Revista do Brasil nº 057

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ESCOLA NAZISTA Como o coronelismo exterminou retirantes da seca no Ceará nº 57

março/2011

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FÔLEGO JOVEM

Uma moçada que dá um bico no comodismo, arregaça as mangas e vai à luta

771981 9

I SSN 1981-4283

428008

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Mayara e o incansável movimento pelo passe livre

R$ 5,00

COMUNICAÇÃO Chegada de Paulo Bernardo dá novos ares a um ministério estratégico


Para ler, ouvir e navegar. Informação que transforma.

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Índice

Editorial

Viagem Literatura rima com Lisboa, e viagem com Fernando Pessoa

A inquietude dos jovens é movida pelo inconformismo com as desigualdades

Tempo velho, novos tempos

U JOÃO CORREIA

Bonde no centro histórico de Lisboa

BELA CARRARI/DIVULGAÇÃO

Política 8 Interesses de 2012 podem ameaçar a maioria do governo no Congresso Brasil 14 Comunicações: ministro diz que a regulação vai sair, mas sem pressa Entrevista 16 Ruth Vilela: a mão de uma servidora exemplar no combate à escravidão Capa 18 Juventude engajada faz a diferença na luta por um planeta mais justo Mundo 24 O Fórum Social em Dakar, Senegal, e a crise dos mercados desgovernados Trabalho 28 Veto a professores concursados em SP amplia cenário discriminatório Mídia 32 Mulheres firmes, blogueiras, cheias de graça, atitude e nada boazinhas História 38 Campos de concentração no Ceará, página de crueldade do século 20 Perfil 44 A bossa do oitentão João Gilberto, cada dia mais dentro da casca

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SEÇÕES Cartas

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Ponto de Vista

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Na Rede

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Atitude

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Curta Essa Dica

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Crônica

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ma pesquisa coordenada pelos institutos Ibase e Pólis foi o gancho para a reportagem de capa desta edição. O trabalho, intitulado Juventude e Integração Sul-Americana – Diálogos para Construir a Democracia Regional, ouviu 14 mil pessoas de seis países do continente, metade delas entre 18 e 29 anos, a respeito de questões relacionadas a esse segmento da população. O leitor interessado em detalhes pode navegar na página do Ibase na internet. O mais importante foi uma particularidade: os coletivos juvenis se inquietam com as desigualdades sociais e as injustiças, como explicou a socióloga Helena Abramo, coordenadora do estudo. Com o respaldo estatístico, a reportagem deixou os números de lado e foi atrás das pessoas que os representam. E surpreendeu-se com o fenômeno identificado nas mais diversas tribos. Anarquistas ou militantes partidários, da classe média ou da periferia, em ações bancadas por políticas públicas ou em ONGs independentes. A energia renovada e o brilho de esperança causam um contraste amazônico quando comparados à existência de figuras e práticas tão anacrônicas ainda presentes no cotidiano. Como certos governantes que ainda põem policiais para bater em estudantes que não se conformam com tarifas altas demais para um transporte público tão degradado. Ou determinados políticos derrotados que empregam ferramentas atualíssimas como o Twitter para vomitar choramingos com sotaque de uma extrema-direita dos tempos dos campos de concentração no Ceará – sim, eles existiram, e devem ter inspirado aquele antigo personagem do Chico Anysio que adorava pobres... mortos. Nesse contraste entre a juventude ansiosa para mudar o mundo e essa categoria de políticos que gostaria que o tempo dos coronéis voltasse está a esperança de que estes sucumbirão à energia dos primeiros. Some-se a essa garra juvenil a graça das mulheres que também não se conformam com o estado das coisas, estejam elas no gabinete de uma presidenta da República ou na frente de um computador, mandando ver nos seus blogs. E temos aí ingredientes que apontam nesta segunda década do século 21 que a História – ao contrário do que apregoaram alguns há não muito tempo – ainda produz personagens capazes de reescrevê-la. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Evelyn Pedrozo, Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo e Betto Ferreira Capa Foto de Danilo Ramos Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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REVISTA DO BRASIL MARÇO 2011

Trote legal Passei em Engenharia Sanitária e Ambiental em 2009. Um grupo de estudantes organizou um sarau cultural que teve pouca repercussão e contou com poucos participantes devido ao local escolhido da faculdade. Em uma das oportunidades de confraternização fomos até uma fazenda, Sarakura, com espaço para trilhas e experimentos de construção ecologicamente corretas, como telhado verde, reaproveitamento da água e outros projetos bem-sucedidos. Na fazenda Sarakura, os calouros foram se apresentando numa grande roda. Foi um dia realmente divertido. Pegamos na enxada e outros instrumentos para aplainar o terreno, onde um dia será construído um anfiteatro. Tenho certeza de que aquele trote ficou na memória, positivamente, de todos. Contribuímos com um trabalho voluntário e depois confraternizamos almoçando com os anfitriões e veteranos num ambiente bem descontraído. Nada como o trabalho em grupo para aproximar as pessoas. Fizemos ainda uma belíssima trilha e voltamos com uma bela história para contar. Na Universidade Federal de Santa Catarina há também uma tentativa de incentivar durante o trote legal a doação de sangue, com um sistema de coleta instalado no campus. Afonso Ribeiro Rosa, Florianópolis (SC) Dilemas do Rio Na edição 55, na entrevista com o morador Itamar Silva (“O mercado sobe o morro”), ele declara que o estado entrou e negociou com o tráfico, e que não é essa a missão do estado. Infelizmente, é triste a realidade no Rio, que perdeu a condição de Cidade Maravilhosa para ser a da violência e da bagunça por causa desses episódios, que reinam não somente lá, mas também em outros lugares de nosso belo país. O Brasil está cheio de corruptos, que não têm compromisso com a honestidade. O povo carioca tem a difícil missão de eleger pessoas responsáveis pelo progresso e bem-estar de seu povo, que não tenham relação com o tráfico. Jadilson Joaquim do Nascimento, Sorocaba (SP)

Conforme aprendi Com referência ao Ponto de Vista, coluna de Mauro Santayana, na edição 55, a Segunda Guerra Mundial, conforme aprendi, foi ganha pelos países aliados, dentre eles o Brasil. Em outro artigo da mesma edição, sobre a Bolívia, o Brasil pagou pela terra (Acre). O Barão de Rio Branco deve ter se revirado no túmulo com a afirmação do autor quando disse que “o Brasil deu a maior garfada”. Pedro Costa, São Paulo (SP) Nota da Redação: No artigo “Um mundo sem segredos”, Mauro Santayana atribui como vitória dos soviéticos na Segunda Guerra o fato de o bloco comunista, que formaria o Pacto de Varsóvia, ter saído do conflito com a conquista de pelo menos sete territórios aliados, entre eles a Alemanha Oriental. Nenhum dos chamados Aliados obteve saldo parecido. Já na crônica “Revolução silenciosa”, Mouzar Benedito atribui o termo “garfada” à ocupação de parte do território boliviano, pelo governo brasileiro, muito anterior ao acordo obtido pelo Barão do Rio Branco na “aquisição” do Acre, cujos recursos o povo boliviano deve estar procurando até hoje.

Primeiríssima Parabéns a todos, integrantes desta conceituada revista, publicação de primeiríssima qualidade. Perfeita mesmo. Eloy Picanço Junior, Fortaleza (CE) A casa agradece A redação da Revista do Brasil recebeu nos momentos finais deste fechamento um lote de duas dezenas de cartas provenientes de uma mesma agência dos Correios do município de Ribeirão Pires (SP). A redação agradece a iniciativa, aparentemente de um grupo de estudantes, e informa que as cartas serão todas respondidas e publicadas nas próximas edições.

revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

O parto de uma nova idade Pouco a pouco, as sociedades humanas se cansam dos costumes, da obediência às leis opressivas, dos mesmos líderes e até dos mesmos deuses

Q

uem se dedica ao estudo da História está pobres e explorados. No século 20, os confrontos se dispensado das surpresas e do espanto. multiplicaram. Durante os 100 anos, duas guerras Os tempos também envelhecem, de suas mundiais e vários conflitos menores, o sangue jorrou entranhas surgem novas idades. E o par- como nunca, mais de 100 milhões de pessoas, entre to dos tempos novos costuma ser terrí- combatentes e não combatentes, morreram. Agora há vel, com guerras, atos de loucura, fogo e sangue. A Ida- sinais de que a Humanidade já se encontra cansada de Moderna, que se iniciou com o Renascimento e a de tudo isso. descoberta da América, começou a envelhecer quando A onda revolucionária que percorre os países árabes o Iluminismo não conseguiu consolidar as conquistas vem sendo identificada pelos observadores ocidentais políticas da Revolução Francesa. Não souberam os lí- como uma vitória do capitalismo. Na visão apressaderes do grande movimento libertador conter a vio- da dos jornalistas e diplomatas ocidentais, os jovens lência no momento certo, e o resultado, com a reação mobilizados­pela internet querem derrubar seus désda direita, foi o surgimento de Napoleão, potas a fim de viver os padrões europeus a restauração da monarquia e a substitui- A onda e norte-americanos de conforto­. É até ção da nobreza pela burguesia. revolucionária possível que isso seja verdade em parA injustiça continuou, e as tentativas árabe é te, como é evidente que os países capitarevolucionárias dos trabalhadores eurolistas, sedentos do petróleo do Oriente vista por peus, em 1848, e dos franceses em parMédio, incentivam rebeliões, como as do ticular, com a Comuna de Paris, foram observadores Líbano, com seus agentes provocadores. derrotadas pela força. O governo dos tra- ocidentais, Mas estão vendo só uma pequena parcela­ balhadores que assumiram o poder no jornalistas e da realidade­. município de Paris foi, na visão de Marx, diplomatas A rebelião, ainda que não exista uma “um frustrado assalto ao céu”. Os operá- como uma consciência clara disso, se faz contra rios foram trucidados. Os soldados franuma ordem mundial de domínio. Essa vitória do ceses, vergonhosamente recém-derroordem, construída e administrada pelo tados pelas forças alemãs, na guerra de capitalismo. capitalismo, sempre aceitou os tiranos 1870, descontaram sua frustração e se Isso é até do Oriente Médio, desde que eles lhe tornaram “valentes” contra trabalhadores possível, mas facilitassem o acesso ao petróleo. Não mal armados, que se defendiam em bar- é só uma são os direitos humanos, como a sua ricadas improvisadas. Os que se rendiam pequena hipocrisia­proclama, que defendem, eram logo executados. mas o direito que se arrogam de explorar­ parcela da Desde 1776, quando os norte-americaos povos. A Revolução Soviética foi uma nos declararam independência e inicia- realidade grande tentativa de construir esse novo ram a guerra contra a Inglaterra, o mundo tempo, mas foi vencida pela traição inocidental entrou no período de preparação para uma terna de seus burocratas e pelos seus graves erros, nova idade. Em 1789, com a reunião dos Estados Ge- entre eles a violência stalinista. A queda do Muro de rais, as ideias políticas do Iluminismo eclodiram em Berlim, porém, não significa a derrota definitiva do Paris. Elas já haviam influenciado os norte-americanos humanismo, como eles pensam. e chegado ao Brasil, a Ouro Preto. Em março daquele Está surgindo uma nova idade no mundo: o sistema ano, os revolucionários mineiros foram denunciados; de poder, dominado pelos banqueiros, que faz e desfaz em abril de 1792, Tiradentes foi enforcado e esquar- governos, controla a ciência e a tecnologia, determina tejado. Em janeiro de 1793, Luís XVI foi guilhotina- a vida e a morte de povos inteiros, começa a ser visto do em Paris. em seu horror pelas grandes massas. O que virá depois, O processo continuou no século 19, com o enfren- não sabemos – mas as dores do parto desse novo temtamento entre os ricos burgueses e os trabalhadores po já se fazem sentir.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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CARLOS CECCONELLO/FOLHA APRESS

Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Guilherme Amorim, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Vitor Nuzzi

NaRede

Pega no Viaduto do Chá: R$ 3 é dureza

Tarifa alta e pancada Em uma das manifestações por redução na tarifa de ônibus, os ativistas sofreram dura repressão policial em São Paulo. Depois de ver frustrada a promessa de uma reunião com representantes da administração de Gilberto Kassab, seis pessoas acorrentaram-se às catracas de entrada da prefeitura. Mais tarde, os policiais avançaram sobre a mul-

tidão, deixando pelo menos uma pessoa gravemente ferida. Vereadores e jornalistas também foram agredidos. Organizações de direitos humanos veem excesso no uso de armas não letais pela polícia, utilizadas indiscriminadamente em situações como a de 17 de fevereiro. http://bit.ly/na-rede_pm_kassab

Fora do trilho

MAURICIO MORAIS

Protestos na cidade de Zawiyah

Nova denúncia recaiu sobre a Companhia do Metropolitano de São Paulo, envolvendo duas multinacionais, que teriam desviado R$ 8 milhões. Segundo documentos, editais manipulados permitiam que contratos de manutenção de vagões fossem alterados para garantir o fluxo de dinheiro irregular. Mais um capítulo ao hiperlotado sistema de transportes paulistano. http://bit.ly/na-rede_metro

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Líbia em chamas Muamar Kadafi, que comanda a Líbia há 41 anos, foi uma das “vítimas” da onda de protestos no mundo árabe. O país localizado no norte da África seguiu os passos dos vizinhos Egito e Tunísia, sofrendo ainda maior pressão internacional – especialmente depois da denúncia de que aviões militares teriam disparado contra multidão de manifestantes. Além da Líbia, Bahrein, Iêmen e Jordânia viveram dias de protestos. No Egito e na Tunísia, a mobilização é para garantir que a transição cumpra a promessa de eleições diretas e livres. http://bit.ly/rba_kadafi

AHMED JADALLAH / REUTERS

Metrô paulistano: novas denúncias


MARCELLO CASAL JR /ABR

Violência sem fim

O cargo máximo da República é ocupado por uma mulher. Elas estão em nove dos 37 ministérios e na vice-presidência das duas casas do Legislativo. Mas, no dia a dia, muitas continuam sofrendo agressões dos próprios companheiros. Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo em parceria com o Sesc, duas mulheres são vítimas de violência doméstica a cada cinco minutos. Há indícios de avanços em algumas áreas, mas também de estagnação em outras. http://bit.ly/na-rede-violencia

NA RÁDIO

Mais remédio

DIVULGAÇÃO/ ABL

O gaúcho Flávio Aguiar, em Berlim, comentou a morte do escritor gaúcho Moacyr Scliar, de quem era amigo e admirador. “Foi um grande escritor e uma personalidade da cidade (de Porto Alegre). Um homem progressista, que encarava a vida com ironia, alegria e otimismo”, resumiu. Ele sugere, entre os livros deixados por Scliar, O Carnaval dos Animais, de 1968, que reúne contos. http://bit.ly/na-rede_scliar

MARCELLO CASAL JR /ABR

Moacyr Scliar, que perda

A inclusão de medicamentos contra diabetes e hipertensão (pressão alta) nas farmácias e drogarias conveniadas à rede Aqui Tem Farmácia Popular foi comemorada pela comunidade médica. Para especialistas nessas doenças crônicas, a medida é um importante primeiro passo, mas seria necessário avançar ainda na prevenção e no atendimento à população. http://bit.ly/na-rede_remedio

Precisava? Suspeita no canavial O colunista da Rádio Brasil Atual Leonardo Sakamoto, diretor da ONG Repórter Brasil, critica um acordo da gigante do setor sucroalcooleiro com o Ministério Público para sair da “lista suja” do trabalho escravo – com apoio da Advocacia Geral da União. Segundo ele, a presença da Cosan na lista atrapalha o propósito do governo de melhorar a imagem do etanol brasileiro no exterior. http://bit.ly/na-rede_cosan

O governo federal anunciou corte de R$ 50 bilhões no Orçamento Geral da União. Turismo e Esportes perderam mais verbas. Desenvolvimento Social, Saúde e Educação foram as pastas mais poupadas. Para especialistas, a adoção da medida não indica mudança na política econômica, mas pode representar retrocesso do papel do Estado na economia. http://bit.ly/na-rede_cortes

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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O fator Arap

POLÍTICA

Governo Dilma mostra força nas primeiras votações, mas analistas veem maioria folgada com validade curta, já que em 2012 interesses de parlamentares nas eleições municipais podem falar mais alto Por Vitor Nuzzi

A

Paixão de Cristo é encenada em Arapiraca, interior de Alagoas, há 15 anos e incorporou-se à agenda da região. Este ano, ficou ameaçada por uma decisão tomada a centenas de quilômetros, em Brasília. Uma emenda (no valor de R$ 300 mil) do senador Fernando Collor de Mello (PTB), destinada ao evento, entrou nos cortes orçamentários anunciados pelo governo – e frustrou o organizador, Wagno Godez. “A produção já estava muito bem encaminhada. Mais de 90% vinha dessa emenda”, lamentou. Emendas parlamentares são “o PAC da Câmara”, na definição do deputado Sandro Mabel (PR-GO). E o governo, logo em seu início, aplicou uma terapia de choque ao anunciar os cortes, que atingiram 72% dos R$ 25 bilhões apresentados pelo Legislativo. Mais ainda, deixou algumas nomeações de segundo escalão para depois de seu primeiro grande teste: a votação do salário mínimo. Ganhou com folga, confirmando a maioria que tem no Congresso. Mas o tamanho dessa maioria ainda deixa dúvidas, principalmente a partir de 2012. 8

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Para observadores, o governo precisava de uma demonstração de força e um teste de fidelidade, ainda mais em uma votação simbólica como a do salário mínimo – nada como um voto impopular para isso. Também pairava sobre o Executivo certa desconfiança do chamado mercado – para o qual o governo parece querer dar sinais de “bom comportamento” – em relação à

sua capacidade de controlar os gastos públicos. Todos esses fatores confluíram para a aprovação de um salário mínimo abaixo das expectativas das centrais sindicais, causando os primeiros arranhões na relação com o Planalto. “Dilma conta com uma maioria nominal bastante confortável. O problema é que os partidos nem sempre têm controle sobre


apiraca

conforto razoável.” Esse conforto já deve diminuir a partir do ano que vem, quando haverá eleições municipais – e cada parlamentar passa a cobrar mais caro pelo apoio ou a colocar seu interesse eleitoral à frente de sua jura de fidelidade.

Segundo escalão

DIVULGAÇÃO

ÚLTIMA CEIA Encenação da Paixão de Cristo em Arapiraca: moeda de troca entre os parlamentares

suas bancadas”, observa o professor Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília (UnB). Isso acaba fazendo com que o Planalto, na expressão do cientista político, tenha de descer à planície, para discutir individualmente com os parlamentares – no varejo, como se diz. Como o governo é novo, Barreto acredita que as bancadas estejam testando a capacidade da presidenta.

O diretor do site Congresso em Foco, Sylvio Costa, crê que pelo menos neste primeiro ano o governo terá sucesso mesmo em matérias impopulares. “Não havia outro tema tão complicado para o PT como o salário mínimo”, diz o jornalista, destacando o simbolismo do assunto. “A maioria formal se mostrou uma maioria de fato. É uma indicação de que o governo vai ter um

Para Costa, o Executivo agiu de forma inteligente ao levar o salário mínimo à votação antes de concluir a formação do segundo escalão. Mas, em seguida à aprovação do tema na Câmara dos Deputados, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Luiz Sérgio, garantiu: “Não existe nenhuma relação entre votação e nomeação”. O PMDB, certamente, discorda. A bancada do partido na Câmara garantiu 100% de seus votos para o governo. “O PMDB é governo e teve na Câmara uma atitude que expressa aquilo que já esperávamos”, comenta Luiz Sérgio. Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o vice-presidente da República, Michel Temer, presidente licenciado do PMDB, também negou relação entre os temas: “Nem se discute a questão do segundo escalão. Nem vai se tocar nesse assunto. Essa é uma decisão da presidenta Dilma”. Ao mesmo tempo, disse que o desgaste político causado pela pressão por cargos ajudou no voto unitário peemedebista: “E falo isso mais como membro do governo do que do partido. O PMDB sentiu que deveria fazer aquilo que sempre fez: debater os grandes temas nacionais”. Para um analista, Temer havia “queimado o filme” por causa do apetite do partido por cargos, mas mostrou serviço na votação do mínimo, o que deveria fazer com que PT e PMDB entrassem em uma fase mais tranquila. Integrante do diretório nacional do PMDB e presidente da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), Antônio Neto lamentou o que chama de falta de diá­ logo do Executivo. “Sinto muito que o governo tenha testado sua maioria no Congresso com o valor do salário mínimo. É claro que ou você está no governo, ou fora do governo, mas tem coisas que você precisa sentar para conversar antes de ir para o Congresso”, afirma Neto. Em relação ao PMDB, ele avalia que o partido acertou, até pelo que representa para o governo, com a Vice-Presidência e seis ministérios. “Base é base. Seria enfraquecer o governo Dilma (votar contra).” MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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Mas, para o sindicalista, o governo cometeu um erro grave no episódio: “O que fez o Brasil crescer foi baixar juros, ampliar os investimentos e aumentar salários, exatamente o contrário do que aconteceu agora”. A constatação reforça a tese dos que veem, dentro do governo, o poder abaixo de Dilma ir se concentrando nas mãos do chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, chamado de “primeiro-ministro”. Não por acaso, um decreto presidencial de 17 de fevereiro transferiu para a Secretaria Geral da Presidência, do ministro Gilberto Carvalho, as secretarias de Administração e de Controle Interno. Com menos afazeres administrativos, a Casa Civil reforça seu viés político.

Atitude além do Congresso

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REVISTA DO BRASIL MARÇO 2011

POSIÇÃO Artur Henrique, da CUT (abaixo), falou aos deputados, e manifestantes ocuparam a galeria da Câmara nos dias de votação: a central não abriu mão dos R$ 580

FOTOS AUGUSTO COELHO

O PDT, também da base governista, saiu chamuscado. O partido decidiu liberar a bancada (26 deputados) na votação do mínimo, o que causou desgastes a seu principal articulador no governo, o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, também presidente da Força Sindical, e ao ministro do Trabalho, Carlos Lupi. “Estamos avaliando os caminhos que o governo Dilma está tomando”, disse Paulinho dois dias após a votação. “Se for o início, tudo bem. Esse caminho não terá nosso apoio”, acrescentou. O deputado e sindicalista também lança dúvidas sobre o comportamento do Parlamento daqui em diante. “É normal (vitória do governo em início de mandato). Lá atrás, Collor sequestrou a poupança do povo e o Congresso apoiou. Na hora que for para valer, não segura a bronca”, comentou. Sobre Lupi, Paulinho afirmou que não há tratamento ruim por parte do governo. “O que tem é notinha na imprensa.” O líder do PSB no Senado, Antonio Carlos Valadares (SE), espera um clima menos tenso entre Executivo e Legislativo. “A relação tende a ser mais calma, mais consultiva e construtiva do que na legislatura passada”, diz. Ele interpreta o resultado na questão do salário mínimo como uma manifestação de confiança dos partidos no governo. Mas, para que isso se repita em outras ocasiões, é preciso que a política econômica e social continue tendo êxito. De qualquer forma, o senador avalia que pelo menos em seu primeiro ano Dilma “tem tudo para ter apoio sem atropelo”. Para Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de


São Paulo (USP), os três últimos governos mostraram semelhanças em seu início: “Fernando Henrique começou quebrando a categoria dos petroleiros, numa atitude injusta até. Lula começou reformando a Previdência. E Dilma começou de forma dura”. Ele acredita que falta uma atitude mais política à presidenta. “Ela precisa falar para além dos partidos e da base de apoio, porque o Congresso é difícil de domar. Estou sentindo que falta na Dilma essa presença. Ela não está dizendo para a sociedade o que quer do Brasil”, observa Janine, pedindo uma postura mais ativa publicamente. “Ela tem tudo para ser uma grande gestora. Mas a gestão precisa ter um componente político visível.” Também é preciso que haja uma definição da agenda de possíveis reformas, segundo o professor, alertando que há um “descontentamento social com a chamada classe política”.

