autor da tese de doutorado “Rastafári: identidade e hibridismo cultural na Jamaica, 1930-1981”, explica que Marley foi fundamental para o aparecimento de novos integrantes do movimento ao redor do mundo. Sidney Rocha, diretor da Associação Cultural Nova Flor, considera importante que um país
africano, no caso o Senegal, se abra para receber “os irmãos da diáspora”. Diáspora é um termo fortalecido pelos seguidores de Garvey e que conecta os rastafáris diretamente aos nascidos em Israel. Os “filhos espalhados de Israel”, portanto, deveriam retornar à sua Terra Prometida. “Mas a Terra Prometida não está só na questão física. Está principalmente na consciência de cada um, de construir, onde quer que estejamos, uma sociedade justa e igualitária”, acredita. “Creio que é uma boa oportunidade para fazer uma reparação de condenação à escravatura, fazer esforços para criar na África, junto com os africanos, um espaço a ser determinado pelos haitianos, com as condições que lhes permitam regressar”, diz o presidente do Senegal. Leia reportagem completa de João Peres na página da Rede Brasil Atual. http://migre.me/hJnH
Crianças do GRAACC na luta contra o câncer infantil.
Joe. Cão terapeuta
SEJA UM SÓCIO MANTENEDOR MENSAL DO GRAACC. O GRAACC sempre soube onde quer chegar: na cura do câncer infanto-juvenil. E foi essa imensa vontade que gerou um hospital que hoje alcança índices de cura comparáveis aos melhores centros médicos do mundo. São mais de 18 anos combatendo e vencendo o câncer infantil com qualidade de vida. Durante esse tempo nasceram a quimioteca, a brinquedoteca, o centro de transplante de medula óssea, além de toda assistência necessária para as crianças e suas famílias. Mas o caminho é longo e o GRAACC precisa avançar ainda mais. Se você abraçar a nossa causa, nós iremos ainda mais longe. É MUITO FÁCIL, BASTA ACESSAR O SITE WWW.GRAACC.ORG.BR, E-MAIL GRAACC@GRAACC.ORG.BR OU TELEFONE (11) 5908-9100.
PontodeVista
Por Mauro Santayana
Anatomia da infâmia A única esperança é que todos os povos do mundo, tocados pelas imagens de espanto de Porto Príncipe, se unam para a real emancipação humana do povo do Haiti
O
Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980
14
general da reserva norte-americano Rus Em 1697, os espanhóis cederam à França um terço sel Honoré, que participou das operações da ilha, onde hoje se encontra o Haiti. Os franceses in de socorro a Nova Orleans, depois do tensificaram a exploração do território, aumentando furacão Katrina, e se encontra em Por o número de escravos e retirando o máximo de lucros to Príncipe, resumiu a tragédia em um das plantações dos engenhos. Em 1789, quando se ini comentário seco: “As pessoas têm medo dos pobres”. A ciou a Revolução Francesa, os negros do Haiti acre pobreza do Haiti foi construída nos últimos 500 anos, ditaram em sua redenção. A Declaração dos Direitos para que se acumulasse a riqueza dos colonizadores – do Homem e do Cidadão e o anúncio da abolição da daquele tempo e dos tempos recentes. É assim a his escravatura nas colônias francesas os estimularam ao tória do mais sofrido povo da América. A descoberta movimento pela independência. O primeiro de seus da América e sua ocupação pelos europeus iniciaram líderes, que se alçou no início de 1790, Vincent Ogé, a Idade Moderna. Sem o aumento da circulação mone foi capturado, torturado e executado pelas autorida tária, graças ao ouro e à prata da América des francesas da colônia. Latina, e sem os novos espaços do hemis A primeira Toussaint Louverture retomou a cam fério ocidental, seria difícil, se não impos terra panha pela independência e conseguiu sível, o homem atual. vencer, em 1802, as tropas napoleônicas. americana A crônica da conquista e do povoamento Os franceses o chamaram a Paris, para a ser pisada dos territórios americanos pelos europeus a reconciliação política, e o detiveram. é de continuada brutalidade. A primeira por Colombo Louverture nunca mais voltou ao Haiti. terra americana a ser pisada por Colombo foi a ilha Em 1804, Jean-Jacques Dessalines ven foi a ilha Quisqueya (na língua nativa dos batizada de ceu as tropas estrangeiras e declarou a tainos), que os conquistadores batizaram La Española, independência. de La Española, hoje dividida entre a Re hoje dividida A independência não significou nada pública Dominicana e o Haiti. para a imensa maioria do povo haitiano, entre a O primeiro governador-geral de La Es que passou a ser explorado pelos mulatos pañola, Nicolas de Ovando, foi um dos República nacionais e brancos estrangeiros. Os nor mais cruéis delegados do poder real, agin Dominicana te-americanos, logo que puderam, substi do com tanta brutalidade contra os índios e o Haiti tuíram os franceses. Em 1915, ocuparam tainos que a própria metrópole o destituiu militarmente o país, alegando razões hu do cargo. Ovando chegou à ilha em 1502, tendo como manitárias, mas com o objetivo de garantir seus inves principal assessor o jovem Bartolomeu de las Casas, timentos. Em 1934, Roosevelt, em sua política “de boa que se tornaria frade dominicano. Las Casas, que a His vizinhança”, retirou as tropas, mas continuou monito tória registra como defensor dos indígenas (depois de rando as finanças do Haiti. tê-los como escravos), sentindo a dificuldade de sua Diante do sofrimento do povo daquele país, que o “domesticação”, aconselhou Ovando a importar escra terremoto só agravou, para mostrar ao mundo a tra vos da África – os primeiros chegaram dez anos depois gédia do colonialismo, é de esperar o pior. A única es de Colombo. Assim começou a história da escravidão perança é que todos os povos do mundo, tocados pelas na América, e a do povo mais desgraçado do continen duras imagens de espanto que chegam de Porto Prínci te, os negros do Haiti. pe, se unam para a real emancipação humana do povo Como no Brasil e nas outras ilhas do Caribe, os ne do Haiti, explorado por uma minoria – de brancos, ne gros foram usados no cultivo da cana-de-açúcar, então gros e mulatos –, a mais infame das elites da América. a mais cara das mercadorias, a primeira das commo É necessário ouvir a voz do poeta turco Nazim Hikmet: dities. A ela se uniriam, em seguida, o fumo da Virgí “Se eu não ardo em chamas, se não ardes em chamas, nia, o cacau da América Central e o café do Iêmen e se não ardemos em chamas, como querer que as tre da Etiópia. vas se dissipem?”
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
TRABALHO
Crime amar Gigante do setor sucroalcooleiro, Cosan viu desabar preço de suas ações por uso do trabalho escravo. Empresa responsabiliza terceirizada por irregularidades e consegue liminar para sair da “lista suja” Por Maurício Hashizume
16
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
RENATO ALVES/MTE
A
Cosan S.A. – Indústria e Co mércio é uma das maiores companhias do setor de açú car e álcool do mundo. Possui, ao todo, 23 usinas (21 em SP e duas em construção, uma em GO e outra no MS), quatro refinarias e dois terminais portuários. É dona dos postos Esso de com bustíveis e detentora das marcas de açúcar União e Da Barra. O grupo faturou cerca de R$ 14 bilhões em 2008. No período da safra da cana-de-açúcar, chega a empregar 43 mil pessoas. A “lista suja” é o cadastro de empregado res envolvidos em flagrantes de trabalho es cravo, instituído pela Portaria nº 540/04 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A Cosan foi inserida na atualização semes tral da “lista suja”, em 31 de dezembro de 2009, por causa de uma fiscalização que li bertou 42 trabalhadores da Usina Junquei ra, em Igarapava (SP), em junho de 2007. Incorporada pela Cosan em 2002, a Usina Junqueira tem capacidade para moer 16 mil toneladas de cana por dia, que podem ren
PEDÁGIO A promessa de emprego motivou o deslocamento das pessoas. A viagem foi cobrada antecipadamente, R$ 210 de cada um. Até ferramentas de trabalho tinham custo
der até 24 mil sacas de açúcar e 900 metros cúbicos de etanol. O boletim da manhã do dia 8 de janeiro de um site de informação especializada em ações e bolsas de valores não deixava dú vidas: “Cosan desaba após entrar em ‘lista suja’ ”. Os golpes mais duros sofridos pela companhia – e que influíram para a que da de seus ativos – vieram, porém, de dois anúncios anteriores. Primeiro, o Banco Na cional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) bloqueou operações com o tradicional grupo sucroalcooleiro, em cará ter preventivo. “A celebração de novos con tratos com o BNDES fica condicionada à exclusão da companhia do referido cadas tro”, informou, em nota, a instituição es tatal. Na data do anúncio, 7 de janeiro, as ações da Cosan caíram 5,32% na Bovespa e 3,46% na Bolsa de Nova York. No dia seguinte, veio o comunicado da rede varejista Walmart. Uma das signatá rias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – que reúne mais de 200 empresas e associações comprometidas em restringir relações comerciais com empre
Caracterização
Declarações do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, resumem bem os dois argumentos centrais apresentados pela Co san contra a inclusão no cadastro oficial. De acordo com ele, a atitude do MTE teria sido um “exagero”, pois a situação não era tão grave a ponto de ser caracterizada como
trabalho escravo, e um “erro”, já que as ir regularidades eram de responsabilidade de um empregador terceirizado. Essas foram, aliás, as justificativas apre sentadas pelo juiz Raul Gualberto na limi nar favorável à Cosan. Para ele, os autos de infração relativos ao caso (entre eles: limi tar, por qualquer forma, a liberdade do em pregado de dispor de seu salário; admitir ou manter empregado sem o respectivo re gistro em livro, ficha ou sistema eletrônico competente; e manter empregado com ida de inferior a 18 anos em atividade nos lo cais e serviços insalubres ou perigosos) são insuficientes para a “tipificação da redução à condição análoga à de escravo”. A avaliação da procuradora do Ministé rio Público do Trabalho Carina Rodrigues Bicalho, que participou da operação de fis calização na Usina Junqueira, não coincide com a do juiz. Ela enumera constatações que considera suficientes para a configu ração do trabalho escravo contemporâneo: aliciamento de mão de obra, submissão a sistema de endividamento e condições de gradantes e desumanas nas frentes de tra balho (alimentação, transporte etc.) e nos alojamentos. Relatos colhidos pelo grupo móvel res ponsável pela ação respaldam a ocorrên cia de aliciamento. Um preposto da suposta empresa terceirizada, José Luiz Bispo Co lheita ME, arregimentou mão de obra em Araripina (PE). De lá, mobilizou transporte irregular – sem a Certidão Declaratória exi gida pelo MTE – até Delta (MG), na divisa entre São Paulo e Minas, próximo a Igara RESPONSABILIDADE Usina Junqueira, em Igarapava (SP): Cosan culpa a terceirização
IBERÊ THENÓRIO/REPÓRTER BRASIL
argo
gadores envolvidos em casos de escravi dão –, a rede anunciou a suspensão tempo rária de compras dos produtos da parceira comercial após sua inclusão no “clube” de maus empregadores. Pressionada pelos desdobramentos, a Cosan correu à Justiça e conseguiu limi nar para a retirada de seu nome da “lista suja” ainda em 8 de janeiro. A decisão foi expedida pelo juiz substituto Raul Gualber to Fernandes Kasper de Amorim, do Tri bunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10), em Brasília (DF). Na segundafeira (11) seguinte, BNDES e Walmart co municaram a reativação dos negócios com a Cosan. O abalo na reputação da gigante dos ca naviais é apenas uma pequena prova do ta manho da desvalorização de uma marca e do constrangimento que o envolvimento em casos graves de impactos sociais, como o de trabalho escravo, poderão causar da qui para a frente. O próprio caso da Cosan ainda não se encerrou com a liminar. A Ad vocacia-Geral da União (AGU) recorreu e a questão pode ser revertida para o retorno da companhia sucroalcooleira à (cada vez mais temida) “lista suja”.
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
17
18
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
RENATO ALVES/MTE
pava (SP). A promessa de emprego em usi na da Cosan motivou o deslocamento das pessoas. A viagem foi cobrada antecipada mente (R$ 210) de cada um. As vítimas con taram que, no momento da abordagem ini cial, não foram informadas de que teriam de arcar com aluguel, comida e ferramen tas de trabalho. Quando chegaram ao precário “Aloja mento do Guri”, em Delta, as vítimas se viram obrigadas a pagar pela estadia. Ali mentos e itens essenciais (chapéu de pro teção contra o sol, marmita para refeições e garrafa térmica para levar água) adquiri dos nos supermercados do Carlinhos e do Juarez, indicados por intermediários, eram contabilizados como dívidas e descontados dos salários. A maior parte do grupo co meçou a trabalhar em maio de 2007 e a fis calização recolheu “vales” correspondentes aos produtos contabilizados no sistema de dívidas. No comunicado divulgado sobre o caso, a Cosan manifesta “repúdio veemente” contra “qualquer prática que não respeite os direitos trabalhistas de colaboradores do seu quadro de empregados e dos quadros de seus fornecedores e parceiros”. Entre os libertados da Usina Junqueira, entretanto, havia um jovem de 17 anos trabalhando no corte de cana, atividade proibida para quem não tem 18 anos completos. Durante a inspeção do “Alojamento do Guri”, foram constatadas outras irregulari dades, como excesso de pessoas (algumas com a família), alimentos dispostos no chão (próximos a equipamentos de prote ção individual e ferramentas sujas), peda ços de carne pendurados em varais pelos cômodos, instalações sanitárias sem con dições de uso e fiação elétrica totalmente inadequada. Havia ainda problemas graves nas frentes de trabalho, como ausência de água potável e transporte irregular. A água que os traba lhadores levavam para beber era retirada diretamente das torneiras do “Alojamento do Guri”, sem passar por filtragem ou pu rificação. Sem documentação regular e em péssimo estado de conservação, o ônibus que levava o grupo estava sem freio e foi apreendido pela fiscalização. Carina Bicalho relata que representantes da Cosan concordaram em providenciar o retorno dos trabalhadores para Pernambu co e em pagar dois tipos de indenização: por danos materiais e “pela situação verifica
SELVA Trabalhadores sem luvas, botas ou água limpa para beber não são cena rara
da” (de R$ 800 para cada trabalhador). “Na prática, essa última indenização foi paga a título de danos morais individuais”, expli ca a procuradora do ministério. Para ela, a empresa não teria por que aceitar esse de sembolso extra se o quadro fosse apenas de meras irregularidades trabalhistas.
