ENEM Falhas são pequenas diante das oportunidades trazidas pelo exame
nº 54
dezembro/2010
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Trabalhadores do Estaleiro Atlântico Sul, em Pernambuco
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O NORDESTE VIRA O JOGO R$ 5,00
Vítima histórica dos coronéis, do esquecimento e do preconceito, a região é hoje a que mais cresce e cria empregos
DEMOCRACIA NA MÍDIA Enfim, governo sinaliza para uma nova regulação do setor
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Índice
Editorial
TERESA MAIA/DP/D.A PRESS
Trabalho 10 As campanhas salariais elevam o peso do trabalho na renda nacional Economia 14 Crescimento e novas oportunidades revigoram o Nordeste do século 21 Cidadania 19 Expresso em piadas ou em agressões violentas, o monstro do preconceito Mídia 20 A regulação das comunicações não é fantasma e precisa ser debatida Educação 24 Enem abre novas oportunidades e acaba contrariando interesses História 28 A boa e saudosa experiência dos colégios vocacionais dos anos 60 Entrevista 32 Julia Lemmertz: lembranças da mãe, histórias do Rio e paixão pelo Inter Consumo 36 Siga cuidados básicos e economize em compras coletivas na web Mundo 40 Afinidades históricas e culturais que unem brasileiros e ganenses
Trabalhadores da indústria naval em Pernambuco: um novo futuro de emprego e renda
Tempo de mudança
O ADRIANO ÁVILA
Plantação de alcachofras em São Roque (SP)
Viagem 44 Os poderes da alcachofra, no prato e no turismo pelo interior paulista
SEÇÕES Cartas 6 Ponto de Vista Na Rede Curta Essa Dica
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Crônica 50
que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir, já cantou Milton Nascimento, tempos atrás. E a passagem do tempo, que voa, é do que mais se fala nesta época do ano. Vai-se 2010 com suas dores e alegrias, vem 2011 com suas dúvidas e esperanças. Esperança simbolizada pela chegada de uma mulher à Presidência da República, a primeira, substituindo o primeiro operário presidente. O governo que sai deixa conquistas como a redução da desigualdade – um desafio que a nova presidente já assumiu –, a redução do desemprego às menores taxas da história, um longo período de crescimento econômico, o acesso de cada vez mais famílias ao consumo, o início de um processo mais equilibrado de distribuição de renda. E aqui se deve lembrar que, ao assumir o comando do país, em 2003, Lula dizia ter como obsessão o combate à pobreza. Mas, claro, ficam as cobranças e expectativas. Caberá ao novo governo defender a economia brasileira diante da chamada guerra cambial que envolve pesos-pesados como Estados Unidos e China. É preciso avançar na busca da justiça social, da democracia, da ampliação das oportunidades por meio da educação pública, da melhoria das condições de vida da população. Ao encerrar mais um ano, a equipe da Revista do Brasil agradece a companhia, o apoio e também a crítica dos leitores. Vamos continuar juntos, mantendo o compromisso de produzir uma informação diferenciada e de qualidade. Para todos – do presidente que se vai à presidente que chega; aos paulistanos sem-teto esquecidos em São Paulo; aos ribeirinhos; aos quilombolas; aos trabalhadores do campo e da cidade; às vítimas da violência no Rio; às crianças; aos torcedores do time campeão e dos que não chegaram lá; a todos que compartilham da esperança –, nosso obrigado e o desejo de muita energia para celebrar as conquistas que virão. Sem esquecer do que já foi feito. Como disse José Saramago, que nos deixou neste ano, “somos a memória que temos, e essa é a história que contamos”. Outras histórias virão. DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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Está nos números. Está no dia a dia dos brasileiros. Estamos vivendo o Brasil de todos.
35,7 milhões
de brasileiros subiram de classe social e
27,9 milhões
superaram a pobreza.*
*Fonte: PNAD/IBGE. Elaboração: FGV/CPS (ascensão social) e IPEA (superação da pobreza).
Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Vitor Nuzzi e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo e Josiberto Carlos Ferreira da Silva Capa Foto de Teresa Maia/DP/D.A Press Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa
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REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2010
Liberdade limitada Sou morador de Campo Grande e de vez em quando encontro um exemplar dessa brilhante revista. Infelizmente não é todos meses. A respeito da matéria “Liberdade limitada”, na edição de novembro, algumas observações. Acho que a Revista do Brasil e a Rede Brasil Atual estão cumprindo uma grande lacuna ao dedicar espaços nunca vistos na grande imprensa do nosso país, principalmente quando trazem matérias sobre a realidade dos trabalhadores, e também nas entrevistas com personalidades que você não vê nos outros jornais. Só não acho que a revista deveria gastar seu precioso espaço falando das outras. Não concordo em hipótese alguma com nenhum tipo de censura, mas reclamar da censura da edição de outubro, comparando com outras revistas e jornais da grande mídia que não são censuradas, acho que é uma forma indireta de sugerir que elas também fossem. Tudo bem. Deixemos os outros que falem o que bem entenderem, com erros ou sem erros, e continuemos fazendo a nossa parte para melhorar a imprensa como um todo. Liberdade para todos. Edson P. Passos, Campo Grande (MS) Santayana Parabéns ao colunista Mauro Santayana, mais uma vez, por sua análise do resultado eleitoral (“A era dos oprimidos”, edição de novembro). Antônio Guerreiro, Belo Horizonte (MG) México em crise Cuba, por intermédio de Fidel Castro, disse “não” aos americanos e deu no que deu: embargo econômico que dura décadas. A Colômbia perdeu o Panamá, mas continua dizendo “amém” aos americanos. O México concordou em constituir um bloco econômico com os americanos e está perdido agora (“O gigante engolido”, ed. 53). Será necessário nascerem novos “Fidel Castro” para bloquear o expansionismo americano? Odair Gallo, São José Dos Campos (SP)
Tristeza não é doença A reportagem de Cida de Oliveira, publicada na Revista do Brasil de novembro, joga muita luz sobre o tema sem ser piegas, sentimental nem técnica quando cita especialistas. “A duração, a profundidade e os prejuízos que a tristeza pode trazer dependem da intensidade da causa, do afeto envolvido e da organização psíquica da pessoa.” Uma monja budista entrevistada declara que “mesmo a mais profunda tristeza será passageira se as coisas, as pessoas, o mundo, a realidade forem vistos como parte de um processo de transformação. E para que isso aconteça basta lembrar que essas coisas são como são e que podemos apreciar o que temos em vez de lamentar o que falta. Com essa transformação, haverá mais compartilhamento e harmonia”. Fui. A tristeza também foi, mas volta, como diria o compositor luizense Elpídio dos Santos, na trilha do filme Tristeza do Jeca, de Amácio Mazzaropi: “Olhando o passado, quem é que não sente saudades de alguém”. José Alfredo Rodrigues, Ubatuba (SP) Doze passos Parar de usar (drogas), perder o desejo de usar e encontrar uma nova maneira de viver. O que foi prometido se cumpriu. Estamos juntos. (“Só por hoje”, ed. 53). Edmilson Motta, Niterói (RJ) Regionalidade Sugiro criar um espaço para as notícias dos estados, contando com as coberturas regionais da revista em cada estado, para sermos melhor informados também no sítio da Rede Brasil Atual. Por exemplo, no Pará temos dois veículos de “informação” impressa ligados a partidos, um ao PMDB e outro que presta serviçoao PSDB. Carlos Miranda, Belém (PA) revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
PontodeVista
Por Mauro Santayana
As novas manobras ianques A viagem de Obama, primeiro à Ásia e em seguida a Lisboa, a fim de participar da reunião da Otan, revela o velho objetivo dos EUA de manter a hegemonia econômica e política sobre o planeta
O
s Estados Unidos, depois de a eleição de O problema central continua sendo o mesmo: a seu presidente proporcionar alguma es- ocupação dos mercados periféricos. A China criou perança ao mundo, voltam a ser o que um mecanismo engenhoso. Está impondo a venda de sempre foram. O que parece novo nas seus produtos industriais ao mundo inteiro por prerecentes viagens de Barack Obama é a ços mais do que competitivos. Os Estados Unidos tenatitude russa de associar-se a Washington em uma tam dois caminhos para a sobrevivência do sistema: aliançafrente aos chineses. Os acadêmicos de direita associar-se à própria China (hoje a maior credora do que “pensam” o futuro dos Estados Unidos se defron- país) e criar um cordão sanitário em torno do antigo tam com problemas de curto prazo, como o agrava- Celeste Império. mento da recessão econômica, e de longo prazo, como Mas a estratégia de longo prazo se choca com os proo crescimentomilitar da China e sua possível expansão blemas prementes da atualidade. O empobrecimento continental. Esse “miolo” da Ásia, constida população norte-americana – agravatuído de China, Índia, Paquistão e Ban- O sistema do pelos gastos militares durante o govergladesh, representa mais da metade da financeiro no Bush e pela grande roubalheira de Wall população do mundo. Se acrescentarmos brasileiro está Street – está açulando a extrema direita, Indochina, Japão e Indonésia, passaremos que se rearticula e começa a dominar o exercendo de dois terçosde toda a humanidade. Partido Republicano. Para tentar salvar É nessa equação que reside a grande forte lobby seu governo, Obama aprovou a emissão inquietação. A China pretende dar a to- para o de US$ 600 bilhões, destinados aos bandos os seus cidadãos o mesmo nível de aumento cos, com a ilusão de que esse dinheiro bem-estar do Ocidente. Isso parece di- dos juros. favorecerá a criação de empregos. Essa fícil, mesmo se esse nível se mantivesse Quem usufrui emissão gigantesca desvalorizará ainda estagnado daqui para o futuro. Mas não mais o dólar e, com isso, confiscará, na dos juros é só a China que tem essa meta, aliás, prática, grande parte das reservas dos paíjusta: os seus vizinhos querem o mesmo, altos são os ses emergentes, entre eles, o Brasil. como o querem os povos latino-america- rentistas e, Teremos de nos preparar para defender nos e africanos. Diante disso, o primeiro sobretudo, o governo que se instala contra a voracie grande impasse: é possível manter-se os bancos. dade dos banqueiros, nacionais e intero sistema capitalista, com sua crescente O Brasil é o nacionais, que – mais uma vez – tentarão tecnologia de consumo dos recursos namanter-se à margem das dificuldades, soparaíso dos turais esgotáveis? correndo-se do dinheiro público, ou seja, Há 100 anos, esse problema também se banqueiros com o sacrifício dos trabalhadores. pôs. As potências europeias e os Estados O sistema financeiro já está exercendo Unidos discutiam o direito de explorar o resto do mun- um forte lobby para o aumento dos juros e para a indo, mediante o sistema colonial. Embora houvesse ou- dependência formal do Banco Central – que existe, de tras causas políticas, a questão colonial esteve no centro fato, desde sua criação pelo governo militar. Quem usudos problemas que levaram à Primeira Guerra Mun- frui dos juros altos são os rentistas e, sobretudo, os bandial. Como não foi resolvida no âmbito da Liga das Na- cos. O Brasil é o paraíso dos banqueiros. Financia os ções, houve a Segunda Guerra Mundial. A derrotada grandes bancos nacionais e também os internacionais: Alemanha levou ao processo de descolonização, lento o Santander, da Espanha, obtém no Brasil 25% de seus e enganoso: a presença de tropas de ocupação foi sen- lucros. Como só os trabalhadores produzem riqueza, do substituída pela cooptação das elites locais e pela estão os trabalhadores brasileiros ajudando as emprecomplexa armação do sistema mundial de comércio sas falidas espanholas a sair da crise. É uma dissimulada e de finanças. forma de neocolonialismo.
Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980
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RICARDO STUCKERT/PR
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Lula e os blogueiros Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi
A pouco mais de um mês do fim do mandato, em 24 de novembro, o presidente Lula concedeu inédita entrevista coletiva a um grupo de blogs em seu local de trabalho, o Palácio do Planalto. Durante a conversa de mais de duas horas, ele respondeu perguntas sobre os mais diversos temas. E garantiu que assim que “desencarnar”
do atual posto, cerca de quatro meses depois de passar a faixa para Dilma, será também ele blogueiro e tuiteiro. O pedido da entrevista partiu do Encontro Nacional dos Blogueiros Progressistas, realizado em agosto pelo Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé. O conteúdo completo está em http://bit.ly/encontro-lula-blogueiros
Ministério do idoso
FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/ABR
Congresso: sem negociatas
Jogo de cena
A anunciada formação de um bloco parlamentar reunindo PMDB, PR, PP, PTB e PSC não teria consistência para se manter na nova legislatura, afirma o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Segundo ele, a jogada desses partidos para constranger Dilma Rousseff nas negociações para a formação do novo ministério seria um blefe liderado pelo PMDB. Lula entrou na jogada e preveniu lideranças dos partidos: o melhor seria se “incluírem fora” desta. O recado foi entendido. http://bit.ly/blefe-pmdb
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A ideia de criação de um Ministério da Micro e Pequena Empresa foi a única eventual nova pasta ventilada no processo de transição para compor o futuro governo. Mas entidades ligadas a aposentados reivindicam mais uma: um ministério ou secretaria federal que toque políticas públicas para a população idosa. Segundo Maria Gloria Abdo, da Associação dos Bancários Aposentados de São Paulo e da Federação dos Aposentados de São Paulo, a proposta é centralizar a gestão do Fundo Nacional do Idoso e facilitar a fiscalização da aplicação dos recursos em saúde, educação e assistência social – previstos no Estatuto do Idoso – voltada a esse segmento da sociedade. http://bit.ly/novos-ministerios
Gloria Abdo
PAULO PEPE
NaRede
Chave para o desenvolvimento Juca Ferreira chamou a atenção para a necessidade de a cultura ser integrada à agenda de desenvolvimento a ser traçada para os próximos dez anos. Durante a primeira Conferência do Desenvolvimento (Code), promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o ministro da Cultura ressaltou a necessidade básica de todo cidadão de ter acesso à cultura, tanto quanto à educação e à saúde. Ele lembrou que o impacto da indústria cultural na economia, consolidado em vários países, pode ser a chave para o desenvolvimento. http://bit.ly/cultura-e-desenvolvimento
BLOG DO VELHO MUNDO
Violência contra sem-teto Em 22 de novembro, a Guarda Civil Metropolitana de São Paulo agiu com violência para retirar cerca de 300 sem-teto que acamparam na Praça General CraveiroLopes, em frente à Câmara Municipal, depois de serem retirados de um antigo prédio do INSS na região central. A ação deixou dez mulheres e sete homens feridos. A reportagem é do Jornal BrasilAtual, que vai ao ar de segunda a sexta, das 7h às 8h, na FM 98,9. http://bit.ly/violencia-sem-teto A política higienista da Prefeitura de São Paulo “reforça a miséria’, avaliaMarcelo Caran, especialista em políticas para infância e juventude da Fundação Travessia. “É mais prático colocar grade, encher de pedra um canteiro, isolar uma área. A lógica do higienismo acontece dessa forma”, diz. http://bit.ly/politica-higienista
Berlim em estação de caça
Berlim, Dublin e os terrores Berlim é uma cidade sitiada. O governo alemão anunciou que há indícios de que um grupo de terroristas está a caminho ou já chegou à Alemanha. As ações planejadas visariam locais públicos. A cidade está tomada por policiais armados até os dentes. A ameaça terrorista alimenta os movimentos antiislâmicos de extrema-direita. O preconceito escancarado realimentaa pregação terrorista, que, por sua vez, realimenta a extrema-direita etc. etc. etc. Ad infinitum et ad nauseam. Mas não é só esse tipo de terror que
PAWEL KOPCZYNSKI/REUTERS
NA RÁDIO
abala a Europa. Na Irlanda, a catástrofe chega às raias do insuportável. Quem pode foge do país. A rede imobiliária administra um deserto (300 mil casas e apartamentos desocupados) e o sistema bancário foi à bancarrota. Logo a Irlanda, que era a menina dos olhos do sistema neoliberal , que tudo desregulamentou durante décadas. Para variar, a classe média, os trabalhadores e os aposentados, os investimentos públicos e sociais pagam pela dívida da qual outros aproveitaram. http://bit.ly/terrores-na-europa
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TRABALHO
Reforço em boa hora
De grão em grão, as campanhas salariais dos últimos anos vêm aumentando a participação do trabalho na renda nacional Por Vitor Nuzzi
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rescimento econômico e inflação sob controle costumam ser ingredientes que, aliados a alguma dose de mobilização, garantem resultados positivos em uma campanha salarial. Não é à toa que nos últimos anos, segundo levantamento do Dieese, a maioria das categorias profissionais pesquisadas conquistou reajuste igual ou acima da inflação medida pelo INPC-IBGE – só no primeiro semestre deste ano, isso ocorreu com 97% das negociações salariais. Apesar desse desempenho, é imprudente afirmar que o trabalhador brasileiro é bem remunerado. Ao apresentar este ano um estudo sobre o tema, o presidente do
Negociações salariais Ano Acima do Equivalente Abaixo do INPC (%) ao INPC (%) INPC (%) 1996 51,9 3,9 44,2 1997 39,1 15,5 45,3 1998 43,5 19,8 36,7 1999 35,1 14,6 50,3 2000 51,5 15,2 33,3 2001 43,2 19,6 37,2 2002 25,8 27,7 46,5 2003 18,8 23 58,2 2004 54,9 26,1 19 2005 71,7 16,3 12 2006 85,7 10,7 3,7 2007 87,7 8,3 4,1 2008 76,1 12,4 11,5 2009 79,9 12,7 7,4 2010* 87,9 9 3,1 *1º semestre. Fonte: Dieese
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Institutode Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, observou que a participação dos salários na renda é um indicador do desenvolvimento do país. No período mais recente, o Brasil combinou positivamente redução no grau de desigualdade da renda pessoal e elevação da participação dos rendimentos do trabalho na riqueza nacional. No período 20082009, a participação do trabalho na renda nacional atingiu 43,6% – dez anos antes era de 40%. Para uma década, pode parecer uma evolução pequena. A questão é que ela representa uma mudança de curso, já que essa proporção vinha caindo gradativamente desde os anos 1970, depois de, no intervalo 1959-1960, ter chegado a 56,6%. No mercado formal, o salário médio apurado (R$ 1.595,22) avançou 2,51% em termos reais no ano passado em relação a 2008, segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego. Mas as variações são grandes: o salário médio chegou a R$ 3.445,06 no Distrito Federal e a R$ 1.130,31 na Paraíba. Depois de um primeiro semestre positivo, o segundo começou com o acordo dos metalúrgicos que, no caso das montadoras do ABC paulista, aprovaram reajuste de 9% na data-base (1º de setembro), 1,66% de resíduo referente a 2009 – totalizando 10,81% – e abono no valor de R$ 2.200. Bem acima da inflação acumulada no período (4,29%). Os bancários, após 15 dias de greve, assinaram acordo nacional prevendo reajuste de 7,5%, que embute aumento real de 3,08% – para salários acima de R$ 5.250, o aumento seria de R$ 393,75 fixos ou no mínimo 4,29%, o que fosse mais vantajoso (no Ban-
co do Brasil e na Caixa Econômica Federal, que empregam cerca de 190 mil pessoas, os 7,5% foram para todas as faixas). Para o piso, o aumento foi de 16,33%, com 11,54% de aumento real. O acordo também incluiu a participação nos lucros ou resultados (PLR). O Dieese estima que os reajustes para os salários dos próximos 12 meses mais a PLR dos bancários, cerca de 470 mil em todo o país, representarão o ingresso de R$ 6,1 bilhões na economia do país. Em novembro, os químicos da região do ABC aprovaram acordo que, segundo o sin-
ROBERTO PARIZOTTI
MENOS APERTADO Sergipe: “Melhorou bastante, antes o trabalhador não conseguia nem chegar no mercado, fazer uma compra”
dicato da categoria, representou os maiores aumentos reais de sua história. O reajuste foi de 8% na data-base (outubro), ante um INPC acumulado de 5,04%, além de aumentos no piso (9,2%) e na PLR (10%). O coordenador de relações sindicais do Dieese, José Silvestre Prado de Oliveira, destaca como principais fatores para os resultados positivos das campanhas uma inédita combinação de crescimento econômico contínuo, com exceção de 2009, e taxas de inflação “em patamares baixos para os nossos padrões”. Questões que se somam a itens
como maior espaço para negociação, em consequência da democracia, e a própria ação sindical. “Obviamente, você tem fatores derivados, como o crescimento da formalização, a redução do desemprego e a política do salário mínimo”, acrescenta Silvestre. O ano de 2010 caminha, segundo o técnico, para exibir resultados melhores que os de anos anteriores em relação ao nível de ganho real (acima da inflação). No primeiro semestre, 25% dos reajustes analisados superaram a inflação em mais de 2%, ante 12% em 2009 e 11% em 2008. Os aumen-
tos 3% acima da inflação são 12% do total, ante 5% e 4%, respectivamente. A maioria dos acordos com aumento real ainda se encontra na faixa de até 2% acima da inflação. Embora não faça parte da pesquisa do Dieese, o coordenadorconsidera possível deduzir que os acordos também trazem avanços em outras cláusulas econômicas, como vale-refeição e cesta básica. Silvestre observa que, apesar dos números positivos, parte dos ganhos é diluída por meio de mecanismos como a rotatividade da mão de obra e a terceirização. Por DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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Grandes variações Salário médio na Paraíba
R$ 1.130,31 Salário médio nacional
R$ 1.595,22 Salário médio no Distrito Federal
R$ 3.445,06 Fonte: Rais 2009/ Ministério do Trabalho
Momento favorável
outrolado, não há como reclamar, como já fizeram alguns empresários, dos aumentos salariais recentes. “Os ganhos de salários estão muito abaixo do crescimento da economia. E não há evidência de que os salários tenham crescido mais que a própria produtividade.” Para 2011, as projeções são mais modestas – crescimento menos intenso, mercado de trabalho menos dinâmico –, mas Silvestre acredita que o cenário continuará positivo para as campanhas salariais. “Não creio que isso vá mudar muito a tendência da negociação. Talvez haja alguma mudança na magnitude do ganho real. Mas as negociações terão desempenho parecido com o dos últimos anos.”
