BRASÍLIA, 50 Da prancheta de Niemeyer e Lúcio Costa à urbanização caótica
nº 46
abril/2010
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UTOPIA E BARBÁRIE Silvio Tendler, a arte de sintetizar a história e levá-la ao cinema DESERTO VERDE Eucalipto, agrotóxico, monocultura: um triângulo destruidor
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I SSN 1981-4283
Afinada, a elite brasileira traça seu plano de mídia para a sucessão de Lula
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NO MESMO TOM
R$ 5,00
GRIPE A Com impacto do vírus ainda imprevisível, vacina será levada a grupos mais frágeis
A história se faz com transformação LEIA. Revista do Brasil. Peça ao seu jornaleiro ou assine: www.redebrasilatual.com.br/loja. OUÇA. Jornal Brasil Atual. De 2ª a 6ª feira, das 7h às 8h, na FM 97,3 Grande São Paulo. NAVEGUE. Na revista, no rádio ou na internet. Informação que transforma
Agora também no seu celular. Acesse: m.redebrasilatual.com.br
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Índice
Editorial
Jabor e a democracia: “A questão é como impedir o pensamento de uma velha esquerda”
Calendário antecipado CHRISTIANE HAMELIN/MINIST. DO TURISMO DE QUEBEC
Montreal: neve, diversão e cultura
Viagem 44 Acolhedora, Montreal parece um pedaço da Europa na América
SEÇÕES Cartas 6 Ponto de Vista
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Na Rede
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Atitude 35 Curta Essa Dica
DIVULGAÇÃO
Mídia 10 Ressabiada, imprensa conservadora articula pauta para “ganhar” eleição Economia 16 Europa sofre com a crise econômica, mas o Brasil continua protegido Trabalho 20 Terceirização segue ameaçando direitos e mobiliza sindicatos Urbanismo 22 Aos 50 anos, a planejada Brasília enfrenta crescimento desordenado Entrevista 26 O carioca Oswaldo Montenegro fala de suas raízes brasilienses Saúde 28 Governo define grupos vulneráveis e inicia vacinação contra gripe A Ambiente 32 Monocultura, eucalipto e agrotóxico prejudicam economia e saúde Cultura 36 Utopia e Barbárie, de Silvio Tendler, retrata fatos dos últimos 60 anos História 40 Rousseau e as ideias influenciadas por sua amada, Madame de Warens
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Crônica 50
O
calendário eleitoral deste ano determina que a propaganda eleitoral será permitida a partir de 6 de julho. No mesmo período, os partidos políticos e as coligações estão liberados para realizar comícios. Mas, a exemplo do que acontece com a Copa do Mundo, quando a preocupação começa muito antes de rolar a bola, a campanha já começou de fato, sobretudo em relação à Presidência da República. Basta acompanhar atentamente o noticiário e a atuação dos governantes. Agora, um dos principais debates está na escolha dos vices, a partir do momento em que os candidatos ao Planalto estão praticamente definidos. O primeiro desdobramento dessa corrida é o tratamento dado às notícias. Pautas podem ser reforçadas ou esvaziadas de acordo com as conveniências partidárias. Criam-se escândalos sazonais, que voltam acompanhando a agenda eleitoral. Donos de meios de comunicação, ou seus porta-vozes, gritam contra o Estado empunhando a bandeira da “liberdade de expressão” – apenas para eles, à medida que defendem também que o tratamento não deve ser igual para todos. A expressão não é nova, mas liberdade de imprensa tornou-se liberdade para as empresas, que em muitos casos adotam discursos raivosos ou ressentidos, na defesa de seus oligopólios. Mas, paradoxalmente, não é no terreno da política que se conhecerão os programas de gestão para o Brasil. É no terreno da economia e das políticas sociais que o embate é mais acirrado, pois estarão em disputa dois projetos antagônicos. O que defende um Estado forte, que impulsione o crescimento econômico, com apoio de políticas sociais, e outro, defensor do liberalismo econômico, sem regulação, com redução do papel do Estado e diminuição de políticas públicas. Por isso, o eleitor deve procurar se informar sempre de forma crítica e buscar a verdade no maior número de fontes possível. A internet oferece inúmeras alternativas de informação. Por mais que o barulho que se ouve no noticiário possa às vezes ensurdecer, é importante apurar os ouvidos para o que é fato – e para o que está atrás do fato. A liberdade de expressão é um patrimônio do qual ninguém pode abrir mão, mas não pode ser pretexto para perpetuar injustiças, distorcer fatos e caluniar pessoas. O preço da liberdade é a eterna vigilância, disse um pensador. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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Estamos vivendo um novo Brasil. Feito por você. Respeitado pelo mundo. Nós brasileiros conquistamos um país cada vez melhor para todos. Estamos juntos, seguindo em frente. E é possível avançar ainda mais. 27,5 milhões de pessoas ascenderam à classe C e 6,5 milhões às classes A e B, de 2003 a 2009.
US$ 241 bilhões em reservas internacionais
Fonte: Centro de Políticas Sociais - FGV.
11,9 milhões de empregos formais gerados nos
14 novas universidades federais e 124 campi. 111 novas escolas técnicas.
(posição de 25 de fevereiro de 2010).
últimos 8 anos. Segundo dados da RAIS (2003-2008) e do Caged (2009-2010, até janeiro).
Início da exploração de petróleo na camada do Pré-Sal.
As exportações brasileiras mais que dobraram
Redução de 75% no desmatamento
Aumento de 5,9% nas vendas do comércio
da Amazônia nos últimos 5 anos. O menor nível em 21 anos. Fonte INPE.
varejista em 2009.
A bolsa brasileira obteve a maior valorização do mundo nos últimos 12 meses: 66,4% (encerrados em janeiro de 2010).
(+109%) entre 2003 e 2009.
Crescimento de 18,9% da indústria em dezembro de 2009, em comparação com o mesmo mês em 2008.
3,01 milhões de veículos vendidos em 2009, um novo recorde histórico. Crescimento de 12,7% frente a 2008.
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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Vitor Nuzzi e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Getty Images Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Adesão ao projeto (11) 3241-0008 Atendimento: Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
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Conselho diretivo Admirson Medeiros Ferro Jr., Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Alberto Grana, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Edílson de Paula Oliveira, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sebastião Geraldo Cardozo, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Vinicius de Assumpção Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Luiz Cláudio Marcolino Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa
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REVISTA DO BRASIL ABRIL 2010
Alucinações A cada nova Veja publicada potencializa-se a importância de publicações como a Revista do Brasil. A desfaçatez com que os fatos são distorcidos está em metástase da política para os demais temas. Esta semana (17/3) o alvo é o Daime. Sem advogar para o Daime ou União do Vegetal, mas tendo conhecido essas duas correntes, “alucinação” é responsabilizar o consumo de ayuasca por um crime covarde cometido por um filhinho de papai sob efeito de cocaína. De todas as drogas, o mais difícil e ingrato combate é o que deveria ser feito contra a “droga da imprensa”, pois qualquer recomendação quanto ao seu uso responsável é logo tachada de “censura”. Clodoaldo Jurado, São Roque (SP) clodoaldo@jurado.net.br Aliança e geografia Sou assinante e gosto muito da revista, porém na edição de março a reportagem sobre a aliança com o PMDB cita o governador André Puccinelli como de Mato Grosso. Na realidade o dito-cujo é governador de Mato Grosso do Sul. Acho que uma publicação dessa importância deveria ter mais atenção para esses aspectos geográficos. Cícero Roberto dos Santos, Campo Grande (MS) cicerho@terra.com.br Política externa Será que prestigiar o caudilho venezuelano, fechar com a França e ignorar as oposições cubana e iraniana é o melhor que o Brasil pode fazer? Mauro Santayana escreveu há um ano que os diplomatas aposentados sentiam-se transtornados com a atual política externa brasileira e com a crescente respeitabilidade do Brasil no mundo. Será? Somos zombados nos quatro cantos do mundo, não conseguimos nenhuma vitória nos organismos internacionais, passamos um grande vexame na crise hondurenha. Não temos o respeito nem dos latino-americanos! Uma coisa é certa: não teremos jamais, nem puxando o saco do Sarkozy, cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Luiz Magalhães, São Paulo (SP) lemaga@gmail.com
Culpa do feio Um bom espetáculo futebolístico (crônica “A culpa é do feio”, edição 41) empolga o público, prende a atenção, pode até balizar a hipótese de a violência nos estádios ser devida ao mau futebol. Mas temos uma sociedade em decadência e, com isso, uma violência gratuita também nas ruas, nas praias, nas residências. Antes do futebol feio, antes da decadência da sociedade, tivemos um governo militar que impôs uma educação pífia, que, pasmem, continuou com os que os sucederam. Não há uma sociedade pobre violenta, mas toda uma sociedade violenta. Vejam os baixos índices da educação no Estado mais rico do país. Como poderemos ter uma sociedade em ascensão? Aí o escritor tem razão, a culpa é do feio, mas do feio investimento não só em salas de aulas, laboratórios, carteiras, mochilas, mas no currículo e no capital humano que compõem o sistema escolar. Futebol feio para justificar a violência nos estádios é muito pouco, quase nada. Cezar José Sant’Anna cezarjose@hotmail.com Tecnologia social Parabéns pela excelente reportagem “Engenhosa sabedoria popular” (ed. 43). O texto, didático e interessante, refletiu a importância das tecnologias sociais na solução de problemas socioeconômicos, ambientais etc. Temos, apenas, uma observação: a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação foi convocada por decreto presidencial de 3 de agosto de 2009, com o título “Política de Estado para Ciência, Tecnologia e Inovação com vista ao Desenvolvimento Sustentável”, e não foi organizada pela Rede de Tecnologia Social (RTS). Michelle Lopes, Brasília (DF) comunicacao@rts.org.br revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
PontodeVista
Por Mauro Santayana
Tancredo e os trabalhadores Os trabalhistas nunca esqueceram a lealdade de Tancredo a Getúlio, durante o cerco reacionário que o levou ao suicídio em 24 de agosto de 1954
T
ancredo Neves morreu em 21 de abril de seu advogado. Fomos levados para Belo Horizonte, 1985 – há 25 anos. No dia 4 de março, teria onde fiquei detido por 48 horas. Não foi um episófeito 100. Nenhum outro brasileiro teve seus dio forte, a não ser por sua singularidade em minha dias finais acompanhados com tamanha an- biografia. Fui bem tratado. Mas a greve, sim, foi um siedade e sofrimento, e nenhum outro teve acontecimento. As mulheres, em pleno Estado Novo, seu féretro, que percorreu as ruas de três capitais (São deitavam-se sobre os trilhos, para impedir o avanço Paulo, onde morreu, Brasília, onde recebeu as honras das locomotivas. E o pagamento, atrasado de quatro de chefe de Estado, e Belo Horizonte) antes do sepul- meses, saiu. Esse tempo de advogado foi muito imtamento em São João del Rei (MG), acompanhado por portante para o meu futuro”. multidões em emocionado silêncio. Em 1947, e, daquela vez com expressiva votação dos Ao lembrar o grande líder, responsável pela transição ferroviários de todo o Estado, Tancredo se elegeu depupacífica da ditadura ao Estado de Direito, é necessário tado à Assembleia Constituinte de Minas, pelo PSD. O resgatar sua profunda ligação política com os trabalha- PTB, de Vargas, tinha apenas cinco deputados. Tancredores brasileiros. Tancredo começou sua do – relator da Constituinte e, mais tarde, carreira política, em São João del Rei, aos Tancredo líder da oposição ao governo udenista de 24 anos, ao se eleger vereador com os votos trabalhou Milton Campos – sempre os ouvia, e condos ferroviários daquela cidade – sede das para reunir tou com os votos da bancada trabalhista, oficinas da Rede Mineira de Viação, uma tanto para exercer a oposição quanto para os quadros das mais extensas do Brasil. a elaboração da Constituição estadual. Por ter sido o mais votado, tornou-se, de progressistas Eleito para a Câmara dos Deputados acordo com as regras da República Velha, do PSD aos em 1950, Tancredo fazia parte da maiopresidente da Câmara e chefe do Poder trabalhistas ria, com base na aliança entre o PSD, a Executivo municipal. O governo de Tan- de Getúlio, a que pertencia, e o PTB. Um dos articulacredo no município durou pouco. Em 10 fim de formar dores dessa coligação parlamentar, ele a de novembro de 1937, três anos depois, defendeu durante todo o período, como o MDB, na o Estado Novo fechou todas as Câmaras ministro da Justiça de Getúlio e na vitoMunicipais, todas as Assembleias Legis- oposição riosa campanha que elegeu Juscelino, em lativas, o Senado e a Câmara dos Deputa- ao governo outubro de 1955. dos. Compulsoriamente fora da política, militar Os trabalhistas nunca esqueceram a lecoube a Tancredo abrir seu escritório de aldade de Tancredo para com Getúlio, duadvocacia – e seus primeiros clientes foram os ferro- rante o cerco reacionário contra o presidente, que o viários, dos quais recebia honorários simbólicos. Pou- levou ao suicídio em 24 de agosto de 1954. Ministro cos meses depois, com os salários atrasados em mais da Justiça de Vargas, foi sua – seguindo a do presidende quatro meses, eles entraram em greve. Era uma si- te – a segunda assinatura na sanção da lei que criou a tuação muito difícil, os empregados públicos não po- Petrobras. Primeiro-ministro de Jango, foi incansável diam sindicalizar-se e não tinham o direito de greve. defensor das reformas de base. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 26 de novemNa madrugada de 1º de abril, avançou contra o presibro de 1978, logo depois de eleito para o Senado, Tan- dente do Congresso, Auro de Moura Andrade, quando credo se referiu àquele período: “Ao mesmo tempo em este consumava o golpe, ao declarar vaga a Presidência que me fiz advogado dos ferroviários da Rede Mineira da República com Jango em território nacional. Dissolde Viação, assumi outras causas, mais ou menos ren- vidos os partidos, Tancredo trabalhou para reunir os dosas, com as quais pude ganhar algum dinheiro, ca- quadros progressistas do PSD aos trabalhistas de Gesar-me e formar uma razoável base eleitoral. Até hoje túlio, a fim de formar o MDB, na oposição ao governo tenho entre os ferroviários de Minas dedicados ami- militar. No centenário de seu nascimento é importante gos. Em 1938, o pessoal entrou em greve. A polícia re- lembrar essa sua ligação de vida inteira com os trabacebeu ordem de prender todos os líderes – e também lhadores brasileiros.
Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980
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O cardeal dom Paulo Evaristo Arns faz oração diante da vala comum encontrada em 1990
A Justiça Federal em São Paulo determinou que a União e o Estado examinem, em seis meses, as ossadas descobertas entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990 na vala comum do Cemitério de Perus, na zona oeste da capital paulista. O juiz João Batista Gonçalves, da 6ª Vara Federal Cível de São Paulo, concedeu liminar que deve ser cumprida pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, por parte do governo federal, e pelo Instituto Médico Legal, afastando assim eventuais casos em que fique comprovado que não se trata de desaparecidos políticos da última ditadura militar (1964-1985). http://migre.me/qEXi Professores no Masp
O pesquisador canadense Pat Mooney explica, em entrevista, a importância da biodiversidade para enfrentar, por exemplo, os riscos do aquecimento global. Apenas quatro transnacionais controlam quase todo o mercado mundial de sementes de apenas 12 alimentos. Pequenos agricultores podem oferecer uma alternativa para proporcionar essa diversidade, como demonstrou uma feira de troca de sementes em Campina Grande (PB). http://migre.me/qEYc e http://migre.me/qEYJ
Paradeira no Estado Cerca de 10 mil professores da rede pública de ensino de São Paulo decidiram em assembleia, no dia 5 de março, entrar em greve por tempo indeterminado. A categoria reivindica reajuste salarial de 34,3%, suspensão da avaliação de mérito e das provas dos admitidos em caráter temporário, concurso público, carreira justa e uma política de educação para o Estado. De acordo com a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Azevedo Noronha, a decisão foi inevitável diante das condições do ensino. Os servidores estaduais da Saúde também estão em protesto contra ausência de reajuste e de política salarial. http://migre.me/qF0v
MAURICIO MORAIS
Psiquiatra quer provar inocência Com 30 anos dedicados à militância nos direitos humanos, o médico Paulo César Sampaio deixou o cargo de coordenador de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP) sob a acusação de medicar como forma de punição. Três pacientes da Casa de Custódia de Taubaté afirmaram ao Ministério Público Estadual (MPE) que, depois dos fatos ocorridos entre 15 e 17 de novembro de 2008, passaram a ter de ingerir remédios, perdendo a força e a disposição. Pacientes ouvidos pela reportagem, no entanto, desmentem a acusação, versão reforçada pela resposta dada pelo diretor da unidade. Questionado por Sampaio, Adriano César Maldonado disse que nenhum preso ficou “em estado vegetativo”, como se chegou a dizer. “Por trás de tudo isso, tem essa raiva de um pessoal conservador por eu dar a essas pessoas um direito que é delas”, acusa, afirmando que vai levar as denúncias até o fim para provar sua inocência. A reportagem faz parte da série “Um estranho no ninho”. http://migre.me/qESW
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REVISTA DO BRASIL ABRIL 2010
MAURICIO MORAIS
Por Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi
DNA nas ossadas de Perus
ARQUIVO AS-PTA/DIVULGAÇÃO
Sementes e diversidade
MATUITI MAYEZO/FOLHA IMAGEM
NaRede
Paulo César Sampaio
CHRISTIAN SCHCOLNIK/FOTOREPÛRTER/AE
Pedalada pelada dá “perdido” na PM
Megafone Professores, bancários, cariocas, estudantes e os ‘Fora Arruda’. Alguns dos protestos que marcaram o mês de março estão no fotolog Megafone da Rede Brasil Atual. Esse espaço é dedicado a quem se manifesta e é ignorado pela mídia. Navegue pelo http://www.redebrasilatual.com.br/multimidia/blogs/megafone e confira outras manifestações.