Terceirização
A liminar que livrou a Cosan também referenda a tese de que “as irregularidades que apontariam a configuração do traba lho escravo indicam sua prática por outra pessoa jurídica (José Bispo Colheita ME), não pela impetrante (Cosan)”. Tal posição é reforçada pela própria Cosan. “A empresa José Luiz Bispo Colheita ME prestava ser viços de corte de cana-de-açúcar para di
versos produtores do interior do Estado de São Paulo que faziam parte da cadeia pro dutiva da Cosan”, sustenta a nota divulgada pela empresa. “O evento que envolveu a empresa José Luiz Bispo Colheita ME não contou com a cooperação ou concordância da Cosan”, emenda o grupo, reafirmando que se viu “envolvido como responsável solidário por tais irregularidades” e providenciou o “des credenciamento” da prestadora de serviços terceirizada. A Cosan não chega nem a citar, porém, que já havia assinado Termo de Ajustamen to de Conduta (TAC) com a Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT15) – sob o nº 2803/2006, em março de 2007 (três meses antes da fiscalização). O
TAC trata da contratação de terceirizados na Usina Junqueira e em outras 16 manti das pelo grupo no interior paulista à época do acordo. Este define limites (20% na sa fra de 2007; 15% na safra de 2008; 10% na safra de 2009; e redução a zero na safra de 2010), além de estabelecer condições para a contratação de prestadoras para o corte manual da cana. No referido TAC, a Cosan se compro mete a contratar somente empresas ter ceirizadas “regularmente constituídas e financeiramente idôneas, assegurando ao trabalhador (da contratada) condições análogas às dispensadas aos empregados próprios”. À fiscalização, o próprio José Luiz Bispo, dono da José Bispo Colheita ME, confirmou que sua empresa não era dotada de capacidade financeira.
Algumas evidências saltaram aos olhos da inspeção. A remuneração dos trabalha dores (R$ 2,44 por tonelada de cana der rubada) era paga com o dinheiro que a própria Cosan depositava para o interme diário, que recebia valor equivalente a 135% da produção dos cortadores. Funcionários da Usina Junqueira acompanhavam as em preitadas. Além disso, José Bispo declarou que possuía apenas uma casa popular e um Ford Pampa 1986 sem seguro que, após aci dente que resultou na perda total do veícu lo, virou sucata. “Não era um problema de terceirizado, de fornecedor”, sustenta, categoricamen te, a procuradora. Para Carina, José Luiz atuava na prática como “gato” (aliciador) da Cosan e a empresa intermediária (José Bis po Colheita ME) não era “financeiramente
idônea” para ser aceita como terceirizada. Portanto, a relação dos cortadores de cana com a empresa maior seria bem mais direta. Em artigo sobre o caso Cosan, o juiz Jorge Souto Maior, da 3ª Vara do Trabalho de Jun diaí (SP) e professor da Faculdade de Di reito da Universidade de São Paulo, critica a atribuição de toda a culpa à empresa ter ceirizada. Segundo o magistrado, “de tudo o que restou foi a certeza de que todo o mal foi promovido, unicamente, pela empresa terceirizada”. Ele completa: “E, ampliandose a lógica da perversão da realidade, é até provável que se venha a dizer que os ver dadeiros culpados pela situação foram os próprios trabalhadores, que aceitaram tra balhar nas condições que lhes foram ofe recidas. Se não tivessem aceitado, nenhum problema teria ocorrido...”
GERARDO LAZZARI
Mercado salgado
NAS MÃOS DOS USINEIROS Na Região Sudeste, a maior produtora de cana do país, o açúcar refinado teve alta de 50,39% em um ano De acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica, realizada mensalmente pelo Dieese, o custo da cesta teve redução em 2009. No entanto, alguns gêneros alimentícios de primeira necessidade não seguiram a tendência, e o açúcar é um deles. Na Região Sudeste, a maior produtora de cana do país, o açúcar refinado teve alta de 50,39% em um ano. O Dieese afirma que a queda da produção na Índia, por conta das condições climáticas, elevou o preço no
mercado internacional – e o Brasil é um grande exportador do produto. O setor alega, porém, que as fortes chuvas da região reduziram o nível de sacarose, o que influenciou a alta dos preços. Mesmo assim, segundo a pesquisa, as usinas implementaram a produção do açúcar em detrimento do álcool, devido ao preço mais atraente. Com isso, também o etanol é outro item cujo preço disparou para o consumidor. A Agência Nacional de Petróleo,
Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) constatou que o álcool combustível ficou 14% mais caro em 2009. De acordo com a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), a principal causa dessa apreciação foi o clima desfavorável, que prejudicou a colheita. Em comunicado, a entidade nega que a opção de algumas usinas de aumentar a produção de açúcar tenha sido determinante para a redução da oferta de etanol. Mas para José
Alberto Paiva, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de São Paulo, o mercado apenas optou pelo negócio mais vantajoso. “Se o açúcar estava dando mais preço, o usineiro focou nele. Produziu etanol suficiente apenas para abastecer o mercado, mas com zero de estoque, e com a cana excedente foi buscar fazer açúcar para exportar. E aí é lei de mercado. Estoques altos, preços baixos. Estoque baixo, preço alto”, finaliza. FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
19
AMÉRICA LATINA
Integração, pero no mucho
Apesar de terem favorecido processos de integração, as afinidades ideológicas entre os governos sul-americanos não foram capazes de acabar com rusgas diplomáticas, econômicas e militares bilaterais entre vizinhos Por Tadeu Breda
A
Venezuela tem problemas com a Colômbia, que tam bém não agrada ao Equador. Equador e Venezuela, porém, são bons amigos. O Uruguai está de mal com a Argentina, mas só com a Argentina. O Peru não vê o Chile com bons olhos, mas compartilha opiniões políticas com a Colômbia. A Bolívia mantém grande afinidade com Venezuela e Equador, e pou co a pouco ia resolvendo diferenças com o Chile, enquanto a presidente era Michelle Bachelet. O Brasil não tem nenhum inimi go declarado na vizinhança, porém negocia em silêncio reclamações de Bolívia, Equa dor e Paraguai. Eis o panorama geral das relações bila terais na América do Sul, que mais pare cem fofoca de condomínio, mas são fruto do fenômeno político iniciado com a vitó ria eleitoral de Hugo Chávez, em 1998. A opção por candidatos de origem popular ou inspiração socialista em quase todo o continente tem agilizado os processos de integração. Recentemente saíram do papel projetos como o Banco do Sul e o Conselho de Defesa do Sul, a União de Nações Sul 20
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Americanas (Unasul) se fortaleceu e estão em gestação mecanismos financeiros para reduzir a dependência regional de dólares. Entretanto, as afinidades ideológicas pa recem não ser suficientes para concretizar o sonho de Simón Bolívar, e a consolidação da “pátria grande” tem esbarrado em di vergências estratégicas que frequentemen te colocam países vizinhos em lados opos tos da arena diplomática. O entrevero mais antigo é o que contra põe argentinos e uruguaios devido à insta lação de uma usina de celulose às margens do rio Uruguai. Em 2007, a companhia fin landesa Botnia começou a operar no muni cípio de Fray Bentos, ligado por uma ponte à localidade de Gualeguaychú, na Argenti na. Os gualeguaychulenhos acreditam que o processamento da celulose vai poluir as águas do rio que serve a ambos os países. Por isso, são contrários ao funcionamento do complexo industrial. De olho nos em pregos trazidos pela transnacional, os uru guaios negam qualquer tipo de risco de contaminação. As chancelarias de Montevidéu e Bue nos Aires entraram na briga quando al
guns movimentos socioambientais e sin dicatos argentinos resolveram bloquear a ponte que conecta os dois países. O cami nho já leva três anos fechado e a disputa foi parar no Tribunal Internacional de Haia, na Holanda. O governo argentino diz que os uruguaios violaram um acordo sobre a utilização das margens do rio e pede que a fábrica da Botnia seja removida para um lugar onde não ofereça riscos às águas bi nacionais. A corte dará seu veredicto sobre a contenda em março.
Feridas abertas
Outro desacordo diplomático que foi parar na arbitragem internacional diz res peito aos limites marítimos do Chile, que em tese estariam violando milhas oceâni cas que pertencem ao Peru. O presidente Alan García quer modificar os termos de um acordo assinado entre Lima e Santia go na esteira da Guerra do Pacífico (1879 1883). O tratado define a extensão territo rial soberana de cada um sobre o mar. O governo peruano acredita que saiu preju dicado na assinatura do documento e pre tende revertêlo, também em Haia.
“O Peru quer aumentar em mais de um terço seu domínio marítimoeconô mico, passando a ter mais acesso a recur sos pesqueiros”, explica Guillermo Holz mann, analista político da Universidade do Chile. “Ao conduzir a questão a Haia, o Peru tem um objetivo estratégico, do qual deriva outro, de cunho histórico, que tem maior impacto na opinião pública.”
A presidenta Michelle Bachelet levou a mal o recurso movido por Alan García e decidiu congelar as relações políticas com o vizinho. Contudo, conservou o diálogo diplo mático e, para não prejudicar os inves timentos chilenos no Peru, manteve in tactos os laços financeiros. Mas a complicada relação se agravou quando foi descoberto um caso de espio nagem chilena na força aérea peruana. O pivô da crise é o suboficial Víctor Ariza, que teria sido recrutado há sete anos pelo servi ço secreto de Santiago para repassar infor mações confidenciais sobre os planos mili tares do vizinho. Bachelet negou qualquer relação com o episódio e garantiu que iria apurar a acusação junto às Forças Arma das. “A resposta chilena é positiva e alivia a tensão”, diz o chanceler peruano José An tonio Balaunde. “Falta que nos informem sobre o resultado das investigações. Espera mos uma resposta antes de março, quando muda o governo no Chile.” Outra coisa que incomoda o Peru é o ar mamentismo chileno: “Não entendemos
por que o Chile gasta tanto em armas e por que essas armas apontam para o Peru”, questiona Balaunde. A preocupação é ta manha que Alan García acaba de propor um acordo para reduzir a militarização dentro da Unasul. O plano também esta belece pactos de não agressão e resolução pacífica de conflitos entre os países do blo co. É um recado para o Chile, mas não só. Quem lidera o processo de moderniza ção militar na América do Sul é o Brasil. O acordo assinado pelo presidente Lula com a França deve equipar o país com tanques, helicópteros, submarinos – um deles com propulsão nuclear – e talvez caças Rafale de última geração. Se as compras se concreti zarem, o Brasil gastará R$ 30 bilhões para equipar suas Forças Armadas e defender os recursos naturais da Amazônia e do présal. A Venezuela também chama a atenção quando o assunto é rearmamento. Hugo Chávez argumenta que precisa se defender. Primeiro porque tem na bacia do rio Ori noco uma das maiores reservas petrolíferas do mundo. Depois, porque os Estados Uni dos assinaram um acordo com a Colômbia que permite a instalação de soldados e ar mamentos em sete bases espalhadas pelo país. Álvaro Uribe também tem problemas com o Equador desde que, em março de 2008, decidiu violar o território equato riano para eliminar um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Co lômbia (Farc) camuflado do lado de lá da fronteira. Ao tomar conhecimento do epi sódio, o presidente Rafael Correa cortou re lações com Bogotá. “Os conflitos diplomáticos criam uma cultura em que a opinião pública não en contra razões para se mobilizar a favor da integração”, observa Tullo Vigevani, pes quisador do Instituto de Estudos Econômi cos e Internacionais. “A maior dificuldade para a integração, porém, está nos sistemas econômicos e na estrutura social das na ções sulamericanas. Por exemplo, todos os países são produtores de bens agrícolas. Portanto, não há complementaridade eco nômica”, observa. “Para que exista uma in tegração efetiva, os países vizinhos devem ser também os primeiros sócios comer ciais uns dos outros”, comenta Guillaume Long, da Faculdade LatinoAmericana de Ciências Sociais (Flacso), em Quito. “Mas na América Latina o principal parceiro co mercial dos países são os Estados Unidos.” E agora também a China. FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
21
AMBIENTE
Órfãos da A repressão ao desmatamento deve mexer com a economia da Amazônia, inclusive com o sustento de parte de seus habitantes. Depois dos compromissos assumidos em Copenhague, o país tem o desafio de articular rapidamente um novo modelo de desenvolvimento para a região Por Roberto Amado
O
Brasil deu um show na Conferência do Clima reali zada em dezembro, em Copenhague, na Dinamar ca. Além da bronca que o presidente Lula impôs aos países desenvolvidos, pela falta de compromisso de suas posições em relação à diminuição da emissão de gases do efeito estufa, a delegação brasileira firmou metas ou sadas e, com isso, deu um exemplo internacional a ser seguido. No final de dezembro, essas metas viraram lei: a Política Nacio nal sobre Mudança de Clima fixou o compromisso do Brasil em reduzir, até 2020, as emissões projetadas de gases do efeito estufa entre 36,1% e 38,9%. Para alcançar esse objetivo, a ação mais importante seria a redução em 80% do desmatamento da Amazônia, no mesmo período. Assim, a partir deste ano as medidas contra essa atividade devem se intensificar mais ainda em relação ao que foi feito no ano passado, quando o índi ce de desmatamento da Amazônia (7.000 km2) apresentou uma gran de diminuição em relação à média dos anos anteriores (17 mil km2). Os efeitos das medidas contra o desmatamento, no entanto, têm repercussões intensas na atividade econômica da região – hoje ba seadas numa espécie de extrativismo que busca riquezas imediatas com a exploração da mata amazônica. “É um ciclo de riqueza que demora 15 anos”, diz Adalberto Veríssimo, fundador e pesquisa dor sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que faz pesquisa do desenvolvimento sustentável da re gião. A esse ciclo ele dá o nome de “boom colapso”. Em primeiro lugar, ocorre o desmatamento para aproveitar a 22
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
floresta madeira, gerando um boom, ou seja, uma riqueza imediata com a proliferação de serrarias e a instalação de empresas capitalizadas. “Dez anos depois, a mata está um paliteiro”, diz ele, “e se transforma em pasto para a criação de gado.” Mas essa atividade também tem fim próximo: depois de cinco anos, o pasto está degradado, provo cando o colapso econômico da região e a busca por novas áreas de exploração. Devido a esse ciclo, a somatória de áreas degradadas na Amazônia é equivalente ao território do Estado de São Paulo.