WILSON DIAS/ABR
O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, considera que o governo tem de insistir numa reforma tributária que seja simplificadora, estimule a formalização e coíba a sonegação Por Anselmo Massad e Vitor Nuzzi
Bernardo: “Sou a favor da CPMF para a saúde”
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Fácil nunca é. Os bons resultados só vêm com esforço e organização, segundo João Batista da Silva, trabalhador na Seeber Fastplas, fabricante de autopeças plásticas com aproximadamente 600 funcionários em Diadema, na região do ABC paulista. “Antes tínhamos muitos problemas na negociação, conflitos”, lembra João Batista, 32 anos, há 13 na mesma fábrica. De uns anos para cá, os trabalhadores têm conquistado reajustes acima do acordo geral da categoria. Além disso, a negociação envolve a PLR, cujo valor total depende do cumprimento de metas de produtividade, qualidade e frequência ao trabalho. “Três meses antes do início da campanha, os colegas já começam a se perguntar”, conta João.
Com militância política originada no movimento sindical bancário, Paulo Bernardo está no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde março de 2005. Acompanha todos os embates entre governo e centrais sindicais em torno da valorização do salário mínimo e lamenta que o Congresso Nacional não tenha transformado em lei os acordos que a cada ano conferem algum aumento real ao piso nacional. Cotado para permanecer em algum posto estratégico no governo Dilma, o ministro espera deixar a discussão do reajuste do mínimo adiantada com as centrais, para que o tema seja uma encrenca a menos para o próximo governo administrar. Se houver alguma proposta de desoneração da folha de pagamentos para reduzir o custo das empresas, de onde sairiam recursos para compensar perdas de arrecadação da Previdência e do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, por exemplo? No governo Lula, estudamos essa medida como parte da reforma tributária. Basicamente, seria dentro do contexto da reforma – diminuiríamos a contribuição patronal da Previdência de 20% para 14% e também extinguiríamos o salário-educação, de 2,5%. Seria uma redução de impostos sobre a folha de salários em 8,5 pontos percentuais. Não foi aprovado, continuamos fazendo o que tem de ser feito, com simulações, e se você me perguntar se isso vai ser proposto imediatamente não tenho condição de saber. Na reforma tributária, estávamos implantando o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), uma unificação de vários impostos e contribuições federais, com uma força simplificadora grande. Seria uma vantagem para as empresas e com certeza diminuiria o custo de apuração e cálculo de impostos. E também (implantávamos) o IVA estadual, com a unificação do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) em todos os estados. Dentro desse arcabouço, achávamos que iríamos ficar compensados. O senhor é favorável à criação de uma nova versão da CPMF? Sou a favor da CPMF. Quando foi votada (a CPMF) em 2007, tínhamos resolvido colocar R$ 24 bilhões por ano na saúde. Foi invalidado a partir do momento da derrubada da CPMF. Hoje, discute-se no Congresso a regulamentação da Emenda 29 (que prevê investimento de 10% da arrecadação de impostos na área), o que é necessário, porque boa parte dos estados não cumpre a lei existente. Como contrapartida, os municípios têm de colocar mais recursos do que seria sua obrigação, porque é neles que estoura o problema. Se alguém falar que tem de pôr mais dinheiro, vai ter de dizer de onde vai sair. Acho que vai ficar para a discussão da reforma tributária, quando vamos debater se voltamos ao tema.
ROBERTO PARIZOTTI
FÁCIL NUNCA É Para João Batista, bons resultados só vêm com esforço e organização
Como livrar a reforma tributária dos “pequenos interesses” que sequestram a discussão? Esse tem sido um dos problemas. Quando se discute a reforma, o contribuinte ouve: “Vão diminuir minha carga de impostos”. O secretário de Fazenda acha: “Vai aumentar minha arrecadação”. Não é fácil conciliar as coisas. É até possível simplificar e diminuir alíquotas tributárias e isso ser acompanhado de uma melhora na arrecadação, porque é mais difícil sonegar, estimula a formalização da economia. Todas as tentativas de reforma tributária falharam por conta de os estados quererem fazer guerra fiscal – não querem regra única no país. Temos a obrigação de tentar de novo, tentar superar isso. No início do governo Lula havia a discussão da reforma da Previdência no setor público. Essa questão está equacionada? A reforma de 2003 não resolve tudo, até porque não conseguimos terminá-la, nem a regulamentamos – os projetos estão no Congresso, ainda não foram votados. O governo optou por não mandar proposta de reforma previdenciária que significasse tirar ou interromper direitos dos trabalhadores. Mas temos uma série de reformas menores que melhoraram muito o desempenho da Previdência, como o atendimento, a receita. Agora, se você olhar a situação demográfica no Brasil, fatalmente vamos ter de discutir regras novas. Um bom ponto de partida seria tentar uma reforma que signifique uma mudança importante para quem vai entrar no mercado, sem bater de frente com direitos que o trabalhador tem hoje. Dilma tem bem menos experiência em negociações do que Lula, que não conseguiu levar esses projetos adiante... Dilma tem uma história e características pessoais bem diferentes das do presidente Lula. Ele tem anos de negociação, de embates de ideias – no sindicato, no PT, um pouco no Congresso, nas eleições presidenciais. Ela tem experiência grande de ser gestora e administrar políticas de governo. Vai usar essas qualidades. E ela pega o governo com uma estruturação muito melhor do que Lula pegou. A campanha mostrou que Dilma aprende rápido a ir para o embate. Como ela vai lidar com as demandas por cargos dos aliados? Temos um sistema presidencialista em um sistema multipartidário. Não é só situação e oposição, mas 20 partidos dentro do Congresso com representação. Achar que você vai governar com um partido só é um erro. Tanto que fizemos uma coisa importante: a coligação antes da eleição, com 11 partidos. Já falamos que esses 11 partidos vão governar conosco.
“O trabalhador fica bastante ansioso”, confirma o mecânico Wellington de Melo Costa, o Sergipe, 50 anos, há mais de 31 na fábrica da CBC, atualmente instalada no município de Ribeirão Pires, também no ABC. “Geralmente, o trabalhador não espera. Eles gastam antes, fazem uma dívida, principalmente os que têm um poder aquisitivo menor”, diz Sergipe, natural de Cedro de São João, no interior do estado que lhe empresta o apelido. Ele chegou a São Paulo em 1979 e nunca trabalhou em outra companhia. “Melhorou bastante. Às vezes ainda fica um pouco abaixo do que se espera. Mas antes o trabalhador não conseguia nem chegar no mercado, fazer uma compra.”
É absolutamente normal que eles queiram ajudar e ter gente no governo. Não é fácil, Dilma vai passar por um teste duro para montar isso e deixar pouco insatisfeitos seus aliados. Talvez satisfeito ninguém vá ficar. Em termos de número de servidores, como está a relação entre concursados e terceirizados, em relação a 2003? O número de servidores (federais) aumentou em, aproximadamente, 70 mil pessoas, um pouco mais de 10% do que tinha, 600 mil. Fizemos concurso para cerca de 120 mil pessoas, mas uma parte assume e sai – às vezes o governo paga salário menor que outro órgão – e houve aposentadorias. No total, o saldo líquido é esse. É razoável. Tem muita reclamação e pedido para contratação (nos ministérios), mas não estamos só investindo para resolver problemas de governo contratando. Por exemplo, na Previdência também informatizamos agências, investimos em atendimento remoto. Hoje, as universidades não têm mais necessidade de pedir autorização para concurso. Elas têm um número fixo de servidores – professor ou técnico administrativo – e, se sai um, podem fazer concurso para outro, sem precisar mais pedir autorização. A terceirização no Executivo federal foi resolvida? No começo do governo Lula, tínhamos cerca de 30 mil pessoas nos diversos órgãos. Fizemos um acordo com o Ministério Público no começo de 2005 e pedimos cinco anos para resolver o problema. Em um balanço recente, praticamente resolvemos tudo com concurso para substituir. Em alguns poucos casos isso ainda não aconteceu, porque o projeto para o concurso ou a criação de cargos não foi aprovado no Congresso a tempo. Há casos em que se aprovou já no período eleitoral, e o concurso ainda será feito. Vamos entregar um relatório ao Ministério Público mostrando que cumprimos o que dissemos, dando quase por encerrada a substituição de terceirizados por concursados. Por que não se aprovou a política de valorização do salário mínimo, acordada com as centrais sindicais em 2006? A correlação de forças vai ser melhor em fevereiro, quando tomar posse o novo Congresso. Mas até agora não foi aprovada porque a oposição obstrui todas as tentativas. O senhor disse, ao referir-se ao debate sobre reajuste do salário mínimo, que o compromisso é deixar “nenhuma encrenca” para Dilma. O governo já tem um monte de encrencas, normalmente. Não queremos criar nenhuma.
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ECONOMIA
Muito além do B Quem considerou que o voto no Nordeste na última eleição seria movido a assistencialismo, errou. O crescimento econômico na região, acima da média nacional, fez diferença na vida de muita gente, e não só dos mais pobres Por Vitor Nuzzi
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votação expressiva obtida por Dilma Rousseff no Nordeste veio acompanhada de um bocado de ressentimento. Não foram poucos os que disseram que os votos eram dos “pobres” (automaticamente desqualificados como menos valiosos) e indiretamente resultado do assistencialismo, materializado pelo programa Bolsa Família. Nesse olhar, sobrou preconceito e faltou informação, ao não observar indicadores e fatos, como o crescimento da economia e a criação de empregos na região. Esses foram os fatores determinantes para a taxa de satisfação daquela população – e portanto, da maciça votação na candidata governista. Aos números. A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) feita pelo Dieese e pela Fundação Seade, de São Paulo, em parceria com entidades regionais, mostra desemprego em queda e ocupação em alta, inclusive com carteira assinada, nas maiores regiões metropolitanas: Fortaleza, Recife e Salvador. Nos últimos 12 meses, até outubro, as três criaram quase 350 mil empregos e reduziram em 160 mil o número de desemprega14
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BÁSICO Obra de saneamento em Fortaleza com recursos do PAC: investimento em saúde também cria emprego
Emprego em alta Variação da ocupação formal em 6,97% 2009
9,4% 7,42%
Acima da média Variação do Produto Interno Bruto em 2009
4,48%
3,8% 3,1%
1,7%
Brasil Brasil Pernamb. Bahia Fonte: Rais/ Ministério do Trabalho
Ceará
-0,2%
Bahia
Fonte: Banco Central
Ceará Pernamb.
GRENDENE/DIVULGAÇÃO
JR. PANELA
Bolsa Família
MADE IN BRAZIL Fábrica da Grendene em Sobral (CE): 8 mil contratações em 2009
dos. A Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE, que usa outra metodologia, revela crescimento de 13,1% em 12 meses, até setembro, no nível de ocupação da Região Metropolitana de Recife, o equivalente a 179 mil pessoas a mais. No mesmo período, o número de desocupados caiu 7,1% (11 mil a menos). Em Salvador, os números são mais modestos, mas igualmente positivos. Dados do Banco Central reforçam: o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil ficou praticamente estável (-0,2%) em 2009. Mas a economia cresceu 1,7% na Bahia, 3,1% no Ceará e 3,8% em Pernambuco. “A economia nordestina, ratificando a evolução registrada pelos principais indicadores mensais regionais ao longo do ano, assinalou, em 2009, dinamismo mais acentuado do que o experimentado em âmbito nacional”, diz o BC, que destaca o crescimento dos investimentos na região: no ano passado, os desembolsos, principalmente do BNDES e do Banco do Nordeste, representaram 5,2% do PIB local, ante média de 1,5% no período 2004-2008. A Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, mostra ainda que, enquanto o emprego formal cresceu 4,48% no país em 2009, no Nordeste essa alta foi de 6,81%, chegando a 9,4% no Ceará, a 7,42% na Bahia e a 6,97% em Pernambuco, totalizando 335 mil novas vagas. Nesses três estados, a maior alta percentual foi do setor de construção civil: 27,82%, 30,23% e 23,83%, respectivamente. Em artigo publicado no site Viomundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, a economista Tânia Bacelar Araújo, professora do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirmou que o Nordeste foi beneficiado com a preocupação do governo com as desigualdades sociais e regionais. Ela cita, por exemplo, a política de reajustes do salário mínimo e a ampliação do crédito como fatores que impulsionaram a economia da região, do ponto de vista do consumo. Norte e Nordeste, segundo a professora, lideraram as vendas do comércio varejista no país de 2003 a 2009. DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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Ela destaca também a decisão da Petrobras de construir novas refinarias e estimular a retomada da indústria naval. Vários estaleiros foram instalados no Nordeste. Os planos da Petrobras para a região incluem quatro novas refinarias, em Pernambuco, Rio Grande do Norte, Maranhão e Ceará. Os investimentos superam US$ 45 bilhões.
INCLUSÃO Novas unidades do Minha Casa, Minha Vida são entregues em Feira de Santana (BA)
“Igualmente importante foi a política de ampliação dos investimentos em infraestrutura – foco principal do PAC –, que beneficiou o Nordeste com recursos que, somados, têm peso no total dos investimentos previstos superior à participação do Nordeste na economia nacional. No seu rastro, a construção civil bombou na região”, acrescentou a economista. O coordenador da PED em Fortaleza, Ediran Teixeira, confirma. “Hoje, a Região Metropolitana é um canteiro de obras. Do lado da habitação, muitos imóveis estão sendo construídos e, do lado da construção pesada, muitas estradas são abertas e muitas indústrias se instalam. As reformas e as construções visando à Copa de 2014 estão em pleno vapor, além de outras obras estruturantes”, afirma Teixeira, citando ainda a ampliação do porto e a construção de uma siderúrgica no complexo portuário de Pecém, em São Gonçalo do Amarante, município da Região Metropolitana. “Todas essas obras impulsionam não só a construção civil como também a indústria metal-mecânica, que em seu segmento foi a que mais gerou postos de trabalho nos últimos 12 meses, junto com a indústria têxtil e de vestuário (8 mil novas vagas cada uma)”, acrescenta. No comércio, o crescimento do emprego é determinado pela elevação das vendas. “A economia cearense está aquecida desde o início do ano e vem aumentando o volume de contratações.” Principal exportadora do estado, a fabricante de calçados Grendene, com a maior parte de suas fábricas em Sobral, a pouco mais de 200 quilômetros de Fortaleza, ampliou em 60% a sua força de trabalho em 2009. Foram mais de 8 mil contratações, após uma redução de 3 mil no ano anterior, devido à crise econômica. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, de janeiro a outubro a empresa foi responsável por 14% das exportações cearenses. Nos três primeiros trimestres do ano, as vendas ao
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EUDES SANTANA/AGÊNCIA PETROBRAS/DIVULGAÇÃO
Canteiro
EXPANSÃO Indústria naval em Pernambuco: US$ 15 bilhões em investimentos
exterior corresponderam a quase 20% da receita bruta da empresa. Na Região Metropolitana de Salvador, a economista Ana Simões, coordenadora da PED local, vê um movimento consistente do emprego formal na região, principalmente a partir de 2004. Em setembro, a taxa de desemprego atingiu o menor nível desde o início da pesquisa, em 1997. Ao estabelecer aquele ano como o “ponto zero”, Ana diz que, enquanto a ocupação total cresceu 39,3% até 2009, o emprego com carteira dobrou. A construção civil teve alta de 71,9% no período. “Há muitas obras na área de habitação”, observa, destacando a importância de programas como o Minha Casa, Minha Vida. O rendimento médio ainda é um ponto fraco, embora venha evoluindo. “Ainda não alcançou os valores de 1997, em termos reais”, afirma Ana. Com a economia muito indexada ao salário mínimo, a renda passou a se recuperar a partir de 2004. E a concentração de renda diminuiu um pouco, apesar de ser ainda elevada. Em 1997, os 10% mais pobres tinham 0,6% da renda, passando para 1,3% em 2009 – no mesmo período, os 10% mais ricos encolheram de 46,1% para 37,7%.