A repressão contra ciclistas na terceira edição da Pedalada Pelada em São Paulo não eliminou o lado positivo do evento, segundo os participantes. A detenção de pelo menos quatro pessoas ocorreu no fim da versão nacional da World Naked Bike Ride. Antes disso, os ciclistas haviam transformado a tensão pela presença de policiais em uma brincadeira de gato e rato. Dar o famoso “perdido” nos PMs foi a diversão maior do encontro, que reuniu 500 pessoasna capital paulista no dia 13 de março. http:// migre.me/qF9K
NA RÁDIO
DIVULGAÇÃO
É sanfoneiro, sim
Targino Gondim
A palavra forró vem de “forrobodó”, de origem africana, equivalente a “arrasta-pé, confusão, no bom sentido”, explica o compositor Targino Gondim. O sanfoneiro refuta o “boato” da origem na expressão “for all”, usada pelos engenheiros ingleses para rotular os bailes abertos ao público durante a construção de uma ferrovia em Pernambuco do século 19. Devoto de Luiz Gonzaga e Dominguinhos, Targino já estava em seu quarto CD quando a equipe do filme Eu, Tu, Eles apareceu para gravar em Juazeiro (BA), onde vivia em 1999. Apresentado ao diretor Andrucha Waddington, que pedia um sanfoneiro para uma cena de forró, ouviu como resposta: “Esse aí não tem cara de sanfoneiro. Quero um de verdade”. O pai do músico, que trabalhava para o filme com seu caminhão, já havia espalhado o CD do filho entre integrantes da equipe, inclusive a atriz Regina Casé, mas ninguém o ouvia. Certa noite a equipe foi se divertir num forró. O sanfoneiro, atração da casa, aproveitou a deixa e mandou ver. Esperando na Janela, dele em parceria com Manuca Almeida e Raimundinho do Acordeon, foi adotada na hora como a música do filme, gravada por Gilberto Gil. A saborosa entrevista de Targino Gondim ao Jornal Brasil Atual foi ao ar no dia 19 e pode ser ouvida na íntegra por estes atalhos: http://migre.me/qVWZ e http://migre.me/qVZr O Jornal Brasil Atual é sintonizado de segunda a sexta, das 7h às 8h, nos 97,3 FM (para a Grande São Paulo) ou a qualquer momento na internet, em www.redebrasilatual.com.br/radio
A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.
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TROPA D
MÍDIA
Diante da popularidade do governo que combate há oito anos, a imprensa conservadora se organiza como nunca para tentar evitar nova indigestão eleitoral Por Anselmo Massad
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urante 12 horas de uma segunda-feira, 1º de março, colunistas e comentaristas de alguns dos veículos de comunicação comercial de maior tiragem e audiência no país estiveram reunidos em São Paulo para um tipo de discussão inédito, em um hotel num bairro nobre da cidade. O 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão tinha, como cerne, debater “constantes ameaças” exercidas especialmente por governos sul-americanos – incluindo o brasileiro. Dois altos comandantes de empresas de comunicação participaram – Roberto Civita, do Grupo Abril, e Otavio Frias Filho, da Folha de S.Paulo. As exposições mais proeminentes, porém, couberam a quem é contratado para emitir opiniões. O geógrafo Demétrio Magnoli (revista Época e Folha), o cineasta Arnaldo Jabor (Jornal da Globo e Rádio CBN), o jornalista Reinaldo Azevedo (Veja Online), o filósofo Denis Rosenfield e outros articulistas protagonizaram as duras acusações ao governo fede10
REVISTA DO BRASIL ABRIL 2010
A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo
A imprensa tem que acabar com o isentismo e o outroladismo, essa história de dar o mesmo espaço a todos
Arnaldo Jabor
Reinaldo Azevedo
ral, à esquerda e ao PT, no que diz respeito a “atentar contra a liberdade de expressão, de imprensa e a democracia”. Junto de representantes de empresas de comunicação sul-americanas e de jornalistas como William Waack (Jornal da Globo e Globonews), Carlos Alberto Di Franco (Estadão) e Carlos Alberto Sardenberg (CBN e Globonews) ofereceram um receituário informal para a cobertura do pleito. O conjunto de recomendações funcionaria como um guia sobre como se posicionar, política e partidariamente, durante as eleições presidenciais deste ano. “Parece-me que, pela primeira vez de uma forma pública, houve um evento com
espaço para articular uma pauta”, avalia Cristina Charão, membro do Coletivo Intervozes e editora do Observatório Direito à Comunicação. “Não é só eleitoral, é uma pauta programática”, completa. Ela pondera que, antes, apenas em encontros de entidades patronais, como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), empresários do setor se reuniam, mas sem delimitar tão claramente uma plataforma. Desta vez, até os vídeos das palestras estão no YouTube.
Questão de projeto
O organizador do evento foi o Instituto Millenium, associação constituída em 2006 e hoje com status de Organizações da So-
FOTOS DIVULGAÇÃO
DE ELITE Se o Serra ganhasse, faríamos uma festa em termos das liberdades. Mas a perspectiva é de que a Dilma vença
Observamos no Brasil tendências cada vez maiores de cerceamento da liberdade de expressão. O projeto é claro
Eu sou socialdemocrata, tenho simpatia pelo PSDB. Não tenho nenhuma vergonha de dizer isso. Sou oposição hoje. Totalmente
Demétrio Magnoli
Denis Rosenfield
Marcelo Madureira
ciedade Civil de Interesse Público (Oscip). Orgulha-se de não receber dinheiro público e lista, entre os colaboradores financeiros, João Roberto Marinho, Jorge Gerdau Johannpeter e Roberto Civita. A ONG assume posições claras de defesa de livre mercado, propriedade privada, democracia representativa, “sem caráter partidário”. Alguns pontos dessa agenda são: nada de democracia participativa, de políticas de ações afirmativas (como cotas), de presença do Estado na economia ou de constituição de algum mecanismo de controle da sociedade sobre o que se produz em termos de comunicação social, sobretudo aquela veiculada por meio de concessões públicas,
como emissoras de rádio e TV. Ou, como definiu Rosenfield, articulista do Estadão e da Folha: “Observamos no Brasil tendências cada vez maiores de cerceamento da liberdade de expressão (...). O projeto é claro. Só não vê coerência quem não quer”, afirma. Aliás, mesmo o compromisso das empresas de comunicação comercial com os valores tão caros aos participantes do fórum chegou a ser questionados. Reinaldo Azevedo, blogueiro da Veja, alertou os colegas que a “guerra da democracia do lado de cá” está sendo perdida. Para mudar? “Na hora em que a imprensa decidir e passar a defender os valores que são da democracia,
da economia de mercado e do individualismo, e que não se vai dar trela para quem a quer solapar, começaremos a mudar uma certa cultura”, previu. Demétrio Magnoli contribuiu para apontar a direção almejada. “Se o Serra ganhasse, faríamos uma festa em termos das liberdades. Seria ruim para os fumantes, mas mudaria muito em relação à liberdade de expressão. Mas a perspectiva é de que a Dilma vença”, lamentou. O humorista Marcelo Madureira assinalou em seu depoimento que “como cidadão se sente ameaçado” naquilo que lhe é mais caro, por ter representado “a luta da minha vida por viver num país democrátiABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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co”. O casseta não poupou críticas a Lula – “o presidente da República faz da mentira prática política” – e admitiu sua preferência partidária: “Eu sou socialdemocrata, tenho simpatia pelo PSDB. Não tenho nenhuma vergonha de dizer isso. Eu sou oposição hoje. Totalmente”. Longe dali, o jornalista e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Bernardo Kucinski, colaborador da Revista do Brasil, acredita que se trata de uma tentativa artificial de os empresários da comunicação dizerem que há censura no Brasil por parte do Estado. “Os setores conservadores querem se antecipar a um debate que deve ser feito, que é inevitável, que é o debate do oligopólio dos meios de comunicação”, resume, em entrevista à revista Fórum. “Então eles exacerbam o discurso, que se torna cada vez mais agressivo, raivoso.” Para Kucinski, a afirmação de que há censura no Brasil ou ameaças às liberdades de imprensa não procedem. Segundo ele, houve casos em que o Judiciário manifestou-se em relação a alguns veículos. “Liberdade de quem? É só discurso pela liberdade empresarial”, alfineta.
CONVERSA AFIADA Cabeças se reúnem para traçar planos contra a liberdade de imprensa. Com ingresso a R$ 500
Partidarismo?
A partir de 2005, quando alguns dos principais expoentes do governo Lula sofriam um bombardeio de acusações, defensores do governo foram progressivamente se inclinando a um discurso de enfrentamento à mídia. Refutavam denúncias atribuindo-lhes caráter de golpismo e defesa de interesses da elite brasileira. A expressão mais famosa foi cunhada pelo deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), e tornada famosa na blogosfera após adoção pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, em seu Conversa Afiada: Partido da Imprensa Golpista, o PIG. Agora, passado o encontro de 1º de março, ganharam novo ímpeto as acusações de conspiração por parte da mídia. Um dos relatos mais detalhados, que poderia até soar como teoria da conspiração se não tivesse tantas aplicações práticas no dia a dia da imprensa, é assinado pelo jornalista Mauro Carrara, que nomeia como “Tempestade no Cerrado” uma nova operação de bombardeio midiático sobre o governo Lula. A paródia de “Tempestade no Deserto”, ação militar dos Estados Unidos na primeira Guerra do Golfo, em 1990, envolveria ataques
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REVISTA DO BRASIL ABRIL 2010
DO LADO DE FORA Enquanto representantes de parte da imprensa articulavam sua estratégia num hotel na região dos Jardins, na rua, um grupo de manifestantes de várias entidades criticava a falta de democracia na pauta dos grandes veículos de comunicação
FOTOS HÉLVIO ROMERO/AE
por frentes variadas e com intensidade – como resgatar o “mensalão”, vincular Lula ao Irã e a Cuba, destacar notícias econômicas negativas, e por aí afora. O professor Venício Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB), pondera: “Como no Brasil não há restrições à propriedade cruzada de tipos de canais, os conglomerados são multimídia – donos de jornais, rádios, TVs e grandes portais –, o que reduz o número de empresas a poucos grupos em todo o país”, lembra. O professor organizou um livro sobre o papel dos principais veículos na campanha de 2006, incluindo três estudos quantitativos – do Observatório Brasileiro de Mídia, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP) – a respeito da cobertura. Todos indicaram predisposição para favorecer o então candidato da oposição, Geraldo Alckmin (PSDB). Para Venício, seria uma conduta de leal dade, honestidade e correção ética se a mídia assumisse a preferência por seus candidatos, prática de exceção no Brasil, adotada apenas por O Estado de S. Paulo, entre a mídia convencional. Ou por Carta Capital, entre as revistas comerciais, e esta RdB, em 2006 – a exemplo do que fazem veículos im-
portantes nos Estados Unidos. “É uma situação mais ou menos invertida em relação ao Brasil: lá (nos EUA), ao assumir o apoio, há um esforço para que essa posição não contamine a cobertura jornalística”, aponta Venício. “Aqui, os grupos de mídia, embora não declarem abertamente o apoio a um candidato, essa posição fica cada vez mais explícita por contaminar a cobertura. Mesmo assim há uma certa subestimação da capacidade crítica do público, de que adotam conduta imparcial”, compara. Em outros momentos da história política recente do país, as grandes coberturas da imprensa não davam indicações de haver uma articulação orquestrada. O chamado “pensamento único” em relação a temas como privatizações, flexibilização de direitos trabalhistas, liberdade para o próprio mercado ditar os rumos da economia etc. parecia fluir de um entendimento tácito. Agora, o fórum do Instituto Millenium expõe uma conduta organizada e inédita. Os desdobramentos dessa articulação poderão ser acompanhados com a chegada da temporada eleitoral. E qual será o peso dessa unidade frente ao potencial da internet de multiplicar o acesso à informação – em ascensão inclusive nas classes C e D? A conferir, nos próximos capítulos.
Coincidência ou cartilha O 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão explicitou posições políticas da mídia conservadora. Há quem diga que o receituário sempre esteve presente no noticiário. Outros apostam num recrudescimento do chamado “pensamento único” a partir dessa articulação inédita em torno de pautas como:
n “Novata, Dilma obedece aos veteranos do PT” (Folha, 21/3/2010. Direta como a reportagem, uma charge mostrava Dilma como uma marionete controlada pelos tais “veteranos”).
Críticas à política externa n “Presidente é cúmplice da tirania, afirma grevista” (Folha, 10/3/2010, sobre comportamento de Lula em visita a Cuba). n “Defesa do Teerã reforça isolamento brasileiro” (Folha, 4/3/2010, análise aponta “soberba” da política externa por defender diálogo com o Irã mesmo frente a Hillary Clinton, secretária de Estado norte-americana).
Assumir posição eleitoral n “A imprensa tem que acabar com o isentismo (sic) e o outroladismo (sic), essa história de dar o mesmo espaço a todos” (fala de Reinaldo Azevedo no fórum). n “Serra vai se lançar candidato defendendo ‘Estado ativo’” (Estadão, 13/3/2010, manchete da edição que inaugurava o novo projeto visual. “Sinceridade, serenidade, crítica sem agressão, propostas no lugar de promessas são as linhas gerais da campanha presidencial do governador de São Paulo, José Serra”). n “Enfim, candidato! Serra admite na TV que concorrerá à Presidência” (Veja, 22/3/2010). n “Serra comemora aniversário em meio à agenda intensa” (Folha Online, 19/3/2010. “Nem mesmo em seu aniversário o governador deixará sua agenda pública de lado, que nos últimos dias anda cheia por conta das obras e realizações que pretende inaugurar antes do prazo máximo para a desincompatibilização do cargo para a disputa eleitoral, no início de abril”).
Desqualificar Dilma Rousseff n “A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo” (fala de Arnaldo Jabor, no fórum).
Combater intervenções do Estado n “Banda larga é eleitoral” (Estadão, 13/3/2010. Ethevaldo Siqueira, articulista de tecnologia, critica a proposta de uso de redes públicas de fibra óptica para fornecer acesso à internet em alta velocidade a todo o país).
Acusar incursões contra a mídia n “Novo comando do PT ataca mídia na 1ª reunião” (O Globo, 6/3/2010: “A cúpula do PT está disposta a intensificar o debate ideológico sobre o papel da mídia na cobertura da campanha presidencial”). n “Liberdade em risco” (Zero Hora, 6/3/2010, em editorial: “As constantes tentativas de interferência na atuação da imprensa têm mais defensores entre integrantes do Partido dos Trabalhadores do que no governo”).
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HABITAÇÃO
Ação e reação O uso político da Bancoop no noticiário é mais um entrave para a busca de soluções
A
Bancoop é uma cooperativa habitacional criada em 1996 pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo. Os primeiros apartamentos começaram a ser entregues no final da década passada. São 39 os empreendimentos lançados até agora. Cinco deles foram repassados para construtoras privadas – OAS, Tainá e MRS. Os outros 34 abrangem um universo de 6.358 unidades habitacionais, das quais 84% já foram entregues. Apesar disso, não foi pelos bons resultados que a Bancoop virou notícia. A partir do período 2003-2004 a Bancoop passou por profunda reformulação administrativa após a identificação de falhas na gestão dos empreendimentos. Leva hoje “vida normal”, de acordo com o advogado da cooperativa, Pedro Dallari. “Um dos erros – e a Bancoop passou a reconhecê-los – foi que alguns empreendimentos imobiliários tiveram seu preço subestimado”, afirmou em entrevista à Rede Brasil Atual. Segundo Dallari, o fato é que o principal erro – o saldo arrecadado pelos cooperados foi inferior ao custo da obra – provocou cobranças adicionais, com as quais parte dos cooperados não concordou, decidindo recorrer à Justiça. A falta do aporte necessário fez com que algumas obras ainda em andamento fossem paralisadas. Outro obstáculo para a evolução das soluções tem sido o uso do caso na mídia, inclusive por parte de interessados num possível impacto político-eleitoral, uma vez que João Vaccari Neto deixou a presidência da Bancoop para assumir o cargo de tesoureiro do PT. O Ministério Público, por meio do promotor José Carlos Blat, pôs sob suspeita o nome de Vaccari, que presidiu a Bancoop 14
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a partir de 2004. Blat pediu a quebra de seu sigilo bancário e o congelamento de contas da cooperativa. “Ele não tem nada a esconder, mas o promotor precisa justificar essa medida extrema ao juiz”, diz Luiz Flávio Borges D’Urso, advogado de Vaccari. O juiz que apreciou o pedido do MP, Carlos Eduardo Lora Franco, do Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária da Capital (Dipo), argumenta que, dada a repercussão política do caso, “cada decisão ou providência tomada” deve estar “firmemente embasada em elementos de prova e de direitos sólidos e claros”. Assim, para ele, a quebra de sigilo do dirigente deveria ter esclarecimentos por motivos de transparência, “em razão do momento do calendário eleitoral, evitando qualquer interpretação política que terceiros venham querer emprestar-lhe”. D’Urso contesta ainda o pedido de congelamento de contas da Bancoop. “Se congelar, inviabiliza a cooperativa. E o principal prejudicado é o cooperado”, alerta. O juiz indeferiu o pedido. “O Ministério Público e o Poder Judiciá rio são, antes de tudo, instituições de Estado, e não de governo”, afirmou, em sua decisão, o juiz Lora Franco. “Assim, é imprescindível que sua atuação fique acima da opinião pública por propósitos políticos.” Em 9 de março, poucos dias depois de o nome de Vaccari surgir no noticiário, o presidente da Assembleia Legislativa paulista, Barros Munhoz (PSDB), assinou ato de instalação de uma CPI para apurar as denúncias de desvio de recursos. No Senado, a CPI das ONGs chegou a convocar Vaccari para dar explicações. Em 19 de março, a Procuradoria da República no Estado de São Paulo divulgou nota para informar que, tanto na do-
cumentação enviada pela Procuradoria Geral da República a São Paulo como na acusação formal remetida à Justiça pelo MP paulista, não havia menção alguma a Vaccari. Dallari lembra que as denúncias eram antigas e questionou o momento em que voltaram à tona. “É evidente o uso, pelo promotor Blat, para fazer política. Isso mostra irresponsabilidade. Os promotores dão entrevistas quando promovem a ação”, afirma. “Se o promotor tem o que ele diz que tem em termos de prova, já deveria ter apresentado a denúncia”, diz D’Urso.
JAILTON GARCIA
“Tudo regular”
O noticiário também citou o lançamento pela Bancoop, em 2004, de um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), no qual a devolução do dinheiro e os rendimentos seriam garantidos pelos pagamentos dos associados. O objetivo era captar recursos para acelerar o ritmo dos empreendimentos – uma vez que o regime de coo perativa não tem financiamento bancário. Entre 2004 e 2005, foram captados R$ 37,5 milhões, inclusive com a presença de alguns dos principais fundos de pensão do país. “Os fundos de pensão não perderam dinheiro com a Bancoop. Eles poderiam ter ganhado muito mais se as condições originais da transação tivessem sido preservadas”, diz matéria de 19 de março no Valor Econômico. De acordo com o jornal, a Previ investiu R$ 5 milhões e resgatou R$ 7,8 milhões, apesar da rentabilidade anual abaixo da esperada, que seria IGP-M mais 12,5%. “O investimento foi realizado seguindo os procedimentos normais, e os recursos aplicados já foram reembolsados à Previ (assim como aos demais cotistas do fundo), gerando a rentabilidade de IPCA mais 6% ao ano”, informou o fundo. O Ministério Público também pediu informações sobre a movimentação de contas do fundo. “Concordamos que seja aberta.
