Revista do Brasil nº 047

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OUTRO PIAUÍ Como o estado mais pobre do país começou a mudar sua história

nº 47

maio/2010

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DEIXA COM ELAS

Roseana estruturou seu negócio com ajuda do microcrédito

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Com sensibilidade e talento, as mulheres põem ordem na casa e nos negócios

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Informação que transforma


Índice

Editorial

TASSO MARCELO/AE

Trabalho 10 Sindicatos se articulam em busca de acordos globalizados como os lucros História 16 Sacco e Vanzetti, uma execução que fez ecoar um grito de solidariedade Entrevista 18 Wellington Dias e uma revolução silenciosa no Nordeste do Brasil Comportamento 22 Na casa, na economia e na política, o triunfo feminino é irreversível Direito 28 Não há lei que dê segurança a casais que precisam de uma barriga amiga Ciência 32 Célula-tronco: evoluem as pesquisas, as descobertas e as esperanças Atitude 36 A Vida com Logan, um blog legal sobre um pai e seu filho Down Perfil 38 Chiquinha Gonzaga, irmã do Rei do Baião, não quer largar a sanfona Esporte 40 O melhor futebol não precisou erguer taças para ser eternizado

Rose Muraro: “As mulheres não tolerarão mais nenhuma sociedade autoritária nem a injustiça”

A mulher e o futuro

E MIRIAM SANGER

Montanhas de São Francisco Xavier

Viagem 46 São Francisco Xavier, para quem quer descanso (ou não) na Serra SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista Na Rede Curta Essa Dica

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Crônica 50

m texto de quase dez anos atrás, Rose Marie Muraro observava: “As mulheres já estão entrando nos sistemas simbólicos masculinos. E não só nas instituições convencionais (empresas, partidos etc.), mas também em outras, muitas vezes na contramão da história (nas lutas populares, ecológicas, pela paz etc., onde são a grande maioria). Elas estão construindo uma nova ordem simbólica, na qual o ‘grande outro’ é a vida (viver e deixar viver), e ajudando a desconstruir a atual ordem universal de poder”. Rose, que fará 80 anos em novembro, é uma das intelectuais feministas mais respeitadas do Brasil. E feminismo, para ela, está ligado à projeção de uma nova sociedade. Parte de suas projeções vem sendo cada vez mais assimilada pelas estatísticas do mundo econômico contemporâneo. É desse fenômeno que trata a reportagem de capa desta edição. As seguradoras cobram muito menos das clientes do sexo feminino. O mercado financeiro – seja um grande banco, uma corretora de valores, seja uma instituição de microcrédito – identifica nas mulheres maior capacidade de lidar com o recurso de que dispõe e de administrar, e devolver, o que toma emprestado. Isso se explica, dizem os especialistas, pelo fato de a mulher ser mais disciplinada, ter maior facilidade para aceitar regras e maior sensibilidade para decidir o destino dos recursos. Ela ainda ganha menos que os homens, mas sua presença no mundo do trabalho é crescente. Já tem a preferência de executivos e gerentes de crédito. Não à toa, já é apontada pelas grandes indústrias como a força motriz da nova economia. A efetividade da emancipação feminina é um caminho irreversível, com reflexos desde o funcionamento das estruturas familiares até os rumos da política, como já assinalava Rose Muraro há uma década: “A mulher quer democratizar o Estado, fazendo-o servir à sociedade inteira, mudando a natureza das políticas públicas”. A consolidação desse mundo novo, porém, é muito mais que questão econômica ou até mesmo de gênero, mas de bom senso. Nele, homens e mulheres não são forças opostas, mas complementares, que compartilham o protagonismo de seus anseios, expectativas, sonhos. E os filhos dessa nova sociedade, de cabeças mudadas, de homem e de mulher, segundo Rose, “não tolerarão mais nenhuma sociedade autoritária nem a injustiça”. MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Bernardo Kucinski, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Vitor Nuzzi e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Andrea Prado/Melhor Imagem Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Adesão ao projeto (11) 3241-0008 Atendimento: Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Admirson Medeiros Ferro Jr., Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Alberto Grana, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Edílson de Paula Oliveira, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sebastião Geraldo Cardozo, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Vinicius de Assumpção Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Luiz Cláudio Marcolino Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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Tropa de elite A edição 46 destaca na matéria de capa o que toda a sociedade já considera evidente: diante da popularidade do governo que combate há oito anos, a imprensa conservadora se organiza como nunca para tentar evitar nova indigestão eleitoral. Destacamos nosso apreço pela liberdade de imprensa, mas em termos de responsabilidade para com a verdade dos fatos alguns dos nossos veículos de comunicação têm demonstrado carência. A falta com a verdade e a manipulação com o único intuito de criar informação a qualquer preço, sem a preocupação com as consequências de suas veiculações, mostra a falta de responsabilidade dos empresários de comunicação que representam os setores conservadores da imprensa. Trecho de moção de apoio à RdB, “por sua dedicação em prol da verdadeira liberdade de imprensa”, de autoria do vereador Edgar­ da Nóbrega Gomes, aprovada pela Câmara Municipal de São Caetano do Sul (SP) Tropa de elite II Sobre a reportagem Tropa de elite, na edição 46: que vergonha! Isso­é que é a nata intelectual bra­sileira? Eca. José Maurício, Belo Horizonte (MG) Parcialidade Sou leitor e colecionador desta revista desde a edição número 1, mas quero deixar aqui a minha crítica. Concordo que as outras revistas têm lado, mas é incoerência vocês também terem lado. Afinal, uns defendem, outros atacam e como fica o leitor? Sou defensor do governo Lula, mas não tem nada errado? Quantos defeitos há nas prefeituras governadas pelo PT? Na questão do Jardim Pantanal da zona leste, é só a reportagem ir do lado de Guarulhos e ver o quanto a prefeitura deixou a desejar. Portanto, defender sim, mas também mostrar o que foi feito de errado. Afinal, o que todos esperamos é imprensa imparcial. Para sermos parciais, estamos nos igualando a quem sempre (e com razão) criticamos. Robinson Zamora, São Paulo (SP)

Aborto Sobre a reportagem Vidas em Risco (ed. 45), acho que o aborto é, sim, muito arriscado. Mas eu legalizaria porque, assim, as clínicas clandestinas iriam desaparecer. No entanto, na minha opinião a reportagem deveria ir mais a fundo, pois ficou faltando coisa. Nós, leitores, ficaríamos muito satisfeitos se vocês mostrassem como funcionam essas clínicas, como são feitos os abortos e em quanto diminuiriam os riscos das pessoas. Gabriel P. dos Santos, São Paulo (SP) Gosto amargo O colunista da Folha de S.Paulo Gilberto Dimenstein foi acusado de ser partidário do governo do PSDB por vínculos da ONG Cidade Escola Aprendiz com o governo do estado. Experimentou o gosto amargo do denuncismo e tem de se explicar. Viveu, enfim, o seu dia de João Vaccari. Heriberto Pozzuto, Vinhedo (SP) Chocada Tomei conhecimento da Revista do Brasil durante o Congresso promovido pelo Sindicato de Jornalistas do Ceará e pela Federação Nacional dos Jornalistas. Estou chocada com a ótima qualidade de tudo! Como pude não conhecer antes esta revista? Parabéns a todos os envolvidos na produção. Mírian Silvestre, Fortaleza (CE) Trincheiras Nesse momento crucial da vida política nacional, em que as grandes corporações de comunicação atuam de forma escancarada para retomada do poder em favor de poderosos grupos antinacionais, é importantíssimo que o povão forme suas trincheiras, e a Revista do Brasil poderá ter um grande papel. Posto isso, solicito urgentemente uma assinatura. Antonio Carlos da Silva, Rio de Janeiro (RJ) revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

Belo Monte e a soberania Os países nórdicos têm projetos seculares de ocupar a África e a América Meridional. Esse projeto se reanima com os riscos da intensa atividade vulcânica sobre o hemisfério norte

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epois de uma batalha judicial que pode estrangeiros. São esses estrangeiros que – sempre penter ainda desdobramentos, o governo co- sando em preservar o território para seu uso futuro locou em licitação a construção e a con- – se levantam agora contra a construção da usina de cessão de exploração da usina hidrelétrica Belo Monte. Um deles é o cineasta James Cameron, de Belo Monte, no Xingu, que foi venci- autor de Avatar, um filme de ficção científica destinada pelo consórcio chefiado pela estatal Chesf. Se o go- do, segundo alguns observadores, a preparar a opinião verno não houvesse considerado a construção da usi- mundial para aceitar uma intervenção internacional na uma questão de honra nacional, provavelmente os na Amazônia. Cameron declarou com insolência que interesses estrangeiros, inimigos do nosso desenvolvi- a ideia de seu filme veio de uma visita à Amazônia e mento independente, impediriam a importante obra, de seu objetivo de “preservar a região”. Se um cineasta necessária à ocupação nacional e ao desenvolvimento brasileiro chefiasse um protesto diante do Pentágono da região amazônica. contra a guerra do Iraque seria preso e deportado. No Desde o século 19 os europeus e norte-america- Brasil ele foi festejado. E continua afirmando, com innos tentam ocupar a Amazônia, em nome da “civili- solência, que “impedirá” a construção de Belo Monte. zação”, em nome de Deus (com os proAo tomar a decisão de construir a usina testantes liderados pelos Rockefeller) e, Desde o contra todos esses opositores, o governo mais recentemente, em nome da preser- século 19 Lula reafirma a soberania sobre a Amazôvação do meio ambiente. Temos resistido europeus nia, de maneira firme. O governo tomou com dificuldades a essa penetração. Hou- e nortetodas as medidas para que o impacto sove governos, como o do marechal Dutra bre a natureza fosse mínimo. Poucas áreas americanos (1946-1951) que chegaram a aceitar a inserão alagadas – e não haverá um grande ternacionalização da Amazônia. Outros, tentam lago, como o de Tucuruí ou o de Itaipu. como Arthur Bernardes (1922-1926), aju- ocupar a Embora houvesse defensores de que se Amazônia, daram a resistir. construíssem várias represas menores, a Antes a grande tentativa fora a do Acre: em nome da disseminação das obras agrediria mais a americanos e ingleses constituíram a em- “civilização”, natureza do que uma só. A energia de Belo presa The Bolivian Syndicate e obtiveram Monte é absolutamente necessária ao país de Deus e, da Bolívia o direito de constituir um estado e à melhoria da vida de centenas de miindependente na região. A empresa teria o ultimamente, lhares de brasileiros que vivem na região direito de impor as suas leis no território e da em situação de miséria. de cobrar impostos internos e alfandegá- preservação Alega-se que os índios serão agredidos rios, em troca de 40% de toda a produção de do meio em sua cultura. Mas não há, a rigor, mais borracha; os outros 60% seriam da Bolívia. ambiente cultura indígena na região, ocupada por A região se encontrava ocupada por 60 mil brancos, infestada de agentes dissimulabrasileiros, muitos dos quais se armaram sob o coman- dos que continuam a cobiçar as riquezas amazônicas. do do gaúcho Plácido de Castro. O Exército boliviano, O problema é de outra natureza, é a do espaço vital (o para cumprir seus compromissos com os estrangeiros, mesmo “espaço vital” que pariu o nazismo alemão). invadiu o território e foi rechaçado. O governo brasileiro, Os países nórdicos têm projetos seculares de ocupar o com o chanceler Rio Branco à frente, ao mesmo tempo sul do mundo – os dois grandes continentes da Áfriem que deslocava tropas para o Acre, negociou com La ca e da América Meridional. Esse projeto se reanima Paz e os acionistas do empreendimento e impôs a defi- agora, com a probabilidade de que a intensa atividade nitiva soberania. vulcânica esperada no hemisfério norte torne inabiDurante os últimos anos, principalmente com tável grande parte da Europa e da América do Norte. Collor e Fernando Henrique, a Amazônia se abriu a Não podemos transigir, para não voltarmos a ser ONGs internacionais e à presença sempre atrevida de colônias.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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Estamos vivendo um novo Brasil. Feito por você. Respeitado pelo mundo. Nós brasileiros conquistamos um país cada vez melhor para todos. Estamos juntos, seguindo em frente. E é possível avançar ainda mais. US$ 239 milhões acumulados em reservas internacionais no último ano.

pobreza, entre 2003 e 2008. Fonte: Pesquisa Nacional

Aumento de 385% frente a 2003.

por Amostra de Domicílios (PNAD).

24,1 milhões de brasileiros superaram a

Fonte: Banco Central.

A classe C já corresponde a 53,6% da população brasileira e a classe AB aumentou de 10,7% para 15,6%, de 2003 a 2009. Fonte: FGV.

R$ 69,92 bilhões investidos em habitação. Aumento de 600% em relação a 2003. Fonte: Ministério das Cidades.

596 mil bolsas do Prouni concedidas em 1.253 municípios, de 2005 a 2009. Posição: março de 2010.

12,1 milhões de empregos formais gerados nos últimos 7 anos. Fonte: Rais e Caged.

Desmatamento 74,4% menor do que em 2004. O menor índice já registrado desde 1998, quando foi iniciada a apuração da taxa anual. Fonte: INPE.

O percentual da população pobre caiu de 42,7% para 28,8%. Fonte: PNAD.

Queda de 61,6% da desnutrição infantil, entre 2003 e 2008. Fonte: Ministério da Saúde.

Mais de 3 milhões de veículos vendidos em 2009, um novo recorde histórico. Crescimento de 150% em comparação a 2003.

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NaRede

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Democratização da comunicação

Evo Morales

Parlamentares de partidos de esquerda prometem iniciar mobilização no Congresso Nacional para constituir uma bancada pela democratização da comunicação. O anúncio foi feito durante a plenária de criação da Altercom, uma associação de empresários de comunicação ligados a projetos alternativos, não vinculados à mídia comercial. http://migre.me/yKfx

DANILO BALDERRAMA/REUTERS

“Não trabalharás mais de 40 horas”

Eleições regionais e parlamentares na Bolívia ofereceram, pela primeira vez, a possibilidade de escolha de assembleias legislativas de povos tradicionais, com autonomia prevista pela Constituição do país. O resultado geral do pleito representou vitória do partido do presidente Evo Morales, Movimento ao Socialismo (MAS), e um avanço do Movimento Sem Medo, que deixou a base governista há poucos meses. http://migre.me/yKf4

MR-8 vira partido

Depois de três décadas dentro do PMDB, o grupo na clandestinidade durante a ditadura militar organiza-se para criar legenda própria. O Partido Pátria Livre (PPL), ainda sem autorização do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pretende “emprestar” legendas para eleger parlamentares. http://migre.me/yKeT

O futebol explica

O historiador e jornalista Marcos Guterman, autor do livro O Futebol Explica o Brasil (Ed. Contexto), investigou como os últimos 100 anos da história nacional estão entrelaçados com o futebol. Às vésperas da Copa do Mundo, ele aponta os elos entre economia, política e o ludopédio. http://migre.me/yKgt

30 anos depois, enfim casadas DANIEL GARCIA/GETTY IMAGES

Por Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi

A Bolívia e os sem-medo

O economista Ladislau Dowbor “reedita” instruções divinas para crises atuais. O Altíssimo anda insatisfeito com os rumos do planeta e resolveu oferecer novas orientações. Entre elas, a necessidade de uma nova jornada de trabalho. http://migre.me/yKge

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Norma Castillo e Ramona Arévalo

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De Buenos Aires, João Peres conta os detalhes do primeiro casamento entre mulheres na América do Sul. Norma Castillo e Ramona Arévalo, ambas de 67 anos, conquistaram o direito à união em abril deste ano, depois de 30 anos de convivência. A união foi autorizada por uma das decisões judiciais favoráveis concedidas nos últimos meses. Mas nem tudo são flores nessa história, e ainda deve haver mais resistência à oficialização do casamento. http://migre.me/yKeF


Pedágio para ir à igreja e ao cemitério Os efeitos dos pedágios sobre o preço de alimentos e materiais de construção são apenas uma das faces da cobrança de tarifas de acesso a rodovias, como relata Suzana Vier. Em Indaiatuba (SP), uma comunidade de descendentes de imigrantes suíços precisa pagar até R$ 17,60 para ir à igreja ou ao cemitério. O tema já foi investigado em CPIs em São Paulo e no Paraná. Uma série de reportagens discute o modelo de concessão das rodovias, o que explica por que as cobranças por quilômetro rodado em rodovias paulistas são até dez vezes mais caras do que em vias federais. http://migre.me/yKdP

Metodologia das pesquisas: nunca houve tanta polêmica Seis meses antes do primeiro turno das eleições presidenciais, uma outra guerra está deflagrada. Os quatro principais institutos de pesquisa (Datafolha, Ibope, Sensus e Vox Populi) apresentam resultados com forte divergências. Além da discussão técnica, a disputa incluiu troca de acusações, críticas e até processos. A Folha de S.Paulo atacou o Vox Populi, cujo sócio-diretor, João

NA RÁDIO

BLOG DO VELHO MUN DO

O cientista político José Paulo Martins Júnior, da Universidade de São Paulo (USP), acredita que os resultados das pesquisas eleitorais indicam que o pré-candidato do PSDB, José Serra, pode ter atingido limite de votos. Ele explicou por que em entrevista ao Jornal Brasil Atual. http://migre.me/yKgl O Jornal Brasil Atual é sintonizado de segunda a sexta, das 7h às 8h, nos 97,3 FM (para a Grande São Paulo) ou a qualquer momento na internet, em www.redebrasilatual.com.br/radio

JORGE ARAÚJO/FOLHA IMAGEM

Flávio Aguiar, em seu Blog do Velho Mundo, discute dois fenômenos europeus. O primeiro são os efeitos do vulcão da Islândia, que paralisaram o continente. O outro, as acusações de acobertamento de casos de pedofilia contra a Igreja Católica. Uma nuvem paralisou o tráfego aéreo europeu e mundial. A segunda é mais complicada. http://migre. me/yKfY

Bento XVI: vulcão católico

TONY GENTILLE/REUTERS

Não pecarás

Dilma e Serra: disputa nas pesquisas

Teto de Serra

Francisco Meira, respondeu: “Quem tem de se explicar é o Datafolha”. O PSDB pediu explicações ao Sensus, pelo empate entre Serra e Dilma na casa dos 32%. Mas não questionou a mudança de metodologia do Datafolha, que ampliou sua base de entrevistas em São Paulo. http://migre.me/yKfm

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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ROBERTO PARIZOTTI

TRABALHO

Enfim, globais Sindicatos buscam articulação internacional por condições de trabalho mais civilizadas Por Vitor Nuzzi AINDA EM DESVANTAGEM Moacir trabalha na Basf de São Bernardo, onde a jornada média é de 42 horas semanais. Na Basf da cidade alemã de Ludwigshafen (ao lado) a semana de trabalho tem, em média, 37,5 horas

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we Woyciechowski, de 47 anos, engenheiro mecânico, gosta de jogar tênis de mesa, passear de bicicleta e descansar no jardim de sua casa. Marcelo José da Silva, o Sagui, de 35 anos, operador de máquinas especiais na mesma empresa, curte ficar com a família (casado, tem uma filha de 10 anos), ler, ver filmes, jogar futebol. Em comum, eles têm o empregador, a MercedesBenz. Uwe trabalha na Alemanha e Marcelo, no Brasil. Cada qual tem sua jornada, 35 horas semanais lá, 40 aqui. Mas são unidos por acordos coletivos que estabelecem con10

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dições mínimas de trabalho e procuram minimizar os contrastes entre os diferentes paí­ ses onde a fábrica está instalada. Se a organização da classe trabalhadora não se internacionalizou como esperavam os pensadores do final do século 19, pelo menos nos últimos 20 anos as negociações trabalhistas tentam tirar esse atraso. A troca de informações entre sindicatos de diferentes países tornou-se prática comum à medida que as empresas também passaram a diversificar e ampliar suas operações pelo mundo. Mas o caminho é longo. Os acordos, globais, não substituem os contratos

negociados em cada local de trabalho, ou região, mas estabelecem princípios básicos que devem ser obedecidos pelas empresas, independentemente de onde estiverem instaladas. “Os acordos globais podem ser um bom exemplo para que as empresas não globalizem só seus ganhos como também os direitos dos trabalhadores, resultando ainda em políticas de responsabilidade social”, diz Juan Antonio Fernández Sierra, dirigente da UGT da Espanha, que negocia com a Telefónica. O diretor regional para as Américas da UNI Global, Marcio Monzane, vê uma ló-


Para a diretora do Sindicato dos Bancários de São Paulo Rita Berlofa, coordenadora da Rede dos Trabalhadores do Santander na América pela UNI Finanças, esse formato de acordo não é importante apenas para os trabalhadores, mas também para as empresas, pois agrega valor de responsabilidade social a suas imagens. “Bancos globalizados precisam de acordo global”, opina.