Mudança de vida Em maio, a soldadora Josenilda Maria da Silva, 32 anos, foi escolhida como “madrinha” do navio João Cândido, o primeiro a sair do Estaleiro Atlântico Sul, no porto de Suape (PE). Casada e mãe de duas filhas, ela ficou cinco anos desempregada até ser selecionada para o estaleiro, três anos atrás. A concorrência era acirrada, mais de 5 mil inscritos para 500 vagas. Josenilda soube no último dia, por uma vizinha, inscreveu-se e entrou. Antes, ela passou quase três anos em uma cerâmica. “Tentei outras áreas, mas não tinha nenhuma vaga disponível”, conta a trabalhadora, que agarrou a chance no estaleiro. “Eu me identifiquei com a solda e pretendo me aprimorar”, afirma, sem imaginar que um dia trabalharia nessa área, ainda mais depois dos avisos que recebia da mãe, quando pequena. “Ela me falava para tomar cuidado com a solda, para não ‘perder a vista’. Agora, trabalho com isso.” O nome do navio homenageia o marinheiro que foi líder da chamada Revolta da Chibata, morreu esquecido em 1969, mas ficou eternizado na canção O Mestre-Sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc. A revolta, em 1910, foi contra os maustratos aos marinheiros, que chegavam a ser castigados com chicotadas. Em 2008, João Cândido foi anistiado e recuperou a patente. Em novembro, o centenário do movimento que liderou foi celebrado em várias manifestações pelo país.
HONRA Depois de cinco anos sem emprego, Josenilda conquistou uma vaga no Estaleiro Atlântico Sul. Soldadora, foi madrinha do navio João Cândido
ALCIONE FERREIRA/DP/D.A PRESS
ALBERTO COUTINHO/CEF/DIVULGAÇÃO
Formalização
Segundo o Sinduscon, o sindicato da indústria da construção, o setor foi responsável por 39% das vagas formais criadas no estado da Bahia em 2009 e por 29,8% do total de janeiro a setembro deste ano. Também nesse período, só a Região Metropolitana de Salvador abriu 22 mil vagas, mais do que em todo o ano de 2009, quando foram criadas pouco mais de 15 mil. O total de empregados com carteira passou de 61 mil, em 2004, para 161 mil até setembro. A participação da construção civil no PIB estadualbaiano aumentoun os três últimos anos. Na Região Metropolitana de Recife, de 2003 a 2009 a ocupação cresceu 20,3%, com 240 mil novos postos de trabalho, dos quais 139 mil com carteira assinada. O maior número (141 mil) foi no setor de serviços, enquanto a maior alta percentual, 48,1%, foi justamente na construção civil, que criou 26 mil empregos. “Ao longo do período analisado, a chegada de investimentos para a empresa Suape Complexo Industrial Portuário vem promovendo uma grande geração de empregos no estado de Pernambuco”, observa Jairo Santiago, do Dieese, coordenador da pesquisa em Recife. Ele cita dados do próprio complexo sobre os investimentos das 96 empresas já instaladas e outras 16 em fase de instalação, que somam US$ 15 bilhões apenas este ano.
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“Portanto, o complexo industrial de Suapese configura como principal fator determinante para os favoráveis resultados do mercado de trabalho na região”, diz o técnico. “Os empregos criados no complexo repercutem notavelmente nos setores da construção civil e de serviços.” Ele cita ainda fatores como a redução da taxa Selic (antes deste ano), a valorização do salário mínimo e o PAC. Mas, mesmo com o desenvolvimento na região promovendo alguma redução nas desigualdades, ela continua alarmante. Em novembro, o IBGE divulgou dados relativos ao PIB de 2008, mostrando que cinco estados, todos do eixo Sul-Sudeste, concentravam 66,2% do PIB brasileiro – em 1995, tinham 69,9%. A participação de São Paulo na riqueza nacional caiu de 37,3% para 33,1%. O maior crescimento do PIB em 2008 foi do Piauí, com um quase chinês 8,8%, devido principalmente à agricultura. Apesar disso, a participação do estado no total do país não chega a 1%.
GILDO LIMA
JR. PANELA
INVESTIMENTOS Região Metropolitana de Fortaleza é um canteiro de obras, segundo técnico do Dieese
DISPARADA Prédios crescem em Salvador: construção criou 30% dos empregos em 2010
Na casa de Morgana Martins Costa moram sete pessoas e só não trabalham sua avó e a irmã mais nova. Agora, Morgana, moradora de Fortaleza, pôde sair do emprego para concluir o curso de Ciências Sociais. Em seguida, pretende fazer o mestrado. A família é um minirretrato do mercado, com trabalhadores formais e autônomos. O pai trabalha na área de vigilância, a mãe é costureira autônoma, uma tia tem salão de beleza em casa e outra é secretária administrativa. Para Morgana, o aperfeiçoamento profissional é um fator fundamental para se manter no mercado de trabalho. “Qualificação é tudo”, diz.
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JR. PANELA
“Qualificação é tudo”
CONHECIMENTO Morgana pôde estudar e o pai, Leonard, achou emprego em outra área
O melhor exemplo disso é o pai, Leonard, de 50 anos, que teve de mudar de área, após anos de experiência como representante comercial. “Ele só tem o segundo grau, e é superdifícil conseguir emprego. Depois ele fez um curso técnico de vigilante, e chove-
ram oportunidades. Não foi preciso mais bater de porta em porta.” De uma forma geral, Morgana acredita que o mercado está bom. “Inclusive para quem quer mudar de emprego com vistas a melhorar a posição e o salário”, comenta.
CIDADANIA
Por que a agressividade? Se estereótipos regionais ainda dão margem para agressões, as punições poderiam ensinar novas gerações a não ser preconceituosas nem de brincadeira Por Cida de Oliveira violência que, na verdade, tem causas complexas. Essa visão estereotipada vem da migração, da pobreza e da população profissionalmente menos qualificada, em geral – e equivocadamente – associada à criminalidade”, diz o professor. Em sua análise, como São Paulo é um caldeirão cultural, o contato de populações diferentes provoca essa tensão que contou com o componente político. A eleição frustrou grupos apoiadores do representante paulista na disputa. “O protagonismo nordestino, na figura de Lula, deu vazão ao preconceito preexistente, e a essa insanidade, a essa irracionalidade da mensagem no Twitter.”
Francis: “Somos brasileiros e não estamos invadindo nenhum país”
MAURICIO MORAIS
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pesar do desenvolvimento em curso na região, os nordestinos ainda são alvo de discriminação e preconceito. O episódio da estudante de Direito que postou no Twitter mensagem carregada de ódio é emblemático. A autora foi denunciada ao Ministério Público Federal por crime de racismo e de incitação ao crime de homicídio. A seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco passou a monitorar manifestações na internet sobretudo a partir de junho, quando notícias sobre enchentes que afetaram a região eram comentadas em tom odioso e discriminatório. “Nunca me senti atacada de maneira tão direta e violenta”, desabafa a maranhense Francis Bezerra, presidente da Associação dos Nordestinos do Estado de São Paulo. “Pela internet, a palavra escrita se torna ainda mais agressiva. Somos brasileiros e não estamos invadindo nenhum país.” O professor de Psicologia Joseli Bastos da Costa, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), vê menos relevância no episódio. “Houve repercussão porque a web pauta a mídia. Mais grave do que aquela menina falar tamanha besteira são episódios como a explosão de uma bomba num centro de tradições nordestinas, na capital paulista, em meados da década de 90, e ataques violentos a homossexuais, como este recente, na Avenida Paulista”, afirma. Para ele, o importante do caso é que reabre a discussão da existência do preconceito e suas consequências. Costa diz que o fenômeno é inerente à maneira como o indivíduo constrói o conhecimento sobre o mundo ao redor a partir das primeiras impressões, estímulos e indícios. “Nossos ancestrais eram devorados pelos predadores quando perdiam tempo elaborando o pensamento. Daí a necessidade de uma rápida leitura do mundo, em especial do outro”, analisa. A soma de aspectos individuais e socioculturais, choques de culturas, reconhecimento de diferenças e a competição por bens materiais ou simbólicos, quando anexados a emoções, abrem caminho para a discriminação. “Como os nordestinos ocupam um espaço, no caso em São Paulo, acabam sendo bodes expiatórios inclusive da
Para a professora de Psicologia Sheyla Fernandes, da Universidade Federal de Alagoas, o sentimento de identidade ferida é patente para quem é alvo de preconceito desde que se entende por gente. Isso porque, por volta dos 5 anos, a criança é capaz de se diferenciar, percebe a existência do grupo padrão tido como modelo e constrói sua identidade por comparação e por meio de diversos estímulos que recebe do ambiente. E, das experiências de sucesso e fracasso ao longo de seu desenvolvimento, elabora sua identidade pessoal e coletiva. “Dá para imaginar uma identidade construída com base no preconceito e na discriminação?”, questiona Sheyla. “Os prejuízos são imensos e de difícil solução para quem pertence a um grupo sempre associado à ignorância, pobreza e marginalidade. Embora um membro de um grupo marginalizado possa mudar seu estatuto social, sua identidade, sua essência e a ideia que construiu de si mesmo ao longo dos anos são sempre complexas.” A violência é o problema mais sério trazido pelo preconceito. Em sua forma mais ostensiva é expresso em violência física, verbal, moral. Os direitos das vítimas de preconceito, aliás, são completamente tolhidos. Já a discriminação acarreta danos econômicos, intelectuais e fere a dignidade. “Com as conquistas pela igualdade de direitos, o preconceito expresso passou a ser visto de forma aversiva, inclusive considerado crime. Mas sua essência permanece imutável. Ou seja, internamente as pessoas continuam sentindo preconceito, mas não o expressam mais. Tanto que na intimidade de ambientes domésticos, em rodas de amigos, pode ser expresso de forma ostensiva, como por meio de piadas”, ressalta Sheyla. A saída é o treino para o controle da manifestação preconceituosa por meio da lei. “É preciso que aprendamos a olhar o outro de maneira humana. A punição ensinará as próximas gerações a não fazer piada com o outro seja pela cor, origem, religião ou opção sexual”, diz. O problema, segundo ela, é que sempre vai haver grupos diferentes em tensão, em conflito. “A luta contra o preconceito é permanente e fundamental para a humanização e a civilização da sociedade.” DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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MÍDIA
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esde 2009, quando o tema da regulação e do controle social da mídia ganhou espaço no debate público nacional com a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), setores da imprensa dedicam espaço considerável para bradar que a liberdade de expressãoestá ameaçada. Foi essa a tônica da cobertura das resoluçõesda própria conferência; do lançamento do Programa Nacionalde Direitos Humanos (PNDH3); e, mais recentemente, da polêmica geradaem torno da criaçãode Conselhos Estaduaisde Comunicação e do seminário promovido no início de novembropelo governo federal para discutir experiênciasinternacionais de marcos regulatórios para as comunicações. Todos os debates sérios revelam que nos países em que houve iniciativas de regular o funcionamento dos meios de comunicação – especialmente os que são objeto de concessão, como as emissoras de rádio e TV –, longe de ameaça à liberdade de expressão, as medidas asseguraram uma mídia mais plural e com maior diversidade.
Mais democracia, mais
liberdade Como mostram exemplos de outros países, a regulação da mídia faz bem para a liberdade de imprensa e de expressão e amplia a democracia Por Bia Barbosa
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A legislação brasileira, da década de 1960, além de pôr o país em situação de atraso em comparação ao que se tem na Europa e nas Américas do Norte e do Sul, vem se mostrando um entrave para a consolidação da democracia. Enquanto o mundo todo já se preocupa em como lidar com os desafios da convergência tecnológica – com computadores, celulares, internet e outras ferramentas incorporadas ao universo de informação –, o Brasil ainda não resolveu sequer problemas como o do monopólio nos meios de comunicação nas mãos de grupos empresariais, da propriedade de
emissoras por políticos e da falta de espaço para promoção e veiculação de programas regionais e produções independentes. A própria Constituição prevê formas de participação da sociedade no controle das atividades relacionadas à administração de áreas ligadas aos direitos sociais, como educação, saúde e cultura. “A comunicação é mais uma delas. Portanto, o controle social deveria ser garantido. O problema é que a grande mídia satanizou essa expressão, que na verdade diz respeito a um serviço que afeta a vida de todos”, afirma o jornalista e sociólogo Venício Lima.
A maioria desses mecanismos está indicada pela Constituição brasileira. Mas até hoje não se tornou lei aplicável porque o setor da radiodifusão, com o apoio da mídia impressa, bloqueia o debate público sobre a questão. Derrubar esse bloqueio é o que querem os movimentos sociais e o que sinaliza agora o governo federal. “A comunicação diz respeito à cidadania, à participação política e à produção cultural, e por isso a sociedade deve participar diretamente”, afirma o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.
LEGISLAÇÃO Para especialistas internacionais, a criação de regras é fundamental para garantir a pluralidade
Para as grandes empresas de comunicação, “quanto menos legislação melhor”, como já afirmou Roberto Civita, presidente do grupo Abril, durante seminário organizado pelo Instituto Millenium. A fala dos empresários da comunicação no Brasil vai na contramão do que acontece em países democráticos de todo o mundo. O canadense Toby Mendel, consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), afirma que o Estado não pode simplesmente deixar o mercado agir. “A liberdade de expressão vai além do direito do emissor de dizer o que pensa. É também direito do receptor, do telespectador, do leitor receber uma variedade de informações e de pontos de vista. Se a propriedade dos meios de comunicação não é regulada, isso pode até ser aceitável do ponto de vista do emissor, mas o direito do receptor de receber ideias plurais começa a ser reduzido”, observa.
De acordo com especialistas da França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Estados Unidos e Argentina que vieram ao Brasil para o seminário internacional sobre marco regulatório, a criação de regras para o funcionamento das empresas de comunicação e para a exibição de conteúdos no rádioe na TV – e agora nos celulares e computadores pessoais – é fundamental para a garantia da pluralidade e do respeito aos direitoshumanos, pilares de qualquer sociedadedemocrática. Não está em questão, portanto, nenhuma forma de censura, porque não há nesses países a ideia de aprovação prévia para veiculação de determinado conteúdo. O que existe são regras para a promoção da diversidade, da cultura nacional e regional e da imparcialidade jornalística; para a proteção das crianças e adolescentes e da privacidade dos indivíduos; para o combate ao chamado “discurso do ódio” e à injúria e difamação.
ERIC GAILLARD/REUTERS
Regulação democrática
Para atender a esses princípios, a União Europeia discute uma regulamentação das comunicações comum para os países que integram o bloco desde o final dos anos 1980. Entre 2005 e 2007, foi feita a última atualização das regras. Entre elas, está a obrigação de as emissoras de rádio e TV de todos os países veicularem produção independente e conteúdo europeu. A diretiva europeia também define para todos limitações na veiculação de publicidade. O tempo máximo de propaganda permitido é de 20% da grade de programação – no Brasil a lei prevê 25%. Há também restrições a publicidade de tabaco, medicamentos, álcool e comida gordurosa. Anúncios e conteúdos considerados violadores de direitos humanos podem sofrer sanções. Portugal fez uma recente atualização da sua lei de audiovisual. O país possui uma vasta regulamentação para a veiculação de conteúdo, que inclui a definição de horários para proteção de crianças; cotas para veiculação de músicas portuguesas no rádio; direito de resposta; proteção de grupos minoritários, para evitar manifestações de preconceito regional, de gênero e étnico-racial; e promoção do pluralismo e da diversidade. “A abordagem de mercado olha a população como consumidores. A abordagem para o regulador de conteúdos é uma abordagem de cidadania”, compara José Alberto Azeredo Lopes, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Na França, o Conselho Superior de Audiovisual zela pelo pluralismo político no rádio e na TV. O tempo de exposição dos blocos partidários é monitorado para que tenham um espaço equilibrado. “A pluralidade na emissão é o que garante a riqueza e a prevalência do interesse público na nossa televisão”, afirma Emmanuel Gabla, diretor adjunto do conselho. DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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ANTONIO CRUZ/ABR
ANTONIO CRUZ/ABR
VALTER CAMPANATO/ABR
BRASIL Franklin: “A comunicação diz respeito à cidadania e à produção cultural; a sociedade deve participar diretamente”
FRANÇA Gabla: “Quando abrimos concessões para canais na TV digital, o critério era ampliar o pluralismo”
Os canais franceses têm ainda a obrigação de respeitar rigorosamente os direitos humanos. “Punimos um canal que transmitia um reality show que atentava contra a dignidade humana. Colocaram no ar uma mulher que tinha de andar de coleira no chão, como se fosse uma cachorra”, exemplificou. “Quando abrimos concessões para novos canais na TV digital, o critério era o tipo de conteúdo que veiculariam, buscando ampliar o pluralismo. Tínhamos seis canais abertos e agora temos 19 digitais e uma centena de canais regionais. Aumentou muito o apoio à pluralidade e à identidade cultural dos franceses”, conta Gabla. “Estamos falando de concessões públicas. Nem sempre agradamos a toda a mídia, mas as regras que estabelecemos internacionalmente já são aceitas como algo necessário para a democracia”, avalia Vincent Edward Affleck, diretor do órgão regulador das comunicações na Inglaterra.