Bancoop em números Total de unidades
6.358
Unidades entregues
5.337
Unidades em empreendimentos concluídos
4.152
Unidades entregues em empreendimentos em construção
1.185
Unidades em construção
1.021
Das unidades em construção, 84 são permutadas, há 347 sem adesão e 502 foram repassadas aos cooperados. No total, são 34 empreendimentos; outros 5 foram incorporados pelas construtoras OAS, Tainá e MRS
Está tudo regular”, diz D’Urso. A advogada Thelma Laranjeiras Salle, que representa três associações de coo perados, avalia que em um dos casos que acompanha, em Pirituba, há perspectiva de acordo, com o repasse do empreendimento para uma construtora – há outros quatro empreendimentos desenvolvendo soluções semelhantes. Thelma lembra que cada associação que atende tem um problema. Em Santo André, a construção das unidades foi concluída, mas “nunca foi dito a eles (cooperados) que havia um déficit”. No Horto Florestal, zona norte da capital paulista, as torres foram concluídas, mas faltou terminar as áreas comuns e as vagas de garagem. No caso de Pirituba, são três situações: 40 apartamentos já construídos (ainda sem escritura), um prédio está pela metade e há casas por construir. “Existia, por parte dos cooperados, uma propensão ao acordo”, diz Thelma, que passou a esperar por uma certa resistência após o noticiário. Nos anos seguintes à verificação dos problemas, diretoria e cooperados se desdobram em busca de resolvê-los. Nesse período, a cooperativa foi auditada, e uma ação proposta pelo MP estadual resultou em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O termo é contestado pelo advogado Valter Picazio Junior, que representa associações de cooperados contrários aos pagamentos de rateios. Ele considera que falta seriedade à cooperativa e não acredita que o TAC seja cumprido. “O momento exige extrema cautela de todos aqueles que, por inocência ou desespero, ainda acreditam em uma solução vinda da Bancoop”, diz. O presidente do Sindicato dos Bancários, Luiz Cláudio Marcolino, assegura que a entidade continua ao lado da cooperativa que ajudou a criar há 14 anos para que todos os empreendimentos sejam entregues o mais breve possível. “A Bancoop é um projeto importante e está de acordo com os princípios cooperativos”, explica Marcolino. “O sindicato acompanha todo o processo, solicitou auditoria para resolver os problemas e vai continuar trabalhando – apesar das dificuldades decorrentes do uso político dos problemas financeiros da cooperativa – para que tudo seja resolvido, com a participação dos cooperados, como tem sido, e com a entrega das moradias de todos os trabalhadores.”
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Gregos e t
ECONOMIA
Depois dos Estados Unidos, a Europa sofre com a crise. Mas o risco de marolinha no Brasil é pequeno Por Vitor Nuzzi
“O
s piores temores sobre a Grécia se confirmaram”, declarou, no final de fevereiro, o primeiro-ministro Yorgos Papandreu. “O dano é incalculável, e não é só financeiro e fiscal. Afeta a posição do Estado.” A pátria-mãe da mitologia viu-se às voltas com problemas econômicos bem reais, mas não estava sozinha. Boa parte das nações do euro mergulhou na crise, esfriando o otimismo do mundo. No Brasil, o mercado – sempre ele – voltou a manifestar preocupação com a possibilidade de que a crise atravessasse o oceano. Mas a avaliação predominante é de que a economia permanece bem protegida, sem contar que a crise atual não é comparável à norteamericana. Os resultados do PIB em 2009 mostraram que o Brasil, apesar da taxa negativa, se saiu razoavelmente bem em relação à maior parte das nações desenvolvidas. Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, o ex-grão-tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros definiu o Brasil como o “darling” (querido) do investidor. Mesmo em um ambiente mais conservador, continuamos em situação invejável, segundo ele. “Para chegar aqui (a crise), precisa quebrar muita gente. E não vai quebrar.” Em Portugal, onde a crise também desembarcou com mais força, o governo apresentou um Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), a ser discutido com os 16
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A economia brasileira recuou em 2009... Variação do PIB brasileiro
6,1%
5,7%
5,5%* 5,1%
4,3%
4% 3,2% 2,7% 1,3%
1,1% -0,2%
2000
2001
2002
Fonte: IBGE (* 2010: projeção BC)
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
troianos
partidos e outros representantes da sociedade. O primeiro-ministro, José Sócrates, afirmou que o desafio é reativar a economia, criar empregos e equilibrar as contas públicas até 2013. “Em toda a Europa, metade dos países vai aumentar o seu déficit, e Portugal vai reduzi-lo em 2010, dando o primeiro sinal claro do empenho do governo no sentido de pôr as contas públicas em ordem.” No caso da Grécia, de onde nasceram os temores, houve até quem sugerisse que algumas de suas famosas ilhas fossem vendidas. No início de março, o governo anunciou um plano para economizar € 4,8 bilhões, incluindo soluções clássicas em tempos de crise: corte de salários no setor público e aumento de impostos (no caso, o IVA, Imposto sobre o Valor Agregado). “As medidas são duras e possivelmente injustas, mas são imprescindíveis para salvar o país”, admitiu Papandreu.
NOVAMENTE NA MIRA Policiais protegem agência do Banco Nacional da Grécia em Atenas durante manifestação contra o governo em março passado
...mas resistiu melhor à crise do que outros países -0,2% -5%
Brasil Alemanha
8,7% China -2,4% -2,2%
EUA França
6,8% Índia -4,9% -5,1% -6,5% -7,9%
Itália Japão México Rússia
Comparação do PIB em 2009
JOHN KOLESIDIS/REUTERS
Menos
O economista Paulo Nogueira Batista Junior, diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), acredita que a crise mundial, iniciada no sistema financeiro em 2007, pode converter-se em crise fiscal, principalmente nos países desenvolvidos. “O problema é mais grave na Europa, onde diversas economias avançadas e emergentes registram deterioração dramática em termos de déficit público e nível de endividamento. A Grécia parece ser apenas a ponta de um iceberg”, escreveu, em artigo recente. “Os números são medonhos. A dívida pública vem aumentando rapidamente nas economias desenvolvidas”, prossegue Paulo Nogueira. Segundo ele, os números das contas públicas têm deixado “inquietos” os mercados. “A Grécia é um caso extremo, mas diversas outras economias estão sob suspeita, notadamente Espanha, Portugal e Itália, mas também o Reino Unido e até mesmo a França.” ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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O professor Antônio Corrêa de Lacerda, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, vê impacto mínimo em relação ao Brasil. “Estamos falando agora de uma crise de dimensões infinitamente menores que a do subprime norte-americano”, afirma. “O PIB da Grécia representa 2,5% da União Europeia. Mesmo para a Europa, é um país pequeno.” E é lá que se concentra o maior problema, segundo ele. “O grande integrante dos Piigs, a Itália, tem problemas há muito tempo e não representa exatamente uma novidade”, afirma. “Portanto, o foco vai ser na Grécia, com algum rescaldo ainda para Portugal e Espanha. A União Europeia deve promover um grande programa de ajuste, pois está em jogo a estratégia de consolidação do euro, para o qual já investiram muito ao longo do último decênio.” Por Piigs, entenda-se a sigla, no original em inglês, para o bloco que reúne Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha. O economista também diferencia a origem das duas crises. “A dos Estados Unidos vem do mercado e a da Grécia, do setor público. O que há em comum é um pouco de irresponsabilidade das agências de classificação de risco, que nos dois casos diziam que estava tudo bem.” Assim, se no mercado norte-americano os problemas se originaram com o chamado subprime (de segunda linha), com empréstimos de maior risco – e, consequentemente, juros maiores –, na Europa têm na raiz o endividamento dos governos. Embora possa haver algum efeito em relação ao câmbio, Lacerda diz que as perspectivas para o Brasil este ano continuam bastante positivas: o PIB deverá crescer de 5% a 6%, a inflação deverá permanecer próxima ao centro da meta estipulada pelo governo (4,5%) e o mercado interno continuará dando a dinâmica da economia.
Pressão localizada
Os primeiros indicadores divulgados este ano são positivos, com crescimento da atividade industrial e do emprego. A inflação medida pelo IPCA, considerada a “oficial”, subiu para 0,78% em fevereiro (a mais alta em quase dois anos) e chegou a 4,83% em 12 meses, acima do centro da meta fixada pelo governo (4,5%), mas o professor Lacerda vê “pressões localizadas” sobre o índice, que não deverão se manter. O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Poch-
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EXPORTANDO DIVISAS Fábio Barbosa (centro), do Grupo Santander Brasil, abre a maior oferta de ações do mercado brasileiro de todos os tempos. Operação arrecadou R$ 13,1 bilhões. A matriz espanhola agradeceu
mann, lembra que a crise norte-americana foi mais grave que a de 1929, o que exigiu um esforço mundial. “Houve uma ação coordenada dos bancos centrais e de ministros da Fazenda em todo o mundo, evitando que a recessão virasse uma depressão”, lembra. No entanto, acrescenta, “quantidade expressiva de recursos públicos nas economias avançadas não se direcionou ao consumo e ao investimento, mas ao pagamento de dívidas”. Assim, muitos dos problemas
E os juros... Em 17 de março, o Comitê de Política Monetária manteve, pela quinta reunião seguida, a taxa básica de juros em 8,75% ao ano. Mas três dos oito integrantes do Copom queriam aumentar a Selic para 9,25%. Já fica a sinalização de que pode haver alta na próxima reunião, marcada para 27 e 28 de abril – seria a primeira desde setembro de 2008. Mas o processo de cortes já foi interrompido.
ainda persistem. Um dos principais no caso da economia brasileira, o do comércio internacional, foi relativamente contornado pela ampliação do número de parceiros comerciais. Mas há outras questões preocupantes, observa Pochmann, ao lembrar que o Brasil já é uma economia bastante internacionalizada, com grande número de empresas estrangeiras operando internamente. “O baixo dinamismo da economia mundial pode fazer com que os lucros dessas empresas não sejam aplicados aqui.” Além disso, a aproximação comercial com o polo asiático poderia levar a uma “posição subordinada à China”. “Durante a crise, houve (no Brasil) uma convergência entre a política monetária, cambial e fiscal. Na saída da crise, essa convergência foi reduzida”, diz o presidente do Ipea, destacando a valorização do real em relação ao dólar e a entrada de “recursos especulativos não desejáveis”, o que leva a um “déficit externo perigoso, embora administrável ao longo do tempo”. O professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano Schutte,
PAULO WHITAKE/REUTERS
integrante do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, também chama a atenção para a possibilidade de remessa de lucros de empresas que operam no Brasil para a matriz. “A gente já viu isso acontecer nos Estados Unidos. O caso da GM foi emblemático”, lembra. Emblemática foi a oferta pública de ações feita em outubro pelo Santander no Brasil. A operação, a maior da história no país, resultou em um aumento de capital de R$ 13,182 bilhões. O grupo fechou o ano com lucro líquido de R$ 5,508 bilhões, crescimento de 41% sobre 2008. Ao divulgar o balanço de 2009, com lucro de € 8,943 bilhões, a direção mundial do Santander reportou ganhos extraordinários de € 2,587 bilhões, vindos, entre outros fatores, do aumento de capital no Brasil. Por outro lado, as dificuldades na Europa podem beneficiar o Brasil. “Há empresas que enxergam boas possibilidades de fazer investimentos aqui”, diz Giorgio, acrescentando que nos últimos anos as relações comerciais foram diversificadas. Isso tende a reduzir eventuais impactos em relação às dificuldades enfrentadas por nações europeias, que viverão uma “batalha” para reduzir seus déficits.
Aparentemente, a batalha aqui será mais amena. Depois de um período difícil, 2010 deverá confirmar a tendência de recuperação já notada no último trimestre do ano passado. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que o PIB industrial crescerá 7% este ano. Segundo a entidade, o crescimento esperado para a economia deverá fazer com que a produção industrial “ultrapasse o nível de antes da crise” ainda no primeiro semestre. “A recuperação da produção favorecerá a criação de empregos e o aumento de renda dos trabalhadores. Esses fatores, associados à elevação da oferta de crédito e dos programas de transferência de renda do governo, incrementarão a demanda interna”, diz a CNI. Em 11 de março, o IBGE divulgou o PIB do quarto trimestre de 2009. Se o resultado do ano ficou negativo (-0,2%) – mas com desempenho melhor que o da maioria dos países desenvolvidos (leia quadro) –, os números dos últimos três meses confirmaram a trajetória de recuperação: o PIB cresceu 2% sobre o terceiro trimestre e 4,3% em relação ao quarto trimestre de 2008. A mesma indústria que sofreu o maior impacto da crise está puxando a retomada da atividade econômica.
Novo recorde de emprego Se 2009 começou como o pior dos mundos para o mercado de trabalho e terminou de forma até razoável, as perspectivas para este ano são bem mais positivas. E os primeiros indicadores já divulgados atestam isso. A começar dos números sobre o mercado formal. Em março, o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou um saldo recorde (para o mês) em fevereiro, de 209.425 vagas com carteira assinada. Em janeiro, o saldo do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) também havia sido recorde, com 181.419 postos de trabalho a mais. Em janeiro, a taxa média de desemprego nas seis Regiões Metropolitanas pesquisadas pelo IBGE foi de 7,2%, um pouco acima de dezembro (6,8%, a menor taxa da série histórica), mas bem abaixo do registrado em janeiro de 2009 (8,2%) e no menor nível para o mês na atual série histórica. Apesar de ainda alta, a taxa
está praticamente no mesmo nível anterior à crise, atingindo um pico de 9% em março do ano passado, para voltar gradualmente aos 7%. E o país não vê uma taxa de desemprego de dois dígitos (pelos dados do IBGE) há quase três anos, ou desde maio de 2007. A pesquisa Seade/Dieese, que usa outra metodologia, mostrou em janeiro a menor taxa para o mês desde 1998. “Tudo indica que teremos um ano muito positivo”, diz o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann. Ele estima em 2 milhões o número de empregos com carteira assinada que serão criados este ano. É a mesma projeção do ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi. Se confirmado, será o maior número de vagas formais criadas em um ano, superando o recorde de 2007 (1,617 milhão). Segundo Pochmann, houve uma “rápida alta” das demissões no último trimestre de 2008 e no início de 2009, que acabou não se
Marcio Pochmann refletindo em elevação das taxas de desemprego, com absorção por outros setores. “A recessão foi menos profunda e prolongada. Salvo a indústria, os setores conseguiram recuperar o nível de emprego.”
Indústria
E é exatamente na indústria que há ainda um longo caminho a recuperar, conforme observa o diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) Paulo Francini. Segundo ele, o setor mostra tendência
positiva, com a expectativa de criação de até 140 mil vagas este ano apenas em São Paulo. Mas lembra que de setembro de 2008 a fevereiro deste ano foram eliminados 180 mil postos de trabalho. Assim, mesmo a alta de 6,2% em 2010 não será suficiente para voltar ao nível pré-crise – o que, para ele, deverá acontecer no início do ano que vem. A indústria automobilística, porém, já mostra reação. O número de trabalhadores em montadoras (excluído o setor de máquinas agrícolas) chegou a 110,7 mil em fevereiro, 2.200 a mais que um ano antes. Na tentativa de prever o imprevisível, diante de uma crise de proporções inéditas, alguns economistas erraram feio em 2009. O Morgan Stanley projetou taxa de desemprego de 11%, podendo chegar a 13%. O professor José Márcio Camargo, da PUC do Rio, falou em 11% a 12%. E o infatigável professor José Pastore profetizou perda de 1 milhão a 1,5 milhão de empregos. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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TRABALHO
Caça à precariz Enquanto a lei não limita a terceirização, sindicatos apostam nas campanhas salariais para garantir condições decentes de trabalho Por Luiz Carvalho
O
paranaense Adjário Ferreira Silva, de 40 anos, começou a trabalhar como pedreiro antes de completar a maioridade. No início da década de 1980, mudou-se para São Paulo e aprendeu a função de armador de vigas, atividade que executa de segunda a sábado em um empreendimento residencial em São Bernardo do Campo, na região do Grande ABC. Apesar de a responsabilidade da obra ser da construtora Sinco, o vínculo profissional é com a empreiteira RLJ.
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A terceirização ganhou força nos últimos 20 anos como alternativa para redução de custos e já envolve todos os ramos de atividade sob a justificativa de que moderniza a gestão. No entanto, esse é um recurso ao qual as empresas deveriam recorrer apenas para suprir a necessidade de um serviço especializado durante um breve período, as chamadas atividades-meio. Só que as construtoras, cuja atividade-fim é erguer imóveis, não hesitam em contratar mão de obra terceirizada para fazê-lo. Segundo Clayton Rodrigues, gerente da
obra onde Adjário trabalha, o principal problema do mercado é a falta de qualificação dos profissionais. “Realmente passamos para terceiros alguns serviços específicos, como colocação de gesso e de alumínio. Mas o que dá para fazer com funcionários próprios nós fazemos. Falta mão de obra qualificada, e por isso precisamos contar com as empreiteiras.” Conforme aponta estudo realizado pelo economista e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, o segmento de trabalhadores terceirizados foi o que mais cresceu no Brasil entre 1995 e 2005, ocupando 8,9 milhões de pessoas. Uma das explicações para esse avanço é a baixa remuneração. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, a média salarial paga aos contratados por meio da terceirização cor-
“O MELHOR PREÇO” Obra em São Bernardo: dos 250 funcionários, 70% são terceirizados
ROBERTO PARIZOTTI
ação responde a um terço do que recebem os contratados diretamente pelas empresas. De acordo com Rodrigues, no empreendimento de São Bernardo, dos 250 funcionários, 70% são terceirizados. “Antes de as empresas terceiras começarem a prestar serviço, visitamos uma obra, verificamos se registram os trabalhadores, se pagam INSS, se batem cartão de ponto, quanto tempo têm no mercado. Não buscamos o menor, e sim o melhor preço.” Mas o critério apontado pela construtora Sinco é uma exceção, conforme Claudeonor Neves da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de São Bernardo do Campo e Diadema (Sintracom). Ele diz que a falta de regulamentação e de definição sobre quais são as atividades-meio e as atividades-fim permite situações calamitosas.