Atritos

A briga pelo aumento do salário mínimo causou atritos entre as centrais, particularmente entre as duas maiores, CUT e Força Sindical. Embora o valor obtido (R$ 545) tenha provocado frustração, o presidente nacional da CUT, Artur Henrique, destacou a importância de conquistar uma política legal de valorização do mínimo até

2015, conforme­prevê o projeto aprovado no Congresso. “A CUT é protagonista da maior campanha salarial do mundo”, destacou o dirigente­, ao mesmo tempo em que descartou “ações de marketing ou pirotecnias” de outros dirigentes, em referência velada, ou nem tanto, à Força. Presidente da Força e também do diretório do PDT em São Paulo, Paulinho tentou negociar um valor intermediário para o mínimo, de R$ 560. “Não dá para comemorar vitória de R$ 545.” Artur Henrique, da CUT, garantiu que em momento algum a central abriu mão da reivindicação de R$ 580. Em sua opinião, o valor alternativo poderia ser considerado­ desde que houvesse alguma sinalização nesse sentido do governo ou da base aliada – sem isso, seria ingenuidade. Ele lembrou ainda que os aumentos reais no período­recente­deram ao mínimo o maior poder­de compra em duas décadas, com um acumulado­de 53% nos últimos oito anos. Para Antônio Neto, presidente da CGTB, o movimento sindical teve uma vitória parcial, ao conseguir a política de valorização do salário mínimo e, na sequência, a correção da tabela do Imposto de Renda. “E o episódio mostrou que, ao contrário do que se diz, as centrais não estão atreladas ao governo. Esse vai ser o processo que vamos enfrentar, entre monetarismo e desenvolvimentismo­.”

A oposição, enquanto parece procurar novas lideranças, padece de falta de rumo. Cotado como principal nome, o senador Aécio Neves (PSDB-MG), mineiramente, pouco tem se manifestado, mas chegou a articular uma proposta alternativa (R$ 560) para o mínimo, a exemplo do DEM, valor que recebia apoio de parte do movimento sindical. O principal partido­, o PSDB­ , atravessa momento de mudanças, com gradativa perda de espaço de José Serra, embora sua proposta de R$ 600 tenha sido votada pelo partido no Congresso. Ainda neste semestre, o PSDB escolherá sua nova direção nacional. Serra parece não ter assimilado até agora outra derrota estrondosa, depois de ter jogado pesado para ser mais uma vez nome do partido na disputa. Na falta de consistência, resolveu partir para

o ataque com artigos e tuitadas acusando Dilma de “estelionato eleitoral” ou chamando o ditador líbio Muamar Kadafi de “amigo do PT e de Lula”. “O fracasso lhe subiu à cabeça”, respondeu o presidente do PT, José Eduardo Dutra, também pelo microblog. O assessor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) Marcos Verlaine viu no episódio do salário mínimo um “falso debate para tentar emparedar o governo e os partidos da base aliada, sobretudo os de esquerda”. E acrescenta, em sua análise: “Se José Serra tivesse ganhado a Presidência da República, talvez aumentasse o mínimo para R$ 600, como propôs na eleição. Esse valor, porém, ficaria congelado por quatro anos. Assim, a defesa tucana de R$ 600 é uma tentativa, pouco responsável, de reviver

VALTER CAMPANATO/ABR

Oposição: vida sem rumo

Serra: ideias confusas a refrega eleitoral”. O líder do PSB no Senado também refutou a argumentação dos partidos oposicionistas de que o governo legislaria sobre o mínimo

por decreto. “Isso aí é para incompatibilizar a opinião pública com o Congresso. O que nós aprovamos foi uma regra”, lembrou o senador Antonio Carlos Valadares. Como de hábito, os principais jornais e emissoras trataram de tirar da vitrine esta que é, talvez, a cereja do bolo do salário mínimo. Sobrava nos telejornais a reclamação oposicionista de que os próximos mínimos seriam “definidos por decreto” e sumia a informação de o tal decreto ter de cumprir uma regra clara, que leva em conta inflação e crescimento da economia, válida até a definição do salário mínimo de 2015. O mínimo de 2012, por exemplo, terá reajuste pela inflação de 2011 mais acréscimo correspondente ao aumento do PIB apurado em 2010 – compondo assim um índice estimado entre 13% e 14%. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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JORNALISMO

Kiusan de Oliveira

Carlos Ribeiro, apresentador do Seu Jornal

FOTOS DIVULGAÇÃO

ROSSANA LANA/SMABC

Paulo Vannuchi

Telejornal colaborativo Produção noticiosa da TVT, primeiro canal aberto de televisão gerido por entidades de trabalhadores, mescla com equilíbrio abordagem de grandes temas e interatividade

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nquanto senadores discursavam sobre o salário mínimo, em fevereiro, o Seu Jornal, da TVT, mostrava a vida da família de uma empregada doméstica que se mantém com o piso salarial brasileiro. Abordar a realidade dos trabalhadores é o eixo do noticiário, que procura se diferenciar do telejornalismo convencional. A produção aposta numa relação mais estreita com a realidade do espectador, popularizando a abordagem de grandes temas e abrindo mecanismos de participação do público que vão da presença em estúdio à produção interativa a partir de seu local de trabalho ou de sua comunidade. Há seis meses no ar, o telejornal já teve mais de 40 convidados entrevistados ao vivo. Da chef de cozinha ao professor, do economista do Dieese à atriz militante, de autoridades a representantes dos movimentos sociais. Além da equipe própria, de aproximadamente 70 pessoas, entre jornalistas, produtores e técnicos, o programa conta com a intervenção de líderes comunitários e de “trabalhadores repórteres”, que fazem

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virar notícia os fatos de seu cotidiano. Desde agosto do ano passado, quando a TVT foi inaugurada, já foram transmitidos mais de 150 vídeos captados e enviados por líderes e participantes de movimentos sociais. Como o de um morador do Morro do Macuco, em Mauá (cidade do ABC paulista), que exibe o drama dos desmoronamentos causados pela chuva, ou o registro de uma assembleia na porta de fábrica feito diretamente por

Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Das 19h às 20h30, de segunda a sexta Canal 46 Mogi das Cruzes e Alto Tietê (UHF) TV a cabo no ABC ECO TV – canais 96 (analógico) e 9 (digital) NET, das 19h às 19h30 No site da TVT www.tvt.org.br

um representante dos operários. O programa abre espaço privilegiado para que cidadãos exponham seu talento, como a educadora Kiusan de Oliveira, autora do livro Omo-Oba – Histórias de Princesas, que destaca por meio de mitos africanos a formação da personalidade feminina e a superação da discriminação racial. E também dá voz aos movimentos sociais, a exemplo do registro ousado, feito pelo manifestante Caio Finatto (Núcleo de Comunicação Marginal), de agressões policiais em um protesto do Movimento Passe Livre, em São Paulo. O sindicalista José Lopez Feijóo comenta notícias da economia e da política que mexem com a vida do trabalhador. Flávio Aguiar, correspondente em Berlim, analisa os acontecimentos mundiais. E, desde fevereiro, o jornalista e cientista social Paulo Vannuchi, ex-ministro de Direitos Humanos, reforça o time de comentaristas do Seu Jornal. O programa, conduzido pelo apresentador Carlos Ribeiro, vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 19 horas às 19h30, e pode ser visto ao vivo também pela internet­: www.tvt.org.br.


Opinião

Por Laurindo Lalo Leal Filho

Futebol na TV

A disputa pela transmissão do Campeonato Brasileiro gira em torno dos interesses das emissoras e dos clubes. O telespectador continua não sendo visto como cidadão, com direito a um serviço público de qualidade

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utebol não é apenas o esporte mais popular A primeira delas, a mais gritante, é a do monopólio do Brasil. É também um programa de TV que o Cade tenta corrigir. Ainda assim, a Globo estimude grande audiência, assim como as nove- la a divisão entre os clubes, tentando manter a exclusilas e os reality shows. Hoje a Globo, deten- vidade das transmissões, mesmo sob as novas regras. tora dos direitos de transmissão de quase Forçou de todas as formas as negociações diretas com todas as disputas futebolísticas, determina os horários cada um, esfacelando o Clube dos 13, entidade que traem que os jogos devem ser realizados para que se en- tava coletivamente dos interesses de todos. caixem perfeitamente em sua programação. O resulO poder da TV revela uma segunda e grave distorção: tado são partidas começando às 22 horas, tirando tor- a submissão dos clubes às emissoras. Administrados de cedores dos estádios e impondo aos atletas um ritmo forma amadora, a maioria só sobrevive graças às chade trabalho incompatível com a saudável madas “cotas de TV”. Quase todos receChega-se à prática esportiva. bem esses pagamentos antecipadamente, Mas o monopólio absoluto acabou. O esdrúxula tornando-se reféns das empresas de coConselho Administrativo de Defesa Eco- situação de, municação. Estas, por sua vez, determinômica (Cade), ligado ao Ministério da numa cidade, nam os jogos que serão transmitidos e os Justiça, determinou que, a partir de 2012, horários. Chega-se à esdrúxudeterminado respectivos todas as emissoras terão o direito de disla situação de, numa cidade, duas emissoputar a transmissão dos jogos do Campeo- jogo passar ras de sinal aberto (Globo e Bandeirantes) nato Brasileiro em igualdade de condições. em três e uma por assinatura (SporTV) transmitiO fato desencadeou uma verdadeira guer- canais. O rem o mesmo jogo. O curioso é essas TVs, ra envolvendo clubes e emissoras. E não é curioso é em seus telejornais, não se cansarem de para menos. O lance mínimo para aqui- que essas louvar o direito à livre escolha. Falam até sição dos direitos em relação à TV aberta no poder que o telespectador teria ao se TVs vivem é de R$ 500 milhões, havendo ainda em utilizar do controle remoto. Para quê? disputa as transmissões para o exterior e louvando o Para ver o mesmo jogo em outro canal? por outros meios, como TV por assinatu- direito à livre A disputa pelos direitos de transmissão escolha. Que do Campeonato Brasileiro de 2012 a 2014 ra, pay-per-view, celular e internet. São negócios milionários explorados escolha? girou em torno dos interesses das emissonuma longa cadeia comercial. A TV mostra ras e dos clubes. Não se ouviu uma palavra para as agências de publicidade os números da audiência­ sobre os direitos do telespectador. Ele, que deveria ser o a ser obtida com as partidas de futebol e estabelece os primeiro a ser ouvido, não é visto por clubes e emissoras preços a serem cobrados dos anunciantes. De outro lado, como cidadão, a quem cabe, antes de tudo, receber um os clubes negociam com as emissoras os valores a serem serviço público de qualidade. O telespectador é tratado recebidos pela exibição dos jogos e, com os patrocina- apenas como um consumidor, cujo poder se resume a dores, pela exposição de sua marca na camisa dos atle- escolher o produto televisivo que melhor caiba em seu tas durante as transmissões. Com esse dinheiro pagam a bolso. Aquele com poucos recursos tem de se contentar seus principais jogadores salários astronômicos. Dentro com a TV aberta e ver o jogo que muitas vezes não lhe da lógica estritamente capitalista não há o que contestar. interessa. Quem for um pouco mais abonado pode asJogadores e clubes são tratados como produtos vendi- sinar um canal fechado e, às vezes, assistir a um jogo didos no mercado do entretenimento, com as emissoras ferente. E finalmente, para os mais ricos, há o caro payno papel de intermediárias. Mas, observando um pouco -per-view, com uma oferta de partidas bem mais ampla. melhor, percebem-se sérias distorções, causando prejuíAinda bem que, apesar da TV, a qualidade do futezos ao consumidor final, o telespectador. bol brasileiro sobrevive. Só não sabemos até quando.

Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da ECA/USP; diretor e apresentador do programa VerTV, da TV Brasil e da TV Câmara; autor dos livros A Melhor TV do Mundo e A TV sob Controle, da Summus Editorial; e ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação

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BRASIL

Engatou a primeira O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, aproxima o governo dos movimentos que cobram regulação e democratização da mídia, põe água no chope de quem quer pressa e sugere que sem pressão a mudança não sai

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emanas antes do fim do governo Lula, seu então chefe da Secretaria de Comunicação, Franklin Martins, liderou uma força-tarefa com o objetivo de deixar pronto um anteprojeto de lei de modernização e democratização do funcionamento da mídia. Durante oito anos, o governo Lula andou de lado em relação ao assunto. Esbarrou na resistência das grandes empresas que controlam a velha mídia e no temor de peitar esse segmento sem uma base mais sólida tanto no Congresso como na sociedade civil. Para tirar o atraso, Franklin tentou aproveitar o momento favorável de transição. Convidou autoridades de países desenvolvidos do mundo inteiro para descrever o papel do modelo de regulação em sua avançada democracia. Desmontou as bobagens dos empresários – que alegam ver ameaças à liberdade de imprensa na construção de um novo marco regulatório para o setor – e os convocou para o debate franco e aberto. E não poupou críticas ao Ministério das Comunicações que, desde a posse do então ministro Hélio Costa, se omitiu e não incomodou as empresas de mídia nem as teles. Franklin afirmou que, no governo Dilma, o Ministério das Comunicações teria de ser “refundado” para dar ao tema a atenção que nunca teve. E, na composição de seu primeiro escalão, a presidenta deu sinais positivos nessa direção, ao tirar o Ministério das Comunicações da influência de

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Costa e nomear para a pasta o petista Paulo Bernardo, que tem experiência de congressista por seus mandatos parlamentares e de ex-ministro do Planejamento de Lula. Bernardo tem repetido que concorda com a construção de um novo marco regulatório para tirar o Brasil do século 19 em termos de comunicações. E tem encarado os debates com os setores da sociedade mais engajados nessa batalha pela regulação e pela aceleração do Plano Nacional de Banda Larga. Um desses debates foi promovido no dia 15 de fevereiro pelo programa de TV Momento Bancário, produção do sindicato da categoria em São Paulo, com transmissão ao vivo pela Rede Brasil Atual e participação de internautas de várias regiões do país. Funcionário de carreira do Banco do Brasil e com história política originada na luta sindical, Paulo Bernardo sentiu-se em casa no auditório lotado da entidade e não deixou de responder a nenhuma das dezenas de perguntas. Nem todas as respostas eram exatamente as que os militantes pela democratização queriam ouvir. O ministro foi categórico em rebater quem o acusa de estar com medo de enfrentar o chamado PIG (Partido da Imprensa Golpista) e alertou que quem tiver pressa pode sofrer um revés contundente, como o sofrido pelo governo anterior quando anunciou a proposta de criação de uma agência reguladora da produção audiovisual (Ancinav). “O tema tem de ter

muita ressonância na sociedade, sob pena de o projeto ir para a gaveta. Você fala que quer regular a mídia e já vem gente dizendo que você quer censurar. Temos de ser muito tranquilos e firmes nisso”, ponderou. A jornalista Bia Barbosa, do Coletivo Intervozes, viu na expressão um recado: “É preciso criar uma correlação de forças mais

Manifesto Em seminário transmitido pela Rede Brasil Atual e pela TVT, no dia 26 de fevereiro, dezenas de entidades engajadas na democratização do acesso à informação lançaram um manifesto em defesa da universalização da banda larga – levando em conta tratar-se de um direito de todas as pessoas, independentemente de sua localização ou condição socioeconômica. Para acessar e passar adiante o manifesto, visite http://bit.ly/rba_manifesto_banda_larga.


com os governos estaduais para que se corte o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) especificamente sobre o fornecimento de internet de alta velocidade. “Agora, não tem de baixar o ICMS enquanto não houver negociação e a empresa precisa baixar o preço. Vamos fechar como pacote: traz o preço para baixo e a gente propicia determinadas condições.” Bernardo indica que, atualmente, 34% dos municípios brasileiros estão conectados à rede. A meta é alcançar 80% nos próximos quatro anos.

AO VIVO Ministro (ao lado da presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Juvandia Moreira): regulação não é censura

equilibrada antes do envio de um projeto ao Congresso. E os movimentos têm de continuar se organizando para isso”. Altamiro Borges, do site Vermelho, entendeu que foi importante o ministro deixar claro que haverá a regulação: “Mas, como diz o Frei Betto, ‘o feijão só fica bom sob pressão’ ”, brincou.

Banda larga

No debate, Paulo Bernardo afirmou também que o Ministério das Comunicações dará atenção especial ao pleito das rádios comunitárias de desburocratizar o sistema de concessões. Jerre Oliveira, da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), criticou o fato de a universalização da banda larga – cuja expansão pode aumentar o potencial de veiculação também das produções radiofônicas – não ser encarada como serviço público: “Fala-se muito sobre como se dará o processo (o Plano Nacional de Banda Larga) a partir da visão de mercado, mas não com o enfoque

de serviço público essencial”. Comemorou, porém, a criação de uma coordenação específica para rádios comunitárias no Ministério das Comunicações, antiga reivindicação do movimento. Paulo Bernardo admitiu ainda que as empresas privadas de telefonia fornecem serviço caro e para poucos. O ministro reafirmou a ideia de que a banda larga seja incluída na revisão do Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU), atualmente negociado entre governo e empresas de telecomunicações. As teles resistem à inclusão de banda larga no PGMU, sob o argumento de que isso não está previsto nos contratos de concessão firmados na década de 1990. O governo usa como contra-argumento o fato de que o serviço de internet é, inclusive, oferecido em conjunto com o de telefone. A respeito do Plano Nacional de Banda Larga, o governo mantém a projeção de chegar a um piso de R$ 30 nas conexões de 512 kbps. Para isso, será preciso fechar acordo

PAULO PEPE

Concessões

Momentos antes do debate do dia 15, o ministro concedeu entrevista à Rádio Brasil Atual, respondendo a questões encaminhadas por personalidades de diversas áreas. A senadora Gleise Hoffmann (PT-PR) perguntou sobre a popularização do acesso aos equipamentos de informática. Valter Sanches, diretor de Comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, se haverá uma democratização nos processos e procedimentos de concessões de radiodifusão. O sociólogo Venício Artur de Lima afirmou que não está clara a posição do ministério com relação à questão da regulação da propriedade cruzada e cobrou do ministro uma posição em relação a esse tema. Militante do software livre, o professor Sérgio Amadeu lembrou que recentemente a Anatel multou um usuário da internet por abrir seu sinal wireless para outros vizinhos. E perguntou por que não há um incentivo para as pessoas criarem cooperativas de conexão usando as tecnologias wireless. Leandro Fortes, da revista CartaCapital, indagou a posição do ministro em relação às ações impetradas pelo jurista Fábio Konder Comparato, que responsabilizam o Congresso pelo não cumprimento de artigos da Constituição relativos à comunicação social. Celso Horta, do jornal ABCD Maior, questionou o fato de o governo dialogar com a sociedade por meio da velha mídia monopolista e não entender que o campo da comunicação seja território para as pequenas e médias empresas. O presidente da CUT, Artur Henrique, quis saber como será a atuação do ministério no debate da democratização da comunicação. As respostas estão no portal Rede Brasil Atual e podem ser acessadas, em duas partes, nesses atalhos: http://bit.ly/paulo_bernardo_rba_1 e http://bit.ly/paulo_bernardo_rba_2 MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Uma baita servidora Sob a batuta da mineira Ruth Vilela, o Brasil tornou-se um dos poucos países elogiados por admitir a existência de trabalho escravo e infantil e combatê-los com rigor Por Paulo Donizetti de Souza

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Os trabalhadores rurais, assim como os mais humildes do meio urbano, têm essa coisa de honra, de honestidade, de nunca querer ficar devendo – nem para o mau patrão 16

uth Beatriz Vasconcelos Vilela passou no concurso de auditora fiscal na antiga Delegacia Regional do Trabalho de Minas, aos 26 anos, em 1975. O presidente era o general Ernesto Geisel e o ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto. Menos de duas décadas depois, entre 1993 e 1994, foi chefiar a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). O ministro era Walter Barelli e o presidente, Itamar Franco. Entre 1995 e 1998, voltou a comandar a SIT, respondendo ao ministro Paulo Paiva, já no governo Fernando Henrique Cardoso. Afastou-se em 1999 para assessorar o chefe da Casa Civil de FHC, Clóvis Carvalho – que precisava de alguém que entendesse de pepinos como trabalho escravo, trabalho infantil, comunidades quilombolas relegadas ao esquecimento –, e pediu para voltar para a DRT de Minas. Acreditava que estava quieta em seu canto, em 2003, quando foi chamada de volta à SIT, agora sob o governo Lula e subordinada ao ministro Jaques Wagner. Depois de Wagner, vieram os ministros petistas Ricardo Berzoini e Luiz Marinho e o pedetista Carlos Lupi. E ela seguiu intocável. Quem conhece a briga de foice dos políticos por um cargo no segundo escalão, preenchido por nomeação, sabe que o feito de Ruth Vilela não é normal. No total, foram 13 anos como secretária de Inspeção do Trabalho – sob três presidentes e seis ministros de diferentes partidos. O profissionalismo dessa mulher e a continuidade de seu trabalho têm tudo a ver com seu protagonismo na criação de programas de prestígio internacional, como os de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil. Discreta, como boa mineira, pequenina e de fala serena, Ruth Vilela encerrou sem alarde, no início deste ano, um ciclo de 35 anos dedicados ao serviço público. Em seu lugar emplacou a nomeação de Vera Albuquerque, auditora com origem no Rio de Janeiro que, acredita, dará continuidade ao trabalho que até agora chefe nenhum botou defeito. Em entrevista à Revista do Brasil, Ruth falou de sua experiência, dos avanços conquistados na direção da erradicação do trabalho escravo (foram quase 40 mil trabalhadores libertados desde 1995) e de algumas frustrações. Leia a seguir alguns dos principais trechos. A edição completa está na versão para a internet.

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Você acompanhou de perto a elaboração do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, não é?

Na verdade, todo esse projeto de erradicação do trabalho escravo fui eu que criei, em 1995. Era um desafio para os governos. O Brasil anualmente era chamado à atenção por organismos internacionais e de defesa dos direitos humanos e não tinha nenhuma ação concreta para essa área. Na época do Barelli, em 1993, havia tomado contato com o problema pela primeira vez. Em 1995, recebi a incumbência do ministro Paulo Paiva de lidar com duas questões prioritárias: do trabalho infantil e do trabalho escravo. Os dados relativos ao trabalho infantil também eram alarmantes.

Tecnicamente, trabalho infantil é aquele praticado por pessoas em que idade?

Por pessoas abaixo da idade mínima indicada pela Constituição, 16 anos, exceto aqueles casos de regime de aprendizagem, permitido a partir dos 14. O trabalho infantil era outra chaga social que envergonhava o governo e a sociedade brasileira. Foi combatido por intermédio de ações do Ministério do Trabalho, repressivas inicialmente e depois preventivamente, com a criação de programas sociais. O primeiro foi o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti).