CANTO SEGURO Seringueiro tira látex na reserva Chico Mendes, em Xapuri (AC)
ALAN MARQUES/FOLHA IMAGEM
Modelo superado
Esse processo de expansão da fronteira agrícola, conhecida como “arco do desmatamento”, que ocorre principalmente no Pará, aca ba se transformando em meio de sobrevivência de um enorme contingente de trabalhadores – são pequenos produtores, muitos dos quais imigrantes de outras regiões do país, que buscam sus tento ocupando terras irregulares para exercer uma atividade con siderada ilegal, mas estimulada por “um modelo econômico de desenvolvimento completamente superado”, como define Branca Americano, diretora do Departamento de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente. Seja como for, deter esse processo de forma radical pode causar desemprego e pobreza – como, aliás, já está causando. Segundo Agnaldo do Carmo Alcântara, presidente da Federação dos Tra balhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário, sediada em Belém, “já se verifica um aumento do desemprego e da margi nalidade na região devido à repressão ao desmatamento”. A enti dade representa 16 categorias profissionais, num total de mais de 200 mil filiados, muitos dos quais trabalhando diretamente com atividades ligadas à extração de madeira. Para Alcântara, é preciso haver “uma discussão em profundidade sobre a redução do des matamento para encontrarmos alternativas a ele”. Uma delas é o Plano de Manejo Sustentado, que prevê a certifi cação da madeira legal como resultado de uma prática de explora ção equilibrada, em que as árvores são classificadas e numeradas e só se retiram aquelas que já atingiram a maturidade, normalmente depois de 30 anos de vida. “O importante é olhar para o homem da floresta, que há muitos anos vive em harmonia com ela”, diz Muri lo Souza Araújo, coordenador jurídico da Unifloresta, outra enti dade do Pará que reúne exploradores da madeira amazônica. Ele considera injusta a má imagem que o pequeno produtor da Ama zônia tem, quando a atenção deveria se voltar para outros setores, como o de mineração, por exemplo. “As enormes siderúrgicas do município de Marabá consomem grandes quantidades de energia para produzir ferro. E essa energia vem de hidrelétricas que cau sam grandes danos ao meio ambiente.” FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
23
PAULO WHITAKER/REUTERS
FLORESTA SEM CHUVA Ribeirinho rema entre peixes mortos num afluente seco do Amazonas: desmatamento mexe com regime de chuvas
Resistir a tentações
A verdade é que todas as formas de exploração da floresta amazô nica produzem gases do efeito estufa – e consequentemente amea çam as metas estipuladas pelo governo. “As árvores são acumula dores de carbono. Sempre que são retiradas, não importa o uso que se faça delas, liberam esse gás”, explica Raul Telles do Vale, coorde nador adjunto do Instituto Socioambiental (ISA), outra ONG que atua na Amazônia. Vale acredita que reverter esse processo depen de de uma mudança no modelo econômico local. A agropecuária, um dos vilões da questão, tem incentivos fiscais, e isso quer dizer que “o contribuinte está pagando pelo desmata mento”, diz ele. “Precisamos de leis que estimulem a conservação e a produção de açaí, babaçu, castanha-do-pará, látex e outros pro dutos ambientais”, completa. As populações tradicionais, formadas por caboclos, indígenas e ribeirinhos, têm conhecimento da me lhor utilização das riquezas da floresta, mas vivem precariamen te, muitos à beira da miséria. Extrair as riquezas da floresta é uma tentação porque produz renda imediata. “Se tivermos uma política de governo que garanta preços aos produtos ambientais, desenvolvendo tecnologias para aumentar a produtividade e estimulando a ocupação produtiva das áreas já degradadas, podemos mudar esse paradigma, transformando a re gião numa fornecedora de serviços e produtos socioambientais”, acredita o coordenador do ISA. Para ele, não há projeto ou inicia
24
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
tiva que possa obter sucesso nessa mudança sem a interferência direta do governo com leis, intervenções e políticas de desenvol vimento localizadas. O instituto atua na região de diversas maneiras – uma delas, na preservação dos povos indígenas. Um exemplo é o trabalho feito nas cabeceiras do rio Xingu em que a ONG vem apoiando a pro dução de artesanato, mel, frutas e outros produtos ambientais de 14 povos indígenas, agora des A agropecuária, um tinados a abandonar a vida dos vilões da questão nômade e a permanecer em área demarcada. “Garantir a amazônica, tem permanência deles é formar incentivos fiscais, uma barreira contra o avan e isso quer dizer ço do desmatamento”, afir que o contribuinte ma Vale. está pagando pelo “As pessoas que perderam o emprego devido à repres desmatamento são ao desmatamento não têm qualificação profissional e, muitas vezes, nem sequer docu mentos. Não houve um plano de geração de trabalho alternativo para essa gente. Estão enchendo as fileiras do MST nas beiras das estradas e fazendo filas nas prefeituras”, diz Rui Salles Lanhoso Mar tins, coordenador de Projetos Socioambientais Empresariais do Instituto Peabiru. A ONG, também sediada em Belém, dedica-se a
ensinar essas populações a tomar decisões, captar recursos, desen volver projetos e negócios sustentáveis. “Estimulamos o protago nismo e o empreendedorismo comercial e social”, explica Martins. A questão fundamental, segundo ele, é a legalização das terras. “Aqui você encontra todos os tipos de problema, que vêm desde o Brasil colônia: terras indígenas, terras de marinha, unidades de conservação de diversas categorias, o que gera uma quantidade enorme de conflitos, muitas vezes em áreas onde a presença do Es tado é quase nula e a lei que impera é a da força”, descreve. Martins também cita a importância de estimular a atividade eco nômica baseada em produtos ambientais como alternativa para quem vive do desmatamento. “Falta uma sensibilidade específica para as questões locais. A Amazônia é tratada como uma região semelhante a todo o país. Mas não é.” Esse parece ser um ponto de insatisfação generalizado entre aqueles que pensam e os que vivem a realidade da floresta – o que cria expectativas distorcidas na opinião pública e na mídia, nacio nal e internacional. “A solução não é transformar a Amazônia num santuário ecológico intocável nem pôr a mata abaixo para sugar suas riquezas. Essas não são as duas únicas alternativas. Precisamos buscar a modernidade do desenvolvimento econômico para ofere cer inclusão econômica e social a essa população. O governo tem feito isso, está no caminho certo. Mas precisamos acelerar esse pro cesso, não apenas para diminuir o desmatamento, mas para zerar de vez. Essa é a nossa meta”, diz Adalberto Veríssimo, do Imazon. Hoje, a região toda tem 24 milhões de habitantes que produzem apenas 8% da riqueza nacional, embora ocupe mais da metade do território do país. A produtividade das atividades econômicas, como a criação de gado, é de baixa qualidade e quantidade, apesar de ocu MARCOS VICENTE/FOLHA IMAGEM
par áreas produtivas extensas. E o modelo de desenvolvimento que vigora é o mesmo que impulsionou o ciclo da borracha, no come ço do século 20, baseado na ocupação irregular, no extrativismo da riqueza da mata e no total abandono e pobreza de quem vive dele. Embora a relação com a Amazônia tenha mudado significativamen te nos últimos anos, foi a partir da década de 1970 que esse mode lo econômico ganhou impulso, promovendo um grande salto na ocupação desordenada: há 30 O modelo de anos, menos de 1% da flores desenvolvimento que ta estava explorada; hoje esse índice está na casa dos 18%. vigora é o mesmo Ações fortes do governo e que impulsionou o da sociedade local têm ocor ciclo da borracha, no rido intensamente nos últi começo do século mos cinco anos, com resul 20, baseado na tados positivos. Entre elas, ocupação irregular, fiscalização constante das atividades irregulares e ile no extrativismo da riqueza da mata e no gais, combate a incêndios, demarcação de terras indí abandono de quem genas, desenvolvimento de vive dele tecnologias, maior atenção à educação e à especialização profissional e valorização da ocupação territorial. Mas são ações fragmentadas, que ainda não se integram num sistema único. “Isso vai mudar. O ano de 2010 será o momento de arregaçarmos a man ga para juntar todas essas ações e obter resultados integrados”, pro mete Branca Americana, do Ministério do Meio Ambiente. “Nin guém quer ver o homem amazônico abandonado.” JANDUARI SIMÕES/FOLHA IMAGEM
CONVÍVIO SUSTENTÁVEL Extração de açaí e castanha-do-pará: a Amazônia é tratada como uma região semelhante a todo o país. Mas não é FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
25
BRASIL
S
ão Luiz do Paraitinga passou as primeiras semanas do ano sacu dindo a lama trazida pelo rio nas horas iniciais de 2010. A destrui ção de parte do centro histórico dói, mas o caipira há de transformar tudo em causos. Como o da enchente de 1914, que chegou ao terceiro degrau da Igreja Ma triz, agora reduzida a escombros. A cultura oral, patrimônio da cidade, não foi abalada. A inundação vai passar de geração em gera ção pela boca desse povo bom de prosa. É assim desde quando todos se deram conta de que, na virada de um ano para outro, 300 anos de história ruíram pela força do rio. E a história recente da cidadezinha pode ser vir de exemplo para centenas de outras com características geográficas expostas a riscos semelhantes – e igualmente agravados pela ocupação inadequada. O professor de Geografia da Universida de de São Paulo, Aziz Ab’Saber, natural da cidade, entende que a enchente faz parte de um ano anômalo, mas previsível. Apon ta uma periodicidade climática a que estão sujeitos o Sul e o Sudeste, que varia entre 12 e 13 anos, quando há uma ocorrência de chuva muito acima do normal. E se é sabido, de acordo com um dos geógrafos mais respeitados do Brasil, que algo do gê nero ocorrerá novamente no início da dé cada de 20, que se aja. Ab’Saber considera fundamental ensinar a geografia e o clima locais para as crianças. “O problema é saber de antemão para prever os impactos desses ciclos de tempo anômalo”, afirma. As enchentes fazem parte da vida de São Luiz. A cidade foi erguida no século 18, contornada pelo rio Paraitinga. A ocupa ção indevida de algumas áreas multiplicou os riscos. Na avaliação de Carlos Murilo Prado Santos, professor da Universidade de Taubaté, a enchente juntou fatores geo gráficos, históricos, urbanísticos e climáti cos. E, nos últimos anos, os donos de cons truções que ocupavam a margem direita do rio fizeram um soerguimento de suas áreas, o que acabou empurrando mais água para a parte oposta, o centro histórico. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), incumbido de encontrar explicações para a enchente, soma à história a forma ção de barreiras naturais e artificiais e o as soreamento dos rios na região, fatores que dificultam a absorção de água e reduzem a profundidade dos leitos. O acúmulo de chuva ao longo de quatro dias na cabeceira
26
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
O CAIPIRA VIVE PELA BOCA
São Luiz do Paraitinga encontra na solidariedade e na prosa a força para voltar à normalidade. Sua história e sua geografia são um alerta para cidades expostas a riscos semelhantes Por João Peres e no fim do Paraitinga, com o represamento do rio do Chapéu, mais à frente, também é apontado como causa da enchente.
Anjos d’água
Foi de boca em boca que se acionou o so corro às pessoas ilhadas nas casas. A água já ia pelo telhado quando chegavam os meni nos do rafting. Sem eletricidade nem tele fonia na cidade, cabia a eles localizar quem precisava de resgate e de notícias. É difí cil calcular quantas vidas foram salvas por
aqueles que outrora eram vistos com des confiança. Rodrigo César da Silva, o Min dé, conta que uma senhora tirou sarro de seu colega que passou com o bote em meio à chuva, afirmando que agora eles tinham diversão de sobra. Hélio Alexandre de Sou za estava a caminho de um resgate. E a se nhora também não sabia que duas horas mais tarde ela própria teria de ser socorrida. “Quando minha mulher ficou grávida, muita gente falava que agora eu ia ter de arrumar um emprego de verdade. Sei que
SERGIO NEVES/AE FOTOS SERGIO NEVES/AE
ESPECTADORES Diante da força da água, aos moradores só restou esperar
SOCORRO Equipes de rafting fizeram a diferença nos trabalhos de resgate de moradores
vou ganhar pouco, mas aprendo a viver com esse pouco”, afirma. Mindé começou no esporte pensando em ser campeão mun dial e agora viu que remar leva a conquistas mais importantes. Os preconceitos contra os “vagabundos” são coisa do passado. Há quem os chame de anjos d’água. “A atuação da equipe foi exata. Você passa na rua e uma pessoa que nunca falou com você te chama de menino do rafting. Somos só uma parte entre tantas pessoas que estão tendo atitu des de humanismo”, aponta Hélio. Uma parte sem a qual não existiriam ou tras. Não haveria, por exemplo, a atuação da família de Benedito Paula Rocha, o Bozó. Cal mo, ele não esquentou a cabeça quando “cen tenas de pessoas” tinham em sua casa, em um ponto alto da cidade, uma das poucas fontes de água e de banho. Uma das minas de sua propriedade saciou a sede dos que tiveram de passar a noite em seu quintal. O leite de sua fazenda foi buscado de barco para alimentar essas pessoas. “Trabalhando em grupo a gen te socorreu todos sem estresse. Na minha casa pode ficar Deus e todo mundo. A fronteira está aberta.” Bozó só não perdoa a ausência de autoridades municipais na missa rezada em frente à Igreja do Rosário, a única das antigas que se salvou, no domingo pós-inundação. A queda da Matriz – ponto central e de partida para todos os eventos da cidade – machucou mais que a perda da própria casa, para muita gente. Tadeu de Campos, estudioso dos temas históricos, mora logo atrás da igreja. Antes, podia ver dali a mo vimentação. Agora, os escombros da cons trução e o barro parecem não ter fim. “Eu não durmo direito. Penso o tempo inteiro nessa visão da igreja caindo aos poucos, na cidade destruída”, lamenta. A notícia dada pelo Instituto do Patrimô nio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de que será possível reerguer a Matriz e toda a cidade aliviou parte do sofrimento. Tadeu entende que a igreja deveria ser reconstruí da nos moldes originais, jesuíticos e com apenas uma torre. Essa discussão vai longe. Por ora, dividem-se as tarefas que caberão a cada ente público. Os governos federal e estadual buscam superar diferenças parti dárias e unir esforços. A prefeita Ana Lú cia Billard terá sua gestão comprometida. “Meu mandato inteiro vai ser só para re construir o que a chuva levou. E também poder arrumar o que estava errado na área urbana. Não podemos permitir mais ficar na beira do rio”, constata. FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
27
SERGIO NEVES/AE E PAULO DONIZETTI DE SOUZA (DETALHE)
SOBREVIVENTE O coreto da praça ficou de pé (no detalhe, em junho passado). Um desavisado diria que a cidade sofreu um bombardeio
Goiás Velho (GO), cidade devastada pela enchente entre 2001 e 2002 e cuja re construção é tomada como exemplo, levou dois anos para voltar ao normal. Salma Saddi, superintendente do Iphan em Goi ás, ficou seis meses sem deixar o município e outro ano e meio trabalhando intensa mente. Quando soube da tragédia de São Luiz, ela e sua equipe colocaram-se à dis posição para ajudar. Salma acredita que é possível reerguer tudo, mas adverte que nada deve ser feito com pressa. “Em alguns momentos, vão sofrer, vão pensar que as coisas estão devagar. Mas é uma popula ção que tem uma história de vida muito interessante e cultiva muito suas tradições.