“As construtoras conseguem o dinheiro público para executar uma obra, mas é a terceirizada quem toca o projeto e contrata os trabalhadores, muitas vezes sem respeitar a convenção coletiva da categoria, sem efetuar o registro em carteira e sem oferecer condições mínimas de trabalho”, afirma Claudeonor. Um exemplo dessa realidade está localizado a menos de um quilômetro da obra da Sinco. Durante os nove meses em que o pedreiro Pedro da Silva Filho, de 24 anos, trabalhou para a empreiteira Eidy, que constrói duas torres de 19 andares no bairro Ferrazópolis para a construtura Plano e Plano, ele enfrentou atraso de salário e de cesta básica. No último dia 3 de março, ao lado de outras 120 pessoas, foi dispensado. “Enquanto não houver uma legislação que determine a responsabilidade solidária, que delegue à empresa tomadora de serviço o ônus de arcar com os custos trabalhistas e uma fiscalização austera, a solução do caso ficará nas mãos da Justiça”, protesta o presidente do Sintracom. No caso da Eidy, a dívida ultrapassa os R$ 400 mil. Contudo, a precarização não é exclusividade da construção civil, muito menos do setor privado. A única proteção legal dos trabalhadores terceirizados é a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Ainda assim, o documento permite a terceirização de serviços de vigilância, conservação e limpeza, desde que não sejam atividade-meio da empresa tomadora de serviço. A definição acaba provocando sérios problemas em diversos Estados. No Espírito Santo, cerca de 450 funcionários públicos do setor de limpeza da Prefeitura de Vitória aguardam há dois anos o pagamento pelos serviços prestados à Promentec. Lamentavelmente, uma situação que já conhecem bem. “O mesmo já havia ocorrido com a Serves. Os servidores trabalharam dois anos, a empresa faliu, e eles tiveram de entrar com uma ação na Justiça. Para resolver a situação, o prefeito João Coser (PT) fez um acordo e pagou 80% da dívida. Aí entrou a Promentec e aconteceu o mesmo. O pior é que isso ocorre em quase todos os contratos do Estado”, denuncia José Paulino, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Asseio, Conservação e Limpeza do Espírito Santo (Sindilimpe). Para resolver esse dilema, Lucilene Binsfeld, a Tudi, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio
e Serviços, defende a alteração da Lei nº 8.666 de 1993. A legislação estabelece as normas sobre licitações, definindo que o menor preço não seja o único critério para a contratação. “Nos editais devem existir outras exigências, como idoneidade da empresa e se essa possui capital social para garantir todos os direitos trabalhistas”, opina.
Prejuízo social e financeiro
A secretária de relações do trabalho da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e uma das organizadoras do livro Terceirização no Brasil – Do Discurso da Inovação à Precarização do Trabalho, Denise Motta Dau, ressalta que a tentativa das empresas privadas e do Estado de aumentar a receita diminuindo os gastos com os funcionários custa caro para a sociedade. “A falta de treinamento e de vínculo direto dos terceirizados com a empresa gera um prejuízo financeiro e social por conta da baixa qualidade dos serviços prestados e das mutilações e mortes de pessoas que não são preparadas para executar as atividades. A irresponsabilidade da terceirização provoca custos para o SUS (Sistema Único de Saúde) e para a seguridade social”, explica. O Congresso possui três projetos de lei relativos à terceirização. Dois deles, o PL 4.302/1998, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e o 4.330/2004, do deputado federal Sandro Mabel (PR-GO), jogam a favor da precarização e têm como objetivo permitir a terceirização irrestrita. Já o 1.621/2007, construído a partir de uma parceria entre a CUT e o deputado federal Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, proíbe a terceirização de atividades-fim. Em 2009, um acordo entre as centrais sindicais e o Ministério do Trabalho e Emprego resultou em um outro PL, que obriga as empresas a comunicar com antecedência de 120 dias os motivos, serviços e atividades que pretendem delegar a terceiros, além de apontá-los como solidariamente responsáveis pelas obrigações trabalhistas dos terceirizados. A proposta aguarda encaminhamento na Casa Civil. Porém, para Denise, a luta não deve ficar apenas no ambiente parlamentar. “Nas campanhas salariais de 2010, os sindicatos devem incluir nos acordos coletivos cláusulas de combate à terceirização. Isso representaria um avanço e criaríamos uma conjuntura favorável à aprovação dessa bandeira da classe trabalhadora.” ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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URBANISMO SURGIDA DO MATO Operários caminham pelo cerrado ao redor das obras do congresso
Mosaico de contradições Aos 50 anos, Brasília tem uma população cinco vezes maior do que a prevista. Crescimento desordenado ameaça traçado original de um sonho futurista Por Isabel Cesse
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AUGUSTO COELHO
FOTOS MARCEL GAUTHEROT/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES
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EMENDA Projeto original cedeu aos anexos dos ministérios, aos automóveis, à explosão de prédios no Plano Piloto e casas ao redor do lago
m 1960, quando Brasília foi inaugurada, tudo beirava o novo: o país vivia um sonho desenvolvimentista, o presidente Juscelino Kubitscheck procurava ampliar a economia por meio da interiorização e, para um governo que ansiava fazer o Brasil crescer 50 anos em 5, nada era mais propício do que uma capital com traços ousados, construída de modo a oferecer melhor qualidade de vida para as pessoas. Desde o período das obras, passando pela inauguração e as décadas seguintes, Brasília destacou-se, além da beleza dos seus prédios, por uma área central que insistia em ter jeito cosmopolita e uma região de entorno com características rurais, traduzidas nas cidades-satélites. Passados 50 anos, a realidade é outra. A cidade cresce de uma forma desordenada que ameaça seu formato original e revela, a cada dia, um mosaico de contradições. Numa de suas visitas a Brasília, poucos anos atrás, seu arquiteto, Oscar Niemeyer, afirmou: “Jogar no tempo foi um pouco perigoso. Depois vem a surpresa, o espaço tem de ser maior, tem de construir anexos”. A declaração do mestre dos traços modernistas é fácil de ser entendida para quem chega à capital e dá uma volta pela Esplanada dos Ministérios, onde se localizam os prédios do Executivo federal. Hoje, quase todos eles contam com passarelas ou caminhos subterrâneos interligados a novas construções que tiveram de ser erguidas, ao longo dos anos, como adaptação ao aumento do número de servidores e da própria estrutura do governo. O mesmo pode ser observado nos palácios e nas sedes dos principais tribunais superiores. A cidade de concepção moderna, que desde os monumentos mais conhecidos até o formato das quadras residenciais foi moldada de forma a facilitar a vida dos moradores, hoje precisa se adequar às mudanças. Os números falam por si: Brasília foi construída para abrigar 500 mil pessoas no ano 2000. Em 2010, de acordo com o IBGE, o Distrito Federal tem 2,4 milhões de habitantes – número que ultrapassou, e muito, os planos do urbanista Lúcio Costa. O Congresso Nacional conta agora com 513 parlamentares, entre deputados e senadores – bem acima daquele período (menos de 400) –, e um sem-número de assessores (formais e informais), num movimento
diárioestimado em cerca de 20 mil pessoas. O prédio do Palácio do Planalto, atualmente em obras, previa pouco mais de 100 servidores em 1960. Hoje, abriga quase 700 assessores da Presidência da República. A descaracterização também passa pelas quadras residenciais do Plano Piloto. Pensadas de forma a integrar a vida das famílias, próximas a escolas, igrejas e áreascomerciais, as Asas Norte e Sul foram construídas a partir de prédios com um máximo de seis andares e estrutura simples – que garantem ampla visão do horizonte do Planalto Central. Atualmente, vários desses prédios estão com suas frentes gradeadas e pilotis reformados para abrigar salões de festas. Como se não bastasse, muitas construtoras passaram a incorporar um andar a mais em apartamentos de cobertura, como forma de burlar o gabarito previamente definido no plano original de Brasília – gargalo que o governo do Distrito Federal vem tentando frear, mas caminha a passos lentos.
Novas satélites
Nas entrequadras, criadas para oferecer comércios locais aos moradores, a situação não é diferente: os “puxadinhos” viraram lugar-comum para abrigar mesas, quiosques e demais complementações de bares e restaurantes. Mas o maior problema que a cidade enfrentou ao longo das últimas décadas foi a questão da invasão de terras em áreas mais próximas. O que levou, primeiro, ao surgimento de mais de 70 favelas – pequenos bolsões de miséria em meio a uma ilha de prosperidade – e resultou na criação de novas cidades-satélites. O Distrito Federal tem 29 regiões administrativas. Isso porque, conforme estatísticas não oficiais, na tentativa de transferir a população das favelas para outras áreas, o governo distribuiu cerca de 200 mil lotes de terras públicas entre o final da década de 1980 e toda a década seguinte, o que gerou a construção de novas cidades-satélites (eram 16 nos anos 1970). A distribuição de lotes terminou atraindo mais pessoas, provenientes de Estados próximos, como Goiás e Minas Gerais, num novo fluxo migratório para a capital do país. A cidade completará 50 anos, no dia 21, contabilizando 387 condomínios ilegais, onde residem cerca de 450 mil pessoas, incluindo muita gente da classe média. As consequências da desorganização ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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são motivo de queixa por parte de moradores que chegaram à cidade ainda crianças e acompanharam todo esse processo. Gente como o servidor do Ministério da Educação aposentado Antonio Cícero Almeida, de 65 anos. “Vim para Brasília na adolescência e vi a cidade crescer. Meu pai, servidor do Banco do Brasil, foi transferido para cá e trouxe toda a família. No começo tudo era muito distante, inóspito até. Mas hoje não conseguimos sair do Plano Piloto para almoçar numa cidade-satélite como Sobradinho, por exemplo, sem chegar atrasado a um compromisso no começo da tarde. O trânsito ficou impossível. O curioso é que, 15 anos atrás, esse mesmo percurso era feito em poucos minutos”, ressalta. Uma reclamação que é acompanhada de perto pela professora aposentada Regina Helena Andrade, de 65 anos. Ela foi morar em Brasília aos 19 anos, acompanhando os pais e irmãs. “No início, vivíamos em Taguatinga, e era muito diferente. Tínhamos bastante área livre, um tipo de vida mais tranquilo. E o trânsito não era tão complicado.” Outra dificuldade causada pelo crescimento acima do previsto de Brasília se dá porque a ocupação desordenada dessas áreaspôs em risco as nascentes dos rios próximos, o que obriga urbanistas a pensar em novas soluções para o abastecimento de água para as próximas décadas. “Praticamente todos os condomínios rurais agridem de alguma maneira o meio ambiente, seja por estarem próximos às nascentes, seja pela invasão em áreas de proteção ambiental. Não se discute se acabaram com nascentes ou derrubaram muito cerrado. É uma questão grave”, reclamou, em entrevista, o geógrafo e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani, autor do livro Brasília – Moradia e Exclusão. Uma dessas ocupações prejudicou a nascente do rio São Bartolomeu, tido como estratégico para o Distrito Federal. Inicialmente, estava prevista sua ampliação para garantir o fornecimento de água para a população até o ano 2100. Como tal projeto ficou inviável com o passar dos anos, o “plano B” do governo passou a ser a captação de água a partir da represa de Corumbá IV, localizada em Goiás. “Brasília sofreu com sua concepção diante do modelo que passou a ser adotado. As intervenções feitas pelas suas diferentes administrações, bem como os planos e normas implementados pelo governo local, preju24
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dicaram o plano de preservação, a qualidade de vida oferecida e o exemplo de cidade sustentável e paisagística que deveria ser”, opinou, durante um fórum de debates, a doutora em Geografia Jane Jucá. “Caso essas práticas continuem, mesmo que nessa invenção de Lúcio Costa se reconheçam a força de seu risco original e a força de sua expressão paisagística, seu plano tenderá a se tornar somente um desenho memorável no papel”, complementou.
Perda de identidade
De acordo com profissionais que avaliam o crescimento da cidade, as mudanças motivaram iniciativas adotadas pela administração desde 1970, tanto no sentido de preservá-la como na procura por novas fórmulas de amenizar esse quadro. Prova disso é que Brasília teve uma sequência de planos estruturais para o seu traçado, e foram criadas alternativas para a classe média fora das áreas residenciais, em locais como Octogonal, Sudoeste e Águas Claras. Outro alerta, feito pela historiadora Liana Albuquerque, é o fato de essa nova ur-
A ocupação desordenada de Brasília também pôs em risco as nascentes dos rios no entorno da cidade, o que obriga urbanistas a pensar em novas soluções para o abastecimento de água para as próximas décadas banização vir a afetar a identidade do perímetro tombado, ignorando diretrizes do Dossiê Unesco – um conjunto de documentos apresentados à Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura (Unesco) sobre Brasília, na época em que foi tombada como patrimônio da humanidade, em 1987. Em junho, um comitê da Unesco retorna para avaliar a situação da cidade. A preocupação dos especialistas é que o péssimo estado de conservação de muitos monumentos prejudique o diagnóstico a ser feito pela entidade. Para se ter uma ideia, entre prédios, espaços e equipamentos públicos de arte, lazer e cultura da cidade, precisam de reformas e restaurações o Museu de Arte Moderna, o Cine Brasília, o Teatro Nacional, a Concha Acústica, o Espaço Cultural Renato Russo e a Igreja Nossa Senhora de Fátima. Isso sem falar em locais interditados. O Panteão da Liberdade, localizado em frente à Praça dos Três Poderes, por exemplo, está fechado desde abril de 2008 em razão
do desabamento de parte do teto de mármore. O Espaço Lúcio Costa é outro monumento que se encontra cheio de infiltrações, e é constantemente citado em jornais e revistas como reduto de usuários de drogas. A Torre de TV e a Rodoviária, alvos de reparos permanentes, continuam com carências em suas estruturas. “Precisamos fazer algo rápido, pois certamente os membros do comitê não vão gostar de ver o que está ocorrendo”, afirma a museóloga e antropóloga Ione Carvalho, atual subsecretária de Políticas Culturais da Secretaria da Cultura do Distrito Federal. O superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Alfredo Gastal, é mais otimista. Ele acredita que, apesar da preocupação com a depredação dos monumentos, Brasília não corre o risco de perder o título de patrimônio da humanidade, por não estar descaracterizada em sua essência. Ele cita os prédios do Palácio do Planalto e do Teatro Nacional, que estão sendo restaurados para o aniversário
FOTOS AUGUSTO COELHO
LONGO CAMINHO Francisco trabalhou como carpinteiro na construção do Palácio do Itamaraty: “A vinda para Brasília arrumou a vida de muita gente”
PERSEVERANÇA Ezechias no Parque Olhos D’Água: pressão preservou nascentes e lazer
de 50 anos, assim como a Praça dos Três Poderes. Mas acrescenta que um processo de destruição de Brasília começou quando JK saiu do governo. “Preservar uma cidade ou bem cultural é uma questão política”, frisa.
Pressão popular
Como tentativa de solucionar alguns dos problemas da cidade, o governo do Distrito Federal tem tocado o projeto do Veículo
Leve sobre Trilhos (VLT), cuja proposta é ligar ao aeroporto a avenida W3, que corta as Asas Norte e Sul. Está previsto também um corredor de integração entre linhas de ônibus, no percurso entre o Plano Piloto e a cidade-satélite do Gama. Outra novidade boa nessa preocupação em preservar a cidade é a ação da própria comunidade, por meio de associação de moradores e campanhas de mobilização.
Foi com iniciativas do tipo que um grupo de moradores das Superquadras 413 e 414 Norte conseguiu manter o Parque Olhos D’Água, localizado no final da Asa Norte. Anteriormente abandonado, o lugar é fruto do esforço dessas pessoas em lutar pela área e pela construção do parque, numa região de nascentes que corria o risco de ser aterrada e dar vez a novos edifícios. Distribuído em 21 hectares de área verde, cortados por uma pista de cooper de 2.100 metros e várias trilhas menores que percorrem o cerrado e a mata, em meio a uma lagoa, o parque é considerado exemplo de perseverança dos brasilienses. “Já tivemos muitos problemas com invasões, usuários de drogas e traficantes, mas isso é coisa do passado”, afirma o administrador, Ezechias Vasconcelos, acrescentando que o local “só resistiu porque a pressão da sociedade e a união dos moradores foram grandes”. Experiência igualmente positiva é o programa “Adote uma Nascente”, do Instituto Brasília Ambiental (Ibram). Criado em 2002, sua meta é mudar a feição das quase 200 nascentes localizadas no Distrito Federal. Assim, empresas e grupos podem se inscrever como “adotantes” e ficar responsáveis pela proteção e recuperação das nascentes. Podem optar ainda por ser padrinhos e, dessa forma, apenas colaborar com os adotantes na execução das ações. A questão conta com o apoio dos moradores, num movimento que envolve de profissionais liberais aos antigos pioneiros, aqueles que foram a Brasília para trabalhar a construção da cidade e terminaram ficando de vez, criando raízes. Como Francisco das Chagas Ribeiro. Ele chegou em 1958. Trabalhou como carpinteiro na construção do Palácio do Itamaraty e das casas do Cruzeiro. “A vinda para Brasília arrumou a vida de muita gente, mas o caminho foi longo”, diz. Situação semelhante é a de Luiz Pacífico dos Santos, aposentado da construção civil. “Vim para cá em 1958 para começar a vida, carreguei muito tijolo para ajudar a erguer o prédio do Congresso Nacional. No começo, achávamos que a cidade não ficaria pronta a tempo, de tanta coisa que tinha para ser feita. É estranho ver como ela está hoje”, afirma com jeito simples, ainda confuso, ao perceber que a capital erguida com a ajuda de suas mãos não apenas cresceu como se transformou. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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ENTREVISTA
Rock nordestino Oswaldo Montenegro chegou a Brasília nos anos 1970 e mergulhou no mundo dos repentistas e roqueiros da capital Por Maurício Thuswohl
“E
u me sinto como uma consequência do tempo em que morei lá”, diz Oswaldo, que está completando 30 anos de carreira. Carioca de nascimento, 54 anos feitos em março, ele passou a infância em São João del Rei, onde lembra de serestas e serenatas. Na adolescência, já na capital federal, tomou contato com a música nordestina e o rock brasiliense. Tudo misturado, foi se tornar conhecido a partir dos festivais, começando pelo da extinta TV Tupi, em 1979, com Bandolins, até hoje uma de suas favoritas. No ano seguinte, ganhou festival promovido pela Globo, apresentando Agonia. Com várias experiências no teatro, ele se prepara para estrear no cinema, com Léo e Bia, uma história de adolescentes que tentam viver de teatro na época da ditadura. Lá no Planalto Central.
Você foi o primeiro artista identificado com Brasília com projeção nacional. Qual sua relação com a cidade?
É estranha e mágica, porque Brasília é assim. É uma cidade paradoxal, com uma arquitetura meio futurista que abriga uma sociedade tecnocrata. É uma cidade ao mesmo tempo mística e reta, é uma cidade que, curiosamente, às vezes pode oprimir por excesso de espaço. É uma cidade planejada, cujo planejamento nunca correspondeu ao que se esperava. É uma cidade estranha, mas, ao mesmo tempo, habitada por gente normal, gente que vai ao futebol, que tem sonhos. Eu me sinto muito como uma consequência do tempo em que morei em Brasília. Principalmente, sou consequência de um choque cultural, que foi ter saído de São João del Rei, em um ambiente barroco de ruas sinuosas, para aquela amplidão reta, aquele rock and roll nordestino que Brasília é. O CD e o DVD têm a ver com Brasília, porque quando cheguei lá fui invadido pela música nordestina. Brasília é muito isso, né? Foi formada por gente de tudo quanto é lugar do Brasil, mas o nordestino está muito presente ali. Quando cheguei à cidade, conheci vários repentistas, e isso me marcou. E, também, tem aquele rock and roll. Esse clima, misturado com a coisa do Nordeste, é o que norteia o meu DVD. Então, o DVD e o show são divididos em duas partes: numa eu homenageio compositores nordestinos de quem eu fiquei amigo e depois parceiro, como Zé
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FOTOS LUCIANA WHITAKER
Seu último trabalho, Quebra-Cabeça Elétrico, é um resgate dessa formação brasiliense?
