ELEIÇÕES Internet e redes sociais recriam uma militância que pode ser decisiva
nº 49
julho/2010
www.redebrasilatual.com.br
APLAUSOS, SIM, SENHOR A energia de pessoas que escolheram a arte como ofício e a rua como palco VIETNÃ, 35 ANOS DEPOIS O pequenino que resistiu à fúria bélica dos gigantes ainda se reconstrói
Rafael, do Quilombo Chácara das Rosas
MUNDO MÁGICO DA LEITURA
A Arca das Letras vai ao campo plantar bibliotecas para colher cidadania AMBIENTALISTAS Impacto de barragens é destruidor. GOVERNO Sem elas faltará energia
ASSINE E RECEBA EM CASA
www.redebrasilatual.com.br/loja Receba todos os meses
Apenas R$ 50,00
Assinatura anual (12 exemplares)
NAVEGUE www.redebrasilatual.com.br no celular: m.redebrasilatual.com.br no twitter: www.twitter.com/redebrasilatual
OUÇA
De 2ª a 6ª feira, das 7h às 8h, na FM 98,9 Grande São Paulo ou a qualquer hora www.redebrasilatual.com.br/radio
Informação que transforma
Índice
Editorial
Viagem 44 Vietnã, 35 anos depois da guerra, recicla o socialismo de mercado
SEÇÕES Cartas
4
Ponto de Vista
5
Na Rede Curta Essa Dica
Golfo do México: mar de óleo, milhares de espécies condenadas e condescendência da mídia
Ah, se fosse aqui...
E M.Y. KUCINSKI
Vietnamitas trabalham no cultivo do arroz
SEAN GARDNER/REUTERS
Energia e ambiente 8 As hidrelétricas são a opção do país para suprir a demanda por energia. Mas e o impacto das construções? Um dilema para a nova década Política 16 Militância reinventada. As redes sociais dão nova cara às campanhas Mídia 20 Correspondentes comunitários, a voz e a vez das favelas na web Entrevista 22 Silvana Meireles, do MinC, fala da cultura como fonte de vida Saúde 26 Você já viu a bula da vacina que vai dar no seu filho? Seria bom Cidadania 32 Bibliotecas Rurais Arca das Letras semeiam gosto pela leitura no campo Comportamento 36 Rock, sessentão que vai longe com com aquele corpinho de adolescente Cultura 40 O ofício do artista de rua começa com sua dignidade: pode aplaudir
6 48
m março de 1989, o navio petroleiro Exxon Valdez, da companhia americana Exxon, esparramou no mar do Alasca mais 40 milhões de litros de óleo cru – há estimativas que chegam a até 150 milhões. Ficou também na casa dos milhares a conta do extermínio de animais, e dos bilhões os ovos perdidos de salmão. Não com a velocidade com que os países ricos recentemente socorreram os grandes bancos, mas duas décadas e muitas batalhas judiciais depois, a Exxon gastou alguns bilhões para limpar a sujeira que ainda hoje afeta o bioma local. No Delta do Rio Níger, macrorregião do país africano onde vivem 30 milhões de pessoas, a maioria pobre, a localidade de Bodo convive com outro vazamento, decorrente do estouro de um cano da Royal Dutch Shell (sim, o sobrenome não é estranho). Segundo reportagem doThe New York Times, nos manguezais nigerianos antes empanturrados de camarões e caranguejos hoje correm todos os anos – e há 50 anos – o equivalente ao volume derramado no Alasca. E em maio, o óleo da British Petroleum jorrado do fundo do Golfo do México também já deixou a concorrência da Exxon para trás. E ainda não parou de jorrar. Essas tragédias têm muito em comum: os danos irreparáveis aos seus respectivos biomas; empresas que não reconheceram prontamente suas responsabilidades, muito menos apresentaram planos de compensação financeira perpétua às vidas afetadas; e a assinatura de grandes empresas de capital privado solenemente mimadas pelos grandes meios de comunicação – que nem podem exigir em seus editoriais raivosos a privatização imediata; no Brasil, a mídia diária chega a ser serena ao abordar a catástrofe, como um espetáculo sem dono. Não sem razão o professor da UnB Venício A. de Lima, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto, observou recentemente sobre nossa mídia: “Estaria em andamento uma estratégia de relações públicas para escamotear de qual país é a empresa responsável pelo desastre ecológico? Onde está o Greenpeace? Onde estão O Globo, a Rede Globo, a Folha, o Estadão, a CBN e seus ‘analistas políticos’, os ‘econômicos’, os ‘apresentadores’, as ‘ONGs’, ambientalistas, verdes, igrejas, atores hollywoodianos?” De repente, fontes sempre procuradas quando o assunto é, por exemplo, a hidrelétrica de Belo Monte, sumiram dos jornais. Professor, a imprensa brasileira bem que está mesmo à procura de uma intensa sequência de manchetes indignadas. Mas como a catástrofe não é estatal, não aconteceu na Venezuela, no Irã, nem na Bacia de Campos, não será desta vez. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
3
Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Vitor Nuzzi e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Andréa Graiz Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
www.redebrasilatual.com.br
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa
4
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
Cartas Santayana
A tentativa de restaurar “a doutrina da plena igualdade política entre as nações soberanas”, defendida pela delegação brasileira liderada por Rui Barbosa na Conferência de Haia, é um dever de todas as nações que se têm como civilizadas (Diplomacia sem medo, Ponto de Vista, ed. 48). O Itamaraty, na presunção de empreender tal restauração “sob a direção pessoal do presidente Lula”, peca pelo fato de basear a ação num suposto diálogo com o indialogável presidente do Irã, uma das mais cruéis e sangrentas ditaduras existentes sobre o planeta Terra. Elizio Nilo Caliman, Brasília (DF) São Francisco Xavier
Ainda não tive o prazer de conhecer, mas de tanto pesquisar parece que já conheço São Francisco Xavier (ed. 47). Minha mãe morou lá até seus 10 anos e o maior sonho dela é retornar a esse lugar, que é um paraíso. Sou de uma cidade bem próxima, quem sabe logo matarei essa “saudade”. Aurea Cruz, Joanopólis (SP) A reportagem O charme da serra que chora (ed.47) foi muito bem feita. Sempre acompanho as matérias de viagem da Revista do Brasil. Visitei a pousada Trilha das 7 Cachoeiras, em São Luiz do Paraitinga, devido à revista. Pretendo conhecer São Francisco Xavier nestas férias. Flávia Ribeiro, Santo André (SP) Deixa com elas
A reportagem de capa da edição 47 está ótima. Nós, mulheres, batalhamos muito, mas às vezes não temos o reconhecimento merecido. Obrigado à Revista do Brasil. Neusa de Carvalho, Guarulhos (SP) Superpoderosas
Parabéns a essas superpoderosas da Bolsa de Mulher (ed. 47), estratégicas e antenadas mulheres. Mais uma vez, percebemos que quando temos organização, estratégia e disciplina o universo conspira a nosso favor. Moacir André Zamin, Porto Alegre (RS)
Piauí
Li na edição 47 diversas reportagens da maior importância, destacando-se uma entrevista com o governador Wellington Dias. Parabéns pela excelente entrevista. Sou servidor do estado do Piauí há 28 anos, na função de professor. Tudo que o governador respondeu é a pura verdade. Ele e sua equipe conseguiram colocar a administração nos trilhos. Celso Carvalho Lima, Teresina (PI) Down em quadrinhos
Flávio e Logan são simplesmente uma lição de vida (Tinta, carinho e realidade, ed. 47). Posso dizer que eu tinha um grande preconceito com relação aos portadores de síndrome de Down, mas hoje essa barreira foi transposta e já não existe mais. Leo Luz, Jundiaí (SP) Trabalho global
O que temos de globalizar juntamente com os acordos são os salários (Enfim, globais, ed. 47) e as condições de trabalho, para os trabalhadores(as) viverem – e não sobreviverem. Democracia também se faz com uma boa distribuição de renda. Jailson Jerri Nunces, S. Caetano do Sul (SP) Conteúdo
Parabéns pela capacidade de unir diferentes instituições para construir uma nova imprensa, que areja a mídia de massa brasileira com uma revista limpa, com boa imagem e de fácil leitura. Especialmente no período que atravessamos no Brasil, revistas como essa são importantes para levar ao conhecimento da nossa comunidade o que acontece no Brasil, que os jornalões, a tvzona e os revistões escondem ou deturpam. Paulo Mancini, coordenador de Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de São Carlos (SP) revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
PontodeVista
Por Mauro Santayana
Obama e o petróleo Acidente no Golfo do México é alerta sobre exploração em águas profundas. Temos de adotar procedimentos absolutamente seguros a fim de evitar acidentes semelhantes, principalmente sob a camada de sal
Q
uando os norte-americanos descobriram O presidente Barack Obama, diante do desastre os primeiros poços de petróleo em seu ocorrido no Golfo do México, encontrou oportunidaterritório, tiveram o pressentimento de de para pregar a necessidade de se mudar a matriz enerque chegava ao final a era do carvão. O gética dos Estados Unidos, mediante o uso de fontes alfóssil líquido era de muito mais fácil ex- ternativas. Não parece provável que fontes alternativas tração, bastava furar o solo, atingir as camadas impreg- de energia bastem para suprir as necessidades criadas nadas do óleo e a pressão se encarregaria de ejetar a ri- pela sociedade industrial norte-americana e em todos queza à superfície. Os custos de extração revelaram-se os continentes que seguem o seu modelo. Se a promuito abaixo da escavação das minas. Em seguida, a dução de automóveis continuar nas taxas de expansão utilização do petróleo refinado nos motores a explosão dos últimos 100 anos, será difícil encontrar nas fontes favoreceu o desenvolvimento da indústria “limpas” produção suficiente para mover automobilística e estabeleceu parâmetros Osama Bin o transporte sobre pneus. É preciso, porpara o desenvolvimento da sociedade in- Laden e a tanto, mudar o sentido e o rumo da vida dustrial dos últimos 150 anos. Os norte- Al Qaeda são na Terra. Sacrificar o conforto. O uso de americanos e ingleses perceberam, mais ar-condicionado pelos americanos só se apenas um do que os outros, que o petróleo signireduz por dois meses na primavera e por ficava poder – econômico e militar. Era pretexto. O dois no outono, queimando energia nos necessário,portanto, assegurar o controle objetivo dos demais para aquecer os ambientes no insobre suas fontes. verno ou esfriá-los no verão. EUA é se As pesquisas que se seguiram mostra- apoderar das O melhor resultado, se for possível essa ram que as maiores reservas se encontra- ricas jazidas nova forma de viver, será a paz mundial. vam sob o controle do Império Otomano, Sem a necessidade de invadir os outros de petróleo, no Oriente Médio, e no que viria a ser o países atrás do petróleo que consomem, império soviético. Era necessário ao sis- gás e lítio os EUA salvarão centenas de milhares de tema capitalista anglossaxônico dominar do Vale do vidas todos os anos – a de seus próprios tais fontes. O petróleo foi uma das razões Cáspio cidadãose a dos cidadãos do resto do munnão explícitas para a Primeira Guerra do. Mas não podemos ter muitas esperanMundial. Com a derrota do Império Otomano, ingle- ças. O poder dos lobistas do petróleo e o do Estado de ses e norte-americanos criaram os novos estados árabes Israel é muito grande sobre o Congresso e sobre os meios e ali colocaram as suas empresas exploradoras. de informação dos Estados Unidos e do mundo. Esses A guerra contra o Iraque se fez para o controle dos poderes exercem sua influência também no complexo depósitos petrolíferos do Oriente Médio. O presidente industrial-militar, que emprega milhões de cidadãos. O Bush, em raro momento de franqueza, afirmou que o presidente está sendo pressionado, agora, a mergulhar seu povo estava viciado em petróleo e, para garantir à mais fundo na aventura bélica – desta vez contra o Irã. sociedade americana o acesso, se fez necessária a ocuOutro aviso grave do acidente no Golfo do Méxipação militar. Não por outra razão, agora travam sua co é sobre a exploração em águas profundas. Temos, segunda guerra no Afeganistão. Osama Bin Laden e os os brasileiros, de adotar procedimentos técnicos absomilitantes da Al Qaeda – acusados pela queda das torres lutamente seguros para evitar acidentes semelhantes, gêmeas – são um pretexto. O objetivo é o de se apoderar principalmente na extração sob a camada de sal. Ao das ricas jazidas de petróleo, gás e lítio do Vale do Cás- que parece, Obama está disposto a mudar a legislação, pio. A ocupação militar permitiu aos norte-americanos a fim de impedir esse tipo de exploração nas costas o controle dos governos dos dois países. E não nos es- americanas. É um problema que exige nossas reflexões queçamos de que o Irã é ribeirinho do Cáspio, ao sul. técnicas, mas também políticas.
Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
5
NaRede
www.redebrasilatual.com.br
ANTONIO CRUZ/ABR
Santana do Mundaú (AL)
Áreas de risco: por quê?
A notícia de que o principal herbicida do mundo está perdendo eficácia causou preocupação. No Brasil, país que mais usa agrotóxicos, o glifosato responde por mais de 50% do mercado, e o temor é de que o substituto seja ainda mais forte. A Rede saiu na frente nessa denúncia. http://bit.ly/redebrasilatualbvBgdZ
Roupas livres
Entregue às cobras “Há denúncias de centenas de milhares de ovos de galinha fertilizados, os chamados ovos galados, que todo dia iam parar no lixo em vez de serem usados na fabricação de vacinas. Ao menos 160 mil ovos chegavam a ser entregues diariamente.” Palavras do deputado Fausto Figueira, que pede ao Ministério Público investigação sobre irregularidades que podem estar envenenando o Instituto Butantan, em São Paulo. http://bit.ly/butantan_narede
Copa do Mundo à parte, argentinos, bolivianos e tailandeses se uniram contra o trabalho escravo. A reportagem da Rede foi a Buenos Aires conferir a história de La Alameda, uma cooperativa surgida depois da crise de 2001. Em junho deste ano, o setor têxtil da entidade se uniu a um movimento da Tailândia para formar a No Chains, primeira confecção internacional com produtos comprovadamente livres de mão de obra escrava. http://bit.ly/redebrasilatualaMIwy4 6
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
TIM SHAFFER/REUTERS
Herbicida
Costureiras de La Alameda
JOÃO PERES
Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi
Em apenas seis meses de 2010, dezenas de cidades brasileiras e milhares de famílias sofreram com deslizamentos e inundações. Em geral, as populações atingidas residem em áreas consideradas de risco. A Rede Brasil Atual consultou especialistas e gestores públicos para levantar causas da formação de áreas de risco e como evitar mais mortes e perdas a cada chuva. http://bit.ly/redebrasilatual_9V7eGf
CARMEM MACHADO/FUTEPOCA
Futebol por música
LARS BARON/GETTY IMAGES FOR SONY
Dani Alves e Raul Meireles no jogo que não abalou o domínio global
A Rede Brasil Atual acompanhou o Mundial da África do Sul com o blog Copa na Rede, produzido pela equipe do Futepoca – Futebol, Política e Cachaça (www.futepoca. com.br), com crônicas, análises, humor, muita notícia séria e nada de torcida – no máximo uma secadinha. Ainda na primeira fase, chamou atenção a campanha “Cala boca, Galvão”, que inflou o Twitter num apelo para o público não ver Brasil x Portugal pela emissora, virou catarse da torcida antiGlobo e piada internacional. Graaande mobilização! Mas 69% dos aparelhos não se sensibilizaram e mantiveram o Ibope do Galvão. Ainda não foi dessa vez. E parabéns aos outros 31%! http://bit.ly/redebrasilatualgalvao
Feiura, opção filosófica
O ex-jogador Sócrates mostrou-se confiante com a seleção brasileira, mas nem por isso concordou com as opções táticas. “O futebol pode ser muito mais bonito do que as equipes apresentam”, decreta. “Tanto na Copa como nos campeonatos em geral, é uma opção filosófica de não querer jogar bonito”, cravou o pensador. http://bit.ly/ redebrasilatualSocrates Fabio Capello
Cerveja salva “God save… the beer!” O técnico da Inglaterra, o ex-volante italiano Fabio Capello, liberou a gelada, a exemplo do que ocorria em 1994 na delegação brasileira, e conseguiu fazer seu time jogar unido pela classificação para as oitavas. Mas na hora do vamos ver, a Inglaterra, terceira maior consumidora de cerveja per capita no mundo, levou a pior contra os alemães, segundos no ranking. http://bit.ly/redebrasilatualCerveja
QUINN ROONEY/GETTY IMAGES FOR SONY
Não foi dessa vez
Num país de fartura de jogadores de futebol, a convocação de uma seleção é sempre polêmica. Na música, idem. Formamos um time com 11 craques da MPB e, claro, sobrou corneta. Com Pixinguinha no gol e Tom Jobim no ataque, o time faz bonito, mas a lista da torcida daria para formar muitos outros times com quem ficou de fora. Confira. http://bit.ly/redebrasilatualmusica
A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
7
Divisor de O ENERGIA
dilema entre as necessidades energéticas do Brasil e os limites da responsabilidade socioambiental fazem da usina hidrelétrica de Belo Monte, literalmente, um divisor de águas. O empreendimento é parâmetro para futuros projetos na região amazônica, onde se encontram, segundo dados do governo, dois terços dos futuros aproveitamentos hidráulicos do país. Por isso desperta resistência entre entidades ambientalistas e ligadas à causa indígena, que veem no projeto que prevê a inundação de 500 quilômetros quadrados um atentado à fauna e às comunidades da região. Algo que, segundo as mesmas entidades, poderia ser evitado se o governo federal optasse por fontes de energia menos impactantes, como a eólica, para a expansão da matriz energética. De acordo com projeções da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para o Plano Decenal de Expansão de Energia – de 2010 a 2019 –, o setor elétrico brasileiro, que hoje responde pela produção de 109 mil megawatts (MW), precisa aumentar essa capacidade em quase 6% ao ano para acompanhar
as projeções de crescimento do país. Segundo a EPE, estatal encarregada do planejamento do setor elétrico, as usinas hidrelétricas continuarão a ser a principal fonte a atender a essa demanda na próxima década. O plano prevê a implementação de projetos que somarão mais de 35 mil MW. Dois terços dessa estimativa são constituídos por projetos já licitados ou em construção – o que abrange as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira (RO), e a de Belo Monte, no Rio Xingu (PA). A EPE projeta para 2014, com as obras já contratadas, um excedente de quase 6 mil MW de energia. Ou seja, conta-se com a execução dos novos projetos de usinas hidrelétricas para que o país assimile o crescimento dos próximos anos sem o risco de apagões. É assunto para os próximos governos. No fechamento desta matéria, os programas dos dois principais postulantes à Presidência da República ainda não haviam sido registrados. O site de José Serra (PSDB) tinha uma área de propostas destinada a colher sugestões de internautas que se cadastrassem. Na página de Dilma Rousseff (PT), a questão,
Longas e antigas desavenças Em 1975, o governo iniciou estudos de inventário do potencial hidrelétrico da bacia hidrográfica do Rio Xingu e, em 1980, os planos do chamado complexo hidrelétrico de Altamira, constituído por duas usinas: Babaquara, com capacidade de 6 mil MW, e Kararaô, com 11 mil MW. Em 1986, as duas usinas foram incluídas no Plano 2010 da Eletrobrás, que previa a construção de 165 usinas em 14 anos. Os projetos despertaram resistência. O ponto mais alto dessa reação foi o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro de 1989, em Altamira (PA). O cantor inglês Sting participou. Na ocasião, a índia Tuíra, da tribo
8
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
caiapó, dirigiu-se ao então diretor de Engenharia da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, atual presidente da Eletrobrás, e encostou-lhe no rosto o terçado – facão usado para abrir a mata. Kararaô gerou resistência especialmente por tomar emprestado, no seu batismo, o grito de guerra dos caiapós. O governo decidiu rebatizá-la de Belo Monte. Diante da pressão contrária aos empreendimentos, o Banco Mundial negou-se a financiá-los, assim como qualquer projeto de hidrelétrica na Amazônia. Belo Monte sairia da gaveta em 1994, remodelado, desacompanhado de Babaquara e com uma área de alagamento menor, um
terço do projeto original, excluindo parte da área indígena. Após o apagão de 2001, o projeto da hidrelétrica foi incluído em um pacote emergencial que continha outros 15, com a missão de garantir segurança energética ao país. O projeto não decolou por conta da grande resistênciaque voltou a provocar e uma batalha judicial que se arrastou por meses. Reabilitada pelo governo Lula, a usina, assim como as de Jirau e Santo Antônio, passou a ser vista como capaz de conferir maior segurança energéticaao país, em um cenário em que se projeta a manutenção de índices elevados de crescimento econômico.
de águas
IMPACTO Vista aérea do Rio Xingu, no local onde se prevê a construção da hidrelétrica de Belo Monte
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
RICARDO MORAES/REUTERS
De um lado, a opção pelas hidrelétricas como forma “limpa” de produzir a energia necessária ao desenvolvimento. De outro, movimentos exigindo a busca de alternativas sustentáveis aos impactos das construções de barragens. Esse será um dos grandes embates da próxima década Por Eugênio Melloni
9
citada superficialmente, menciona a proteção ao meio ambiente “reduzindo o desmatamento e impulsionando a matriz energética mais limpa do mundo... desenvolvendo nosso potencial hidrelétrico”. O diretor de Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás, concorda que o desenvolvimento do país passa necessariamente pelas construções de novas hidrelétricas. “A princípio, sou a favor da construção de Belo Monte, mas as condições de vida na região são muito precárias. Há a necessidade de se chegar a um acordo, porque a questão das terras indígenas é um fator complicador”, pondera.