Um projeto de lei foi posto em discussão tégico para o crescimento. Ou se produz um em 2008, enviado ao Congresso em 2009, e novo marco regulatório, ou vamos perder o depois de muito embate, inclusive na Jus- bonde. E, se não houver o debate, quem vai tiça, entrou em vigor. Entre as regras para regular é o mercado. E, quando o mercado propriedade estão o limite de dez outorgas regula, quem ganha é o mais forte”, afirma o de rádio ou TV aberta. Na TV a cabo, nenhu- ministro Franklin Martins. ma empresa pode deter o controle de mais de A pretensão do governo é fazer as mu35% dos assinantes. Criou-se também uma danças no marco regulatório através de reserva de um terço do espectro um processo público, aberto da TV aberta para as emisso- A liberdade e transparente. Até o final da ras privadas sem fins lucrativos de expressão gestão Lula, um anteprojetode (comunitárias e universitárias). vai além do lei, elaborado por um grupo de “O espectro é um bem públi- direito do trabalhointerministerial, será co, escasso. Mas muitas vezes as emissor de entregueà equipe da presidenempresas têm a impressão de te eleita, que decidirá quando dizer o que que a licença pública é sua proe como apresentá-lo ao Conpriedade”, analisa José Amado pensa gresso. “É necessário regular, Toby Mendel da Silva, presidente do Consecriar políticaspúblicas e gerar lho de Administração da Anacom, a agência um ambiente para que a sociedade se sinta reguladora da infraestrutura em Portugal. não só usuária dos serviços de comunicação, Portanto, as reais ameaças à liberdade de mas cidadã. Se formos capazesde entender expressão no Brasil não vêm das iniciativas isso, teremos mais opiniões se expressando de regulação da mídia, e sim da estrutura de no debate público”, diz o ministro. controle desse setor por poucos grupos ou Em paralelo, corre no Supremo Tribunal pessoas. O sistema de concessões e renova- Federal uma proposta de ação direção de outorgas de rádio e TV no Brasil, por ta de inconstitucionalidadepor omissão exemplo, é um dos principais mecanismos do Congresso Nacional. Elaborada pelo de concentração da propriedade, de ausên- juristaFábioKonder Comparato, procia da pluralidade de vozes na mídia e de fessor eméritoda Faculdade de Direito manutenção de interesses privados, disfar- da USP, e protocolada pelo PSOL, a ação çados de públicos. pede que a Justiça obrigue o Parlamento Um ano depois da 1ª Confecom, o gover- a regulamentaros artigos da Constituição no federal deu um passo significativo para que tratam da comunicação social. Tudo transformar essa realidade. A gestão Dilma indica, assim, que 2011 será um ano de muiRousseff sinaliza tratar como prioritárias as ta movimentação para aqueles que lutam mudanças na comunicação. “Estou conven- pelo direito a uma comunicação democrácido de que a área de comunicação terá, no tica no Brasil. Que venham as mudanças. próximo governo, o mesmo tratamento que teve a energia no governo Lula. Algo estra- Com informações da Agência Carta Maior
Limites à propriedade
O princípio da garantia da pluralidade e diversidade move as regras que impõem limites à propriedade dos meios de comunicação nesses países. Para enfrentar esse problema, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada recentemente na Argentina – e com muitas críticas dos grandes meios de comunicação do país –, impôs limites à concentração da propriedade da mídia. “Chegamos a um nível em que a questão não era apenas econômica; criou-se um oligopólio totalmente incompatível com uma sociedade democrática”, conta Gustavo Bulla, da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina.
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INGLATERRA Affleck: “As regras que estabelecemos já são aceitas como algo necessário para a democracia”
Opinião
Por Laurindo Lalo Leal Filho
Regulação não é censura A velha mídia confunde o público e foge do debate sobre a questão
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ornais, revistas, emissoras de rádio e televisão descobriram um novo assunto: a volta da censura no Brasil. Não passa um dia sem que um deles alerte contra esse perigo. Veem em cada esquina monstros prontos a atacar. Realmente eles não existem. São fantasmas criados com objetivos muito precisos. Trata-se de uma atitude preventiva dessa mídia acostumada a dizer o que pensa sem dar à sociedade direitos iguais de resposta. E muito menos de admitir a necessidade da regulação do mercado editorial e do espaço público ocupado pelas emissoras de rádio e de televisão. Temerosos com a possibilidade de terem de se submeter a leis democráticas, tentam confundir o público chamando qualquer regulação de censura. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Censura é um instrumento usado por ditaduras para impedir, antecipadamente, a divulgação de fatos, nomes ou ideias. A regulação dos meios de comunicação existe em todas as grandes democracias do mundo. E estabelece regras para permitir que mais pessoas ou grupos sociais possam se expressar pela mídia. As regras são necessárias para conter, de alguma forma, a lógica da acumulação capitalista, que é implacável. Qualquer atividade comercial sem regulação tende a se tornar monopolista. O dono da mercearia da esquina sonha em abrir outro estabelecimento num bairro próximo ou adquirir a loja do vizinho. E, a longo prazo, montar uma rede de supermercados capaz de dominar o comércio varejista de todo o país. Se não houver controle do Estado e se o empresário tiver sucesso, em pouco tempo ele poderá ser o único no mercado, estabelecendo a seu critério os preços aos fornecedores e clientes. Apesar de produzirem mercadorias diferentes, os meios de comunicação comerciais operam sob a mesma lógica. Disputam o mercado como mercearias ou supermercados. Só que não admitem regras para essa disputa. Quando elas são sugeridas – como ocorre agora no Brasil –, imediatamente as taxam de censura. É isso que explica a existência no país de uma elevada concentração dos meios de comunicação em mãos de poucas empresas. Empresários que iniciaram seu império com um jornal foram aos poucos controlando outros meios, publicando revistas, obtendo concessões de rádio e de TV, abrindo gravadoras, montando serviços de televisão por assinatura, investindo na internet, num processo que, aos poucos, ocupou amplas faixas do mercado, tendendo ao monopólio, vedado pela Constituição brasileira.
Convencionou-se chamar esse fenômeno de “propriedade cruzada” dos meios de comunicação, prática proibida em vários países do mundo, inclusive nos Estados Unidos, a pátria do livre mercado. Mas, aqui, não há limites. Daí a necessidade do controle social. Não para censurar conteúdos. Mas para dar vazão à ampla diversidade existente no país. Quanto ao rádio e à televisão, especificamente, a regulação deve ser ainda mais minuciosa. As empresas que operam esses serviços utilizam o chamado espectro eletromagnético, um bem público por onde trafegam sons e imagens. Trata-se de espaço limitado e finito. Ou seja, nele cabem poucos. É só ver o caso de São Paulo, onde não é mais possível instalar uma emissora de rádio ou de TV. O espaço está todo ocupado. E quem ocupa é um privilegiado, que pode se dirigir a milhões de pessoas ao mesmo tempo para vender mercadorias, fazer política, pregar valores religiosos. E, como não há mais espaço, quem não tem esse privilégio é obrigado a ficar calado. A ocupação do espectro é realizada por meio de concessões públicas, com duração definida: dez anos para as de rádio e 15 anos para as de televisão. Ao fim de cada período, deveria haver uma avaliação para saber se o serviço prestado atendeu às necessidades do público ou não. Em caso negativo, seriam substituídas por outra empresa ou instituição, como ocorre regularmente em vários países do mundo. É disso que os atuais concessionários têm medo. Eles, que exigem – quando lhes interessa – transparência dos órgãos públicos, temem um debate aberto quando se trata da própria atividade. Na Inglaterra, a outorga de concessões de rádio e TV é precedida de um amplo debate na sociedade e no Parlamento. As empresas candidatas apresentam propostas ao órgão regulador combinando valores financeiros a serem pagos pelo aluguel da concessão com uma carta de intenções em que detalham que tipo de programação será colocada no ar. Às vezes, a escolhida não é a que ofereceu mais dinheiro, mas a que propôs programas capazes de atender novos públicos, ainda não cobertos pelas ofertas televisivas. É tudo absolutamente simples e democrático. No entanto, quando se tenta estabelecer esse debate no Brasil, a reação dos grupos que controlam a mídia é violenta, revelando o grau de atraso cultural em que nos encontramos. Para enfrentá-lo, o primeiro passo é desmascarar mitos como o da censura e compreender que interesses estão em jogo. E denunciá-los onde e como for possível.
Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da ECA/USP; diretor e apresentador do programa VerTV, da TV Brasil e da TV Câmara; autor dos livros A Melhor TV do Mundo e A TV sob controle, da Summus Editorial; e ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação
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EDUCAÇÃO CORO DESAFINADO Estudantes pedem mais organização numa prova que teve menos de 2% de erro de impressão
SOB FOGO CR Para muitos estudantes de baixa renda, o Enem é um meio justo de avaliação e uma ponte para a universidade. Avançado e democrático, é alvo de ataques repletos de interesses políticos e econômicos ameaçados Por Cida de Oliveira
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ineiro de Alto Jequitibá, Wesley Henrique Godoy, 21 anos, cursou o ensino fundamental na rede estadual e o médio em colégio de aplicação da Universidade Federal de Viçosa. Nem seu pai, funcionário público municipal, nem sua mãe, auxiliar de enfermagem, chegaram à universidade. Thabata Pinho Müller, 18 anos, de Americana (SP), é filha de um gerente de vendas e de uma dona de casa, que também não cursaram 24
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faculdade. Até a 8ª série, ela estudou em escola particular de bairro porque seus pais queriam a garantia de aulas todos os dias. No colegial, foi para uma escola técnica mantida pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). João Laio Paz de Melo, 20 anos, fez o ensino básico na rede particular de Cubatão (SP), com bolsa integral conseguida por seus pais, um professor de matemática da rede estadual e uma teóloga. Estudantes do campus Santo André da Universidade Federal do ABC (UFABC), na
Grande São Paulo, eles cursam o primeiro ano do bacharelado em Ciências e Tecnologia. A partir do terceiro, João cursará disciplinas que o formarão engenheiro de instrumentação, automação e robótica. Wesley quer ser cientista da computação e aliar conhecimentos da área à neurociência. E Thabata seguirá pela engenharia de gestão, algo que vai além da engenharia de produção. Longe de casa, dividem espaço nas repúblicas com colegas de Rondônia, Acre, Pernambuco, Rio de Janeiro, Bahia, Goiás. É gente de todos os lugares, com
JEAN SCHWARZ/AG. RBS MARCELLO CASAL JR/ABR
RUZADO PRESSÃO O ministro Haddad na mira da mídia: educação para lidar com a cobiça privada
a cara do Brasil, dizem. João, Wesley, Thabata e os mais de 4 mil alunos hoje matriculados na UFABC têm as notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2009 como porta de entrada à tão sonhada – e disputada – universidade pública e gratuita. Criada em 2005, a instituição, que tem 100% de seus professores com título de doutorado, usa o Enem como processo seletivo e destina metade de suas vagas a estudantes que cursaram escolas públicas. É o símbolo da universidade pública no melhor sentido da palavra e do projeto de educação superior que está na mira do estardalhaço desproporcional e parcial de alguns setores da imprensa por causa das falhas do teste realizado nos dias 6 e 7 de novembro. Erros de impressão em menos de 2% dos cadernos de questões de cor amarela ganharam as manchetes dos jornais, revistas, programas de TV e internet. Até o Senado convocou o ministro Fernando Haddad para prestar esclarecimentos. “Se não fosse o Enem, as vagas da Federal do ABC seriam disputadas por alunos de classes mais favorecidas, que além de terem estudado em escolas privadas podem pagar até R$ 2 mil em cursinhos particulares para aprender a fazer as provas que assustam tantos alunos da escola pública”, diz o educador popular Sérgio José Custódio, presidente do Movimento dos Sem Universidade (MSU). “Não é de estranhar que esses cursinhos estivessem por trás das manifestações de estudantes contra o Enem realizadas no Rio de Janeiro, em Pernambuco e no Ceará. Porque movimento social sério, que luta pela democratização do acesso à educação superior de qualidade, apoia o exame.” Ele conta que a entidade entrou com representação na Advocacia Geral da União para que todo o exame não fosse cancelado em função de erros isolados. A confusão, que tinha começado no domingo, não o surpreendeu. “Já desconfiávamos do que viria por aí. Em 2009, houve um movimento mafioso contra o Enem que até agora não foi esclarecido. Digo mafioso porque nenhum trabalhador de chão de fábrica de gráfica seria capaz de bolar um esquema de venda da prova”, dispara.
Ah, os negócios
Para Custódio, o Enem é significativo para a cidadania brasileira também porque garante o acesso ao Programa Universidade para Todos (ProUni), que oferece DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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PAULO PEPE
cerca de 150 mil vagas nas faculdades particulares. O programa, aliás, é contestado na Justiça pelos democratas e setores que têm o ensino privado como negócio. Em 2004, quando o ProUni foi criado pelo governo Lula, o DEM entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade. Em 2008, já no Supremo Tribunal Federal, o relator, ministro Carlos Ayres Britto, apresentou parecer contrário à ação. O ministro Joaquim Barbosa pediu vista do processo, o que sustou o julgamento, ainda sem data para prosseguir. Outros educadores e analistas da área concordam com Custódio quanto aos interesses ameaçados por um teste que deixou para trás seu caráter basicamente classificatório – que beneficiava instituições privadas que escolhiam e preparavam os melhores alunos com finalidade de propaganda –e deve se tornar ferramenta nacional e democrática para o ingresso no ensino superior. Quando foi criado, em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, o exame apenas avaliava o desempenho do estudante ao fim do ensino médio ou mesmo daqueles que o concluíram em anos anteriores. Com a criação do ProUni, em 2004, as notas passaram a contar para a concessão de bolsas parciais ou integrais, o que aumentou o interesse pela avaliação. Atualmente cerca de 500 universidades já usam o resultado como critério de seleção, seja complementando ou substituindo o vestibular. Em 2009, seu formato foi reformulado. Passou de 63 para 200 questões de múltipla escolha, com a manutenção da redação. A aplicação passou a ser feita em dois dias seguidos, e 59 universidades federais a adotaram em substituição ao sistema tradicional. “Isso tudo explica o barulho por falhas em 21 mil provas num universo de 3,3 milhões”, afirma frei David Raimundo Santos, presidente da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro). O franciscano, que criou a rede comunitária de cursinhos pré-vestibulares no começo dos anos 1990, num núcleo de estudos em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, diz que são vários os interessados em desacreditar a prova, mas destaca a manutenção do privilégio dos ricos garantida pelo vestibular. A decoreba consolidada nas aulas dos cursinhos particulares e o alto poder aquisitivo para pagar taxas de inscrições e viagens para os exames em outros estados estão fora do alcance da
BARREIRA SOCIAL Frei David acredita que são vários os interessados em desacreditar a prova, mas destaca a manutenção do privilégio dos ricos garantida pelo vestibular
maioria dos brasileiros. Embora não corrija a qualidade da educação básica pública, o Enem, segundo ele, reduz a distância entre as chances de todos por ser uma prova única, em âmbito nacional, de custo reduzido para o estudante e classificatória para uni-
versidades localizadas em diversas regiões. Concorda com frei David o educador Márcio da Costa, do grupo de estudos das políticas educacionais da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O vestibular é
ROBERTO PARIZZOTI
ACESSO DEMOCRÁTICO João, de Cubatão, Thabata, de Americana, e Wesley, de Alto Jequitibá: cadeira na Universidade Federal do ABC, pública e gratuita, conquistada com as notas do Enem
uma barreira social também pela exigência de maior apuração do discurso escrito, o que está mais presente no aluno com melhor formação. Quando o aluno da escola pública consegue rompê-la, tem potencial para ser, no mínimo, igual aos demais. Isso porque há um nivelamento na faculdade, quando as disciplinas retomam muitos conteúdos do ensino médio.” Como ele lembra, antes de adotar o Enem a instituição onde trabalha e muitas outras faziam um vestibular completamente discursivo. “Como corrigir 400 mil provas nessa modalidade? Como garantir uma correção justa e transparente? Ninguém até hoje me respondeu isso”, assinala. “Mesmo com as falhas, o Enem está num patamar superior ao que tínhamos antes. E temos de compará-lo com o que tínhamos, que não era bom, e não com algo abstrato que não temos”, afirma Costa. “Apesar da sua importância para o nosso ingresso na universidade, a prova não causa todo aquele estresse do vestibular. As ques-
tões exigem raciocínio sobre tudo aquilo que aprendemos no colegial”, ressalta o estudante Wesley. “E os temas da redação são muito mais fáceis”, completa Thabata.