Responsabilidade social

Durante o evento em São Paulo, o presidente da UNI Global, Oliver Röethig, observou que HSBC e Santander empregam 466 mil pessoas no mundo. “Precisam provar que são sérios com relação a seus compromissos com a responsabilidade social assinando esses acordos”, disse. Röethig lembrou que há cerca de quatro anos o britânico HSBC mudou seu setor de call center da Inglaterra para Malásia e Índia. “Na Inglaterra, os bancários trabalhavam quatro

THOMAS LOHNES/AFP

gica comum na evolução das negociações. “Nos anos 70, tínhamos um movimento local, com sindicatos locais. Depois se iniciou um processo de articulação do movimento sindical também em nível nacional, com a criação das centrais sindicais, com a negociação coletiva nacional, como é o caso dos bancários. O processo internacional segue essa mesma lógica”, analisa. Marcio, bancário do antigo Real, adquirido pelo holandês ABN Amro, por sua vez comprado pelo espanhol Santander, foi diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo e há cinco anos integra a direção da UNI – United Network International, rede que reúne 900 entidades dos setores de serviços, comércio e financeiro do mundo todo, abrangendo um universo de 20 milhões de trabalhadores. A UNI já firmou acordos marco com multinacionais como a seguradora Allianz, a rede de supermercados Carrefour e as

empresas de telecomunicações Portugal Telecom e Telefónica. Em março, sindicalistas de várias regiões do mundo reuniram-se em São Paulo com o objetivo de discutir a elaboração desses acordos globais com as direções mundiais dos bancos HSBC e Santander. A UNI já tem na internet um blog para estimular o intercâmbio de informações da campanha pelo acordo marco global – www.bankonrights. org. Pelo site, bancários dos dois bancos nos quatro cantos do planeta podem também aderir aos abaixo-assinados cobrando negociação dos respectivos acordos.

horas por dia e recebiam entre € 2 mil e € 2,5 mil por mês. Na Ásia, as jornadas vão de oito a 12 horas e os salários passaram em média para US$ 400 (€ 300)”, compara. “Agora, além da articulação política internacional, também se desenvolve uma ação sindical concreta, representando trabalhadores em negociações coletivas com empresas multinacionais, organizando sindicatos em muitas regiões em que ainda não há uma forte presença sindical e afiliando mais trabalhadores”, explica Marcio, ressaltando que a sindicalização dos trabalhadores a partir de suas bases é o ponto de partida para a

organização em termos internacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, os bancários não têm direito a constituir sindicatos, à licença-maternidade, à licença-médica. Em média, um não sindicalizado recebe US$ 8 pela hora de trabalho, enquanto o sindicalizado da área de serviço ganha US$ 14 para o mesmo período. Além de reprimir a ação sindical, a conduta do empresariado norte-americano tem ainda o demérito de exportar para o mundo a política de metas, hoje grande responsável pela deterioração das condições de trabalho e de saúde – e também alvo de resistência dos movimentos globais organizados. A bancária norte-americana T., que pediu para não ser identificada, acredita que a presença de um sindicato ajudaria a evitar situa­ ções como a dela, que teve reduzida a carga horária pela metade – com a consequente queda na renda – e perdeu direitos como o plano de previdência privada. “Tive de conseguir outro trabalho. Também sou estudante, e para pagar as despesas sou obrigada a ter um emprego em período integral”, conta. “Qualquer acordo só tem validade se for garantido com ação sindical”, reforça Valter Sanches, secretário de Relações Internacionais da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT). “Do ponto de vista da negociação, esse é um ponto fundamental.” A categoria já tem, há alguns anos, a experiência dos comitês mundiais da Mercedes-Benz e da Volkswagen. Sanches integrou o comitê da Mercedes (grupo Daimler), passou pelo grupo de trabalho formado também por dirigentes sindicais da Alemanha e dos Estados Unidos e hoje é representante dos trabalhadores no conselho de administração da empresa, que tem 252 mil funcionários em todo o mundo, 13.500 no Brasil. “A legislação alemã permite que os trabalhadores sejam eleitos”, lembra Sanches. “Lá (no conselho), a gente participa das decisões estratégicas. Pode conhecer os planos da empresa com antecedência e interferir neles.” O presidente do Sintetel, sindicato de trabalhadores no setor de telecomunicações em São Paulo, e da Fenatel (federação nacional da categoria), Almir Munhoz, avalia que houve avanços nas negociações com a Telefônica, que chegou ao Brasil com o processo de privatização da telefonia, em 1998. Munhoz admite que a empresa ainda pratica no país uma terceirização “selvagem”, mas considera que, em nível mundial, MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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JAILTON GARCIA

UNIDADE Sindicalistas de vários países reuniram-se no Brasil para discutir pontos comuns a serem negociados com as direções dos bancos HSBC e Santander

Resistência doméstica

Na Basf, líder mundial do setor químico, com 105 mil trabalhadores (5.000 no Brasil), a experiência completou dez anos em 2009, lembra o coordenador-geral da Confederação Nacional do Ramo Químico (CNQ-CUT), Sérgio Novais, vice-pre-

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sidente para a América Latina da Icem, a federação mundial do setor. “No início, a empresa não aceitava sequer discutir em nível estadual”, afirma Novais. Em 1999, foi criada a rede de trabalhadores da Basf na América do Sul, que faz reuniões regulares a cada oito meses e renova a direção de dois em dois anos, quando ocorre um encontro de todos os sindicatos com a direção mundial da empresa alemã. No começo, houve resistência mesmo entre os sindicalistas, segundo Novais. Caso de um dirigente argentino, que a princípio era contrário à criação de uma rede mundial, por avaliar que se tratava de algo paralelo ao sindicato. “Fomos apanhando e aprendendo. Hoje, já existe um trabalho inverso”, afirma ele, em referência ao desenvolvimento de companhias brasileiras pelo mundo. “Temos muitas multinacionais brasileiras, e há companheiros querendo ajuda em relação à Petrobras, à Vale, à Gerdau”, exemplifica. Mas comparar realidades ainda é difícil. “Na Alemanha, o Estado dá ao trabalhador educação, assistência médica, o transporte é subsidiado. Aqui, você tem de negociar com a empresa. No geral, a qualidade de vida não é muito diferente. Mas a demissão lá é muito mais criteriosa. Não há a rotatividade daqui, não pode ser coisa pessoal de chefe”, explica Novais. Sanches, da Mercedes, avalia que as diferenças têm sido reduzidas em função da

RUMO À GLOBALIZAÇÃO Marcelo, da Mercedes do ABC: condições mínimas acordadas com a matriz alemã

ROBERTO PARIZOTTI

a organização dos trabalhadores do grupo tem se intensificado na última década, com o objetivo de forçar a empresa a respeitar a legislação dos diversos países para onde passou a expandir as atividades. A chamada Aliança UNI-Telefônica faz reuniões anuais para discutir os problemas da companhia. Na mais recente, em janeiro, na Colômbia, os sindicalistas denunciaram o desrespeito, em alguns países, ao princípio da liberdade sindical, a “práticas antissindicais” por parte da Atento, maior empresa mundial de call center, da prática da quarteirização. “Isso faz com que a mão de obra tenha uma queda de qualidade em atividades permanentes da empresa”, diz a UNI. Para Marcio Monzane, essa experiência acumulada com outras companhias pode ajudar nas negociações com o Santander. “Não acredito que em um contexto em que muitas empresas espanholas estão utilizando o instrumento do acordo marco, como parte do gerenciamento mundial de seus negócios, o grupo Santander queira simplesmente manter uma posição isolada. Seria um erro estratégico muito grande.”


RESISTÊNCIA MUNDIAL Trabalhadores do setor bancário europeu protestam em Frankfurt contra sistema de metas

situação econômica favorável e da ofensiva sindical brasileira simultâneas a uma defensiva dos sindicatos alemães ante a crise na Europa. O engenheiro Uwe recebe pouco mais de € 2.600 líquidos (aproximadamente R$ 6.100), em uma jornada de 35 horas semanais. Sua colega Martha Kruse, de 61 anos e há 21 na unidade alemã da Mercedes, ganha € 2.264 líquidos (por volta de R$ 5.280), acima da média da função – trabalha no setor de acabamentos. Na Mercedes de São Bernardo, o operador de máquinas Marcelo está dentro da faixa de sua função (entre R$ 3 mil e R$ 3.500 brutos). Na Basf, o pior da crise parece ter passado. Mas Fritz Hofmann, da comissão de fábrica em Ludwigshafen (sudoeste da Alemanha), lembra que os empresários têm dito que não há espaço para aumentos salariais, e o Estado sinaliza com elevação dos impostos. “Isso significa que, passada a primeira fase da crise, agora vem o debate: quem paga a conta?”, observa o alemão, chamando a atenção para a necessidade de renovação de um acordo local de proteção contra demissões. “Tenho boas expectativas em relação à renovação desse acordo, mas receio que a Basf vá exigir um alto preço por isso.” Na Basf de São Bernardo, a meta é estender a redução da

jornada para toda a unidade. E as chances de isso acontecer são grandes, de acordo com o coordenador da comissão de fábrica, Moacir Pereira da Silva. “A produção está alta, o pessoal está trabalhando de domingo a domingo”, conta. Com 45 anos, Ralf Waldherr trabalha há 18 anos na Basf, na área de produção química na unidade de Ludwigshafen. Faz em média 37,5 horas por semana, “como está no acordo coletivo”. E tem seis semanas de férias por ano. Ele se alterna entre os turnos diurno e noturno, e isso faz diferença no pagamento. “Um terço do meu salário vem do trabalho que faço regularmente à noite e nos domingos e feriados trabalhados. Ralf ganha € 2.500 (R$ 5.800 líquidos). “É a média da minha profissão”, afirma. Para ele, um dos benefícios mais importantes é o do fundo de pensão. Em São Bernardo, a maioria dos trabalhadores da Basf cumpre jornada de 42 horas. Uma pequena parte já trabalha num regime que atinge 35 horas. Segundo Moacir, a briga é pela jornada menor para todos os funcionários. A unidade tem, basicamente, três faixas salariais: operador 1 (por volta de R$ 2.500), operador 2 (R$ 2.000) e operador 3 (R$ 1.600), incluindo os 30% de periculosidade.

BERND HARTUNG

Jornadas conforme a estação

Há cinco anos e meio na Telefônica, em São Paulo, a assistente Tatyanne Smahan Obeid tem praticamente toda a vida profissional ligada à empresa, para quem antes prestava serviços como terceirizada. Entre os benefícios que recebe, a jovem de 25 anos destaca a previdência privada (a companhia paga metade do valor) e auxílio para o curso superior, além de itens como vale-refeição, convênio médico, cesta básica e auxílio-creche. “Em relação a benefícios, está bem acima das demais empresas do setor”, avalia Tatyanne, que recebe aproximadamente R$ 1.300 mensais. O acordo do Sintetel com a Telefônica foi renovado em outubro do ano passado e tem validade de um ano. Na Espanha, o atual convênio negociado pelas principais centrais (CCOO, UGT e STC) começou a vigorar em janeiro de 2008 com validade de três anos, assegurando manutenção do poder aquisitivo e adicional de produtividade vinculado ao lucro. Prevê ainda negociação com os trabalhadores em casos de reestruturação de atividades “que suponham consequências sobre o emprego” e chega a detalhes como jornadas distintas entre inverno (38 horas) e verão (35 horas). Os acordos de longa duração já são também uma realidade para o Santander da Espanha, bem como o compromisso de negociação com as entidades sindicais sobre qualquer alteração de conjuntura que venha a representar riscos ao nível de emprego. Nesse caso, a duração é de quatro anos. Prevê salários, reajustes e jornadas anuais (com cláusula de revisão, conforme a inflação). Aqui e lá, os trabalhadores estão de olho nessas negociações. Afinal, os resultados são contabilizados globalmente. Em 2009, o Santander anunciou lucro mundial de € 8,94 bilhões (alta de 0,7%). E a própria direção reconheceu o papel do Brasil, onde o lucro cresceu 41% e atingiu R$ 5,5 bilhões, como fundamental nesse resultado global. Em tempos de crise na Europa, a América Latina tornou-se válvula de escape da instituição. “A diversificação geográfica e a sinergia de integração dos negócios adquiridos nos dois últimos anos permitem ao Banco Santander enfrentar 2010 com mais otimismo”, afirmou, ao divulgar seu balanço. Podia incluir nessa perspectiva a construção do acordo global.

Colaborou Flávio Aguiar, de Berlim MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ANÁLISE

Encruzilhada tecnológica A

humanidade em geral e os trabalhadores em particular estão, em todo o mundo, diante de uma encruzilhada. Ou se instauram regulamentações, em escala global, para os fluxos de investimentos e de mão de obra, para os fluxos financeiros e o comércio e para o controle da poluição. Ou se sucederão, além de catástrofes ecológicas, os protecionismos, desta vez na escala de grandes blocos econômicos, correndo-se novamente o risco de conflitos armados generalizados e de instauração de regimes nacionalistas de direita, excludentes dos “não nacionais”. Um dos pontos mais relevantes é a necessidade de pensar o desenvolvimento tecnológico em plano global. Como Marx demonstrou, o valor de uma mercadoria está determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Ao usar o equipamento para transformar a matéria-prima, o trabalhador produtivo transmite para a mercadoria o valor do equipamento, o valor da matéria-prima, o valor de seu salário e continua trabalhando, gerando a mais-valia, de onde saem o lucro, os impostos que sustentam a máquina governamental, as Forças Armadas e as polícias, os honorários dos profissionais liberais, os salários dos demais trabalhadores não ligados à produção etc. etc. Todo o esforço de cada empresa capitalista será reduzir o valor das mercadorias que produz em relação ao valor da produção de seus concorrentes. Isso só pode ser feito pela diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir cada mercadoria. E essa tarefa é cumprida pelo desenvolvimento tecnológico. Aqui temos o grande problema do capitalismo, que gera suas crises estrutu14

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Um novo planejamento tecnológico e ambiental requer abordagem planetária, democrática e pacífica. Caso contrário, pode levar a novos conflitos globais Por Renato Pompeu

rais perió­dicas: ele se baseia no tempo de trabalho como fonte de valor, mas tende a reduzir o tempo de trabalho, tendencialmente, a zero; em consequência, os valores também tendem a ser reduzidos a zero. Nesse momento, há uma necessidade de destruir grande parte das riquezas por meio, por exemplo, de grandes guerras, o que leva a um novo ciclo de alta, para repor as riquezas destruídas. O primeiro grande desenvolvimento tecnológico do capitalismo, na passagem do século 18 para o 19, foi a introdução da máquina a vapor. Isso gerou uma crise que envolveu em particular as guerras napoleô­ nicas. Depois, partiu-se para um novo patamar tecnológico, em meados do século 19, o do petróleo, da eletricidade e da química. No auge da redução tendencial a zero do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir cada mercadoria, a solução dessa crise envolveu a Primeira Guerra

Mundial, a instauração do socialismo (planejamento includente) na União Soviética e do fascismo (planejamento excludente) em grande parte da Europa. Desenvolveu-se então um terceiro patamar tecnológico, o do fordismo e do taylorismo, gerando novamente a necessidade de destruição das riquezas desvalorizadas, por meio da Segunda Guerra Mundial. Dessa vez a solução envolveu também a ampliação do campo socialista. Ficou bem claro o mecanismo da destruição das riquezas desvalorizadas, que abriu, com a destruição da Europa Ocidental, possibilidades de novos investimentos para reconstruir o destruído, como o Plano Marshall. Finalmente, a partir dos anos 1970, desenvolve-se o quarto patamar tecnológico, o da robótica, informática, biotecnologia e química fina. De novo há a necessidade de destruição da riqueza antiga, desvalorizada. Isso levou à crise estrutural do capitalismo desencadeada em 2008 – as casas, pela redução do tempo de trabalho necessário para construí-las, passaram a valer menos do que estava indicado nas hipotecas. Antes, porém, levou à destruição do campo socialista. Por quê? Aqui temos de levar em conta que todo o desenvolvimento do socialismo real ocorreu dentro do patamar tecnológico do fordismo e do taylorismo. Quando se tem um patamar tecnológico estável, é possível planejar a indústria e a agricultura em escala nacional. Mas, em escala nacional, não é possível planejar o desenvolvimento tecnológico, muito menos a passagem de um patamar tecnológico para outro. Isso porque, fora do campo socialista planejado, continuava a anarquia capitalista, com seu desenvolvimento tecnológico acelerado e tumultuado, por meio da concorrência.