Polos opostos
megawatt-hora gerado: R$ 78. O consórcio é formado pela geradora federal Chesf, do grupo Eletrobrás (com 49,98% de participação no empreendimento), com outras oito construtoras privadas. Projetada com uma capacidade instalada de 11,2 mil MW, Belo Monte deverá exigir investimentos de R$ 25 bilhões. A expectativa do governo é a de que a primeira máquina geradora comecea operar em 2014. A quantidade de questionamentos ao projeto, arrolados por ambientalistas e entidades de defesa das populações indígenas, é enorme. “O projeto da usina provocará um enorme impacto, direto e indireto, ao meio ambiente”, prevê Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de energia do Greenpeace Brasil. A usina, segundo ele, mudará o fluxo do Rio Xingu, afetará a navegação e limitará o deslocamento das comunidades indígenas que têm na canoa o seu meio de transporte. A mudança no fluxo também afetará a vida do rio ao alterar a velocidade das águas, com impacto nas espécies de peixes.
CAIO CORONEL/ITAIPU BINACIONAL
Belo Monte obteve a concordância do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no início deste ano. A licença prévia foi condicionada ao cumprimento de 40 exigências mais uma
contrapartida de R$ 1,5 bilhão para efeito de compensação dos impactos decorrentes da construção. No setor elétrico e no governo, a usina é considerada vital para garantir a segurança energética e proporcionar uma energia considerada barata para a população, dando suporte ao forte ritmo de crescimento econômico experimentado pelo Brasil. O governo considera que, em remodelações realizadas nos últimos anos, o projeto da usina se tornou mais palatável em relação à questão ambiental. Houve redução significativa do tamanho do lago da usina, considerada pela administração federal uma alternativa limpa para a ampliação do parque gerador brasileiro, em uma conjuntura recente marcada pela expansão da geração termelétrica à base de derivados de petróleo, poluente e emissora de gases de efeito estufa. A usina no Rio Xingu passou a se tornar realidade com a realização do leilão de sua concessão, no último dia 20 de abril. O Consórcio Norte Energia foi o vencedor por oferecer o lance com o menor custo do
CAUSA E EFEITO Itaipu, assim como Tucuruí, Santo Antônio e Jirau, marcam a história do Brasil pela contradição entre a perspectiva do avanço econômico e tecnológico e a transformação socioambiental. Estima-se que o lago de Itaipu causou o êxodo de 42 mil pessoas
10
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
RICARDO MORAES/REUTERS
POLÊMICA Integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens fazem protesto na Esplanada dos Ministérios, em Brasília
Vida transformada Há quase quatro décadas, o Brasil enfrenta o embate entre ampliar seu potencial energético e conservar a identidade cultural de suas populações Por Fabíola Perez
O
caminho é longo e, muitas vezes, percorrido com a ajuda de um barquinho. Eles vão remando e deixando para trás as águas escuras dos rios da região Norte até chegar às cidades mais próximas de suas vilas e povoados. E é assim que, desde novembro, os ribeirinhos se esforçam para participar das audiências públicas promovidas pelo Ministério Público Federal sobre a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, região de Altamira (PA). O projeto suscita divergências há mais de 20 anos. “Os problemas causados durante essas construções são de várias ordens”, alerta Francisco Hernández, um dos coordenadores do painel de especialistas que examina a viabilidade de Belo Monte. “Os canteiros trazem um contingente de trabalhadores muito grande para as cidades, o que tem gerado aumento de criminalidade, prostituição, violência, tráfico de drogas. E a interrupção no curso dos rios provoca o alagamento das terras agricultáveis e das regiões em que vivem as populações ribeirinhas”, afirma Hernández. Segundo estatísticas do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o número de pessoas que já passaram por algum tipo de deslocamento em consequência de aproveitamentos
hidrelétricosjá supera a marca de 1 milhão. Esse fenômeno traz resultados paralelos ao desenvolvimento previsto. Itaipu, Tucuruí, Santo Antônio e Jirau são nomes que marcam a história do Brasil pela contradição entre a perspectiva do avanço econômico e tecnológico e a transformação socioambiental nele implicada. Em 1973, foi assinado o tratado que deu origem à usina de Itaipu, negociado entre Brasil e Paraguai havia uma década. A Itaipu Binacional é a empresa que gerencia a maior hidrelétrica do mundo. Naquela época a legislação ambiental não estava consolidada. A obra não contou com devidos estudos de impacto e, até entrar em operação em 1984, desencadeou uma série de implicações e transformou o perfil populacional da região. Se atraiu 40 mil trabalhadores, por outro lado estima-se que a área alagada, de 1.350 quilômetros quadrados, representou o êxodo de 42 mil pessoas. Dali surgiram as primeiras mobilizações que mais tarde dariam origem ao Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (Mastro) e também ao MAB. “Quando ribeirinhos recebem a notícia de que têm de sair da terra onde passaram toda a vida percebemos que, principalmente os mais idosos, depois de deslocados para grandes centros urbanos, não demoram muito a falecer”, relata Océlio Muniz, dirigente do MAB.
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
11
RICARDO MORAES/REUTERS
INCERTEZA Em Altamira as opiniões sobre Belo Monte se dividem. Alguns acreditam em benefícios, mas a cidade pode acabar como Tucuruí
Segundo ele, o que começou apenas como uma luta por indenizações evoluiu para o questionamento sobre a construção das barragens e por um outro modelo energético. Para Muniz, no momento em que foram construídas, as hidrelétricas eram imprescindíveis. Mas acabaram ficando apenas a serviço do capital. “Em Itaipu, existem famílias que até hoje vivem sem energia elétrica morando embaixo dos linhões da usina”, ressalta, observando que a mobilização social e a melhoria da legislação ambiental – que acompanharam a democratização do país – provocaram uma mudança no tratamento e na interpretação das informações.
Imensidão de empregos
Ela nasceu no Maranhão. O pai era agricultor e a mãe, quebradeira de coco. “Saí da minha cidade para Tucuruí (PA) com 22 anos em busca de uma oportunidade. Tinha uma propaganda muito grande de que era fácil arrumar alguma coisa por lá”, conta Euvanice de Jesus Furtado, atingida indiretamente pela construção da hidrelétrica no Rio Tocantins, hoje coordenadora de Educação do MAB. “Quando cheguei vi que era mentira. As barragens já tinham sido construídas e grande parte dos empregos tinha sido gerada na construção.” A maior usina totalmente brasileira, a 400 quilômetros de Belém, foi concebida para ajudar no desenvolvimento econômico da região Norte. Mas suas obras (1976-1984) reproduziram o mesmo inchaço populacional pelo qual passara o oeste do país com Itaipu. Tucuruí, que tinha 8 mil habitantes, está com quase 100 mil. “O povo costuma dizer que temos a divisão do céu e do inferno, porque as anti-
12
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
gas vilas de operários conservam o nível superior de infraestrutura que conquistaram nos anos da construção, têm ar-condicionado, saneamentobásico e casas que parecem mansões”, comenta. Euvanice diz que 300 famílias moram à beira do rio, convivendo com problemas decorrentes da falta de condições para se adaptar à vida urbana. Com 28 anos, sem conseguir arrumar emprego nos arredores da hidrelétrica, ela foi tentar trabalho nas recém-criadas áreas urbanas. “Eu não tinha estudado pra trabalhar por um prato de comida, ou trabalhar o dia inteiro em uma lojinha pra ganhar meio salário mínimo.” Não tardou para ela começar a atuar no MAB, ajudando as comunidades ribeirinhas a ficar por dentro dos debates de temas que as afetavam. E os avanços para a região? Euvanice responde que não foi beneficiadacom energia nem com emprego. “Eu não perdi minha propriedade, mas estou com problemas seriíssimos porque moro perto da região das eclusas do rio.” Em relação às pessoas que tinham casa na área alagada, ela conta que a Eletronorte realocou a população para um local sem nenhum tipo de saneamento, em que não conseguiram ficar por conta dos mosquitos. “É o caso de ribeirinhos que passam por dois ou mais reassentamentos.” Fornecendo quase toda a energia consumida nos estados do Pará, Tocantins e Maranhão, Tucuruí representa um marco para a produção energética brasileira, e dois períodos econômicos distintos. “Se antes nosso inimigo era o governo federal, hoje são as multinacionais. Antes você sabia com quem estava negociando, agora a gente não conhece quem está por trás do processo”, diz Euvanice, para quem ocorrerá o mesmo em Belo Monte.
alerta feito pelo Cimi, contudo, é a possibilidade de o alagamento a ser provocado pela usina causar um genocídio. “Há indícios da existência de índios isolados na região. Qualquer obra que se faça coloca em risco a existência desses povos”, afirma o secretário-adjunto. O organismo estima que existam em todo o país cerca de 60 povos ainda não contatados. O Cimi questiona na Justiça a construção de Belo Monte. “A realização de projetos como a hidrelétrica em terras indígenas deve ocorrer se for caracterizado o relevante interesse da União. Até o momento, contudo, não existe lei que determine o que é esse relevante interesse da União”, argumenta Feitosa. Ele observa que o Brasil é signatário da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que qualquer obra a ser realizadaem terras indígenas deve passar por consulta aos povos que a habitam. Segundoele,a Funai realizou reuniões no Xingu e o governo concebeu que as consultas foram realizadas, mas teriam sido feitas
de forma a simplesmente chancelar o projeto. “O que deveria ser explicitado são os outros projetos que vêm por aí. São mais de 300 hidrelétricas previstas para a Amazônia”, acrescenta. “Esses projetos provocarão um impacto enorme.”
Fio d’água
Segundo os técnicos do governo, o formato final do projeto de Belo Monte é tratado como “o possível”, ou seja, embutiu características – o formato fio d’água – que reduziram o seu impacto ambiental e também a sua capacidade de produção de energia. Maurício Tolmasquim, presidente da EPE, admitiu essa condição em audiência realizada no Senado em meados de junho, quando afirmou que a quantidade de famílias a serem deslocadas (4.500) é pequena, em comparação a outros projetos, e que as condições de moradia a serem oferecidas serão muito melhores que as palafitas em que viviam. “Vimos isso na usina Jirau, em que foram oferecidas às famílias deslocadas ótimas casas, com água encanada, energia etc.”
DIVULGAÇÃO MAB
Haverá desmatamento direto, para a construção do lago, e indireto, resultante da expansão da população e da atividade econômica principalmente em Altamira, o maior dos municípios abrangidos pela usina. Com o fluxo de pessoas em busca de trabalho, as cidades da região incharão, prevê Baitelo. Isso provocará crescimento das necessidades de serviços e produtos que também provocarão impacto na paisagem da região. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também teme um impacto semelhante ao sofrido no município de Salgueiro (PE), com a forte migração provocada pelas obras de transposição do Rio São Francisco. “A migração veio acompanhada de drogas, prostituição e outras formas de degradação social”, diz Saulo Ferreira Feitosa, secretário-adjunto do Cimi. A usina afetará ainda o cotidiano das comunidades indígenas locais. “São 11 os povos que serão afetados pela formação do reservatório da usina ou pela grande corrente migratória”, diz Feitosa. O mais grave
DESORDENADO Famílias moram à beira do rio em condições precárias na cidade de Tucuruí, que tem a maior usina totalmente brasileira, concebida para ajudar no desenvolvimento econômico da região Norte, mas cujas obras causaram inchaço populacional
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
13
Distâncias enfrentadas
Não é qualquer um que teria disposição para sair do Rio Grande do Sul para o extremo Norte brasileiro. No início de 2010, Rondônia foi o destino de Elias Paulo Dobrovolski. Filho de uma família atingida pelas barragens construídas no Rio Uruguai, em Itá, Elias, 20 anos, conheceu o MAB há três. “Simpatizei com a causa. Agora me pediram para reforçar a equipe do Norte do país. Hoje vivo em Porto Velho ajudando as comunidades ribeirinhas.” O ce-
Hidrodependência A matriz elétrica brasileira soma 109 mil megawatts (MW), mais de 70% provenientes de usinas hidrelétricas, incluídas as pequenas centrais (PCH). O volume gerado pelas termelétricas – à base de poluentes como gás, óleo combustível, carvão e óleo diesel, que emitem gases de efeito estufa – corresponde a 25% da matriz.
Usinas termonucleares
Usinas eólicas
Desproporção
Usinas termelétricas
devidoaos custos que a formação de reservatórios propiciam aos empreendedores e ao rigor do processo de licenciamento. O diretor de Regulação da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace), Luciano Pacheco, nega a acusação recorrente entre os ambientalistas de que os grandes consumidores de energia e os autoprodutores serão os beneficiados pelos preços mais baixos da eletricidade a ser produzida por Belo Monte. Pacheco afirma que 70% da energia gerada pela usina será destinada ao mercado regulado – principalmente os consumidores residenciais –, 20% para os autoprodutores e 10% para os consumidores livres, os grandes consumidores industriais. O valor estabelecido em leilão será praticado para o fornecimento ao mercado regulado. “Não foi estabelecido ainda o valor para o mercado livre e para os autoprodutores”, diz ele. A expectativa é de que a tarifa a ser estabelecida para o mercado livre seja superior justamente para viabilizar a oferta de energia mais barata para o mercado regulado.
Usinas hidrelétricas
O presidente da EPE afirmou também que Belo Monte permitirá a melhoria do sistema elétrico interligado nacional ao possibilitar a complementação da produção de energia de acordo com os diferentes regimes pluviométricos. Segundo os técnicos do setor, enquanto a hidrelétrica, assim como as demais usinas da região Norte, estiver no período de chuvas, produzindo no máximo de sua capacidade, as usinas do Sudeste/Centro-Oeste estarão na seca. Essa complementaridade é o que aperfeiçoaria o sistema interligado nacional. Tolmasquim tem observado que as pressões contra os projetos de hidrelétricas acabaram por atrasar ou inviabilizá-los, o que contribuiu para que o governo federal fosse obrigado a realizar leilões de usinas termelétricas a diesel e a óleo combustível para garantir oferta de energia elétrica no curto prazo. “O mercado está crescendo e o sistema elétrico precisa de mais usinas”, defende Silvio Areco, da empresa de consultoria Andrade & Canellas. Ele destaca, porém, que a predominância de projetos de usinas fio d’água nos últimos anos é preocupante
72,01%
25,02%
1,84%
0,73%
Fonte: Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
nário fica no curso de um dos principais afluentes do Amazonas, o Madeira, nas construções de Santo Antônio e Jirau. Coordenadas pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (Enersus), as obras são consideradas fundamentais para o suprimento energético no Brasil a partir de 2013 e figuram na lista das mais importantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Estima-se que a construção injete na economia de Rondônia mais de R$ 40 milhões em seis anos, elevando Porto Velho a cidade
O que dizem as empresas Todo grande empreendimento gera impactos socioambientais. É sob essa avaliação que a superintendente de Meio Ambiente da Eletronorte, Silviani Froehlich, analisa a relevância das construções de grande porte e o período posterior às obras da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. No entanto, diz, esse processo não acarreta a perda da identidade cultural de populações locais. “A Eletronorte criou junto à Funai o Programa Parakanã, considerado modelo de preservação histórica”, afirma. De acordo com a empresa, em 1986 eram 247 índios e em 2009 já se contabilizavam 784. Em relação aos reassentamentos, Tucuruí precisou realocar 4.407 famílias. Silviani admite que, nas primeiras fases da obras, algumas foram assentadas em regiões de fá-
14
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
cil proliferação de mosquitos em virtude da água parada nas áreas de construção. Entretanto, ela ressalta que desde 2003 a Eletronorte decidiu rediscutir todos os processos que já estavam juridicamente solucionados: “Eles foram simbolicamente reabertos para todos os moradores atingidos e que não se sentiram contemplados”. No caso do debate sobre a construção de Belo Monte, a gerente Tereza de Rozendo Pinto, do Departamento de Responsabilidade Social e Projetos com a Sociedade, da Eletrobras, afirma que há um canal de discussão com a sociedade. “Ocorreram quatro audiências públicas, em Belém, Brasil Novo, Vitória do Xingu e Altamira, nas quais compareceram cerca de 8 mil pessoas que puderam
exporcríticas e reivindicações.” Sobre o impacto das alterações ambientais na vida dos moradores, Tereza afirma que para preservar o bagre será usada uma tecnologia que há mais de 30 anos foi implantada em Itaipu, com as devidas adaptações e que, no projeto de construção, está garantida a vazão mínima do rio para que a atividade pesqueira seja mantida. Em Rondônia, o consórcio Enersus informou que reuniu profissionais para participar da primeira reunião do grupo de trabalho indígena da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia. De acordo com a empresa, interagir com a sociedade é muito eficiente e o desgaste é menor quando os interessados se reúnem para debater o que será posto em prática.
RICARDO MORAES/REUTERS
AMEAÇA Há 30 anos a população ribeirinha e indígena do Xingu convive com a possibilidade de uma mudança radical de costumes
de médio para grande porte. Elias já sente diferenças. “Com mais capital sendo gerado na cidade, o comércio e a malha viária estão sendo beneficiados”, observa. Por outro lado, há os problemas recorrentes. “Diferentemente do Sul, as empresas chegam com mais truculência para abordar a população, sem possibilidades de diálogo”, sinaliza. “São lugares que apresentam uma série de dificuldades, mas por acreditar no poder da mobilização social conseguimos abrir um canal para negociar”, enfatiza Elias. Trabalhando de segunda a domigo ao lado das comunidades atingidas, a mobilização se dá pela garantia de que as comunidades terão reassentamento de qualidade. Embora os alagamentos das regiões próximas ainda não tenham ocorrido, alguns povoados já tiveram de ser deslocados em função do canteiro de obras, como as populações de Teotônio e Mutum Paraná. “Essas pessoas trabalharam a vida inteira com pesca, extrativismo e garimpo, não têm formação para trabalhar na indústria. Como vão conseguir emprego nas áreas urbanas?”, questiona. Com 90% de trabalhadores vindo de fora do estado, aumentam os casos de malária e dengue na região. Elias diz que as obras estão a todo vapor e que o governo espera reduzir em 33 meses o tempo de execução da Usina de Jirau. “O pensamento de que é possível construir sem destruir não existe. Um exemplo bem simples, o bagre, que é base de alimentação e de renda para muitas famílias, vai deixar de existir porque é um peixe de águas correntes, não se reproduz em águas paradas”, explica. O jovem não pretende se afastar da luta social: “Meu sonho é estudar Direito e continuar praticando minha militância, seja no Rio Grande do Sul ou aqui”.