Interesses
A economia que gira em torno da realização dos concursos vestibulares é destacada pelo sociólogo Rudá Ricci, professor da pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais. Ele diz que principalmente as faculdades isoladas,
“Mesmo com as falhas, o Enem está num patamar superior ao que tínhamos antes. E temos de compará-lo com o que tínhamos, que não era bom, e não com algo abstrato que não temos” Márcio da Costa
com 300 a 600 alunos, espalhadas pelo interior do país, têm nessas provas um reforço de caixa. “Entre outubro e março, suas contas são pagas apenas com as taxas de inscrição”, diz. Nas grandes universidades, como muitas públicas de São Paulo, segundo ele, são os professores que engordam a conta bancária. Chegam a receber das comissões de vestibulares R$ 5 mil para elaborar as provas e os gabaritos. E, se corrigirem a prova, podem ganhar R$ 7 mil num mês. Isso sem contar que muitos deles são convidados a dar palestras. “É um bônus que causa grande disputa na universidade.” Os donos de cursinhos são outros grandes interessados, segundo Ricci. Os maiores, especializados em preparar candidatos para se dar bem nos grandes concursos, como o da Fuvest, por exemplo, ganham com as mensalidades, a publicidade pelo sucesso dos alunos que preparam e também com serviços gráficos e editoriais. Esse último segmento, aliás, sustenta muitos estabelecimentos que editam e imprimem apostilas, fôlderes, livros, banners e tantos outros materiais usados pelo aluno, como divulgação das empresas envolvidas. Mestre em Gestão de Políticas Públicas, o educador e deputado federal Carlos Abicalil (PT-MT) diz que os ataques se devem também à disputa comercial pela impressão das provas do exame. “Temos no país duas gráficas que atendem às exigências do processo licitatório, uma delas ligada a um grupo de comunicação”, conta Abicalil, referindo-se à Plural, pertencente à empresa que publica o jornal Folha de S.Paulo – que em 2009 imprimiu as provas. E destaca outros pontos no mínimo suspeitos desse episódio, como a decisão da juíza cearense de proibir a divulgação do gabarito, um direito de mais de 3 milhões de estudantes. “Há uma sucessão de fatos que realmente têm de ser investigados, mas a falha é pequena frente à magnitude desse exame. Há necessidade de fortalecê-lo, e não enfraquecê-lo.” “É preciso que o governo seja mais rigoroso com a realização do exame e terceirize o mínimo possível”, afirma o estudante João Laio, da UFABC. Para especialistas, sem que muitos percebam, o Enem está reformando também o currículo do ensino médio. Mas nem por isso é perfeito. Para melhorar, deve incluir disciplinas ligadas à formação para a cidadania e ter todas as suas etapas submetidas ao controle social. DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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HISTÓRIA
Aprender a aprender Os ginásios vocacionais, criados no início da década de 1960 no estado de São Paulo, foram uma experiência de escola pública tão bem-sucedida que irritou até o regime militar Por Xandra Stefanel 28
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ornais da época anunciavam a instalação em caráter experimental de uma escola ginasial pública com características bem diferentes das tradicionais. Atraídos pelo anúncio, os pais de Claudia Alencar, hoje atriz da TV Record, pintora e escritora, a matricularam, mas não sabiam que ela estrearia uma nova pedagogia. Um ano antes de suas aulas começarem, em 1961, foi criado por decreto, em São Paulo, o Serviço do Ensino Vocacional (SEV), subordinado ao gabinete do secretário estadual de Educação, Luciano Vasconcellos de Carvalho, que coordenava as unidades dos novatos ginásios vocacionais. Numa viagem pela Europa, Carvalho descobriu os métodos de Sèvres (francês) e da Escola Compreensiva inglesa, segundo os quais
RODRIGO QUEIROZ
Claudia Alencar, admitida na unidade do bairro paulistano do Brooklin, ajudou, com outros alunos, a preparar a escola para o início das aulas. “O prédio não estava pronto. A gente envernizou as carteiras, limpou tudo, foi muito divertido. Lá fazíamos e aprendíamos coisas que não se viam em nenhum lugar”, afirma a atriz. Olga Bechara participou de todo o processo de implementação das escolas, foi supervisora de orientação pedagógica e professora. “O que é vocação para uma criança de 12 anos? O que fazíamos era explorar suas aptidões – hoje chamadas de competências – e seus interesses. Para isso, oferecíamos vários campos para eles conhecerem.” Esméria Rovai, então professora de recursos audiovisuais, explica que a proposta surgiu em um momento histórico em que era revista a concepção de ciências sociais. “Estava surgindo uma nova antropologia, com a visão de um homem que sofria a influência de seu meio e devia tornar-se consciente e engajado. Nisso se baseavam os ginásios vocacionais.”
Diversidade
ARQUIVO PESS
OAL
BOAS LEMBRANÇAS Claudia Alencar exibe com orgulho sua produção escolar e a foto da formatura
Antes de inaugurar as escolas, a coordenação do SEV fazia uma profunda pesquisa na comunidade para descobrir o perfil da região, os tipos de comércio e empresa, as classes sociais dos moradores, entre outras características. O resultado subsidiava o processo de seleção e eram promovidas entrevistas com pais e filhos interessados. As unidades da capital e do município de Batatais foram inauguradas em 1962, no ano seguinte vieram as de Rio Claro e Barretos e, por fim, em 1968, entrou em funcionamento a de São Caetano do Sul. O ex-aluno Luiz Carlos Marques afirma que a pesquisa na comunidade fazia com que houvesse heterogeneidade entre os selecionados. “Eu estudava na unidade do Brooklin. Se lá 10% dos moradores fossem da classe A, 50% da classe B e 40% da C, por exemplo, essa seria a composição das turmas. Na época a gente nem sabia disso”, lembra Luigy, como é conhecido o atualpresidente da GVive, Associação dos Ex-Alunos e Amigos do Vocacional. Outra inovação foi o conteú do curricular, também desenvolvido de acordo com as características locais. As disciplinas eram estudadas a partir de um tema central (geralmente na área dos estudos sociais), decidido em uma espécie de assembleia de professores e alunos. Havia aulas de estudos sociais – uma mistura de geografia, história e sociologia –, português, matemática, ciências, inglês, francês, além das matérias técnicas, como artes industriais, práticas comerciais, práticas agrícolas (em algumas unidades), artes plásticas, educação doméstica, educação musical, educação física, teatro, orientação religiosa ecumênica e sexual. “Se o tema era Olimpíada, em matemática tirávamos as medidas de quadras, em português pesquisávamos textos sobre o assunto, nas artes plásticas desenhávamos os temas, em educação musical, pesquisávamos e tocávamos os hinos. Era um processo
a formação deveria incentivar a participação ativa e consciente dos alunos numa sociedade democrática. Assim que voltou, o secretário formou uma comissão de educadores e especialistas do ensino secundário e industrial para desenvolver uma escola que atendesse ao que considerava os novos apelos da sociedade. O que ele não sabia é que na cidade de Socorro, no interior do estado, Maria Nilde Mascelani e Olga Bechara já estavam à frente de um projeto chamado Classes Experimentais, bem próximo dos moldes de Sèvres. Assim nasceu o SEV, que não era nem escola ginasial – correspondente às quatro últimas séries do ensino fundamental de hoje – nem industrial, mas um ambiente de descoberta que dava ferramentas para os alunos conhecerem as áreas que poderiam escolher no futuro.
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ARQUIVO GVIVE
AMBIENTE DE DESCOBERTA O ensino vocacional dava ferramentas para os alunos conhecerem as áreas que poderiam escolher no futuro
cíclico. Todas as disciplinas dialogavam e se complementavam”, administradora de empresas e presidente da Academia de Letras recordaLuigy. No primeiro ano do Ginásio Vocacional estudava- e Artes de Barretos. “Como eu teria acesso às artes plásticas, à de-se o bairro, depois, passava-se para as cidades próximas, o estado, coração, à pintura? Tocávamos Chiquinha Gonzaga, Donga, fazío país, e no quarto ano ampliavam para temas relacionados com amos xilogravuras, óleos sobre tela, mosaicos. Também tínhamos o resto do mundo. torno, práticas agrícolas... Plantávamos, colhíamos e preparávaO astro do programa era o que chamavam de estudos do meio, mos os alimentos nas aulas de economia doméstica. Meninos e em que os grupos saíam das escolas para conhecer a meninas juntos. E tudo com a maior naturalidade”, lembra Elisete, realidade da cidade, viajavam para os municíhoje com 53 anos. pios vizinhos e para outros estados. “Teve uma turma que chegou a ir para a Juntos e iguais Bolívia!”, diz Luigy. Eles visitavam Os garotos participavam das aulas de os comércios, indústrias, iam para educação doméstica, iam para a cozinha, fazendas aprender de perto noções aprendiam a pregar botão, assim como as de agricultura e pecuária. O aprendimeninas iam para o torno, a marcenaria zado era complementado pelas atividae a horta. O respeito à individualidade des na cooperativa, no banco, no escritóera o mesmo para ambos os sexos. Eliserio contábil e no governo estudantil. te destaca como marcantes de seus quaPodia até parecer brincadeira, mas tro anos de estudo ginasial não apenas o tudo fazia parte do método de ensino: nas conteúdo das aulas, mas a forma como viagens e na cantina, os alunos usavam cheeram dadas. Liberdade era palavra de orPRECONCEITO No final dos anos 1960, a ques emitidos por banco próprio, vendiam mídia conservadora forneceu o discurso dem, sempre acompanhada de outra de material escolar na cooperativa, faziam o para os militares extinguirem o ensino igual importância: responsabilidade. “Se balanço financeiro no escritório de contabi- vocacional e perseguirem seus mentores, quiséssemos sair, saíamos, éramos livres professores e pais de alunos lidade e ainda votavam para governador e e responsabilizados pelos nossos atos. A deputados, tal qual em regimes democráticos de gente grande. educação do Vocacional formava para a liderança, para aprenderMarco Otávio Baruffaldi, que estudou na mesma turma de Lui- mos a viver com as diferenças e respeitá-las. Os alunos eram congy, lembra: “Os pais que podiam depositavam dinheiro na con- testadores. Os professores estimulavam o pensamento, que busta do filho e era com isso que ele ia viajar nos estudos do meio, cássemos as respostas. Eles sempre nos devolviam as perguntas”, comprava alguma coisa na cantina... E os filhos dos pais que não emociona-se. podiam também faziam tudo isso porque os outros pais, em seA liderança era incentivada por meio de uma técnica chamada gredo, depositavam para eles também”. sociograma. Os jovens elegiam três pessoas que queriam ter em Apesar de sua família ser pobre, Elisete Greve Tedesco nunca seus grupos e os mais votados eram os líderes. Claudia e Elisete deixou de fazer atividades nem de viajar com sua turma, em Bar- foram escolhidas. Pérsio Ebner foi além. Candidatou-se pelo parretos, por falta de dinheiro. Filha de uma viúva – a cozinheira da tido União Vocacional Democrática e foi eleito para o cargo de deunidade – e com outros dois irmãos, ela garante ter sido essa escola putado. “Fui eleito pela cota do partido. A gente estudava as leis e que a ajudou a tornar-se o que é hoje: historiadora, artista plástica, adaptava para a escola. Tinha eleição mesmo – mesário, título de 30
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Início do fim
Foi essa mesma percepção que levou o governo militar – ainda mais arbitrário em 1968 devido à promulgação do Ato Institucional número 5 – a apertar cada vez mais o cerco àquela nova forma de ensinar que formava cidadãos críticos e contestadores. Afastamentos, ameaçase até prisões aconteceram. Por fim, em 1969, foi oficialmente extinto pela ditadura – permitindo apenas aos alunos que tinham iniciado seus cursos e aos que entraram no ano seguinte concluir seus estudos. Foi por esse contexto que Manoel Maia ficou preso por três meses, Elisete viu pais de amigos indo para a prisão, Nelson Freire teve de prestar depoimento na Polícia Federal e Olga Bechara, no DOI-Codi. Se o problema até então era a falta de recursos, agora era também a perseguição à coordenação, ao corpo docente e até mesmo aos pais dos alunos. Olga sofreu ameaças. A situação que viveu numa salinha daquele centro de tortura ficou gravada na memória. “O cabo me perguntou como eu podia levar um menino de 12 anos para conhecer uma favela. Eu respondi que não precisava esconder a favela dele, que era preciso conhecer o problema habitacional. ‘O senhor precisa
CORRELAÇÃO Luigy: “Era um processo cíclico. Todas as disciplinas dialogavam e se complementavam”
DANILO RAMOS
eleitor, campanha”, conta o biomédico de 57 anos, selecionado em 1965 para estudar na unidade de Batatais. “Inicialmente conhecíamos os aspectos da cidade e íamos estudando tudo dentro do contexto dos estudos sociais. Conhecemos indústria de leite, de calçados, fomos a museus, descobrimos os tipos de vegetação. Fizemos muitas viagens. Fomos para Belo Horizonte, São Paulo, acampamos numa fazenda de alho em Batatais. Eu me desenvolvi muito”, garante Pérsio. Aos 78 anos e cheia de lucidez, a ex-coordenadora de orientação pedagógica Olga Bechara conhece como poucos a história de todas as unidades do Vocacional e lembra a alegria dos que lá estudavam. “Acabava a aula e eles não queriam ir embora. Nessa idade, isso não é muito comum, né? Os pais me perguntavam: ‘Que escola é essa que, quando quero castigar meu filho, digo que ele não vai à aula?’ Eles não entendiam”, ri. O engenheiro e empresário Nelson Freire teve três dos quatro filhos na unidade do Brooklin. Seu entusiasmo com a escola foi tão grande que se tornou presidente da Federação das Associações de Pais e Amigos do Vocacional. “Foi uma experiência maravilhosa, porque víamos que o processo educacional era inovador e criativo. Havia envolvimento profundo dos alunos na vida da comunidade e da sociedade. Como pai e cidadão, passei por um aprendizado fabuloso”, diz, saudoso. A maior dificuldade do SEV sempre foi o orçamento, proveniente da Secretaria de Educação e considerado baixo para o tamanho do investimento. O coordenadorfinanceiro do serviço, Manoel Maia, lembra que suas visitas à sede do governo e à secretaria eram frequentes. “Fui várias vezes ao gabinete do (governador) Abreu Sodré em busca de verbas para suportar o projeto. Sempre conseguia alguma coisa, apesar da má vontade. No geral, havia desinteresse do estado.” O contador afirma que parte dos recursos era arrecadada pelas associações de pais. “Mesmo assim, a verba não cobria nunca. Era um ensino diferenciado, mas valia a pena, era um celeiro de inteligência.”
ver, cabo, o que eles dizem quando voltam. Eles querem consertar o país, fazem projetos. Se a gente esconde isso agora, quando descobrirem a realidade na universidade, ficarão revoltados e será pior.’ E o cabo ficou ali, me olhando”, lembra a Hoje várias ex-coordenadora pedagógica. escolas Além das ameaças da ditadura, a experiência dos vocacionais sofreu com os particulares desencontros pessoais que começaram utilizam a surgir nas equipes. Olga e a ex-profesconceitos sora Esméria afirmam que hoje várias do ginásio escolas particulares utilizam conceitos vocacional, do ginásio vocacional, mas nunca mais mas nunca a iniciativa aproximou-se das públicas. “Conhecer a realidade, e não ficar apemais a nas com o ‘estudo livresco’, levou o Voiniciativa aproximou-se cacional a ser considerado um projeto subversivo. Ainda hoje seus princípios das públicas básicos são atualíssimos e acho que ele pode e deve ser levado à educação pública”, opina Esméria, autora do livro Ensino Vocacional: uma Pedagogia Atual. O ex-aluno Marco Buruffaldi não deixa de pensar: “Imagine se metade da população brasileira tivesse acesso ao que tivemos no Vocacional! Tenho certeza de que não estaríamos na situação em que estamos hoje”. DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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ENTREVISTA
De berço Filha de grandes atores, Julia Lemmertz persegue o bom trabalho, e não o sucesso. Rejeita botox e plásticas e acha legal envelhecer: “Sempre haverá espaço para os imperfeitos” Por Tom Cardoso
J
Minha mãe era muito “mãezona”. Nunca me cobrou como atriz, ao contrário: dava a maior força, se emocionava. Chorava toda vez que ia me ver no teatro. Quando ela morreu, a gente estava planejando trabalhar juntas 32
ulia Lemmertz tinha apenas 5 anos quando sua mãe, a atriz Lilian Lemmertz, a puxou pelo braço para fazer uma ponta no filme As Amorosas, dirigido por Walter Hugo Khouri. Ela não lembra quase nada, mas há quem diga que Paulo José e Stênio Garcia, atores do filme, enxergaram talento na menina, mesmo que sua atuação tenha se resumido a um levantar de braços. Afinal, filha de quem era – Lilian já era uma das mais talentosas atrizes do país –, não podia dar em outra coisa. Julia faz parte da última geração de atores em que o talento se sobrepõe à estética. Hoje, não há mais tantos Paulos e Stênios por aí. A televisão brasileira e parte do teatro amador são dominadas por ex-modelos e alpinistas saídos diretamente da banheira do Big Brother. Julia diz não se incomodar com isso – continua aprendendo com os melhores. Seu atual mestre é Lima Duarte, com quem faz par na novela Araguaia. Uma tragédia impediu que mãe e filha trabalhassem juntas – Julia tinha 23 anos em julho de 1986, quando Lilian morreu, aos 48 anos, vítima de um enfarte no miocárdio. Julia está com 47, e ela mesma não consegue evitar comparações. Nos últimos meses, tem assistido a filmes e novelas estrelados pela mãe. “A lembrança que eu tinha era sempre de minha mãe como uma figura mais velha. Hoje, não. Fico vendo as novelas que ela fez e me sentindo um pouco ali. É muito louco isso, né?”, diz emocionada, durante entrevista na sala de imprensa do Projac, o centro de produções da TV Globo. Lilian e Julia têm estilos diferentes – são unidas apenas pelo DNA e pelo talento. A mãe deixou um legado, que se confunde com a história do teatro e da televisão brasileira. A filha está aí, na batalha, fazendo novela, teatro (a peça O Deus da Carnificina, em cartaz no Rio, estreia no ano que vem em São Paulo) e cinema – acabou de rodar o filme Amor?, de João Jardim, o documentarista de Janela da Alma. “Eu penso como uma atriz das antigas. Persigo bons trabalhos, e não o sucesso.” Mamãe Lilian adoraria isso.
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Você é filha de atores (Lineu Dias e Lilian Lemmertz) e estreou como atriz com 5 anos, numa ponta do filme As Amorosas. Em algum momento da vida você pensou em fazer outra coisa?
Não, nunca. Foi algo natural para mim. Não considero a minha participação em As Amorosas como uma estreia. Era uma ponta. Ficou faltando uma criança e como eu estava ali, acompanhando minha mãe, entrei no filme. Em 1971, foi a mesma coisa – uma ponta em Cordélia, Cordélia. Minha estreia mesmo só ocorreu dez anos mais tarde, quando fui fazer a novela Os Adolescentes, da TV Bandeirantes. Ali foi pra valer.
E sua mãe já era uma das grandes atrizes do Brasil. Você carregou o peso de ser filha de quem era?
Nunca me incomodou, mesmo porque fiquei distante da minha mãe. Fui morar sozinha no Rio de Janeiro, longe dela, para estudar teatro. Tinha 20 anos, queria minha independência financeira e emocional. Minha mãe era muito “mãezona”. Nunca me cobrou como atriz, ao contrário: dava a maior força, se emocionava. Chorava toda vez que ia me ver no teatro. Quando ela morreu, a gente estava planejando trabalhar juntas.