As burocracias que governavam os paí­ ses socialistas se viram num dilema. Não podiam planejar um desenvolvimento tecnológico que se dava fora de suas fronteiras. Não podiam introduzir o desenvolvimento tecnológico em escala maciça, pois isso geraria, por exemplo, o desemprego em escala também maciça. O pleno emprego era a principal força que mantinha coeso o socialismo real, apesar de todas as suas mazelas que bem conhecemos, como a falta de maiores liberdades individuais. As burocracias ficaram esperando que o novo patamar tecnológico se tornasse estável, o que possibilitaria planejar em massa a sua introdução. Essa estabilidade nunca chegou, ainda está longe de ser alcançada, e no meio do caminho o socialismo real implodiu. E o desenvolvimento tecnológico passou a ser introduzido pelos métodos da concorrência capitalista. Agora é o mundo que está em face de um dilema. O desenvolvimento tecnológico sem regras, às cegas, pela concorrência entre as empresas e entre os grandes blocos capitalistas, pode novamente levar à destruição maciça das riquezas desvalorizadas, com a situação desta vez agravada pela crise ambiental. A única alternativa é um planejamento em escala global. Isso não será feito por um socialismo estatal mundial. Pode ser feito por uma social-democracia em escala mundial. Pode, também, ser feito por métodos fascistas. E pode, ainda, ser feito por um novo tipo de planejamento, até hoje desconhecido. Não podemos, porém, esperar para ver. Precisamos agir, mas desde que tomemos consciência de que as soluções não planetárias podem levar a novos conflitos generalizados, particularmente se triunfarem os métodos fascistas. O Brasil tem todo um papel estratégico a exercer para a conformação de soluções mundiais, globais, planetárias, pacíficas. Não tem sido outro o esforço de nosso governo, embora talvez falte uma visão de tudo o que está em jogo.

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HISTÓRIA

Sua agonia, s Execução dos anarquistas Sacco e Vanzetti, em 1927, criou símbolos de solidariedade internacional pela liberdade Por Roberto Amado

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“VIVA A ANARQUIA!” A condenação ficou conhecida como um dos maiores erros judiciais da história

REPRODUÇÃO

m silêncio eles entraram, um após o outro, na sala da morte. Caminhavam lentamente. “Viva a anarquia!”, pronunciou Ferdinando Nicola Sacco antes de ser eletrocutado. Bartolomeo Vanzetti sentouse mudo na cadeira e apenas conseguiu gaguejar um “adeus, mamãe”. Era 23 de agosto de 1927 e o mundo assistia atônito a um dos maiores erros judiciais da história. Na cidade de Boston, nos Estados Unidos, onde ocorreu a execução, mais de 20 mil pessoas estavam concentradas numa manifestação contra a sentença. Em Paris, 12 mil entraram em choque com a polícia, assim como em Buenos Aires, Londres e Berlim. Em Montevidéu, uma manifestação ameaçou de morte o cônsul norte-americano. A Folha da Manhã noticiava uma greve geral de operários em São Paulo em solidariedade aos dois italianos anarquistas. “Foi um dos mais importantes movimentos internacionais da história”, diz Sean Purdy, professor de História dos Estados Unidos na Universidade de São Paulo (USP). Tudo começou sete anos antes, quando, após um duplo assassinato numa pequena cidade do Estado de Massachusetts, Sacco e Vanzetti foram presos como suspeitos. Ambos foram vítimas de um julgamento tendencioso, no qual prevaleceu sobre os fatos uma febre anticomunista que contaminou os Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, em 1917.

COMOÇÃO MUNDIAL Trabalhadores foram às ruas pela liberdade do sapateiro e do peixeiro


seu triunfo lista chegou a receber 3 milhões de votos nas eleições de 1911”, conta o historiador. O país estava mergulhado no medo contra as forças comunistas, anarquistas e socialistas – o red scare (temor vermelho).

KEYSTONE/GETTY IMAGES

Mártires

“O processo judicial foi uma farsa, um ato político-ideológico”, afirma Sean Purdy. Tanto Nicola Sacco como Bartolomeo Vanzetti eram ligados ao movimento anarquista norte-americano, além de serem imigrantes italianos, num momento em que os Estados Unidos praticavam uma forte política contra a imigração. O historiador lembra que, em 1921, foi criada uma lei emergencial que reduzia o limite de imigração de 800 mil para 300 mil. “Na ocasião, o mundo inteiro estava sob o grande impacto da Revolução Russa e os partidos de esquerda nos Estados Unidos eram constituídos de imigrantes europeus – alemães, poloneses, italianos. Havia um consistente movimento de esquerda norteamericano naquela época: o Partido Socia-

Sacco, um respeitado sapateiro, e Vanzetti, um modesto peixeiro, foram levados a um julgamento marcado por uma sucessão de arbitrariedades e erros. Para começar, nenhum dos dois conseguia se expressar fluentemente em inglês. Também pesou o fato de ambos terem se refugiado no México, anos antes, para não servir o Exército durante a guerra. Há suspeitas de que houve pressões sobre as testemunhas, ainda que não pudessem fazer plena identificação dos acusados. E o comportamento do juiz Webs­ter Thayer foi considerado pela imprensa americana da época como “surpreendentemente imparcial”. Os sete anos em que os amigos passaram na prisão à espera da execução da sentença foram marcados por uma sucessão de idas e vindas judiciais, resultado das pressões da opinião pública internacional contra a decisão. “Em várias cidades do mundo, houve mobilização de operários e defensores dos direitos humanos. E não foram movimentos ligados apenas ao pensamento de esquerda”, diz Purdy. No Brasil, o Congresso chegou a aprovar apoio formal aos condenados, assim como a prefeitura da capital federal, o Rio de Janeiro, para a satisfação do movimento operário. De nada adiantou. Nem mesmo a tentativa de suicídio de Sacco, que o levou ao hospital em 1923, e a greve de fome que empreendeu nos seus últimos momentos de vida. Poucas horas antes da execução, o sapateiro deu uma declaração sobre o longo processo de erros e desacertos a que foi submetido: “Estão determinados a nos matar, sem se importar com as evidências, com a lei, com a decência. Se nos concederem um adiamento esta noite, será para nos matar na semana que vem. Vamos terminar logo com

isso­. Esperei sete anos para morrer sabendo o tempo todo que eles queriam nos matar”. Vanzetti citou Santo Agostinho: “O sangue dos mártires é a semente da liberdade”. Após a morte dos dois imigrantes, transformados em símbolos da esquerda internacional, as repercussões continuaram. O caso, ao longo do tempo, deu margem a uma série de manifestações nas artes, na literatura e no Direito. Desde abordagens técnicas sobre o processo até expressões mais romanceadas. Em 1971, o diretor Giuliano Montaldo levou a história para o cinema. A exibição do filme Sacco e Vanzetti foi proibida no Brasil pela ditadura e a canção Here’s to You, interpretada por Joan Baez e incluída na trilha sonora composta por Ennio Morricone, tornou-se hino contra a repressão e a censura (Here’s to you, Nicola and Bart/ Rest forever here in our hearts/ The last and final moments is yours/ That agony is your triumph).

Últimas palavras Caros amigos e camaradas do Comitê de Defesa de Sacco-Vanzetti À meia-noite de amanhã nós seremos executados, a menos que haja novo adiamento da Corte Suprema dos Estados Unidos ou do governador Alvan T. Fuller. Nós não temos mais esperança (...) Assim, decidimos escrever essa carta para expressar nossa gratidão e admiração por tudo o que vocês fizeram em nossa defesa durante estes sete anos, quatro meses e onze dias de luta (...) Apenas dois de nós vão morrer. Nosso ideal viverá em milhões de pessoas. Nós vencemos. Conservem nosso sofrimento, nossas dores, nossos erros, nossas derrotas e nossa paixão como um tesouro para batalhas futuras e para a liberdade final. Saudações aos nossos amigos e camaradas da Terra. Vida longa à Liberdade! Bartolomeo Vanzetti Nicola Sacco 21/8/1927

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ENTREVISTA

Wellington Dias, que deixou o governo do Piauí em abril, conta como mudou a política e o IDH no estado, que já foi o mais pobre do país Por Mayara Bastos e Paulo Donizetti de Souza

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BENONIAS CARDOSO

Sangue de índio


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ellington Dias foi bancário do Banco do Nordeste, do Banco do Estado do Piauí e da Caixa Econômica Federal. Presidiu a Associação de Pessoal da Caixa (Apcef) e o sindicato dos bancários de seu estado. Foi vereador, deputado estadual e federal e venceu no primeiro turno as duas eleições que disputou para governador, ambas contra políticos tradicionais. Em 2002 recebeu 51% dos votos, contra 44% de Hugo Napoleão. Em 2006, foram 61%, contra 25% do segundo colocado, Mão Santa. Dias deixou o governo do Piauí em abril com mais de 80% de aprovação para disputar uma cadeira no Senado, em outubro. Quando assumiu, em janeiro de 2003, enfrentou economia e autoestima em baixa: o PIB local era de R$ 7 bilhões, e chegou aos R$ 18 bilhões em 2009. Pesquisas locais apontavam que apenas metade da população, mais precisamente 51%, se dizia orgulhosa de ser piauiense. No final de 2009, essa taxa de autoestima estava em 88%. O Piauí terminou o século 20 na condição de estado mais pobre do Brasil – IDH (que vai de 0 a 1) na casa de 0,5 – e deve chegar à próxima década em 0,8. Isso se deve a um plano de modernização baseado em 40 metas relacionadas a qualidade de vida, algumas já são alcançadas: “Estamos completando este ano algo que vai ser novidade no Brasil: o acesso a todo o ciclo de educação, da préescola à pós-graduação, nos 224 municípios do Piauí”. Como o Piauí, promessa econômica do século 19, tornou-se essa tristeza social do final do século 20?

O Piauí completou, no ano passado, 250 anos da sua criação. É um estado diferente dos outros porque foi ocupado do litoral para o interior a partir do ciclo do gado. E chegamos ainda no período depois da proclamação da República a ter um estágio internacional, o sexto maior exportador brasileiro. Veio a Revolução Industrial, e ficamos de fora. Depois a Revolução Tecnológica, e outra vez o Piauí ficou de fora. A consequência é que outros estados avançaram e chegamos à posição de lanterninha brasileiro no final do século passado. Isso porque, apesar de ser um estado riquíssimo, houve erros de condução, por várias gerações. Há algumas teses de doutorado da Universidade Federal do Piauí. A do professor Roberto John analisa o período de 1940 a 1990 e conclui que havia um esquema para que todo recurso público pudesse ser distribuído entre algumas pessoas de algumas famílias. E, assim como em outras regiões do Brasil, a pobreza passou a ser uma necessidade da elite. Então, tanto não ter renda como baixa renda ou baixa escolaridade passou a ser um instrumento de dominação. Chegamos a ser praticamente o pior Índice de Desenvolvimento Humano do país, a mais baixa renda per capita, com uma imensa população analfabeta ou com baixa escolaridade. Foi essa a situação que encontramos no início deste século, no ano de 2002. Trabalhamos então num plano de longo prazo, um conjunto de metas, programas, obras e ações para duas décadas.

Nessas regiões onde a pobreza é grande, o nível de acesso das pessoas à informação também é ruim. Como romper com isso?

Se você perguntar a qualquer brasileiro a imagem que tem do Piauí, verá que ele tem uma imagem distorcida. Terra rachada, caveira de gado na seca à beira das estradas, menino tocando jumento com ancoretas carregando água, retirantes com trouxas nas costas. Essa foi a imagem amplamente propagada. Eu não quero negar que isso também era uma realidade, mas apenas em algumas regiões. Encontramos o estado muito desorganizado, tinha perdido a capacidade de investimento, uma dívida quase duas vezes maior que a receita própria. Atrasava pagamentos, encargos, não conseguia prestar contas dos convênios que fazia com a União. Quando assumi, em 2003, tivemos de tomar medidas duras. Encerrei 35 mil contratos ilegais, tive de fechar 12 secretarias, cortar 30% dos cargos em comissão. Introduzimos uma nova cultura política. E a forma de quebrar isso é o ingresso do servidor por meio de concurso público, selecionar da sociedade o que ela tem de melhor para compor a estrutura do estado. Apostamos na qualificação. Passamos a criar uma forma de remuneração, uma parte é fixa e outra variável, de acordo com a produtividade. Passamos a demitir pessoas por justa causa, as que não trabalhavam, que cometiam irregularidades. Já são mais de 1.100 demitidas desde 2003, e isso vai criando um novo parâmetro.

Qual era o número do funcionalismo em 2003 e quanto é hoje?

Era 100 mil. Hoje, 70 mil. Ao mesmo tempo, era preciso informatizar com equipamentos modernos. A arrecadação era nas cancelas. Hoje temos a nota fiscal eletrônica. Era preciso investir ao mesmo tempo em educação, saúde, segurança... Estamos completando este ano algo que vai ser novidade no Brasil: o acesso a todo o ciclo de educação nos 224 municípios do Piauí. Seja em Alegrete, que tem 4.000 habitantes, seja na capital, com 800 mil, todos têm acesso a alfabetização, ensino fundamental, médio, profissionalizante, ensino superior ou pós-graduação, especialização. Estamos com uma rede com 50 bases presenciais de ensino profissionalizante e superior. A partir de cada cidade-polo, trabalhamos a implantação do ensino, que é um misto de presencial e a distância. Com o uso da tecnologia, posso ter professores com doutorado, mestrado, espalhando conhecimento em todas as regiões. Fizemos uma divisão do estado em 11 territórios de desenvolvimento. A partir do potencial de cada região, planejamos tudo. Por exemplo, a região de Bom Jesus, sul do Piauí, polo dos Cerrados, se tem potencial para a produção de soja, milho, algodão, feijão, frango, se tem potencial para o florestamento, como imaginá-la sem um curso de Agronomia, de Veterinária, de Engenharia Florestal? Criamos base nessas áreas, e a partir daí temos ensino técnico e superior.

A gente tem de trocar o pneu com o carro andando. Eu não posso proibir que empresas venham para cá porque não tenho mão de obra. Eu tenho de correr atrás para qualificar mão de obra

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Como o estado lida com a necessidade do acesso à banda larga?

Havia um esquema para que todo recurso público pudesse ser distribuído entre algumas pessoas de algumas famílias. A pobreza passou a ser uma necessidade da elite, um instrumento de dominação

Chegamos a 2009 com 181 dos 224 municípios com a comunicação de velocidade, com banda larga. Vamos chegar agora em julho com 100% dos municípios com banda larga e telefonia móvel, ou seja, é uma revolução. No início da década, tínhamos seis municípios que contavam com isso. Investimos pesado, governo federal, estado e municípios, em habitação. Vamos completar mais de 100 mil habitações, e serão mais de 1.200 novos assentamentos, aliviando a tensão no campo. Há 160 cidades com investimentos na área hospitalar ou adequando o Centro de Saúde, transformando-o em hospital ou equipando-o, desde a estrutura física até a do pessoal. Toda cidade com mercado, cemitério, ponto de cultura, campo de futebol com vestiário, ginásio poliesportivo, calçamento, base de inclusão digital, ou seja, biblioteca. São cerca de 40 itens que listamos como essenciais para a vida e estamos implantando até este ano em todos os municípios. Essas metas vêm impactando positivamente a qualidade de vida das pessoas. O Piauí, no final do século passado, tinha um IDH de 0,5. Agora ultrapassamos 0,7, e a previsão é chegarmos na próxima década na casa do 0,8, que é a média nacional. Vamos ter uma média de escolaridade acima de 12 anos, expectativa de vida acima de 75 anos e renda média­ per capita na casa de R$ 10 mil, US$ 6 mil.

As pessoas percebem isso, ou foi preciso uma política pública de comunicação para reforçar a divulgação dos atos?

Eu acredito muito no que se faz. Muitas vezes há jornal A ou televisão B dizendo isso ou aquilo. Quando a gente trabalha de modo planejado, as ações sempre chegam para quem mais precisa. A realização de obras como habitação, saneamento, energia, educação, saúde, essas coisas, não há como esconder. A população sabe que tem muita coisa a fazer, mas também percebe. A aprovação do presidente Lula no Piauí chega a 93%. A do meu governo é de 88%. Quando fiz campanha, em 2002, uma pesquisa apontava somente 51% da população com elevada autoestima e orgulho de ser piauiense. No final de 2009, essa taxa era de 88%.

É possível perceber nas gerações mais jovens se há alguma mudança de valores na relação com a política, do clientelismo e do individualismo para algo mais coletivista, solidário?

É um momento positivo, porque temos uma melhora considerável em relação ao velho modelo “quem está do meu lado tem direito a tudo, quem não está é meu inimigo”. À medida que as lideranças vão dando o exemplo, as outras gerações passam a se espelhar nisso. A juventude do Piauí demonstra que teremos um futuro melhor. Temos várias escolas bem conceituadas, vários cursos superiores conceituados, alunos que só estudaram na rede pública preenchendo aproximadamente dois terços das

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vagas dos vestibulares em áreas que antes eram somente dos mais ricos, como Medicina, Engenharia Elétrica, primeiro lugar de Administração, primeiro lugar de Matemática. Para mim, isso é uma revolução, porque são pessoas que pela educação vão chegar a um estágio de melhor qualidade de vida, e isso vai refletir em toda a sua família, em todas as futuras gerações. O setor privado investe? Chegaram empresas? As pessoas estão montando negócios? Enfim, o capitalismo cresce no Piauí?

O que temos trabalhado é: vão chegar investidores de fora, mas primeiro temos de fazer a nossa parte. Os que nasceram aqui, ou que vieram de algum lugar, têm de acreditar no estado. O Piauí foi premiado no ano passado como o estado mais empreendedor do Brasil. O Sebrae apresentou um estudo em que 18,5% da população piauiense é empreendedora. Seja alguém que tem um carrinho de cachorro-quente, seja a maior fábrica de bicicletas da América Latina, que é a Houston Bike (com sede em Teresina) ou a 16ª maior rede de comércio atacadista do país, que é a Comercial Carvalho. Temos várias médias e grandes empresas. Uma média ou grande empresa, ao se instalar, se obriga a ter uma relação direta com os pequenos. O grupo Olho D’Água, que trabalha com cana-de-açúcar, tem hoje um conjunto de proprietários que são seus fornecedores diretos; o grupo Duas Barras, que industrializa o leite na região de Picos, tem milhares de pequenos fornecedores de leite; a Bunge Alimentos tem um número grande de fornecedores, incluindo pequenas cooperativas que produzem soja, grãos, na região dos Cerrados...

Mas a Bunge não está avançando demais, a soja não está avançando demais sobre o Cerrado?

É preciso ter muito cuidado quanto a isso. Sempre que se abria esse debate, eu perguntava quando viajava para países desenvolvidos: “Quantos por cento da reserva nativa vocês têm aqui?” Na Alemanha tem 7%; nos Estados Unidos, 8%; na Itália e em Portugal, mais ou menos 6%. Então, você pega os 20 países mais desenvolvidos, e é raro um que ainda tenha 10% das suas reservas vegetais...

Mas o senhor não quer chegar lá, quer?

Claro que não. O Piauí ainda tem próximo de 80% de reservas nativas. Temos hoje cerca de 4 milhões de hectares de reservas protegidas. Fora da região amazônica, é a maior reserva existente. Estamos recuperando a maior área de desertificação do país, que é a região de Gilbués. Há um programa de R$ 240 milhões do PAC, em parceria com a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), os governos do Piauí e do Maranhão e municípios, para proteger toda a calha do rio Parnaíba. O Congresso Nacional vai votar o Programa Permanente de Revitalização das Bacias. Estamos falando de uma


Um problema no Piauí, grave, é saber de quem são as terras. Ou seja, o problema da grilagem. De que forma o estado tem olhado para essa questão, que impede inclusive a chegada de investimentos?