O rio e a modernidade
Moisés da Costa Ribeiro, 37 anos, articulador do MAB, vive na região de Altamira, próxima às futuras obras da Usina de Belo Monte. Para ele, um dos impactos mais importantes, e pouco levado em consideração em todos os debates sobre o futuro da comunidade ribeirinha, é a perda do contato com o rio: “O envolvimento sentimental com o rio é esquecido e, para eles, não há dinheiro ou indenização que substitua o contato, o convívio”. Com o objetivo de ser a terceira maior hidrelétrica do mundo e com uma produção estimada em cerca de 11 mil megawatts (MW), Belo Monte também é uma das principais obras do PAC. As áreas inundadas estarão localizadas nos municípios de Vitória do Xingu, Brasil Novo e Altamira. Moisés diz que o futuro dessas comunidades é um filme já visto. “Quantos estados já sofreram consequências de ter suas comunidades deslocadas, as estruturas familiares totalmente alteradas?”, enfatiza. “Com o incentivo às construções de grande porte, a perda da identidade cultural é cada vez maior e com maior frequência”, acrescenta. Para ele, que deixou o interior do Pará aos 17 anos e passou a viver com o irmão em Belém para continuar os estudos, a energia a ser produzida por Belo Monte não seria destinada ao estado. “Quem precisa dessa quantidade de energia são as grandes empresas produtoras e consumidoras. As famílias que perderam suas propriedades não vão ser recompensadas com o aumento do potencial. Cabe a nós levar as informações necessárias e, acima de tudo, estimular a participação das comunidades, até porque essas pessoas não se incomodam em pegar todos os dias seus barquinhos para isso.”
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
15
Ela pode MONTAGEM COM FOTOS DA AGÊNCIA BRASIL
POLÍTICA
140 TOQUES Noticiário diferenciado sobre os duelos eleitorais das próximas semanas você encontra em www.redebrasilatual.com.br. Siga também via Twitter
16
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
decidir Na internet, mais que leitor ou espectador, o cidadão comum pode produzir e espalhar informação e movimentos Por Vitor Nuzzi
D
ecisões tomadas na Justiça eleitoral antes mesmo de a campanha começar revelaram que uma nova frente de batalha ganha importância entre os partidos e os eleitores. Intervenções tanto de apoiadores de Dilma Rousseff como de José Serra na rede mundial de computadores puseram o Tribunal Superior Eleitoral e o Ministério Público Eleitoral em posição de alerta. “É, sem dúvida, o maior espaço já concebido para o debate democrático”, declarou o ministro do TSE Henrique Neves. “Isso, porém, não significa dizer que em nome dessa liberdade de expressão tudo pode ser estampado.” A julgar pela demanda da Justiça eleitoral, a web sinaliza que não será coadjuvante. Sites, blogs e redes sociais, como Twitter, Facebook e Orkut, darão vez e voz a quem quiser driblar a propaganda e as pautas da mídia convencional. Com maior acesso das pessoas a informações, terá mais força quem demonstrar ter o melhor “produto”. No caso norte-americano, o uso da web alvoroçou a campanha de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos, sobretudo a competência do estrategista Ben Self, que coordenou o uso das ferramentas digitais. Mas antes de tudo Obama ganhou por ser Obama, uma alternativa diferenciada para suceder à administraçãodesastrosa de Bush. Mais do que um espaço de informações confiáveis, a internet já mostra seu poder mobilizador. Para se ter uma ideia, uma pesquisa recente apontou que os EUA têm 17 milhões de seguidores do Twitter, 63% deles com ensino superior, majoritariamente entre 25 e 34 anos. E oito em cada dez pesquisados disseram preferir tuitar a assistir à TV ou navegar na internet.
A legislação determina que “é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores, internet, assegurado o direito de resposta”. As doações financeiras por pessoas físicas, via web, também são permitidas. O professor Juliano Borges, do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), acredita que a influência da internet no processo político ainda é bastante discutível, mas crescente. A TV, diferencia Borges, caracterizase pela transmissão maciça, verticalizada, enquanto a internet tem arquitetura mais horizontalizada. “Já existem blogs independentes, que comentam política, repercutem e operam nesse sistema. É horizontal e também replica nas redes sociais, podendo concorrer com os blogs de jornalistas que estão em portais empresariais”, analisa o professor.
Teoricamente, qualquer pessoa pode criar um blog ou página na internet. Em muitos casos, essa preocupação torna-se coletiva e a internet se converte em espaço de serviço público e debate. Na Câmara Municipal de São Paulo, por exemplo, a curiosidade motivou um grupo que há 23 anos acompanha as atividades. “Começou numa reunião em que as pessoas começaram a falar de política e a se perguntar como as leis eram feitas”, conta Sonia Barboza, coordenadora do Movimento Voto Consciente (www.votoconsciente.org.br). Na primeira ida de cinco senhoras à Casa, elas quase foram expulsas. Hoje acompanham habitualmente pautas e projetos. O site da ONG recebe aproximadamente 15 mil visitas por mês. Em período de pico, como nas eleições, podem chegar a 50 mil. Sonia observa que as pessoas dão atenção quase exclusiva às eleições para cargos executivos, como presidente, governador e prefeito, mas deixam de lado os legislativos, responsáveis pela aprovação dos projetos.
A campanha pela internet n Propaganda é permitida a partir de 6 de julho n Pode ser feita em página do candidato, do partido ou da coligação, por meio de mensagens eletrônicas para endereçados cadastrados gratuitamente e por meio de blogs, redes sociais e “sítios de mensagens instantâneas e assemelhados” n As mensagens eletrônicas deverão dispor de mecanismo que permita o descadastramento pelo destinatário, o que deve ser feito em 48 horas n Endereço eletrônico do candidato ou do partido/coligação deverá ser comunicado à Justiça Eleitoral n Propaganda eleitoral paga é proibida n Mesmo gratuitamente, a propaganda não pode ser feita em páginas de pessoas jurídicas, oficiais, ou hospedados por órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta, municipal, estadual ou federal n Também é proibida a venda de cadastro de endereços eletrônicos n Pessoas físicas podem fazer doações financeiras pela internet
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
17
Antecipando-se às iniciativas parlamentares – ou à falta delas –, no Rio Grande do Sul, três amigos criaram um blog (www. promessasdepoliticos.com.br/blog) para listar promessas de candidatos durante a campanha. “O conceito de promessa aqui é muito simples: tudo aquilo prometido, planejado, proposto ou pensado pelos candidatos que pode ser cobrado ao longo dos quatro anos no cargo”, explicam no blog João Pedro Rosa e Phelipe Ribeiro, estudantes de Publicidade e Propaganda, e Willian Grillo, formado em Administração/Marketing. O trio coleta notícias divulgadas nos meios de comunicação e recebe colaborações de fontes consideradas confiáveis. “A colaboração ainda não está no nível que desejamos, mas a cada dia a rede em torno do blog se expande. No início eram apenas amigos que contribuíam, agora já recebemos indicações de promessas de diversos estados. Após a Copa do Mundo devemos voltar com um layout diferente, instigando o público a participar mais”, diz João Pedro, claro, por e-mail. Eles costumam conversar muito e expor suas divergências. “Às vezes são discussões que duram dias, mas sempre abertas a argumentações”, garante. Para os três, a internet é um meio fantástico de livre expressão e divulgação, “mas ainda sem popularidade significativa na área da política”, o que pode ser atribuído, avaliam, a um processo de maturação desse assunto no Brasil.
“Vamos acompanhar o desenrolar de cada uma das promessas dos eleitos. A ideia é que nas próximas eleições isso sirva como uma métrica de avaliação para os candidatos, oferecendo uma ferramenta objetiva para o eleitor utilizar na sua decisão”, prevê o estudante. “Nós mesmos já tivemos mudanças de opiniões sobre os candidatos. Se conseguirmos ajudar uma pessoa que seja a qualificar seu voto baseado nas promessas, nosso objetivo será cumprido.”
ATITUDE Phelipe, Willian e João Pedro: registro e cobrança das promessas
Energizar a militância
O professor de Comunicação e Estratégia Marcelo Coutinho, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), vê na internet um instrumento importante para fornecer alternativas às encontradas na mídia tradicional e “energizar o trabalho dos militantes”. Segundo ele, isso aconteceu na campanha de Obama. Também foi decisivo para a aprovação da lei da Ficha Limpa. “Mas do ponto de vista da conquista de votos, a internet depende do acesso dos eleitores, que no Brasil ainda é baixo se comparado com o que acontece nos Estados Unidos e Europa, e do grau de interesse na eleição, ainda uma incógnita”, diz. Coutinho observa que, em 20 anos, essa é a primeira eleição sem a presença de Lula, ao mesmo tempo que aparenta ser “uma eleição de continuidade, porque não existem propostas de uma ruptura radical do modelo vigente por parte de Dilma nem por parte de Serra”. Ele acredita que o im-
pacto da web será maior nas campanhas legislativas do que nas proporcionais. “Os candidatos a deputado têm mais a ganhar com o uso da rede. Sem acesso à mídia tradicional e desconhecidos do público, qualquer informação sobre eles pode ser decisiva para o eleitor.”
Os partidos passaram a levar mais a sério as possibilidades da internet e a contar com comandos específicos para ela. Marcelo Branco, da campanha de Dilma, vê na rede um “espaço de expressão individual” que não pode ser acompanhado pela Justiça de forma tão rígida como na televisão. Para ele, a web é um caminho para “furar o bloqueio” da grande mídia. “Queremos estimular os cidadãos que estão na rede a participar da cobertura das eleições. Eles têm o direito de se expressar no seu espaço. Tirar um blog do ar é a mesma coisa que fechar um jornal.” Branco acredita que, em boa parte pela “mediação” exercida pelas redes sociais, já não se faz jornalismo como antes. Mesmo eventuais informações incorretas podem ser detectadas com mais
18
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
agilidade. “Na internet não tem menos ou mais informações falsas do que na grande mídia, mas informações falsas são desmentidas mais rapidamente por milhares de pessoas”, compara. O coordenador de web na campanha de José Serra, Sérgio Caruso, vê um momento de aprendizado para os partidos. “Estamos aprendendo a ver os limites. Aquele limite específico do que é um voluntário (eleitor) bem intencionado e apaixonado, esse é um controle difícil”, afirmou à Agência Brasil. “O Ministério Público vai sentir o que a gente sente, que é uma dificuldade de controlar. A internet é incontrolável”, definiu Caruso. A reportagem tentou conversar com Caio Túlio Costa, responsável pela campanha de Marina Silva, mas não conseguiu.
Barreto, da Webcitizen, acredita que a internet deverá estimular os comunicadores a melhorar a relação com seus públicos, pois a credibilidade será um ponto importantíssimo a ser observado para definir o sucesso de um veículo. “Como na relação cidadão e governo, acredito que na mídia o processo está se invertendo: quem faz a pauta é o leitor e não mais o editor. O leitor decide que informação quer e pode escolher qual o conhecimento precisa para suas relações sociais.” Coutinho, da FGV, acredita que as novas mídias podem atuar como anteparo à mídia tradicional. Os jornalistas deixam de ser fonte exclusiva do assinante ou leitor de determinada publicação e ficam mais expostos aos comentários do público, sobretudo quando
falam alguma bobagem. “Isso pode ajudar a equilibrar. Mas ainda é cedo para falar que as mídias digitais são o contraponto ao sistema tradicional. O que tenho acompanhado até agora, tanto em termos de política como de comunicação de marcas, é que o verdadeiro impacto das redes acontece quando se combina com a mídia tradicional. Pelo menos para a eleição de 2010, essa dinâmica deve se manter.” O comportamento da mídia tradicional e a possibilidade de acompanhar os sentimentos dos eleitores de classe média e mais jovens, para Coutinho, são dois elementos de maior influência da internet – o que pode se tornar um complemento importante das pesquisas de intenção de voto. Já a interatividade, apontada como o
GERARDO LAZZARI
Incontrolável
(UFMG), coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias, vê no Twitter o grande fenômeno capaz de influenciar a eleição brasileira. A UFMG coordenará um Observatório das Eleições, que entre outras ações pretende acompanhar o comportamento de jornais e blogs de análise política. Outro objetivo, diz Regina, é entender como acontece a “disseminação de boatos”. Boatos são frequentes na internet. No caso de Obama, a campanha agiu rapidamente para neutralizar notícias de que ele era muçulmano que circulavam na rede. No Brasil, também circularam boatos de que a candidata do PT não poderia entrar nos Estados Unidos por seu passado “terrorista”.
ANDRÉA GRAIZ
Tuiteiros
Fernando Barreto, sócio-diretor da Webcitizen (www.webcitizen.com.br), empresa de informações sobre o Congresso brasileiro, avalia que a organização das informações pode derrubar a crença da falta de memória do brasileiro. “Não temos uma informação organizada de forma clara e atrativa para que
se transforme em conhecimento”, afirma. A empresa criou o aplicativo Votenaweb, com dados sobre Câmara e Senado. “Fomos até consultados pela ONU, que estuda oferecer o aplicativo para outros países.” A professora Regina Helena Alves da Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais
Marcelo Branco: “Queremos estimular os cidadãos que estão na rede a participar da cobertura das eleições”
DIVULGAÇÃO
Sérgio Caruso: “Estamos aprendendo a ver os limites daquilo que se vai fazer”
José Serra é o postulante à Presidência que há mais tempo faz uso pessoal da rede. Seu Twitter tinha mais de 270 mil seguidores no final de junho. Dilma Rousseff, com 100 mil seguidores, e Marina Silva, perto de 80 mil, também aderiram à ferramenta que as permite seguir simpatizantes e inimigos, e ser seguidas. A reportagem enviou para cada um deles um tweet de mesmo teor, para que comentassem uma tese de Lula, de que sua popularidade criou um novo paradigma, e que os eleitores serão mais exigentes com quem o suceder. Até o fechamento desta edição, em 30 de junho, nenhum dos três tinha respondido.
principal diferencial da rede, ainda engatinha entre os partidos, diz o professor da FGV. “É questão de ter ou não estrutura. Se o candidato abre a possibilidade de as pessoas fazerem comentários e perguntas no seu blog, precisa ter uma equipe ou processos adequados para responder. Caso contrário, é um tiro no pé”, comenta. Entre blogueiros e internautas em geral, a interatividade é um elemento comum. Uma tentativa de aproximação entre esse público e a mídia tradicional foi feita no final de junho por um dos principais jornais do mundo, o espanhol El País, ao anunciar a criação do Eskup, uma rede social de informação. “O nascimento dessas redes na internet nos últimos anos revolucionou a forma como emitimos e acessamos
informações”, diz o jornal. O El País nomeou a veterana redatora-chefe Ana Alfageme como responsável pelas mídias sociais, seguindo os passos de outro grande jornal, o The New York Times, que em 2009 escolheu Jennifer Preston como editora para a área. “O jornalismo mudou e seria irresponsável não usar essas redes, claro que com rigor nas informações”, disse a jornalista na abertura de um congresso internacional em maio. A palavra transparência também é citada por Ben Self para ajudar a definir a importância da internet nas eleições e o poder da rede de motivar o eleitor a se engajar na campanha: “Existem outras formas de relacionamento que não sejam com dinheiro e tapinhas nas costas”. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
19
MÍDIA
Favela on-line
Com a velocidade da web, projeto de correspondentes comunitários e produção interativa de informação, iniciado em algumas favelas do Rio, se estende por todo o Brasil Por Maurício Thuswohl
P
esquisas sobre as tendências tecnológicas já colocam o Brasil entre os grandes usuários de internet no mundo. Estima-se em quase 70 milhões os “navegantes”, e mais de metade deles, 36 milhões, considerados muito ativos, segundo relatório Ibope/Nielsen. E à medida que a rede mundial de computadores se aproxima das periferias, e vice-versa, aumentam a democratização do acesso ao conhecimentoe o uso que se faz dela. Ou seja, a web, mais que um espaço de se consumir informações, permite ao usuário ser uma fonte delas.Exemplo bem-sucedido é o site Viva Favela, criado no Rio de Janeiro em 2001 pela ONG Viva Rio. A página surgiu como ação de um Ponto de Cultura, a partir da formação de uma rede de correspondentes em diversas comunidades da cidade e tem chegado cada vez mais longe, em outros cantos do país. 20
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
No início, a principal atividade do Viva Favela era promover cursos, oficinas e inclusão digital. Ao mesmo tempo, com o emprego da tecnologia, permitir que os moradores das comunidades beneficiadas e estudantes da rede pública do Rio pudessem atuar como comunicadores e produtores de conteúdo informativo sobre a realidade que os cerca. A formação dos primeiros comunicadores rendeu frutos em algumas das maiores favelas do Rio, como Rocinha, Cidade de Deus, Maré e Complexo do Alemão, e resultou na criação do site colaborativo www.vivafavela.com.br. Depois do lançamento do Viva Favela 2.0, em abril, e a inclusãode correspondentes de outros estados,o projeto se espalhou e tem uma rede de 334 correspondentes comunitários em todo o país. Para o jornalista Rodrigo Nogueira, que foi editor de conteúdo do projeto por três
anos, o site é uma ponte virtual entre o asfalto e a favela. “A meta é transformar o site em uma referência de produção colaborativa voltada para as periferias e favelas. Queremos um jornalismocidadão feito de dentro das favelas e dialogando com o mundo”, diz. O crescimento desde abril, segundo ele, é impressionante, com 300 novos correspondentes e cerca de 30 mil novos acessos. “É marcante, uma ideia compartilhada com várias pessoas. O Viva Favela não funcionaria se os envolvidos não acreditassem que o espaço é importante.Em apenas um mês, tivemos mais conteúdo do que em todo o ano passado, ao abrirmos para mais colaborações.”