Essas coisas, ninguém tira do povo. Acre dito muito nisso.” Com isso, as festas poderão retornar ao calendário luizense. Alguns acham até que a pausa forçada é um momento para repen sar a maneira como vinham ocorrendo os eventos. No Carnaval, por exemplo, muitas pessoas estocam comida para seis dias e só saem de casa quando os turistas já se fo ram. São Luiz tem apenas quatro padarias, alguns mercadinhos e outros tantos restau rantes. A partir da Praça Central, há meia dúzia de ruas para um lado, meia dúzia para outro. O espaço, habitado por pouco mais de 10 mil pessoas durante os tempos sem festa, entra em convulsão rapidamente.
Este ano, com o Carnaval tão próximo, artistas de São Luiz contam com a solida riedade que vem de outros cantos. Beni to Campos, fundador do bloco Juca Teles, tem acordos fechados com as prefeituras de Pindamonhangaba e do Circuito das Águas (Lindoia, Águas de Lindoia e Amparo, en tre outras) para promover apresentações em fevereiro. Ele lamenta que a tragédia te nha ocorrido no momento em que a cidade experimentava uma efervescência que per mitia aos artistas viver de seu trabalho. “A cultura local com certeza ficou órfã de pai e mãe. E estamos no meio dos escombros. Precisamos de ações mais efetivas que mos trem uma luz no fim do túnel.”
FOTOS LUCIANO DINAMARCO
Rescaldo Duas semanas após a enchente, boa parte do barro foi removida, revelando o tamanho dos estragos
28
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Crônica
Por Mouzar Benedito
O professor bem que avisou São Luiz do Paraitinga é mais do que sua arquitetura inundada. A maior riqueza – o patrimônio imaterial, os moradores, seus hábitos, sua musicalidade – não se perderá
E
stava no primeiro ano da Geografia da USP, em 1967, e fui a São Luiz do Paraitinga numa excursão de estudos. A professora informou orgulhosa que o geógrafo Aziz Ab’Saber, um dos mais respeitados do mundo, nasceu ali, numa casa de esquina em frente ao mercado munici pal. E, num casarão mais acima, o sanitarista Oswaldo Cruz. Como pode uma cidadezinha desse tamanho dar dois cientistas desse porte? Em 1978 passei a frequentá-la, depois que meu ami go Américo mudou-se para lá. Minha namorada e eu ficávamos na casa dele. Nessa época, lá surgiu um belo grupo musical, o Paranga, formado por filhos do com positor Elpídio dos Santos, a namorada de um deles e mais os irmãos Nhô e Galvão. No final da década de 1990 um casal de amigos, Alice e Jô, se apaixonou pela cidade e abriu o bar Sol Nascen te. A cidade já tinha boas pousadas e bons restaurantes. No Sol Nascente às vezes aparece o Geraldo Tartaru ga, artesão. Geraldo fala manso, narra causos espicha dos, e mesmo assim prende a atenção. Conta sobre os tempos em que o diabo costumava aparecer na roça. “Cês sabe, né? De antigamente, o diabo aparecia pros fazendeiros, agora não aparece mais... tem medo.” Ri mos muito. Outro famoso é o Ditão Vergílio, grande intelectual caipira. Conhece tudo da roça, teoriza sobre ela, faz belos poemas, defende seu modo de vida, tem orgulho de ser caipira. Dizem que a banda de música é a melhor do Estado. Na festa do Saci, ano passado, fui um dos espectadores sentados nos bancos da praça e nos degraus da igreja matriz. Banda não toca marchas e dobrados? Pois é, a de São Luiz também toca Pink Floyd. Há muitos músi cos na cidade. Para se ter uma ideia da musicalidade de São Luiz, seus mais de 20 times de futebol têm hinos. Ficou famoso, até demais, o Carnaval com as marchi nhas, compostas por luizenses natos ou adotados. Par ticipei da “refundação” do Carnaval, no final da década de 1970, com o bloco Peida n’Água – saía com poucas pessoas da chácara do Américo e chegava grande na
praça. Depois o Carnaval foi ficando inchado, parei. Mas tem mais coisas a serem apreciadas. Como o re queijão de prato, delícia da roça encontrável em qual quer padaria. E o afogado – com carnes e legumes co zidos em caldeirões enormes –, distribuído de graça a milhares de pessoas. Comer o afogado faz parte do ri tual da Festa do Divino. Quando resolvemos, em 2003, criar a Sosaci, Socieda de dos Observadores de Saci, propus e todos aceitaram: a sede tem de ser em São Luiz. E incluímos mais uma festa no calendário festeiro da cidade. Lá não existem grandes salões, grandes auditórios. O coreto é um palco privile giado, e os degraus da frente da igreja lotam. Uma coisa já incomodava muita gente nessa época: a invasão da monocultura do eucalipto. O professor Aziz chegou a fazer palestras e alertar sobre limites que deveriam ser impostos a ela. Não lhe deram ouvidos. Passei algumas viradas de ano lá. Agora não deu. E no primeiro dia do ano vi a notícia da água se enchen do. Em 1996 houve uma grande enchente na cidade. Depois, soube-se que as comportas de uma represa ha viam sido abertas, sem aviso. Será que uma enchente daquelas se repetiria? E foi pior. Ultrapassou qualquer coisa imaginável. Cobriu casarões, o mercado, o centro histórico. Fui ver de perto. Quem frequentou São Luiz nos bons momen tos não pode abandoná-la na hora da tristeza. A popu lação se salvou por si mesma, graças ao trabalho de um bando de jovens, e não por obra de órgãos públicos. E estava traumatizada, mas pronta para se reconstruir. Soube que o acervo de Elpídio dos Santos foi salvo antes de seu casarão ir abaixo. Mas o Américo e a Rose perderam tudo o que tinham. O bar Sol Nascente ficou submerso. Jô e Alice livraram-se com a roupa do cor po e nada mais. O coreto ficou de pé. Espero, durante o Carnaval, estar com um bando de amigos luizenses e não luizenses em torno dele, celebrando a vida, a so lidariedade, reconstruindo a cidade, querendo saber o que causou a tragédia, e como evitar outras. Quem sabe o professor Aziz seja chamado. E seja ouvido.
Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
29
BRASIL
Risco iminente
Tragédia deve causar revisão da política de ocupação do solo em Angra dos Reis e Ilha Grande Por Maurício Thuswohl
A
tragédia causada pelos desliza mentos de terra que provoca ram a morte de 52 pessoas no município de Angra dos Reis (RJ) e em algumas de suas ilhas na virada do ano traz mais uma vez à tona a velha discussão sobre a necessidade de com bater as formas ilegais de ocupação habita cional. Ciente do risco de novos acidentes, o governo do Rio de Janeiro decidiu fazer uma revisão do zoneamento ecológico da Área de Proteção Ambiental (APA) Tamoios, que cobre as 93 ilhas e recifes da Baía da Ilha Grande, além de 81 quilômetros na faixa li torânea continental de Angra. “Já vínhamos trabalhando em uma pro posta de ampliação do Parque Estadual da Ilha Grande compatível com o Plano Dire tor de Angra dos Reis, que foi recentemente revisto após amplo debate com toda a popu lação local e promoveria um ajuste fino da quase duplicação daquela unidade de con servação, ocorrida em fevereiro de 2007, através de decreto do governador Sérgio
30
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Cabral”, garante o diretor de Biodiversida de e Áreas Protegidas do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), André Ilha. “Agora, às considerações de ordem estritamente am biental nas quais estávamos nos baseando vamos adicionar a variável de risco, o que provavelmente redundará em uma propos ta mais abrangente de ampliação. Nada mais lógico do que agregar aos limites do parque áreas que, por razões de segurança, devam permanecer como não edificantes.” Com longa trajetória de militância eco lógica e ex-presidente do Instituto Estadual de Florestas (IEF), André Ilha conhece bem os limites que a natureza impõe à região de Angra e sabe que os moradores da cidade só terão segurança completa se forem re movidas diversas construções em áreas de risco: “A decisão de remoção de um gran de número de edificações consolidadas é eminentemente política, mas sempre en controu fortes resistências, pois interes ses pessoais são contrariados. Com a co moção causada pela tragédia da virada do
ano, isso agora se tornou mais viável, pois as vozes que tradicionalmente se erguem contra medidas duras, porém indispensá veis, perderam muita força frente à ainda mais dura realidade dos fatos”. O diretor do Inea explica que, no que se refere à Ilha Grande, “o primeiro pas so concreto já foi dado” pelo governo es tadual: “Uma grande equipe do Inea está percorrendo todas as praias e costões ro chosos à beira-mar e identificando, de for ma sistemática, as edificações – legalizadas ou não – ameaçadas pelo possível desliza mento de encostas. Nesses casos, recomen daremos fortemente sua remoção no pra zo mais curto possível, até porque, em face das mudanças climáticas, estima-se que eventos meteorológicos extremos como o da passagem de ano se tornem mais fre quentes, assim como suas consequências desastrosas”. A equipe, de 35 técnicos, é comandada pelo coronel Jorge Benedito de Oliveira, que após os deslizamentos sobrevoou a re
RAFAEL ANDRADE/FOLHA IMAGEM
AO PÉ DO PERIGO Deslizamento em Angra: não dá para culpar a natureza
gião, identificou dezenas de áreas de risco e cerca de 300 pontos de ocupação irregular: “Verificamos um desrespeito total ao zone amento e constatamos muitas construções irregulares, de casebres a mansões”, conta o coronel.
da junto com a discussão do novo Plano Diretor de Angra para aquela localidade, discussão essa que foi amplamente partici pativa, como todos reconhecem. Assim, so licitamos ao Conselho Consultivo da APA que a analisasse em caráter de urgência, e este prometeu concluir essa avaliação até o final de janeiro, o que criará condições para um novo ato normativo, consensual, a ser expedido já em fevereiro”. O diretor do Inea revela que já foi rea lizada a licitação para escolha da empre sa que promoverá os estudos relativos ao zoneamento ecológico no restante da APA Tamoios, que compreende a franja conti nental e ilhas menores. A empresa terá um prazo de cinco meses para concluir esses estudos. A expectativa do governo é que muitos outros pontos de ocupação irregu lar ainda sejam detectados. De acordo com a Secretaria Estadual do Ambiente, cerca de 3 mil construções em áreas de risco devem ser demolidas em Angra dos Reis. Enquanto a revisão do zoneamento eco lógico não é concluída, permanece em vigor um decreto assinado pelo governador Sérgio Cabral no ano passado que permite a edifi
cação em até 10% dos terrenos localizados em Zonas de Conservação da Vida Silvestre. O governo já admite revê-lo após a conclu são do novo zoneamento, mas as organiza ções do movimento socioambientalista que atuam na região pedem sua revogação ime diata: “Esse decreto pode causar uma corri da dos proprietários de terreno que preten dem construir na APA”, adverte Alexandre de Oliveira, presidente do Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig) e membro do con selho gestor da APA Tamoios. O decreto de Cabral também é objeto de disputa judicial, graças a uma repre sentação do deputado Alessandro Molon (PT) no Tribunal de Justiça, que pede sua imediata revogação. O deputado chegou a convocar uma audiência pública sobre esse tema em novembro do ano passado. “Na audiência, sobraram evidências do retrocesso que ele representa e de quem seriam seus únicos beneficiários: os inte ressados em construir mais e mais na Ilha Grande e região, em detrimento da preser vação do meio ambiente e, consequente mente, da proteção da vida humana”, afir ma Molon. O MORRO NÃO POUPA NINGUÉM Ilha Grande: na Pousada Sankay, erguida na exclusiva Baía do Bananal, 14 pessoas morreram
Mito abaixo
BRUNO DOMINGOS/REUTERS
O mito de que apenas os pobres cons troem habitações irregulares também foi derrubado por André Ilha: “A ocupação desordenada do solo e das encostas não é privilégio de nenhuma classe social especí fica. Temos exemplos contundentes de cri mes ambientais causados tanto pela expan são de favelas quanto por construções de elevado padrão, porém aos pobres ao me nos se pode conceder a atenuante da falta de opções. Infelizmente, o desprezo pelo meio ambiente é uma característica média comum a todas as classes sociais”. A revisão do zoneamento ecológico da APA Tamoios só deverá ser concluída no segundo semestre, mas o Inea espera resul tados pontuais mais rápidos: “A parte da re visão do Plano de Manejo da APA Tamoios referente à Ilha Grande já se encontra virtualmente pronta porque foi construí FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
31
SAÚDE
Desconhecido e devastador O acidente vascular cerebral, ou derrame, é uma das doenças que mais matam e incapacitam pessoas no Brasil. Mas na população, e até mesmo na classe médica, ainda existe despreparo para lidar com sua ocorrência Por Cida de Oliveira
32
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
FOTOS REGINA DE GRAMMONT
U
m derrame sofrido duran te cirurgia para retirada de tumor benigno no cérebro adiou os planos da paulistana Gabriela Amorim de Aguiar. Depois de 20 dias numa UTI, entre a vida e a morte, foi para o quarto ainda com todo o lado direito paralisado e sem emitir ne nhum som. Ficou internada por três meses e só depois de outros quatro, quando ainda não andava, conseguiu vaga para começar seu tratamento de reabilitação no Lar Es cola São Francisco, na capital paulista. Com o acompanhamento, que inclui fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e ou tras terapias específicas, ela conseguiu re cuperar a fala e boa parte dos movimentos. Isso foi há pouco mais de dois anos. Hoje, aos 23, Gabriela reaprendeu a caminhar e, com esforço, consegue abrir e fechar a por ta com a mão direita. Os especialistas ain da não sabem quando ela terá condições de retomar os estudos interrompidos no 3º ano de Farmácia na Universidade de São Paulo. A reabilitação tem auxílio da terapia por contensão induzida (TCI), ainda pouco
JUVENTUDE Gabriela teve um AVC aos 21 anos. Hoje, aos 23, ainda faz fisioterapia
utilizada no país. Também conhecida como terapia por restrição (TR), consiste em um programa de treinamento intensivo no qual uma luva é usada para restringir os movi mentos do membro sadio. As sessões são diárias, com duração de três horas, ao lon go de duas semanas. O fisioterapeuta Rodrigo Deamo Assis,
pesquisador da Universidade Federal de São Paulo e um dos pioneiros da TCI no Brasil, explica que o objetivo da luva é lem brar o paciente de que ele deve utilizar ao máximo o lado afetado pelo AVC. A tera pia está fundamentada na teoria segundo a qual o uso de determinadas partes do corpo faz com que se desenvolvam, enquanto o
RECUPERAÇÃO O fisioterapeuta Rodrigo em trabalho de terapia restritiva
desuso leva à atrofia. “Entre outros benefí cios, essa extensa prática repetitiva aumen ta a função e a agilidade do membro afetado e reduz a espasticidade, que é o grau de ten são muscular que dificulta ou impossibili ta o movimento dos membros”, diz Assis. Nos Estados Unidos e no Canadá, onde a técnica é mais usada, estudos mostram que todos os pacientes avaliados foram be neficiados, independentemente do tempo da lesão cerebral causada pelo AVC ou por outros problemas. Só que nem todos têm acesso ao novo tratamento, considerado caro porque exige a dedicação exclusiva de um fisioterapeuta em tempo integral, du rante duas semanas. As sessões de fisiotera pia convencional na maioria dos casos são limitadas a meia hora por semana, inclu sive para pessoas que viajam durante ho ras, atravessando cidades, para chegar a um centro de reabilitação.