Esse é um dos problemas mais graves do estado. Da forma como foi ocupado o Piauí, primeiro os baixões, as chamadas chapadas – que são muitas, os platôs, onde está a região dos Cerrados, mas também outras regiões – ficaram na verdade como propriedades do próprio estado ou da União. E essas terras, ao longo dos anos, foram ocupadas irregularmente. Depois de três anos de forte debate, conseguimos aprovar na Assembleia Legislativa uma legislação que vai permitir agilidade na regularização fundiária. As pessoas serão obrigadas a comparecer e apresentar a documentação devida. Quem não tiver vai pagar um valor, relativamente baixo, dependendo da localização, mas vai legalizar aquela propriedade, e se submeter às regras de exploração, aos cuidados ambientais etc. E isso vai dar maior segurança também aos investidores. É a melhor maneira de combater grileiro, ou seja, só vai comprar uma propriedade ilegal quem estiver com outras intenções.

Recentemente, quando a Suzano Celulose anunciou um grande investimento no estado, verificouse a falta de mão de obra especializada.

Eu imaginei enfrentar muitos problemas no Piauí, mas confesso que não esperava enfrentar esse problema. Ter uma quantidade gigantesca de vagas não preenchidas nos leva de um lado a uma alegria, já que significa uma expansão do emprego, e de outro a uma grande responsabilidade. Nós estamos agora inovando. Criamos um caminhão que faz cursos de qualificação para a construção civil, nas áreas de habitação, de estradas e ferrovias, energia elétrica, água e saneamento e na área do agronegócio, que é o caso. Tínhamos cinco escolas técnicas, passamos para 53, e estamos abrindo na região de Teresina e Nazária, que é onde vai ficar a base da Suzano, o centro de qualificação específico para a demanda na área de cerâmica e na de celulose. Só a Suzano é um investimento de R$ 4,5 bilhões, gerando cerca de 15 mil empregos. Da mesma forma, ao trabalhar também com parceiros, terá em torno de 40% de seu plantio em propriedades já existentes, que vão receber a assistência técnica devida. Há no sistema integrado de emprego do estado 90 mil pessoas querendo emprego e, na outra ponta, há 40 mil vagas à procura de mão de obra especializada. Nesse momento, estamos qualificando 25 mil pessoas para as áreas que sabemos

que tem mercado. Acredito que essa rede de educação que estamos fazendo vai preparar para daqui três, quatro, cinco anos uma gigantesca mão de obra para as demandas que vão continuar crescendo. A gente tem de trocar o pneu com o carro andando. Eu não posso proibir que as empresas venham para cá porque não tenho mão de obra, e tenho, ao mesmo tempo, de correr atrás para qualificar mão de obra.

FOTOS BENONIAS CARDOSO

área de mais ou menos 10 milhões de hectares no norte e no sul do estado. Temos 700 mil hectares explorados. Então, acho que é possível uma expansão (da soja, da cana) ainda maior, mas com os cuidados adequados. Não aceitamos a monocultura, há toda uma política para que se tenha as condições de trabalhar uma diversificação na produção.

Há um sabor especial em ter provado que um trabalhador pode fazer algo diferente para modernizar a política?

É... Na década de 1990, os setores dominantes da política e da imprensa já diziam que era preciso “modernizar” o país e atribuíam a pessoas como eu – bancário com militância sindical – a pecha de “atrasados”, “dinossauros”... Eu continuo acreditando no socialismo, um modelo em que o objetivo é trabalhar o atendimento de desejos e necessidades do ser humano. Eu me orgulho muito desse Brasil que estamos construindo. Hoje, o presidente Lula é chamado nas várias reuniões do planeta para contar a experiência do Brasil. Imagine se a gente tivesse privatizado BNDES, Caixa Econômica, Banco do Brasil, Petrobras, todas essas coisas. Como a gente teria enfrentado a crise? Está tudo perfeito? Não, ainda tem muita coisa para resolver. O Brasil precisa de reforma política, da reforma das comunicações, precisa ainda atacar fortemente a desigualdade. Temos um modelo de crescimento econômico que ainda é muito concentrador de riqueza. Eu acho que a gente deu o passo e temos chances de dar mais e mais passos no caminho de uma sociedade cada vez mais livre. É preciso que se consolide uma base em que haja atenção para todos. A partir daí vale o livre talento, a capacidade de cada um.

O senhor tem ascendência indígena ou é só semelhança física?

(Risos) A avó da minha mãe era índia, e o avô dela, meu trisavô, uma mistura de negro com índio. E é daí que eu venho. As pessoas me chamam carinhosamente de Índio, e eu tenho orgulho disso. É interessante, porque para o Brasil o Piauí não tem índios. Na verdade, como era muito caro comprar escravos, no Piauí tentaram escravizar índios, mas eles se rebelaram. Teve um herói nosso aqui, o Mandu Ladino. Ele liderou um movimento contra a escravidão dos índios, e por conta disso houve grandes chacinas, muitos índios terminaram sendo expulsos, muitos fugiram. Depois que eu assumi publicamente a identidade de índio, o IBGE me mostrou outro dia que tivemos um salto de qualidade. Passamos de 300 pessoas que viviam no Piauí e se assumiam como “índio” para mais de 5 mil. Estamos agora reconhecendo uma tribo na região de Piripiri, guajajaras, e uma outra na região de Queimada Nova. Seriam as duas primeiras tribos que têm mais características... Muitos piauienses vão encontrar no sangue a nossa origem.

Temos alunos da rede pública passando em Medicina, Engenharia, Matemática, onde antes só entravam os mais ricos. Por meio da educação, chegarão a um estágio de melhor qualidade de vida, que refletirá em sua família e nas futuras gerações. É uma revolução

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SUPERPO COMPORTAMENTO

Viviane de Oliveira é uma das fundadoras da Confraria das Mulheres da Bolsa, um grupo formado por 25 gaúchas de Porto Alegre. De 24 a 60 anos e com experiências de vida diferentes, elas se reúnem para trocar informações, promover eventos beneficentes e até “operar” juntas

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ODEROSAS Ela devolve direitinho o que toma emprestado, faz sobrar para a poupança e para a bolsa (de valores!) e é cada vez mais dona do pedaço, na gestão da casa ou do empreendimento. Sua excelência, a mulher Por Miriam Sanger

ANDRÉA GRAIZ

É

a primeira a despertar, se arruma, põe a mesa, cuida da família e dos bichos (quando os tem), tira o lixo, entra no ônibus, no trem ou no carro, adentra o escritório, o banco, a fábrica, a loja ou o ateliê. E, especialmente nas últimas duas décadas, a mulher faz algo a mais: ganha dinheiro. Divide as contas com companheiro, pais ou filhos. Define o consumo, da marca da sandália ao imóvel dos sonhos, da lasanha pronta às férias de julho. Projeta o futuro, economiza onde dá, aplica na poupança e até em ações. Em maior ou menor grau, a mulher dá mostras de que está bem preparada para lidar com todas as coisas da vida, entre as quais o dinheiro. Não faz pouco tempo que as mulheres brasileiras ingressaram no mercado de trabalho, mas recentemente se tornaram muitas, mais emancipadas e instruídas. A participação da mulher no mercado de trabalho ou procurando emprego era inferior a 30% MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Separada há dez anos, com duas filhas adultas, Roseana montou seu ateliê de artesanato de couro dentro de casa, em Campinas. Comprou maquinário e matéria-prima com empréstimos do Banco Popular da Mulher

ANDREA PRADO/MELHOR IMAGEM

nos anos 1970. Hoje a presença feminina corresponde a 45% da população ocupada no país – e a três em cada cinco vagas em universidades. Como se não bastasse, as mulheres deixaram de ser coadjuvantes na economia familiar: nos últimos 12 anos, passaram de 18% para 31% os lares brasileiros sustentados exclusivamente por elas. Antes da virada deste século, era raro ouvir casos de mulher que ganha mais que o marido ou mãe que assume integralmente as despesas dos filhos. Hoje essa realidade nem rende papo de boteco – apesar de os salários das meninas ainda serem 75% mais baixos que os dos meninos que fazem as mesmas coisas. Rita de Cássia Oliveira Pereira é uma dessas chefes de família. Separada há 15 anos, ela ganha o pão e serve a mesa, paga suas contas e as de seus dois filhos. “Quando me separei, levei comigo dois bebês e um par de chinelos”, brinca. O recomeço foi difícil e gradual, mas rapidamente a comerciante encontrou um jeito de administrar suas contas para alcançar seu objetivo principal: oferecer boa educação aos filhos. O primeiro trabalho que conseguiu na época foi como vendedora de seguros para um banco. “Eu não tinha grana nem para almoçar.” Depois se candidatou a vendedora em uma loja de shopping: “Entrei e disse: ‘Olha, não tenho experiência, mas me dê uma semana e vou mostrar do que sou

O direcionamento da vida financeira para a educação dos filhos mostra um aspecto capaz’”. Rita está na mesma empresa há 11 anos e foi promovida a gerente de vendas. Até sofre para “fechar o mês”, mas comemora o sucesso em seu principal objetivo. “Nunca comprei o carro que sempre quis, mas ofereci as melhores escolas para os meus filhos.” Rita tem o jogo de cintura brasileiro combinado à flexibilidade feminina. “Já fiquei devendo para cartão de crédito e decidi nunca mais me meter em dívida com banco. Programo minhas despesas extras de acordo com as datas em que sei que minha comissão será maior, como Dia das Mães e Natal”, explica. Mesmo contando com uma boa dose de improviso, Rita dá passos sólidos e, em março, comemorou seu maior voo solo econômico, a compra de seu primeiro imóvel, pelo programa Minha Casa, Minha Vida. 24

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O direcionamento da vida financeira para a educação dos filhos mostra um aspecto fundamental na forma como a maioria das mulheres se relaciona com dinheiro – e também explica diversas políticas públicas dirigidas ao público feminino. “Constatamos que, ao estimular a geração de renda por meio da mulher, o resultado ultrapassa o impacto econômico. Ela é capaz de melhorar não apenas sua atividade como também toda a condição do núcleo familiar”, afirma Maristela Braga, gerente executiva do Banco Popular da Mulher (BPM). Criada há sete anos em Campinas (SP), a instituição oferece empréstimos destinados a pequenos empreendimentos acompanhados de orientação para o tomador tocar seu negócio – é o chamado microcrédito produtivo orientado. Os valores vão até R$ 7.000, e 82% dos clientes são mulheres.

“Não emprestamos para reformar a casa ou pagar a escola: o objetivo é ajudar o cliente a gerar renda. Para apoiá-lo, existe a figura do agente de crédito, que acompanha todas as fases do relacionamento, desde o pedido do crédito até os resultados colhidos”, explica Maristela. Existem muitas instituições que oferecem microcrédito a todos os segmentos de público, e também entre estes a mulher é o maior: no Brasil, elas representam 54% dos clientes. A tendência é mundial. De acordo com dados divulgados na última Cúpula Global de Microcrédito, dos 113 milhões de pessoas­atendidas pelo sistema até 2005, 84,2% eram mulheres. Roseana Pereira Baganha, que faz artesanato de couro, comprou de materiais a máquinas e está conseguindo estruturar seu ganha-pão depois de três empréstimos rea-


gênero, e por tudo isso sua presença é hegemônica na economia solidária”, reflete o economista Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho. “Aprendi isso com Mohammad Yunus, um feminista que desenvolveu o conceito de microcrédito para a mulher. Hoje seu banco tem mais de 7 milhões de acionistas, 90% mulheres”, afirma, citando o Nobel da Paz de 2006 e criador do Grameen Bank, de Bangladesh, em 1983. Hoje espalhado por mais de 60 nações – incluindo Estados Unidos e, em breve, Brasil –, o banco já concedeu US$ 8 bilhões em crédito a 7,84 milhões de pessoas, com a impressionante taxa de menos de 2% de inadimplência.

ANDREA PRADO/MELHOR IMAGEM

Governança

Não é novidade, nem mesmo no Brasil, o fato de a mulher ser uma eficiente gestora de recursos. Que o diga a recepcionista Juliana Alves Malgueiro de Oliveira, responsável pela “contabilidade” da casa de seus pais e, desde que se casou, também da sua. “Tenho uma planilha para a casa dos meus pais e uma para a nossa. Junto o meu salário com o do meu marido, tiro de lá todas as despesas extras e as previstas e determino o valor que ele pode usar no mês. A regra que vale é só gastar o que temos.” A preocupação, não se deixar engolir por dívidas e ter o nome “limpo”.

lizados no BPM. “Não trabalho com cheque ou com cartão de crédito: só com a realidade”, conta. Separada há dez anos, com duas filhas adultas, ela montou seu ateliê dentro de casa, em Campinas. Mais do que a quantia ou a facilidade de pagamento, Roseana frisa a importância da assistência que recebe de sua agente de crédito: “Com ela troco ideias sobre meu negócio e recebo orientação, desde puxões de orelha sobre o controle de recebimentos até o estudo realista de novas oportunidades. Sinto que estou sempre amparada. Adoraria, agora, compartilhar meu conhecimento, já deixei até cartazes oferecendo aulas grátis para quem quiser aprender o meu ofício”. Eis outra característica feminina marcante: a colaboração. “As mulheres são organizadas, lutam pelos seus direitos, respeitam a natureza e buscam a igualdade de

Anadete: “As mulheres conseguem formar grupos de confiança com facilidade”

JR PANELA

fundamental na forma como a maioria das mulheres se relaciona com o dinheiro É por essa razão que o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) opera com nível de inadimplência na casa de 1%, índice que para qualquer banco privado é sonho. “Mais de 83% de nossas operações de microcrédito são realizadas com aval solidário, modalidade em que o crédito é concedido a um grupo em que um assume o papel de avalista do outro”, diz Anadete Apoliano Albuquerque Torres, superintendente da área de Microfinança Urbana do BNB. “Essa é uma característica feminina forte: ela consegue formar esses grupos de confiança com facilidade.” O Banco do Nordeste, com seu programa Crediamigo, consolidou-se como a maior instituição bancária no país em volume de microcrédito. Hoje, a carteira ativa tem R$ 480 milhões e 550 mil clientes – dois terços formados por mulheres. “Esse MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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volume reflete uma atitude corajosa. Elas têm maior disposição para ir ao mercado, tomar crédito, construir sua vida. Enxergam no microcrédito a oportunidade de formar um pequeno negócio que pode gerar renda dentro de casa.” Não é à toa que as mulheres já são apontadas pelas grandes indústrias como “a força motriz da nova economia”, segundo diversas pesquisas. A realizada recentemente pela Sophia Mind, empresa de pesquisa e inteligência de mercado do grupo Bolsa de Mulher, analisou o perfil de 2.096 mulheres em todas as regiões e concluiu que 77% das brasileiras são as que decidem os gastos familiares. Entre as casadas, o percentual sobe para 91% e, entre as separadas, para 95%. Da indústria alimentícia à automobilística, nenhuma poupa esforços para compreender as preferências desse público que escolhe o que comprar, como vai pagar e o que fazer com o que consegue economizar.

Não é à toa que as mulheres Nos bancos, elas estão prestes a se equiparar aos homens em número de correntistas e avançam rapidamente em direção aos investimentos. “As mulheres já somam 49% das cotistas que aplicam em fundos de investimento em nossa instituição”, afirma Antonio Cássio Segura, gerente executivo da Diretoria de Varejo do Banco do Brasil. “Elas são muito mais ativas na gestão do caixa familiar”, completa. Essa afirmação, consenso entre os analistas, traz à luz uma nova vocação da mulher: a de investidora.

Filtra e serve

“A mulher está tomando conta das finanças, atividade que executa sozinha ou em parceria com o marido”, acredita a consultora financeira Viviane Farah Ferreira. “Suas características naturais a ajudam nesse papel. Por ser detalhista, consegue organizar despesas e enxugar gastos. É ávida por informação, aprende rápido e é multitarefa. Quando elas realmente tomam para si a gestão financeira – e para isso também precisam ter companheiros abertos a essa questão –, seu desempenho é elogiável.” Economizar para comprar um imóvel e garantir uma terceira idade mais tranquila são as duas principais preocupações das poupadoras e investidoras. Talvez por

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Juliana: “Em casa, junto o meu salário com o do meu marido, tiro de lá todas as despesas extras e as previstas e determino o valor que ele pode usar no mês”


isso elas sejam mais conservadoras do que os homens, como mostrou outra pesquisa realizada pela Sophia Mind em janeiro deste ano, com cerca de 1.500 mulheres de 25 a 50 anos: 73% das entrevistadas guardam seu dinheiro em caderneta de poupança, o investimento mais seguro e menos rentável que existe. “Em seguida vêm a preocupação de garantir boas condições de vida aos filhos e o desejo de ter recursos para projetos pessoais, como cursos ou viagens”, detalha Cássio Segura, do BB. “Na ótica masculina do investimento, há ousadia, foco em resultado, racionalidade, competitividade. Na feminina, há prudência, paciência, emoção e intuição”, observa Viviane. Há também uma busca disciplinada por informação. Segundo a mesma pesquisa da Sophia Mind, 46% das entrevistadas realizam algum tipo de investimento e 39% têm muito interesse em temas como inves-

timento e finanças. “As mulheres estão ficando bastante ousadas. Segundo a Bolsa de Valores de São Paulo, em 2002 elas somavam 15 mil investidoras e, em 2007, já eram mais de 112 mil”, compara o economista Everton Lopes, autor dos livros Do Economês para o Português – Um Guia Prático para Finanças Pessoais e Seu Bolso no Divã. Para Lopes, as mulheres não jogam na bolsa: “Elas investem, trabalhando para fazer seu dinheiro gerar mais dinheiro”. Viviane de Oliveira é uma das fundadoras da Confraria das Mulheres da Bolsa, um grupo formado por 25 meninas superpoderosas gaúchas. De 24 a 60 anos e com experiências de vida diferentes, elas se reúnem para trocar informações, promover eventos beneficentes e até “operar” juntas. “A bolsa é um ambiente onde as mulheres se dão muito bem. Somos disciplinadas e temos facilidade para aceitar regras. E, como em qualquer outra coisa na vida, existem regras

que precisam ser seguidas, inclusive para garantir segurança na atividade”, descreve a investidora, citando como aliados, apesar das diferenças dentro do grupo, os ingredientes que todas têm em comum. “Mulheres querem algo mais, almejam rentabilidade e não serem obrigadas a lidar com as limitações impostas por salário, horário de trabalho e perspectivas que caibam dentro desses parâmetros”, descreve Viviane. E os homens, como enxergam essa movimentação? “Tudo isso assusta”, opina a psicóloga Marina Vasconcellos, especializada em terapia familiar e de casal. “Hoje é comum ver mulheres que moram sozinhas, ganham bem, são independentes e inteligentes – e têm dificuldade de encontrar parceiros. Eles não se sentem mais necessários. E acho que toda essa independência não tem volta. Mas é preciso bom senso e lembrar que homens e mulheres se complementam­.”