Brasília é uma cidade estranha, mas, ao mesmo tempo, habitada por gente normal, gente que vai ao futebol, que tem sonhos
Ramalho, Alceu Valença, Belchior... Na outra, canto algumas músicas que compus há muito tempo e gosto de cantar ainda. Quais músicas suas você prefere cantar?
As minhas preferidas são A Lista, Bandolins, Intuição, Léo e Bia, Travessuras, Estrelas, Estrada Nova e Lua e Flor. Prefiro essas porque a melodia e a letra vieram de forma espontânea. Mesmo que em todas as minhas músicas eu tenha usado a intuição e não tenha sido um compositor cerebral – porque não sou –, essas músicas que citei sempre me pareceram mais orvalhadas. Já vieram prontas na minha cabeça. Essas são as canções que duram mais em mim, as que nascem de parto normal.
Você sempre esteve envolvido em diversas frentes artísticas. Como se relacionam essas facetas?
Basicamente, sou músico e compositor. As outras artes eu exerço a partir da música, com a música e em função dela. Não faria nenhum trabalho como diretor ou como escritor que estivesse desvinculado da melodia e da canção.
O seu trabalho no teatro gerou filhotes?
O teatro é uma área que me empolga muito. Eu voltei a fazer musicais há um ano e pouco, logo que formei a Companhia Mulungo. Foi muito bom porque fiz um disco com eles, e agora fomos contratados pelo Canal Brasil para fazer uma série para a tevê. O Fernando, do Teatro Mágico, começou comigo, trabalhou comigo. Acho que não apenas eu, mas todo artista que está aí há muito tempo, de alguma forma, influencia alguém. Do mesmo jeito eu fui influenciado por alguém que veio antes de mim. Mas não fico identificando isso. Ao contrário, reconheço e admiro nas pessoas que trabalharam comigo a capacidade que tiveram de seguir com uma marca própria.
Quem foi importante na sua formação artística?
Em primeiro lugar, foram os boêmios de São João del Rei, onde passei a minha infância ouvindo música e ligando a música ao afeto. Todo fim de semana eles estavam em minha casa, cantando até de manhã. Meu pai e minha mãe sempre saíam para fazer serenata. Eu sempre liguei a ideia de música ao fato de as pessoas estarem juntas, se amarem e estarem em um clima bacana. Em segundo lugar, tem o ambiente que eu encontrei em Brasília. Na UnB (Universidade de Brasília), com a música erudita, e nos repentistas nordestinos que conheci quando cheguei lá. Essas foram as minhas duas maiores influências.
Quais artistas gostou de escutar ao longo de sua carreira e o que escuta hoje em dia?
Muita música nordestina. Ouço também Ray Charles, os negros do blues, música da renascença, medieval
e trilhas de filmes. Nada disso mudou durante todo esse tempo, eu continuo ouvindo essas coisas.
Que tal a experiência com a filmagem de Léo e Bia?
Ótima. Até hoje eu só havia dirigido teatro. Léo e Bia é uma peça que escrevi em 1983 e montei com a Isabela Garcia, e agora tive a oportunidade de filmar. Ainda estamos negociando a distribuição, mas o filme está pronto. É a história de sete adolescentes que moram em Brasília no auge da ditadura, no governo Médici, e tentam fazer teatro e viver dele. É a história deles.
Você captou recursos para a produção?
Em primeiro lugar, Léo e Bia é um filme muito barato. Ele contou com a ajuda de todo o elenco, que se apaixonou pela ideia da produção, e isso me permitiu bancá-lo sem patrocínio. Léo e Bia é um filme feito na coragem. Agora preciso fechar com uma distribuidora para que possa ter visibilidade.
Como encara o fenômeno da internet na disseminação da música?
Acho que a internet traz um mundo fascinante de informação democrática. Vamos ter a música seguindo o caminho traçado por ela própria. Em vez de boca a boca, a propaganda agora vai ser site a site. Cada pessoa vai ser dona de sua pequena tevê, seu pequeno rádio, seu pequeno jornal. Isso vai fazer um mundo fascinante, e a indústria do disco vai ter de aprender a lidar com isso.
O Brasil vive uma onda de resgate da memória musical de seus artistas. O que acha disso?
A memória é fundamental, porque é com ela que a gente aprende. Um país sem memória é um país que não consegue andar pra frente, porque ele não sabe de onde veio. O brasileiro tem de esquecer menos, não só na cultura, mas na memória nacional em geral.
E o seu programa no Canal Brasil?
Já comecei a gravar, vai ao ar no segundo semestre. Vai se chamar Filhos do Brasil e é feito com a Companhia Mulungo. Escrevi vários quadros de música, texto e coreografia baseados numa ideia de Jorge Mautner de que o Brasil é a grande solução para o terceiro milênio da humanidade, por ser um país misturado, miscigenado, sociologicamente bendito, na medida em que, por ser um país mulato, não permite fundamentalismos nem racismo exacerbado. Todos nós somos mulatos, nenhum de nós é branco mesmo, graças a Deus. O Brasil é um país que mistura Xangô com Cristo, Alá com espiritismo. No programa, eu enfoco o Brasil sobre várias áreas, de humor, de emoção... Existem tipos brasileiros, como a lavadeira e o repentista nordestino, quadros de humor. Terá também canções conhecidas, sempre abordando o Brasil pelo lado da mistura.
O Brasil mistura Xangô com Cristo, Alá com espiritismo. Todos nós somos mulatos, graças a Deus
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SAÚDE
Termômetro da
PANDEMIA Se a segunda onda da gripe A vier fraca como no hemisfério norte, o alerta deverá ser revisto pelas autoridades. Governo vacina agora os grupos mais suscetíveis às complicações Por Cida de Oliveira
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epois que um novo tipo de gripe afetou duas pessoas e matou uma em meados de abril de 2009, o governo do México declarou o alerta sanitário para o vírus A (H1N1). Em menos de dez dias, Margaret Chan, diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), anunciou que o surto poderia virar uma epidemia mundial. Em seguida, a prefeitura de Nova York informou que exames laboratoriais confirmaram o diagnóstico de gripe suína em oito dos cerca de 100 estudantes que estiveram no balneário mexicano de Cancún. A OMS elevou para 5 o nível de alerta, numa escala que vai até 6. A partir de então, pessoas usando máscaras torna-
ram-se a imagem mais comum em jornais e na televisão. Viagens foram canceladas, jogos de futebol suspensos, escolas evacua das e férias escolares prolongadas. Em 12 de junho, um dia depois de a OMS declarar pandemia – que significa a ampla distribuição geográfica da doença, e não sua letalidade –, o laboratório Novartis noticiou a produção do primeiro lote de vacina. Em meio ao pânico, começava a corrida dos governos para garantir o imunizante. Um ano depois de a gripe A ter tomado conta do noticiário, o Brasil vai para a reta final de sua estratégia de vacinação, iniciada em 8 de março. Já foram vacinados indígenas, trabalhadores da área de saúde, gestantes, doentes crônicos e crianças de 6 meses a 2
anos. A campanha prevê ainda vacinação de pessoas de 20 a 29 anos, idosos com mais de 60 anos, portadores de doenças crônicas e pessoas de 30 a 39 anos. Ao todo, haverá vacinas para cerca de 90 milhões de pessoas, e a estimativa é que pelo menos 62 milhões sejam imunizadas. No final do ano passado, o Ministério da Saúde comprou 83 milhões de doses, pelas quais pagou R$ 1 bilhão. São vacinas da Sanofi, via Instituto Butantan, GlaxoSmith Kline (GSK) e Fundo Rotatório de Vacinas da Organização Pan-Americana de Saúde. Em 25 de fevereiro, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, anunciou a aquisição de mais 30 milhões de doses para incluir no público-alvo pessoas de 30
“Não há dúvida de que os governos foram fortemente pressionados pelos laboratórios”, diz Hélcio Marcelino, secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (SindSaúde). “Mas no caso do Brasil ficou claro que o lobby não funcionou. Tanto é que a estratégia de imunização continua a mesma anunciada anteriormente”, acrescenta. Segundo números oficiais, em 2009 o Brasil registrou 27.850 casos e 1.632 mortes – o maior número absoluto de óbitos em todo o mundo pela nova gripe. Já o tipo comum da doença afetou 39.679 pessoas e suas complicações mataram 1.705. O impacto do vírus A em 2010 é imprevisível. “O número de casos poderá ser maior, por haver muita gente ainda vulnerável, ou menor, em função da vacina que começa a ser aplicada. Além disso, o agente causador pode se modificar, ficando mais ou menos ativo que o da gripe comum”, diz a infectologista Nancy Bellei, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Por isso, não podemos relaxar nas medi-
FOCO Mexicana usa máscara cirúrgica: há um ano o governo do México declarava alerta sanitário
ELIANA APONTE/REUTERS
ENCALHE EUROPEU Vacinação na Holanda: país anunciou a venda de 19 milhões dos 34 milhões de doses encomendadas
JERRY LAMPEN/REUTERS
a 39 anos – faixa etária com maior número de hospitalizações e mortes depois daqueles grupos priorizados anteriormente. A inclusão atende também a solicitações de diversos secretários estaduais, como o do Rio Grande do Sul, onde a maioria dos 272 mortos estava nessa faixa etária. O custo será de R$ 300 milhões. Segundo Eduardo Hage, diretor de Vigilância Epidemiológica, a compra adicional já estava prevista: “Quando a estratégia foi anunciada, em 26 de janeiro, destacamos que, se houvesse alterações na situação epidemiológica e disponibilidade de vacina, outros grupos seriam incluídos”. Além disso, o governo aproveita a queda no valor do imunizante: o preço da dose da Sanofi passou de US$ 7,60, na primeira compra, para US$ 4,37. Embora a procura seja grande nos postos públicos e mesmo nas clínicas particulares, a compra adicional chegou a levantar suspeitas de que o Brasil teria cedido a pressões dos fabricantes, empenhados em desovar no hemisfério sul os milhões de doses encalhados nos países do Norte.
Diferença entre a gripe comum e a influenza A As duas doenças agem de forma semelhante, possuem os mesmos sintomas e grau de letalidade. Ambas podem se apresentar por meio de febre repentina, acima de 38 ºC, dor de cabeça, dores musculares e nas articulações e dificuldade respiratória. A diferença entre um resfriado e uma gripe é a presença da febre, o sintoma mais comum nos casos de infecção por influenza. Portanto, uma pessoa com a nova gripe tem a febre como um dos principais sintomas, além da tosse e dores nas articulações e nos músculos. O vírus é mortal? Não, o que ocasiona a morte são as complicações geradas pela doença, principalmente a pneumonia. Fonte: Ministério da Saúde ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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das preventivas. É sempre melhor prevenir do que remediar.” A técnica em enfermagem Andréa Maria de Aquino Munhoz, de São Paulo, já foi vacinada contra a nova gripe, embora tenha recebido a vacina contra o tipo comum. Ela conta que atua em um centro de referência em aids e cuidou de muitos doentes da nova gripe no ano passado. “Felizmente, onde trabalho nenhum paciente morreu por causa dela, mas muitos tiveram sérias complicações.” O encalhe na Europa, que levou à queda nos preços, começou em novembro passado, quando a Holanda anunciou a venda de 19 milhões dos 34 milhões de doses encomendadas. A Suíça, que comprou 13 milhões dos laboratórios GSK e Novartis para uma população de 7,7 milhões de habitantes, também anunciou a venda de 4,5 milhões de doses e fez doação à OMS. A Espanha comunicou a devolução das vacinas não utilizadas, argumentando que seus contratos com a Novartis (22 milhões de doses), a GSK (14,7 milhões) e a Sanofi-Aventis (400 mil) incluem cláusulas que permitem devolver os excedentes. No começo de janeiro, o governo alemão começou a negociar com a GSK um corte de metade dos 50 milhões de doses encomendadas. Era de esperar. Em agosto, enquete da revista Der Spiegel revelou que somente 13% dos entrevistados disseram querer se imunizar, enquanto 25% responderam que provavelmente se vacinariam. A pesquisa constatou que só 28% dos entrevistados na faixa entre 18 e 29 anos – justamente o grupo mais infectado na Alemanha – encaravam a vacina de forma positiva.
PRIORIDADE Seguindo cronograma do Ministério da Saúde, índia guarani recebe a vacina contra a gripe A na aldeia do Parque Estadual XixovaJapuí, em São Vicente
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BRIGA DE GIGANTES Wolfgang Wodarg, da Comissão de Saúde do Parlamento Europeu, acusa a OMS de manter ligações muito estreitas com laboratórios. A diretora-geral da entidade, Margaret Chan, rebate com um forte argumento: 14,1 mil mortes
DENIS BALIBOUSE/REUTERS
Além do declínio da atividade do vírus H1N1 na Europa Ocidental, há outras explicações para a baixa procura pela vacina. Os países estão preparados para enfrentar as doenças – daí não realizarem campanhas de vacinação. Consequentemente, a população não está acostumada à imunização em massa, como acontece no Brasil. Em alguns casos, a preocupação com eventuais reações adversas, que circulam principalmente na internet, chegou a ter certa influência. Entre elas, está a rara síndrome de Guillain-Barré, que afeta nervos responsáveis pela função motora. Como o imunizante modifica o sistema imunológico, que se prepara para combater o vírus, a reação
VINCENT KESSLER/REUTERS
Reações adversas
MOACYR LOPES JUNIOR/FOLHA IMAGEM
ataca também o nervo periférico. O paciente pode apresentar fraqueza nas pernas, nos braços, músculos faciais e, em casos mais graves e raros, alterações respiratórias, na pressão e na frequência cardíaca.
Exageros
Para completar, houve uma série de escândalos. Na França, a compra de 94 milhões de doses deu o que falar. Dos 63 milhões de habitantes, apenas 6 milhões se vacinaram. O excesso francês ainda causa polêmica. Em fevereiro, o Senado criou
uma comissão de inquérito para investigar a gestão da campanha de vacinação. Parlamentares acusam o governo de ter contratado especialistas ligados a grandes laboratórios, que teriam exagerado a gravidade da epidemia para forçar a compra. O governo desembolsou € 712 milhões. As acusações contra a indústria resvalaram na OMS. Em outubro, um blog abrigado no site da prestigiada revista Science noticiou o que até então não passava de teoria conspiratória, atribuindo ao virólogo holandês Albert Osterhaus, consultor da
Higiene e orientações em caso de suspeita de gripe n Lavar as mãos com frequência e sempre que tossir ou espirrar n Utilizar lenço descartável para higiene nasal n Cobrir nariz e boca quando espirrar ou tossir n Evitar tocar mucosas de olhos, nariz e boca n Se surgirem sintomas de gripe (principalmente febre, tosse, dor de cabeça e no corpo), procure o médico mais próximo e não tome medicamento por conta própria Fonte: Ministério da Saúde
OMS, a suspeita de ter alimentado o temor sobre a pandemia para favorecer os interesses do seu laboratório. O nome do cientista está ligado também ao alarme do organismo internacional sobre a gripe aviária. Para colocar mais lenha na fogueira, o presidente da Comissão de Saúde do Parlamento Europeu, o epidemiologista alemão Wolfgang Wodarg, quer que a entidade investigue se houve conflito de interesses entre a OMS e fabricantes. Em seu blog, Wodarg afirma que a gripe suína é “o maior escândalo médico do século” e acusa os laboratórios de “ter organizado uma psicose” e que “um grupo de pessoas da OMS está associada de maneira muito estreita à indústria farmacêutica”. A repercussão foi tamanha que, em janeiro, a OMS respondeu às acusações em duas ocasiões. No dia 22, a diretora Margaret Chan usou a abertura da sessão anual do organismo, em Genebra, para justificar as medidas e o alarme sobre a doença, que em dez meses matou cerca de 14,1 mil pessoas em todo o mundo. “Fornecer aconselhamento independente é uma função importante da OMS. Levamos esse trabalho a sério e nos resguardamos de qualquer influência inapropriada”, disse, em comunicado distribuído à imprensa, acrescentando que a reação da entidade à pandemia, declarada em junho passado, “não teve a influência da indústria”. No dia 26, o órgão defendeu seus laços com parceiros do setor privado como “essenciais para alcançar seus objetivos em saúde pública hoje e no futuro”. “Em meio a dúvidas e suspeitas, há uma certeza inquestionável: a maciça propaganda em torno da pandemia da gripe A, que matou aproximadamente 14 mil pessoas no mundo, num feito trágico, porém longe das 500 mil mortes anuais causadas pelas gripes sazonais”, diz o economista Fabiano Garrido, consultor do Sindicato dos Químicos Unificados de Campinas, Osasco, Vinhedo e Regiões, em São Paulo. Para Hélcio Marcelino, do SindSaúde, todos os excessos são prejudiciais. “De um lado há a mídia alarmista, incluída no esquema dos laboratórios e do jogo político, que fez da nova gripe uma doença muito mais grave e letal do que a sazonal, pondo a população em pânico”, diz. “De outro, a ignorância e desprezo de quem crê que gripe não é doença, que suas complicações não matam, e por isso nenhum tipo de gripe merece a mínima atenção.” ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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AMBIENTE
Anos depois de chegar ao interior paulista, um poderoso herbicida une-se à monocultura e ao eucalipto, prejudicando a saúde, a economia e a cultura da população Por João Peres
Deserto verde E
ucalipto, monocultura e agrotóxicos. Uma combinação tira o sono – e a saúde – de centenas de famílias em todo o Brasil. O Vale do Paraíba, em São Paulo, região outrora celeiro agrícola, concentra algumas dessas histórias. José Augusto Ramalho de Matos tira o boné e aponta para o alto da cabeça, na vã tentativa de mostrar a “mancha preta” que está em seu cérebro. Aos 50 anos, Mineiro, como é conhecido, está há cinco aposentado por invalidez e enumera a finalidade dos diversos remédios que toma todos os dias: controle de pressão, problemas cardíacos, dificuldade para dormir. Benedita de Morais Oliveira, 68, lamenta a todo instante o problema que teve há cinco anos. “Um dia, fiz o almoço cedo, comi e tomei uma caneca de
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água. Quando acabei de engolir, senti como se tivesse levado um soco na cabeça e caí. Pensei que fosse morrer”, conta dona Dita. Ronaldo Prado Nunes pensava que estava fazendo o melhor dos negócios quando arrendou um terreno em Piquete, no interior paulista, na década de 1990. Os anos de aposentadoria ao lado da mulher, Neusa, corriam bem até a chegada de um indesejado vizinho no ano de 2003. “O negócio é lento, levou quase três anos para a gente perceber. Você vai morrendo devagarzinho, os animais vão morrendo devagarzinho. Quando foi ver, a gente não tinha força para andar, para fazer nada”, lamenta. Pedro Galvão Moreira é outro que não gostou nada quando se deu conta da troca de vizinhança. Faz mais de 30 anos, e Pedro Santo, 70, ainda não se acostumou
com a partida das dezenas de famílias que habitavam a propriedade de Zinho Mineiro, produzindo leite, frutas e verduras. “No começo, todo mundo ficou animado porque ia gerar emprego. Depois vieram as máquinas grandes, e o povo todo foi embora para a cidade”, lembra. O primeiro integrante da combinação, o eucalipto, espalhou-se pelo país durante a década de 1970, numa faixa que vai do Rio Grande do Sul à Bahia. Em São Luiz do Paraitinga, a primeira empresa a chegar foi a Suzano, exatamente na propriedade de Zinho Mineiro. “O eucalipto não traz nenhum benefício para a cidade. Não emprega pessoas, não produz alimentos, impacta a terra com o uso de agrotóxicos, mas as corporações contam com poderes cooptados”, acusa Marcelo Toledo, coorde-
nador do Movimento em Defesa dos Pequenos Agricultores. As características naturais do eucalipto não jogam a favor de sua reputação. Acidificação do solo, declínio na produção de matéria orgânica e mudanças irreversíveis na estrutura e na textura dos solos são alguns dos fatores que intensificam outro problema que dá (má) fama a essa árvore, conhecida como uma “bomba sugadora de água”. Hernán López Echagüe, autor de Crónica del Ocaso, livro que narra problemas semelhantes entre Uruguai e Argentina, calcula que é necessária a utilização de um litro de água para cada dois gramas de eucalipto até o momento do corte. Uma tonelada de pasta de celulose demanda 3 toneladas de madeira. A Bracelpa, entidade que representa as empresas do setor, estima em 13,4 milhões de toneladas a produção brasileira de celulose em 2009. Somando-se toda a cadeia, na produção brasileira de um ano de papel e afins o consumo de água é suficiente para o abastecimento de água de São Paulo, a maior cidade do país, durante 175 dias.