Samu, 192
Quem sofre um derrame no Brasil en contra todo tipo de dificuldade. E não são poucas as pessoas nessa situação. A doen
ça é a principal causa de morte de adultos no país. São 100 mil óbitos todo ano. Sem contar os milhares que sobrevivem com se quelas, em muitos casos graves, que os im pedem de continuar trabalhando, andan do, comendo ou mesmo tomando banho sem ajuda. Estimativas dão conta de que, de cada 1.000 pessoas que sofrem um der rame, 300 morrem nos primeiros dias e,
Fatores de risco Idade - enfraquece as artérias, o que facilita seu entupimento ou sua ruptura Genética - a pessoa pode ter predisposição à doença Pressão alta - causa lesões nas paredes de todos os vasos sanguíneos Diabetes - está associada à pressão alta e a alterações na circulação sanguínea Alterações nos níveis de colesterol facilitam a formação de trombos, que obstruem a passagem do sangue Tabagismo - danifica os vasos sanguíneos Vida sedentária - leva a problemas como diabetes e alterações no colesterol Problemas cardíacos
das 700 sobreviventes, apenas 100 se recu peram integralmente. A maioria, 600, fica com sequelas motoras permanentes. Segundo especialistas, o mal ainda é ne gligenciado pelas políticas de saúde públi ca. Tanto é que, embora quase todo mundo tenha entre seu círculo de pessoas conhe cidas pelo menos uma vítima do derrame, pouco se fala, se aprende ou se ensina so bre o assunto. “Faltam programas para edu car as pessoas a combater os fatores de ris co, a reconhecer os sinais e a buscar ajuda imediatamente, minimizando assim a gra vidade das sequelas e até mesmo salvando a vida”, aponta a neurologista Sheila Ouri ques Martins, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre. No ano passado, uma pesquisa do Hospi tal das Clínicas de Ribeirão Preto (SP) con cluiu que 90% das pessoas entrevistadas em quatro grandes cidades brasileiras não têm informação alguma sobre AVC. Para 22% delas, os sintomas mais comuns da doen ça, como dificuldade para falar, andar ou enxergar e fraqueza ou dormência em um lado do corpo, sinalizam infarto, epilepsia FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
33
ou câncer; e apenas 35% sabem que 192 é o número do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que deve ser chamado sem demora para levar uma pessoa que está tendo um derrame a um centro de emer gência capacitado para atendêla. Para piorar, nem todos os profissionais de saúde estão preparados para diagnos ticar adequadamente a ocorrência de um derrame. O neurologista Lucas Vilas Boas Magalhães, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que os médicos sem especialização em neuro logia – área da medicina que diagnostica e trata doenças do cérebro, medula espinhal e nervos – geralmente têm pouca intimida de com os quadros neurológicos que sur gem nas emergências, subdiagnosticando ou diagnosticando incorretamente. “Fizemos um estudo que mostrou que a entrevista médica e o exame físico feitos pe los não neurologistas foram considerados inadequados para o diagnóstico dos casos em que havia suspeita de doença neuro lógica”, explica Magalhães. “As chances da pessoa que tem um AVC dependem de um melhor conhecimento da doença pelo pú blico leigo, em geral, e pelos médicos e de mais profissionais de saúde, em particular. E isso implica, inclusive, a necessidade de melhorias na graduação médica.” Outro grave problema é a falta de tra tamento na fase aguda do derrame, prin cipalmente do tipo isquêmico, que corres ponde a 80% das ocorrências. Nesse caso, um coágulo (trombo) interrompe o fluxo sanguíneo no cérebro, matando neurônios e deixando tantos outros sem atividade elé trica. Para remover o trombo e restabelecer a passagem do sangue, os médicos usam cateteres, que o retiram mecanicamente, ou um fármaco trombolítico chamado al teplase, que o dissolve. Os outros 20% de casos de AVC são do tipo hemorrágico, ca racterizado por uma ruptura do vaso san guíneo. Formase então um hematoma se guido de inflamação. O tratamento consiste no controle da pressão arterial, para evitar sua expansão, por meio de medicamentos. Alguns casos podem ser tratados cirurgi camente, mas, na maioria das vezes, a área afetada é de difícil acesso. Grande parte das vítimas não tem acesso ao único medicamento aprovado para essa finalidade. Estudos mostram que, de cada quatro pessoas medicadas com o alteplase até três horas após a ocorrência do AVC, 34
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Identifique e ligue
está em pauta a discussão sobre a inclusão de novos medicamentos na lista de distri buição gratuita e que o combate ao derra me é contemplado através de outros planos já existentes, como a Política Nacional de Atenção Integral às Urgências.
Células-tronco
Aprenda a identificar os sinais do derrame. Tempo perdido é cérebro perdido ■ Fraqueza ou formigamento na face, no braço ou na perna, especialmente em um lado do corpo ■ Confusão, alteração da fala ou compreensão ■ Alteração na visão (em um ou ambos os olhos) ■ Alteração do equilíbrio, da coordenação, no andar, tontura ■ Dor de cabeça súbita, intensa, sem causa aparente Qualquer um desses sintomas pode sinalizar um derrame. Se você ou alguém conhecido tiver um desses sinais, não espere que melhore. Peça socorro. Ligue imediatamente para o número 192 (Samu) ou para o serviço de ambulância de emergência da sua cidade. Importante: observar e anotar a hora em que os primeiros sintomas apareceram. Essa informação é essencial para os médicos.
uma sobrevive e suas chances de recupera ção completa são três vezes maiores, sem consequências como perda de memória e incapacidade de falar e se locomover. “O medicamento é muito utilizado em hos pitais privados, mas só é distribuído em alguns centros públicos, como hospitais universitários, que dispõem de outros re cursos além do SUS”, diz Sheila Martins, coordenadora da Rede Nacional de Aten dimento ao Acidente Vascular Cerebral. A organização não governamental é formada por especialistas que desenvol vem ações preventivas e de melhoria da assistência ao paciente em parceria com secretarias de Saúde em todo o país. Em setembro passado, o Ministério da Saúde interrompeu um projeto de atenção ao der rame que previa diversas medidas, entre elas a distribuição, pelo SUS, do alteplase. O ministério afirma que, no momento, não
Professora do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rosália Mendez Otero é especia lista em neurociência e estuda o uso de célulastronco para tratar problemas neu rológicos. Ela explica que o cérebro é total mente dependente de sangue para sobre viver. “Ao contrário das células de outros tecidos, os neurônios não têm estoques de glicose e a retiram diretamente da circu lação sanguínea. Se o sangue não chegar, como acontece no AVC, eles morrem em poucos minutos e não há drogas capazes de ressuscitálos”, diz a neurocientista. “Daí não haver drogas eficazes e termos pouco a fazer.” Rosália coordena uma pesquisa pionei ra em todo o mundo, que visa à utilização de célulastronco extraídas da medula ós sea do próprio paciente para substituir as células cerebrais mortas pelo derrame. Por enquanto, está sendo testada a segurança dessas células. Em 2006, foram incluídos sete pacientes num estudo conjunto do Hospital PróCardíaco e da UFRJ. No en tanto, um deles apresentou AVC isquêmi co e embolia durante os exames prelimi nares e não recebeu o transplante. Dos seis que receberam, nenhum teve piora e alte rações no sangue nos seis meses seguintes e todos obtiveram melhora neurológica. Experiência semelhante, com resulta do também semelhante, foi conduzida na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre e no Hospital Mãe de Deus, tam bém na capital gaúcha, com 20 pacientes. O próximo passo será avaliar a eficácia, ou seja, se essas célulastronco realmente são capazes de se transformar em neurô nios e, assim, reduzir as sequelas deixadas por essa doença tão devastadora quanto ignorada.
Saiba mais Rede Brasil AVC www.redebrasilavc.org.br Associação Brasil AVC www.abavc.org.br Dossiê AVC da Revista Eletrônica de Jornalismo Científico Comciência www.comciencia.br/comciencia/?section=8&ed icao=47&id=577
SAÚDE
Reparação ainda que tardia
SUPERAÇÃO Claudio sofreu preconceito na escola e no mercado de trabalho. Hoje é funcionário público em São Bernardo
Governo vai indenizar pessoas com deficiência física causada pela talidomida. A droga foi retirada das farmácias em todo o mundo em 1961, menos no Brasil, onde continuou fazendo vítimas Por Cida de Oliveira
ROBERTO PARIZOTTI
E
m 1960, quando se compro vou que um só comprimido de talidomida nos três primei ros meses de gravidez bastaria para causar malformações nos membros da criança em gestação, a mãe de Claudio José Peracini havia consumido o medicamento. Foi estimulada por uma patroa, médica, também grávida, que o tomava sem saber de nada. Funcionário público de São Bernardo do Campo (SP), hoje com 48 anos, Claudio conta que entre os 2 e os 15 passou por dez cirurgias nos braços malformados. “A escola não queria me acolher e, mais tarde, enfrentei o pre conceito no mercado de trabalho. Muitas vezes fui atrás de vagas de emprego anun ciadas e, quando olhavam para mim, di ziam que tinham acabado de ser preen chidas”, relata. Claudio e outras vítimas brasileiras da ta lidomida serão indenizados por dano mo ral. Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, sem vetos, a Lei nº 12.190, proposta pelo senador Tião Via na (PTAC), que prevê o pagamento, ainda em 2010, de valores entre R$ 50 mil e R$ 400 mil. O cálculo, do Instituto Nacional do Seguro Social, leva em conta a gravidade da deformidade e o grau da dependência im posta ao portador da síndrome. Cláudia Maximino, presidente da As sociação Brasileira de Portado res da Síndrome da Talido mida (ABPST), diz que o sofrimento físico e psi cológico não tem pre ço. “Não há dinheiro que compense o que não brincamos por que não tínhamos per
nas ou braços, o acesso difícil à escola, ao trabalho e aos relacionamentos devido ao preconceito”, explica. Porém, a indenização é o reconhecimento, pelo poder público, da omissão que produziu tantas deficiências e o reembolso de gastos com a saúde, que aumentam com o passar do tempo. “A ida de agrava as consequências da deficiência, que exigem mais medicamentos, terapias e cuidados”, diz Cláudia. A droga foi desenvolvida em 1954, na Alemanha. Como se mostrou eficaz tam bém contra náuseas comuns no início da gravidez, passou a ser utilizada em 146 paí ses a partir de 1957, época em que surgiram muitos casos de focomelia, o encurtamen to dos membros ou sua aproximação jun to ao tronco, tornando a pessoa semelhan te a uma foca. Ao atravessar a placenta, a substância pode afetar ainda a visão, a au dição, a coluna vertebral e, em casos mais raros, o funcionamento do tubo digestivo e do coração. Em 1961 a talidomida foi retirada do mercado em 145 países. Por aqui, a proi bição ocorreu em 1965, ano em que foram descobertas novas aplicações, como o tra tamento de sintomas da hanseníase. Por isso – e pela desinformação, automedica ção, descontrole na distribuição, omissão do Estado e poder econômico dos labo ratórios – nunca deixou de ser usada in discriminadamente. Tanto que em 2006 nasceram seis crianças com a síndrome. Enquanto em outros países as ações inde nizatórias contra governos e fabricantes começaram já em 1961, no Brasil tive ram início só em 1976. Em 1994, as mu lheres em idade fértil foram proibidas de tomar talidomida e, em 2003, o país finalmente criou uma lei que controla o uso da drogasímbolo da maior tragédia da medicina de todos os tempos.
Saiba mais
www.talidomida.org.br e www.thalidomide.org (com informações em português) FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
35
TECNOLOGIA
Será que pega?