Reconhecimento
A trajetória do projeto é premiada. O mais recente foi o Mídia Livre, concedido pelo Ministério da Cultura em outubro passado. Antes, o Viva Favela já havia sido “diplomado” em 2008 como Excelência no
com.br), o jornalista Ivan Luiz Santana destaca a importância da nova parceria. “Posso afirmar que, para o trabalho que já vinha desenvolvendo, a existência da rede só veio somar, deu mais suporte na luta por inclusão social e digital na comunidade. Tenho a oportunidade de compartilhar experiências com outros correspondentes e já fiz até amizade com o pessoal”, afirma. Ivan afirma que a participação no Viva Favela aumentou o reconhecimento do seu trabalho. “Em minha comunidade, passei a ser visto com mais credibilidade a partir do momento em que nossas produções ganharam mais espaço, ultrapassaram as barreiras da Bahia e se projetaram para outros estados. Meu compromisso com a comunidade aumentou também, e está sendo bastante prazeroso. Sem contar com o aprendizado de cada reunião. Mesmo já sendo profissional na área de jornalismo, o Viva Favela tem sido, assim, um grande parceiro”, diz. Peu Pereira, de São Paulo, ressalta a importância de se criar uma rede comunitária com alcance nacional. “Quando fazemos uma reunião virtual e nela tem gente de Recife, de Brasília, de Manaus etc. debatendo pautas, isso se torna a apropriação dos meios para formular uma opinião vinda de pessoas que representam 98% da população”, diz. Peu espera que o Viva Favela tenha efeito importante sobre os envolvidos: “Ainda não sei dimensionar qual o impacto disso no grande público, mas para os correspondentes é grande”, diz. O público-alvo já está definido: “Os moradores de periferia de vários lugares do país, que sofrem por causa de uns 2% que bandideiam a nação, estão ganhando voz e querem mudar o jogo”. Colaborou Tatiana Vieira
WALTER MESQUITA/VIVA FAVELA
Uso de Tecnologia da Informação, pelo produzir e também estabelecer formas de StockholmChallenge Awards, da Suécia. parceria e colaboração de diversos corresEm 2005, o site recebeu nos Estados Uni- pondentes em torno de uma mesma pauta. dos um prêmio oferecido pelo Open SoOs Fóruns de Sugestões de Pauta tamciety Institute, ligado à Funbém podem definir publicadação GeorgesSoros, e uma O Viva Favela ções especiais em torno de menção honrosa do prêmio almeja a um mesmo tema. Como reVladimir Herzog de Anistia e interatividade. vistas virtuais, essas publicaDireitos Humanos, do Sindi- Basta se ções geralmente contam com cato dos Jornalistas Profissiocoordenação de algum jorcadastrar para analista nais no Estado de São Paulo. convidado. “Nós defiO acervo de reportagens e publicar um nimos um tema, avisamos no fotografias do Viva Favela acu- conteúdo ou site que vamos fazer uma remulado desde 2001 se encon- escrever um vista virtual e convidamos as tra armazenado no banco de comentário pessoas a participar. Toda redados do site original e tamvista tem um editor especial bém nos sites subordinados criados para ex- para estimulá-las. O primeiro editor conplorar temas e linguagens específicos. Com vidado foi o Caco Barcellos. Imagina, um o lançamento da versão 2.0, o site se tornou jovem comunicador recebendo dicas e elocolaborativo, passou a contar também com gios de um profissional consagrado como conteúdos de áudio e vídeo: “Estamos con- ele? A ideia é incentivar esses jovens, trasolidando parcerias em âmbito nacional zendo profissionais que sejam especialistas e preparando um documento com nossa em suas áreas para ajudar”, conta Rodrigo. proposta metodológica. A ideia é que outros projetos e coletivos possam aproveitar Interatividade nossa experiência na formação de comuniNo dia a dia, o Viva Favela almeja a incadores”, diz o editor. teratividade. Basta se cadastrar para publiA homepage é dividida em quatro seções car um conteúdo ou escrever um comen(textos, fotos, vídeos e áudios), e sua atua- tário. Quando se quer um conteúdo mais lização é permanente. As notícias em des- elaborado, organizam-se reuniões virtuais taque na página inicial são selecionadas ele- e webconferências entre pessoas de diferentronicamente com base no número de votos tes partes do Brasil com apoio de corresque receberam nos últimos dois dias. Den- pondentes comunitários. “Fomos procurar tro de cada seção, a ordem dos conteúdos os primeiros correspondentes por meio das exibidos obedece ao número de votações, redes sociais e divulgando nosso trabalho a contar de sua publicação. pela web e em rádios comunitárias, sites, Para se tornar um correspondente co blogs, projetos parceiros, ONGs e univermunitáriodo Viva Favela basta fazer o ca- sidades. Foi um trabalho árduo, mas comdastro e participar dos Fóruns de Sugestões pensou”, avalia Rodrigo. de Pauta. Durante esses fóruns, é possível Correspondente em Salvador, onde edisaber o que cada correspondente pretende ta o site Repórter Hoje (www.reporterhoje.
INCENTIVO No Viva Favela vale usar rodinho como tripé de câmera. Todos usam a criatividade e prestam atenção nas dicas dos profissionais JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
21
ENTREVISTA
CELEIRO DE
CULTURA Para Silvana Meireles, do Ministério da Cultura, algumas propostas de lei que estão no Congresso podem estimular milhões de brasileiros a viver de sua arte e de seu talento. E ainda aumentar a importância da nossa diversidade cultural na economia nacional Por Antonio Martins
A
secretária de Articulação Institucional do Ministério da Cultura (MinC), Silvana Meireles, tem uma pedreira pela frente. Depois de coordenar a 2ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em março em Brasília, está incumbida de fazer andar no Congresso as leis que sacodem as relações entre o Estado e a cultura popular – e que podem repercutir muito na vida de milhões de brasileiros. As transformações começaram em 2003, quando Gilberto Gil assumiu o ministério. Desde então, os recursos públicos destinados pelo governo federal à área saltaram de R$ 287 milhões para R$ 2,5 bilhões, avançando de 0,2% para 1% do Orçamento da União. Mais importante, porém, foi a mudança na distribuição do bolo.
Ministério recente, o MinC, criado em 1985, quase sempre reproduziu a visão bacharelesca e elitista de cultura que marcou o Brasil desde sua fundação. Seu papel era “iluminar o povo”, “levando” a ele as obras que supostamente expressavam o saber artístico da humanidade – depois, é claro, que essas produções circulassem comercialmente nos meios “eruditos”. Os recursos do ministério praticamente só patrocinavam filmes e peças teatrais de grandes diretores, orquestras sinfônicas, grandes mostras, museus. Gil abriu os olhos (e o bolso) do MinC para a riqueza e a diversidade cultural brasileira. E o novo conceito adotado pelo ministério é muito bem expresso pelo programa Cultura Viva e seus Pontos de Cultura. O MinC reconhece como cultura todas as cria-
A quantas anda Saiba em que pé estão projetos que podem ampliar a produção cultural no Brasil n Sistema Nacional de Cultura Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 416/05. Precisa do voto favorável de pelo menos 308 deputados e 49 senadores. Já passou por comissões especiais da Câmara e aguarda votação em plenário. Se aprovado, vai para o Senado. n Plano Nacional de Cultura Projeto de Lei (PL) 6.835/06. Já provado pela Câmara dos Deputados, foi enviado ao Senado em junho. n Pró-Cultura Altera e renova a Lei Rouanet (de incentivos fiscais a empresas que patrocinam produções culturais). Está em debate na Câmara (PL 6.722/2010), comissões de Educação e Cultura e de Desenvolvimento Econômico.
22
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
n Vale-Cultura Prevê a adoção de “tíquetes” (PL 5.798/09) a ser concedidos pela empresas a seus funcionários para uso em atividades ou bens culturais. Aguarda votação no plenário da Câmara. n Vinculação de verbas para a Cultura PEC 150/2003. Sofre oposição dos setores que julgam ser prerrogativa de cada governante definir as prioridades orçamentárias. Apresentada há sete anos, passou apenas pela Comissão de Constituição e Justiça. n Nova Lei do Direito Autoral Ainda não está no Legislativo. O governo está promovendo, antes, uma série de debates com a sociedade civil.
AUGUSTO COELHO
A efervescência e a diversidade cultural do Brasil podem ser uma grande vantagem internacional. Mas é preciso estimular os produtores. Viver da produção de cultura quando crescer deve ser algo que um jovem possa levar em conta JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
23
Apenas 5% dos brasileiros já foram a um museu, 13% vão ao cinema, só 17% compram livros. O Vale-Cultura viabilizaria a criação de cinemas em bairros populares, a multiplicação de companhias de teatro e de pequenos editores de livros
ções originaisdo ser humano. Enxerga numa moqueca capixaba, na obra de uma bordadeira, numa rádio comunitária ou num software inovador tanta sabedoria, habilidade, talento e poder de criação quanto pode haver numa sinfonia. E movido por essa ideia iniciou uma pequena revolução no uso dos recursos públicos. Por meio de concursos, mais de 2 mil iniciativas comunitárias espalhadas pelo país, foram transformadas em Pontos de Cultura. Recebem durante três anos um apoio financeiro que, embora pequeno em termos de orçamento público (R$ 60 mil anuais), é capaz de mover montanhas no trabalho de quem o recebe. São, na maioria dos casos, coletivos culturais das periferias das metrópoles ou de regiões remotas. Vistos antes como meros espectadores das “belas-artes”, agora revelam a força e a diversidade da cultura brasileira. Utilizam os recursos públicos para se converter em grupos musicais, dedicados tanto a manifestações tradicionais, como o maracatu ou coco-de-umbigada, como ao rock ou ao rap. Articulam grupos de teatro e de dança. Animam rádios livres, sites e blogs. Produzem vídeos e jornais. Montam cooperativas especializadas em criar programas de computador. Atuam em quilombos e comunidades indígenas. A transformação tem desdobramentos econômicos. Para os grupos ou comunidades participantes, significa novas ocupações (às vezes criativas e bem-remuneradas) e a possibilidade de desenvolver o empreendedorismo coletivo. Para o Brasil, abre a janela para uma nova vocação e um novo papel internacional. O país que sempre foi dependente no momento em que a indústria era o setor mais dinâmico da economia, pode ser um produtor destacado de bens simbólicos – cultura, conhecimento, comunicação, ideias, técnicas e afetos – na era pós-industrial. Nesta entrevista, Silvana fala em detalhes sobre a Conferência Nacional e aborda um tema que agitará o ambiente da cultura nos próximos meses: a elaboração de uma nova lei de direitos autorais, após amplas consultas à sociedade – para desconforto de alguns cartéis da indústria cultural. Qual o sentido de realizar uma Conferência Nacional de Cultura a menos de um ano do fim de um governo?
As conferências visam sacudir uma visão arcaica de política, segundo a qual a sociedade limita-se a eleger os governantes e deve esperar deles as decisões. O governo Lula não as inventou, mas realizou mais de 70 delas. São uma janela para a expressão direta da sociedade civil em meio ao nosso sistema institucional ainda fechado e baseado apenas na representação. Em nosso caso específico, a Conferência Nacional de Cultura comprova que a sociedade está disposta a debater temas complexos, sempre que há espaços reais de participação. Mais de 206 mil pessoas compareceram nas etapas municipais, estaduais – em todos os estados e em 3.117 municípios – e nacional. Se ainda fal-
24
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
tava algum sinal de que cultura não é assunto apenas das elites, esse foi dado agora. Os trabalhos também mostraram que a sociedade está pronta para formular alternativas. Foram aprovadas centenas de recomendações, entre elas, a aprovação de um conjunto de leis e emendas à Constituição capazes de consolidar as conquistas dos últimos anos. O que estabelecem essas propostas?
Vamos começar pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 416/05. Estabelece o Sistema Nacional de Cultura, que representa para nossa atividade algo tão importante quanto o SUS para a saúde. Na tradição do Estado brasileiro, cultura foi sempre tema secundário. Da União aos municípios há estruturas permanentes para a educação, a saúde, a segurança e outras áreas. Mas nem todo município tem uma Secretaria de Cultura. Quando existem, as estruturas e políticas são vistas como concessões do prefeito. Se seu sucessor tiver outra proposta, a secretaria morre. Mas essa PEC não se limita a instituir secretarias de Cultura nos estados e municípios. A proposta determina a criação de fundos de apoio à cultura. Sintonizada com os novos tempos, institui a participação. Em cada esfera de governo haverá Conselhos de Política Cultural. Neles, 50% dos participantes deverão ser eleitos democraticamente e representar a sociedade civil. A PEC deixa para trás as visões bacharelescas de cultura e arte ao estabelecer 11 princípios para o Sistema Nacional de Cultura. Entre eles, o reconhecimento da diversidade das expressões culturais e a garantia da universalização do acesso aos bens e serviços da cultura.
Qual a diferença entre o Sistema e o Plano Nacional de Cultura?
O Sistema representa uma mudança institucional profunda e de longo prazo. O Plano Nacional de Cultura, expresso no Projeto de Lei (PL) 6.835/06, é um planejamento também ambicioso, mas com horizonte de dez anos. Determina, por exemplo, que os próximos governantes continuem adotando políticas para garantir acesso de todos à cultura, e que se respeite e se promova a diversidade artística e cultural.
A mudança na Lei Rouanet é uma prioridade?
Sem dúvidas. Essa lei está há 18 anos sem mudanças, e nesse período a cultura passou por enormes transformações. As mudanças estão expressas no Projeto de Lei (PL) 6.722/2010, que cria o Pró-Cultura, democratiza a política de financiamento, estabelece processos públicos para definir quais iniciativas receberão apoio financeiro e desconcentra a destinação dos recursos, evitando que a maior parte das verbas disponíveis irrigue um pequeno número de produtores. Ao longo dos anos, acumularam-se inúmeras distorções. Em tese, a Lei Rouanet estimula as empresas a investir em cultura. Na prática, poucas tiram do próprio bolso o que
Quais as alternativas?
O projeto republicaniza a destinação do apoio cultural. Em vez de depender de empresas, artistas e produtores poderão buscar recursos num Fundo Nacional de Cultura, que além de patrocínio oferecerá bolsas e prêmios. A destinação dos recursos não será decidida apenas pelo Estado, mas por um conselho, no qual estarão representados 20 setores da sociedade com interesse nos financiamentos. E as obras que forem financiadas por recursos do Fundo Nacional de Cultura poderão ser oferecidas gratuitamente à população três anos depois de lançadas – ou em 18 meses, se o objetivo for educacional. Isso vale, por exemplo, para a reedição de um livro ou a exibição de um filme pela TV pública.
No processo de debate da nova Lei Rouanet, surgiu a ideia do Vale-Cultura. A que se destina?
O Vale-Cultura surgiu na mesma trilha, mas já se transformou num projeto próprio: é o PL 5.798/09. Apesar de todos os nossos avanços, não foi possível reverter, em oito anos, a elitização do acesso à cultura no país. É algo que tem a ver com a péssima distribuição de riqueza e renda. Assistir a um filme pesa muito no orçamento de uma família. Por isso, apenas 5% dos brasileiros já foram a um museu, 13% vão regularmente ao cinema, e 17% compram livros. A nova lei oferece R$ 50 mensais a quem ganha até cinco salários mínimos. É um vale utilizável apenas para aquisição de bens culturais – um livro, o ingresso para um filme, peça ou show. Vem em cartão magnético, não pode ser convertido em dinheiro. Além de beneficiar dezenas de milhões de brasileiros, criará um circuito novo de cultura, onde estarão as maiorias, excluídas do mercado tradicional. Como costuma lembrar o ministro Juca Ferreira, este circuito viabilizará, por exemplo, a criação de cinemas nos bairros populares, a multiplicação de companhias de teatro e de pequenos editores de livros. Há uma emenda específica para vinculação de verbas à cultura. Por quê?
A Cultura recebe hoje 1% do Orçamento da União, cinco vezes mais do que no último governo. É preciso garantir esse patamar e ampliá-lo. A economia contemporânea tende cada vez mais para a produção simbólica. A efervescência e a diversidade cultural do Brasil podem ser uma grande vantagem internacional. Mas,
para isso, é preciso estimular os produtores. Viver da produção de cultura deve ser uma alternativa, algo que um adolescente possa levar em conta tanto quanto ser metalúrgico ou servidor público, por exemplo. A PEC 150/2003 cria para a cultura uma vinculação de verbas semelhante à que existe em favor da educação ou da saúde. A União deverá destinar 2% de seu orçamento para a atividade; estados, 1,5%; e municípios, 1%. O pensamento tradicional rejeita a vinculação orçamentária porque ela restringe a margem de manobra dos gestores políticos e o desejo de liquidez da área econômica dos governos. Mas a Conferência Nacional de Cultura aprovou a PEC 150 em três instâncias – talvez por julgar que a vocação cultural da sociedade brasileira deva falar mais alto. Por que o MinC está realizando consultas públicas visando a reforma da lei do direito autoral?
A atual lei brasileira do direito autoral está defasada. O texto em vigor foi aprovado em 1998 e é uma atua lização da legislação criada em 1973. Já não garante plenamente o direito do autor e não atende às necessidades da sociedade brasileira contemporânea. Coloca na ilegalidade uma série de práticas atuais, costumes banais como transportar músicas de um CD original adquirido para um tocador de MP3; copiar um CD para o pen-drive; fazer xerox de um livro esgotado, para fins de estudo; ou exibir partes de um filme, com objetivos pedagógicos. Isso não pode perdurar, simplesmente porque a lei não acompanhou o surgimento e a evolução do ambiente digital e as novas possibilidades de trocas simbólicas e econômicas decorrentes. Queremos garantir os direitos aos criadores, permitindo a eles maior controle sobre sua criação. Ao mesmo tempo, julgamos que é indispensável assegurar aos cidadãos o acesso a bens culturais com segurança jurídica para usuários e investidores. A ampliação da segurança jurídica para investidores estimulará o desenvolvimento de novos modelos de negócios no ambiente digital, promovendo o fortalecimento da economia da cultura.
De que forma a mudança dessa lei poderá contribuir para um maior acesso da sociedade às obras artísticas?
FOTOS AUGUSTO COELHO
destinam ao setor. A maior parte dos recursos, quando não a totalidade, vem do Estado, por meio de renúncia fiscal. A empresa faz mecenato com dinheiro da sociedade. Criou-se uma indústria de projetos. Metade dos recursos – cerca de R$ 1 bilhão, em 2010 – é captada por apenas 3% dos produtores culturais, e 80% das verbas são canalizadas para Sul e Sudeste. Ao Nordeste, de enorme riqueza cultural, restam 6%. Os projetos têm méritos reais, mas que sejam, então, executados também com recursos da própria iniciativa privada.
Com a Lei Rouanet, na prática, poucas empresas tiram do próprio bolso o que destinam à cultura. A maior parte dos recursos vem do Estado, via renúncia fiscal. A empresa faz mecenato com dinheiro da sociedade. Criou-se uma indústria de projetos
A proposta apresentada pelo Ministério da Cultura para consulta pública reconhece o direito da cópia individual e com isso garante o acesso da sociedade ao conhecimento, com segurança jurídica. A regulação estatal proposta no anteprojeto acaba com certos excessos dos detentores de direitos sobre determinadas obras. Por isso, ampliará as possibilidades de seu uso para fins didáticos. Por fim, o novo texto prevê a criminalização do “jabá” (pagamento para execução de determinadas músicas nas rádios e emissoras de TV). Todos sabem que esse vício submete a programação das rádios a um sistema de remunerações pouco ético e impede o usuário de ter acesso à diversidade cultural. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
25
SAÚDE
Quem tem medo de injeção?