E como combater o trabalho infantil num país em que a pobreza é tão grande e se tornou cultural, natural, as pessoas desde muito pequenas ajudarem a reforçar a renda da família?

Tanto é possível que, se comparar desde os anos 1990 até agora, você verá que nós efetivamente entramos numa fase bastante avançada. Isso em razão de uma série de fatores: nossa ação de fiscalização e repressão, a formação de uma rede bem sólida de parceiros, a sensibilização dos governos estaduais e municipais e os diversos programas do governo federal que são convergentes – há o Bolsa Família, mas também uma série de atividades, por exemplo, no Ministério dos Esportes, o avanço da educação etc. Tudo isso está fazendo com que efetivamente a gente possa falar que o Brasil está caminhando para a erradicação definitiva do trabalho infantil. Contra outra chaga, a do trabalho escravo, conseguimos avançar bastante, mas não com a mesma velocidade.


PAULO DONIZETTI DE SOUZA

É uma saiajusta para o parlamentar, individualmente ou em bloco, defender a PEC do Trabalho Escravo, porque ela atinge o coração do sistema capitalista, que é o direito de propriedade Como agem os que usam esse tipo de mão de obra? Eles sabem onde estão as pessoas mais suscetíveis ao aliciamento?

Trata-se de um sistema muito bem montado. Intermediários, os chamados “gatos”, fazem o recrutamento, geralmente em municípios de baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), mediante promessas de boas condições de trabalho e remuneração. O trabalhador só vai descobrir a realidade quando já está na propriedade e não vai ter nada a receber, porque estará sempre devendo. Fez dívidas com a viagem e ela será crescente. Não precisa nem de violência para retê-los, pois passam a se endividar mais para adquirir equipamento de trabalho, roupas, comida, medicamentos, bebidas, cigarros etc. Esse é o principal elemento cerceador da liberdade. A pessoa fica retida pela dívida e também pela distância do local onde trabalha. Os trabalhadores rurais, assim como os mais humildes do meio urbano, têm essa coisa de honra, de honestidade, de nunca querer ficar devendo, nem para o mau patrão.

Além das denúncias e da repressão, que outros procedimentos de combate ao trabalho escravo foram sendo incorporados para fortalecer a eficácia desse programa?

Duas coisas interessantes aconteceram. A primeira foi a instituição pelo governo, em 2003, de um cadastro de infratores, conhecido como “lista suja”. Mas não foi criado como forma de sanção ou punição, apenas como um mecanismo de informação. Entram para a lista suja, atualizada a cada seis meses, empresas que passaram pela investigação e por todos os procedimentos administrativos de autuação. Ao final de dois anos, o empregador, se não for reincidente e não tiver mais pendência, é retirado da lista. Somando-se todas as inclusões desde 2003, já passaram pelo cadastro cerca de 400 empregadores.

Outro avanço, e aí o mérito é da sociedade civil e das entidades que tiveram essa iniciativa, é a construção do Pacto Empresarial pela Erradicação do Trabalho Escravo, monitorado pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, pela ONG Repórter Brasil e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). São grandes empresas e entidades patronais que assumem o compromisso de não negociar com fornecedores que eventual­mente estejam envolvidos com trabalho escravo. O monitoramento é feito em toda a cadeia produtiva na qual atuam. Então, esses dois instrumentos – o cadastro e o pacto – eu os reputo como modernos e muito poderosos para contribuir com a erradicação do trabalho escravo. A PEC do trabalho escravo – que propõe a perda da propriedade por quem usa essa mão de obra – não anda no Congresso porque seria derrotada ou porque, se fosse posta para andar, setores mais atrasados do Congresso retaliariam no andamento de outros interesses do governo?

Eu acho que as chances de aprovação são mínimas, considerando a composição das bancadas atuais, principalmente da chamada bancada ruralista. Mesmo os partidos mais à esquerda ou da própria base aliada do governo nunca deram apoio para a aprovação dessa PEC. Parece uma saia-justa para o parlamentar individualmente ou em bloco defendê-la, porque ela propõe uma coisa que atinge o coração do sistema capitalista, que é o direito de propriedade. Já houve pressão da sociedade em vários momentos, mesmo assim não gerou resultados concretos. Tem abaixo-assinados, tem uma série de coisas, tem todo um conjunto de entidades. Até uma delas, formada por artistas, a Humanos Direitos, já conversou com parlamentares, mas nada de resultados até agora. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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CAPA NO SANGUE Mayara Longo e o Movimento Passe Livre: militância desde a meninice

Fé na moçada A despeito da despolitização de significativa parcela da juventude brasileira, tem muita gente com uma ânsia louca de melhorar o mundo Por Fabíola Perez

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ebeldes, revoltados, esquerdinhas. Tem todo tipo de qualificação para gente assim. Jovens que não se conformam com a realidade do mundo em que vivem. Que acreditam em valores como a solidariedade e têm convicção de que é possível fazer algo para mudar. E fazem. “Muita coisa está em desacordo na nossa sociedade. Mal saio de casa e já deparo com moradores de rua. Você vai ao posto de saúde e não vê atendimento digno.” Estudante de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Mayara Longo Vivian, de 21 anos, acredita que só se transforma a sociedade com organização e ação. Moradora do centro de São Paulo, para ela a militância é parte do cotidiano tanto quanto estudar e trabalhar. Aos 12 anos, aderiu ao movimento punk. “Desde a pré-adolescência comecei a militar em um coletivo de apoio ao Movimento de Moradia do Centro de São Paulo”, conta. Ainda adolescente, conheceu o Movimento Passe Livre (MPL), que defende um modelo de transporte público e gratuito e adota como princípios atuar com independência, apartidarismo e tomar decisões coletivas e por consenso. “Toda vez que passo pela catraca de um ônibus sinto que cobrar por esse serviço é uma afronta.” O MPL surgiu em Santa Catarina, constituiu-se formalmente no Fórum Social Mundial de 2005 e organizou-se em várias capitais. Em São Paulo, conseguiu este ano reunir milhares de simpatizantes em manifestações semanais, provocou reuniões com autoridades e conquistou apoio de parlamentares ao objetivo de reverter o reajuste das tarifas de ônibus, de R$ 2,70 para R$ 3, e do metrô, de R$ 2,65 para R$ 2,90­. Mayara faz parte de um contingente de jovens engajados em pautas cada vez mais diversificadas, segundo pesquisa realizada em 2008 pelos institutos Ibase e Pólis. “Os coletivos juvenis se inquietam mais com as con-

BARULHO DO BEM Mayara, durante ato pelo transporte gratuito: “Desmotiva mais viver sem fazer nada do que lutar pelo que você acredita, mesmo com dificuldades”

dições sociais”, observa a socióloga­Helena Abramo, coordenadora­do estudo “Juventudes sul-americanas: diálogos­para a construção da democracia regional”. Realizado na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai, o estudo mostrou que questões sociais ganham musculatura entre as novas gerações. “Em uma conjuntura diversa da de um passado recente, em que a liberdade era mais restrita, e com o restabelecimento dos instrumentos de participação, a desigualdade social ganha mais espaço”, diz a socióloga. Para o jornalista Rodrigo Savazoni, coor­ denador do projeto CulturaDigital.br, o pulsar que movia a juventude nos anos da ditadura continua latente. “No contato com jovens dos assentamentos do MST, das centrais sindicais, universidades e de ONGs, percebe-se o quanto alimentam a seiva política que corre na sociedade.”

Política e futebol

Aos sábados, em um campo de várzea na Lapa, zona oeste de São Paulo, o Autônomos Futebol Clube reúne seus 50 integrantes e seu time de futebol feminino para fazer do esporte elo de integração e participação social. Filho de uma assistente social e de um bancário, Danilo Heitor Vilarinho Cajazeira, de 28 anos, um dos fundadores do time, foi autor da ideia. “Meus pais eram militantes na época da ditadura, mas eu nunca tive interesse por partidos políticos”, conta. Na adolescência, Danilo chegou ao movimento punk e, por meio dele, conheceu ideais do anarquismo, que defende uma sociedade sem governos. Formado em Geografia, ele diz que é necessário pensar o mundo de uma forma mais humana. “Discutir política é debater desde o preço do pãozinho até o fato de haver mais espaço para carros que para o transporte público na cidade”, enfatiza. Em seu time de futebol não há presidente nem diretoria. “Nos-

DANILO RAMOS

Coração lutador A voz ainda conserva a euforia dos que gostam de contar histórias. Com 77 anos, Waldemar Rossi foi protagonista de distintos momentos políticos no país. Recorda com orgulho ter integrado a Comissão Justiça e Paz, na companhia de dom Paulo Evaristo Arns, Hélio Bicudo e Fábio Comparato, em defesa dos perseguidos pela ditadura. Até hoje continua engajado no trabalho da Pastoral Operária de São Paulo. Ele acredita que os anos de repressão no Brasil foram responsáveis pelo processo de modificação no perfil da juventude. “A ditadura implementou um modelo de educação para impedir que as futuras gerações tivessem conhecimento da verdadeira história. E essas gerações deixaram de compreender o processo político nacional”, afirma.

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so time é autogestionário e carrega diversos questionamentos políticos, mas lá dentro cada um tem sua posição.” Danilo conta que o conceito de futebol como meio de intervenção política é pouco praticado na América Latina. Já na Europa existem outros times com essa mesma proposta. Com um deles, o inglês Easton Cowboys­, o Autônomos já fez intercâmbio. “Nós os convidamos para conhecer a realidade brasileira e em 2009 eles vieram participar de palestras em universidades. No ano seguinte, fomos convidados a ir conhecer o trabalho deles”, lembra. Inspirado no que viu na Europa, Danilo diz que a atuação do time em prol de comunidades locais fortificou-se. Morador do centro da cidade, ele apoia o movimento Frente de Luta por Moradia (FML), que se dedica a ocupações de imóveis abandonados e cobra projetos habitacionais na região central de São Paulo. Para colaborar, o time ajuda com doações e divulgação. “A visibilidade social é conquistada a partir do momento em que se está no centro, geográfico e político”, afirma.

Muitas maneiras

“Durante um tempo as pessoas não sabiam como militar sem ser por intermédio dos partidos. Ao longo dos anos 1980, a juventude que queria participar não encontrava necessariamente abrigo nas pautas dos partidos formais, que se transfor-

ACREDITAR Alessandra: “Precisamos saber dialogar com as diversas realidades”

mavam cada vez mais em estratégias para atingir o poder”, analisa Rodrigo Savazoni­. Com o avanço da democracia, canais de participação foram se multiplicando, e hoje a juventude encontra espaço para se manifestar por melhorias em sua comunidade ou em seu país, seja na política partidária – o que inclui a disputa pelo poder, mas se esgota nela –, em movimentos sociais e sindicais, seja em coletivos autônomos atuantes nos mais diferentes setores de atividade. O projeto coordenado pelo jornalista, por exemplo, é capitaneado pelo Ministério da Cultura e conta com incentivo da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e da sociedade civil organizada. O CulturaDigital.br realizou em novembro de 2010 a

De sonho individual ao coletivo Eles só queriam um espaço para ensaiar e fazer música. Acabaram encontrando outra realização Luiz Carlos Sembro Junior, o Juninho 13, fazia parte de uma banda e tinha dificuldade de achar lugares para ensaiar, se apresentar e produzir. Em março de 2007, ele e um amigo encontraram um galpão abandonado na Vila Sabrina, bairro carente na divisa entre a capital paulista e Guarulhos. Depois de recorrer, sem sucesso, a várias instâncias municipais e estaduais para descobrir quem respondia pelo espaço, reuniram os síndicos do conjunto habitacional vizinho e propuseram um ato de comodato, uma autorização para ocupar o galpão. Os mutirões e a movimentação chamaram a atenção dos moradores. “Começaram

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a fazer perguntas, as crianças queriam ficar o dia todo lá. A gente foi sentindo que a necessidade não era só nossa. Passamos a fazer almoços coletivos nos fins de semana, porque as crianças não iam embora e as mães não as procuravam para comer”, lembra Juninho. Assim criaram o Centro Independente de Cultura Alternativa e Social (Cicas), que, com a participação de voluntários e de outros coletivos de jovens, foi oferecendo atividades cada vez mais variadas à comunidade: capoeira, inglês, recreação, dança do ventre e oficinas de culinária, entre outras. O coletivo começou a partici-

par de projetos de incentivo. Um estúdio foi instalado com verba do programa Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Prefeitura de São Paulo. Mesmo tendo obtido esse apoio oficial, em meados­de 2010 o grupo surpreendeu-se com o aviso de que seria despejado e o prédio, demolido. Mobilizaram-se, fizeram barulho e criaram um clima de pressão que obrigou a prefeitura a recuar – a administração alegava que pretendia fazer uma praça. Hoje, o Cicas tem de funcionar com autorização para permanecer com os trabalhos sociais, que atendem cerca de 300 pessoas por mês, além dos shows realiza-

dos nos fins de semana. Juninho, que também é funcionário público, lembra que quando era criança não podia passar nem perto da área onde está o Cicas. “Era proibido. Agora isso mudou, as pessoas ficam mais tempo na rua, o clima está melhor. A gente também vê diferença no comportamento das crianças.” E, como os moradores que participam do centro, Juninho também mudou: “Nunca tinha feito nada parecido, agora vejo a nossa responsabilidade, passei a enxergar tudo de forma diferente. Aprendi com cada ação, cada planejamento, e hoje sei que o que fazemos também é uma ação política”.