Como lidou com a tragédia?
Foi muito duro, mas é algo que hoje eu consegui resolver bem. Não sofro mais como sofria antes. O pessoal da Imprensa Oficial do Estado, que coordena a coleção Aplauso, dedicada a contar a vida de atores brasileiros, até me convidou para escrever um livro sobre minha mãe. Eu recusei. Não sou escritora e também acho que era preciso ter um distanciamento do personagem, que, claro, eu não tinha. Mas aí o Cleodon (Coelho, jornalista e roteirista) se ofereceu para fazer e o livro saiu (Lilian Lemmertz – Sem Rede de Proteção). Fiquei surpresa com o que li. Eu desconhecia toda a carreira de minha mãe como modelo e manequim em Porto Alegre. Ela morreu cedo, mas viveu de forma intensa e muito produtiva.
JOÃO LAET/ AGÊNCIA BRASIL ECONÔMICO
Novela, mesmo que seja um veículo poderoso, tende sempre a repetir fórmulas, não por culpa dos autores e diretores, mas do público, que sempre busca as mesmas histórias
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Sua mãe morreu aos 48 anos, vítima de enfarte. Você tem preocupação com a saúde por causa disso?
Uma vez caí de bicicleta e me esborrachei. E nem quis saber se tinha quebrado uma costela ou um dente. A primeira preocupação foi checar se algum fotógrafo tinha flagrado a queda
Sim, eu me cuido, mas não sou neurótica. São gerações diferentes, né? Minha mãe fumava muito – todos os atores fumavam e bebiam muito naquela época. Hoje a minha diversão é sair pedalando por Ipanema, onde moro. As gravações de novela também exigem muito mais disciplina do que antes. É preciso chegar cedo ao Projac, encarar o trânsito até aqui, ter uma rotina quase operária. Sabe, tenho pensado muito na minha mãe. Estou com 47 anos, no ano que vem estarei com a idade em que ela morreu. A lembrança que eu tinha era sempre de minha mãe como uma figura mais velha. Hoje, não. Fico vendo as novelas que ela fez e me sentindo um pouco ali. É muito louco isso, né?
Você nasceu em Porto Alegre e mora no Rio há mais de 25 anos. Está mais para gaúcha ou para carioca?
Olha, minha família é toda do Rio Grande do Sul. Meus parentes e amigos, todo mundo. E é para lá que vou quando quero descansar. Quer uma prova de que eu continuo tão gaúcha quanto antes? Não troco o meu time, o Internacional, por nada desse mundo.
Dizem que você é torcedora fanática, que inclusive fez de tudo para ver a final do Mundial Interclubes (entre Inter e Barcelona, em dezembro de 2006).
É, fiquei muito chateada por não poder ir. Eu acompanho mesmo. Quando o Inter joga aqui no Rio, não deixo de ir. E o mais importante é que meu filho Miguel, de 10 anos, não é flamenguista nem vascaíno. É colorado. Eu o mataria se não fosse (risos).
Apesar de manter as tradições gaúchas, você viveu intensamente o Rio dos anos 80, as festas no Morro da Urca, a efervescência do Baixo Leblon.
Sim, muito! Cheguei ao Rio no começo dos anos 80. Fui morar no Morro do Vidigal, sozinha. Quando conto isso para amigos, eles se assustam. Mas o Vidigal era um morro maravilhoso, não tinha tráfico, violência. Eu podia dormir com a porta aberta, ou chegar a pé sozinha de madrugada, sem perigo nenhum. Era outro Rio, né? A cidade estava vivendo seus últimos tempos de paz.
E qual era a sua turma?
Eu andava com o pessoal mais legal do Rio de Janeiro, que era a turma do Cazuza, da Bebel Gilberto. Era um pessoal muito despirocado, maluco, mas muito alegre, engraçado, do bem.
Mas que se envolveu pesado com drogas, não?
Não era tão pesado assim, não. A relação com as drogas era outra, não tinha a mesma conotação que tem hoje.
Essa turma do Cazuza, da qual você fazia parte, foi representada no filme Cazuza – O Tempo Não Para. 34
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Você viu o filme?
Sim, vi. É um filme bonitinho, bem feito... O Daniel(de Oliveira, ator que faz o papel de Cazuza) está sensacional.
Você parece ter gostado mais da interpretação do Daniel do que do filme...
Olha, o filme é legal, mas eu não me senti ali. A gente era mais legal que aquilo. Ficou meio datado, careta, não sei. Acho que todo filme corre esse risco, de estereotipar um pouco os personagens. Acho que é praticamente impossível reproduzir no cinema o quanto a gente era livre e feliz.
O Rio do Cazuza virou o Rio do Comando Vermelho, do Bope, das milícias. Como você sobreviveu a essa transformação?
Pois é, não sei como sobrevivi nem como a cidade sobreviveu a tanta corrupção, a tanta incompetência administrativa. Os governos César Maia, Garotinho, Rosinha acabaram com o Rio de Janeiro. Desde que moro aqui, o Rio não teve um só governo decente, que quebrasse paradigmas, que tivesse um plano alternativo para a cidade, para a violência. O Brizola foi péssimo. Não teve o menor planejamento urbano. Foi no governo dele que a violência começou a tomar conta da cidade.
Os dois filmes da série Tropa de Elite foram acusados de fascistas por parte da crítica, por alimentar a violência policial e condenar o usuário de drogas como responsável pelo aumento da criminalidade. Qual a sua opinião sobre tudo isso?
É uma questão muito complexa, que não dá para ser respondida com uma frase. Mas é bom que o assunto seja debatido pela sociedade. Tropa de Elite 2 está batendo recordes de bilheteria. O Miguel, meu filho, quer ver no cinema. Ele tem só 10 anos. Não sei como vai ser (risos).
Você está otimista com a retomada do cinema brasileiro?
Que retomada? Tropa de Elite 2 é uma exceção. O cinema brasileiro continua distante de ser uma indústria. A gente se salva como pode. Há muitos filmes sendo feitos, muito por causa das facilidades que a tecnologia propiciou, mas eles não chegam ao grande público. O que adianta? Quando eu falo indústria, não falo em produzir filmes americanizados, para o grande público. Falo de uma indústria capaz de fazer filmes para todos os gostos, para todos os públicos. E isso é um pouco o reflexo de um país que não investe em cultura e educação. Como ter uma indústria que faça filmes mais experimentais, mais pensantes, se o público brasileiro busca um só modelo, o modelo de cinemão americano?
Como foi a experiência de ser proprietária, por dez anos, de um cineclube em São Paulo (o Cine Arte Lilian Lemmertz funcionou no shopping Pompeia e foi fechado este ano por falta de recursos)?
Em algum momento vocês pediram ajuda ao Ministério da Cultura?
Sim, a gente mandou um edital, fez tudo, lutou. Mas ninguém respondeu. Só depois, quando fechamos e a imprensa fez um certo barulho, alguém do Ministério da Cultura resolveu nos procurar. Acho que o cinema estava no lugar errado e na hora errada. Somos atores, e não empresários. Se o pessoal do Belas Artes, uma das salas mais tradicionais de São Paulo, tem dificuldade de manter o cinema em pé, imagina a gente. Fiquei triste também por ser uma homenagem à minha mãe. Durou tão pouco.
Você já recusou papel importante em novelas em horários nobres da TV Globo para fazer teatro e cinema. Nem todos os atores do país resistem à tentação do sucesso fácil...
Eu não tenho o menor constrangimento em fazer novela. É importante dialogar com o grande público. Mas sempre fui idealista. Acho que, por ser filha e neta de atores, eu tenho essa coisa da interpretação muito forte em mim. Sei que preciso evoluir intelectualmente, procurar novos caminhos. E a novela, mesmo que seja um veículo poderoso de comunicação, tende sempre a repetir as mesmas fórmulas, não por culpa dos autores e diretores, mas por causa do público, que sempre busca as mesmas histórias. No teatro e no cinema eu posso ousar, buscar caminhos mais complexos, sem correr o risco de não ser entendida. Por isso, é importante, para mim, dar uma parada a cada dois anos. Mas gosto de fazer novela e quero continuar fazendo.
Atores mais experientes se queixam da reformulação no elenco das atuais novelas, que dá cada vez mais espaço para os “bonitinhos”, muitos vindos de reality shows, e não das escolas de teatro.
Primeiro, não acho que é preciso necessariamente passar por uma escola de teatro para ser ator. Tem gente que nunca subiu num palco e logo de cara demonstra que tem talento. Já vi vários casos assim. Mas é claro
que é preciso preparar melhor os novos atores. Quem sofre com tudo isso não são os atores mais experientes, que sabem tirar tudo de letra, e sim os próprios novatos, que ficam perdidos e inseguros. E quem não tem talentonão sobrevive. É uma questão de tempo. Mas não há uma ditadura da beleza tomando conta da televisão?
Sim, há. Mas é um sinal dos novos tempos. Eu estava revendo cenas da minha mãe em Baila Comigo (1981). Minha mãe foi a primeira Helena do ManoelCarlos. Era uma estética completamente diferente. Não havia o cuidado que há hoje com o cenário, com o figurino, o enquadramento e, naturalmente, com a aparência dos atores.
E o que você faz para se enquadrar aos novos tempos?
Eu tenho uma preocupação com a estética até a página 2. Eu malho, me cuido, mas sou radicalmente contra o botox ou qualquer tipo de plástica. Acho legal envelhecer. E não tem essa de ficar com medo de perder o emprego. A televisão terá sempre espaço para os imperfeitos.
Você mora em Ipanema, o bairro que concentra o maior número de paparazzi por metro quadrado do Rio de Janeiro. Como você vê esse culto a celebridades e a falta de privacidade?
Eu não sofro muito com isso. Se for preciso ir de chinelo e bermuda fazer compras no supermercado eu vou, numa boa. Não tenho o menor medo de ser fotografada assim. O Alê também é um cara que se relaciona muito bem com os fotógrafos, está sempre sorridente, acha até graça. A gente é um casal simples, tão comum que os fotógrafos nunca esperam nada de diferente. Eles querem mesmo é ver alguma discussão na rua, alguém batendo boca com eles, fazendo algo que dê “notícia”. Se bem que uma vez eu quase virei capa de revista de fofoca (risos). Decidi ir até a Gávea de bicicleta, para renovar minha carta de motorista. Quando fui cruzar a Bartolomeu Mitre, uma rua movimentada do Leblon, não percebi que estavam recapeando o asfalto. Estava tudo muito escorregadio. Quando percebi, já tinha voado pelo menos um cinco metros e me esborrachado no chão, em frente à faixa de pedestres.
FOTOS JOÃO LAET
No começo foi ótimo. O pai do Alexandre (Borges, ator e marido de Julia) soube de um cinema na Lapa que estava fechando as portas. Resolvemos reformá-lo e fazer daquele espaço um ponto de resistência do cinema de arte. Homenageamos a minha mãe, que morou muito tempo em São Paulo, e começamos a luta. A gente tinha o apoio financeiro da distribuidora Polifilmes, mas mesmo assim era difícil tocar o cinema, por várias razões. Eu e o Alê moramos no Rio e era complicado acompanhar tudo de perto. Além do mais, o público do shopping queria sempre uma programação mais “comercial”, e a gente tinha dificuldade de lotar os 85 lugares. Na última sessão do último dia de funcionamento do cinema, só 11 pessoas foram ver Ilha do Medo, do Martin Scorsese. E olha que era um filme protagonizado pelo Leonardo DiCaprio (risos).
Cheguei ao Rio no começo dos anos 80. Fui morar no Morro do Vidigal. Eu podia dormir com a porta aberta, ou chegar a pé sozinha de madrugada, sem perigo nenhum. Era outro Rio, né?
Foi pega em flagrante por algum paparazzo?
Pois é, essa foi minha primeira preocupação. Eu nem quis saber se tinha quebrado uma costela ou um dente. Fui até o quiosque mais perto e perguntei para o meninoque presenciara a minha queda se ele tinha vistoalgum fotógrafo. Só fiquei aliviada quando perguntei para mais duas pessoas. Ninguém tinha visto paparazzo nenhum. Um milagre. Só em casa, quando coloquei a mão na cabeça, percebi que estava sangrando. Eu podia ter me quebrado toda, só não queria virar matéria de revista de fofoca (risos). DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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CONSUMO
Feirão pela web
Facilidades e pechinchas das compras coletivas pela internet atraem multidões. Mas é preciso cuidado para não ser levado pelo impulso nem pela pressa, para que um bom negócio não vire dor de cabeça Por Miriam Sanger 36
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O
s números impressionam: 9 mil celulares, 10 mil ingressos para o cinema, 5 mil books de fotografia, 800 clientes para um jantar completo em um restaurante chique vendidos em apenas 24 horas. Temaki de R$ 10 por R$ 1,99, hidratação e corte de cabelo de R$ 90 por R$ 25, um mês de aulas de pilates de R$ 180 por R$ 45,
para pegar ou largar. Não há mágica por trás dessa matemática, mas sim um novo modelo de negócio: os sites de compra coletiva desembarcaram no Brasil há pouco mais de um ano e já apresentam resultados para ninguém botar defeito. No começo do ano não passavam de quatro. Agora são mais de 80. O princípio é simples. Assim que uma oferta é anunciada no site – com descon-
DANILO RAMOS
AUTOCONTROLE Luiza Pagliarini dá o recado: é preciso um esforço do outro mundo para se conter e saber a hora de parar
tos que chegam a 90% –, os clientes cadas- em parte, o objetivo da empresa anunciantrados são convidados a aderir, por e-mail. te. “Mas deixamos claro que nosso trabalho A confirmação se dá mediante pagamen- não é ‘queimar’ estoque. O que fazemos é to, feito por cartão de crédito, e a compra levar pessoas, às vezes aos milhares, até o só se realiza com um número mínimo de local. Transformá-las em clientes que vão adesões. Quando isso ocorre, o pagamen- voltar, e então pagar o preço cheio é tarefa to é realmente efetivado e os participantes do estabelecimento.” recebem, por e-mail, um cupom para apresentar à empresa conveniada. A oferta nor- Pelo estômago O Groupon foi a empresa que, em 2008, malmente vale por apenas 24 horas, o que gera uma óbvia pressão sobre o interessado. desenvolveu e implantou o conceito de siEstima-se que no Brasil 4,5 milhões de tes de compra coletiva nos Estados Unidos. internautas cadastrados acompanham pro- Apenas dois anos depois de sua fundação, moções no ClickOn, Groupon, Peixe Ur- já tem base instalada em 200 cidades de 30 bano e Clube do Desconto, para citar os países. No Brasil há apenas quatro meses, mais conhecidos, e são geralmente con- a companhia ocupa o primeiro lugar em númerode visitas no segmencentrados em algumas áreas, to de compras coletivas, com como gastronomia, beleza e Essa nova mais de 2 milhões de usuálazer. Como brasileiro não é cruzada rios cadastrados que usufrubobo nem nada, já foram de- comercial, íram, nesses 120 dias, de mais senvolvidos portais que agru- em que o R$ 16 milhões de descontos pam esses sites de desconto. O consumidor é de em suas promoções. SaveMe e o ValeJunto reúnem E desconto, mesmo que e noticiam aos usuários o que bombardeado não usufruído, é coisa que consideram as melhores ofer- em sua caixa pega o sujeito pelo estômago, tas do dia. Os sites de compra de e-mails, principalmente no caso dos coletiva, muito mais focados traz uma mais suscetíveis ao incentivo em serviços, não concorrem mudança ao consumo. “Já perdi vários ainda diretamente com outra de cultura: vouchers que comprei. De um nova modalidade, os chamadeles, um mês de aulas de pidos clubes de compras, que a ideia de lates, abri mão porque só fui funcionam como outlets vir- primeiro checar qual era o lugar depois tuais e trabalham exclusiva- pagar para de comprar – não curti e acamente com produtos. depois bei nem aparecendo. TamEssa nova cruzada comer- usufruir bém estou com um cupom de cial, em que o consumidor é bombardeado em sua caixa de e-mails, traz viagem empacado, porque demorei para fauma mudança de cultura: a ideia de primei- zer a reserva e agora não há mais fim de sero pagar para depois usufruir. Apesar de mana livre até o fim do prazo de utilização. sermos um povo louco por um bom negó- Essa coisa do prazo é difícil de administrar e cio, a primeira experiência de chegar a um é preciso estar muito atento”, afirma a paulugar com um cupom nas mãos normal- listana Luiza Pagliarini. Ela já adquiriu tramente causa certo constrangimento. Ven- tamentos estéticos, jantares e roupas – escida a timidez inicial, ela pode se transfor- tas, em clubes de compra – e a cada dia fica mais esperta em como utilizar a novidade, mar num negócio da China. “Já sabemos que aqui temos essa peculia- que usa inclusive para presentear. Mas adridade cultural: o brasileiro compra o des- mite: é preciso um esforço do outro munconto e quando chega no estabelecimento, do para se conter e saber a hora de parar. Esse é um problema. A jornalista Mariauma vez que já pagou antes pelo principal que será consumido, sente que pode con- na Rodrigues conta que os amigos a consisumir ainda mais. Se pagou barato por um deram “superviciada” – mas ela nega. “Eu restaurante caro e quer um vinho como sei qual é o meu limite, mas de fato é difíacompanhamento, pede logo o primeiro cil me controlar quando surgem várias proda lista, em vez de se manter no mais em moções. Também, puxa, aparece um show conta, aumentando o tíquete médio do es- que eu quero ir que custa R$ 50, em vez de tabelecimento”, explica Rafael Singh, coor- R$ 100. Daí, os restaurantes que eu adodenador de marketing do Groupon. Esse é, ro. E vou comprando”, descreve. Ela não DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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perdeu, até hoje, nenhum voucher, mas já teve uma experiência complicada com uma pousada no litoral de São Paulo: comprou o voucher e tentou, por dias, fazer a reserva. “Depois descobri que o dono da pousada recebeu mais de mil ligações em um dia e o sistema de telefonia não segurou.” Mariana persegue especialmente as promoções de restaurante. “De repente, você é estimulado a conhecer novas opções e a circular mais, o que é legal. Já fui a vários lugares que queria conhecer mas não ia porque sabia que a conta sairia cara.” É o mundo maravilhoso das compras, como dizia o comercial da década de 1970, mas há que se consumir com moderação. Segundo a advogada Mariana Ferreira Alves, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), exatamente por ser uma modalidade nova, o consumidor precisaria ser mais cauteloso. “Muitas vezes, ele é atraído por uma promoção chamativa, pressionado pelo tempo de validade da promoção e compra por impulso”, conta, alertando para os pra-
ANDRÉA GRAIZ
ADRENALINA PURA Vitor: sapato, cueca, perfume: a emoção de pagar menos
zos de utilização, aos quais nem todo comprador está atento. Nem a esse nem a outros cuidados. “O consumidor precisa ler bem as instruções da oferta, ver se é realmente de seu interesse, se ele pode pagar e se terá tempo de utilizar no prazo. Muitos acabam comprando pensando que uma promoção assim não vai acontecer de novo. Não é assim. A invenção é boa, é benéfica, mas é preciso cuidado.” Não adianta participar de uma
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incrível oferta que não cabe no seu bolso e no seu tempo – e a urgência do prazo da oferta, de fato, estimula à falta de reflexão.