Defendidas no Brasil até por homeopatas, no exterior as vacinas, tidas como causadoras de reações muito adversas, chegam a ser combatidas. O assunto é polêmico e pouco discutido Por Cida de Oliveira
E
nquanto a estratégia de vacinação contra a gripe H1N1 era traçada no país, circulavam na internet mensagens de alerta sobre perigos atribuídos à vacina: autismo, câncer, paralisia, choque anafilático, distúrbios no sistema imunológico e morte. A repercussão foi tal que o Ministério da Saúde chegou a rebatê-las, assegurando a eficácia e a segurança da vacinação. O alarme era feito num momento em que o movimento anti-vacina sofria um duro golpe. No início do ano, o gastroenterologista britânico Andrew Wakefield teve sua licença médica cassada no Reino Unido e sua pesquisa, que responsabilizou a vacina tríplice pelo autismo nas 12 crianças estudadas, foi invalidada. O jornal especializado The Lancet, que havia publicado a pesquisa de Wakefield em 1998, se retratou. O trabalho era uma das referências para pais de autistas que creem que o transtorno do desenvolvimento cerebral é desencadea do por um componente da vacina, o timerosal. Após críticas de cientistas, o conselho de medicina do Reino Unido iniciou uma investigação que durou três anos e acusou o pesquisador de irresponsável e antiético. O episódio não enfraqueceu as manifestações em apoio a Wakefield em sites e blogs. Para Boyd Haley, pesquisador do Departa-
26
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
mento de Química da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, a desconfiança de que a vacina pode causar autismo só vai ter fim quando o governo americano bancar um estudo independente que compare crianças autistas americanas vacinadas e que não receberam imunizantes. “Foram gastos milhões de dólares em pesquisas genéticas e nenhum gene associado ao distúrbio foi encontrado. Resta encontrar a causa, que pode ser a exposição tóxica”, afirma. A falta de respostas move pesquisadores. A biomédica Mariel Mendes, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Associação em Defesa do Autista, de Niterói (RJ), diz que não há estudos suficientes. “A pessoa só desenvolveria o transtorno pela exposição tóxica se fosse geneticamente predisposta”, argumenta. Junto a uma equipe multidisciplinar da UFF, ela está prestes a começar pesquisa sobre as causas do distúrbio. Diretor-técnico da Casa da Esperança, que atende a autistas carentes no Pará e no Ceará por meio de convênio com o SUS, o psicólogo Alexandre Costa e Silva diz que vincular o autismo à vacina é tentar simplificar um transtorno com diversas causas. Ele aponta os conflitos de interesse ocultados pelo que chama de pseudocientista. “Pai de autista, Wakefield formulou uma
Embora não haja lei obrigando a vacinação, diversos estados e municípios possuem legislação que condiciona a matrícula escolar ao cumprimento do calendário de vacinação do Programa Nacional de Imunizações
GETTY IMAGES
vacina para concorrer com a que seu estudo condenava. Além disso, era contratado por advogados de pais de autistas interessados em processar os laboratórios. Para sua pesquisa, submeteu as crianças a procedimentos dolorosos que em nada beneficiaram a saúde delas”, afirma. Mãe de autista, a americana Lisa Jillani relata no livreto Investigar as Imunizações – Um Dever dos Pais que desde 1988, quando foi criado nos Estados Unidos um programa de indenização por danos causados por vacinas, houve registro de mais de 6.200 casos. O mais conhecido deles é de Hannah Poling. Em 2007, o governo americano admitiu que a vacinação pode ter causado o autismo na criança e, no ano seguinte, pagou a indenização pleiteada na Justiça para custear o tratamento médico. Para a família e para a Associação Americana de Autismo, a decisão governamental deu às pessoas motivos de sobra para serem mais cautelosas antes de vacinar seus filhos. O governo negou mais uma vez a suposta ligação. Ainda segundo o texto de Jillani, há suspeitas de que a vacinação em massa seria responsável por problemas como síndrome da morte súbita infantil, danos cerebrais mínimos e graves, hiperatividade, diabete, epilepsia, síndrome da fadiga crônica, síndrome da Guerra do Golfo, câncer, aids e até pelo aumento da criminalidade na sociedade moderna. A autora recomenda aos leitores examinar os fatos apresentados pelos pesquisadores e saber das contra-indicações e possíveis reações antes de tirar conclusões. Foi o que fez a publicitária Martha Oettinger, de Florianópolis. O estudo das plantas e dos princípios de diversas terapias influenciou suas escolhas. As filhas de seu marido, hoje com 11 e 14 anos, e sua filha Akira, de 18, não foram vacinadas contra as doenças infantis. As meninas receberam apenas uma dose da Sabin, contra poliomielite. “Akira teve catapora, sarampo e caxumba, com sintomas leves, que foram tratados pela medicina antroposófica. O corpo humano é perfeito e bem cuidado é capaz de se defender”, acredita. Martha considera importantes os processos que a criança passa quando tem uma doença. “É um desenvolvimento do sistema imunológico e um fortalecimento do eu. Prefiro um estilo de vida mais simples e saudável a ficar dando vacinas sem saber direito os efeitos colaterais que podem provocar ao longo da vida.” JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
27
Mundos diferentes
Entre adeptos da medicina antroposófica e homeopática, embora haja maior resistência, não há consenso. O pediatra Sergio Eiji Furuta, da Associação Paulista de Homeopatia e pesquisador na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que há muita polêmica onde a homeopatia é praticada. Segundo ele, no exterior há homeopatas sem graduação em medicina. “Eles geralmente se opõem à vacinação, defendendo que é preferível contrair uma doença infantil. É inaceitável tal atitude hoje em dia”, defende. “Em todas as épocas, alguns autores homeopatas, sem respaldo científico, têm afirmado que as vacinas causam alergias, rinites, sinusites, bronquites e dermatites; que deprimem o sistema imunológico; que alteram a vitalidade das crianças; e que seus efeitos adversos são graves, sendo preferível ter a doença para tratá-la homeopaticamente”, comenta. No Brasil, explica, onde a homeopatia é reconhecida como especialidade médica e só pode ser exercida por médicos, a Associação Médica Homeopática apoia o Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde.
O pediatra Ricardo Ghelman, da Unifesp, membro do Comitê Internacional de Pesquisa em Medicina Antroposófica, diz que os princípios da antroposofia não conflitam com a imunização. “Em países europeus, como a Suíça, onde as condições de saúde de toda a população são satisfatórias, muitos médicos antroposóficos não recomendam imunizar contra as doenças da infância – exceto tétano e poliomielite”, diz Ghelman. “Enquanto não tivermos tais condições, é irresponsabilidade pensar em conduta semelhante.” O pediatra Reinaldo de Menezes Martins, chefe da assessoria clínica do BioManguinhos, ligado à Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, diz que tanta celeuma em torno da vacinação não faz sentido. “Não negamos que os riscos existem. Aliás, não há nenhum medicamento ou vacina totalmente livre de riscos”, afirma. “É por avaliar criteriosamente os males e benefícios que os testes levam tanto tempo. E mesmo depois de aprovadas em todas as fases, quando passam a ser usadas na população, ainda assim as vacinas continuam sendo monitoradas”, garante.
A pediatra Isabela Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), diz que a ciência mostra mais benefícios da vacina do que malefícios. “Veja o exemplo da catapora. Ainda no estágio inicial, a criança pode transmitir o vírus para uma mulher grávida, não vacinada. Embora a infecção seja branda na criança, a gestante não estará livre de consequências como malformações congênitas e até aborto.” Quanto à presença de metais, ela explica que a dosagem do alumínio usado nas vacinas de vírus inativados é insuficiente para causar dano. O componente provoca uma pequena reação inflamatória local, necessária para ativar o sistema imunológico e gerar proteção de longo prazo, e é usado há mais de 80 anos na produção de vacinas de vírus inativados contra tétano, difteria, coqueluche e hepatites A e B. Já o timerosal é usado em baixas concentrações desde 1930. “Desde 2001, a substância vem sendo substituída por um conservante derivado do álcool”, diz Isabela. Ela nega também que os imunizantes – inclusive vacinas combinadas – sobrecarreguem o sistema imunológico. “Se fossem somadas todas
Você já viu bula de vacina? O mínimo que você precisa saber sobre os principais imunizantes do calendário do Ministério da Saúde n Tuberculose Usada contra as formas graves da tuberculose. Indicada para crianças de até 4 anos. O obrigatória para menores de 1 ano, conforme portaria do Ministério da Saúde. Reações: considerada segura, tem poucos efeitos, geralmente locais, como quelóide, abcessos e ulceração, associados a técnicas inadequadas, como aplicações profundas e contaminação. Não deve ser aplicada em pessoascom imunodeficiência congênita ou adquirida, incluindo crianças infectadas pelo HIV com os sintomas da aids, recém-nascidos com menos de dois quilos, com desnutrição, problemas de pele, doenças agudas febris, doenças crônicas e aquelas que estejam sendo tratadas com corticóides e citostáticos. n Hepatite B Indicada para pessoas de todas as idades. Recém-nascidos devem
ser vacinados logo que nascem, por causa das chances de infecção durante o parto de mães portadoras do vírus B. Reações: médico deverá ser procurado quando há dificuldade para engolir ou respirar, erupção, coceira e vermelhidão na pele, inchaço nos olhos, na face ou na parte interna do nariz, cansaço ou fraqueza repentinos. São raros inflamação local, dor, inchaço ou febre baixa, que desaparecem em dois dias. Apesar de muito raro, podem aparecer febre acima de 38º C, mal-estar, fraqueza, náuseas, vômitos, tonturas, dor muscular, artrite e erupções na pele. Não deve ser aplicada em caso de febre, infecção aguda e em pessoas com esclerose múltipla. Devem ser avaliados os benefícios da vacinação em relação aos riscos da exacerbação dos sintomas da esclerose.
n DTP + Hib O DTP é contra difteria, tétano, coqueluche e o Hib combate o Haemophilus influenzae do tipo B, um dos principais agentes de meningite, pneumonia, epiglotite, inflamação do tecido subcutâneo, artrite e sepsis (infecção generalizada) em crianças menores de 5 anos. Reações: algumas crianças poderão ter febre e manifestações locais, como dor, vermelhidão e inchaço. A pertussis (toxina que induz a produção de elevadas taxas de anticorpos), pode causar convulsões em até 72 horas após a injeção, colapso circulatório e encefalopatia nos primeiros dois dias pós-vacina. Não deve ser aplicada em crianças com menos de 6 meses; em indivíduos que na dose anterior: tenham demonstrado reação anafilática ou alérgica, tenham tido convulsões até 72 horas após, tenham passado por colapso cir-
culatório, com estado de choque ou episódio de palidez, fraqueza até 48 horas após, tenham encefalopatia até sete dias após. n Poliomielite A Sabin (gotinha), usada nas mais populares campanhas de vacinação contra paralisia. Reações: É segura, mas raramente podem ocorrer, nos primeiros 30 dias após, acidentes pós-vacinais, como paralisias flácidas, na proporção de um caso em cada 2 milhões de vacinados. Esse risco é maior na primeira dose que nas subsequentes e é aumentado em indivíduos imunodeficientes. Caso apareça dificuldade motora, é preciso ir ao posto de saúde o quanto antes para encaminhamento para outros exames. Não deve ser aplicada em crianças com vômitos ou diarreia, além de imunodeficientes ou sadias que estejam em contato do-
Fontes: Bulário ANVISA - http://migre.me/SDHN. Fiocruz/Biomnaguinhos - www.fiocruz.br/bio. Projeto Diretrizes - www.projetodiretrizes.org.br. Manual de Vigilância Epidemiológica
28
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
W.A.HAREWOOD/AP PHOTO
PRECEDENTE Os pais de Hannah conquistaram na Justiça o custeio do seu tratamento
as vacinas antigas, o resultado seria 2 mil ou 3 mil proteínas. Com o incremento das fórmulas combinadas e a melhor purificação, hoje esse número não chega a 200.” A pediatra admite, entretanto, que os pais são mal informados. Ao contrário das clínicas particulares, onde são mostradas as caixas do imunizante com a bula, no serviço público
isso não acontece. “Embora a sua apresentação não seja obrigatória por lei, nada impede que os pais tenham acesso a ela no posto”, diz. Mãe de filhos com 21, 16 e 6 anos, a designer gráfica Ana Basaglia, de São Paulo, afirma ter muitas dúvidas. “Reparo que a cada filho que tive a lista de vacinas era maior. Será que temos mesmo de vacinar um bebê contra he-
miciliar com imunodeficientes por causa do risco de ocorrência de paralisia associada à vacina.
midas (com câncer, aids ou em uso de drogas imunossupressoras).
n Febre amarela Para pessoas que entrarão em regiões de risco da doença ou expostas profissionalmente ao vírus. Reações: Geralmente são leves. De cinco a dez dias após, 2% a 5% de quem foi vacinado pode apresentar dor de cabeça, malestar, dores musculares e febre. Reações de hipersensibilidade imediata, com erupção e urticária são incomuns e ocorrem principalmente em pessoas com histórico de alergia a componentes. Complicações graves, como crise convulsiva, são raras. Não deve ser aplicada em crianças com menos de 6 meses; em pessoas com doenças agudas febris; com história de hipersensibilidade a ovos de galinha e seus derivados; gestantes (exceto em situação de emergência epidemiológica, seguindo recomendações expressas das autoridades de saúde); pessoas imunodepri-
n Tríplice viral Contém vírus atenuados da caxumba, da rubéola e hiperatenuados de sarampo e albumina humana. Reações: as mais comuns são febre baixa, dor de cabeça leve, inchaço nos gânglios linfáticos, nas glândulas salivares, náuseas, mal-estar em geral, sensação de queimação ou coceira no local. A erupção na pele geralmente surge entre o quinto e o 12º dia e dura no máximo dois dias. O médico deve ser procurado imediatamente se houver dificuldade para respirar ou engolir, vermelhidão na pele, inchaço nos olhos, na face ou na parte interna do nariz, cansaço ou fraqueza repentina e intensa, convulsões (entre o quinto e o 12º dia), confusão mental, febre alta (maior que 39º C), dor de cabeça intensa e contínua, irritabilidade ou sonolência incomum, vômito, rigidez na nuca, dor,
patite B logo que nasce? Ele faz parte do grupo de risco?” Outro questionamento, segundo ela, é quanto aos efeitos que essas injeções podem causar ao organismo no longo prazo. Assim como os cientistas, os pais também estão em busca de respostas. Embora não haja lei obrigando a vacinação, diversos estados e municípios possuem legislação que condiciona a matrícula escolar ao cumprimento do calendário do Programa Nacional de Imunizações. Conselhos tutelares podem punir pais que negligenciam a vacinação. Tais medidas dão suporte às ações do PNI porque, segundo a Sociedade Brasileira de Imunizações, controlar ou erradicar uma doença requer que seja vacinado o maior número de pessoas e que a cobertura se mantenha. “É legítima a desconfiança. No entanto, muita gente do movimento anti-vacina que se diz saudável mesmo sem ter se imunizado esquece de que vive num mundo livre de muitas doenças graças à vacina”, diz Gabriel Oselka, professor de Pediatria na Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Comissão de Imunizações da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo.
aumento da sensibilidade ou infecção nos testículos. A meningite associada à vacina contra caxumba ocorre entre 15 e 30 dias após, mas raramente deixa sequelas. Não deve ser aplicada em gestantes, alérgicos às proteínas do ovo, hipersensíveis à neomicina, crianças epilépticas, com convulsões ou problemas neurológicos. O tratamento com imunossupressores ou radioterapia pode reduzir ou anular a resposta imune da vacina ou potencializar a replicação viral e elevar a incidência de efeitos colaterais. n DT dupla adulto Contra difteria e tétano. Reações: as poucas reações geralmente são locais, como inchaço e vermelhidão. Doses de reforço causam febre em 0,5% a 7% dos casos, sendo raramente observadas temperaturas maiores que 39º C. Reação anafilática é rara, na proporção de um caso para 100 mil aplicações. Não deve ser aplicada em pessoas que tiveram reação anafilá-
tica sistêmica grave (hipotensão, choque, dificuldade respiratória) após a primeira dose. nM eningite meningocócica dos sorogrupos A+C Reações: em geral, bem tolerada. As reações mais frequentes são dor, desconforto e vermelhidão no local da aplicação. Podem ocorrer com menor frequência reações sistêmicas como febre baixa, irritabilidade (em crianças) e dor de cabeça. Reações alérgicas e alterações neurológicas reversíveis têm sido extremamente raras e, como as anteriores, tendem a desaparecer após 24 horas da aplicação. Não deve ser aplicada em pessoas com febre alta (acima de 38,5ºC), grávidas, a não ser em situação de emergência epidemiológica, seguindo recomendações expressas das autoridades de saúde, pessoas imunodeprimidas (por câncer, leucemia, aids ou por medicamentos) e crianças menores de 6 meses de idade, a não ser em situações de emergência epidemiológica.
dos Eventos Adversos Após Vacinação - http://migre.me/SDDE. Centro de Vigilância Epidemiológica de São Paulo - http://www.cve.saude.sp.gov.br JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
29
TRABALHO
Escola da realidade Dieese se prepara para lançar primeiro curso de nível superior voltado para as Ciências do Trabalho Por Vitor Nuzzi
C
riado em 1955 a partir do inconformismo de alguns dirigentes sindicais com os índices oficiais de inflação, o Departamento Sindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) está próximo de concretizar um antigo sonho: a criação de uma escola de nível superior de Ciências do Trabalho. “Estamos abrindo um campo novo de conhecimento”, afirmou em entrevista ao programa de rádio Jornal Rádio Brasil Atual o coordenador de Educação do Dieese, Nelson Karam. A primeira turma deve ser formada no primeiro semestre de 2011. Da década de 1970 para a de 1980, com a retomada da atividade sindical, acompanhando a abertura política, também se percebeu a necessidade de investir na formação e na qualificação dos dirigentes. As negociações trabalhistas exigiam, além da mobilização nos locais de trabalho, cada vez mais conhecimento técnico. Para isso, o Dieese criou o Programa de Capacitação em Negociação (PCN). O coordenador de Educação lembra que o desenvolvimento da formação “estava no DNA” do instituto. “Já havia uma aposta do movimento sindical de criar um espaço regular de formação. Quando o Dieese completou 50 anos (em 2005), essa ideia foi recuperada”, lembra Karam. Assim, no início deste ano o Dieese conseguiu a aprovação inicial do Ministério da Educação para credenciar a escola. Agora, falta a liberação do curso de Ciências do Trabalho. O técnico lembra que o objetivo é buscar algo diferente do atual padrão do nível superior, algo mais voltado para a realidade dos trabalhadores. Com isso, coloca-se em debate uma nova visão sobre o trabalho. Karam lembra que, não muito tempo atrás, falava-se no fim do trabalho assalariado, formal. “Nós caminhamos na contramão dessa visão e agora, com a escola, estamos reafirmando a visão que o trabalho está no centro da sociedade”, afirma, acrescentando que hoje existe muita produção sobre o mundo do trabalho, por meio de parcerias no meio acadêmico, como o Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, da Universidade de Campinas (Unicamp), no interior de São Paulo. “O que estamos propugnando nesse momento é ousar na criação de um campo de conhecimento. O MEC não reconhece nenhuma diretriz curricular na área de Ciências do Trabalho”, observa Karam. Segundo ele, o curso irá reunir num mesmo espaço de reflexão temas como Ciências Sociais, Economia, Sociologia, Antropologia e Direito, com “recorte de uma visão de determinado segmento da sociedade”.
30
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
A escola vai funcionar em um prédio da União (cedido ao empreendimento por dez anos) na rua Aurora, região central de São Paulo. “Estamos aguardando essa nova comissão do MEC para autorizar a liberação do curso, um bacharelado de três anos de duração”, diz Karam. O primeiro curso, previsto para o primeiro semestre de 2011, terá inicialmente 40 vagas, apenas de graduação. “A ideia é começar com o pé no chão”, explica o coordenador. “É um aprendizado institucional importante também para o Dieese.” A estratégia de expansão poderá incluir parcerias estaduais, principalmente com universidades públicas, para oferecer o curso em outros locais. E espalhar o conhecimento, sempre do ponto de vista dos trabalhadores.