FOTOS DANILO RAMOS

FÉ Gabriel: “Tem sido difícil atrair a juventude”

JAILTON GARCIA

VISÃO AMPLA Danilo (no centro) e o futebol como meio de intervenção: “Discutir política é debater desde o preço do pãozinho até o espaço para o transporte público na cidade”

VISÃO Juninho: “Nunca tinha feito nada parecido, agora vejo a nossa responsabilidade”

segunda­edição do Fórum da Cultura Digital Brasileira. A iniciativa reuniu milhares de jovens que se articulam no espaço virtual das redes sociais para trocar experiências e pensar políticas públicas culturais. Para Rodrigo, o CulturaDigital pensa o Brasil um pouco mais à frente. “Pretendemos usar a mesma metodologia para construir projetos de políticas públicas em outras áreas­, como saúde e habitação”, adianta. O coorde­nador vê no uso das redes sociais na ­internet para fins de mobilização político­social uma fase ainda embrionária. Mesmo­ assim, elas já são uma eficiente ferramenta de aglutinação e divulgação das mais diversas manifestações. O advogado Murilo Gaspardo, de 27 anos, presidente da Juventude do Partido Verde em São Paulo, admite o descrédito de parte da juventude brasileira. “Os partidos precisam fazer o resgate da política como espaço para a reestruturação da sociedade. Eles têm de reconquistar a juventude”, avalia. Dispor de canais que permitam viver a experiência da participação e desfrutar resultados são fatores estimulantes. A atriz, radialista e estudante de Gestão de Cultura Mariana Perin, de 28 anos, coordena,­com 15 outros jovens de diferentes partidos políticos – entre eles Murilo –, o projeto Estação Jovem, em parceria com a Secretaria de Cultura de São Caetano do Sul, em São Paulo. Estruturas para andar de skate, equipamentos musicais para shows, computadores conectados à internet são alguns dos itens que compõem os espaços do centro cultural. Mariana conta que em 2006 foram realizadas audiências para que a população participasse da construção do projeto e abastecesse de propostas o Centro MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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o desenvolvimento nacional, por isso temos de garantir que esse recurso não seja dispersado”, defende Fernando. Filiado ao PSDB, Gabriel Vinícius Carmona Gonçalves, de 16 anos, trabalhou no ano passado em sua terceira campanha política. Para ele, o partido precisa investir mais na aproximação com os jovens. “Tem sido muito difícil atrair a juventude, porque as pessoas, em geral, acham que o PSDB é muito fechado”, avalia. Integrante da Juventude Tucana, Gabriel ressalta que, antes e depois do período eleitoral, o partido costuma organizar, com a ajuda das redes sociais, cursos de formação política. Bandeiras levantadas Alessandra Dadona, da Juventude PeA União da Juventude Socialista (UJS) diz ter cerca de 100 mil ativistas de diversos par- tista, começou a militar há nove anos, aos tidos de esquerda, sobretudo do PCdoB, que 16, e também considera a aproximação um viveram momentos marcantes da história re- desafio. “Eles têm pique para se engajar. O cente do Brasil, como a luta dos “caras-pin- que falta, muitas vezes, é um canal adequado. Precisamos saber dialogar tadas” pelo impeachment do com as diversas realidades. Isso presidente Collor, em 1992, e “Não parece, não pode ser obstáculo, tem as marchas contra as denúncias mas o que de ser um estímulo”, acrescende corrupção ocorridas no go- aprendemos ta. Mayara, do MPL, concorda: verno de Fernando Henrique. a fazer ali é “Não importa se o caminho é O diretor de organização da política pura, longo, a gente vai continuar UJS, Fernando Borgonovi, de andando. Desmotiva mais vi29 anos, afirma que os jovens e no final ver sem fazer nada do que luse envolvem fortemente nas ati- percebemos tar pelo que você acredita, mesvidades planejadas pelos parti- que podemos mo com dificuldades”. dos em parceria com os movi- fazer tudo” Rosana Sousa, secretária mentos sociais. Teo Petri Branco de Juventude da CUT, obserEle lembra que em março do ano passado a União Nacional dos va que hoje as atenções são fragmentadas Estudantes­(UNE) e a União Brasileira de numa ampla diversidade de causas. Não é Estudantes­Secundaristas (Ubes) reuniram- como no passado, quando a resistência à -se para uma manifestação em frente ao Con- ditadura praticamente unificava tudo. “As gresso Nacional, em Brasília, para pedir que bandeiras de luta estão pulverizadas. Para 50% dos fundos criados a partir dos recursos nós, as lutas dos trabalhadores, como a redo pré-sal fossem destinados à educação. “A dução da jornada de trabalho, por exemplo, educação ainda está em descompasso­com não podem estar dissociadas das outras dede Referência da Juventude, que funciona todos os dias na parte superior do Terminal Rodoviário Interestadual Nicolau Delic. “O termo política vem sendo deturpado. Então, quando a gente consegue criar uma forma arejada de engajar, a receptividade entre os jovens é maior. Organizamos uma situação, inserimos os participantes e depois explicamos que aquilo é política”, diz Mariana. “Falar de política pública por meio de arte, cultura e lazer faz com que aceitem o substantivo política outra vez em seu cotidiano.”

O kirchnerismo e os jovens argentinos Aos 60 anos, Néstor Kirchner, marido da atual presidente Cristina, era tido por muitas lideranças políticas de seu país como o grande responsável pela reaproximação dos jovens da participação política. Segundo a socióloga María Soledad Catoggio, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA), as lutas políticas em torno de temas como direitos humanos e antiglobalização voltaram a atrair os mais jovens, depois de um longo período em que as manifestações escassearam – o desalento atingiu seu ápice na crise econômica de 2001. “O kirchnerismo conseguiu retomar a identificação com a juventude e contribuiu para a construção de atitudes políticas”, avalia. “As diversas militâncias, em centros universitários, espaços culturais e movimentos sindicais, se complementam com a participação espontânea dos jovens sem filiação partidária em atos e eventos do Partido Judicialista (peronista)”, afirma a socióloga, para quem o desafio das novas gerações é se reinventar.

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mandas da sociedade, como qualidade na educação, na saúde, nas políticas públicas, por também representarem um futuro melhor para o trabalhador”, afirma. Alessandro Medeiros Pinto, o Preto, de 26 anos, presidente do Centro Acadêmico da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), atua no movimento estudantil, é filiado ao PDT, trabalha na Força Sindical e considera­ baixo o nível de politização da juventude. “A gente tem dificuldade de motivar as pessoas­ que não querem se expor nem assumir­ compromissos”­, lamenta. O secretário da Juventude da Força Sindical, Jefferson Tiego, de 27 anos, também pondera que é complicado atingir os jovens. “A juventude não se manifesta sobre nada. Nós conseguimos dialogar pelas redes sociais, mas não conseguimos provocar a atitude política”, diz. Assim como a CUT, a Força está na luta pela aprovação do projeto de redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais e gostaria de ver os jovens empenhados. “Afinal, isso vai beneficiá-los, pois terão mais tempo para estudar e, assim, conquistar um futuro melhor.”


DANILO RAMOS ISABELA CARRARI/DIVULGAÇÃO

RESGATE Murilo: “Os partidos têm de reconquistar a juventude”

Apenas mudar o mundo

Depois de se envolver com o ativismo estudantil, Rodrigo Rubido, com um grupo de amigos do curso de Arquitetura da Universidade Católica de Santos, tomou gosto pela tarefa de mobilizar gente e tomar atitudes para melhorar o estado das coisas. Uma dessas iniciativas foi um mutirão para restaurar o Museu de Pesca de Santos, abandonado havia anos. “Pusemos em prática a produção coletiva, com o envolvimento de comunidades caiçaras. Logo éramos 150 estudantes, e fomos percebendo o quanto conseguíamos realizar”, lembra. Pouco tempo depois, um grupo de estudantes da América Latina visitou o museu e, empolgado com a metodologia criada pelos alunos de Arquitetura, incentivou-os a disseminar a fórmula. Em menos de um ano, em 1999, nasceu o programa Guerreiros Sem Armas, um curso que capacita jovens para a realização de transformações positivas e sustentáveis em comunidades. Na primeira edição, participaram apenas latino-americanos. No ano seguinte, com a criação da ONG Instituto Elos, as vagas se abriram para jovens de todo o mundo. “Na

TRANSFORMAÇÃO Rodrigo Rubido é um dos fundadores do programa Guerreiros Sem Armas e do Instituto Elos. Para participar, “é preciso sonhar em mudar o mundo”

época, estávamos saindo da universidade. Nossos pais queriam que a gente fosse viver a ‘vida real’, mas não dava mais. Até abrimos um escritório de arquitetura, mas, em paralelo, criamos o Elos”, afirma Rodrigo, hoje com 36 anos e os mesmos sonhos da época da universidade. O programa já teve seis edições e recebeu quase 300 jovens, de 26 países. A metodologia, segundo Rodrigo, tem sete passos: olhar, afeto, sonho, cuidado, milagre, celebração e re-evolução. Os participantes aprendem a identificar características positivas de comunidades carentes de Santos, se integram a elas e, a partir dos sonhos dos moradores, começam a trabalhar em conjunto. O processo de seleção é complexo: além de se comprometer com as atividades propostas pelo instituto, o candidato precisa ter entre 18 e 35 anos, “um sonho e uma visão de mudança, compromisso efetivo com sua

causa e muita disposição e energia para agir”. O custo médio do curso é R$ 9.000 por participante, mas o valor individual repassado é de R$ 5.000. “O fator mais importante é a seleção: é preciso ter espírito empreendedor e sonhar em mudar o mundo. Não queremos que ninguém fique de fora por questões econômicas. Conversamos com os selecionados, vemos quem pode pagar e estimulamos que todos captem recursos, além de nós mesmos”, explica Rodrigo. Na edição de 2011, por exemplo, dos 64 participantes, 40 foram subsidiados, dos quais 23 não pagaram nada, entre eles, moradores de favelas. O estudante carioca de Relações Internacionais Teo Petri Branco, de 24 anos, conheceu a ONG em 2009, quando ouviu um integrante do Elos falar sobre as ações do instituto e sobre o Oásis – jogo comunitário que utiliza a mesma metodologia do programa Guerreiros Sem Armas, em que a população e voluntários constroem em mutirão projetos escolhidos pelos moradores –, que seria realizado em Santa Catarina, em lugares atingidos pelas chuvas. “Viver um Oásis é uma experiência incrível, você repensa muito sua vida, o que você é capaz de fazer. Não parece, mas o que aprendemos a fazer ali é política pura, e no final percebemos que podemos fazer tudo”, afirma Teo, que também esteve na edição do Guerreiros Sem Armas de janeiro deste ano. Cada jovem que participa de um Guerreiros Sem Armas ou Oásis sai multiplicando essa gana de melhorar seu bairro e – por que não? – o mundo. “Começar a acreditar é sempre o primeiro passo”, garante Rodrigo. Colaborou Xandra Stefanel MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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MUNDO