AGONIA O mesmo agrotóxico que mata os peixes deixa Ronaldo Prado sem forças até para caminhar
FOTOS LUIZ NOGUEIRA
Monocultura
INVASOR Mata Atlântica é tomada pelo eucalipto
O segundo elemento dessa história, a monocultura, entrou em cena poucos anos depois da chegada do eucalipto ao Vale do Paraíba, mas se intensificou ao longo dos anos 1990 e da primeira década deste século, com a expansão da silvicultura. Foi esse avanço que, em 2003, chamou a atenção de Marcelo Toledo. Em um trabalho sobre a cultura caipira do povo de São Luiz do Paraitinga, o então vereador sentiu que faltavam também escolas, casarões, capelas – e sobrava eucaliptal. Ele tentou em vão, por duas vezes, aprovar projetos na Câmara Municipal para limitar o plantio. Ao mesmo tempo em que trabalhava com a Defensoria Pública, Toledo organizava reuniões e levantava documentos sobre como a monocultura havia dominado uma cidade que, mesmo nos tempos áureosdo café, orgulhava-se de sua produção agropecuária diversificada. “Há uns anos, o prefeito foi construir uma escola num desses bairros com eucaliptais. Hoje, a escola está para ser fechada porque não tem aluno. Precisam trazer gente da cidade para justificar a escola”, diz. Os dados do Censo Agropecuário do IBGE, divulgados no ano passado, jogam luz sobre o assunto. O Estado de São Paulo tem apenas 13 mil dos 211 mil estabele-
cimentos que cultivam eucalipto no país, mas responde por mais de um terço da área cortada anualmente. São Luiz do Paraitinga tem 397 estabelecimentos familiares, que ocupam 12.050 hectares, ante 110 fazendas produtoras, instaladas em 16 mil hectares. Fernando Borges, diretor da ONG Grupo de Estudo e Conscientização Ambiental (Geca), lamenta que o eucalipto tenha dominado terras que poderiam produzir alimentos, e indaga: “Por que o poder público não fiscaliza essa falta de limite na questão do eucalipto? As empresas financiam a campanha desses políticos, e isso dificulta a ação. No futuro, quando essas terras não interessarem mais às empresas, o que vai ser delas?” A resposta está no sul da Bahia, aonde as empresas de papel e celulose chegaram também na segunda metade do século passado. Hoje, há muitas áreas abandonadas, sem condições para plantio devido aos efeitos agressivos do eucalipto sobre o solo. Uma ação movida no começo dos anos 1990 pelo Ministério Público Federal pede a responsabilização da Veracel por desmatamento da Mata Atlântica. O julgamento em primeira instância, em 2006, definiu que a empresa deve pagar R$ 20 milhões, mas esta recorreu. As investigações mostraram que a Veracel havia plantado no município de Eunápolis sem o devido Estudo de Impacto Ambiental e que o licenciamento conduzido pelo Centro de Recursos Ambientais da Bahia estava repleto de irregularidades. “É crime organizado”, constata o promotor João Alves, do Ministério Público do Estado da Bahia. “Estudos revelam que o eucalipto vem secando nascentes, acabando com o solo. Já fomos os maiores produtores do mundo de mamão e graviola. Hoje, Eunápolis tem apenas 18 hectares de feijão, e outras cidades da região não têm nada”, afirma Ivonete Gonçalves, coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes). A entidade mostrou que mais de 70% das áreas agricultáveis dos municípios da região estão tomadas pelo eucalipto. Atrelada à produção de papel e celulose, surge mais uma questão: a Veracel, sozinha, responde a mais de mil ações na Justiça do Trabalho baiana. Entra aí o terceiro ingrediente da história, o agrotóxico. O glifosato foi definitivamente inserido nos eucaliptais com a anuência, pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), do ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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plantio da variedade Roundup Ready (RR) da árvore. As variedades RR são, traduzindo para o português, “prontas para o Roundup”, ou seja, feitas para resistir ao poderoso herbicida da Monsanto, líder mundial na comercialização de agrotóxicos e de sementes geneticamente modificadas. O glifosato, descoberto no fim da década de 1960, logo mostrou uma vantagem competitiva que os produtos até então conhecidos não tinham: é um desfolhante poderoso, que mata tudo o que encontra pelo caminho, exceção feita às plantas RR. Embora a Monsanto tenha alegado durante anos que o produto era biodegradável, e tenha contado nessa empreitada com o apoio de integrantes de órgãos de regulação, como a CTNBio, diversos levantamentos ao redor do mundo confirmam o contrário. A começar pelo efeito sobre a natureza, os compostos de glifosato, ao matar indiscriminadamente, podem ser uma ameaça à biodiversidade.
SOLIDÃO Pedro Santo lamenta a chegada das máquinas e o êxodo para a cidade
Como todo agrotóxico, o glifosato, despejado em cursos de rios ou em fontes, contamina a água. É a explicação que a Defensoria Pública em Taubaté cita para o caso de dona Dita. Ela e o marido foram, aos poucos, sendo cercados por eucaliptais. O temor de problemas gerados pelos venenos transformou-se em realidade devido ao uso de agrotóxico a poucos metros da mina d’água utilizada para consumo. Cinco anos depois do dia em que sentiu “um soco” na cabeça, ela tem problemas sérios de saúde, é submetida a exames periódicos e depende de medicamentos. O médico que constatou a intoxicação, que preferiu não se identificar, disse que a paciente sofre de abalos psicológicos e físicos irreversíveis, com depressão e ansiedade. Todos os expostos ao glifosato, de acordo com pesquisas conduzidas no exterior, estão sujeitos a desenvolver câncer. Um estudo realizado na Grã-Bretanha e narrado no livro O Mundo Segundo a Monsanto, da francesa Marie-Monique Robin, mostra que o Roundup leva a mudanças na forma de divisão celular, podendo causar a formação de tumores. É essa uma das possibilidades que atormentam Ronaldo Prado Nunes. O Scout, “irmão” do Roundup, começou a ser aplicado na propriedade arrendada pela Nobrecel em 2003. “Para economizar mão de obra e
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FOTOS LUCIANO DINAMARCO
Contaminação da água
VENENO Dona Dita tomou uma caneca d’água e pensou que fosse morrer
energia produtiva, antes de plantar a muda, infestam a terra com toneladas de glifosato, secando os elementos naturais num processo chamado de capina química”, afirma Wagner Giron de la Torre, defensor público que move ações na Justiça contra os danos gerados pelo eucalipto no Vale do Paraíba. No caso de Piquete, uma pequena rua de terra separa o eucaliptal e a propriedade de seu Ronaldo, onde há diversas árvores frutíferas e animais que ainda hoje, anos depois da interrupção do despejo de Scout, “denunciam o golpe”. Foi a mortandade de peixes que permitiu detectar de onde vinha o problema que afetava a saúde de Ronaldo e a de sua esposa. Notando a própria saúde abalada, o expolicial rodoviário iniciou uma peregrinação por médicos. Nos longos meses até descobrir a causa da intoxicação, a esposa foi ficando cada vez mais doente, e chegou o momento em que permanecer em
pé era um desafio. Segundo o médico Antônio Rodrigues da Silva, que atendeu o caso, eram a queda na produção dos glóbulos brancos e os problemas nos rins e no estômago fazendo efeito. Sintomas iguais foram sentidos por Mineiro, a 100 quilômetros dali. Ele começou a trabalhar em eucaliptais na metade da década de 1990, e dez anos depois já estava aposentado pela chamada “invalidez”. “Estou com 50 anos. O que aconteceu para eu estar aposentado nessa idade? Quando entrei na empresa, não teve problema nenhum e eles gostavam, porque eu trabalhava forte. Quando adoeci, fui demitido.” Agora, como outras pessoas, Mineiro aguarda uma indenização que ao menos pague seu tratamento médico. Há diversas ações, individuais e coletivas, que falam dos efeitos do trio eucalipto-monocultura-agrotóxicos. Até o momento, a Defensoria Pública em Taubaté conseguiu liminares em bairros de São Luiz e de Piquete que impedem a continuidade do plantio. O julgamento do mérito, no entanto, não deve sair tão cedo. “Queremos a condenação do Estado de São Paulo, que, por meio da omissa Secretaria de Meio Ambiente, deveria fiscalizar todas as fazendas. É preciso criar uma zona agroflorestal em cada município, delimitando as áreas de Mata Atlântica”, afirma o defensor Wagner Giron de la Torre. Em São Luiz, o eventual pagamento de indenizações deve ser revertido a cooperativas de agricultores, para que a cidade possa voltar a produzir alimentos, deixando de depender dos produtos comprados em mercados dos grandes centros. Em nota, a Monsanto informou que vai reiterar nos julgamentos a segurança de seus produtos à base de glifosato. “O produto Scout foi aprovado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento quanto à sua eficiência e praticabilidade agronômica, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária quanto à toxicidade para a saúde e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, quanto ao impacto ao meio ambiente”, informa a empresa. Segundo a Nobrecel, estudos demonstraram que não há ligação entre herbicidas e os fatos apresentados por Ronaldo Prado Nunes. A empresa afirmou que não falaria mais a respeito do caso por ainda não haver julgamento em definitivo. A Votorantim não respondeu aos questionamentos apresentados pela reportagem.
Atitude
Por Evelyn Pedrozo. Foto de Nirley Sena
Ela faz a cabeça A
ndrelina Amélia Ferreira é especialista em trançar cabelos. Mas lá na Praia Grande, no litoral sul paulista, faz mesmo a cabeça das pessoas com o projeto social Anjos do Gueto. Há cinco anos ela reúne a moçada em casa para leitura de jornais e poesias de autores da periferia, divulga a cultura hip-hop, provoca discussões sobre a realidade local e orienta os jovens a ficar longe dos “perigos” da rua. Andréia M.F., como é conhecida, tem 39 anos. Foi violentada dentro da própria casa. Ficou órfã, engravidou cedo, foi parar na Febem, casou, separou, foi presa injustamente, enfrentou preconceitos e hoje reverteu sua sina. É respeitada por sua fibra e também por sua generosidade. “No início só vinham aqui jovens de 15 a 17 anos. E agora vem gente de toda idade”, conta. “Cada um vira multiplicador do que conversamos. Tem um que virou escritor, outro foi pro Exército.”
Até pouco tempo atrás ela conseguia reunir todos para um almoço de domingo, mas agora faltam recursos. Muitas famílias próximas dela dependem de sua doação para receber uma cesta básica. “Não sei como procurar ajuda. Os políticos só aparecem aqui em época eleitoral. Depois somem.” Tiago, o primeiro de seus filhos, nasceu quando Andréia tinha 14 anos e foi criado por seu irmão mais velho. Aos 25, está casado e mora em São Paulo. Evandro, de 16, e Leandro, de 20, são seus companheiros no grupo Andréia M.F. (que antes significou “mente feminina” e agora quer dizer “mãe e filhos”). Eles fazem apresentações na Baixada Santista e já chegaram a abrir shows de rappers famosos. Ela dá palestras regularmente no 2º Distrito Policial de Santos e em alguns presídios femininos sobre reintegração social. “Dou meu exemplo e estimulo a batalharem para retomar o controle da própria vida.” ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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Quem ganh
AFP PHOTO
CULTURA
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DEVASTAÇÃO O que sobrou de Hiroshima depois da bomba de 1945
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EVANDRO TEIXEIRA/AJB
AFP PHOTO
J. FRANÇA/AJB
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Documentário de Silvio Tendler expõe os principais fatos dos últimos 60 anos e reflete sobre a capacidade humana de sonhar e destruir Por Vitor Nuzzi
O SONHO ACABOU Os brasileiros (no alto) protestam contra a ditadura fazendo a Passeata dos 100 mil, em junho de 1968. No Vietnã, em 1971, a guerra leva mulheres ao front. Os chilenos, acima, acompanham o enterro do poeta Pablo Neruda, em 1973
m incômodo perpassa do começo ao fim na exibição de Utopia e Barbárie, de Silvio Tendler. E a sensação não está nas velhas imagens das vítimas do Holocausto ou dos sobreviventes da rosa de Hiroshima nem em tantos conflitos ou dilemas enfrentados pela humanidade nos últimos 60 anos, expostos no documentário. Nem nos conflitos políticos e ideológicos que moveram mentes e corações que queriam conquistar ou simplesmente mudar o mundo. Pode estar na percepção de que perderam os que sonharam, ainda que se alimentem permanentemente de esperança. Afinal, como afirma no filme o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “o direito de sonhar é o papai e a mamãe de todos os direitos”. Àquele que queira argumentar que os sonhos não levaram a nada e que tudo fracassou, o cineasta canadense Denys Arcand (O Declínio do Império Americano e As Invasões Bárbaras) responde: “A minha geração, pelo menos, tentou acreditar em algo”. O filme de Tendler, definido com um road movie histórico, levou 19 anos para ser concluído. O autor percorreu países como Alemanha, Chile, Cuba, França, Israel, Itália e Vietnã e levou dezenas de pessoas – líderes, pensadores, intelectuais, militantes – a refletir sobre o que aconteceu no mundo desde o final da 2ª Guerra Mundial, sobre a capacidade que o homem tem de lutar por seus sonhos e também de destruílos. “Um recorte de histórias”, define o narrador. Começa justamente com o choque causado pelo investimento bilionário dos Estados Unidos na bomba (“a maior aposta científica da história”) e termina com a posse de um operário no Brasil (Luiz Inácio Lula da Silva), de um cocaleiro na Bolívia (Evo Morales) e de um negro nos Estados Unidos (Barack Obama). Mostra lutas colonialistas na África, o conflito (eterno?) entre Israel e Palestina, o surgimento do neorrealismo no cinema italiano, carregando no drama para evidenciar ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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ARI VICENTINI/AE
BROCHADA No Brasil, a retomada da democracia foi inusitada. Em 1989 o país elegeu um representante da direita e depois o derrubou
“Como o mar”
Como se diz na fita, “utopia e barbárie convivem em desconcertante harmonia”. Para Tendler, nenhuma delas prevalece. “Há uma alternância. A utopia e a barbárie não são sincrônicas. Acontecem alternadamente. É meio como o mar”, afirma o diretor, em entrevista (leia na página ao lado). Mas, nessa guerra, há vencedores e vencidos? Nos anos 80, vem a barbárie econômica: Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margaret Thatcher na Inglaterra. A vez do neoliberalismo, que coincide com os questionamentos aos regimes do Leste Europeu. Muda o comportamento: yuppies (mercado, o sucesso individual) substituem os
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hippies (o sonho coletivo), a aids surge e ameaça acabar com o ensaio de liberdade sexual iniciado ainda na década de 1960. Gritos de independência: a desilusão com a Revolução Cultural chinesa, o movimento pelas eleições diretas no Brasil, a abertura de Mikhail Gorbatchev na União Soviética. Mas os anos 80, aqui, terminam com a eleição de Collor. “Se 68 foi o orgasmo da história, 89 foi a brochada”, compara o narrador. E foi justamente essa desilusão o ponto de partida para o filme. As cenas se sucedem em ritmo veloz, e os depoimentos se alternam: Amos Gitai, Augusto Boal, Bernardo Kucinski, Cacá Diegues, Fernando Solanas, Ferreira Gullar, Gillo Pontecorvo, Jair Krisker, Jacob Gorender, Leonardo Boff, Mauro Santayana, Patrícia Bravo, Susan Sontag, Zé Celso. Um sobrevivente do Holocausto, um pacifista israelense, um
cineasta palestino. Vítimas e testemunhas de injustiças e transformações contando a sua história. Em todo esse tempo, Tendler reuniu 400 horas de histórias para montar a dele. “É a que eu conheço, que eu vi”, diz. O filme, que terminaria em 1989, avança a tempo de mostrar o nascimento dos movimentos antiglobalização e a era da internet. A história guardaria ainda, em seus desvios e reviravoltas, algum espaço para a utopia? Novamente citando Galeano, não pode faltar o pão da esperança.
Dedicado a Apolônio Utopia e Barbárie é dedicado ao militante socialista Apolônio de Carvalho, que morreu em 2005, aos 93 anos. Ele combateu a ditadura de Francisco Franco na Espanha, participou da Resistência Francesa durante a 2ª Guerra, viveu na União Soviética e voltou ao Brasil, onde, na clandestinidade, lutou contra o regime iniciado com o golpe de 1964. Um resistente da utopia. Com 120 minutos de duração, o filme entrará em cartaz em 23 de abril. A narração é feita pelos atores Letícia Spiller, Chico Diaz e Amir Haddad e tem trilha sonora do grupo Cabruêra, de Caíque Botkay, BNegão e Marcelo Yuka.