ADRIANA ELIAS
O brasileiro não tardou a abraçar o celular, o MP3, a internet. Agora, a evolução das engenhocas digitais chega aos livros. Conseguirá nossa paixão por tecnologia superar nossa distância da leitura? Por Miriam Sanger
C
hegou há pouco, sem estar dalhaço, o Kindle, o primei ro ereader, ou leitor de pu blicações e livros eletrônicos (ebooks), a desembarcar por aqui. A maquininha é leve, tem formato de um pequeno livro e tela de leitura agradá vel, na qual se carrega uma biblioteca. Ao baixar um livro a partir de qualquer lugar do planeta, além de mais barato – algo en tre R$ 2 e R$ 20 –, podese iniciar a leitu ra em apenas 60 segundos. Como em uma folha de papel, é possível grifar partes im portantes, fazer anotações na página e até pesquisar toda a biblioteca por meio de um sistema de busca. Mas é um livro que não se empresta – não há como transferir arquivos de uma máquina a outra –, quase não há títulos em português e é caro. Nos Estados Unidos, pagamse cerca de R$ 450. E para o fabricante, a Amazon, enviar para cá são mais R$ 1.000. Como aconteceu com ou tras inovações, queda de preço pode ser
PRÁTICO Miguel e seu Kindle: “Reúne qualidades muito importantes do livro físico, como facilidade de carregar e conforto de leitura, com as vantagens da internet”
36
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
37
REGINA DE GRAMMONT
questão de tempo – e concorrência. Resta rias. “Quando vejo algo que me interessa, liar ou de uma biblioteca não tem custo saber se a moda pega, uma vez que brasilei verifico se há em inglês. Se não há, compro nenhum”. Criado há dez anos, o instituto ro gosta de falar ao telefone, de ouvir mú a versão impressa”, diz. é apoiado por empresas e disponibiliza bi sica, mas não é chegado à leitura. Um es bliotecas gratuitas em locais de trânsito da tudo realizado pelo IBGE e divulgado em E as emoções? população. Tem 80 mil sócios e empresta 2007 revelou que apenas 7,47% da popu Por ser um aparelho direcionado a quem gratuitamente livros pelo período de dez lação compra livros não didáticos. O gas gosta de ler, convém observar que livro não dias. “Nossos associados levam em média to anual com revistas, por família brasilei é um utilitário e o relacionamento com ele dois por mês, devolvem antes do prazo e o ra, gira em torno de R$ 42. Com jornais, muitas vezes esbarra em outras emoções. índice de não devolução é de 0,02%. Isso R$ 17. Com livros não didáticos, R$ 11. Para muitos, o prazer da leitura se compõe prova que brasileiro gosta de ler. Difícil é Outra polêmica diz respeito à possibili também de aspectos como o contato com o acesso a literatura de qualidade de forma dade de, agora, a tecnologia trazer ao mun o papel, o cheiro, a capa, a presença na es gratuita”, desafia. do da leitura uma parcela maior da atual ge tante ou a descoberta de um título perdi Programas de incentivo no Brasil são es ração de jovens, conhecidos como Geração do em um sebo. “É viciante a sensação de cassos e isolados. O mais recente ocorreu C, que já nasce conectada ao mundo vir achar o inusitado, de descobrir um texto em 2006, quando os Ministérios da Cultura tual. “De fato, para essa turma não haverá que não estava nos planos”, conta o dire e da Educação lançaram o Plano Nacional dificuldade nenhuma em se adequar à nova tor teatral Valcazaras, orgulhoso de sua bi do Livro e da Literatura (PNLL), composto tecnologia”, admite Vitor Tavares, executi blioteca eclética, com cerca de mil livros. de ações como financiamento de editoras, vo na área de livrarias há 20 anos e presiden Luiz usa todas as ferramentas para locali abertura de bibliotecas etc. Existem também te da Associação Nacional de Livrarias. Mas zar obras: livrarias e sebos físicos e virtuais. trabalhos isolados de ONGs e outros movi os brasileiros ainda vão esperar um bocado “Quem ama livros sabe que existe um pra mentos. Mas é preciso bem mais do que isso. até se divertir com o Kindle em seu idioma. zer especial em sentar e manusear. Mas, se “Formaremos uma nação de leitores apenas No maior evento editorial do planeta, a alguém me der um Kindle, vou experimen quando o incentivo à leitura na primeira in Feira de Livros de Frankfurt, os editores tar com o maior prazer”, brinca. fância fizer parte da plataforma política de responderam a uma pesqui Há também quem resista à nossos governantes”, avalia Nacked, para sa que apontou a expectativa Na Feira de inovação. A consultora orga quem o gosto pela leitura é cultivado desde de, até 2018, as novas tecnolo Livros de nizacional Marilia Fockink é o berço. Ou seja, pais leitores geram filhos gias superarem as obras em pa Frankfurt, adepta da tecnologia, sempre leitores, quase como um fator hereditário. pel. Na edição de 2008 da feira, editores antenada em seu iPod, iPhone Para isso, as famílias precisam ser cultural em outubro, 361 expositores já – mas torce o na mente convencidas dos benefícios da leitu responderam eriznotebook incluíram ebooks em seu mos para o ereader. “Enquan ra – na formação intelectual, no desenvolvi truário. Os números são enfáti a uma to houver livro impresso em mento do raciocínio e da concentração, na cos e apontam uma tendência pesquisa que papel, eu me recuso a ler vir melhora do vocabulário e na vida social. E mundial. Mas no Brasil ain apontou a tualmente.” Para localizar edi a pequena revolução necessária para tanto é da há muito poucos usuários. expectativa ções esgotadas, Marilia já ex bem mais que tecnológica. O empresário Miguel da Ro de, até 2018, perimentou o Estante Virtual, cha Cavalcanti adquiriu o seu site que recebe 300 mil consul Conheça as novas Kindle nos Estados Unidos, tas diárias, dá acesso a cerca de www.estantevirtual.com.br tecnologias em abril de 2008. É leitor inve 1.500 estabelecimentos de 250 www.trocandolivros.com.br www.trocadelivros.com.br terado e acostumado a investir superarem cidades do país e a quase 5 mi em livros. Para ele, o ereader as obras em lhões de livros. A internet ofe é o começo de uma revolução. papel rece outras formas de aquisição “Reúne qualidades muito im de livros. Uma, a crossbooking, portantes do livro físico, como facilidade de são portais que criam redes de relacionamen carregar e conforto de leitura, com as vanta to de trocas de livros. Você cadastra o que já gens da internet, de acesso imediato à infor leu e não quer mais e diz o que procura. O mação, e do baixo custo”, conta. Cavalcanti único custo é o envio do exemplar. só se rende a livros impressos quando o as Infelizmente, a resistência maior do bra sunto é, digamos, mais emocional: se for au sileiro, como já foi dito, não é às tecnolo tografado pelo autor, por exemplo. gias, mas à leitura mesmo. E, para quem “Há de ser um aparelho para poucos no alega que isso ocorre em função do valor começo. Mas, dentro de alguns anos, crian do livro, William ças vão receber um na escola para ler seus li Nacked, diretorge PLUGADA, MAS vrinhos”, acredita outro empresário, Chris ral do Instituto Bra NEM TANTO tian Barbosa, usuário do Kindle há um ano, sil Leitor, rebate: Marilia diz que enquanto houver livro que reduziu drasticamente o consumo de “Pegar emprestado impresso se recusa a obras impressas, mas ainda visita as livra de um amigo, fami ler virtualmente
ENTREVISTA
O dono da área Um dos maiores zagueiros da história, Luís Pereira, hoje dirigente do Atlético de Madri, segue atento na marcação de empresários que tentam se dar bem à custa da molecada Por João Correia Filho, de Madri
Muitos jovens jogadores saem do Brasil e vêm para a Europa com o sonho de jogar futebol. Como funciona a seleção nas categorias de base de grandes times como o Atlético de Madri?
Na verdade, não é tão simples. Para jogar nos times de base daqui é preciso estar ligado à Comunidade Europeia, ter um passaporte de algum país da Comunidade Europeia. Eu não posso pegar um menino brasileiro, mesmo que seja espetacular, e trazer prá jogar nas categorias de base se ele não tiver esse pré-requisito. Sem isso, você só pode jogar na Primeira e na Segunda Divisão, na base já não pode. Pouca gente sabe disso, mas é verdade. E isso é algo que valoriza o atleta daqui, estimula muito a garotada do país.
38
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
JOÃO CORREIA
O
“paredão” Luís Pereira, como dizia o narrador Geral do José de Almeida, foi um dos jogadores mais lon gevos. Começou na defesa do São Bento de Sorocaba (SP) aos 18 anos, em 1967, fez fama no Palmeiras, na seleção brasileira e no Atlético de Madri. Passou por Flamengo, Portuguesa, Corinthians e encerrou a carreira várias ve zes. A última delas pelo “jovem” time do São Caetano ao lado de Serginho Chulapa, em 1997, com quase 48 anos. Em 1969, quando comandava a zaga da chamada Academia de Futebol do Palmeiras, ganhou o apelido de Luís Chevrolet depois de participar de uma propaganda do Opala. Baiano de Juazeiro do Norte, Luís Pereira está com 60 anos. Em Madri, é um dos mentores das categorias de base do Atlético, time pelo qual se consagrou como “el mago” ao vencer, junto com o colega de Academia Leivinha, a edição 19761977 do campeonato local. Lá, treina e ajuda a selecionar jovens promessas. Nesta entrevista à Revista do Brasil, conta um pouco de seu começo de carreira e da difícil realidade dos brasileiros que sonham com o sucesso na Europa – muitos abandonados à própria sorte por empresários e oportunistas. Se os jovens jogadores já não têm como tirar lições de seu futebol, vale a pena prestar atenção no que ainda tem para ensinar.
Então não tem brasileiro nas categorias de base do Atlético?
Tinha um no ano passado, mas era um garoto que tinha cidadania portuguesa. Isso, sim, acontece. Aliás, muita gente vai prá Portugal, onde é mais fácil, pros brasileiros, conseguir documentos para se lega lizar. Ficam um tempo por lá, jogam em times de lá, e aí fica mais fácil. Mas tem outro ponto importante: além dos documentos o garoto pre cisa ser visto jogando. Não dá prá contratar ninguém no escuro. Hou ve, por exemplo, uma vez que um empresário trouxe um garoto aqui no Atlético de Madri, conversou com um diretor nosso e o diretor veio falar comigo. Contou que o empresário havia dito que me conhecia. Bom, mas eu não conhecia esse empresário. Acontece isso direto, de gente que diz que me conhece. Mas, se eu nem ninguém aqui conhe ce o garoto, não tem a mínima chance. Outro caso foi há uns quatro anos. Um senhor me telefonou do Brasil e perguntou se era verdade
que eu ia colocar o filho dele no Atlético de Madri. Como vai pro Atlético de Madri? Nem tô sabendo de nada, pô! Aí ele começou a se ligar que esse empresário estava jo gando com ele. “Claro que o cara está jogando contigo”, eu disse. E ele me contou que o tal empresário tinha pedido um dinheiro para passaporte, documentos no consulado etc. Perguntei aonde ele ia levar o tal dinheiro, e o cara me disse “num supermercado”... Pode? Você já sofreu pressão ou ofertas de empresários para aprovar alguém, facilitar as coisas?
Já deram a entender várias vezes. Eu fiquei na minha e não disse nada, fiz que não tinha entendido. Não vou me queimar por isso. Mas a pressão dos empresários aqui é bem menor que no Brasil. Claro que existe, mas é bem menor. Aqui quem decide mais é o pessoal da equipe técnica, pois existe uma comissão que precisa decidir junto. No Brasil funciona só na base de empre sário. E eles querem trazer para cá, porque, se põem um jogador aqui, eles se valorizam, o jogador e o empresá rio. Então, o que muitos deles fazem: trazem um monte de meninos para a Europa e vão distribuindo em vários lugares. Depois, quando veem que não vai dar certo um ou outro, abandonam os garotos. Vão distribuindo, um aqui na Espanha, outro na Inglaterra, depois deixam por aí. Acontece bastante. Tudo molecada. Ficam aqui sem nenhuma estrutura, pois vêm do Brasil meio “du ros”, e aqui você tem de pagar um hotel, uma comida, se movimentar, pegar um ônibus, é tudo muito caro. Acontecem umas barbaridades, prometem o mundo e o fundo pros pais e pros garotos, e depois largam.
Na sua época empresário tinha essa força toda?
Já existia empresário, mas não era tanto. O que era igual é que o jogador sempre tem o sonho de jogar na se leção brasileira. Eu, prá falar a verdade, por muito tempo não tive essa ilusão porque trabalhava duro. Depois que comecei a jogar futebol, aí sim, comecei a sonhar com isso. Trabalhei em metalúrgica. Bom, na verdade eu tra balhei em tudo. Nessa época o importante era trabalhar e ter o dinheirinho, ajudar a família, família humilde. Até que tive oportunidade no São Bento. Embora eu tivesse trabalho, fui fazer uma prova e me ofereceram um salá rio maior, com contrato por um ano. Aí eu pensei: poxa, vou ganhar mais prá fazer o que gosto, não sou tonto de dizer não. E depois de dois anos estava no Palmeiras.
Como foi sua contratação, tinha empresário?
Não, foram amigos que me incentivaram e eu fui fa zer o teste. Não teve nada de empresário. Nunca tive empresário. Naquela época também havia empresário, mas minha história é diferente. Eu vim para a Espanha porque o Palmeiras jogava todo ano aqui, no torneio mais importante da Espanha, o Troféu Ramón de Car ranza, fomos campeões quatro vezes. Então fomos con vidados prá fazer uma preliminar de um jogo do Atlé tico, uma despedida de um jogador, uma baita festa.
Fizemos a despedida e, na viagem de volta, no avião, me chamaram lá na primeira classe, o vice-presidente e o médico: “Você gostaria de jogar na Espanha?” Na quela semana vencia o contrato aqui no Brasil, com o Palmeiras. Isso foi numa terça-feira. Chegamos na quarta no Brasil. À noite me chamaram. Já tinham me vendido. Eu nem estava sabendo. Mas você não tinha dito “tudo bem” no avião?
Saca só: eu estou viajando para o Brasil, tomando umas cervejas, o “nego” me chama e pergunta se que ro jogar no Atlético de Madri? Disse que sim na hora, claro. Na quinta de manhã fiz o exame médico e à noite tive de voar para a Espanha porque na sexta encerra vam as inscrições de novos jogadores.
Na época não tinha essa coisa de ficar milionário vindo prá cá?
Não. Ganhava-se muito, claro, mais do que no Bra sil, mas hoje é um absurdo. Se o cara tiver cabeça, ele compra um apartamento por mês. E se ele ficar com um contrato de três anos numa equipe ele está “de puta madre” (expressão espanhola que significa estar muito bem), compra um bairro (risos). O problema é que uma parte dos jogadores não sabe lidar com isso. Quem anda de fusquinha vai querer comprar uma Ferrari. Precisa ter uma estrutura, ou vai pro buraco. Um assessor, um advogado, isso tudo pode ajudar, mas também pode da nar o cara, depende de com quem ele está. O problema muitas vezes é que o cara pega um empresário que só gosta do dinheiro. Fica indo de um lado pro outro por que vai ganhar mais dinheiro aqui ou ali, e o jogador fica deslumbrado. Veja o Robinho: saiu brigado do Real Madri, foi para a Inglaterra achando que era o dono da cocada preta e acabou no banco, cheio de problema.
Tem jogador que não se adapta?