Resista ao desnecessário
Vitor Liberman, comprador contumaz pela internet, encontrou na compra coletiva uma forma mais eficiente de economizar. “A web traz sempre preços mais competitivos, além de proporcionar economia de tempo na hora de pesquisar. Acho que as pessoas ainda a veem com desconfiança, mas isso é mito – nunca tive nenhum problema”, conta o gaúcho, administrador de empresa. Apesar da experiência, Vitor já se rendeu ao impulso. “Vi uma oferta de um perfume Prada que eu queria há tempos e custava 20% do valor cheio. Quando o produto chegou, fiquei tão emocionado que nem atentei ao fato de aquela ser a colônia, não o perfume.
ROBERTO PARIZOTTI
DISSABOR Ana Flavia levou uma canseira para reaver o dinheiro de um clareamento dentário que não fez
Mas não houve problema: fiz a devolução e, gente reclama da dificuldade que é, depois, apesar da demora, fui ressarcido.” O admi- achar uma boa data para ir”. nistrador acabou criando uma regra: só vai Muitas vezes, nem todo cuidado adianta. ao site checar a promoção quando se trata Ana Flavia Back se aventurou no campo dos de algo de que realmente precisa. “São mui- tratamentos dentários, muito em voga nestas ofertas. É preciso resistir às tentações.” ses sites. Viu quatro ofertas no mesmo dia, Se for o caso, dá para desisligou para todos e decidiu contir da compra, ao menos assim É o mundo tratar o tratamento que pareceu determina a lei. Todo cliente maravilhoso mais confiável. O clareamentem o direito de se arrepender, das compras, to a laser, segundo o dentista e tem sete dias para fazer uma como dizia que a atendeu ao telefone, sedevolução sem custo. E tam- o comercial ria aplicado até que fosse obtibém tem 30 ou 90 dias para do o resultado desejado, e o vada década reclamar, em caso de defeito lor incluía a limpeza dos dentes. de fabricação ou não aparen- de 1970, Quando chegou ao lugar, surte, respectivamente. Patricia mas há que presa: o profissional disse que Meneses devolveu um vestido se consumir não seria necessária a limpeza e sem estresse. “Eu ia comprar com alertou que o clareamento seria um, acabei comprando três. moderação feito apenas em alguns dentes. Houve uma pequena confu“Disse que não iria fazer, lisão, pois eles não tinham dois deles no esto- guei para o site e pedi o dinheiro de volta. que e me enviaram apenas um, do qual não Fiquei circulando entre o portal e a clínigostei. Depois de idas e vindas, resolvi”, diz. ca, até que consegui ser reembolsada. Mas “Às vezes, você acaba comprando o que me senti lesada, pois aquilo foi propagannão precisa. Acho que isso acontece ainda da enganosa. Agora, vou marcar para fazer mais com as mulheres: o catálogo daquela com a minha própria dentista. Em alguns marca que você adora está lá, com as pe- casos, melhor pagar o preço cheio e ter a ças em desconto, convidando ao exagero. certeza do serviço bem-feito.” Ana também Olho as promoções quase todo dia, tenho já comprou manicure, escova, hidratação a sensação de que estou no shopping.” No e jantares. Avisa aos navegantes: “Nada de entanto, há o lado bom, e Patrícia já vez comprar querendo usar o voucher em um vários bons negócios. “Fui a um restauran- dia específico, pois os lugares ficam lotate, por exemplo, que só não conheci antes dos por semanas e você tem de contar com porque era muito caro”, comemora. E dá a a sorte”. Lições aprendidas, agora ela comdica: “Acho que o que exige mais atenção pra apenas itens em que o “desconto não são os serviços de turismo, porque muita pareça arriscado”.
Compre consciente Dicas dos advogados
Dicas dos consumidores
n Verifique se o estabelecimento é confiável. Os sites afirmam que zelam pela qualidade de seus parceiros, mas o melhor é evitar dor de cabeça. O que não parece correto normalmente não é. n Cheque se a empresa oferece algum tipo de canal de retorno no site, como endereço fixo, telefone ou e-mail. n Salve no computador, ou imprima, as páginas do site com a oferta do produto, a efetivação da compra e as condições de uso/entrega. n Fique atento ao local em que realiza a transação. Não compre por meio de computadores públicos (lan houses, escolas e do trabalho). n Verifique como é a política de desistência. n O portal precisa assegurar que os dados do cartão de crédito que o consumidor passa ao efetivar uma compra são criptografados. Isso é possível por meio dos selos de segurança exibidos no site. n Em caso de problemas, Procon neles! Em quase todos os estados, os órgãos de proteção ao consumidor têm serviços de reclamações específicas sobre compras pela internet. Digite Procon e o nome de seu estado no Google e pesquise até mesmo antes de fazer sua compra.
n Muita atenção ao prazo de validade e mesmo de utilização do produto ou serviço que está comprando. Grande parte dos serviços vendidos em sites coletivos estabelece um prazo de validade nem sempre muito camarada – comprar um voucher de cinema que só vale para as 12h do domingo não chega a ser uma vantagem, certo? n Pergunte aos amigos: a experiência deles vai dizer muito sobre o site. n Tenha foco: compre somente o que você precisa e sabe que vai conseguir usar. n Controle suas compras e seu limite de crédito: quando tudo parece barato, a tendência é exagerar. É um convite ao desperdício ou ao endividamento. n Algumas empresas têm negociado cupons em quantidade acima de sua capacidade de atendimento. Isso resulta em agendamento em até seis meses. Veja se é o caso antes de fechar uma compra.
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MUNDO
GANA Acra
Gana de brasileiros. E vice-versa Além da paixão pelo futebol e do passado marcado pela escravidão, Brasil e Gana resistiram igualmente ao tempo. Eles estão na comunidade Tabom, fundada por escravos da Bahia que regressaram à terra natal Por Tatiana Vier 40
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M
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eus antepassados construíram Gana a partir do que aprenderam no Brasil. Acho que eles foram grandes empreendedores porque tiveram a chance de recomeçar, já que uma parte da vida havia se perdido. Eu já gostava da terra brasileira mesmo antes de saber que estou ligado a ela”, conta o estudante TheodoreTello Nelson, 20 anos, um dos 900 afro-brasileiros que vivem em Acra, capital de Gana. A família Nelson compõe uma das sete primeiras de escravos libertados que deixaram o estado da Bahia e se instalaram na capital ganense, em 1836. Até hoje é comum encontrar famílias com sobrenomes como Vialla (Vieira), Zuzer (Souza), Manuel, Gomez, Peregrino, Costa e Ribeiro. Todas fazem parte da chamada comunidade Tabom. “Eu sempre torcia para o Brasil quando passava jogos de futebol na te-
ser de sua cidade, Ada. “O meu pai mandou alguém se informar sobre a vida do meu pretendente. Quando soube que ele era dos Tabom e não havia nenhuma lembrança ruim dessa comunidade, permitiu o casamento. Para mim foi muito bom, porque alguns ganenses não dão valor à mulher e aos filhos. Já meu marido é responsável, sempre se preocupa e me ajuda em tudo. Que mulher não gosta disso?”, questiona. Mãe de três filhos, Catherine conta com orgulho que o mais novo, Theodore, pretende fazer um estágio no Brasil. Ele provavelmente será o primeiro da família Nelson a conhecer o país: “Há várias empresas internacionais em Gana, mas nada brasileiro que possamos experimentar, como a culinária ou produtos. Tudo vem dos Estados Unidos, da China ou da Inglaterra. É preciso que alguém vá para lá e traga novidades.” Theodore vem tendo aulas de português quando não está envolvido com o curso de Geografia na Universidade de Legon ou com a entidade pela qual pretende fazer o intercâmbio. “Eu acredito que morar um tempo no Brasil será um grande desafio por causa da língua e, ao mesmo tempo, fácil porque as pessoas devem ser amigáveis e os lugares, muito bonitos. Essa será uma grande oportunidade para ajudar a sociedade brasileira, através do meu futuro trabalho voluntário. Eu também gostaria de conhecer a floresta amazônica e, mais tarde, ter uma empresa de turismo para levar as pessoas à América do Sul e à Ásia”, revela.
RECOMEÇO Rua Brazil, em Acra: calcula-se que 900 afro-brasileiros vivam na capital ganense
levisão. Quando soube que também sou brasileiro passei a me interessar ainda mais”, diz Theodore. A mãe dele, Catherine Oforiwa Nelson, conta que quando o Brasil perde um jogo todo mundo fica mal-humorado: “Só eu que lembro das refeições quando o Brasil perde. Acho que isso acontece porque aqui em casa nos consideramos brasileiros, inclusive eu, que não sou da comunidade Tabom, mas me sinto parte desde que casei com alguém da família Nelson”, destaca. Catherine relembra que há 24 anos, quando conheceu seu marido em Acra, sua família era contra o casamento por ele não
O objetivo de conhecer outros países e ter uma melhor oportunidade de trabalho faz com que outros jovens em Gana frequentem as aulas de português, como o auxiliar de produção Ahmed Nii Ayi Ankrah, 24
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República islâmica
anos, que adora músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil. “Como sou Tabom, resolvi me aproximar mais das minhas origens, pela língua portuguesa. Vejo nos livros que temos aqui os mesmos nomes próprios que são usados no Brasil. E também praias lindas e limpas. Além de adquirir mais conhecimento, estou tendo uma possibilidade de crescer. Se não puder ir ao Brasil, porque o acesso é difícil, poderei trabalhar para empresas brasileiras na África”, planeja Ahmed. As aulas são uma iniciativa da embaixada brasileira, no Instituto de Línguas de Gana e na Brazil House (ou Casa Brasil), onde são gratuitas. No total, são 20 alunos. O local abrigou, no passado, a família de ex-escravos Nassu, uma das primeiras que chegaram a Acra. Segundo o embaixador Luís Fernando Serra, a antiga casa desses Tabom foi reinaugurada em 2007, depois de passar por uma reforma. Hoje tem um arquivo histórico sobre as relações entre esses dois países, salas de aulas e biblioteca. Apesar das mudanças, a arquitetura na Brazil House, permanece a mesma, destacando-se como uma das habilidades dos Tabom desde sua chegada a Gana – ocorrida por motivos ainda controversos. Segundo o atual chefe da comunidade, Nii Azumah V, não existem relatos escritos sobre a razão que impulsionou ex-escravos a voltar da Bahia para o Oeste Africano. É possível que tenham comprado a liberdade e imediatamente decidido recomeçar a vida na mesma terra de onde foram arrancados. Ou, ainda, que tenham sido deportadosdepois da Revolta dos Malês, em 1835, quando já eram trabalhadores libertos. Malê, do dialeto Iorubá, significa muçulmano. O movimento, deflagrado em Salvador e rapidamente reprimido, reagia à imposição do catolicismo, ao tra-
ORGULHO Theodore estuda português. Catherine aguarda a ida do filho para o Brasil DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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tamento dado aos negros, mesmo os já libertos, e defendia uma república islâmica. “O que se sabe é que em Gana foram tão bem recebidos pelo antigo povo Ga, formado por pescadores do litoral de Acra, que resolveram ficar. Apesar das dificuldades de comunicação, por falarem apenas a língua portuguesa, logo foram conquistando os novos compatriotas, trabalhando como carpinteiros, alfaiates, agricultores, pedreiros e ourives – ocupações que eram novidade. E receberam lugares privilegiados da cidade para morar e para abrir o próprio negócio. A Brazil House, por exemplo, fica em frente ao antigo porto de Acra”, diz o chefe.
Tá bom?
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ALEGRIA E RESPEITO Batuque Tabom lembra roda de samba brasileira. O chefe Nii Azumah V conta que o nome da comunidade surgiu da expressão “Tá bom?” MEMÓRIA A Brazil House abrigou, no passado, a família de ex-escravos Nassu, uma das primeiras que chegaram a Acra vindas do Brasil
FOTOS TATIANA VIER
Nii Azumah V conta que a comunidade se chama Tabom porque, como os afro-brasileiros só sabiam falar em português, usavam muito a expressão “Tá bom?” para se cumprimentar e ao se referir à qualidade dos produtos com os quais trabalhavam. “Ignorando o significado desse termo, a comunidade local, que falava a língua Ga, logo passou a chamá-los de Tabon People”, relata. Chefiando a comunidade há dez anos, ele afirma que, mais do que reviver a história e celebrar a conquista dos antepassados, é importante observar as contribuições da comunidade para o desenvolvimento de Gana. “As primeiras casas de dois pisos, de estrutura forte, construídas em Acra foram obras dos moradores de Tabom. Além da Brazil House, onde recebi o presidente Lula na sua segunda visita a Gana, em 2008, tivemos a primeira Scissors House (casa de tesoura, alfaiataria), inaugurada em 1854 pelo terceiro chefe Tabom, George Aruna Nelson. George fez cursos na Inglaterra e na Alemanha, patrocinados pelo primeiro presidente de Gana, Kuwame Nkrumah, foi o alfaiate-mestre do Exército ganense e depois ensinou um dos mais famosos de Gana, Dan Morton, a exercer o mesmo ofício”, relata o chefe, enquanto olha a fotografia em que cumprimenta o presidente do Brasil, durante sua visita em 2005, que mandou enquadrar. “Para mim foi um orgulho conhecer o primeiro presidente brasileiro que veio para Gana e, claro, contar sobre a nossa comunidade afro-brasileira, além dos nossos projetos, como implantar uma fábrica de algodão, dando mais oportunidades de trabalho aos jovens”, vibra. O empreendedo-
TRADIÇÃO Dan Morton, em seu ateliê de alfaiataria, e o ex-campeão Azumah: mestres
rismo é uma marca dos Tabom e, em muitas oportunidades, passada de geração em geração. É o caso do ateliê de Dan Morton, hoje administrado pelos seus filhos. “Meu avô veio do Brasil como alfaiate e, quando eu tinha 11 anos, minha avó teve um sonho: que eu seria um grande profissional desse ramo. E não é que ela estava certa?”, emociona-se Morton. Ele conta que, como outros famosos costureiros da época, também foi para a Inglaterra, em 1952. Depois de três anos em Londres, onde fez cursos de alta-costura,
resolveu abrir o próprio negócio: “É muito importante viajar e ver as coisas com outros olhos. Se eu não tivesse ido para a Europa, até hoje teria um pequeno ateliê. Sou muito grato à insistência da minha avó. Eu até conheci o Brasil. Durante a Copa do Mundo de 2002, estava lá em São Paulo”, lembra.
Notável diferença
O alfaiate, hoje com 87 anos, comenta que nunca viu tanta gente nas ruas como na capital paulista, além da notável diferença social entre brancos e negros. “Ninguém me
De volta para casa Durante todo o século 19, em especial entre 1830 e 1890, grande contingente de escravos libertos brasileiros – cerca de 8 mil, segundo as fontes mais confiáveis – tomou o rumo do continente africano, em um movimento que se convencionou chamar de “fenômeno dos retornados”. Essas pessoas construíram uma comunidade homogênea, que hoje se espalha pelos países que constituem a antiga “Costa dos Escravos”: Nigéria, Benin, Togo e Gana. Sobrenomes como Almeida, Pio, Santos, Rocha, da Silva, Gomes, Souza, Martins, Assunção, Gonçalo, Monteiro, Santana, Pereira, Domingos e Gonçalves são comuns ainda hoje nas cidades de Uidá, Cotonou, Acra, Lagos e Porto Novo. Africanos de origem brasileira, eles descendem dos escravos que alcançaram a liberdade e voltaram a seu continente, fechando assim o ciclo de sua diáspora. Levaram consigo marcas culturais brasileiras que ainda hoje se podem ver na arquitetura das casas, igrejas e mesquitas; nos hábitos do
disse nada, eu evitava falar porque eles iam perceber que meu sotaque era de estrangeiro, mas era fácil perceber a diferença entre pessoas brancas e negras. Apesar disso, gostei das paisagens, de conhecer grandes mercados e das praias”, destaca. No bairro Asylum Down, uma das regiõesda cidade doada aos Tabom pelo povo Ga, o ateliê Dan Morton funciona no mesmo grande prédio onde ele tem uma lavanderia. Três dos seus filhos administram o negócio, enquanto os outros cinco estão em diferentesáreas. Uma filha trabalha nos Estados Unidos. “Joyce é enfermeira e graduada em três cursos. É a que está mais longe da família, mas não deixo de dizer a ela também o quanto temos de lutar e trabalhar. Sinto muito orgulho dos meus ancestrais, que foram escravos e hoje se tornaram alguém na sociedade, muitos deles em Gana
CARLOS FONSECA
BUMBA MEU BOI Famílias de origem brasileira dançam a “burrinha”, em Porto Novo, Benin
Por Carlos Fonseca comer e do vestir; bem como em um vocabulário português que se incorporou ao dia a dia de idiomas como o Mina, o Fon e o Iorubá. Em Lagos, Uidá ou Porto Novo, essa comunidade, que se faz chamar “agudá”, “brésilienne” ou “Brazilian”, cumprimenta-se em português, celebra a festa do Nosso Senhor do Bonfim, come feijoada, cocada, pirão, moqueca e arroz doce e, nas ocasiões festivas, dança a “burrinha”, folguedo popular parecido com bumba meu boi. Em Lagos, maior cidade da Nigéria, existe, inclusive, um bairro inteiro chamado Brazilian Quarter (quarteirão brasileiro). Esses brasileiros de além-mar demonstram possuir, ainda hoje, grande afinidade com o Brasil. Aqui, no entanto, seu fenômeno é pouco ou nada conhecido, inclusive entre a comunidade de origem africana. Com a distância e a escassez de contatos, essa comunidade vai perdendo a memória e os laços que a une ao Brasil.
e outros fazendo parte do Brasil, como o Pelé, que já veio para Acra”, ressalta Morton. Ele também sente orgulho da Copa do Mundo na África do Sul, em que o time de Gana foi o que melhor representou todo o continente. Os ganenses chegaram às quartas de final diante do Uruguai. O jogo estava 1 x 1 e Gana teve duas chances de desempatar para avançar à semifinal. No último minuto da prorrogação, o uruguaio Suárez impediu com a mão o gol que daria a vitória aos africanos; acabou expulso, mas, na cobrança da penalidade, Gyan, de Gana, mandou a bola no travessão. A decisãofoi para os pênaltis e os sul-americanos venceram. Apesar da eliminação, a paixão dos ganenses pelo esportesó aumentou. É fácil encontrar camisetas da seleção nacional expostas nas ruas e adesivos da bandeira nos carros.