De volta à

África P Fórum Social Mundial, no Senegal, alerta que o outro mundo necessário passa pelo combate às desigualdades, agravadas nos continentes africano e asiático pelos mercados desgovernados e suas crises Por Leonardo Severo 24

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razer é sentir o que os outros não sentem. BMW.” “Novo CLS. Sensualidade e bom senso. Mercedes-Benz.” As publicidades estampadas no voo da TAP que conduz a Dacar sinalizam o avesso do “Outro Mundo Possível”, desejado pelos 50 mil participantes de cerca de 120 países no Fórum Social Mundial (FSM), realizado de 6 a 11 de fevereiro na capital do Senegal. Afinal, quanto resta de humanidade no sistema que cultua um “prazer” que só existe a partir da sua negação a todos os demais? A doentia mensagem explicita a ideologia da oligarquia financeira que controla a política e a economia dos países centrais, ditando receituários aos outros. Assim, países africanos onde 70% da


população­sobrevive da agricultura de subsistência são convertidos em plataformas para exportação de alimentos, transformados em commodities para engordar a especulação. “A verdade é que as transnacionais do alimento avançam sobre­ o continente, comprando parcelas imensas das melhores terras para exportar, em meio à fome e à miséria generalizadas”, afirma Eduardo­Castro, jornalista responsável pela TV Brasil na África, que cobriu o FSM. O escritor moçambicano Mia Couto alerta para “a pressão externa­neoliberal de desresponsabilizar o Estado e reduzir seu papel”, advertindo que o problema é que as sociedades encontram-se “contaminadas” por valores de uma elite endinheirada que vende o país, pois aspira ser outra, distante da sua origem. “Seu sonho mais erótico não é com uma Mercedes, mas com um Mercedes”, ironiza. Procurando construir outro mundo, “mais do que possível, necessário”, milhares de sindicalistas, militantes de movimentos e de organizações não governamentais se deslocaram a Dacar para trocar experiências e debater alternativas. Abriram o fórum com uma passeata turbinada pelo levante popular que pôs ponto final à ditadura de Ben-Ali, na Tunísia, e o encerraram pouco depois de o povo egípcio­ter despachado Hosni Mubarak. Ao longo do evento, cresceu a força da solidariedade a movimentos que continuam chacoalhando os governos déspotas da região, subservientes aos Estados Unidos. O secretário de Relações Internacionais da CUT, João Felício, vê o FSM como um espaço privilegiado para construir ações comuns e alternativas a um sistema alicerçado na lógica especulativa, na multiplicação das bases militares, na devastação do planeta, na exploração de países e povos. “É preciso fortalecer o papel do Estado e radicalizar a democracia para romper com a ditadura do capital especulativo. A hora é de ação articulada entre o movimento sindical e social”, diz. Com essa percepção, a Conferência Sindical Internacional, durante o FSM, não se limitou a debater ações do mundo do trabalho no combate à crise, a políticas de valorização salarial e garantia de direitos, mas também o enfrentamento ao preconceito, à situação dos imigrantes, à emancipação das mulheres e negros, a mais espaços para a juventude.

Globalização ameaçada

FOTOS LEONARDO SEVERO

JUNTOS SOMOS FORTES Africana acompanha debates do FSM. Abaixo, Rosane Bertotti, da CUT, durante a Assembleia dos Movimentos Sociais, defende pressão conjunta sobre os governantes

Num dos momentos mais significativos do encontro de Dacar, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez duras críticas ao FMI, ao Banco Mundial e à Organização Mundial do Comércio (OMC), condenando a “anarquia dos mercados e irresponsabilidade de governantes que não souberam ou não quiseram regulá-los”. De acordo com Lula, há uma consciência cada vez mais forte no mundo quanto ao fracasso do Consenso de Washington. “Aqueles que, com arrogância, nos davam lições sobre como administrar nossas economias não foram capazes de evitar a crise em seus países e no conjunto da humanidade”, declarou, sustentando que as nações antes consideradas periféricas e problemáticas agora são fundamentais para a economia mundial. O ex-presidente afirmou que em apenas 10 anos “dogmas liberais se quebraram” e pediu que a África tome consciência de sua força: “Milhões de pessoas estão se mobilizando contra a pobreza a que estão submetidas, contra a dominação dos tiranos, contra a submissão dos seus países à política das grandes potências”, observou, referindo-se ao exemplo dos países árabes. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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O ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, resgatou o compromisso do governo brasileiro com o Fórum Social Mundial e destacou que é hora de erguer políticas econômicas e sociais entre iguais, e “não entre dominadores e dominados”. Criticando os países europeus por manter políticas segregacionistas, Carvalho apontou a relevância de políticas públicas para que nosso país salde parte da dívida histórica com os afrodescendentes e ressaltou o papel dos movimentos sociais para a construção de agendas positivas. A presença da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Gana e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Moçambique expõe a compreensão brasileira sobre a necessidade de maior integração, de acordo com Carvalho. O ministro-chefe afirmou ainda que a identidade entre clima e solo de algumas regiões brasileiras com a savana africana também possibilita que o Brasil ajude a tornar produtivo o leste do continente e contribua para ações de combate à fome. Para o presidente da Bolívia, Evo Morales, a falência da globalização neoliberal desafia os movimentos sociais a avançar. “Nossa luta é para salvar a Mãe Terra da devastação e da exploração, da política genocida do imperialismo, do neocolonialismo e do capitalismo. Construamos, juntos, o novo mundo possível, o mundo socialista”, enfatizou.

Ponto alto

Impulsionada pela riqueza de testemunhos e vivências, a Assembleia dos Movimentos Sociais, no dia 10, foi um momento de ápice do fórum. O evento, que reuniu 3.000 pessoas no grande anfiteatro da Universidade Cheik Anta Diop, responsabilizou os bancos, as transnacionais e os conglomerados midiáticos pela crise financeira, econômica, alimentar e ambiental. Os manifestantes condenaram a “política neocolonial” de sangria das nações pelas institui-

Patrimônio da humanidade e da solidariedade Classificada como Patrimônio da Humanidade, a Ilha de Gorée voltou à cena no planeta. Não mais como campo de concentração e anúncio de extermínio da raça negra nem como centro de estupro ou aniquilação, mas de irmandade, congraçamento e solidariedade entre os povos. No FSM, a CUT do Brasil, com apoio da Confederação Sindical Internacional (CSI) e da Confederação Geral Italiana de Trabalhadores (CGIL), fez da Casa dos Escravos um palco para o lançamento da cartilha Igualdade Faz a Diferença, Políticas para a Igualdade Racial e Combate à Discriminação. Nada mais simbólico – a casa, atualmente transformada em museu, foi um ambiente de horrores construído pelos holandeses em 1776. De Gorée, bem diante de Dacar, saíram entre 15 milhões e 20 milhões de africanos para servir de mão de obra escrava nos Estados Unidos, no Brasil e

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no Haiti. Calcula-se que 6 milhões não tenham desembarcado com vida do outro lado do Atlântico. Na casa de dois pavimentos, visitada pelo Papa João Paulo II e por Nelson Mandela – que chorou ao ver os estreitos buracos onde eram trancafiados os escravos –, a história emana das grossas paredes e ganha vida com a lembrança das meninas violentadas, dos jovens rebeldes jogados aos tubarões, das famílias dilaceradas pela separação, das tribos dizimadas, dos homens tratados como gado pelos senhores para que pudessem enfrentar a dureza do percurso. A longa viagem era feita em barcos para 250 pessoas, mas abarrotados com 400 – daí se previa a perda de 40% da “carga”, a ser lançada ao mar. A despedida da África era feita na “porta da viagem sem retorno”, embaixo da casa, onde está eternizada, diante do mar, a dor dos que por ali passaram.

Casa dos Escravos, na Ilha de Gorée...


LEONARDO SEVERO

DE COLÔNIA PARA NEOCOLÔNIA É a crítica do comitê que pede anulação da dívida do Terceiro Mundo

ções financeiras internacionais e seu receituário de “ajuste fiscal” e “corte de investimentos”. Diante do recente pacote do governo de Dilma Rousseff, o ministro Guido Mantega, da Fazenda, foi bastante lembrado pela delegação brasileira. Na assembleia, foi observado o aumento das migrações, dos deslocamentos forçados, do endividamento e das desigualdades sociais em função da crise. Os participantes defenderam ação mundial comum em defesa da soberania alimentar, da paz, contra as guerras colonialistas, ocupações e militarização de territórios. Reafirmaram também a necessidade de banir do planeta a violência contra a mulher. A declaração final aprovou ainda apoio e solidariedade aos povos da Tunísia, do Egito e do mundo árabe. Pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) do Brasil, a secretária de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti, defendeu a pressão conjunta sobre os governantes como “elemento-chave” para a afirmação de projetos de desenvolvimento que fortaleçam políticas públicas de inclusão social. A assembleia convocou para 20 deste mês um dia mundial de luta contra a multiplicação das bases militares dos Estados Unidos, de solidariedade com os povos árabe e africano e também de apoio à resistência palestina. O FSM rendeu homenagem a grandes nomes da luta de libertação africana, como Frantz Fanon, escritor e ensaísta da Martinica, que denunciou em sua obra as atrocidades das tropas francesas de ocupação na Argélia, inspirando os movimentos anticoloniais; e Patrice Lumumba, primeiro-ministro da República Democrática do Congo e líder nacionalista. Lumumba foi eleito em junho de 1960, aos 35 anos, quando o país ainda era denominado Congo Belga. Menos de três meses depois, foi deposto por um golpe de Estado. Preso e torturado, teve seu corpo dissolvido com ácido sulfúrico. O assassino e agente colonial Mobutu teve apoio dos Estados Unidos na região entre 1965 e 1997.

LEONARDO SEVERO

CLAIRE SOARES/REUTERS

... foi palco do lançamento da cartilha Igualdade Faz a Diferença...

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TRABALHO

Governo do

BULLYING Com o veto à admissão de professores obesos aprovados em concurso público, o governo de São Paulo agrava um cenário discriminatório e perverso, já presente nas relações sociais Por Cida de Oliveira

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odos os dias, o professor de biologia Francis Daniel Cones percorre os corredores da Escola Estadual Dorti Zambello Calil, de Nova Odessa (SP). Como coordenador pedagógico, está sempre de um lado para outro para dar assistência a colegas e alunos. Em mais de 20 anos dedicados à rede estadual de São Paulo, nunca teve como empecilho para o trabalho a obesidade que desenvolveu ainda criança. “Faço exames todo ano e nunca houve alterações. Minha pressão é normal, assim como as taxas de colesterol e glicemia”, afirma. Francis, que não é o único na escola a estar acima do peso considerado ideal, garante que nos últimos 10 anos nunca faltou por motivo de saúde.