já são apontadas pelas grandes indústrias como a força motriz da nova economia

FOTOS REGINA DE GRAMMONT

Rita dá passos sólidos e, em março, comemorou seu maior voo solo econômico, a compra de seu primeiro imóvel, pelo programa Minha Casa, Minha Vida

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DIREITO

Frio na barri Falta de legislação específica para a reprodução assistida aumenta a angústia dos brasileiros que dependem de uma barriga amiga para gestar o filho que não podem ter Por Andrea Dip

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GETTY IMAGES

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o anúncio em uma rede de condições financeiras serviriam de meros relacionamentos na inter- veículos das mais abastadas que, por exemnet, Ana – “saudável, não fu- plo, não querem engravidar por motivos fúmante e sem vícios” – se diz teis. No caso da barriga de aluguel, a criança disposta a realizar o sonho viraria mercadoria, entregue aos pais ricos de casais que não podem ter filhos. Por e- ao final de nove meses”. mail informa detalhes. Morena clara, olhos Daniel Faúndes, diretor do Centro de e cabelos castanhos, três filhas e um mari- Reprodução Humana de Campinas (SP), do desempregado. Não tem casa própria e discorda. “Entendo que alguma compenuma de suas filhas teve de ir viver com a sação econômica não seria malvista e podeavó. “Ficamos sem possibilidade de susten- ria ser regulamentada aqui no Brasil, como tar as três.” Ana quer R$ 100 mil pelo alu- é nos Estados Unidos. A pessoa gestará por guel do útero (quando uma mulher é paga nove meses, correrá riscos, terá desconforpara gestar o embrião gerado a partir do tos. Então, por que não? O comércio existe, óvulo e do espermatozoide de um casal), está acontecendo”, observa. Em sua clínica, preço médio encontrado nas centenas de porém, Faúndes exige que os procedimenanúncios que se espalham por redes sociais, tos estejam em conformidade com a lei: “Se classificados e fóruns de discussão virtuais é uma doação entre não parentes, colocae até em jornais. mos nosso advogado para acompanhar e As histórias são parecidas: saudáveis e fazemos uma declaração em cartório para não fumantes, mães solteiras garantir que não há dinheiro enou com marido desempregado, A confusão volvido e não haverá confusão”. crianças a sustentar, dívidas. O pode A confusão pode ocorrer útero é barganhado por valores ocorrer quando as duas partes resolvem que chegam a R$ 500 mil. Há quando as querer a criança ou ambas deuma lei, a nº 11.105 de 2005, duas partes cidem não querer mais. Se esse que proíbe a comercialização tipo de situação pode acontecer resolvem de material biológico, com pena entre parentes, com dinheiro ende três a oito anos de reclusão. querer a volvido fica ainda mais compliMas a reprodução humana ain- criança cado. “E se nascerem gêmeos? E da cai em uma grande lacuna na ou ambas se os pais se separarem durante legislação brasileira. O profes- decidem a gestação ou a criança nascer sor José Roberto Moreira Filho, não querer com alguma doença?”, questiopresidente da Comissão de Biona Luciana Leis, psicóloga em mais. Se ética e Biodireito da Ordem dos uma clínica de fertilização em Advogados do Brasil, de Minas esse tipo São Paulo. “Muitos casais coGerais, explica: “Não há uma lei de situação locam questões importantes de sequer que regule a reprodução pode lado e podem ser explorados humana assistida ou a barriga acontecer ou ter a família desestruturada. de aluguel. Apenas normas do entre Esse tipo de negociação é arrisConselho Federal de Medicina, cado porque a mulher que cede parentes, como a que permite a utilizao útero por dinheiro não tem ção de um útero de substituição com vínculos com o casal ou com a desde que a pessoa que venha dinheiro criança, é só usada como objeto”, a ceder o útero tenha parentes- envolvido explica. Para Luciana, os papéis co com a beneficiada em até se- fica ainda precisam ser predefinidos. “É gundo grau ou, se não houver mais um gesto de amor ao próximo, parentesco, que haja autorizaa dinâmica familiar deve ser complicado mas ção do Conselho Regional de analisada. Irmãs que rivalizam e Medicina”. até a mãe que gesta para o filho podem gerar Muitos especialistas da bioética e do bio- sentimentos complexos.” direito, como Moreira Filho, defendem a O casal Miete Peixoto de Melo e Dênio criação de leis rígidas e específicas para o Gonçalves, ambos advogados, conseguiu “comércio” de partes do corpo, por enten- trilhar um caminho seguro ao aceitar a oferder que a vida não pode ser negociada como ta de uma amiga, Fernanda, após seis aborbem de consumo: “Se legalizássemos esse tos espontâneos e a morte de um filho nastipo de comércio, as pessoas que não têm cido prematuro. “A Fernanda acompanhou MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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SOLIDARIEDADE Dênio, Miete, Fernanda e a pequena Michelli: tudo às claras

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com a menina.” A amiga diz que não teve amigos e família. Depois, casou-se com conflitos sentimentais: “Coloquei na cabe- um homem sem filhos e o desejo de ser ça que minha barriga estava emprestada, mãe voltou. “Tentei fazer uma reversão que não teve sucesso. Por conque aquele bebê não era meu. Michelli, ta disso, surgiu um mioma conFoi muito tranquilo”. tra o qual luto há quatro anos”, Michelli, hoje com 7 anos, hoje com explica. Ela não descarta pafoi a primeira criança a nascer 7 anos, foi gar para outra mulher engrade um útero de substituição no a primeira vidar: “Eu posso perder o úteBrasil e tem um quadro em seu criança ro a qualquer momento. Estou quarto que conta sua história. cansada de tantas tentativas”, “Sempre fizemos tudo às claras, a nascer desabafa. Bárbara tem medo tanto na Justiça quanto em casa. de um de pedir a alguém da sua faEla sabe como foi gerada e não útero de há conflitos de sentimentos”, or- substituição mília ou a uma amiga: “Acho que prefiro pagar, teria menos gulha-se o pai. O caso demorou no Brasil problemas. Essas mulheres são mais de dois anos, desde o início do tratamento até o registro da criança, e só profissionais, sabem o que estão fazendo. saiu no nome da mãe biológica após a ob- Querem o dinheiro, e pronto, acabou”. Se optar por pagar a uma “profissional”, tenção de uma liminar pelo casal na Justiça. E valeu a pena. “Nem imaginamos nossa Bárbara deve estar disposta a desembolsar, além do aluguel, mais R$ 15 mil a R$ 20 mil vida sem a Michelli”, diz. Nesse universo, porém, não são raros os casos de mulheres ansiosas e sofrendo com a impossibilidade de ser mãe. Bárbara, de 30 anos, teve dois filhos e, aos 20, “amarrou” as trompas, influenciada por

SAMAN PAHLEVAN

nosso sofrimento e se ofereceu para gestar um filho nosso”, lembra Dênio. “A Miete estava deprimida, sofreu muito com tudo por que passou. Confesso que tive medo de a Fernanda querer ficar com a criança, porque sei que laços se criam durante a gravidez, mas correu tudo bem.” Aparecida Fernanda da Silva diz que resolveu ajudar por acompanhar o quanto os amigos sofriam por querer um filho. “Eu nem sabia o que era barriga de aluguel. Apenas quis ajudar.” Fernanda diz que sofreu preconceito de amigos, vizinhos e colegas de trabalho: “Alguns diziam que eu ia ficar rica, outros que eu era boba por ter me deixado explorar, ouvi de tudo. Mas eu estava muito certa do que fazia”, lembra. Até a filha de Fernanda enfrentou constrangimentos na escola, episódios que ela prefere nem contar. “Passou. Deu tudo certo. É uma alegria, para mim, ver o amor deles


Tema já rendeu drama e suspense tipo exportação

DIVULGAÇÃO/REDE GLOBO

pelo procedimento de inseminação artificial e demais despesas médicas. Também precisa estar ciente de que, se a gestante tiver qualquer conduta que a desagrade, não poderá contar com a Justiça. Estará suscetível a riscos como receber chantagens ou de a gravidez se tornar o sequestro de um filho que ainda nem nasceu. Também não poderá contar com a clínica que fez a inseminação, que alegará não ter responsabilidade sobre o caso. Se Bárbara desistir no meio do caminho, a mãe de aluguel terá de ficar com a criança – afinal, mãe para a nossa legislação é quem dá à luz. E mais uma criança terá futuro incerto ao “pesar” na vida de alguém que só a levou na barriga pelo dinheiro. A Justiça brasileira seguirá isenta e calada. E a barriga de aluguel continuará refletindo a dura realidade do país: quem tem dinheiro paga, quem não tem vende.

Cássia Kiss, Victor Fasano e Cláudia Abreu

No início dos anos 1990 a autora Glória Perez levantou polêmica com a novela Barriga de Aluguel. Na trama, o casal Ana (Cássia Kiss) e Zeca (Victor Fasano), após várias tentativas frustradas de ter um filho, aluga a barriga de Clara (Cláudia Abreu) por US$ 200 mil. Ela desfaz o trato e decide ficar com a criança. Na batalha judicial, o casal alega herança genética e a moça diz que o filho era seu porque foi gerado em sua barriga. A questão causou discussões em todo o país, a autora pediu a dois juízes que dessem sentenças deixando brechas para que ela encaixasse no roteiro. O julgamento em primeira instância favoreceu Clara. O casal recorre e vence no Superior Tribunal de Justiça. Na cena final, a autora não se arriscou com a opinião pública. As duas “mães” surgem de mãos dadas, sinalizando um entendimento sobre a criação da criança antes do veredito da Justiça. A novela foi exibida em 30 países.

Países têm entendimentos diferentes Na Índia, a barriga de aluguel é permitida por lei. Por cerca de 25 mil libras muitos casais têm bebês alugando barrigas por lá. No ano passado, o jornal Daily Mail contou o drama de Chris e Susan Morrison, que em 2009 tiveram gêmeos gestados por uma indiana em Mumbai e não conseguiam registrá-los. Para a legislação inglesa, que também permite o aluguel do útero, o problema era a nacionalidade: as crianças eram indianas. Na Espanha, mãe é quem dá à luz. Na Alemanha, idem – mas já houve casos em que a Justiça decidiu pela mulher que gerou. Nos Estados Unidos, a barriga de aluguel é permitida inclusive para casais homossexuais. Na França, o Comitê Nacional de Ética condena a prática, mas não há lei específica. Na Austrália, a cessão do útero é proibida em qualquer situação, com ou sem cobrança de “aluguel”. O advogado José Roberto Moreira Filho, professor da PUC-MG e presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB de Minas Gerais, é referência na discussão sobre os limites da reprodução humana assistida no Brasil. Para ele, a falta de leis abre brechas para experimentos e até para a eugenia (controle geracional por intervenção genética). Ele é contra a barriga de aluguel paga: “Os pobres virariam meros veículos dos mais abastados, até os que não querem engravidar por motivos fúteis”. Por que não temos leis sobre reprodução assistida no Brasil? Talvez pela falta de sensibilidade, de atenção, pois essas questões estão mais do que à tona. Em Minas Gerais tivemos o caso de uma sogra que gestou o filho da nora e a família teve um grande problema para registrar, porque temos um ordenamento jurídico que diz que mãe é quem dá à luz. Essa dúvida foi, então, dirigida a um juiz de uma comarca próxima a Belo Horizonte, e ele decidiu que o registro da criança deveria observar o laço biológico, através do exame de DNA. Mas não se apoiou em nenhuma lei específica. Estamos tentando levantar hoje no biodireito normas que regulamentem isso. Quem vai ser o pai, a mãe, quais as responsabilidades da clínica de fertilização, são vários fatores a considerar. Essa falta de leis não dá uma liberdade perigosa às clínicas de reprodução? Temos notícias de clínicas aqui em BH que nunca receberam sequer uma visita de um órgão de saúde, da Vigilância Sanitária, do Conselho de Medicina. A fiscalização é precária. Por isso e pela falta de leis, estamos

sujeitos a vários absurdos, seja em pesquisas sem caráter ético, seja por infrações como o descarte de embriões, porque não há um controle de embriões produzidos. E quanto a cessão de útero e barriga de aluguel? Não existe uma lei para a barriga de aluguel. Mas é nulo qualquer contrato que tenha por objeto a pessoa humana, órgãos e partes do corpo. Se uma pessoa contrata uma barriga, não poderá levar esse contrato à Justiça. Agora, a cessão temporária gratuita do útero não é regulada por lei. Diretores de clínicas dizem que é quase impossível saber se há dinheiro envolvido em um procedimento como esse e dificilmente uma autorização é negada... Se houve dinheiro ou não, é difícil saber. Mas eu já tive notícia de pessoas que tiveram pedidos negados. Lembro um caso no Rio de Janeiro em que a pessoa que cederia o útero era empregada da família. Então houve um conflito de interesses, e o Conselho Regional de Medicina resolveu indeferir essa cessão. Se há um vínculo ou subordinação trabalhista, se há jogo de interesses e isso for apurado, há, sim, a possibilidade de o pedido ser negado. Em alguns países é permitido que se cobre por esse procedimento, como nos Estados Unidos... Sim, lá se vendem sêmen, óvulos, se aluga barriga. Mas vários países europeus vedam a prática com caráter remuneratório. Eu sou contra, porque senão as pessoas que não têm condições financeiras vão servir de meros veículos daquelas com mais condições, até as que não querem engravidar por motivos fúteis. Aí os ricos buscariam a criança ao final de nove meses como se fosse mercadoria. Não é um procedimento acessível à maioria da população. Uma fertilização in vitro custa de R$ 15 mil a R$ 20 mil. Agora, não podemos esquecer que é um procedimento médico e não deve ser procurado para fins fúteis ou até mesmo para a eugenia, que é a busca de determinadas características físicas ou a escolha do sexo da criança. Eu acho que, sendo a infertilidade uma doença e a inseminação artificial a cura, deveriam existir tratamentos no Sistema Único de Saúde. Mas ainda estamos longe disso. MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CIÊNCIA

Preciosas promessas Algumas das mais adiantadas pesquisas com células-tronco, já em fase de testes com humanos, ainda não estão prontas para se tornar tratamento à disposição dos médicos. Mas as descobertas avançam Por Cida de Oliveira

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experiência era para avaliar como reagiriam as células da medula óssea de ratos normais transplantadas para outros expostos a raios X. Mas nas autópsias os pesquisadores Ernest McCulloch e James Edgar Till, da Universidade de Toronto e do Instituto do Câncer de Ontário, no Canadá, perceberam um inchaço no baço das cobaias, e maior entre as que receberam maior quantidade dessas células. A experiência, publicada em 1960, iniciou uma revolução. Os cientistas, até então preocupados com a aparência dessas 32

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estruturas com capacidade de autorrenovação, diferenciação e proliferação, passaram a investigar seus mecanismos de ação e em que poderiam ser aplicadas. Nesses 50 anos, estudos realizados no mundo todo mostram que as células-tronco podem tratar diversas doenças em animais de laboratório, o que justifica o entusiasmo dos cientistas e os investimentos. Autoridades de saúde norte-americanas estimam haver mais de 3.000 pesquisas – experimentais com humanos – em todo o mundo. Só nos Estados Unidos são quase 2.000, na Europa chegam a 600 e no Brasil há 22 registros.

Para portadores de doenças degenerativas e incapacitantes, sem cura ou tratamento satisfatório – e para as pessoas de seu círculo afetivo –, a expectativa dos pesquisadores virou esperança. Por falta de informação, muita gente se oferece como cobaia em estudos ainda em etapas iniciais. Ou até paga por falsos tratamentos vendidos em várias partes do mundo. No ano passado, revistas científicas denunciaram o chamado turismo de células-tronco, com deslocamento de pacientes para outros países em busca de procedimentos clínicos de eficácia e segurança não comprovadas.


A má-fé de aproveitadores é tão comum que, recentemente, a Sociedade Internacional para a Pesquisa sobre Células-Tronco lançou, nos Estados Unidos, um manual para o público leigo. A publicação explica as etapas da pesquisa científica e ressalta que, mesmo na fase clínica, com testes em humanos, a terapia é experimental e não tem segurança nem eficácia comprovadas.

COMPLEXO Alexander Ulrich e sua equipe: regeneração do sistema nervoso

Há dois anos, o pesquisador canadense Timothy Caulfield encontrou na internet 32 sites que anunciavam terapias com células-tronco. Segundo o levantamento, apenas um deles identificou o procedimento como experimental e 26 o apresentaram como de rotina. Há ainda golpes como venda de medicamentos à base dessas células, como na Hungria, onde quatro pessoas foram presas no ano passado. E quem não se lembra dos três médicos de clínicas particulares brasileiras que, há cerca de quatro anos, venderam células-tronco em pó para pacientes gravemente enfermos?

REGINA DE GRAMMONT

Avanços no Brasil

Dificuldades com legislação, recursos insuficientes e até barreiras para importação de materiais de laboratório não desanimam os cientistas brasileiros. Em outubro de 2008, a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), anunciou a obtenção da primeira linhagem brasileira de célulastronco embrionárias humanas. Três meses depois, Stevens Rehen, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgou a criação, pela primeira vez no país, de células-tronco embrionárias sem a utilização de embriões – as chamadas células pluripotentes induzidas. “Os feitos trazem a independência técnica fundamental para as pesquisas e para, no futuro, fornecer material de tratamento contra diversas doenças”, diz o neurocientista. Em outro trabalho inédito e inovador, Rehen dedica-se ao estudo de mecanismos de formação de neurônios a partir de células-tronco de pluripotência induzida e embrionárias – e das consequências que o transplante pode ter no cérebro de roedores com mal de Parkinson. Como se vê, a pesquisa no país avança bem. Há testes, com humanos, de terapias para tratar doenças do coração, diabetes, acidente vascular cerebral (AVC) e silicose, doença pulmonar crônica e irreversível causada pela inalação de poeira de sílica, com-

ponente da areia usado na fabricação do vidro. O maior estudo em andamento em todo o mundo na área cardiológica é realizado por cientistas brasileiros. Com recursos do Ministério da Saúde, eles comandam o Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em Cardiopatias, que avalia a eficácia e a possibilidade de futura substituição dos tratamentos tradicionais por essas terapias no Sistema Único de Saúde. Estão incluídos 1.200 pacientes brasileiros com cardiomiopatia dilatada, cardiopatia chagásica e isquêmica e infarto agudo do miocárdio. Uma parte recebe células-tronco retiradas da própria medula óssea e outra recebe placebo. Participam mais de 40 centros de pesquisa espalhados pelo país. Segundo o coordenador Antonio Carlos Campos de Carvalho, do Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ainda é cedo para falar em resultados. “O recrutamento de voluntários é demorado porque segue critérios rigorosos. Não basta querer fazer parte. É preciso obedecer às exigências”, diz. Principal causa de morte no Brasil, o AVC destrói células cerebrais e deixa sequelas em quem sobrevive a ele. A falta de drogas capazes de evitar a morte desses neurônios ou de gerar novos motivou os estudos coordenados pela pesquisadora Rosália Mendez Otero, do Instituto de Biofísica da UFRJ. Pioneiro, seu trabalho pretende utilizar células-tronco extraídas da medula óssea do próprio paciente para produzir novos neurônios. Por enquanto, seu grupo está testando a segurança dessas células. Em 2006, seis pacientes selecionados receberam células. Não houve piora, exames de sangue não mostraram alterações nos seis meses seguintes e todos tiveram melhora neurológica. A mesma universidade está tratando experimentalmente pacientes com silicose.