MEMÓRIA
Nos eternos campos de caça
J
osé Saramago (1922-2010), que devia seu nome a uma erva cujas folhas têm vaga semelhança com as do espinafre, e a raiz com a de um pequeno nabo, comum em Portugal, rumou para a eternidade. Onde estará? Tenho um palpite. Os nativos do pampa, como os tehuelche e outros povos terminados em “che”, tinham uma visão cosmogônica muito peculiar. Para eles o universo tinha o formato de uma foice, ou algo parecido. Havia a terra plana que subia pelo Ande (assim no singular) até as geleiras e daí o céu. A Via Láctea dos astrônomos continuava os cumes gelados, num novo pampa, só que estelar, e em direção à nossa constelação do Cruzeiro do Sul. A cruz sideral era, na verdade, uma ema que sangrava, e as estrelas eram a esteira e as gotas do seu sangue. Para esse campo estelar iam os homens, que ficavam a eternidade na caça dessa ema pulsante. E as mulheres? Essas, finalmente, descansavam, deitadas na terra, sem que ninguém as incomodasse. Pois acho que Saramago deve ter partido para algum lugar assim, ou parecido. Talvez algum outro campo de caça dos povos africanos. Afinal, se em vida ele partilhou das lutas pela liberdade desses e de outros povos, por que não iria compartilhar com eles a sua eternidade? No seu último livro, Caim, esse personagem termina suas andanças cíclicas pelo espaço e tempo terrenos, depois de exterminar todos os tripulantes da Arca de Noé, numa querela interminável com Deus, que promete ser eterna. Sobre o vazio do mundo despovoado, e de uma criação abortada, os dois titãs, o que criava e descriava mundos e o que criava e descriava caminhos e descaminhos, se engalfinham numa luta de palavras que mostra, na verdade, que o
PEDRO WHITAKER/REUTERS
Não sei se Saramago estaria de acordo com essa visão, mas ele deve ter partido para algum lugar assim, ou parecido Por Flávio Aguiar
mundo, se queremos lutar por sua melhora, deve estar em algum outro lugar. Aqui entre nós, talvez: esse parece ser o estro inspirador da literatura de Saramago e da herança que nos deixa. Caim, confesso, não é dos meus preferidos. Estes são Memorial do Convento, Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Cegueira, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Mas li-o já antevendo nele uma espécie de testamento do escritor, de última palavra de um ateu convicto perseguido por imagens cristãs e religiosas também convictas. De certo modo isso é muito representativo dos mundos espirituais de muitos escritores portugueses que são a “esteira estelar” que acompanha Saramago em sua última e derradeira viagem pela e para a liberdade. Não sei se Saramago estaria de acordo com essa minha visão, pondo-o em alguma outra eternidade. Mas se por acaso ele lá estiver, tenho a certeza (para homenagear o modo de falar português) de que ele já estará escrevendo histórias para seus companheiros de caça, para acordar as mulheres de seu merecido mas quieto sono, tentando convencê-los a deixar os céus para a Ema Sagrada, para parar de importuná-la, e para descerem de novo à terra e lutarem pelo “reino deste mundo”, que é título de um romance de Carpentier sobre o Haiti. País para quem ele doou a renda de um de seus últimos livros. Ave, Saramago. Que não descanses em paz, mas que continues, na tua e na nossa memória, a luta pela boa literatura, a liberdade e um mundo com menos injustiças que este nosso.
Perfil
Releia reportagem sobre a última vez em que o escritor visitou o Brasil, publicado na edição 31, de janeiro do ano passado. Entre em www.redebrasilatual.com.br e digite “Saramago por ele mesmo” no serviço de busca JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
31
CIDADANIA
Nova safra de leitores Programa leva mais de 2 milhões de livros a comunidades rurais, semeia o interesse pela alfabetização e colhe a paixão pela leitura Por Xandra Stefanel
“P
ra leitura, achei que o mundo tinha acabado para mim.” Dona Maria Virgínia só aprendeu a ler aos 81 anos, em 2009. Por isso celebra cada livro lido e recorre continuamente à pequena biblioteca de Choro Pedrinha, um distrito de Cascavel (CE). “Leio antes de dormir e até quando estou fazendo o almoço”, diz, orgulhosa. Distante quase 60 quilômetros de Fortaleza e uma hora do centro de Cascavel, o lugarejo não tinha biblioteca nem para auxiliar nas pesquisas escolares. Essa página foi virada em outubro de 2009, com a inauguração de uma minibiblioteca. Foi o ponto de partida para que 130 famílias do povoado passassem a ter um contato inédito com livros. E para que a agente de saúde Maria Iracilda pudesse ajudar outras pessoas, entre elas sua mãe, Maria Virgínia, a encontrar sentido nas palavras escritas. Na casa de Maria Iracilda estão acomodados em uma caixa-estante os 220 livros cedidos a Choro Pedrinha pelo programa Bibliotecas Rurais Arca das Letras. Lançado em 2003 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a iniciativa é dirigida a famílias de agricultores, assentados da reforma agrária, pescadores, quilombolas, indígenas e ribeirinhos. Para fazer o material chegar a essas populações, o MDA se vale de parcerias com outros órgãos públicos, como superintendências regionais do trabalho, secretarias de agricultura e com sindicatos de trabalhadores rurais. Nas comunidades, voluntários – como Iracilda – são treinados para ser agentes de leitura, 32
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
incentivar a participação da população e cuidar dos empréstimos dos livros. Mais de 15 mil agentes em todo o país já receberam esse treinamento. A filha de dona Maria Virgínia mantém a sua “biblioteca” aberta diariamente até as 21h. “Empresto muitos livros. Eles são como filhos para mim, tenho ciúme, peço cuidado. Eles são um orgulho muito grande porque a gente não tinha livro nem para pesquisa escolar. Isso está mudando bastante a aprendizagem aqui”, afirma Iracilda, que tem um filho de 6 anos já apaixonado pelo acervo. Ao todo, já foram inauguradas 7.620 bibliotecas em 2.490 municípios. Mais de 2 milhões de livros foram distribuídos, principalmente em áreas rurais. “Esse povo é invisível e o objetivo das arcas é ajudar essas pessoas a conquistar visibilidade. Em sete anos já vemos um aumento do índice de leitura no campo, estamos conseguindo atingir o objetivo de formar lideranças culturais e de inserir a biblioteca na vida dos trabalhadores e estudantes do campo”, avalia Cleide Cristina Soares, coordenadora de Ação Cultural do MDA e do programa Arca das Letras.
Colheita futura
Quando a associação do pequeno bairro de São Miguel, em Cachoeira Paulista, no Vale do Paraíba (SP), reivindicou ao MDA uma Arca, o diretor Laurindo Pinto já sabia quem convidaria para ser agente de leitura. Ana Júlia de Carvalho, de 17 anos, aprendeu a ler aos 4 com a ajuda da mãe, Maria José, que só estudou até a 5ª série. Afora os
livros da escola, a biblioteca mais próxima está a mais de 40 quilômetros, pelo menos 35 deles de estrada de terra de difícil acesso. Os livros chegaram no final de 2008 e eram o assunto de Ana Júlia em todas as quermesses, reuniões de pais e festinhas. Ela espalhou cartazes no posto de saúde e na paróquia convidando todos a visitar a Arca das Letras, que naquela época ainda estava em seu quarto. Quando percebeu que o espaço era pequeno demais para o móvel, levou o acervo para a escola. Apesar da empolgação, ela admite que a tarefa não é simples. “É difícil, mas está acontecendo. Por enquanto são os alunos da escola os que mais pegam emprestado, mas nosso desafio é que todos façam o mesmo. Eu já conheço o gosto de todo mundo aqui, então indico, explico, incentivo”, conta a voluntária. Ela sabe, por exemplo, que o vizinho da escola, Renan César dos Santos, de 15 anos, gosta de aventuras e contos. “Só comecei a ler quando essa biblioteca chegou. Antes só jogava futebol e ajudava meu tio na vendinha. A leitura abre os horizontes, a gente fica mais evoluído”, diz o tímido Renan. Ainda que lentamente, as mudanças no bairro começam a aparecer. E até dentro da casa da agente de leitura. Há tempos ela insiste para que a mãe volte a estudar. Maria José, de 32 anos, não gosta muito de ler, mas faz planos para o próximo ano. “Agora que meus três filhos estão grandinhos, posso voltar para a escola. A Ana fala sempre: ‘Eu não vou desistir de estudar’. Eu sinto muito orgulho disso que ela está fazendo aqui.” Prestes a acabar o terceiro ano do ensino médio, Ana pretende fazer Direito ou História. “Com boa vontade, acho que consigo. Já não estou trazendo a leitura pra minha comunidade?”, questiona. O diretor da escola, que deu aula para Ana e Maria José, vê avanços: “Antes os alunos liam só aqueles livros que os professores pediam. A Arca complementou a biblioteca da escola e a Ana está espalhando o encanto da leitura na região”, diz Laurindo.
Virar a página
JR. PANELA
ORGULHO Dona Maria Virgínia celebra cada livro lido. Ela aprendeu a ler aos 81 anos. Sua filha, Maria Iracilda, mantém a biblioteca em sua casa aberta até as 21h na pequena Choro Pedrinha, no Ceará
De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, são lidos 4,7 livros por habitante ao ano, contabilizando os didáticos, número que cai bastante quando se leva em consideração apenas os lidos fora da escola: 1,3 por habitante ao ano. As dificuldades aumentam nas cidades menores, JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
33
34
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
DANILO RAMOS
onde os moradores são os que menos leem revistas e livros, os que não gostam de ler (59%, chegando a 76% entre os mais idosos) e não frequentam bibliotecas (83%). Nesses locais, as dificuldades declaradas pelos entrevistados configuram um quadro de má formação das habilidades necessárias à leitura: 17% leem muito devagar, 7% dizem não compreender o que leem, 11% não têm paciência e 7% não têm concentração. É contra esses obstáculos que luta a artesã e dona de casa Rosa Maria, de 52 anos, moradora do quilombo Chácara das Rosas, em Canoas, na Grande Porto Alegre. Seu filho Rafael, de 8 anos, trouxe no boletim da 2ª série a preocupante notícia de que sua aprendizagem está atrasada. “A professora me aconselhou a procurar aula particular e eu vou tentar que ele melhore. Ele forma as palavras, mas tem dificuldade”, preocupa-se a mãe, que também recorre à Arca. “Quero melhorar pra ler todos os livros”, diz Rafael. Apesar de ser um quilombo urbano, o programa chegou ao bairro Marechal Rondon em 2009 por reivindicação da Associação Remanescente de Quilombo Chácara das Rosas. A assistente social Isabel Cristina Genelício, coordenadora da entidade, afirma que a biblioteca da cidade não é distante dali, mesmo assim os moradores não a frequentam. “Fica no Centro, é só para a elite. Quando vamos lá, os olhares nos constrangem. Apesar de ainda estar devagar, agora temos a Arca”, afirma Isabel, que sugere a inclusão de livros com temática racial no acervo. A composição da biblioteca muda de acordo com o perfil da comunidade, mas praticamente todas contam com autores consagrados como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Luis Fernando Verissimo, Mario Quintana, Clarice Lispector, Shakespeare, Franz Kafka, entre outros. Também há livros de história, alguns técnicos e muitos gibis, que são, disparado, os preferidos em praticamente todos os povoados. No ano passado, o quadrinista Mauricio de Sousa doou para o projeto 300 mil gibis que já se espalharam pelos rincões do Brasil. Eles estão fazendo o maior sucesso em Viana (ES), a 22 quilômetros de Vitória. Aberta em meados de maio no Quilombo Vila de Araçatiba, a Arca já conquistou adeptos. As agentes de leitura Rosinéia do
SOLIDÁRIA Ana Júlia, de Cachoeira Paulista (SP), espalhou cartazes no posto de saúde e na paróquia convidando todos a visitar a Arca das Letras, que em 2008 ainda estava em seu quarto
Nascimento Cristóvão, de 32 anos, e Renata Gomes Alves, de 17, ainda não a inauguraram oficialmente. “Queremos promover um teatro baseado em algum livro para lançar de verdade o projeto. Quando fizermos isso, tenho certeza de que os livros de literatura vão sair mais. Por enquanto, o que mais sai são os gibis. Meu filho Adriel, de 10 anos, ama. Adrieli, de 9, gosta menos, mas já começou a pegar gibis. O começo é assim mesmo, né?”, diz Néia, dona de casa e artesã que também participa do projeto de geração de renda chamado Costurarte, em cuja oficina está o baú de livros. A coordenadora do Fórum Comunitário de Araçatiba e mobilizadora do Costurarte, Janne Coutinho, está empolgada. “Nossa ideia era que a Arca não fosse uma extensão da biblioteca da escola. Às vezes, um idoso fica acanhado de ler na escola e, por isso, ter uma biblioteca aberta a todos é muito importante”, opina. “Quando a pessoa tem acesso à informação, ela não se sente à margem, percebe seu potencial e sabe que é capaz de se situar no mercado.”
INCENTIVO Crianças se entregam aos livros no quilombo Chácara das Rosas, perto de Porto Alegre. Rafael (de camiseta branca) quer melhorar e ler todos
ANDRÉA GRAIZ ANDRÉA GRAIZ CÉSAR PIMENTEL
Chegar longe
GIBI TAMBÉM TÁ VALENDO Na Arca do Quilombo Vila de Araçatiba, em Viana (ES), o que sai mais são os gibis. As agentes de leitura Renata e Rosinéia pretendem fazer um evento de incentivo à leitura na inauguração “oficial”. As bibliotecas sempre contam com livros de autores consagrados como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Luis Fernando Verissimo e outros, mas têm espaço para quadrinhos também. Mauricio de Sousa doou 300 mil gibis para o projeto
No ano passado, o professor Geraldo Prado, criador da maior biblioteca comunitária do mundo, em São José do Paiaiá, distrito de Nova Soure (BA), realizou a pesquisa Bibliotecas Comunitárias como Território de Memória no Semiárido Brasileiro, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Geraldo andou por 254 municípios, do Maranhão ao Espírito Santo, e mapeou as bibliotecas comunitárias de cidades com até 50 mil habitantes. O professor constatou que as bibliotecas públicas municipais funcionam pouco e precariamente. Por outro lado, acompanhou de perto o aumento no índice de leitura a partir de iniciativas das próprias comunidades. “Em mais de 90% dos casos, o poder público não tinha interesse na manutenção das bibliotecas municipais. Uma parte das iniciativas comunitárias é formada pela Arca das Letras e mais ou menos 80% estão funcionando satisfatoriamente, com resultado interessante para a população”, afirma Geraldo, que garante nunca ter visto um camponês do alto sertão, no semiárido, com um livro na mão. “Por isso achei a iniciativa brilhante. Mas, apesar de ser difícil, é preciso fazer um acompanhamento mais sistemático do projeto para potencializar o efeito.”
AUMENTAR O INTERESSE A Arca do Quilombo Chácara das Rosas chegou a pedido da comunidade, que considera a biblioteca da cidade elitista. A coordenadora Isabel sugere a inclusão de livros com temática racial no acervo
A coordenadora do programa, Cleide Cristina Soares, sabe disso. A cobrança pela atualização dos acervos é um dos problemas a serem resolvidos. Segundo ela, obras são enviadas com regularidade às comunidades, mas como a maioria é distante das cidades, muitas vezes retornam ao remetente porque ninguém aparece a tempo de retirá-las na agência dos Correios. Obras técnicas sobre agricultura, pecuá ria, piscicultura e trabalhos sobre cultura quilombola e indígena são pedidos constantes dos agentes. “O acervo é bom, tem títulos que são raros no mercado, mas é importante complementar com obras sobre nossa cultura”, sugere Janne, do Quilombo Vila de Araçatiba. Cleide aponta a dificuldade de conseguir doação de livros técnicos e afirma que os agentes recebem treinamento para fazerem, juntamente com a comunidade, a gestão coletiva de seus acervos. “Incentivamos que eles façam campanhas locais de doação de livros, com os autores próximos, de cultura local. Temos várias bibliotecas, com 2 mil, 3 mil e até 4 mil livros, que foram conquistadas sozinhas.” É um cultivo que não para de crescer. Mais de 80 mil comunidades manifestaram interesse em receber o baú de livros. Sinal de que a colheita promete mais frutos, como a alfabetização de dona Maria Virgínia e a leitura fluente de Rafael. Para que o projeto tenha continuidade, Cleide afirma que está sendo criada a Rede Nacional de Bibliotecas Rurais. “Apesar das dificuldades, nossas bibliotecas estão ajudando muitas pessoas. A criação da rede é importante para que elas não acabem caso outra equipe assuma. Será um forte espaço de mobilização e fortalecimento para que os livros cheguem cada vez mais longe.” JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
35
O poder de encantar as pessoas desde pequenininhas garante ao ritmo a sua longevidade. E bons negócios Por Guilherme Bryan
ANDREA PRADO/MELHOR IMAGEM
COMPORTAMENTO
O rock e uma E
m 1951, o discotecário Alan Freed, de Cleveland, nos Estados Unidos, utilizou pela primeira vez a expressão “rock and roll”. No mesmo ano, Jackie Brenston e Delta Cats lançaram a primeira canção do estilo, Rocket 88. O ritmo surgiu sob medida para uma juventude ávida por dar alguma vazão a sua natureza rebelde. E hoje qualquer sessentão como o rock sabe que a longevidade do ritmo vem do fato de as pessoas começarem a gostar dele desde criancinhas.
36
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
Para elas, o sábio mercado aprendeu a destinar roupas, videogames, CDs, livros, séries de TV. Crianças e adolescentes também se divertem em festas temáticas, aprendem a tocar instrumentos e montam bandas reverenciando ídolos do passado. “De maneira geral, o rock oferece uma música fácil de cantarolar, irresistível de sacudir e ótima de socializar. A garotada já nasce numa cultura em que o gênero está em toda parte, na propaganda da TV, no som ambiente, na internet e até no disco”,
analisa o crítico musical Arthur Dapieve. “Ou seja, essa é a trilha de suas vidas, mais que qualquer modismo pop efêmero das últimas décadas. Passa de pai para filho e, às vezes, vice-versa.” Há quatro anos, Gabriela Ruzzi, de 15 anos, e a tia Mariana Ruzzi, de 16, montaram a banda Nota Promissória, surgida quando se juntaram a uma amiga e assumiram, respectivamente, bateria, teclado e vocais para tocar em festas na cidade de São Carlos (SP). Com o reforço da guitar-
AIR GUITAR Adriano não vê a hora de poder comprar o Guitar Hero para os filhos Pedro Augusto e João Vitor
rista Nathalia Fernanda Dias, de 12 anos, e a contrabaixista Gabriela Rosalini, de 14, o grupo está prestes a lançar o segundo CD de canções próprias, já participou de vários festivais, abriu shows para artistas como CPM 22 e toca sucessos de Kiss, Guns N’Roses e Iron Maiden. “Ainda sofremos preconceito por sermos uma banda de crianças e de meninas. Desde o início, quando nos viam, diziam que iríamos tocar Xuxa e Balão Mágico. Aí começamos os shows anunciando tocar esses artistas infantis e tocamos Guns”, revela Gabriela Ruzzi. A paixão de Gabriela e Mariana por rock começou muito cedo, do convívio com o irmão da primeira e pai da segunda, Paulo. “Aos poucos, começamos a brincar, ela tocando violão e eu batendo nas panelas. Gostamos mais de rock antigo e meu pai sempre dá dicas do que podemos incluir no repertório”, conta Mariana. Elas conseguiram fazer até o empresário José Carlos Ruzzi, de 64 anos, que passou boa parte da vida escutando modas de viola, virar fã de rock. “As meninas são o orgulho da família e não perdemos um show delas, até porque só podem tocar se tiver um responsável direto presente”, frisa o pai.