Antes do futebol, a febre foi o boxe, tendo como ícone Azumah Professor Nelson. Tio de Theodore, aos 9 anos o lutador já desafiava outros meninos e insistia para entrar num ringue: “Era o que eu queria. Hoje, um dos meus seis filhos está praticando a luta. Eu mantenho a academia para incentivar esses jovens a ter um objetivo na vida”. Assim como Professor, que já foi campeão de boxe africano, outros afro-brasileiros fizeram e seguem fazendo suas histórias na antiga Costa de Ouro, como era chamado o país. Muito além de um triste passado de escravidão, eles superam as más lembranças, olham adiante e sonham com uma vida nova. “Se eu conheço o Brasil? Não, mas gostaria de ir lá e ver como as coisas estão. Conhecer meus irmãos brasileiros e comer um waakye (feijão com arroz). Afinal, somos todos filhos do mesmo Deus, podemos fazer isso juntos.” DEZEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL
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VIAGEM
Do jardim para a mesa
Piedade (SP) é a maior produtora de alcachofra do Brasil. Mas São Roque, ao organizar a agenda turística da flor – boa para a saúde e a economia local – é que leva a fama Por Adriano Ávila
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italianos, instalados em alguns municípios da região de Sorocaba (SP). O clima ameno e o solo fértil revelaram condições ideais para o plantio. Atualmente a flor é o principal produto da região, responsável por 90% do total nacional. A maior produtora é Piedade, seguida por Ibiúna e São Roque. Mas, como diz o ditado, quem faz a fama deita na cama. E São Roque fez a fama ao divulgar o
ASSESSORIA DE IMPRENSA DA PREFEITURA DE SÃO ROQUE
arente distante das margaridas e dos girassóis, a flor saiu do jardim e foi parar na mesa das pessoas já na época do Império Romano, quando suas propriedades nutritivas e medicinais foram descobertas. Nativa das regiões mediterrâneas do sul da Europa e norte da África, a alcachofra chegou ao Brasil há um século. Foi trazida pelos imigrantes europeus, especialmente
UMA VEZ AO ANO A Secretaria de Educação de São Roque incluiu a flor na merenda das escolas da cidade. São 20 mil refeições para alunos do maternal ao ensino médio
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ADRIANO ÁVILA
BEM, OBRIGADA Clélia Cristina não se cansa de trabalhar nem de comer alcachofra. Ela garante que a planta faz bem para a saúde: “Médico? Só de rotina”
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Peso na economia Com 165 hectares cobertos pela flor, Piedade, já na região de Sorocaba, produz 90% da alcachofra consumida no Brasil. Em 2010, 35 produtores colheram aproximadamente 6,5 milhões de alcachofras. Caixas com 12 unidades são vendidas por R$ 25 a R$ 30, preço 30% mais baixo que no ano passado. Neste ano, esse cultivo deve movimentar cerca de R$ 12 milhões em Piedade.
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potencialturístico da cidade, a alcachofra roxa e os vinhos locais. Em outubro passado, a 18ª Expo São Roque recebeu 75 mil visitantes, segundo a divisão de turismo. O Roteiro do Vinho, Gastronomia e Lazer nasceu em 2006. A região da Estrada do Vinho concentra os cerca de 30 estabelecimentos que fazem parte do projeto e está distante apenas dez quilômetros do centro da cidade. São vinícolas (algumas oferecem degustação), plantações de alcachofra, ranchos, fazendinhas, restaurantes, pousadas e lojas de produtos típicos. De acordo com José Luiz Marchi de Camargo, responsável pelo roteiro, em fins de semana o número de turistas gira em torno de 8 mil a 10 mil e, em feriados prolongados, chega a 15 mil. “São Roque é conhecida como terra do vinho. Vinho pede uma boa comida, e a alcachofra caiu no gosto popular.”
torta, esfiha, vinagrete... Tem cardápio com alcachofra para todos os gostos. A Secretaria de Educação incluiu a planta na merenda das escolas municipais e estaduais. São servidas, pelo menos uma vez ao ano, 20 mil refeições para alunos do maternal ao ensino médio, incluindo os da educação de jovens e adultos. TerezaCristina Merguizo, chefe da Divisão de Alimentação Escolar da Prefeitura, comemora, já que as receitas à base da flor são um sucesso. “Quando chega a safra, os alunos ficam na maior expectativa. O que eles mais gostam é do vinagrete.” Tereza, que é nutricionista, garante que a planta é muito saudável. “Tem efeito diurético, é rica em fibras, digestiva, ótima para os rins e, ainda por cima, o chá das folhas tem efeito emagrecedor. As folhas também são ótimas para intestinos preguiçosos. Mas é importante lembrar que os efeitos são melhores com a planta in natura.”
NEGÓCIOS Ana Lídia e José Ortmann transformaram a fazenda de meio hectare em ponto turístico. Além de vender, exibem a beleza de seus 3 mil pés de alcachofra
FOTOS ADRIANO ÁVILA
Agronegócio e turismo
José Luiz é proprietário da Fazendinha Doces Santa Adélia e oferece uma opção de iguaria com a flor. “Temos um pastel de alcachofra que é um sucesso. Vendo 250 num fim de semana normal; nos que têm feriado, faço de 400 a 500.” Para aproveitar várias alternativasdo roteiro, José Luiz recomenda no mínimo dois dias. “O passeio pode ser feito por toda a família. Muitos estabelecimentos têm atrações para crianças.” A melhor época para visitar a cidade é durante a safra da flor, de acordo com Sandro Cobello, chefe da divisão municipal de Turismo: “Nos últimos três anos ela despontou no interesse do turista. Na gastronomia, temos a flor o ano todo, mas para visitar as plantações o melhor é vir perto da primavera, entre o final de agosto e metade de setembro. É muito bonito”. Massa, molho, patê, risoto, pastel, quiche,
Ana Lídia e José Ortmann, o Juca, resolveram, há 15 anos, transformar a fazenda de meio hectare em ponto turístico. Eles queriam, além de vender, exibir a beleza de seus 3 mil pés de alcachofra. Assim nasceu a Fazenda Bonsucesso. “No começo era difícil, colhíamos, colocávamos no carro e vendíamos na feira aos domingos. O que sobrava, a gente levava para a Rodovia Raposo Tavares e ficava lá até acabar”, lembra Juca. O negócio da família Ortmann deslanchou e é a única das sete plantações da cidade que tem estrutura para receber visitantes do Roteiro do Vinho, Gastronomia e Lazer. Nas épocas de temporada, empregam até 15 funcionários, que produzem em média 200 vidros de conserva por dia. “Minha amiga chegou de São Paulo preocupada com o colesterol muito alto, e a aconselhei a experimentar a alcachofra. Ela levou algumas e comeu por um mês, depois disso ficou ótima. Hoje em dia, nunca falta um vidro de alcachofra na geladeira dela”, orgulha-se Ana Lídia. Clélia Cristina Moraes é funcionária da Fazenda Bonsucesso há mais de dez anos e também aproveita as propriedades medicinais da planta. “Não me canso do trabalho nem de comer alcachofra. Minha saúde vai muito bem. Médico? Só de rotina”, ri.
Colaborou Xandra Stefanel
Receitas da dona Ana Lídia Alcachofra recheada Ingredientes 6 alcachofras frescas ½ xícara de vinagre ½ kg de carne moída 2 cebolas 3 dentes de alho 100 g de queijo parmesão ralado Sal e cheiro-verde a gosto Modo de preparo Limpe as alcachofras cortando-as ao meio e suas pontas. Retire os fios no centro delas. Cubra-as com água e ½ xícara de vinagre por 15 minutos. Cozinhe em água e sal até que as pétalas se soltem facilmente. Frite a cebola e o alho e refogue a carne moída com sal e cheiro-verde a gosto – não deixe que seque muito. Organize as alcachofras numa forma, recheie com a carne moída, cubra com queijo parmesão e leve ao forno para gratinar.
Salpicão de alcachofra em conserva Ingredientes 1 kg de batata 1 vidro de alcachofra em conserva 1 cenoura média 1 maçã verde 1 ramo de salsão 200 g de peito de peru defumado 500 g de maionese 100 g de queijo prato Modo de preparo Cozinhe e amasse a batata. Pique a alcachofra em tirinhas, rale a cenoura, desfie o peito de peru e corte o queijo em cubinhos. Junte o salsão picado, a maionese e misture tudo.
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Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
Bailão de surpresas
O ator Paulo José como Quincas é carregado pelas ruas de Salvador
MTV ao Vivo Bailão do Ruivão – Nando Reis e os Infernais é o álbum mais inusitado da carreira do ex-titã. “É o que ouvi na infância e na adolescência. São músicas que eu ouvia no rádio, não da sala, mas da cozinha”, diz Nando. No CD (R$ 28) e no DVD (R$ 40) Venus, estão Whisky a go go, Fogo e Paixão, Island in the Stream, Could You Be Loved (com a banda Zafenate, de seu filho), Frevo Mulher, Agora Só Falta Você, I Can See Clearly Now, You and I, Gostava Tanto de Você, Você Pediu e Eu Já Vou Daqui (com Zezé di Camargo & Luciano) e Bichos Escrotos. As mais surpreendentes para quem acompanha sua carreira são Muito Estranho, Chorando se Foi (com a Banda Calypso) e Lindo Balão Azul. Além dos ótimos arranjos, é imperdível vê-lo remexendo – ao seu estilo rock’n’roll, claro! – em Severina Xique-Xique e Você Não Vale Nada.
Tarsila no Espírito Santo
Morte dos sonhos Setenta desenhos inéditos de Tarsila do Amaral estão expostos até 13 de fevereiro de 2011 no Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio del Santo (Maes). Os desenhos fazem parte das cerca de 1.750 obras em papel da artista. Tarsila registrou cidades da costa, paisagens rurais, pequenos vilarejos brasileiros, além de ter feito ilustrações de romances e livros de poemas. Av. Jerônimo Monteiro, 631, Centro de Vitória, tel. (27) 3321-3578. Grátis.
Quincas Berro d’Água já foi traduzido para 21 idiomas e no Brasil vendeu mais de 3 milhões de exemplares. Saiu das páginas de Jorge Amado para o cinema e, agora, para as locadoras. Dirigido por Sérgio Machado, conta a história do exfuncionário público Quincas (Paulo José), líder de uma turma que gosta de farra, que morre no dia em que completaria 72 anos. Seus amigos roubam o corpo e dão ao defunto uma última noite de festa. Crítica engraçada de comportamentos burgueses presentes numa Bahia dividida, o filme tem no elenco Marieta Severo, Mariana Ximenes, Vladimir Britcha, Flávio Bauraqui, Milton Gonçalves e Othon Bastos.
Canções de Toquinho Depois de Chico Buarque e Paulo César Pinheiro, a Editora Leya Brasil lança o terceiro livro da coleção História de Canções, desta vez de Toquinho, escrito por Wagner Homem e por João Carlos Pecci, irmão do compositor. As aulas de violão com o mestre Paulinho Nogueira, a duradoura parceria com Vinicius de Moraes, a paixão pelo Corinthians, casos de amor e tantas outras coisas que inspiraram o músico foram contadas por meio de 100 canções. Uma delas, Valsa para uma Menininha, alerta Camilinha (uma garota de 3 anos que encantou Toquinho e Vinicius numa temporada em Mar del Plata) para os perigos desta vida: “Fique assim meu amor sem crescer/ Porque o mundo é ruim, é ruim e você/ Vai sofrer de repente uma desilusão/ Porque a vida somente é seu bicho-papão”. R$ 45, em média. 48
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Beth Goulart em peça teatral Simplesmente Eu, Clarice Lispector
Mês de Clarice A escritora ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector, que completaria 90 anos em 10 de dezembro, morreu de câncer um dia antes de completar 57 anos, em 1977. A atriz Beth Goulart, que leu Perto do Coração Selvagem aos 13 anos, decidiu escrever e dirigir a peça teatral Simplesmente Eu, Clarice Lispector, que já passou por palcos gaúchos, catarinenses, mineiros, cearenses e fica em cartaz no Teatro Renaissance, em São Paulo, até 19 de dezembro (R$ 50 a R$ 60). Beth interpreta a autora e quatro de suas personagens numa espécie de conversa com o público. No final de 2009, o crítico literário americano Benjamin Moser lançou a biografia Clarice, (com vírgula, em referência ao estilo de escrever da autora, que adorava esse sinal gráfico), pela editora Cosac Naify (R$ 75). A obra revela sua trajetória desde criança, evidenciando que a romancista esteve sempre à frente de seu tempo, não só em sua obra: se divorciou, cuidou de dois filhos e ganhava a vida com o jornalismo e romances. As 648 páginas apresentam, com muita intimidade, a vida dessa mulher vanguardista e misteriosa. A Editora Rocco também lançou dois livroshomenagem: Clarice na Cabeceira – Contos (256 pág., R$ 32) e Clarice na Cabeceira – Crônicas (176 pág., R$ 24), organizados pela doutora em Letras Teresa Montero. Os dois são feitos por meio de uma seleção afetiva de fãs ilustres da escritora. Erico Verissimo, Fernanda Torres, Rubem Fonseca, Maria Bethânia estão entre os que escolheram os textos e compartilharam a experiência de ter lido ou convivido com a escritora. O site www.claricelispector.com.br completa o mergulho na vida e obra de Clarice com fotos, bibliografia, biografia e um baú, cheio de cartas, manuscritos, artigos e afins.
Clarice: mulher e escritora à frente de seu tempo
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Crônica
Por B. Kucinski
O juramento
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B. Kucinski é jornalista e escritor
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ra um general de quatro estrelas; pela primeira vez, um general de Exército estava disposto a ouvir a sua história. O encontro fora articulado por um dirigente da comunidade judaica do Rio de Janeiro, pessoa importante, no entanto discreta, quase invisível, provavelmente o homem dos tratos espinhosos junto às autoridades, dos acordos inconfessáveis, das emergências. Tradição desse povo escaldado por inquisições milenares. Seja como for, graças a ele um general estava disposto a ouvir e, quiçá, a dar alguma informação. Não haviam prometido nada, apenas que ele ouviria. A oportunidade não deveria ser desperdiçada, advertiram. No velho judeu reavivaram-se esperanças, embora magras, depois de tanto engodo e do tempo já tão longo do desaparecimento da filha. Ou era autoengano? Tinha esperanças, sim. Afinal, o general não o receberia se não tivesse nada a dizer, ou para dizer o que um pai não pudesse ouvir. Combalido, mas determinado, apoiando-se na parede, o velho comerciante judeu foi vencendo, um a um, os degraus de mármore branco talhados em curvas suavescomo pétalas, que conduziam ao andar superior do Clube Militar onde o esperava o general de quatro estrelas. Seu acompanhante aguardou junto ao umbral que se elevava a partir do quinto degrau. Fora combinado receber a sós, e uma só pessoa; se era o pai, que fosse apenas o pai. Era um palácio, não há dúvidas, esse Clube Militar. Imponente em suas linhas neoclássicas. Lembrou-se subitamente o velho judeu de outra escadaria em outros tempos, em Varsóvia, igualmente de mármore e também no estilo neoclássico. Degraus que ele galgara aos saltos, ainda jovem e valente, para indagar o paradeiro de sua irmã Guita, presa num comício sionista. Surpre-
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endeu-se, apreensivo, pela emergência da lembrança, que julgava soterrada nos escaninhos da memória. O velho comerciante judeu não era estranho a exércitos nem neófito em política. Tinha 12 anos, a idade da observação arguta, quando sua cidade foi tomada primeiro pelo Exército alemão, depois pelo russo. Mais tarde, já crescido, ele próprio seria arrastado pelas ruas, acusado de subversão pela polícia polaca. Por isso, emigrou às pressas, deixando mulher e filho, que só se juntariam a ele no Brasil passados três anos. A polícia polaca o soltou na condição de emigrar, além, é claro, da propina coletada pelos amigos de militância. Guita, cincoanos mais velha, não tivera a mesma sorte. Morreu tuberculosa no frio da prisão. O velho judeu prosseguia em sua lenta escalada rumo ao encontro com o general de quatro estrelas. A imagem repentina de Guita puxou a do delegado de Varsóvia que jurara que sua irmã nunca fora presa e que ante sua insistência o expulsara da sala e ainda gritara do topo da escadaria que ela teria fugido para Berlim, isso sim, com algum amante. Esse episódio o velho judeu nunca revelou a ninguém, ele que era também escritor e jornalista, um apreciado contador de histórias, que publicava em jornais de língua iídiche de Buenos Aires e de Nova York. Tinha faro de escritor para o caráter das pessoas. Como será esse general de quatro estrelas? ... Passaram-se 15 minutos. O velho judeu reaparece no topo da escadaria; desce devagar, seu rosto por natureza róseo está branco como o mármore leitoso em que pisa. Por fim chega ao final da escada, mas não fala; joga os dois braços para cima e murmura apenas. “O general jurou pela sua honra que ela não foi presa.” Baixou as mãos e as levou ao rosto, “jurou pela sua honra”, repetiu, já então tomado por choro convulso, e pela certeza de que sua filha estava morta.