Aqui na Espanha nem tanto. Você pega uns meses de inverno, mas pega verão de 40 graus. De qualquer forma, se você está pensando em ser jogador de fute bol tem de estar disposto. Eu aqui me adaptei bem, sou um cara muito aberto prá tudo. O idioma também não é tão complicado. Além disso, é um país que acolhe os brasileiros muito bem, minha família vive toda aqui.
Você tem acompanhado o futebol brasileiro? O que acha da atuação do Dunga na seleção?
No Brasil há muitos treinadores que já demonstra ram ter mais condições, como o Luiz Felipe Scolari, o Leão, o Wanderley Luxemburgo, o Muricy Ramalho. O Mano Menezes também, pois fez um trabalho incrível no Grêmio e agora no Corinthians. Não tenho gostado da forma de jogar da seleção brasileira, do estilo de jogo do Dunga, um jogo muito amarrado, que vem desde o Zagallo. A questão é que o Brasil tem tido a sorte de ter bons jogadores que acabam resolvendo uma parti da. Isso ajuda. Mas não sei até quando.
Tem empresários que trazem um monte de meninos para a Europa e os distribuem em vários lugares. Depois, quando veem que não vai dar certo, abandonam
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
39
CULTURA
Bico na segregação Num momento em que o futebol aflora como esperança de redenção africana, Invictus, de Clint Eastwood, lembra o papel histórico do Mundial de Rúgbi de 1995, golaço de Mandela pela igualdade racial Por Marta Reis 40
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
S
e você conhece um pouco a his tória recente da África do Sul, deve saber que o país da próxi ma Copa do Mundo viveu mais de 40 anos sob o regime do apar theid, que Nelson Mandela ficou 27 anos na prisão e ganhou o Nobel da Paz. Mas o que você sabe sobre a Copa do Mundo de Rúgbi de 1995, a competição que transcendeu o esporte e se tornou a metáfora de país ideal para a África do Sul? O torneio foi um momento crucial da história sul-africana. Tanto que virou tema de livros, de documentários e agora de filme de Hollywood. Dirigido por Clint Eastwood, Invictus, que estreou no Brasil no final de janeiro, já é um dos candida tos a protagonista na festa do Oscar. Além da grife na direção, tem ainda Morgan Fre eman (quem mais poderia ser?) no papel de Nelson Mandela e Matt Damon como o capitão da equipe sul-africana de rúgbi, François Pienaar. Baseado no livro Conquistando o Inimigo, do jornalista inglês John Carlin, Invictus
conta a manobra inteligente, porém arris cada, de Mandela ao usar o rúgbi para unir o país. Para isso, precisava persuadir os ne gros a torcer pela seleção de rúgbi da África do Sul, formada quase exclusivamente por brancos (apenas um jogador era mestiço). A ideia era ousada, quase uma utopia, por que por décadas o rúgbi era visto pelos ne gros como esporte de brancos, e portanto um símbolo do regime de segregação racial. Mas Mandela defendia o lema “um time, um país”, e precisava convencer também os brancos de que a chegada dele ao poder não viria com revanchismo ou vingança. “Mandela argumentava que o país pre cisava mudar, e que iria mudar, mas que as pessoas não deveriam se preocupar, porque seria uma mudança para melhor. Sua ideia de usar o rúgbi foi genial, e o filme retrata isso muito bem”, elogia o ex-jogador de rúg bi Mark Andrews, que fez parte da seleção de 1995. “Claro que tem um pouco daquele glamour hollywoodiano, mas é também fiel à realidade. Morgan Freeman está perfeito como Mandela.”
VENCEDORES Triunfal, Mandela felicita o capitão François Pienaar. No detalhe, a mesma cena em Invictus, com Morgan Freeman e Matt Damon
DIVULGAÇÃO
Quatro décadas de apartheid haviam transformado a África do Sul em um país segregado em todos os aspectos, inclusive nos esportes. Enquanto os brancos eram fanáticos pelo rúgbi, os negros amavam o futebol. Mais do que isso, odiavam a sele ção sulafricana de rúgbi – os Springboks – e costumavam acompanhar as partidas só para apoiar os adversários estrangeiros. O próprio Mandela admitiu ter torcido di versas vezes contra os Springboks, embora, assim como a maioria dos negros, não co nhecesse a fundo a modalidade. Só que, mais do que simplesmente odiar, Mandela percebeu que a melhor forma de superar o inimigo de então era entendêlo. Ainda na prisão, estudou a lín gua e a cultura dos africâneres, a etnia branca que montou o apartheid. Foi a partir daí que enten deu como o rúgbi DIVULGAÇÃO
HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES
CONQUISTANDO O INIMIGO Matt Damon comanda a equipe sul-africana de rúgbi no filme de Clint Eastwood
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
41
CHARLES PLATIAU/REUTERS
“MESTIÇO” Chester Williams carrega a bola durante jogo da Copa de 1995
era importante para eles. E quando se tor nou presidente, já com 75 anos, enxer gou na realização da Copa do Mundo de Rúgbi em solo sul-africano um potencial elemento de união do país, apesar de to das as previsões pessimistas tanto de seus aliados quanto da direita branca.
Pé de guerra
A aproximação de Mandela, um expoen te negro, com o rúgbi, um símbolo bran co, também foi uma das várias formas en contradas por ele para jogar água fria nas tensões que sucederam o fim do apartheid e, por que não, evitar até uma guerra civil que se desenhava no país. A realização das primeiras eleições livres em 1994 não havia eliminado as tensões políticas e o medo de uma revolução, fosse por parte dos brancos, fosse dos negros. Para ganhar a confiança dos Springboks, Mandela se aproximou do capitão do time, François Pienaar, um jovem branco mui to mais interessado em esporte do que em política. Em uma reunião apenas entre os dois, o presidente abandonou a liturgia do cargo e serviu chá ao convidado, uma for ma de mostrar que aquela era uma conversa entre amigos, e não entre uma autoridade e um jogador. Além disso, Mandela por ve zes interrompia a agenda presidencial para
42
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
visitas-surpresa aos treinos do time. Ele sa bia que o sucesso de sua estratégia dependia muito de um bom desempenho da equipe – e, para isso, era preciso convencê-la a jogar também por ele. Meses antes do início do mundial de 1995, as chances de os Springboks se tornarem campeões eram tidas como pequenas, pro porcionais, aliás, às chances de o plano de Mandela dar certo. Mas, conforme a equipe avançava na competição, crescia também a união dos sul-africanos em torno da seleção. “Na verdade, os negros iam aos jogos mais por causa de Mandela do que para torcer pela gente. Mas aos poucos foram ficando do lado do time”, relata Andrews. Na época, a África do Sul só tinha um jogador não branco. Chester Williams era classificado como coloured (mestiço), o que pelas definições racistas do apartheid estava mais próximo dos brancos que dos negros. No entanto, fisicamente era mais parecido com os negros. Por isso, seu rosto foi estam pado em todas as peças de publicidade dos Springboks como símbolo de um novo país. “Embora fosse considerado coloured, eu me sentia honrado de representar a comunida de negra da África do Sul. Ao mesmo tempo foi uma grande pressão e responsabilidade. Felizmente consegui corresponder dentro de campo”, relembra Chester.
Hoje com 39 anos, ele é capaz de descre ver em detalhes o mundial de 1995, inclu sive as aulas que os jogadores tiveram para aprender a cantar os trechos em xhosa – uma das 11 línguas oficiais do país – do novo hino da África do Sul. Somente dois dos 24 jogadores do time falavam o idioma (o de origem de Mandela), e Chester não era um deles. “O time sabia da importância de apren der o hino, pois precisávamos incorporar o lema defendido por Mandela. Assim como era pedido aos negros que entrassem no mundo dos brancos, era preciso que os jo gadores também quisessem participar do mundo dos negros. Mesmo assim, aquelas palavras soavam muito estranhas prá gen te e alguns jogadores foram mais resisten tes”, conta. Para o atleta, o ponto alto da Copa do Mundo foi a entrada triunfal de Mandela no estádio Ellis Park, em Johannesburgo, no dia da final contra a Nova Zelândia: “Ele usava o casaco dos Springboks com o número de Pienaar nas costas e foi aplau dido por todos, brancos e negros. Nunca vou esquecer aquela imagem”, descreve. “Espero que a Copa do Mundo de futebol deste ano possa fazer o mesmo. Os sulafricanos precisam se unir para apoiar o país, seja no rúgbi, seja no futebol.” Os Springboks conseguiram vencer a fa vorita seleção da Nova Zelândia e se con sagraram campeões mundiais de rúgbi pela primeira vez. Era o final perfeito para coroar os esforços do presidente Nelson Mandela. O líder da resistência ao apartheid havia conseguido transformar ódio em perdão; guerra em celebração. Invictus estreou na África do Sul no dia 11 de dezembro e teve boa receptividade do público. Nos primeiros três dias, foram cerca de 50 mil espectadores, o que para os padrões do país é bastante satisfatório. Foi uma das melhores estreias nacionais para um filme de drama, à frente de títulos como Diamante de Sangue e O Curioso Caso de Benjamin Button. Mesmo assim, Mark An drews esperava mais. “As salas de cinema não estão cheias, as pessoas não estão indo prestigiar o filme como deveriam. Talvez porque ele traga recordações de um período complicado da nossa história. Muitos o estão evitan do para que não precisem explicar a seus filhos o que aconteceu no passado. Prefe rem esquecer.”
TRADIÇÃO
Outros carnavais
Quem escuta o batuque do maracatu nunca esquece, mas quem conhece sua história e origens se entrega de vez a uma das tradições mais antigas do país Por Karla Roque. Fotos de Eduardo Zappia
O
ritmo, proveniente do conti nente africano, desenvolveu se principalmente no nordes te brasileiro, no coração de Pernambuco, há mais de 300 anos. E em Igarassu, Região Metropolitana do Recife, ainda está em atividade o mara catu mais antigo do país, o Estrela Brilhante. Sua origem se confunde com a do próprio maracatu, como manifestação popular. A história remonta ao período da colonização na Capitania de Itamaracá, quando o pes quisador inglês Henry Koster registrou em livro a coroação do Rei do Congo, na extinta Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pre tos, em Vila Velha. Com o fim da escravidão essas exibições deixaram de existir, restando apenas o cortejo que é o maracatu de hoje, realizado durante o Carnaval. 44
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Não se sabe com precisão a data de fun dação do Estrela Brilhante. A antiga ma triarca do folguedo, Maria Sérgia de San tana, dona Mariú, contava que a partir de 1824 o ritmo passou para o seu pai e de pois para as mãos do seu marido, Manoel Próspero de Santana, o seu Neusa, mestre de batuque da nação. Em Igarassu, cons truíram uma família com 19 filhos, levan tando naquela época a sede do Maracatu. Após a morte do marido, ela assumiu a en tidade, dando continuidade ao trabalho de seu Neusa. Com a morte de dona Mariú – aos 105 anos, em 2003 –, o comando do Maracatu passou para sua filha Olga de Santana Batis ta. “Comecei no maracatu com 10 anos de idade e até hoje estou brincando, e só dei xarei quando morrer. Mas, quando eu não
puder mais brincar, meu filho mais novo, Gilmar de Santana, vai tomar conta do ma racatu, como fez minha mãe, para o Estrela Brilhante não acabar”, resumiu. Já são 185 anos mantendo a tradição com suas cores, músicas e danças, que compõem a cerimônia de coroação da rainha e do rei do Maracatu. O Estrela Brilhante desfila com a nação completa, ou seja, com todos os seus integrantes, segundo Gilberto, filho mais velho de dona Olga. “Abrindo alas vem o porta-estandarte, que sou eu, e a dama de honra, que é acompanhada pela corte: vassalo, ministro de guerra, que sai com a espada na frente indicando ser o segurança
outros respondem, com cada início e final marcados ao som de um apito. Os temas gi ram em torno da história do maracatu, do seu povo e dos santos do catolicismo, todos na voz de dona Olga e do mestre Gilmar. O cortejo da realeza é justamente o dife rencial do maracatu nação em relação ao outro tipo de maracatu, o rural ou baque solto. Mas o que distingue a nação Estre la Brilhante das outras é a preservação da tradição. O modelo das roupas é o mesmo do passado, com a utilização de várias ca madas de saia, que formam um volume na tural, em vez das armações de sustentação, comuns nos maracatus atuais. Não existe
dona Olga, que na experiência dos seus 73 anos já colocou dez filhos no mundo e sen tiu a perda de seis deles. Hoje, a rainha é sua filha-neta e o rei, um dos integrantes da comunidade. Desse grupo, 60 são músicos formados na comunidade, e com a perspectiva de au mentar o número de batuqueiros para este Carnaval. A expectativa é resultado do Pon to de Cultura Estrela para Todos, criado ano passado na sede do Maracatu. O espaço já conta com aulas de percussão e dança, e ainda virá a ter oficinas de costura e confec ção de instrumentos. O objetivo é fortalecer a cultura local e das regiões próximas, res
da nação, príncipe, rei, rainha e as catirinas, que são as baianas”, explica. Para ele, um dos momentos mais importantes é a dança da Dama do Paço carregando a calunga, ou boneca, que passa na frente das igrejas, du rante o cortejo, para homenagear e agradar às divindades negras. Em seguida a boneca é entregue à rainha e, depois, às baianas. A calunga é a dona do maracatu e traz consigo toda a força dos orixás, dos antepassa dos, protegendo a nação e seus componentes. Ao longo de sua história oral existiram duas calungas: a primeira, Joventina, foi Dona Olga roubada, aparecendo de pois em outro maracatu, e hoje está no Mu seu do Homem do Nordeste; e dona Emília, que já comanda o maracatu há uns 80 anos. Por fim, o cortejo é acompanhado dos batuqueiros encarregados de alegrar e dar ritmo ao desfile. A orquestra é constituída só de instrumentos de percussão, os mes mos que eram tocados nos tempos dos ne gros, como gonguê, bombo (alfaia), caixas de guerra (tarol) e mineiro. A música é can tada em diálogo, o mestre tira uma loa e os
uma cor específica, mas a cor de todos os orixás, com exceção das roupas do rei e da rainha, definidas segundo orientação do pai de santo. Uma de suas particularidades é a ausên cia de mulheres no batuque. As matriar cas afirmam que a proibição tem ligação com o candomblé, em que as mulheres também não fazem percussão no terrei ro. Dona Olga aprendeu e ensina que, de acordo com o candomblé, a mu lher tem seu corpo aberto todos os meses, ao con trário do homem, e nes se período não pode fazer Mestre Gilmar nada se tiver alguma obri gação com santo. Por outro lado, os homens não podem participar da dança e da corte, com exceção do rei, dos vassalos e do por ta-estandarte. O Estrela Brilhante tem 150 componen tes, todos da própria comunidade do Sítio Histórico de Igarassu, a maioria descen dente da nova matriarca e rainha negra, dona Olga. São filhos, netos, primos e vi zinhos envolvidos na brincadeira do ma racatu. A integrante mais antiga é mesmo
gatando outras expressões artísticas exis tentes no município e proporcionando ain da a geração de renda na comunidade. O grupo gravou seu primeiro CD em 2003, intitulado Estrela Brilhante de Igarassu, 180 Anos. O trabalho reuniu apre sentações nos polos de cultura das prefei turas de Igarassu, Olinda e Recife e de fora do Estado. E ainda a primeira viagem in ternacional, à cidade portuguesa de Viana do Castelo. Outra conquista foi o Prêmio Humberto Maracanã, que possibilitou a se gunda edição do CD, no início de 2009, e o reconhecimento como Ponto de Cultura – o que permite o acesso a recursos do Minis tério da Cultura para o custeio de ações na comunidade voltadas à inclusão social e à geração de oportunidades por meio da pro dução artística. A grande conquista veio no fim do ano passado, quando receberam o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. Se depender da família Santana, o Ma racatu Estrela Brilhante vai continuar sua batalha para manter viva essa tradição se cular, jogando para a frente, passando seus conhecimentos e histórias para outras co munidades e as futuras gerações, como um dia fizeram seus antepassados. FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
45
VIAGEM VALE HERMOSO O aventureiro pode cavalgar nas termas do rio Cobre, mergulhar, fazer trekking ou alugar uma bicicleta
NEVE OU POEIRA Estação de esqui mais elevada da Argentina atrai também os aficionados por diversões típicas do verão Por Evelyn Pedrozo
D
urante pouco mais de 100 dias por ano o vale de Las Leñas, no sul da Argentina, fica encoberto por uma neve de pureza reconhecida pelos praticantes de es qui, snowboard e motoneve. É uma marca caracterís tica do clima seco local, a 450 quilômetros da capital da província de Mendoza, município de Malargüe, e a 1.200 qui lômetros de Buenos Aires. A temporada de inverno vai de 11 de junho a 24 de setembro nos 230 hectares de superfície esquiável, com opções de pistas para ini ciantes e intermediários. Nesse período, quando a natureza tinge todas as montanhas de branco, as temperaturas oscilam entre os 11 graus positivos e 1,4 negativo. Mas a região é famosa pelos dias ensolarados, seguidos pelas longas horas de tempestade de neve. Las Leñas é a estação de esqui mais elevada da Argentina. O cume está a 3.430 metros e a base, a 2.240 metros, formando um desnível de 1.190 metros. Construído em 1980, o vale, no extremo sul da Cordilheira dos Andes, conta com 3 mil vagas em cinco ho téis e dois apart-hotéis. Entre as 28 pistas, cuja longitude máxima esquiável é de 7.050 metros, destaca-se uma das mais compridas do mundo para nível intermediário. O vale conta com sistema de 46
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Expedição Lost A aventura se desenvolve no local onde ocor
reu um dos mais famosos acidentes aéreos, em plena Cordilheira dos Andes. Os visitantes fazem a travessia em três dias e chegam aos restos do avião Fairchild, da Força Aérea Uruguaia, que caiu em 1972 no coração da cordilheira.