Brinquedinho
Evelyn Rocha Martins, de 14 anos, começou a ouvir rock com o irmão dez anos mais velho. Estuda guitarra e sonha em montar uma banda só de meninas em São Sebas-
RODRIGO QUEIROZ
criança CAMINHO DO BEM Cecília e Fernando já iniciaram o pequeno Pedro
tião do Paraíso (MG). Ela espera a oportunidade de assistir a um show da banda Metallica, do guitarrista e ídolo James Hetfield. “Quando eu tinha 12 anos, comecei a comprar pôsteres e camisetas de artistas de rock e a conhecer outras pessoas que também gostavam”, conta. O carioca Luiz Otávio Faraco Oliveto, de 15 anos, sempre gostou de shows e costumava ir à extinta Banca de Blues, onde se apresentavam vários artistas iniciantes do Rio de Janeiro. “Desde bem pequeno ouvia com meu pai bandas como Led Zeppelin, Deep Purple, Pink Floyd e Rolling Stones. Depois, sozinho, fui procurar mais esse tipo de música e comecei a frequentar os shows que eram de graça, onde podia tocar na rua mesmo e ficar amigo das bandas”, conta. Luiz Otávio também toca guitarra e gosta de jogar Guitar Hero, um videogame que tem comando na forma do instrumento, com o qual o jogador simula a reprodução de clássicos de Jimi Hendrix, Van Halen, Joe Satriani, Slash, Guns N’Roses, Gene Simmons, Kiss. Há também os jogos Rock Band e Band Hero, que simulam bandas completas, com guitarra, baixo, bateria e vocais. “Estou me programando para até o final de ano dar para meus filhos Pedro Augusto, de 4 anos, e João Vitor, de 6, o Guitar Hero. Se tiverem o dom e a vontade de tocar, iremos atrás”, conta o gerente de vendas Adriano Rodrigues de Oliveira. Desde que os filhos nasceram, Adriano, de 38 anos, costuma escutar com eles bandas como Aerosmith, Twisted Sister e U2, e jogar o videogame Rock N’Roll Racing, da Super Nintendo, em que cada fase vencida é premiada com o som de um clássico do rock. Além dos videogames, há livros que se propõem a iniciar o público infanto-juvenil. O quadrinista francês Hervé Bourhis criou O Pequeno Livro do Rock, que retrata a história do ritmo em quadrinhos para todas as faixas etárias e acaba de ser traduzido para o português. A editora Nova Alexandria possui uma coleção a respeito da infância de grandes ídolos, inclusive do rock. Em O Jovem Elvis Presley, o jornalista Ayrton Mugnaini Jr. retrata a infância pobre do rei do rock, no período seguinte à Grande Depressão. Jordi Sierra i Fabra relembra, em O Jovem Lennon, o início de vida sofrido do beatle na cidade industrial inglesa de Liverpool. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
37
O rock também está presente nos seriados voltados ao público infanto-juvenil. No início do ano, estreou na emissora Disney XD, nos Estados Unidos e no Brasil, o sitcom musical I’m in the Band, estrelado pelo ator Logan Miller, que interpreta o adolescente Tripp Cambell, o qual se une à banda favorita, Iron Weasel. Para o lançamento, a Disney reeditou, com crianças, várias capas de álbuns clássicos como Abbey Road, dos Beatles, e Queen II, da banda de Freddie Mercury. A estratégia em torno do rock não é nova. Entre 1966 e 1968, a rede norte-americana NBC criou um seriado estrelado pela banda Monkees, uma tentativa de rivalizar com os ingleses dos Beatles.
Tal filho
RODR
IGO Q
UEIRO
Z
O sonho de tocar numa banda de rock ocorreu bastante prematuramente na vida de Drake Nova, que aos 2 anos, segurando uma guitarra de madeira, subia aos palcos em shows do Camisa de Vênus, grupo do pai Marcelo Nova. Aos 6 anos, ganhou uma guitarra de verdade e passou a fazer no palco o solo da música Simca Chambord.. Hoje, com 12, Drake tem uma banda que faz cover de famosas, como AC/DC e Metallica. “Numa casa como a minha, onde em 100% do dia toca rock, não tem como não gostar. Quando era bebê, eu só conseguia dormir ao som de Stray Cats (banda banda norte-americana de rockabilly). ). Com meu pai, lembro de ter ido ao show do Bob Dylan, em Porto Alegre, e de frequentar a Galeria do Rock, no Centro de São Paulo”, conta Drake. De olho em precoces como ele, a marca de moda carioca Q-Vizu possui coleções temáticas voltadas a crianças, de recém-nascidos até 10 anos. “Passar dos limites e não se permitir ser muito politicamente correto é uma atitude bem roqueira, transgressora e justamente o que buscamos, assim como fugir do que o mercado oferece”, diz Renata Grimberg, jornalista e sócia da grife. 38
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
CLÁSSICOS Luiz Otávio: “Desde bem pequeno ouvia com meu pai bandas como Led Zeppelin, Deep Purple, Pink Floyd e Rolling Stones”
NO SANGUE Aos 6 anos, Drake já fazia o solo de Simca Chambord, do Camisa de Vênus, no qual cantava o pai Marcelo Nova
MAURICIO MORAIS
MAURICIO MORAIS
GOSTO APURADO A banda Kiss é a preferida de Victoria e Pietro, filhos de João Gordo e Viviana
Com lojas em São Paulo, Rio de Janeiro e Cuiabá (MT), a marca Mini Humanos oferece desde travesseiros em forma de guitarra até babadores, batas e bodies de temática roqueira. Destaques para coleções como Grunge – com camisetas inspiradas nas bandas Nirvana e Pearl Jam, e com bermudões e camisas xadrez – e Woodstock, o famoso festival de 1969 que marcou o ápice do movimento hippie. “São temas com que o adulto se identifica e quer ‘ensinar’ para o filho. É uma brincadeira que promove aproximação. O pai pode não ligar muito se o filho está vestindo ursinho, mas adora vê-lo com a camiseta da banda preferida”, aposta a empresária Ana Carolina Pinheiro. A rede de restaurantes Hard Rock Café, por sua vez, oferece festa temática para o público infanto-juvenil, nas filiais do Rio de Janeiro e de Nova Lima (MG). “Realizamos dez festas por mês”, diz Rosa Dornelas, da filial carioca. O aniversário de 12 anos de Bianca Lara, em 8 de junho, foi no local que gosta de frequentar com os pais. “Ela já não está mais na fase de curtir festas em bufê com brinquedos. Descobrimos a festa temática, que é realizada numa sala reservada onde são colocados balões coloridos, um deles preso a uma guitarra, com o nome da Bianca. Também tem DJ tocando
músicas escolhidas pela aniversariante. Foi muito bom e as crianças adoraram”, comemora a mãe, Maria Soraya Lara. Alguns pais preferem “amaciar” os ouvidos dos pequenos antes de radicalizar. Maria Cecília Gouvêa Galhardo, de 41 anos, mãe de Pedro Galhardo Fraguas, de 3, é cliente da grife Mini Humanos. Pedro começou ouvindo CDs de clássicos de bandas e cantores consagrados – como Beatles, Bob Marley, Queen, AC/DC, The Cure, U2, Green Day, Pixies e Coldplay – em versões de ninar. E adora Shrek e Bob Esponja, desenhos com trilhas bastante roqueiras. “Comecei a gostar de rock na adolescência e meu marido, Fernando, que é mais roqueiro do que eu, adora rock pesado. Já acorda cantando e não só coloca o Pedro para ouvir, como dança com ele e chacoalha a cabeça. Também sempre procurei roupas transadas para ele, não gosto de mesmice e acho muito charmosa criança vestida de preto”, explica. Beatles for Babies foi o primeiro CD que Victoria, de 6 anos, ganhou dos pais, o apresentador de TV João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão, e a jornalista Viviana Torrico Benedan. Antes, assim como o irmão Pietro, de 4 anos, Victoria já ouvia música na barriga da mãe. “O fato de serem filhos de pais roqueiros interfere e muito. Até determinada idade, as crianças são um claro reflexo do que acontece em sua casa. Afinal, meu marido é vocalista do RDP há 27 anos, trabalha com isso e em casa se respira música. E o figurino do rock também está muito presente nas crianças”, observa Viviana. A jornalista lembra de faxinas de sábado em casa ao som de Vídeo Macumba, música dos Ratos de Porão. Agora leva os filhos em shows em horários possíveis para a idade e em locais pequenos e amigáveis. E organiza festas de aniversário com tema do Kiss, com direito a banda cover, chuva de papel picado e lembrancinhas como bottonse adesivos. Não é à toa que o grupo formado em Nova York em 1973 é um dos preferidos das crianças. Afinal, além das músicas, os integrantes se apresentam com o rosto pintado de branco, detalhes em preto e batom vermelho nos lábios, cospem fogo e sangue em shows que incluem guitarras esfumaçantes e muitas pirotecnias. O que para adultos parece um espetáculo radical, ao olhar da criança pode parecer um circo. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
39
CULTURA
APLAUSOS! O artista de rua não tem patrão e enfrenta dificuldades como qualquer trabalhador. A satisfação do público, seu maior reconhecimento, é o combustível para o dia seguinte Por Nina Fideles
40
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
D
e segunda a segunda lá estão eles, em palcos improvisados nas calçadas e semáforos. O público, salvo as poucas exceções, quase sempre está apressado. Ou observa tudo de dentro dos carros, com a atenção da duração de um sinal vermelho. O artista é autônomo. Decide seu horário, não tem patrão, empresário, mas também enfrenta as dificuldades do dia a dia de um trabalhador “por conta”. Desdobra-se para intervir com música, mágica, teatro e cor na paisagem cinza das metrópoles e para despertar a atenção do público. Nem sempre o trabalho é respeitado, ainda
existe preconceito e repressão. O reconhecimento é o principal combustível para os dias seguintes de quem optou por sobreviver de sua arte. O povo, como plateia, observa, absorve a arte para encarar a vida com mais som e graça. E retribui. Nem o frio, nem a garoa impedem o trabalho. No Centro paulista, são comuns as rodinhas de pessoas que param um minutinho para o espetáculo. Na Praça da Sé, o sanfoneiro Luís Ramalho da Silva, o Piauí da Sanfona, de 33 anos, está abraçado ao instrumento, junto com os companheiros do grupo Luar do Sertão. O dono da banca de jornal grita: “Eaê! Esse forró começa ou
REGINA DE GRAMMONT
JR. PANELA
Para Camila, de Fortaleza, atuar nos sinais é uma demonstração de habilidade em troca de uma recompensa
não começa?”. Piauí explica que estão parados desde cedo, pois foram alertados pela Guarda Civil Metropolitana de que podem ter os instrumentos apreendidos. “Esse prefeito não tem moral” – diz, e mostra uma cópia plastificada do Diário Oficial do Estado de São Paulo que dizia que todo artista pode se apresentar livremente nas ruas. Na prática é bem diferente. Nas ruas há oito anos, Piauí da Sanfona conta com os parceiros Luciano, Zé Irton, José Cícero, Francisco e Geraldo Oliveira do Nascimento, o Dengoso, seu braço direito que auxilia na venda de CDs e no contato com a imprensa. O apelido vem da fama com as moças e ele confirma: “Nas horas de folga a gente aproveita pra namorar”. Quando não estão na Sé, tentam outras cidades mais próximas. “Onde dá pra tocar a gente tá lá. Mas teve vezes que não tinha nem o da passagem”, afirma Piauí. Segundo ele, em dias bons chegam a tirar uns R$ 300, contando com a venda de CDs e uma jornada de trabalho de quase dez horas. Piauí sonha com o sucesso. O Luar do Sertão já esteve em programas de TV. “Eu sou nordestino e não desisto. A gente vive disso, é a nossa profissão.” Em outro ponto Paulo Gaeta da cidade, na Avenicanta ópera da Paulista, Fernanna Avenida do Loko, 21 anos, dedilha na guitarra Paulista. Às um som de Bob Marvezes volta ley a pedido de uma de mãos turista francesa. Devazias para pois da primeira múcasa. Mas sica, ele segue no regdesistir, gae até ela ir embora, depois de tirar fotos e nunca aplaudir o rapaz. No chão, o case da guitarra aberto mostra moedas e cédulas. A noite de trabalho estava apenas começando. De sobretudo preto e chapéu branco, canta Belchior: “Por isso, cuidado, meu bem, há perigo na esquina...” Nascido em Itanhaém, litoral paulista, Fernando está na capital há um ano. Entre uma fala e outra, “filosofa”, ou entoa uma frase de Raul Seixas, Renato Russo ou Cazuza e um riff de guitarra. Tem orgulho de pagar seu aluguel com a música, mas o que mais gosta é de “tocar e trazer um sorriso, alegria ao coração das pessoas”. Por isso continua em São Paulo, mesmo com a reprovação de sua família. Para poder atender aos pedidos, seu repertório deve ser JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
41
em muitos voltei sem nada pra casa. Mas desistir? Nunca! Eu sou um artista”, conclui. Para incentivar as pessoas a contribuir, brinca: “Quem quiser pode por uma moedinha, uma maçã, uma pêra... A plateia, que se forma se desmancha em questão de minutos”, ri. Paulo segue a linha da commedia dell’arte, uma forma de teatro surgida no século 15, na Itália, que se contrapunha à comédia erudita, com estilo popular e improvisado. Um teatro originalmente feito em praças públicas e ruas. Uma forma de protesto. “Chamar
RODRIGO QUEIROZ
amplo. E se pudesse tocaria “24 horas por dia”, diz, mostrando os dedos calejados de tanto percorrer as cordas do instrumento. Em dias de semana também arrisca se apresentar dentro dos ônibus que circulam na própria Paulista. O músico admite conviver com doses de preconceito diariamente. Conta que quando se apresentava na Teodoro Sampaio, rua conhecida pelas lojas de instrumentos musicais, já foi “botado pra correr por policiais” e xingado de vagabundo. “Não acredito tanto no sucesso. A mídia pode te levantar e te
Shaolin desenha há 30 anos em frente ao Municipal do Rio
Commedia dell’arte
Paulo Gaeta, de 59 anos, também acredita que expor a arte na rua é um ato de coragem. É levar para as pessoas aquilo em que você acredita. Travestido de mulher, com maquiagem e um vestido longo preto, Paulo canta antigas músicas de ópera que saem de um pequeno toca-fitas. Entre uma música e outra, clama: “Aplausos!”. Com fala firme e um conhecimento amplo sobre inúmeras áreas, Paulo não tem meias-palavras. Comenta a história do tea tro no Brasil, política, filosofia, arte. Como a maior parte dos artistas que opta pelas ruas, as dificuldades financeiras são sempre as primeiras a aparecer. “Tem dias que a gente consegue tirar uns R$ 40, R$ 50, mas
42
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
a atenção de uma pessoa na rua pra mim é superimportante, considerando esse estado de anestesia em que vivemos hoje em dia. Não é preciso aglomerar multidões.” Nessa trajetória de quase 20 anos, já foi expulso pelos feirantes da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, zona oeste paulistana, que reclamavam do “barulho”. Mas encontrou o seu lugar na Avenida Paulista, na altura do número 1.000. E compartilha de um de seus momentos mais alegres, quando duas senhoras habituadas a passar por ali falaram: “O senhor nos dá muito prazer e, quando morrer, que os anjos o recebam com a mesma alegria que você nos dá aqui na Terra”.
REGINA DE GRAMMONT
derrubar. Se eu ficar famoso, legal, mas eu penso mais em ser feliz, continuar fazendo o que gosto. Vou morrer, mas não vou parar de tocar. Muitos podem até saber tocar guitarra, mas poucos têm a coragem de tocar aqui.”
Entre traços
Com fala mansa e muita história para contar, Leônidas Silva, 52 anos, é conhecido pelo nome artístico de Shaolin. Desenhista, músico, ator... aos poucos vai-se descobrindo suas habilidades. Em frente ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Shaolin há 30 anos é
Na Praça da Sé, centro de São Paulo, o grupo Luar do Sertão arrasa no forró
ANDRÉA GRAIZ
famoso por seus desenhos e pinturas. Desenha pessoas com os mínimos detalhes. Por encomenda, baseando-se em retrato, ou ao vivo. Mora em Duque de Caxias, mais precisamente no Xerém, “a comunidade do Zeca Pagodinho”, faz questão de frisar. Gaúcho, teve uma bolsa para estudar teatro no Rio de Janeiro em 1985. Os projetos foram surgindo, nunca mais voltou. Fama? Shaolin diz que as pessoas o reconhecem na comunidade e no centro da cidade, e vão falar com ele. “Mas fama é uma coisa, fazer dinheiro é outra”, conta. “A gente sofre, mas se diverte. Arte é pintar o que eu gosto.” Prazer é o que também move o artista plástico Walter Silva, 32 anos. Nascido em Maringá (PR), nos últimos seis anos já passou por diversos estados, e sua rota prevê a travessia do país em direção à Guiana Francesa. Trabalhou como tatuador até sofrer um acidente nas mãos. A fisioterapia o incentivou a lidar com cerâmica. “Tinha um pouco de vergonha, até que um dia uma
mulher elogiou muito meus quadros e pediu que eu fizesse mais dois para ela comprar”, conta. “Uma vez uma moça me pediu para fazer um quadro com paisagem de praia. Eu fiz, todo mundo aplaudiu, e ela, com cara de desapontada, disse que iria levar para me ajudar. Quando ela abaixou a cabeça para pegar o dinheiro na carteira, eu apaguei o desenho todinho. Eu vendo arte para quem a aprecia e não pra quem quer ajudar... Faço de coração.”
Transe
No centro de Porto Alegre, Alexander Rodrigo, 30 anos, está imóvel enquanto as pessoas passam ao seu redor no ritmo frenético da Rua dos Andradas (mais conhecida como Rua da Praia), o local que o adotou. Ele começou fazendo uma múmia e foi adaptando o seu personagem, até se encontrar nessa figura prateada, “meio garçom, meio robô”, como ele mesmo define, mas gosta mesmo é de pensar que o público imagina o que quer na figura que representa.
Em dias próximos ao do pagamento dos salários e nos períodos festivos, como Natal, Dia das Mães, Alexander consegue tirar até um pouco mais de R$ 50. A cada moeda depositada na latinha, ele sai do transe e entrega um papel decorado com mensagens positivas de autores diversos. “Num gesto robótico, entrego para a pessoa uma mensagem de paz, de otimismo, que é o que me faz mais presente ali.” Como ele não enxerga o que está acontecendo ao seu redor, algumas pessoas depositam pedras, moedas antigas e tudo o mais. Teve uma vez que alguns meninos ainda se atreveram a roubar a sua latinha e ele, com toda a vestimenta prateada, correu atrás da molecada. “Eu não busco a Alexander fama, eu busco engosta de volver, e a alegria do pensar que público é o meu reo público conhecimento.” imagina o Para isso, o trabaque quer na lho requer prática, ensaio, dedicação. Ca figura que mila Pessoa, de 34 representa anos, teve seu prina Rua dos meiro contato com a Andradas, arte circense em 2005. em Porto Desde então, treina técnicas e se desafia a Alegre trabalhar com diversas linguagens para atingir seu objetivo. Música, mímica, circo. Nos semáforos de Fortaleza, em ruas conhecidas, desconhecidas, em teatros ou circos. Segundo ela, a reação aos malabares em semáforos vai do preconceito – de quem a vê como pedinte – ao olhar gratificado: “Eu faço semáforo e entendo como uma experiência para desenvolver a coragem, a autoconfiança. O novo circo não é o circo do picadeiro, mas também não é o do semáforo”. Para ela, atuar nos sinais é uma demonstração de habilidade em troca de uma recompensa. Se a exibição é numa roda de rua, a forma de expressar e a reação do público são outras. Em todo caso, as pessoas retribuem com o que acreditam que o artista merece. Camila faz de seu ofício também estudo, um ato de zelo com o corpo e a mente, um exercício de autoconhecimento, explica: “Sou muito feliz com o que faço. E estando feliz, isso me fortalece muito. O artista é uma figura, uma representação. Não sei exatamente o que espero, talvez seja comunicar bem a minha felicidade”. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
43
VIAGEM
China
Nepal Nepal pal Ban anglade desh sh Índia
Mianmarr
nói ói Laos H nó
Tailândia Tailândi
Vietnã
V
Cam mboja Ho Malási alási sii
REVISITADO Viagem ao país do “socialismo de mercado” Por Bernardo Kucinski
E
u e minha mulher somos de gerações que viveram cada minuto da Guerra do Vietnã (19591975), uma das mais sangrentas de todos os tempos. Por isso, nossa visita de 18 dias a esse país, e também ao Camboja – vizinho do sudeste asiático também atingido por conflitos decorrentes da Guerra Fria – teve um sentido muito especial. Eu, um pouco mais velho, ainda lembro o cerco de Dien Bien Phu, comandado pelo general Giap, que forçou os franceses à rendição. Milhares de soldados emergiram de repente das florestas próxi-
44
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
mas, a pé e de bicicleta, surpreendendo e subjugando a prepotência francesa. Essa imagem dos homens pequeninos, magrelas e quase invisíveis vencendo a soldadesca ocidental hiperequipada – primeiro os franceses, depois os americanos – acompanhou toda a guerra em que foram despejados 8 milhões de toneladas de bombas e 72 milhões de litros de desfolhantes químicos, matando 3 milhões de vietnamitas e queimando um milhão de hectares de mata nativa. Os B-52 americanos despejaram no Vietnã três vezes mais bombas do que em toda a Segunda Guerra Mundial.