Principais tipos de células-tronco n Embrionárias Retiradas do interior do embrião no quarto ou quinto dia após a fecundação, são capazes de se transformar em qualquer tipo de célula adulta. n Adultas Encontradas principalmente na medula óssea e no cordão umbilical, têm capacidade de se dividir e gerar tanto uma nova célula idêntica como outra diferenciada. São menos versáteis que as embrionárias. n Pluripotentes induzidas Em 2007, cientistas conseguiram fazer com que células da pele se revertessem para o estágio de célula-tronco. A descoberta abre caminho para inúmeras possibilidades em pesquisas. Fonte: Rede Nacional de Terapia Celular MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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O objetivo da pesquisa liderada pelo professor Marcelo Morales é deter a evolução dessa doença ocupacional que atinge cerca de 6 milhões de pessoas em todo o país. Por meio de uma broncoscopia, os voluntários recebem uma injeção de células-tronco retiradas de sua medula óssea. Estudos com animais foram bem-sucedidos. Ainda não há resultados conclusivos. Se o procedimento se mostrar seguro nessa primeira etapa, deve ser ampliado.

Diabetes

No Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto, o imunologista Júlio Voltarelli avalia a reação dos voluntários com alta concentração de açúcar no sangue ao transplante de células-tronco da medula óssea. Sua hipótese, baseada em estudos anteriores que respaldam o tratamento experimental para normalizar a glicemia, é que as células-tronco migram preferencialmente para os tecidos inflamados do pâncreas, onde o hormônio insulina é liberado. Sem ele, o açúcar presente no sangue não consegue entrar nas células, trazendo vá-

PRIMEIROS RESULTADOS Sergio Bydlowski: tratamento da insuficiência renal crônica

Pesquisas em andamento Em 2008, o Ministério da Saúde criou a Rede Nacional de Terapia Celular, formada por oito centros de pesquisas localizados em cinco estados e por 52 laboratórios selecionados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Ministério da Ciência e Tecnologia. A rede mantém um banco de estudos, espécie de panorama do que acontece pelos laboratórios do país. Alguns exemplos: n AVC, traumatismo craniano e lesão medular Na Unifesp, Marimélia Porcionatto tenta decifrar por que as células-tronco de medula óssea, depois que se transformam em células cerebrais, morrem logo que chegam à lesão. Isso impede que os tratamentos experimentais surtam os efeitos desejados. Na Universidade Federal do Pará, Walace Gomes Leal investiga o papel de mecanismos inflamatórios na proteção e formação de novos neurônios a partir de transplantes de células-tronco da medula óssea em animais com AVC. n Doença arterial periférica Na Unicamp, Joyce Maria Annichino Bizzachi avalia, em cobaias, o uso de células-tronco derivadas de tecido gorduroso na formação de novos vasos sanguíneos nos membros afetados. Como testes em humanos não obtiveram sucesso, Mauro Martins Teixeira, da UFMG, estuda como aumentar a capacidade das células-tronco na criação de novos vasos em tecidos de membros afetados. n Epilepsia Beatriz Monteiro Longo, da Unifesp, avalia em cobaias o efeito de células-tronco nos processos cerebrais que levam à epilepsia.

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n Fígado Anna Renata Krepel Goldberg, da USP, busca a obtenção de células hepáticas por meio de célulastronco do cordão umbilical. Para isso, ela precisa antes saber que animal de laboratório poderá reproduzir a insuficiência hepática exatamente como em humanos. n Joelho Na Unicamp, está sendo estudada a diferenciação e implantação de células-tronco a partir de tecido gorduroso coletado em lipoaspiração. Para observar o padrão de regeneração, os cientistas implantarão o material na área de carga de joelhos de coelhos. n Medula espinhal Carlos Alexandre Netto, da UFRS, estuda a melhor maneira de administrar células a cobaias, bem como os métodos de avaliação dos efeitos. n Ossos Na USP, Mari Cleide Sogayar coordena pesquisas de um novo método para que as células-tronco da pele e da polpa dentária possam ser usadas no reparo de perdas ou lesões ósseas. Na UFMG, equipe de Alfredo Goes estuda, em ratas com osteoporose, células-tronco dos tecidos de gordura do corpo humano como fonte alternativa para a regeneração ou formação do tecido ósseo. n Surdez Ricardo Ferreira Bento, da USP, desenvolve metodologia de investigação para padronizar procedimentos em pesquisas que possam desenvolver estratégias de uso de células-tronco na deficiência auditiva.


JAILTON GARCIA

de diferenciação neuronal e regenerar o sistema nervoso central e periférico. Em seu laboratório, ele e seus colaboradores Arthur Nery, Cleber Trujillo e Telma Schwindt mostraram a complexidade do trabalho de manipulação, cultura e diferenciação das células-tronco. Em outras palavras, como essas células são extraídas, isoladas, purificadas e expandidas até que se diferenciem em células neurais. “Já temos resultados preliminares em testes com cobaias que reproduzem problemas no nervo ciático”, explica Ulrich. Estudos com Parkinson­e epilepsia, como a parte das pesquisas, ainda estão no início. No Instituto de Ciências Biomédicas da USP, o nefrologista Niels Olsen Saraiva Câmara e seus colaboradores querem desvendar como as células-tronco da medula óssea agem para atenuar o processo inflamatório e, assim, regenerar lesões renais crônicas e agudas em modelos animais. Segundo Olsen, os trabalhos voltados a doen­ças dos rins são todos experimentais e não existem testes em humanos no Brasil. Já nos Estados Unidos há um protocolo para tratamento, também experimental, com células-tronco em pacientes com alto risco de desenvolver lesão renal aguda logo após uma cirurgia cardíaca. “Não há notícia de que algum paciente já tenha recebido o tratamento”, diz.

RODRIGO QUEIROZ

Grandes expectativas

PIONEIRO Stevens Rehen: células-tronco embrionárias sem a utilização de embriões

rias consequências. Segundo seus estudos publicados nas principais revistas internacionais, essa migração estimularia mecanismos de regeneração locais. Agora, o cientista está avaliando a segurança, o efeito terapêutico e como essas células agem. No Instituto de Química da USP, o professor Alexander Henning Ulrich coordena pesquisas que visam estudar os mecanismos

A degeneração progressiva e incurável da retina, que leva ao fechamento do campo visual, é objeto de estudos em todo o mundo. Na Universidade Federal de São Paulo, os professores Michel Eid Farah e Gustavo Castro avaliam a capacidade de sobrevivência, integração, migração e diferenciação de células-tronco humanas retiradas da medula óssea e transplantadas na retina de camundongos. Estudos preliminares mostraram boa integração e melhora, ainda que bastante limitada, da acuidade visual. Mas há muitos desafios pela frente. “Ainda não sabemos ao certo se as células imaturas implantadas são capazes de sobreviver, integrar-se ao tecido lesado, apresentar diferenciação, formar novas conexões e, dessa forma, melhorar de forma significativa a resposta visual”, explica Farah. “Outro problema é o risco de proliferação descontrolada das células implantadas, gerando tumores.” Na Universidade Federal de Santa Catarina, a pesquisadora Andrea Gonçalves

Trentin pretende avaliar o potencial das células-tronco retiradas da pele humana no desenvolvimento de novas coberturas cutâneas que auxiliem no tratamento de grandes queimados. “Para isso, preciso antes identificar as condições necessárias para a diferenciação, renovação e sobrevivência dessas células, o que está sendo feito em animais de laboratório.” Sergio Paulo Bydlowski, da Faculdade de Medicina, e Irene Noronha, do Laboratório de Nefrologia Celular e Molecular, ambos da USP, lideram pesquisas com ratos com insuficiência renal crônica. Ele conta que os animais receberam célulastronco nos rins e os primeiros resultados já estão sendo obtidos. Outros experimentos em ratos com lesão medular começarão assim que for definido se serão usadas células já diferenciadas em neurônios. Em ambas as situações­experimentais serão utilizadas células-tronco derivadas do líquido amniótico, inclusive humano. As expectativas são grandes. Os resultados preliminares com insuficiência renal são muito promissores e, teoricamente, as experiências com animais lesados na medula também são muito boas. Segundo ressalta o cientista, os avanços nessas pesquisas consistem basicamente no conhecimento sobre a biologia dessas células, ou seja, como vivem e se comportam. “Os dados experimentais em termos de implantação desse tipo de célula ainda são relativamente escassos, se bem que avançam velozmente.” Como todos os cientistas que pesquisam células-tronco, Bydlowski tem muitas perguntas a serem respondidas até saber ao certo se elas têm chances de ser aplicadas com sucesso em determinados tratamentos médicos. No seu caso, precisa saber qual a melhor idade gestacional para a obtenção das células do líquido amniótico e se a obtenção seria possível nessa idade, quais doenças poderiam ser tratadas por elas, como utilizá-las, se seria possível construir um banco de célulastronco e como armazená-las. Sem contar a necessidade de desenvolvimento de um sistema que as entregue à parte exata do corpo e as estimule a se integrar às células naturais e funcionar como elas. Enfim, os muitos questionamentos que movem a pesquisa em terapia celular no Brasil e no mundo exigem ainda um grande número de estudos. MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ATITUDE

Tinta, carinho e realidade

MAURICIO MORAIS

Blog completa um ano com notícias, relato e tiras de um pai desenhista e seu filho portador de síndrome de Down Por Rodrigo Febrônio

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m 29 de novembro de 2004, depois de horas sem notícias de sua mulher em trabalho de parto na maternidade, o desenhista e ilustrador paulistano Flávio Soares ouviu da médica responsável: “Desculpe-me se eu estiver enganada, mas acredito que seu filho seja portador de síndrome de Down”. Tomado de surpresa, ficou descontrolado. “Eu não conseguia segurar o choro nem parar de tremer.” O artista não tinha ideia do que era a síndrome de Down (SD), distúrbio causado pela existência de um cromossomo a mais nas células que provoca sérias dificuldades de aprendizado e de desenvolvimento físico e motor. Flávio passou pela fase de rejeição, de mal conseguir encarar o filho recémnascido. “Arrependo-me amargamente de ter rejeitado Logan nesse período, mas isso fez parte importante do meu aprendizado.” Contra todos os prognósticos, o pequeno Logan desde o início mamou no peito da mãe. Foi ali, ainda no hospital, que Flávio percebeu que não poderia desistir do filho. “Foram os três dias que precisei para deixar de ser um imbecil e virar um homem de verdade, com todas as responsabilidades que isso acarreta e sem achar que isso é uma obrigação.” Como pai de primeira viagem de uma criança portadora de necessidades especiais, ele saiu em busca de mais informações sobre a síndrome, mas os textos não respondiam às suas dúvidas. “Eram coisas muito técnicas, frias e com um relato muito sofrido... Eu achei que podia fazer diferente”, conta. “Mesmo sendo muitas vezes dura e cansativa, minha vida com o Logan não é e nunca foi sofrida.”

Cotidiano

Após um divórcio relativamente tranquilo, Flávio resolveu relatar o cotidiano e seus progressos com o filho. Começou, então, o blog A vida com Logan. Os relatos na internet tratam problemas e tensões rotineiras, além de conter informativos sobre a síndrome e histórias desse pai meio atrapalhado, que precisou ir quatro vezes ao mercado para comprar todos os ingredientes necessários para fazer um purê para o filho. Percebendo o lado divertido dessa nova vida, o desenhista começou, “meio sem querer”, a fazer vários rabiscos e desenhos estilizados do garoto, até que veio a ideia de contar as descobertas e a rotina da criança e dele mesmo em divertidas tirinhas, que servi-

ram como um chamariz para o blog. “Comecei a receber visitas de muita gente que, provavelmente, nunca prestaria atenção a essas questões.” Curiosamente, as histórias em quadrinhos de Logan seguem fazendo mais sucesso entre aqueles que não enfrentam problemas com o distúrbio. Flávio esperava o oposto, mas acredita que as famílias de portadores de SD têm receio de se relacionar e trocar experiências. Grande parte das situações que aparecem nesses quadrinhos é baseada em fatos reais, como as rotinas médicas, brincadeiras e avanços do garoto.

em cima do travesseiro, no colo dele”, diz o pai, todo orgulhoso. Sobre a atuação do poder público nas questões relacionadas à inclusão e aos direitos dos portadores de SD, o pai se indigna: “O Estado joga a criança com Down numa sala de aula hiperlotada, sem acompanhamento diferenciado, sem preparar os colegas de classe e professores para a nova situação... Isso não é inclusão!” Logan estuda numa escolinha particular que, para Flávio, não tem o preparo correto, mas é um lugar onde as pessoas­têm a boa vontade de buscar informações e de aceitar as sugestões e a ajuda que

Tanto na vida real quanto nas tiras, a síndrome está presente, mas não é o centro do dia a dia dele e de Logan. “Ele corre, brinca, bagunça, faz manha, vai pra escola... E tem síndrome de Down. É a única diferença.” Em março, essas pequenas histórias em quadrinhos completaram o primeiro aniversário. O criador promete uma nova fase para as tiras, que deve seguir até o fim do ano. “O legal é que agora já posso liberar a imaginação e criar situações mais exageradas no meio da brincadeira sem ter de me preocupar tanto com a reação dos leitores”, diz Flávio. As futuras tirinhas vão mostrar a gravidez da atual­ mulher do desenhista na rotina da família. Max, o novo filho do casal, nasceu em janeiro e também vai virar personagem, mas apenas em 2011. Logan tem reagido bem ao novo membro da família e toda sexta-feira, quando vai passar o fim de semana com o pai, logo procura pelo “neném”. “Ele sobe na cama, coloca um travesseiro no colo e estica os braços na direção do Max, para que o coloquemos

ele e a mãe de Logan apresentam. O garoto participa de todas as atividades da turma, fazendo as coisas do seu jeito e no seu tempo. “O mais importante é as crianças se sentirem parte do processo. Elas são muito mais capazes do que imaginamos.” A atual e ingrata batalha na vida do desenhista é travada contra o plano de saúde do filho e, por consequência, com a Agência Nacional de Saúde (ANS). De acordo com uma regra da ANS, os operadores de planos de saúde são obrigados a custear apenas seis sessões por ano de fonoaudiologia e de terapia ocupacional, muito abaixo do necessário para um portador de SD, segundo Flávio. “A operadora não libera mais sessões, já que está amparada pela ANS, e esta diz não poder tomar providências, pois a operadora está dentro da lei.” Enquanto luta na Justiça para reverter a situação, Flávio vai se virando para trabalhar, pagar as contas, cuidar de dois filhos e ainda se dedicar a narrar como é fascinante e inspiradora a vida com o pequeno Logan. MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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PERFIL

A sanfoneira caçula

CHICO PORTO/JC IMAGEM

Irmã do Rei do Baião, a forrozeira Chiquinha Gonzaga está chegando aos 85 anos e não tem a menor vontade de se aposentar Por Tom Cardoso

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sanfoneira Chiquinha Gonzaga levou três surras de sua mãe, dona Santana. As três de cinto e pelo mesmo motivo: a teima em tocar o fole de oito baixos do irmão mais velho. Hoje, “adoentada” depois de ter sido atropelada quando caminhava pelas ruas da praia de Boa Viagem, em Recife, onde mora, ela não sofre mais resistência de ninguém. A briga é com o próprio corpo. Chiquinha quer reunir forças para gravar um documentário sobre sua vida e, quem sabe, o terceiro disco de sua instável carreira. Não se deve subestimar nunca a força de uma sertaneja. Além de enfrentar a mãe e o machismo da sociedade nordestina, Chiquinha sempre carregou o peso de ser irmã do cabra mais respeitado de suas bandas, não só o rei de seu instrumento, mas o inventor do baião: Luiz Gonzaga (1912-1989). Dos nove filhos de dona Santana e seu Januário, apenas dois estão vivos: Chiquinha e Muniz, sua irmã mais nova e caçula da família, que fez a vontade da mãe e nunca se atreveu a encostar o dedo numa sanfona. “Eu sei que minha responsabilidade é grande, meu filho”, diz Chiquinha. “Não só por ser a única representante dos Gonzaga, mas também por manter vivos o forró e o baião. O que eles tocam por aí não tem nada a ver com forró: é música sem tradição, feita para mulher tirar a roupa.” Chiquinha não dá nome aos bois, mas ela se refere claramente à banda Calypso e a grupos similares, que fazem imenso sucesso misturando ritmos nordestinos com música pop. “Eles vendem o peixe dizendo que é forró, mas não é, não”, diz, encerrando o assunto. Ela só conseguiu tocar sanfona quando Luiz Gonzaga, já famoso e liderando as paradas de sucesso de Rio e São Paulo, resolveu levar toda a família de Exu para o Rio de Janeiro.