Apolônio foi um dos fundadores do PT
ANA CAROLINA FERNANDES/FOLHA IMAGEM
as mazelas da vida, a visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil, o golpe militar de 1964, a Guerra do Vietnã, a luta de Martin Luther King – e 1968, quando o autor completou 18 anos de idade. O “orgasmo da história”, a “catarse coletiva” de 1968, até o brutal desfecho, no Brasil, com o AI-5 no final daquele ano, representando a fase mais violenta da ditadura. O sonho viaja para o Chile, com Salvador Allende. E acaba com o presidente morto em pleno palácio de governo, em 1973. E com um poeta, Pablo Neruda, perdendo a vida com “dor na alma”. Dez dias depois do golpe que manchou o país de sangue e torpeza, as cenas do enterro de Neruda certamente estão entre as mais tocantes do filme. A utopia grita e chora, a barbárie parece triunfar.
ROBERT GALBRAITH/REUTERS
Eduardo Galeano
CARLOS ALVAREZ/GETTY IMAGES
O direito de sonhar é o papai e a mamãe de todos os direitos
A minha geração pelo menos tentou acreditar em algo Denys Arcand
Conhecido do público por alguns de seus documentários com foco na história recente do Brasil, como Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980) e Jango (1984), Silvio Tendler retratou personagens distintos como Castro Alves, Glauber Rocha, Milton Santos e Os Trapalhões. Dos trabalhos para a televisão, Anos Rebeldes (1992) certamente é o mais marcante. Nele pode estar a gênese de Utopia e Barbárie, assim como na série Era das Utopias, apresentada pela TV Brasil em 2009. Em relação a seus trabalhos mais conhecidos, a diferença em Utopia e Barbárie é que não há um personagem definido. Dezenas de vozes estão lá, contando suas histórias. Para ouvi-las, Tendler passou anos percorrendo o mundo. Conseguiu depoimentos raros, como o do general vietnamita Vo Nguyen Giap (que liderou a vitória contra os Estados Unidos no final dos anos 60), com ajuda do Itamaraty. “Ele é o cara que no Vietnã fala o que pensa, o que às vezes causa alguma preocupação lá... (risos). É a última figura revolucionária.” Há também um depoimento da ministra Dilma Rousseff, agora pré-candidata à Presidência da República, o que provocou certo dilema na cabeça do cineasta, sobre incluí-la ou não no filme. Tendler, que não a conhecia, se interessou por ela após depoimento no Senado em 2008, quando Dilma, respondendo a um questionamento do senador
Agripino Maia (DEM-RN), disse sentir muito orgulho de ter mentido durante a ditadura, sob tortura, para preservar outros militantes. “Coloquei (o depoimento de Dilma) comedidamente, é a média da fala das pessoas”, diz o diretor, que também incluiu o exmilitante Franklin Martins, um velho conhecido, hoje também no governo. “Nem eu nem ele temos culpa de ele ter virado ministro”, brinca. Desta vez, diferentemente de outros trabalhos (JK, Jango, Glauber, Trapalhões, Castro Alves), o seu filme não tem um personagem. Ou o personagem é o mundo? Eu trabalhei com sujeito oculto. A história é uma construção, é o que dela se conta. Quando vêm falar comigo sobre o filme, todo mundo comenta alguma coisa que esqueci. Mas é a história que eu conheço, que eu vivi e a que eu dei importância. O Glauber que eu vi, o Milton Santos que eu encontrei, o Jango que eu estudei... De fato, é a primeira vez que faço na primeira pessoa. Há fotos minhas (no filme) para dar ao público a ideia de que tem um autor. Você diz que se trata de um filme interminável. Mas ele tem um começo? Esse filme nasceu na minha cabeça em 1990. Votei pela primeira vez para presidente aos 39 anos, em 1989. Esse direito
Silvio Tendler me foi negado durante mais de 20 anos. Eram mais de dez candidatos, de todas as gamas, ideias e ideologias possíveis. E o Brasil votou no pior, votou na fraude. Aquilo para mim foi um grande desalento. No filme, você diz que 1968 foi o “orgasmo da história” e 1989, “a brochada”... Entremeando com a eleição (no Brasil), houve a queda do Muro de Berlim. Não foi a expansão da solidariedade internacional, foi a apropriação do mundo por um punhado de empresas. Foi a segunda faceta da brochada. Naquele momento, prevaleceu o egoísmo, o fim da história, o mundo do consumo. Fiquei completamente desarvorado. Trabalhei esse filme das formas diferentes possíveis, inclusive como ficção. Cada vez que eu ia terminar, surgia um fato novo. Era para terminar com a queda do muro, em 1989. Mas aí aconteceram coisas como a queda do sistema financeiro nos Estados Unidos. É um bom ponto final.
AMÉRICO VERMELHO/DIVULGAÇÃO
Tendler: “A história é o que dela se conta” Ficou muita coisa de fora? Tenho mais de 400 horas (de filmagem). Muita gente boa ficou de fora, muito material bom. Quando você faz um filme, tem de ter coragem de cortar. Teve alguém com quem você gostaria de falar e não conseguiu? A Angela Davis (ativista norteamericana), musa da minha geração, e o Jean-Luc Gordard (cineasta francês). Nos dois casos eu bati na trave. Dos temas do filme, algum prevalece? Acho que faz parte das agruras da vida. Não há uma prevalência, há uma alternância. No mesmo momento em que há o golpe no Chile, o Araguaia, há a Revolução dos Cravos em Portugal, os movimentos de descolonização na África, a morte do Franco, a vitória do Vietnã... A utopia e a barbárie não são sincrônicas. Acontecem alternadamente. É meio como o mar. Há momentos em que você pode pôr os pés, entrar na água, e há momentos de ressaca em que você tem de se proteger, porque é bravo. Você pensou em ouvir o “outro lado”? Nos meus filmes, sempre busquei o equilíbrio. Fiz isso no JK, no Jango... De lá para cá, não tenho tido oportunidade de dar voz à barbárie (risos). Acho que eles já têm bastante espaço. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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HISTÓRIA
O filósofo da revolução As origens de Rousseau, um pensador do século XVIII cujas ideias, forjadas pela extraordinária Madame de Warens, influenciaram a tomada da Bastilha Por Flávio Aguiar
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herchez la femme: “Procure a mulher” (ou, numa versão livre, “a mulher é sempre a culpada”) é uma fórmula tradicional do romance policial francês, e pode servir como luva à biografia do filósofo revolucionário Jean-Jacques Rousseau, escritor de obras fundamentais da modernidade como Do Contrato Social, no século XVIII. Suas ideias tiveram influência capital sobre a Revolução Francesa de 1789 e todo o universo conceitual da modernidade, desde a importância do aleitamento materno até a necessidade de superar a aceitação tácita do contrato da desigualdade social para que todos, indivíduos e coletividades, possam se realizar como tal. Tive a sorte de visitar o lugar onde a personalidade desse filósofo começou a se formar, ou a se reformar. Uma paisagem fantástica, onde houve uma espécie de “crime”: o mundo do Antigo Regime, das aristocracias que se viam como encarnações supe-
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riores de uma desigualdade “natural” entre os homens, fruto da “vontade de Deus”, começou a declinar, assassinado, entre outras, pelas mãos ou pela pena desse JeanJacques. No centro desse “crime” estava, como diz o ditado, une femme: Louise Éléonore de la Tour du Pil, Madame de Warens. Nossa história começa na Rue de La Cité, em Genebra, Suíça. Ali cresceu Jean-Jacques Rousseau, e o local hoje abriga uma galeria de arte e um pequeno museu a ele dedicado. Genebra era um enclave protestante, de um calvinismo austero e rigoroso, no qual o jovem Rousseau foi criado sem se acomodar àquela rígida moral. Como a mãe morrera logo depois do seu nascimento e o pai casara novamente, ele foi educado por tias e tios, tutores e tutoras, e terminou fugindo da cidade que hoje o consagra como seu maior rebento. Por essas artimanhas do destino, um padre católico o encaminhou para a vizinha cidade de Annecy, na França, ao encontro de uma precepto-
ra/protetora que poderia lhe dar formação e educação: a já famosa Madame de Warens. Em retribuição, ele converteu-se ao catolicismo. A extraordinária Warens nasceu em Vevey, hoje também parte da Suíça, 13 anos antes de Rousseau, em 1699. Sua família, como a dele, era protestante. Casou-se talvez apenas para se ver livre da tutela da família. Pouco depois se separou do marido, mas guardou seu nome, assinando Françoise-Louise de Warens. Estabeleceu-se na região de Annecy, do lado francês, onde se tornou uma agente (protegida) do papa católico e também do rei do Piemonte. Era um posto estratégico, em meio protestante e hostil tanto ao Piemonte como ao catolicismo e à influência de Roma.
Encontro
Annecy é uma cidade encantadora dos Alpes franceses. Foi nessa cidade, em local hoje preservado e assinalado por uma
FOTOS FLÁVIO AGUIAR
ROMANCE Annecy, cidade no sopé dos Alpes franceses, apresentou Rousseau a Madame de Warens
homenagem ao filósofo e ao encontro dos dois, que eles se viram pela primeira vez, em março de 1728. Rousseau ia completar 16 anos; ela, 29. O mútuo encanto foi delicado e fulminante. No seu livro Confissões, publicado postumamente, Rousseau evoca a surpresa que teve. Esperava uma velha e vetusta senhora, talvez ranzinza, embora de fina educação. Essa última ele encontrou, mas numa mulher de corpo, rosto e alma jovens e cheios de encantos. De Warens investiu na formação de Rousseau. Enviou-o para Turim, na Itália. O jovem passou alguns anos entre afastamentos e voltas a Annecy, sempre apaixonado pela mulher que o acolhera. Parece que nesses primeiros anos nada aconteceu do ponto de vista sexual. A francesa tinha uma vida afetiva intensa, mas aquele jovem que a amava despertara-lhe sem dúvida algo no coração. Assim, De Warens introduziu Rousseau no universo da mundanidade católica. A moral sempre foi rígida quanto às relações então tidas como legítimas (isto é, o casamento). Mas sobre o restante – o vasto mundo dos amores proibidos –, além da proibição, ela nada tinha a dizer. E foi a esse mundo das liberdades praticadas (e silenciadas) que ela o conduziu pela mão. O certo é que quando Russeau completou 20 anos, em 1732, ele já era seu amante. Ou melhor, um de seus amantes, condição que
MUSEU Casa na Rue de La Cité, em Genebra, onde cresceu Rousseau
MELHORES ANOS Casa de Rousseau em Chambéry: aberta aos visitantes
sempre o incomodou e, parece, acabou por provocar a ruptura entre ambos. Mas De Warens, a quem ele chamava de “Maman”, foi a grande mentora teórica e prática de sua educação sentimental, sensual, sexual e também, em muitos aspectos, intelectual.
Contrato social
A relação deles se manteve entre idas e voltas até cerca de 1742, quando Rousseau se afastou de vez, mudando-se para Paris e depois vivendo em outras cidades, como Chambéry. Tornou-se o autor célebre de livros, mas o mais revolucionário talvez tenha sido o de suas memórias, Confissões. Nele, Rousseau conta a formação e desenvolvimento de sua personalidade, entrando em detalhes de intimidade, e advoga a ideia de que o princípio da individualidade e da subjetividade única deve ser respeitado universalmente, isto é, deve ser uma prerrogativa de todo e qualquer ser humano. E que, não sendo “natural”, o mundo centrado na desigualdade social forjada por meio de um contrato social iníquo prejudica a formação e o alcance desse conceito e dessa condição, tolhendo a maioria dos seres humanos numa condição servil. Foram ideias como essa que levaram à tomada da Bastilha, em Paris, em 1789, à Revolução Francesa, à dos Estados Unidos (antes), à independência do Haiti (depois) e – vejam só – até à nossa Inconfidência Mineira. Não é difícil, ainda mais para quem visita essas paragens – Annecy e Chambéry –, discernir e visualizar a força e a energia daquela relação com a suave, refinada e ardente De Warens no “desenho” do espírito e do caráter do filósofo. Muito tempo depois Rousseau (em 1767-68), que vira De Warens novamente uma única vez, voltou a procurá-la e descobriu que ela morrera, em relativa pobreza, mas sempre altiva e digna, em 1762, em Chambéry. E foi tão inesquecível que as últimas linhas que escreveu, pouco antes de morrer, em 1778, foram a ela dedicadas, em seu livro incompleto Os Devaneios do Caminhante Solitário. Depois de evocar o amor entre os dois, e lamentar que continuar compartilhando o amor dela com outros fora insuportável, ele diz: “Mas o que é extraordinário é que este primeiro momento foi decisivo para toda a minha vida, desenhando, por um encadeamento inevitável, o destino do resto de meus dias”. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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CIDADANIA
Canções da nossa gente Xavantes criam, gravam em sua língua e produzem músicas a partir de sua tradição. Alguns incluem ritmos e instrumentos ocidentais Por Guilherme Jeronymo
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guitarra de seis cordas inicia seus acordes acompanhada por um chocalho, um pandeiro e um teclado. Depois de uma introdução instrumental, em ritmo de difícil definição, o cantor se junta à melodia, e não é possível entender uma palavra sequer. O som tanto lembra o de cânticos religiosos de católicos renovados e cristãos neopentecostais como é devedor de arranjos da música tradicional de Goiás e Mato Grosso, além de ter uma base de percussão completamente desconhecida. A gravação, seu primeiro CD, gira em um aparelho de som doméstico numa varanda improvisada. O local é a terra indígena de Sangradouro, na aldeia mais próxima da estrada que leva de Primavera do Leste a Barra do Garças, no sul de Mato Grosso, e nela habitam xavantes. Markios, o guitarrista, tem 19 anos, e Goldemberg, o tecladista, 20. Estudam música juntos há um ano e meio em Primavera, mas se apresentam há dois anos em festas, inclusive em outras aldeias. Tímidos, demoram a falar e a sorrir, como que buscando as melhores palavras. Em suas músicas, usam letras tanto antigas dos cantos da aldeia como novas, sobre paixão e natureza. Sua dupla tem um nome: A’uwê Uptabi, algo como “povo autêntico”. Em 1995, Luciano Nomotse foi para uma escola de música, onde fez dupla com seu professor, um gaúcho. Os dois tocaram por cinco anos e, quando se preparavam para dar impulso à carreira, em Portugal, Luciano começou a fazer faculdade. “Eu me tornei professor e depois montei uma banda com mais três pessoas e resgatamos com os velhos os movimentos antigos”, conta. Em seus trabalhos atuais, sozinho ou
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com a Banda-N, Luciano utiliza violão, teclado, instrumentos de percussão típicos e chocalho. Aos 41 anos, o músico entende seu trabalho como uma forma de preservar as tradições. “A nossa cultura antiga foi esquecida. Quando criei essas danças, foi a partir da música da minha etnia. Outros trabalham misturado, e esse tipo de trabalho não é fundamental.” O recado é para os músicos mais novos, especialmente em outras aldeias, que usam elementos da música ocidental e de outras culturas indígenas, sobretudo as andinas. Além do resgate cultural, o professor tenta atrair os mais jovens, como forma de enfrentar um problema que contribui para parte da antipatia entre eles e os waradzu (nós): a bebida.
Mercado
Nos rituais do povo xavante o som tem papel fundamental. Eles ouvem muita música, tanto a própria quanto a de outras culturas. É comum encontrar músicos que trabalham uma vertente mais pop. O mercado, apesar de informal, é grande, e as mídias são bastante difundidas nas aldeias, onde boa parte conta com computadores nas escolas e aparelhos de som nas casas. No município de Canarana (MT), na aldeia Belém, Márcio tenta fazer sua música desde 1989, com dificuldades. “De 2001 a 2007 fiz músicas com um parceiro. Parei porque é muito difícil”, conta. Em um festival da etnia, há cerca de quatro anos, foi classificado em primeiro lugar pelo trabalho de um CD com sete músicas sobre o futuro das crianças, a “nova geração”, e o meio ambiente. Nos últimos três anos ele tem feito composições esporádicas e prepara uma nova investida na carreira, com o percussionista
Leandro, seu afilhado. Canta apenas em sua língua natal e está aprendendo a tocar teclado, presente de um amigo antropólogo, que gravou a primeira “demo” da nova dupla. Na aldeia São Marcos, próxima a Barra do Garças, Tsirobo registra o trabalho dos cantores xavantes. Gravou cinco CDs com diversos artistas. “Antes, só a memória nos fazia lembrar dos sonhos e dos cantos. Sonhei que deveria resgatar isso. Por isso eu faço os CDs, só com cantos nossos, de vários significados”, diz. O artista também canta e dança, mas somente na aldeia, “para os velhos”. A produção de CDs e DVDs é distribuída de maneira informal, de mão em mão. A venda direta ajuda a custear as gravações, a compra das mídias e a manutenção dos instrumentos. Mas também há a venda em lojas. A loja com o maior acervo deste “pop xavante” é gerida por José de Oliveira, o Juca. Ele tem um pequeno comércio no centro de
FOTOS DIVULGAÇÃO
RESGATE Luciano, ao violão: “Precisavam de mim, e me tornei professor. Depois montei uma banda com mais três amigos e resgatamos com os velhos os movimentos antigos”
Barra do Garças. Com 23 anos de atividades, a Brassom comercializa música indígena há dez. No começo da década, vendia o material em fitas cassete gravadas pelos indígenas. Em 2004, o xavante Fabiano levou algumas fitas para passar para CD. Logo os artistas migraram para a nova mídia. Hoje é comum que os índios tragam CDs e DVDs prontos. Há também aqueles copiados e selados pela loja com autorização dos índios, que abrem mão da remuneração pela venda. “Vende bem, e todo começo de mês vêm muitos índios aqui. Parece uma aldeia”, conta Juca. Os títulos são variados, em origem e gênero. A aldeia São Marcos, de onde vem Fabiano, conta ainda com a produção de Tsirobo, Agnelo e da dupla Mario Covas e Humberto – “a Revelação Xavante”, como diz a capa de seu CD. Por mês, a Brassom vende cerca de 200 mídias, entre CDs e, principalmente, DVDs, que custam R$ 10 e documentam a vida da etnia, em seus esportes típicos e festas. Eventos como a inauguração da igreja da aldeia São Pedro e um entrevero entre a polícia e os xavantes em Sangradouro, por causa da prisão injusta de um jovem, estão documentados – tudo na língua dos indígenas. “Para os xavantes, a religião usa bastante essas situações, por meio da música cerimonial, que é basicamente sonhada”, diz o antropólogo Guilherme Falleiros, da USP. Esse papel e essa origem da música manifestam-se essencialmente nos cantos de iniciação – os xavantes têm um complexo sistema de apadrinhamento, por grupos etários. Em suas cerimônias, cantos tradicionais se unem a cantos sonhados recentemente, envolvendo antepassados e animais caçados, base da música que estão tocando nas lojas e em seus “shows”. “Essa música gravada, quase um pop, tem elementos das músicas cerimoniais, especialmente nas letras, mas incorpora bastante músicas estrangeiras, nossa ou de outros povos. O cerimonial absorve a novidade, mas de uma forma menos aberta”, completa Falleiros. O contrário também ocorre: a música cerimonial xavante foi gravada no álbum Roots, da banda Sepultura, com indígenas da região de Pimentel Barbosa (MT), mas a grande diferença se faz no impacto do uso dessas gravações, diz o antropólogo Massimo Canevacci. “A distinção entre quem representa e quem é representado deixa de existir: os xavantes representam a si próprios e às vezes também aos outros. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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VIAGEM
Calorosa abaixo de zero
Montreal é cosmopolita e acolhedora, apesar das baixas temperaturas. Numa das cidades mais seguras do mundo, o francês predomina Por Xandra Stefanel
Escultura de esquimó, no Museu de Belas Artes
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XANDRA STEFANEL
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m pedaço da Europa em plena América do Norte. É o que parece Montreal, a maior cidade da província de Quebec e a segunda maior do Canadá, atrás de Toronto. O lugar impressiona antes mesmo da aterrissagem, no Aeroporto Internacional Pierre Elliott Trudeau. No auge do inverno, em janeiro, os telhados cobertos de neve e a simetria dos quarteirões dão as boas-vindas aos visitantes. O perfeito equilíbrio entre os charmosos sobrados com jardins e os arranha-céus rendeu-lhe o título de Cidade Design, concedido pela Unesco em 2006. Conhecida pelos festivais de jazz, que promove no verão, e por ser acolhedora com imigrantes e turistas, Montreal tende a agradar os mais diversos gostos, já que tem intensa vida cultural e noturna. São mais de 60 teatros, 120 cinemas, muitos museus e galerias de arte, festivais, centros comerciais enormes, parques e praças espalhados pelos quatro cantos, ótima rede de transporte pú-
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blico e, o que é melhor, um povo prestativo e educado com estrangeiros. Além de tudo isso, é possível andar com tranquilidade pela cidade, considerada uma das mais seguras da América do Norte e do mundo. Mesmo fazendo parte de um país onde se fala inglês, Montreal é a segunda maior cidade do mundo cujo idioma é o francês, atrás apenas de Paris. Quando a língua inglesa começou a ofuscar a língua original, e o nacionalismo quebequense aumentou, o governo da província aprovou, em 1977, a Lei 101 – Carta da Língua Francesa –, que limita o uso do inglês e de outros idiomas na política, no comércio e na mídia. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, 84% da população fala francês; 10%, inglês; e 6%, alguma outra língua. Mesmo que você fale francês, é bom se preparar: o sotaque dos quebequenses difere muito do dos franceses. Só não vale tocar nesse assunto com os moradores, porque eles ficam bastante desconfortáveis com a comparação.