Foi também a guerra mais criticamente coberta pelo jornalismo ocidental. No Museu de Guerra que visitamos em Saigon, hoje chamada Cidade de Ho Chi Min, uma exposição homenageia 134 fotógrafos de 11 nacionalidades que morreram na cobertura do confronto ou foram levados à loucura pelas atrocidades que testemunharam. Ali estava a foto emblemática dessa guerra, a da criança nua correndo desesperada depois de atingida pelas bombas incendiárias de Napalm. O país hoje é um formigueiro em atividade, onde todos correm para recuperar o tempo perdido. A renda per capita ainda é
NGUYEN HUY KHAM/REUTERS
M.Y. KUCINSKI NGUYEN HUY KHAM/REUTERS
PONTO TURÍSTICO Sentinela na entrada do mausoléu de Ho Chi Minh
RÚSTICO Búfalos ainda são usados nas lavouras de arroz
muito baixa, US$ 700 por ano, um décimo da nossa. O salário mínimo também é um décimo do nosso: US$ 30. Embora todos os preços sejam baixos, esses valores dão uma ideia do tipo de vida, ainda austera, que levam os vietnamitas. A guerra consumiu gerações inteiras. A maioria esmagadora da população hoje é de jovens, o que talvez explique o predomínio da motocicleta como meio de transporte. Quase não há transporte coletivo e são poucos os carros. Enxames de motos dominam as ruas. A moto mais barata vem da China e custa US$ 300, diz nosso guia, senhor Tchin. Equivale a dez meses de salário mínimo. Em Cidade de Ho Chi Minh há 4 milhões de motos para 2 milhões de famílias. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
45
O veículo está para o corpo do vietnamita como o celular está para os nossos sentidos. “Sem ela você não existe”, diz Tchin. Num parque de Hanói vi uma cena emblemática: duas motos “namorando”. Isso mesmo, estavam estacionadas, uma encostada na outra, um pouco atrás de seus respectivos donos, recostados na grama. O regime político é de partido único, o Partido Comunista do Vietnã, fundado em 1922. Falamos tanto em China e em Cuba, e esquecemos que esse pequeno e populoso país – de 86 milhões de habitantes – também deve ser analisado como uma experiência de “socialismo real”. A soviética colapsou, a chinesa caminha rapidamente para o capitalismo total. E a vietnamita? Uma grande diferença entre o Partido Comunista do Vietnã e os demais é o fato de ele ter proposto e conduzido desde o início uma guerra de libertação nacional, não uma revolução social. Depois da expulsão dos americanos e da unificação do país, adotaram o modelo de economia planificada, com metas quantitativas de produção. Mas logo o abandonaram, assustados pelo colapso da União Soviética e sua própria estagnação econômica. Desde 1987 os dirigentes vietnamitas chamam sua experiência de “socialismo de mercado”. Deixam ao mercado a determinação de preços e emulam a competição e o esforço pessoal de cada um, mas não deixam que o mercado mande no destino do país. Esse destino, diz vagamente o partido, ainda é o socialismo. A experiência parece agradar à população, embora alguns aspectos a assustem. Por exemplo, discrepâncias entre serviços médicos públicos e privados, fato que nós brasileiros conhecemos bem. A produção cresce 7% ao ano em média, com indústria e serviços superando em valor a agricultura, uma medida de modernização. Em toda a parte se veem novas escolas e hospitais. Estradas modernas cortam o Delta do Mekong (onde o rio desemboca no mar). No campo, uma reforma agrária deu a cada família 360 metros quadrados por pessoa – numa família de quatro, são 1.440 metros quadrados para plantar o arroz. O Vietnã é um dos maiores exportadores mundiais desse grão. Apesar de proliferação de bandeiras vermelhas e faixas alusivas à guerra, nada no cotidiano lembra um regime comunista,
46
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
FOTOS REUTERS
Dono do destino
POPULAR Praticamente não existe transporte público. Motos e bicicletas tomam as ruas
como o imaginamos, ou qualquer regime movido por uma ideologia ou um sentido de missão ou redenção histórica. Esse contraste foi o que mais me impressionou. No topo, uma estrutura de Estado, comandada por partido único, fortemente marcada pela ideologia, fraseologia e procedimentos típicos da abordagem marxista, como se vê pelos documentos oficiais. Na base, uma economia capitalista parecida com qualquer outra, com empresas de todos os tipos, inclusive estrangeiras, comércio totalmente privado, povo laborioso que não dá a menor pelota para a ideologia, voltado à necessidade de vencer na vida, educar os filhos o melhor possível. Ninguém liga se você é do Partido Co-
munista ou não, isso não é assunto no cotidiano. Não precisa ser membro do partido para ter emprego, diz o nosso guia. Para ser professor precisa? Não, mas para ser diretor de escola precisa. Ou seja, o partido funciona como uma espécie de qualificação. Faz no Estado vietnamita o papel que faz o diploma de curso superior nos concursos públicos do nosso sistema. Com a diferença, entre outras, de que com a qualificação vem o controle. Para fazer carreira no serviço público, virar um dirigente, precisa ser do partido. No partido se dão as discussões, as decisões e se cobra a obediência.
Sem medo
Nas ruas, o ambiente é de liberdade. Não
SAGRADA Educação é obrigatória
DESORDENADO Como no Brasil, prédios modernos contrastam com a pobreza
se nota medo de falar, medo de vigilância, controles do ir e vir. Nada disso. Nadinha. Os jornais denunciam corrupção nas licitações de obras públicas. Uma comissão especial vai estudar como reduzir a corrupção. Falam da exploração do trabalho infantil. Uma campanha vai tentar acabar com isso. Parece Brasil. Um regime benigno, quando comparado aos vizinhos Camboja e Laos, nos quais ainda se veem mendigos nas ruas e o analfabetismo chega a 50%. Tenta melhorar a vida de todos. A educação básica é obrigatória. Doze anos de escola, tempo integral, oito horas por dia. O analfabetismo caiu de 70% para 3%. Por toda a parte há bandos de estudantes. Quem não mandar filho para a escola fica com a ficha suja na prefeitura. Pode até ter dificuldade na hora de procurar emprego. Ai sim, tem um controle estrito, mas é algo mais parecido, digamos, com o do nosso Bolsa Família, ou o sistema japonês de controle comunitário. O ensino básico não é totalmente gratuito porque os pais precisam pagar pelo material gasto no ensino: giz, papel e tudo o mais. Também é costume dar uma gratificação ao professor para compensar os salários, que são muito baixos. Tudo isso custa pouco, lembra a nossa antiga “caixinha escolar”. As famílias podem pagar sem sacrifício, mas a prática tem a função importante de atribuir valor ao que o Estado provê. Essa foi a grande revolução econômica introduzida pelo PC do Vietnã, a partir do seu 6º Congresso, em 1987. Trabalhar com o conceito de valor. Acabar com os preços artificiais, fixados burocraticamente e sem relação com os custos.
Os comunistas vietnamitas, ao contrário de muita gente que se diz de esquerda no Brasil, concluíram que a revolução tecnológica iniciada nos anos 70, em especial a instauração de graus elevados de competição em escala global, obrigam todas as economias a trabalhar com o conceito de valor e abandonar o princípio do igualitarismo na remuneração do trabalho, pelo qual todos ganhavam o mesmo, fossem mais preparados ou menos preparados, mais dedicados ou mais acomodados. O que parece amarrar tudo isso, segundo alguns documentos do partido, é a existência de um projeto nacional, de que tudo o que se faz tem de estar subordinado a objetivos nacionais e sociais, por sua vez modificados ou retificados a cada número de anos. Essa viagem também me fez recordar o Brasil da era JK. A corrida para recuperar o tempo perdido lembra os 50 anos em 5 de Juscelino. As novas estradas, a relativa pobreza daquela época, ao mesmo tempo o burburinho do crescimento. Até a paisagem do Vietnã lembra o Brasil dos anos 1950. Há cajueiros por toda a parte, mangueiras, abacateiros e bananeiras. A grande diferença está na estrutura das vilas e pequenas cidades vietnamitas, todas erguidas ao longo das estradas. Na frente, os pequenos prédios da largura de uma porta de loja, ao fundo os campos de arroz. De repente surge um prédio público, quase sempre novo em folha, uma escola, um hospital, um quartel, num estilo francês colonial leve, com dois ou três pavimentos, pintado na cor amarelo ocre, como a lembrar que um dia aquelas terras foram território colonial francês.
Guerra quente A batalha da cidade de Dien Bien Phu, no então Vietnã do Norte, marcou a primeira grande derrota de poderosas tropas ocidentais contra as modestas mas disciplinadas forças vietnamitas. A batalha vencida pelos asiáticos em 1954 representou o fim da colonização francesa na Indochina. A Guerra do Vietnã, deflagrada cinco anos depois, já não era anticolonização. Foi o segundo grande conflito (depois da Guerra da Coreia, 1950-1955) detonado pela Guerra Fria, que durante metade do século 20 opôs o mundo capitalista liderado pelos Estados Unidos ao bloco socialista liderado pela exUnião Soviética. A partir de 1959, o confronto envolveu diretamente Vietnã do Norte (comunista) e do Sul (capitalista). A partir de 1964, os Estados
Unidos enviaram tropas e armamentos para campos de batalha que se estendiam, além dos dois países, por Laos e Camboja. Os vietcongues e suas táticas de guerrilha, tendo a selva como aliada, deram canseira aos invasores. No final da década de 1960, o fracasso da intervenção norte-americana estava exposto. Em 1968, os norte-vietnamitas invadiram o Sul e tomaram a embaixada americana. A reação dos EUA desencadeou o período mais sangrento da guerra. O mundo assistia pela TV às atrocidades das batalhas. Cresceu a resistência mundial à intervenção, inclusive dentro dos EUA. Sem apoio, o governo americano aceitou em 1973 um acordo de cessar-fogo. Dois anos depois retirou de vez suas tropas. Em 1976 foi criada a República Socialista do Vietnã, unificando Norte e Sul.
LENDA VIVA O general Giap, que forçou a rendição francesa
JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
47
CurtaEssaDica
Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)
Para crianças grandes
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
À primeira vista, Onde Vivem os Monstros pode parecer filme infantil. Mas, apesar dos bichinhos de pelúcia, a infância tem abordagem bem adulta. De Spike Jonze, diretor de Quero Ser John Malcovitch e Adaptação, a obra conta a história de Max, que depois de fazer uma malcriação vai parar numa ilha habitada por bichos. Na verdade, é o lugar onde as crianças podem mostrar seus desejos e sentimentos não domados. Baseado no livro homônimo de Maurice Sendak, curtinho e repleto de ilustrações, o filme (não é animação) até pode ser visto pela família toda, apesar do alto teor de melancolia.
Recriações
Um leitor desavisado e fã de Chico Buarque reconheceria os contos já nas primeiras páginas. As músicas do compositor carioca inspiraram dez autores em Essa História Está Diferente (Cia. das Letras, R$ 45), organizado por Ronaldo Bressane. Alguns textos baseiam-se fielmente nos causos musicados, outros são inspirados e há ainda os que usam a estrutura da canção ou as músicas como trilha. Feijoada Completa foi recriada por Luis Fernando Verissimo e Xico Sá reescreveu Folhetim, um triângulo amoroso contado por um carioca desmemoriado. Tem também contos de Mia Couto, Alan Pauls, Mario Bellatin, Rodrigo Fresán, Carola Saavedra, André Sant’Anna, Cadão Volpato e João Gilberto Noll.
Filósofo do samba
Em comemoração aos 100 anos de nascimento de Noel Rosa, Martinho da Vila lançou O Poeta da Cidade (Biscoito Fino, R$ 34,90), com músicas individuais do homenageado, exceção para Filosofia, feita com André Filho. Minha Viola e Rapaz Folgado, Martinho canta com a filha Mart’nália. Também estão no álbum Três Apitos, Último Desejo, Seja Breve, Coisas Nossas e O X do Problema. Acompanham Martinho vozes novas como a de Analimar Ventapani, Maíra Freitas, Patrícia Hora, Ana Costa e Aline Calixto. Depois de quase 20 anos, Elifas Andreato volta a assinar uma capa do sambista carioca.
Joga bola Na exposição O Jogador, em cartaz na Caixa Cultural Rio de Janeiro até 15 de agosto, o fotógrafo Rogério Faissal mostra sua paixão pelo futebol. Partidas informais e improvisadas no campinho, na areia da praia, na rua são apresentadas por meio de um mecanismo feito com caixas de madeira pelo
48
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
qual o espectador pode movimentar as imagens – o que faz lembrar as antigas moviolas do cinema. Para aumentar ainda mais o clima de “pelada”, o chão da sala leva grama sintética e o som ambiente é bem característico. De terça a sábado, das 10h às 22h; domingos até 21h. (21) 2544-4080. Grátis.
POSTER DE LAN DA EQUIPE CAMPEÃ DE 1970
A BOLA NÃO PARA
Zózimo (1953)
Depois de um mês inteiro de Copa, mais futebol. Está em cartaz até 29 de agosto no Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera, a exposição De Arthur Friedenreich a Edson Arantes do Nascimento – O negro no futebol brasileiro. A mostra conta com reproduções fotográficas, esculturas, objetos, peças promocionais, caricaturas, textos, publicações e filmes biográficos de futebolistas como Arthur Friendenreich, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Castilho, Didi, Djalma Santos, Jairzinho e, é claro, Garrincha e Pelé. Trata-se de uma celebração àqueles que fizeram do
futebol a paixão nacional e à primeira realização de uma Copa do Mundo em território africano. O brilhantismo de Pelé rendeu à exposição duas esculturas de Humberto Cozzo, um quadro de Aldemir Martins e fotografia de Madalena Schwatz. Toda a documentação apresentada foi pesquisada em veículos da imprensa brasileira a partir de 1920 até o ano do tricampeonato brasileiro, em 1970. O espectador poderá ler O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho, Negro, Macumba e Futebol, do antropólogo alemão Anatol Rosenfeld e À Sombra das Chuteiras Imortais e A Pátria em
Barbosa (1950)
Chuteiras, coletâneas de crônicas de Nelson Rodrigues. As caricaturas de Miécio Caffé, publicadas em A Gazeta Esportiva, e os filmes biográficos de Garrincha e Pelé são imperdíveis. É assim que vem à tona a história do nosso futebol, surgido numa elite social rica e de origem europeia, mas que se tornou cada vez mais brasileiro a partir da difícil aceitação dos atletas afrodescendentes. O resultado e a reflexão desse processo podem ser conferidos na exposição. E nos campos de futebol do mundo todo. Com curadoria de Emanoel Araujo. De terça a domingo, das 10h às 17h. (11) 5579-0593. Grátis. JULHO 2010 REVISTA DO BRASIL
49
Crônica
Por B.Kucinski
A aposta
Morri numa sexta-feira, às 11 da noite. Morte horrível. Estúpida. Não podia ter acontecido. Agora, que tudo acabou, vou contar como foi
V
B.Kucinski é jornalista e escritor
50
ou tentar, porque não é fácil; eu mesmo custei a entender. Acho que começou no dia que o Rocha propôs a aposta. Rocha é o supervisor. O carro que terminasse primeiro ganharia um extra. A nossa rota começava na Lisboa pegando todas as paralelas até o lado par da Pedroso. A maior parte, lixo de apartamento. Mas tinha também lixo de loja, de botequim, de restaurante. Muito restaurante. O lixo de loja os catadores pegavam antes para separar o papelão. A gente tinha um acordo. Deixava eles passarem antes, em troca, não bagunçavam o lixo. Os dois saíam ganhando. Mais papelão para eles, menos lixo para nós. Gente fina esses catadores, nunca teve briga. Com os restaurantes era complicado. Um sufoco de lixo. Fedido, derramando. Os ajudantes não colaboravam, mesmo com os donos falando. Os donos até que eram legais, sempre davam alguma coisa boa para a gente levar pra casa. Alguns já deixavam tudo embaladinho no isopor. Bem, mas estou desviando do caso. O fato é que começou essa corrida besta. O nosso carro contra o do Jota. O do Jota pegava as paralelas do lado ímpar da Pedroso até o Rio Pinheiros. Lá também tem apartamento, mas a maior parte do lixo é de oficina e de loja. Muita oficina. Primeiro bolamos um jeito de catar o lixo depressa sem ter de correr. O Alcides ia na frente juntando os sacos, fazendo montinhos, enquanto o Figa dirigia devagar. Depois, era só arrebanhar, e com o carro parado, o que era uma vantagem. A gente não se cansava. Mas a turma do Jota teve a mesma ideia. Ou viu a gente fazer e copiaram. Só sei que se a gente ganhava num dia, eles ganhavam no outro. Se a gente apressava um pouco mais e ganhava, no outro dia eram eles que apressavam. O Rocha só ria, filho da puta. Não sei como nós caí-
REVISTA DO BRASIL JULHO 2010
mos nessa. A gente corria cada vez mais e eles também. Até que virou uma corrida só. O carro nem parava mais. Nem perto dos montes. A gente jogava os sacos com o carro andando mesmo. A máquina só triturando, triturando e nós atirando os sacos e correndo, atirando e correndo. Cada vez correndo mais. A máquina triturando e nós correndo. Naquela sexta foi uma loucura. Sexta é dia de faxina nas lojas, mais movimento nos botecos, nos restaurantes, tem muito lixo. Uns sacos enormes. Pesados. Quando era um saco mais pesado eu levantava e girava ele, primeiro devagar, depois bem depressa, rodopiando junto com o saco e quando ele pegava velocidade soltava e lá ia ele direto para a boca da máquina, triturado na hora. Foi assim que aconteceu; nós já estávamos quase na Pedroso, e eu topei com aquele saco. Não era grande, mas era pesado. Gostoso de rodopiar. E eu com a cabeça na Lua, pensando na merda que era aquela vida de lixeiro. Na sacanagem do Rocha. Como é que fomos cair nessa? Fui sentindo ódio e fui rodopiando, ódio e rodopiando, ódio e rodopiando, e o saco girando cada vez mais rápido. E eu também. Só que em vez de soltar eu pulei junto. Caímos direto na boca do triturador, o saco de um lado, eu do outro. Só senti o golpe no ombro; a cabeça foi logo esmagada e não senti mais nada. O Alcides bem que gritou, mas com o barulho da máquina o Figa não ouviu. Não sobrou nada de mim. Se o Alcides não tivesse visto eu pular, estariam me procurando até hoje. Só deram o atestado porque ele jurou que viu e encontraram a fivela com a minha inicial. Nem meus dentes acharam. Tudo moído. Fizeram o enterro sem nada dentro do caixão. Nada é modo de dizer. Tinha lá uns restos de lixo fedido. Vai saber se era eu ou se era sobra de restaurante.