Se viajar do sertão pernambucano para Caetano Veloso e Gilberto Gil – Caetano qualquer cidade do sul do Brasil ainda hoje é regravou Asa Branca e Gil, 17 Légua e Meia. uma aventura, imagine no começo da década Com o baião de volta às paradas, a casa de de 1950. O percurso da família consumiu 18 forró do pai de Oswaldinho vivia lotada, e dias. Chiquinha faz um esforço de memória Chiquinha por um bom tempo alimentou para relembrar exatamente o dia em que pi- os três filhos com seu fole de oito baixos. sou no Rio de Janeiro. “Meu filho, só sei que foi uma emoção enorme. Luiz estava fazendo Pronde tu vai? Acostumada aos altos e baixos da carsucesso e era muito querido pelos cariocas. Essa foi nossa sorte.” De fato, quando seu Ja- reira, Chiquinha foi levando a vida. Já hanuário e dona Santana chegaram à então ca- via aposentado a sanfona quando recebeu pital brasileira, seu filho mais talentoso havia o convite para gravar um depoimento no tomado conta da cidade. Já era uma estrela, filme Viva São João, de Andrucha Wad­ um dos artistas do primeiro time da Rádio dington, lançado em 2001. Durante as filNacional (uma espécie de TV Globo da épo- magens acabou fazendo amizade com um ca), e não precisava mais ganhar a vida tocan- velho fã de Gonzagão, aquele mesmo que anos antes contribuíra para o do tango e valsas nas zonas de Disposto ídolo voltar ao trono de Rei do meretrício da cidade. Baião. Gilberto Gil insistiu para Generoso, disposto a arru- a arrumar que Chiquinha gravasse seu mar trabalho para a família in- trabalho para primeiro disco. O compositor teira, Gonzagão criou o grupo a família baiano não só produziu o álOs Sete Gonzagas, formado inteira, bum Pronde Tu Vai, Luiz?, grapor ele, o pai e mais cinco irGonzagão vado em 2002, como participou mãos, incluindo, mesmo sob de duas faixas. “Gil me ajudou os protestos de dona Santana, criou o grupo muito, muito mesmo. Ele gosa jovem Chiquinha Gonzaga. Os Sete tava mesmo de meu irmão, de Ela seguiu os passos do pai, Gonzagas, verdade”, lembra, emocionada. mestre da sanfona de oito bai- formado Apadrinhada pelo tropicalisxos, e adotou imediatamente o por ele, o ta, conseguiu agendar alguns instrumento. Fizera o certo, já pai e mais shows­pelo país. que Januário, sentindo o peso Quando a sanfoneira comda cidade grande, decidiu vol- cinco irmãos, pletou 80 anos, em 2005, seu tar com parte da família para incluindo filho Sérgio conseguiu que ela Exu. “O grupo fez sucesso por a jovem gravasse o segundo disco, Chidois meses. Meu irmão tinha Chiquinha quinha Gonzaga 8 e 80, uma feito a parte dele, ajudado, mas Gonzaga brincadeira com o número de depois cada um tinha de fazer o seu futuro”, conta Chiquinha. E o de Chi- baixos de sua sanfona (instrumento raraquinha foi ao altar. Casada, futura mãe de mente utilizado pelos sanfoneiros de hoje) três filhos, ela deixou a vida artística para vi- e sua idade. “Quando você acha que ela vai rar dona de casa. Tocar sanfona, apenas para desistir, aposentar de vez, ela se anima e o divertimento dos filhos – um deles, Sérgio, volta para a estrada como se fosse uma menina”, diz Sérgio. hoje acompanha a mãe em seus shows. Chiquinha não vê a hora de sarar das feriSó nos anos 70 a sanfoneira voltou a viver de música. O pai de Oswaldinho do Acor- das causadas pelo atropelamento – ela aindeon, afilhado de Chiquinha, havia aberto da sente dores nas costas e nos braços – para uma casa de forró no bairro do Brás, em São voltar à estrada. Em julho do ano passado, Paulo, e fez questão de convidar a comadre participou da homenagem a Luiz Gonzapara animar os bailes. Na época, o próprio ga organizada pela Secretaria da Cultura de Luiz Gonzaga enfrentava um período São Paulo. Chiquinha, representando o Rei de baixa popularidade (todos os ar- do Baião, recebeu a Ordem do Ipiranga, a tistas de rádio acabaram sendo mais alta honraria do governo do estado. “vitimados” pelo advento da “Aquele carequinha me prometeu que me bossa nova e, depois, da chamaria de novo para tocar em São Paulo jovem guarda) e aca- este ano”, diz Chiquinha, se referindo a José bara de ser resgatado Serra, na época governador. “Ele pensa que pelos tropicalistas não, mas eu vou cobrar!” MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE

Aquele time era bom Na história das Copas, algumas seleções perderam, mas são mais lembradas que as vencedoras Por Vitor Nuzzi

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omo derrotar a Hungria? Invicta havia 31 jogos, na Copa de 1954 aquela máquina de jogar bola somava 25 gols em quatro partidas. O Brasil tentou resistir, mas também foi atropelado: 4 a 2, e a peleja terminou em pancadaria. Naquela época, ainda tínhamos “complexo de vira-latas”, como definiu Nelson Rodrigues – trauma a ser superado na Copa seguinte. A rival dos húngaros na final de

1954 era a Alemanha, que na fase de classificação fora humilhada por 8 a 3. Pois os alemães não desanimaram com os dois gols que levaram em apenas dez minutos. E viraram o placar, ganhando o seu primeiro Mundial e surpreendendo os torcedores, acostumados a admirar a habilidade e a velocidade da Hungria. Assim como a Hungria de 1954, a Holanda de 1974 e o Brasil de 1982 montaram times que conquistaram o público e são lembrados


‘se’ não joga...”, observa. O Brasil acabou perdendo por 2 a 0, e a Holanda foi para a final. Ele lembra que só viu o chamado “carrossel holandês” praticamente durante a competição. “O mundo não era globalizado como hoje. Só fui conhecer o Cruyff (astro do time europeu) em 1974”, conta Rivellino, que hoje administra uma escolinha e campos de futebol society na zona sul de São Paulo. Naquela época, Johan Cruyff já fazia sucesso com a camisa do Ajax, time holandês que venceu três edições seguidas da Copa da Europa (1971-73). “Todo mundo atacava, todo mundo defendia. Em termos de evolução tática, a Holanda merecia ser campeã”, afirma o meia. Mas perdeu, lembra, para uma que também tinha bons jogadores – como Breitner, Overath e o capitão Beckenbauer – e na decisão marcou Cruyff com eficiência. Como ele gostaria que acontecesse com Pao­lo Rossi em 1982, quando o atacante italiano fez três gols e derrubou a favoritíssima equipe de Telê Santana.

MORREU NA PRAIA Johan Neeskens abre o placar contra a Alemanha Ocidental em 7 de julho de 1974: a Laranja Mecânica deu o show, mas perdeu a final

até hoje, mas não levantaram a taça. Excesso de confiança? Azar? Mistérios da bola? No caminho dos holandeses estavam de novo os imprevisíveis alemães ocidentais. Na final, a sensação do torneio, apelidada de Laranja Mecânica (referência à cor do uniforme), fez um gol antes de o adversário conseguir tocar na bola, com um minuto de jogo. Mas terminou perdendo de 2 a 1. E em 1982, a derrota da seleção brasileira para a Itália ganhou até nome: a tragédia do

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Prazer de jogar

Sarriá, referência ao estádio onde os azuis ganharam por 3 a 2 e tiraram os canarinhos da semifinal. O estádio foi demolido anos depois, para satisfação de muito torcedor brasileiro. Camisa 10 na Copa de 1974, Rivellino fala com admiração da Holanda, mas lembra que o Brasil, mesmo sem a preparação ideal, teve chance de vencer a partida no primeiro tempo, se tivesse aproveitado duas oportunidades claras de gol. “Mas o

Em 2007, Cruyff publicou em seu blog no jornal espanhol (ou melhor, catalão) El Periódico um texto que ajuda a explicar a fama do time de 1974. “Na Holanda, tentase inculcar nos garotos um conceito: aproveitar (o jogo) está acima do resultado. Não sei quem o criou, mas eu nunca vivi outra coisa”, afirmou. “Muitos creem que (a escola holandesa de futebol) nasceu no Mundial de 1974. Ali se cunharam os termos ‘laranja mecânica’ e ‘futebol total’ para definir um estilo vistoso, ofensivo e naquele momento revolucionário. Em nenhum outro Mundial se falou tanto do segundo colocado. Mas é certo que a escola holandesa se gestava fazia anos”, disse Cruyff, para quem, é claro, talento não basta. “É preciso polir o talento, e para polir é preciso jogar.” O ex-jogador Tostão, hoje comentarista, adverte: não é possível tirar conclusões com base em poucos jogos ou um campeonato, ainda mais de curta duração, como a Copa. ”Os times que agradam mesmo são os que jogam bonito. As pessoas têm de resgatar isso, inclusive os técnicos. Isso também passa pelos torcedores e pela imprensa, já que a maioria também segue essa linha (de avaliar um time com base apenas nos resultados)”, afirma o comentarista, que ao lado de Jairzinho, Gérson, Pelé e Rivellino formou a linha ofensiva da seleção brasileira MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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de 1970, exemplo de time que jogou bonito e ganhou de todos os adversários. Para ele, o fato de essas equipes (Hungria, Holanda e Brasil) serem sempre lembradas é a prova de que o público não quer apenas resultados – quer ver bom futebol. “Algumas pessoas não vão entender isso. O próprio Dunga nunca vai entender por que a seleção brasileira de 1982 é mais elogiada que a de 1994.” Atual técnico da seleção, Dunga foi o capitão da equipe que conquistou o tetracampeonato nos Estados Unidos, primeiro triunfo desde o de 1970.

Ely

Juvenal

Augusto

Tudo pode acontecer

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Baltazar

Maneca

Ademir

BRANCO DEU AZAR Até a Copa de 1950, a seleção brasileira jogava de branco. O trauma da derrota foi tão grande que fizeram um concurso para mudar o uniforme

FOTOS AFP PHOTO

Tostão também considera injusto criticar o Brasil pela eliminação em 1982 como se a seleção tivesse enfrentado um adversário inexpressivo. “As pessoas falam como se o Brasil não tivesse jogado contra ninguém. A Itália também era um time muito bom”, afirma, citando ainda o exemplo de outra “tragédia” do futebol brasileiro, a derrota na final de 1950, em pleno Maracanã: “Já vi o Zizinho (ex-jogador) dizendo em entrevista que o Uruguai era melhor que o Brasil”. Tostão chegou a definir a Holanda de 1974 como “a pelada organizada”, com marcação sob pressão, um time inovador do ponto de vista coletivo. “Quando você tem um campeonato longo, de pontos corridos, você tira a média. Agora, em um campeonato curto, com jogos classificatórios, acontece de tudo”, compara. Espaço para esse tipo de jogo ainda existe, observa o ex-camisa 9 da seleção e 8 do Cruzeiro. “O (atual) Santos não inventou esse jogo. Tem três, quatro jogadores que jogam futebol, e o técnico deu corda para eles. O Barcelona (da Espanha) também tem um jogo bonito, de bola no chão, um time agradável.” Mas, como cada jogo tem sua história, Rivellino acredita que aquele contra os italianos era um caso em que o Brasil deveria ser mais cauteloso, por ter a vantagem do empate e por ter conseguido se recuperar duas vezes, depois de estar perdendo por 1 a 0 e por 2 a 1. “O Telê não acreditou na seleção da Itália. O Paolo Rossi já tinha feito dois gols, estava em estado de graça. Ele podia ter colocado o Batista, por exemplo, só para marcar. O importante era classificar, não ganhar”, diz Rivellino. “Tem de ter o plano B”, acrescenta. “Foi um jogo, uma hora e meia, e nesse tempo tudo pode acontecer”, diz José Macia, o Pepe, ex-jogador do Santos e da

TRAGÉDIA 16 de julho de 1950: Schiaffino marca um dos gols que calaram o Maracanã


Danilo

Barbosa

Jair

Bigode

Friaça

primeira seleção brasileira a conquistar o título mundial, em 1958. Para ele, a mais brilhante de todas. “Se jogasse com a de 1970, seria fantástico. Acho que ia ser uns 4 a 4, mas a de 1958 teria um leve favoritismo”, avalia Pepe, lembrando que nem o gol marcado no início do jogo pelos suecos, donos da casa, abalou os brasileiros na decisão disputada em 29 de junho de 1958, em Estocolmo. “O Didi pegou a bola e veio com ela até o meio de campo, para acalmar o pessoal. A seleção tinha convicção de que ia ganhar. E antes do jogo os suecos olhavam o Brasil como se fossem seres do outro mundo”, recorda, observando que o time tinha “grandes líderes”, como Nilton Santos e Didi, já marcados pelo insucesso de 1954 e dispostos a tudo para vencer. Pelo menos um daqueles jogadores era mesmo do outro mundo. “Sempre falo que ele veio de Saturno, e é verdade”, brinca Pepe, referindo-se a Pelé. O jogo terminou 5 a 2, com direito a gol antológico daquele

– por acaso – camisa 10 de 17 anos. O exponta-esquerda santista lembra também da Copa de 1950, quando o Brasil, favorito disparado e jogando pelo empate, perdeu de virada (2 a 1) para o Uruguai no recéminaugurado Maracanã. “Foi uma fatalidade. O Brasil era melhor, mas o Uruguai tinha um time perigoso”, diz Pepe, que na hora da final (16 de julho), aos 15 anos, estava jogando uma pelada em São Vicente, no litoral paulista. A seleção brasileira tricampeã, de 1970, tinha não só plano B, mas o C também, caso necessário, lembra Rivellino. “Por isso, a cada jogo se apresentava melhor.” O time tinha opções. E o próprio Rivellino se tornou uma delas, meio no susto, ao passar do meio-campo, onde se destacava no Corinthians, para a ponta esquerda, embora com liberdade para se deslocar pelo gramado. No futebol de hoje, Pepe vê com prazer o time do Santos jogar – e não escapa de uma comparação ao mítico ataque que ele formou nos anos 1960 com Dorval, Mengálvio, Pelé e Coutinho. Mas com uma diferença. “Ganhamos todos os títulos possíveis e imagináveis. O Santos segurava os

DECEPÇÃO Falcão disputa com Maradona em 1982: a seleção de Telê encantou, passou pela Argentina, mas tropeçou na Itália de Paolo Rossi (à esquerda, fazendo gol em Valdir Peres) ainda na segunda fase da competição

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DE CARA CONTRA O MURO ALEMÃO A Hungria humilhou a Alemanha Ocidental no primeiro jogo da Copa de 1954, mas na final os alemães deram o troco

Mihaly Lantos

Jeno Buzansky

Jozsef Zakarias

Jozsef Toth II

Zoltan Czibor

FOTOS AFP PHOTO

Gyula Ferenc Grosics Puskas

Jozsef Gyula Nandor Boszik Lorant Hidegkuti

Sandor Kocsis

jogadores­. Eu mesmo tive propostas do Barcelona, do Milan... Hoje, não tem como segurar. Daqui a pouco eles vão embora.”

Para fazer a diferença

“Não se pode mesmo abrir mão do talento”, diz Rivellino, preocupado com a falta de opções da seleção atual, reivindicando a convocação de atletas como Neymar e Paulo Henrique Ganso, do Santos, e mesmo

de Ronaldinho Gaúcho, atualmente no Milan. “O Dunga conseguiu montar (o time) defensivamente. Mas o meio de campo é pobre”, afirma, chamando a atenção para a falta de opções do time, principalmente de jogadores com talento acima da média. “Nas Copas que ganhamos, todos os times tinham jogadores que faziam a diferença.” Que o digam os italianos. A vitória sobre o Brasil em 1982 foi tão marcante que

2010: Sonhos de vingança A vingança é um prato que se come frio, diz o ditado de origem francesa*. Mas, na hora dessa refeição, o sangue precisa estar quente com veneno. Senão, não tem graça Calma, leitor: não estou falando de vendetas familiares ou políticas, ou outras. Estou falando de futebol. Na Copa que em breve se abre, na África do Sul, nós, brasileiros, teremos muitas oportunidades para comprovar os dois lados da vingança. Podemos começar já nas disputas nos oito grupos que principiam o torneio. Ensaiemos uma perspectiva que, para mim, é obrigação de brasileiro: depois da nossa seleção, torcer pelas africanas. Claro que meu coração revolucionário diz que também deveríamos torcer pelas latino-americanas. Si, pero no mucho, me retruca o mesmo coração, sedento de vinganças. É que aí entram os uruguaios, responsáveis pela catástrofe de 1950, e os argentinos, responsáveis por nossa eliminação em 1978 após uma improvável goleada (6 a 0) num Peru desmotivado, para não usar outros adjetivos menos lisonjeiros. E também em 1990 (mas ali tínhamos um time que, cá entre nós, não merecia ir longe). Pelo menos o Brasil nunca foi eliminado por um país africano. O país mais “exótico” que nos eliminou foi a hoje finada Iugoslávia, na primeira Copa, em 1930. As eliminações pela Nigéria e por Camarões, nas Olimpíadas de 1976 e 2000, não contam, claro. A carrasca suprema do Brasil foi a França: três vezes, em 1986 (quando Zico perdeu um pênalti estratégico), em 1998 (naquela duvidosa escalação

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Kocsis marca contra o Uruguai

Por Flávio Aguiar

do Ronaldo para a final) e 2006, quando Roberto Carlos abaixou para arrumar as meias e... essa até os mais jovens lembram. Pois lá estão os franceses no grupo A, com África do Sul, México e Uruguai. Torcer pela África do Sul é um “must”, eu diria. E confesso que não ficaria infeliz se o México e o Uruguai dessem uma mãozinha. Que vem bem ao caso, porque, afinal, os franceses só se classificaram para a Copa num jogo polêmico em que o Thierry Henry ajeitou a bola duas vezes com a mão antes de dar o passe para o autor do gol decisivo. Bem, vamos adiante. A Hungria nos eliminou diretamente uma vez, em 1954, e também deu sua contribuição em 1966. Mas desta vez ela está fora. Tenhamos em nossas orações aquele fabuloso time de 54, com Puskas, Kocsis, Czibor e outros nomes complicados, e em nossas maldições o time de 66, quando eles baixaram o pau no nosso time (que jogou mal) sob o apito complacente do juiz. Mas está dentro Portugal, que também naquele 66 baixou o pau particularmente em cima de Pelé. E está no nosso grupo, o G, e vamos pegálos logo na estreia. No mesmo grupo estão a Coreia do Norte (que deu uma trabalheira enorme a Portugal em 66) e a Costa do Marfim, que, diga-se de passagem, tem um time de boa reputação. Seria o máximo se desse grupo passássemos nós e os ivoarianos (de Côte d’Ivoire, nome em francês). Outros países que nos desclassificaram uma vez: Espanha (1934) e Holanda (1974). A Espanha, com toda a sua pose, está no grupo H, onde não há africanos, mas o Chile, Honduras e a Suíça. Torcer pelos relojoeiros mais famosos do mundo é demais para mim; resta esperar que Chile e Honduras façam justiça, ainda que pareça uma parada perdida. Já a Holanda está no grupo E, convivendo com a Dinamarca, o Japão e o simpático Camarões, grande sucesso na Copa de 1990. Podemos torcer por eles e também pelo Japão, pois, afinal, no Brasil tem japonês pra ninguém botar defeito.


De 11 a 11 A 19ª Copa do Mundo, a primeira a ser realizada na África, começa em 11 de junho, uma sexta-feira, e termina em 11 de julho, um domingo. São 32 seleções, divididas em oito grupos. Metade passa para a segunda fase, e a partir daí os jogos serão eliminatórios. O Brasil estreia em 15 de junho (terçafeira), às 15h30 (de Brasília), contra a Coreia do Norte. No dia 20, no mesmo horário, enfrenta a Costa do Marfim. As duas primeiras partidas serão em Johanesburgo. A última partida da primeira fase será no dia 25, às 11h, em Durban, contra Portugal, naquele que é considerado o principal desafio da fase de classificação.

Júnior, que acaba de lançar sua biografia, observa que vários times já mostraram que jogar bonito e ganhar não são incompatíveis. Casos do próprio Flamengo do final dos anos 1970 e início dos 1980 e do São Paulo dos anos 1990 (não por acaso, de Telê). Ou do Barcelona e do Santos atuais. “O Santos vai fazer um bem enorme para o futebol, porque vai trazer à tona essa discussão, de um futebol desprendido de tanta coisa tática.”