Estádio olímpico ao fundo, herança dos Jogos de 1976
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CECILE BENOIT/MINISTÉRIO DO TURISMO DE QUEBEC LINDA TURGEON/MINISTÉRIO DO TURISMO DE QUEBEC
Complexo comercial da cidade subterrânea
EDGAR ROBIN/MINISTÉRIO DO TURISMO DE QUEBEC
Catedral de Notre Dame
EDGAR ROBIN/MINISTÉRIO DO TURISMO DE QUEBEC
CIDADE DESIGN Edifícios de Montreal, vistos da pista de patinação do Bassin-Bonsecours
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PAUL VILLECOURT/MINISTÉRIO DO TURISMO DE QUEBEC
Parque Jean Drapeau
XANDRA STEFANEL
MUSEU VIVO O Biodôme reproduz quatro ecossistemas, entre eles o polar
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DIVULGAÇÃO
Café Cagibi
Restaurante Schwartz
XANDRA STEFANEL
Para quem não domina o idioma, é de bom-tom aprender pelo menos o básico antes da chegada: “bom dia” (bonjour), “por favor” (s’il vous plaît), “muito obrigado” (merci) e “você fala inglês?” (parlez-vous anglais?) são palavras e expressões mágicas que facilitarão a recepção. Mas não é preciso entrar em pânico! Parte significativa dos habitantes fala inglês. Isso dá para perceber ao chegar à rua Sainte-Catherine, coração comercial da cidade, com milhares de lojas, outlets e shoppings que dão acesso à cidade subterrânea. No inverno, quando a média de temperatura é -10 ºC (podendo chegar a -30 ºC), pode-se passar o dia nesse aglomerado de lojas e praças de alimentação. Com mais de 30 quilômetros de extensão e conectada a várias estações de metrô, a cidade subterrânea tem geralmente três andares, pé-direito alto e partes cobertas com telhados transparentes, que permitem a entrada da luz do sol e afastam, assim, qualquer sensação de claustrofobia. A época ideal para as compras na região é depois do Natal, quando as lojas fazem promoções com descontos de até 70%. O melhor da metrópole, porém, não está no subsolo. O Quarteirão Chinês, o Português e a Pequena Itália revelam boas surpresas gastronômicas e arquitetônicas. Nas ruas estreitas de Vieux Port (ou Cidade Velha) estão as mais baratas lojas de suvenires, além de ótimos restaurantes e cafés. Impossível não visitar o Mercado de Bonsecours, uma suntuosa construção de 1847, que já sediou o Parlamento do Canadá e a prefeitura e hoje abriga várias lojas de artesanato local, arte, antiguidades e restaurantes. Bem em fren-
A cidra de gelo (ou cidre de glace), uma espécie de vinho licoroso de maçã feito das frutas congeladas, também é imperdível. O melhor local para comprar essa bebida tipicamente quebequense, assim como vinhos e destilados, é na Sociedade do Álcool de Quebec (SAQ), lojas do governo espalhadas por toda a cidade.
DESCOBERTAS Caminhar pela cidade revela surpresas como as ruas repletas de sobrados coloridos
CECILE BENOIT/MINISTÉRIO DO TURISMO DE QUEBEC
Sabores típicos
E para comer bem em Montreal não é preciso procurar muito. Afinal, para aquele povo, comer é a celebração diária do prazer, do saber viver. Os pratos mais tradicionais são a poutine, batata frita com molho de carne e pedaços de queijo derretido (a mais tradicional da cidade é servida no La Banquise), e o sanduíche de carne defumada (viande fumée), especialidade ímpar do pitoresco restaurante judeu Schwartz, que existe desde 1928 e serve cerca de mil pessoas por dia, no Boulevard Saint Laurent. A alguns quarteirões dali, moderno e retrô se misturam nas mesas do Café Cagibi. Quase sempre lotada de jovens com seus notebooks, a casa tem ambiente aconchegante, ideal para tomar um chocolate quente ou mesmo para escutar música, já que vez ou outra DJs tomam conta do lugar. Très cool! No coração do Quartier Latin, na rua Saint Denis, fervilham sabores e cultura. A região é repleta de restaurantes, cinemas e livrarias. No vietnamita Lymai, não há badalação, mas come-se bem e com pouco dinheiro. Um exemplo é o prato Le fameuax général Tao, com frango empanado ao molho agridoce e legumes, por 13 dólares canadenses. Se estiver nas redondezas e quiser descansar, o visitante pode ir à Grande Biblioteca, no Boulevard de Maisonneuve Est, um espaço gigantesco com mais de 1 milhão de livros, milhares de DVDs e CDs do mundo inteiro, televisões com acesso a filmes e álbuns de música educativos para crianças, bancadas de estudo e confortáveis poltronas.
Para quem não domina o idioma, é de bom-tom aprender o básico antes da chegada: “bom dia” (bonjour), “por favor” (s’il vous plaît), “muito obrigado” (merci) e “você fala inglês?” (parlez-vous anglais?) são expressões mágicas que facilitarão o contato te, estão a pista de patinação e o porto, uma vista de tirar o fôlego mesmo no inverno, quando tudo está branco e a água, congelada. A Catedral de Notre Dame não pode ser esquecida. Em frente à Praça das Armas, a basílica tem arquitetura gótica e o interior enorme e colorido. A poucas ruas dali, a casa de chá Ming Tao Xuan é uma viagem à China. Cada chá é preparado de maneira especial por Lee, o dono. Vale experimentar o Ancien Ti Kuan Yin, de textura um pouco cremosa e perfume floral, preparado na mesa do cliente, com louça chinesa e um ritual inesquecível. A loja é também um antiquário com milhares de peças tanto para preparação de chás quanto de decoração. O endereço mais tradicional da música quebequense está igualmente no Vieux Port: Les Deux Pierrots, um bar onde as pessoas se encontram para cantar as músicas típicas, animadas por bandas locais. Assim como a animação lá, o preço da cerveja também é alto: 15 dólares canadenses a jarra de um litro. Ou seja, R$ 26. Quem quiser experimentar as cervejas locais deve dar uma passada em um dépaneur, espécie de mercearia presente em quase todos os quarteirões, e pedir pelas montrealenses Maudite, avermelhada, e Fin du Monde, dourada, com 8% e 9% de teor alcoólico, respectivamente.
Além de educação, a cidade respira cultura. São mais de 30 museus. Tem o de Arte Contemporânea, o do Chateau Dufresne, o do Chateau Ramezay, o Centro de História de Montreal. Mas o imperdível é o de Belas Artes, dividido pela rua Sherbooke. Vale ir com tempo para apreciar a coleção permanente, com obras canadenses feitas desde a chegada dos colonizadores – quando a região ainda se chamava Nova França – até os dias atuais. Mas Montreal está além dos roteiros turísticos. É uma cidade para conhecer a pé, parando nos cafés, que se espalham por todos os quarteirões. É assim que se descobrem cantinhos como o Chez Brasil, um simpático restaurante onde tem feijoada, pão de queijo, caipirinha e muita música brasileira. Para os esportistas, a pista de esqui mais próxima da cidade fica em Sainte Julie, cerca de 30 minutos de ônibus. E, para curtir a neve sem gastar muito, os parques Mont Royal e Jean Drapeau são ótimas opções. Neles é possível alugar equipamentos de esqui e patinação e apreciar a inspiradora paisagem. O Jean Drapeau é formado pelas ilhas de Sainte Hélène e Notre Dame. É lá que fica o museu da Biosfera, onde, em janeiro, a prefeitura promove a Festa da Neve, evento que reúne milhares de famílias em atividades esportivas para celebração do inverno, que apesar de rigoroso é lindo e cheio de encantos. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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CurtaEssaDica
Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)
Mulher moderna
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
A Trip to Trinidad
Leveza Em Diário da Água, a artista plástica e printmaker finlandesa Eeva-
Liisa Isomaa imprimiu em finos tecidos imagens de paisagens que remetiam às suas memórias. Talvez o toque sedoso dos trabalhos seja o que ela acredita ser a paisagem: “Uma imagem interna atravessando o limite entre o sonho e a realidade”. A exposição, retrospectiva da trajetória de Isomaa nos últimos 18 anos, reúne dez instalações e oito obras no Museu Oscar Niemeyer em Curitiba. De terça a domingo, das 10h às 18h. Até 4 de julho. R$ 4 e R$ 2. Informações: (41) 3350-4400.
Lúcia (Andréa Beltrão) tem o filho preso
Cidade sitiada A vida da professora de piano Lúcia (Andréa Beltrão) vira de cabeça para baixo depois que seu filho Rafa (Lee Thalor) é preso. Para diminuir a pena, a mãe se aproxima de Ruiva, advogada de uma facção criminosa. Salve Geral, de Sergio Rezende, é ambientado na São Paulo sitiada por ações orquestradas pela facção, em maio de 2006. Corrupção, negociação entre o governo do Estado e a organização e debilidade do sistema de segurança são alguns dos ingredientes do filme, que, apesar de boa direção, não representa tudo o que começou naquele inesquecível Dia das Mães. Em DVD.
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Blanda é uma mulher atrapalhada e carismática que narra uma divertida comédia romântica na linha de Bridget Jones e Becky Bloom. Em Nove Minutos com Blanda (Ed. Multifoco), da jornalista Fernanda França, a protagonista está desempregada e divide o apartamento com o gato Freddy. Seu namorado não é, nem de longe, sua cara-metade, mesmo assim seguem os preparativos para o casamento. Quando ela se conforma que contos de fada não existem, sua vida dá uma guinada e começam as aventuras. Livro à venda no site www.fernandafranca.com.br por R$ 35.
Discriminação Firat Ayverdi, como Bilal
O filme BemVindo, de Philippe Lioret, retrata a vida de um iraniano em sua jornada pela França contemporânea. Bilal (Firat Ayverdi), de 17 anos, pretende chegar à Inglaterra para encontrar-se com a namorada e tornar-se jogador de futebol. Como? A nado, pelo Canal da Mancha. A amizade com seu professor de natação Simon (Vincent Lindon), os dramas pessoais em seus entornos e a força dos atores conferem poesia e sensibilidade a esse eficiente filmedenúncia sobre a realidade dos imigrantes no país da “liberdade, igualdade e fraternidade”. Em DVD.
JOSIAS SILVA/DIVULGAÇÃO
A poesia visual de quem não pode ver
MARCO AURÉLIO OTON/DIVULGAÇÃO
Em 18 de setembro de 2004, a vida do vendedor Marco Aurélio Oton começou a mudar. Não só porque o filho tinha acabado de nascer, mas também porque sua visão ficou embaçada. Um ano depois, aos 22, não enxergava quase nada, e hoje só tem percepção de claridade e contraste. Mesmo assim, é autor de três das 20 fotos da exposição Acessibilidade, fotografias feitas por deficientes visuais, em cartaz no campus Santo Amaro do Senac, na capital paulista. Os trabalhos fazem parte do projeto Alfabetização Visual, que capacita estudantes da faculdade de Fotografia do Senac para se tornarem educadores em projetos sociais. O tema acessibilidade começou a ser desenvolvido com sete deficientes visuais, que foram preparados para retratar o descaso e o difícil acesso nas ruas de São Paulo para pessoas portadoras de deficiências. “O evento explora o papel que a fotografia pode desempenhar nas áreas de ação e inclusão social”, explica João Kulcsár, professor da unidade e idealizador do projeto. Para ele, o aluno com deficiência aprende a utilizar outros sentidos na captura das imagens e transfere sua percepção de mundo para o papel. Marco Aurélio procurou o curso porque queria tirar fotos de sua família. “Na rua, quando me interesso por alguma coisa, espero alguém passar perto de mim e peço que me relate o que tem ao meu redor. Escolho o que quero fotografar, peço que a pessoa aponte meu braço na direção certa e faço várias fotos com focos diferentes. Para centralizar a câmera, coloco-a embaixo do queixo, bem fixa.” As fotos da exposição também serão desenhadas em alto-relevo, com legendas e textos em braille para que todos possam “enxergar” o trabalho. Para proporcionar ao visitante a difícil experiência dos deficientes visuais, serão realizadas visitas guiadas e workshop nos dias 7 e 14 de abril. A exposição fica em cartaz de 7 a 30 de abril, das 8h às 20h, no Senac Santo Amaro. Informações: (11) 5682-7300. Grátis. ABRIL 2010 REVISTA DO BRASIL
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Crônica
Por Mouzar Benedito
Dicionário ambulante
É divertido ver como as pessoas gostam de previsões sobre a própria vida
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Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi
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strologia, tarô, biorritmo, quiromancia... Os métodos são muitos. Basta ver num dicionário as palavras com o sufixo “mancia”, que significa adivinhação por meio de qualquer coisa. Aeromancia, geomancia, zoomancia, lampadomancia, selenomancia... Tem adivinhação até por borra de café num fundo de xícara. Astrologia, segundo ouvi de uma astróloga, não é previsão, é interpretação ou algo parecido. Há horóscopos de jornais e revistas às vezes feitos por esses profissionais, mas em muitas publicações quem faz, mais na linha de “previsão” mesmo (ou copia de qualquer publicação de meses ou anos anteriores), é quem está à toa na redação no momento. Tem gente que leva esses horóscopos muito a sério. Uma época, trabalhando no Senai, inventei que era craque em “dicionariomancia”, palavra que não encontrei nos dicionários, pois eu mesmo havia criado naquele momento. A primeira colega que quis ver como era pediu para eu fazer uma dicionariomancia para ela. Fingi me concentrar, fechei os olhos, abri um dicionário Aurélio numa página qualquer, sempre de olhos fechados, e tasquei o dedo indicador numa palavra. Abri os olhos, li a palavra e seu significado, em voz alta. Não me lembro que palavra era, mas a colega achou que tinha tudo a ver com o momento pelo qual estava passando e que era um indicador para ela. Aí, com sua propaganda, outras pessoas – principalmente moças – até fizeram fila para receber uma mensagem do além através da tal de dicionariomancia. Sempre encontravam um sentido na palavra sorteada e seu significado. Mas um colega, Gregório, resolveu fazer outra brincadeira tendo como base o dicionário Aurélio. Inventou uma história de que eu havia decorado o Aurelião. Disse que eu havia ficado preso uns tempos e que o único livro que deixavam entrar na cadeia era o dicionário, e todo dia eu decorava um pouquinho. Contou isso várias vezes. Muita gente quis tirar a prova e com-
REVISTA DO BRASIL ABRIL 2010
binamos uma coisa: escondidos, selecionamos dez palavras bem difíceis, incomuns, e colocamos na mesma ordem, em dois papeizinhos. Um papelzinho ficou com ele e outro comigo. Quando apareceu alguém querendo me testar, ele fingiu procurar uma palavra difícil no dicionário e propôs: – Vamos ler o significado e ele diz qual é a palavra. Era, logicamente, a primeira da lista. Quando vi o Gregório vindo com alguém, olhei sorrateiramente a primeira palavra no papelzinho e fingi que estava trabalhando. Chegaram, ele mostrou o dicionário e falou que queria ver se eu sabia mesmo que palavra era. Falou o significado e eu disse a palavra. O outro ficou admirado, e ele propôs mais uma. Enquanto procuravam uma palavra difícil (o Gregório só fingia, claro, e dirigia a busca para a palavra que queria), eu olhei sorrateiramente a segunda palavra do papelzinho. Leram o significado, e eu acertei de novo. Encheu de gente querendo me testar. Aí chegou a Cleonice. Testou uma vez, acertei. Quis testar de novo, o Gregório abriu o dicionário numa certa página e fingia procurar uma palavra bem difícil. Ela tomou o dicionário das mãos dele: – Eu vou escolher. Acho que vocês combinaram alguma coisa. Não deu tempo prá nada. Escolheu uma palavra, e leu: “Formatura de 1.204 homens da falange macedônica”. – O que é isso? — perguntou com ar desafiador. Eu sorri, ela se preparou pra me gozar, mas respondi: – Essa é muito fácil: quiliarquia. Ela fez uma baita cara de espanto. E o Gregório e eu caímos na gargalhada. É que ela escolheu justamente a palavra que a gente havia selecionado. O cúmulo da coincidência. Fiquei com uma fama danada.
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