Tirolesa do grito Em uma travessia de 400 metros de largura se cruza o vale pelas elevações das montanhas. É quase um voo. Para chegar à área da tirolesa se faz uma longa caminhada, que termina na parte superior. Os aventureiros são colocados em um cabo que os leva a 60 metros de altura. Daí para a frente, a emoção fica garantida. Mountain bike Para se aventurar na bicicleta existe o percurso tradicional e um outro com maior grau de dificuldade. Para se de finir qual deles deve ser percorrido, os participantes são avaliados por instrutores. A intensidade dos percursos pode ser intercalada.
Trekking Os circuitos de trekking desenhados por Las Leñas, tanto o tradicional quanto aquele com maior grau de dificuldade, permitem a passagem por cachoeiras e vales. No trajeto a pé, os aventureiros recebem informações sobre a flora e a fauna locais. Cavalgada Os organizadores da atividade afirmam que para per correr as paisagens da montanha a cavalo não é preciso ter experiên cia. Em animais mansos, pode-se atravessar rios, subir e descer co linas com facilidade. Neste verão, uma nova cavalgada de meio dia ao vale Hermoso permite chegar aos poços de água termal do rio Cobre, onde não se pode perder um banho quente natural. Escalada, rappel, tirolesa Após o traslado de 10 minutos em automóvel até a parede da escalada, se atravessa o rio Salado. Com a técnica de tirolesa de 25 metros, são escaladas as paredes naturais de Los Morros, que se descem em rappel, voltando a cruzar o rio. Rafting A aventura começa no vale, saindo em traslado até a base, na nascente do rio Salado, onde começam a descida do rio e a emoção nas balsas em aproximadamente 10 quilômetros. Quadriciclo Em quadriciclos pode-se fazer circuitos diverti dos. O terreno de Las Leñas é ideal para esse tipo de veículo. O trajeto de uma ou duas horas é feito com guias.
Saiba mais www.laslenas.com
INVERNO, À NOITE Quem gosta de frio vai se deliciar com a temperatura média de 6 graus e o visual diferenciado
FOTOS DIVULGAÇÃO
fabricação de neve artificial. Também tem especialistas em moni toramento de avalanches. A chegada do verão transforma a paisagem. Nesta época do ano, com temperatura média de 23 graus, saem de cena os pesados equi pamentos de esqui e snowboard e surge nas montanhas uma gran de variedade de equipamentos de aventuras de verão. As paisagens podem ser percorridas de bicicleta, a cavalo, de canoa ou simples mente realizando o trekking nas trilhas e cavernas das montanhas ocultas na cordilheira. Conheça algumas aventuras de verão:
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
47
CurtaEssaDica
Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
Suingue e malandragem Da pobreza ao estrelato, e ao ostracismo. Nem Vem Que Não Tem – A Vida e o Veneno de Wilson Simonal (Globo Livros) é uma grande e completa reportagem sobre esse artista que fez – e ainda faz – milhões dançarem no ritmo de sua charmosa malandragem. Depois do documentário Ninguém Sabe o Duro Que Dei, o livro destrincha Simonal – a infância, o cotidiano no Exército, as humilhações, o racismo, o resgate da autoestima, as extravagâncias, a ingenuidade, a malandragem e o “exílio” a que foi submetido depois da acusação de ter sido o mandante do sequestro e tortura de seu contador. O texto de Ricardo Alexandre flui bem e é permeado com algumas fotos. R$ 30, em média.
Crianças convidam O Projeto Guri, ONG que oferece cursos de iniciação e teoria musical, coral e instrumentos de cordas, madeiras, sopro e percussão para crianças e jovens de São Paulo, comemora seus 15 anos com o lançamento do CD Projeto Guri Convida (MCD). São 18 faixas com participação de 380 alunos, três arranjadores, cinco produtores e 23 artistas convidados, entre eles Thalma de Freitas, Antonio Pinto, Arnaldo Antunes, Céu e Os Sonantes, Anelis Assumpção, Fernanda Takai, Zélia Duncan, Mauricio Pereira, Siba, Curumin, Iara Rennó, Rappin Hood e André Abujamra. Letras, arranjos, interpretações e o encarte, tudo é um mimo para todas as idades. Disponível nas Livrarias Cultura e Saraiva. R$ 29.
Lisboa, 2004
Vida alheia
Até 28 de fevereiro 80 fotografias do gaúcho Flávio Damm estarão expostas no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. Também referência no fotojornalismo brasileiro, ele capta a vida dos outros de forma poética e perspicaz. Adepto da película em preto e branco, que o acompanha desde o início de sua carreira, em 1944, Damm agora apresenta o “carrochefe” de sua trajetória como fotógrafo e novas peças produzidas em Portugal e Paris. É uma retrospectiva de “64 anos de câmera na mão”, diz Damm. Rua Marechal Hermes, 999, (41) 33504400. De terça a domingo, das 10h às 18h. R$ 2 e R$ 4.
Os olhos de Diadorim Guimarães Rosa escreveu Grande Sertão: Veredas em 1956 para ser uma das novelas de seu Corpo de Baile. Mas a narrativa ganhou pernas e muita personalidade. Conduzida pelo narrador Riobaldo e seu amigo de infância Diadorim, a história virou uma das mais importantes da literatura em língua portuguesa. Em 1985, Grande Sertão virou minissérie, dirigida por Walter Avancini, com Toni Ramos no papel de Riobaldo. E agora sai em DVD. A caixa com quatro discos talvez não seja a melhor forma de “ler” Guimarães Rosa, mas é uma boa oportunidade de rever Bruna Lombardi na pele de Diadorim.
48
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
Bruna Lombardi como Diadorim
Enedina Maria da Conceição, 95 anos, nasceu em Nizia Floresta (RN). Quando pequena foi entregue pela família. Apanhava constantemente para trabalhar. Teve uma filha, nove netas, 20 bisnetas e oito tataranetas
Retrato do Brasil Direitos humanos e fotografia, tudo a ver. É o que traduz o trabalho do brasi leiro João Roberto Ripper, especializado em fotografia social e documental e em fotojornalismo. Índios, mulheres, crian ças, idosos e o cotidiano de trabalhado res revelam, com sensibilidade ímpar, vidas que traduzem a realidade brasilei ra, com sofrimento e sorrisos. Agora, parte de sua obra pode ser con ferida no livro Imagens Humanas (Dona Rosa Produções, R$ 75), com 240 páginas, 195 fotos em preto e branco (algumas de las inéditas), textos de Carlos Walter, Dante Gastaldoni, Emir Sader e Mariano Marinho, além de entrevista exclusiva com Ripper. A im pressão que se tem pelas imagens é que Ripper é por vezes invisível, por vezes extremamente próximo dos fotografados – há intimidade e cumplicidade nas cenas. O livro é um resumo dos 35 anos de carreira desse profissional que, além de fotógrafo, é um militante social que cobriu o Brasil de Norte a Sul, participou de mais de 30 exposições nacionais e internacionais, é autor de documentários sobre índios, carvoeiros e trabalho escravo, tem suas fotos nas coleções do Itaú Cultural e Pirelli Masp e ganhou nove prêmios internacionais com seus projetos artísticos focados nos direitos humanos. Ripper também dá aula de fotografia na agência-escola Imagens do Povo, criada em 2004, na Maré, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. O lançamento do livro faz parte das comemorações dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, completados em dezembro de 2009, e os direitos autorais serão integralmente doados ao Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus, na Bahia.
Akayeratá dos Santos e sua mãe, Noêmia, pataxós na aldeia Jaqueira, em Santa Cruz de Cabrália (BA)
FEVEREIRO 2010 REVISTA DO BRASIL
49
Evelyn Pedrozo
Resistência e desacato
N
o último dia 7 de janeiro André Furlan, de 29 anos, foi paralisado pelo jato de spray pimenta lançado por um policial militar, durante manifestação popu lar comandada pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo. “Os policiais começaram a agredir as pessoas, eu decidi aplaudir a atitude e fui covardemente agredido. Eles ganham na for ça, mas moralmente a gente sempre vence”, desabafa o militante. A colega do lado esquerdo foi levada para o 1º Distrito Policial, acusa da de desacato à autoridade depois de ter tentado defender o mani festante. Outras três pessoas foram detidas sob a mesma alegação. O prefeito Gilberto Kassab elevou a tarifa de R$ 2,30 para R$ 2,70, o que representou aumento de 17,39%. Os protestos reali zados naquela tarde no terminal de ônibus Dom Pedro, e no dia 14 em todo o centro da cidade, buscam reverter o reajuste, fato já ocorrido em Florianópolis, capital de Santa Catarina. Em julho de 2004, manifestação liderada pelo MPL conseguiu barrar a eleva ção de 15,6% nos preços. Porém, antes disso, também houve mui ta agressão policial. A cidade parou na famosa “Revolta da Catra ca”. Houve a participação de estudantes, associações de moradores, professores, sindicatos e da população em geral. O MPL, com atuação nas principais cidades do país, busca um modelo de transporte com garantia de acesso através do passe livre
50
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2010
NELSON ANTOINE/FOLHA IMAGEM
Atitude
para toda a população. O movimento foi criado em 2005, durante a realização do Fórum Social Mundial. A revolta popular que ori ginou o MPL aconteceu em Salvador, capital da Bahia. Em 2003, milhares de jovens, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras fe charam as vias públicas, protestando contra o aumento da tarifa. Durante dez dias, a cidade ficou paralisada. O ocorrido foi retratado no documentário A Revolta do Buzu, de Carlos Pronzato. Foi uma greve realizada em 2004 na Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec) que preparou o então estudante de Programação de Computadores André Furlan para a militância estudantil. Logo depois do engajamento ele passou a integrar um movimento político anarquista. Conclusão dele após esses anos de luta social é que não dá pra esperar nada além de violência e intimidação por parte da polícia. Segundo André, ao desespero provocado pelos jatos de spray de pimenta no rosto, que dificultam a respiração, somou-se o mal-estar causado pela liberação de gás lacrimogêneo. “Tive a impressão de que morreria. Foram duas horas de sofrimento”, relata. Para ele, o importante é que episódios dessa natureza ajudam a criar consciência política na população. “Foi bacana ver o povo me aplaudindo depois de tanta violência. É a força da indignação.” E isso acontece lentamente. Ele disse que até a mãe, antes de direita, já está “despelegando”.
Em 2009, o SEbraE EStimulou a microEmprESa a SupErar a criSE. E o SEtor criou cErca dE 1.300.000 EmprEgoS.
para o dESEnvolvimEnto continuar Em 2010, contamoS com o SEu EnvolvimEnto: Exija a lEi gEral no SEu município.
A Lei Geral da Micro e Pequena Empresa é fundamental para fortalecer a economia dos municípios. Com a simplificação de impostos e outras facilidades, os pequenos negócios foram responsáveis pela criação de aproximadamente 80% dos empregos formais do país em 2009. Para o desenvolvimento não parar, cobre do seu prefeito ou vereador a regulamentação da Lei Geral no seu município. Seu envolvimento vai garantir um feliz 2010.
0800 570 0800 www.sebrae.com.br