MÃO AMIGA O capitão Thierry Henry evitou que a seleção francesa ficasse de fora da Copa da África do Sul

Prato fino Deixei para o final dois pratos refinados: Itália e Argentina. A primeira nos eliminou duas vezes, em 1938, quando tínhamos o fabuloso Leônidas, inventor da bicicleta, e em 1982, na catástrofe de Sarriá, na Espanha – nos dois casos acabou campeã. A Itália está no grupo F, junto com Paraguai,

A exemplo do que observou Tostão, o lateral lembra que a Itália de 1982 também tinha um ótimo time. “Depois fui jogar no Torino, e pude ver de perto a capacidade e a qualidade daqueles jogadores.” Quanto à derrota naquele jogo, ele resume: “Coisa do futebol, camarada. A gente estava prevenido, sabia da capacidade deles, tínhamos visto o jogo deles com a Argentina. Perdemos nos detalhes”. O próprio Paolo Rossi já afirmou que aquela era uma das melhores seleções brasileiras de todos os tempos, mas que talvez tenha pecado por excesso de otimismo, lançando-se sempre ao ataque. “A eles (Brasil) bastava um ponto para se classificar, mas jogar pelo empate não fazia parte da mentalidade daquele time, eles se sentiam superiores, mais fortes”, disse o atacante italiano ao site Quotidiano Sportivo, desconfiando que aquela derrota representou o início de uma mudança significativa, do ponto de vista tático, no nosso futebol. “Hoje, os brasileiros dão o justo valor à defesa”, disse Rossi, por ironia, um atacante. Para muitos, certamente, mais valor do que deveriam. Os times ainda buscam ajustar suas posições no campo, mas parecem muito mais inclinados ao “justo valor à defesa” defendido por Rossi do que ao “prazer de jogar acima do resultado” ensinado por Cruyff.

Nova Zelândia e Eslováquia. Torcer pelo Paraguai é obrigação de brasileiro, desde o fim da guerra em que, em parte por nossa causa e em parte pela teimosia de Solano Lopez, morreu algo como 80% da população masculina daquele país, mais milhares de mulheres e crianças. Esperar que a Nova Zelândia e a Eslováquia derrotem a Itália, tida como uma das favoritas, é coisa para santo milagreiro. A propósito, são Cirilo, são João e são Nicolau têm devotos em massa na Eslováquia, e o mesmo acontece com são José e são Pedro na Nova Zelândia. Já a Argentina... ah, a Argentina! Está no grupo B, com Nigéria (eia sus!) Coreia do Sul e Grécia. Acho covardia nossa torcer para que algum outro time se encarregue dos argentinos. Mas a gente pode torcer para que a Nigéria lhes baixe a crista, não é mesmo? Há outros times africanos que nos merecem a atenção: Argélia no grupo C e Gana no D. Poderiam nos dar o prazer de derrotar, respectivamente, a soberba Alemanha e a gélida Inglaterra. Com essas torceduras, o aficcionado brasileiro ainda estará contribuindo para, possivelmente, reparar graves injustiças históricas. É que vários desses países mencionados – Portugal, Espanha, França, GrãBretanha, Alemanha, Itália, Holanda – fizeram gato-sapato da África pela história afora e adentro. Seria um prazer ver essas seleções rebolarem ao quadrado dentro das quatro linhas, tendo de dançar de acordo com a música da “Mama África”. Claro: seria tudo apenas no plano simbólico. Mas, que seria lindo, seria! * Dentro das quatro linhas... a vingança é doce. Devemos sempre, mesmo no ajuste de contas, manter a decência e a elegância. Não precisa escabujar-se no sangue do adversário. Pode chupar de canudinho. MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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REPRODUÇÃO

deu título à autobiografia de Paolo Rossi: Ho fatto piangere Il Brasile (Fiz o Brasil chorar), lançada em 2003. De fato, ele mesmo contou que sete anos depois da Copa foi expulso de um táxi, em São Paulo, por um motorista que o reconheceu, chamando-o de “carrasco do Brasil”. Hoje também comentarista, o lateral-esquerdo Júnior, ex-Flamengo, estava no Sarriá naquele Brasil x Itália em 5 de julho de 1982. Foi ele quem, saindo da lateral para o meio, deu o passe para Falcão fazer o segundo gol do Brasil, levando o jogo a novo empate, que classificaria o time à semifinal. A movimentação era uma característica daquela equipe. “O Telê queria que existisse essa versatilidade, para que a gente pudesse envolver o adversário, sem ficar só com aquelas jogadas previsíveis”, lembra. Para ele, o segredo está na alegria de jogar, o que faz com que todos lembrem, até hoje, da Holanda e do Brasil. “É um forma de jogar que faz divertir quem joga, quem está no estádio e quem está em casa. Falar de times vencedores é fácil. A seleção italiana ganhou em 2006 com um time pragmático. Teve méritos, claro, mas com jogadores que jamais serão locomotivas, só serão vagões. Em 1982 (na seleção brasileira), havia várias locomotivas.”


VIAGEM

O charme da serra que chora

SANDRO PEROZA/CENTRO DE APOIO AO TURISTA/DIVULGAÇÃO

São Francisco Xavier, pequenino município paulista na Mantiqueira, é tranquilo, verde e organizado, pronto para casais em clima romântico ou famílias em busca de trilhas e aventuras Por Miriam Sanger

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A cidade tem dezenas de cachoeiras

POUSADA POUSO DO ROCHEDO/DIVULGAÇÃO

MIRIAM SANGER

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a “Serra que Chora”, nome que traduz o tupi-guarani Mantiqueira, brotou São Francisco Xavier. O município da região de São José dos Campos (SP) ganhou o coração de viajantes, que sempre voltam. E para muitos paulistas, cariocas e povos de outras bandas já foi adotado como segunda residência. Eles transformaram o pequeníssimo cenário urbano – com a praça do coreto, uma rua principal e algumas transversais – em um ponto de convivência com a serra que rodeia o vale onde está plantado, e por isso mesmo hoje rodeado de lojinhas e restaurantes charmosos e bares descolados com boa música, que dividem espaço com padarias e mercadinhos de produtos locais. Fora do perímetro urbano – a 60 quilômetros de São José e a 138 da capital paulista – cada estrada de terra leva a um espetáculo diferente. O município tem como vizinhos “trás-dos-montes” Campos do Jordão, Monte Verde e Joanópolis. É cor-

Cachoeira de Pedro Davi


tado por rios de água cristalina, como o do Peixe, do Roncador e das Couves, que em seu caminho das nascentes serra abaixo criam pequenas piscinas de banho e cachoeiras de diferentes alturas. A água gelada convida para um banho no verão – infelizmente também a época em que mais chove por lá. No inverno, porém, serve de paisagem: impossível colocar um dedo do pé. O terreno montanhoso, com muita área coberta pela Mata Atlântica nativa, é ideal para quem gosta de trilhas. Há diversas, de diferentes distâncias e níveis de dificuldade, por mata fechada ou pelos descampados. Todas fazem parte de áreas dos hotéis, pousadas ou fazendas e exigem a contratação de um guia.

Transformada em município em 1892, mesmo antes disso a vilinha já era usada como paragem para os tropeiros que seguiam as rotas entre Minas Gerais e São Paulo. A verve rural se sustenta até hoje e, no sábado à tarde, os jovens lotam a pracinha central enquanto um ou outro seresteiro engata no violão no bar da esquina. A oferta de hospedagens requintadas cresceu muito nos últimos anos – tem montanhas até com heliponto –, e trouxe um novo público a São Francisco. No entanto, permanecem ativas e simpáticas no centro as opções para quem apenas busca trilhas, água pura e ar fresco. Ou simplesmente sossego.

CENTRO DE APOIO AO TURISTA/DIVULGAÇÃO

IVANA GARCIA

Acqua Ride

A invasão de outros povos transformou a economia do município, que transitou da produção de leite e derivados para o promissor turismo sustentável. Tudo indica que a “lição de casa”, na condição de Área de Proteção Ambiental (APA), está sendo feita. “Somos APA municipal, estadual e federal. Ou seja, está todo mundo de olho no que estamos fazendo”, brinca Márcia Vero, carioca que visitou a região, se apaixonou e adquiriu 800 mil metros quadrados para implantar ali seu Portal do Equilibrium – que além de pousada e restaurante tem atrativos para apreciadores de esportes radicais­. São Francisco também tem várias áreas de proteção permanente, o que exige seguir leis severas no que diz respeito à ocupação do terreno, como não construir nada nos 50 metros do entorno de nascentes ou olhos d’água ou em alturas superiores a 1.800 metros. Quem quer participar da vida na região tem de aderir às leis que a protegem. A fórmula funciona e o município cresce em ritmo lento e certo.

gem grupos formados e planejamento prévio. Entre as que podem ser feitas em um dia está a puxada de São Francisco até Monte Verde, que fica só à distância de 11 quilômetros – morro acima e depois abaixo, segundo Auro Miragaia, proprietário da agência. São oito horas ao todo, das quais volta todo mundo atrapalhado, mas com sorriso de orelha a orelha. As crianças encaram as mais leves e contam ainda com a oferta de cavalgadas. São Francisco esbanja charme nos detalhes. Para quem gosta de artesanato, há um tour pelos ateliês de pintura e cerâmica de artistas que se instalaram na região. Também há spas rústicos para quem quer relaxar. Em grande parte das pousadas o leite ADRIANA LOBATE

Macaco muriqui

A única agência de turismo desvinculada das pousadas, a CAT, leva os visitantes para aventuras molhadas e também para as trilhas. As expedições com pernoite exi-

Literatura O Festival da Mantiqueira – Diálogos com a Literatura é o maior dos vários eventos promovidos na cidade. Coordenado pela Secretaria Estadual de Cultura de SP e pela Associação Paulista dos Amigos da Arte, atrai público maior do que os cerca de 600 lugares oferecidos pelas 30 pousadas de SFX. São tendas de discussão, prêmios literários e shows por toda parte. A edição deste ano, a terceira, será de 28 a 30 de maio. Arnaldo Antunes, Caco Barcellos, Ferreira Gullar, entre outras personalidades, estarão por lá. As pousadas já estavam praticamente lotadas em abril. Haja shitake para tanta gente. Até o fechamento desta edição não havia uma programação completa do festival. Informações: (11) 2627-8172.

servido é ordenhado manualmente, os pães são caseiros e as verduras, de hortas próprias. Essa tendência ao orgânico e sustentável é uma característica natural do município. Os suvenires não fogem dos queijos e sabonetes artesanais, além de bolos e broas­fresquinhas. Os artefatos que se diferenciam são as porcelanas e camisetas com a carinha estampada do muriqui, o simpático macaco que vive na região. Em extinção, ele é o maior macaco da América do Sul, e à época do acasalamento, em maio, turistas mais sortudos conseguem vê-los na Trilha da Toca do Muriqui. Os nativos garantem que ele é um tipo boa-praça, mas sofre de timidez. Outra delícia da cidade está em todos os restaurantes, vários, para todos os gostos: o shitake produzido nos sítios da região. Seu Julio Sabino dos Santos se dedica a cuidar da produção em cinco sítios. “O ar puro, a qualidade da água e o clima são perfeitos para ele”, conta, satisfeito com a colheita quase semanal. Na cidade, o negócio é se render a ele, na pizza, lasanha, truta, omelete ou risoto. MAIO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net) Eric Cantona e Steve Evets

Maha Aktar

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Descobertas Maha Aktar era diretora do canal de notícias da rede norte-americana CBS quando foi surpreendida. Ao ter recusada a emissão de uma segunda via de sua certidão de nascimento, descobriu que não nascera na Austrália. A jornalista começou uma busca para identificar suas verdadeiras raízes e descobriu ter parentesco com Ajid Singh, filho da bailarina espanhola Anita Delgado e de Jagatit Singh, um dos marajás mais ricos da Índia do início do século 20. No livro A Neta de Maharani, Maha relata sua saga e várias histórias, marcadas por amores secretos e tradições, de suas avós e de sua mãe. Ed. Primavera Editorial. R$ 45.

Conselhos de craque Eric é um carteiro que tem uma família caótica e não superou a ausência de Lily, com quem foi casado e teve uma filha. Ele se afunda em sua depressão, na síndrome do pânico que o fez abandonar a mulher, e fica ainda pior por causa dos problemáticos filhos do segundo casamento. A única pessoa que o convence a revisitar o passado e resolver seus bloqueios é o jogador francês Eric Cantona, que fez história no Manchester United e estampa um pôster no quarto do carteiro. De vez em quando Eric, o craque, aparece para Eric, o fã, para encorajá-lo a tomar atitudes. À Procura de Eric, de Ken Loach, é uma comédia, um filme de amor, de amizade e até de futebol. Nas locadoras.

Ailton Carmo, como Besouro

Milongas Ação à brasileira Reza a lenda que na Bahia dos anos 1920 viveu um capoeirista com poderes sobrenaturais contra os fazendeiros escravagistas. Besouro, interpretado por Ailton Carmo no filme homônimo, é tema de um longa-metragem de ação sobre o herói que é símbolo da luta pelo reconhecimento da cultura negra. O filme, dirigido por João Daniel Tikhomiroff, com drama, misticismo e romance, é também uma espécie de tributo à capoeira, com efeitos especiais bem hollywoodianos. A coreografia é de Huen Chiu Ku, que tem no currículo nada menos que Matrix, O Tigre e o Dragão e os dois Kill Bill. Em DVD.

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Délibáb, miragem do sul em húngaro, é título do novo disco do compositor gaúcho Vitor Ramil. De 12 faixas, seis foram feitas a partir de poemas do argentino Jorge Luis Borges e a outra metade, a partir de versos de João da Cunha Vargas, poeta popular gaúcho. As músicas, todas milongas (tradicionais da América Latina e Espanha), são em português e espanhol. Milongas de Los Morenos, com participação de Caetano Veloso, e o violão quase solo de Mango são os pontos altos desse álbum que em nada lembra o estilo caricato de seus irmãos Kleiton e Kledir.


Homenagem a Glauco Trabalhos de quase 30 cartunistas foram reunidos para homenagear Glauco Villas Boas, assassinado com seu filho Raoni na madrugada do dia 12 de março, em Osasco (SP). A exposição Fala, Panga! fica em cartaz até 30 de maio em um dos principais pontos de encontro dos desenhistas, o Pizza do Babbo, na zona oeste da capital paulista. Adão Iturrusgarai, Angeli, Caco Galhardo, Jaguar, Paulo Caruso, Ziraldo, entre outros, estão na mostra, cujo nome faz referência ao modo como Glauco chamava os colegas. A marca da exposição é o humor dos personagens e do cartunista, revelado no começo dos anos 1970 pelo Diário da Manhã, então dirigido pelo jornalista José Hamilton Ribeiro – aquele que “tirou o paranaense Glauco da fila do vestibular para Engenharia e o jogou direto para as páginas do jornal”, como informa o site do artista. Em 1976 Glauco foi premiado no Salão Internacional do Humor de Piracicaba. Na década seguinte começou a publicar na Folha de S.Paulo as tiras do casal Neuras, Dona Marta, Geraldinho, Zé do Apocalipse e Doy Jorge. A visitação é de terça a domingo, das 18h às 23h30, na Pizza do Babbo. Rua Artur de Azevedo, 1.078, Pinheiros, tels. (11) 3064-8282 e 30829065. A exposição é gratuita. A pizza, não.

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Crônica

Por Anselmo Massad

A bancada da marvada A depender dos resultados das eleições de 2010, Minas Gerais pode iniciar uma nova frente parlamentar no Congresso: a dos cachaceiros

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Anselmo Massad é jornalista da Rede Brasil Atual e um dos criadores do site Futepoca – Futebol, Política e Cachaça www. futepoca.com.br

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inguém está chamando os ilustríssimos postulantes ao Parlamento nacional de beberrões nem de irmãos-da-opa. Ocorre que o governador Aécio Neves (PSDB), de Minas Gerais, e o vice-presidente José Alencar (PRB), ambos cotados para concorrer ao Senado, não têm como negar a alcunha, como explica qualquer alambiqueiro. O termo ”cachaceiro“ aplica-se, neste caso, aos produtores da marvada. Nome também cotado, o ex-presidente e ex-governador Itamar Franco tem outros elos com a malafa. Aécio e Alencar criaram marcas próprias da molhagoela. A Mingote é apenas o rótulo mais recente da Fazenda da Mata, na cidade de Cláudio. Trata-se de uma homenagem a Domingos da Silva Guimarães, tetravô do governador de Minas, cujo retrato está no rótulo. Seu apelido era Mingote e foi ele quem reativou a atividade alambiqueira na propriedade. Consta que Aécio tem sociedade no empreendimento, fruto da união entre a família Guimarães Tolentino e a dinastia dos Neves em virtude do casamento entre dona Risoleta, pela primeira, e Tancredo, pela segunda. Até 1985, o carro-chefe era a chambirra que respondia pelo nome de Mathusalem. Se o personagem bíblico chegou a 969 primaveras, a branquinha homônima foi descontinuada depois do falecimento de Tancredo. Outras marcas de menor qualidade também são produzidas, mas sobre essas o governador nega qualquer ingerência. Já Alencar se encarrega da Maria da Cruz, produzida na Fazenda Cantagalo, em Pedras de Maria da Cruz. A proximidade da região de Salinas, no norte do estado, favorece. A propaganda boca a boca é feita pelo próprio empresário – até com garçons, segundo fontes. A

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propriedade ainda engarrafa outras três marcas – Sagarana, Caninha 38 e Porto Estrela. Assim como há diferenças políticas entre esses mineiros, as divergências também aparecem na forma de envelhecer aquela-que-matou-o-guarda. A de Aécio descansa de cinco a dez anos em amendoim. A do vicepresidente, em amburana, madeira típica do semiárido­ brasileiro. Não é à toa que Aécio ampliou a certificação de alambiques artesanais e incluiu a rapadura na merenda escolar da criançada. Mas é bem verdade que quem tornou a caninha bebida oficial do estado foi seu antecessor, Itamar Franco, que estuda concorrer igualmente ao Senado. Se tirar uma das vagas dos cachaceiros citados, também será bem-vindo à bancada da cachaça, além de instituir o 21 de maio como data comemorativa para a mata-velho. A composição da bancada da cachaça – ou dos cachaceiros – depende da formação das chapas, dos resultados das urnas e, claro, da disposição das figuras de abraçar a causa. Consta uma experiência sem grande repercussão na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Muito diferente da bancada da cana-de-açúcar e do setor sucroalcooleiro. Os mineiros envolvidos na política valorizam as golos há algum tempo. O porta-voz de João Figueiredo e exministro do Tribunal de Contas da União, Carlos Átila, abriu, depois da aposentadoria, seu alambique próprio. A Cachaça do Ministro dorme por cinco anos em carvalho ou jequitibá, a depender do rótulo – ouro e prata. Entre empresários, o baiano Emílio Odebrecht, da empreiteira que leva seu nome, e o paulista Ivan Zurita, presidente da Nestlé, também debruçam sobre uma boa pinga. São donos da Itagibá e da Do Barão, respectivamente.


atĂŠ 28 de junho pelo site:



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