A disposição e a vitalidade de Francis não são raras entre pessoas obesas. Muitas delas – até mesmo com a chamada obesidade mórbida – têm capacidade física até melhor que a de alguns magros. “Embora o risco de diabetes, pressão alta e problemas cardíacos seja maior entre elas, não se pode garantir que todas vão ter tais doenças”, atesta a endocrinologista Claudia Cozer, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). Para o departamento de perícia da Secretaria Estadual de Gestão Pública de São Paulo, porém, não é bem assim. Conforme laudos assinados por seus médicos, os professores obesos aprovados no concurso público de 2010 foram considerados inaptos ao


GERARDO LAZZARI

Pires, na região do ABC paulista, que viu adiado o sonho de ser efetivada. Segundo ela, que está entrando com mandado de segurança para ingressar na rede enquanto o caso não se resolve, só não perdeu o prazo para entrar com recurso porque conseguiu consultar seu prontuário a tempo, no começo de fevereiro, durante a gravação de uma reportagem para um programa de TV. A decisão não conta com o respaldo de

Em janeiro, quando já me preparava para assumir as aulas, me telefonaram da escola avisando que eu tinha sido reprovada no exame médico

forma que acham que é perfeita, acaba descartada.” A surpresa desagradável da reprovação – até então só conhecia casos na iniciativa privada – não a desanima. Vai buscar na Justiça o direito de assumir o espaço conquistado por mérito. “Ainda acredito na educação como agente de transformação.” Em junho de 2009, um professor que viveu o mesmo drama obteve na Justiça uma decisão provisória favorável e, de lá para cá, leciona em uma escola da Grande São Paulo. No mesmo ano, o Ministério Público estadual, por meio da promotoria de inclusão social, abriu inquérito para apurar denúncias de discriminação contra professores obesos. No começo do mês passado, a história foi parar nos jornais e na TV. As câmeras de um programa dominical chegaram a exibir a burocracia enfrentada por professoras que queriam exercer o direito

especialistas no estudo e tratamento da obesidade e começou a ganhar repercussão a partir de denúncias publicadas num site de relacionamentos. Ali, os servidores compartilharam a frustração e a revolta por terem sido impedidos de assumir o cargo depois de aprovados em concurso público que incluía provas teóricas, curso de formação e uma segunda rodada de testes. O edital­do concurso não vedava a participação­de pessoas com obesidade. “Por ironia, a inclusão e o respeito às diferenças eram um tema muito presente nesse curso de formação que fizemos”, observa a professora Fabiana de Souza Azevedo, da capital. “Mas na realidade é tudo muito diferente. Como a gente não se encaixa naquela­

de saber o motivo de ser impedidas de assumir um cargo que, afinal de contas, já vinha sendo ocupado de maneira temporária havia anos. A Secretaria de Gestão não atendeu a Revista do Brasil para explicar, entre outras coisas, quantos são os professores barrados, de onde vem a regra de considerar inapto quem está acima do peso e, ao contrário dos professores, precisam de condição física mais favorável que a dos bandidos que deveriam perseguir. À televisão o diretor técnico do órgão, Valter Haddad, se manifestou. Negou discriminação e foi categórico: “Elas foram reprovadas por serem consideradas doentes”. Esse posicionamento, no entanto, nada

ROBERTO PARIZOTTI

Lídia Eliane de Souza

Como a gente não se encaixa naquela forma que acham que é perfeita, acaba descartada Fabiana de Souza Azevedo

trabalho docente na rede estadual. Todos foram reprovados no exame médico e não puderam ser efetivados, apesar de a nomeação ter sido publicada no Diário Oficial. “Em janeiro, quando já me preparava para assumir as aulas, me telefonaram da escola avisando que eu tinha sido reprovada no exame médico”, conta a professora de matemática Lídia Eliane de Souza, de Ribeirão­

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RODRIGO ZANOTTO

TUDO BEM A obesidade nunca foi obstáculo para o desempenho das funções do coordenador pedagógico Francis

Intolerância inclui miopia e depressão A discriminação do governo paulista não se restringe aos obesos. Há denúncias de professores que não puderam ser efetivados porque são míopes ou por terem sofrido de depressão. Para especialistas e juristas, essa filosofia – que se assemelha à de uma companhia de seguros que encarece ou recusa uma apólice depedendo do “risco” que o segurado oferece – é preconceituosa e imoral. Para a Apeosp, é também ineficaz. “Enquanto persistirem os baixos salários, o desestímulo, a superlotação das salas de aula e escolas precárias, os professores continuarão adoecendo”, diz Maria Izabel Noronha, presidente da entidade. A Secretaria Estadual de Gestão Pública diz, em nota, que o candidato pode solicitar vistas de seu prontuário e entrar com recurso contra o que considerar erros e injustiças. Uma nova junta médica reavaliará a perícia, mas caberá ainda novo recurso ao secretário de Gestão Pública.

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tem a ver com o estado de saúde dos servidores. “O distúrbio não incapacita ninguém. É discriminação mesmo”, ressalta Claudia Cozer, para quem o tratamento injusto e desigual revela a preocupação do governo estadual unicamente com o ônus que pode vir a ter caso contrate pessoas sujeitas a adoecer. O episódio é visto também como mais um pilar de uma política educacional pragmática lastreada em bônus e prêmios. “É a busca por resultados a todo custo, que pressiona, adoece e descarta os professores”, opina Heleno Araújo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Embora ainda não tenha visto iniciativa semelhante em outra parte do país, a entidade não descarta a possibilidade de o estado de São Paulo fazer escola e a ideia se espalhar. “Enquanto a sociedade discute alternativas para prevenir e combater o bullying nas escolas, que afeta alunos e profissionais da educação, vítimas da perseguição constante de colegas de classe, de trabalho e de superiores, o estado promove outra forma de bullying ao potencializar o preconceito”, compara Maria Izabel Azevedo Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp). “Por que gordo não pode dar aulas?”, questiona o jornalista Ricardo Kotscho em seu blog Balaio do Kotscho. Em seu desabafo, publicado na época em que a truculência do governo paulista veio à tona, ele conta que o episódio da reprovação dos professores obesos o fez lembrar um caso parecido, quando era editor de um grande jornal paulistano. Um repórter muito bom foi vetado no exame médico porque seus dentes estavam em péssimo estado. Mesmo concordando, Kotscho argumentou que o sujeito era ótimo profissional e só poderia cuidar da saúde bucal se fosse contratado. Como faria isso se estava desempregado e sem dinheiro? O tal repórter foi contratado e tornou-se um grande jornalista.

Leia mais no site De acordo com reportagem de Suzana Vier, da Rede Brasil Atual, a médica e pesquisadora da Fundacentro, Maria Maeno, critica a prática do governo paulista. http://bit.ly/aberracao Na RBA, Letícia Cruz ouviu também a opinião de uma consultora de RH da Catho, especializada em intermediação de mão de obra: “É discriminatório”. http://bit.ly/discrimina


Atitude

Por Cida de Oliveira. Foto de Rodrigo Zanotto

Nem o céu é o limite

A

té o final do ano eles vão aos Estados Unidos para o lançamento de um satélite que estão acabando de construir. O aparato ficará em órbita por três meses e é resultado de uma iniciativa que, de tão audaciosa, foi mencionada num artigo da edição de janeiro da revista americana SatMagazine, especializada no assunto. Por incrível­que pareça, não se trata de universitários ou pesquisadores – e sim de crianças de 11 anos, moradoras de comunidades pobres, estudantes da Escola Municipal Tancredo Neves, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. “Se ainda nem terminaram o ensino fundamental e já estão para lançar um satélite, imagine a serenidade que terão para enfrentar desafios futuros”, entusiasma-se o professor de matemática Cândido Osvaldo de Moura. Com 28 anos dedicados à es-

cola pública, ele não mede esforços para mudar a realidade que tanto o incomoda, como o ensino científico no Brasil – no qual se inclui a matemática. “Os alunos têm de entrar em contato direto com a ciência. Só conhecendo a natureza é que vão poder usar a tecnologia para domá-la e, assim, vencer os grandes desafios da humanidade.” Para mostrar que isso é possível, Moura envolveu direção, pais e professores, introduziu aulas de eletrônica e informática, foi em busca de apoio técnico no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e, na USP de São Carlos, captou patrocínio para a importação de componentes e para a viagem à base de lançamento, na Califórnia (EUA). Sabia que nada seria fácil. Só não apostava na burocracia dos dois países como grande entrave para essa aventura pelo conhecimento – que, pelo que tudo indica, está apenas começando. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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MÍDIA

Ativistas na vida

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Mulheres que trazem em sua trajetória a luta pelo reconhecimento de sua voz e seu valor dão o ar da graça na blogosfera Por Letícia Cruz e Virgínia Toledo

ANDREA GRAIZ

“T

odo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às 6 horas da manhã...” O verso de Cotidiano, de Chico Buarque, retrata a rotina de um casal nos anos 1970 e poderia traduzir a vida dessas mulheres. Elas acordam cedinho, algumas levam filhos à escola e, depois, mãos à obra. Passividade, porém, não é com elas. São ativistas, feministas, femininas, blogueiras. As novas tecnologias abrem portas. Basta haver conexão, computador, ou celular, e boas ideias. E essas mulheres têm muitas. Para elas, a educação e o acesso à informação vão além das paredes da escola e do papel da família – o espaço para o “embate” é ilimitado. Maria da Conceição Oliveira é dona do blog Maria Frô (www.mariafro.com.br). Frô vem de Afrodite, deusa grega do amor, capaz de deixar maluco o próprio Zeus. Mitologias à parte, a paulista nascida em Santos se formou em História pela USP e sabe tudo de educação e cultura. Ao receber a reportagem, nota-se que a polêmica sobre a internet vir a acabar com o livro impresso não tem espaço em suas estantes: “Minha casa é tomada por livros. Estão por todos os lados, não se assustem!” O colégio da filha é perto de casa, mas o trânsito... “É infernal! Levar uma hora para ir até ali e voltar é sinal de falta de política pública.” Pronto, pauta para o blog, que analisa o contraste entre o mundo imaginário da mídia tradicional e o real. A facilidade em se comunicar, segundo ela, vem da indignação: “Quando vejo o cotidiano grotesco, preciso externar”. Quem navega pelo blog de Maria Frô encontra um estilo didático, sem firulas. Assim também no Blog da Mulher, dentro do site Vi o Mundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, onde Frô assina Conceição Oliveira. Ali, questões como preconceito racial e de gênero viram grandes discussões. “É preciso ter preocupação com o leitor e deixar de pensar que tudo é óbvio”, afirma. “Tento usar minha função de educadora para desenvolver a leitura de uma maioria que não exercita isso.”

A imagem da mulher na mídia Claudia Cardoso, do blog Dialógico, que aborda política e o cotidiano no Rio Grande­do Sul, não o alimenta com regularidade­desde que foi convidada a trabalhar na comunicação do governo estadual, em janeiro, mas considera-se uma militante em atividade pela democratização da informação, privilegiando o recorte feminista. “Existem grupos de discussão de blogueiras que fazem o trabalho­de questionar a imagem da mulher­na mídia, a violência contra a mulher e tantos outros desafios importantes. Ferramentas como a internet ajudam a manifestar nosso pensamento”, resume. Está ali, pronto para ser frequentado a qualquer momento, esse cada vez mais explorado campo de batalha.

Feminina, feminista

A jornalista Ruth Alexandre também anseia pôr a boca no mundo. Acorda às 6, leva o filho para a escola, volta e gruda no computador para abastecer seu blog Fala Povo. Produz material próprio e links para o que considera importante. “Eu já estava cansada daquele jornalismo plastificado.” Ruth conta que sempre se colocou em patamar de igualdade, tanto no meio jornalístico como com autoridades do sexo masculino. “Eu não abaixo a cabeça para ninguém. Todo mundo sabe que pode vir quente, porque se precisar aqui o berimbau toca mesmo”, brinca. Ela educa seus dois meninos para, quando estiverem convivendo com uma mulher, tratá-la em pé de igualdade. “ ‘Não esqueçam que sua mãe é mulher, sua avó é mulher e você vai ter filhas’. Digo isso para que eles tenham absoluta certeza de que merecemos o maior respeito”, ensina. “Feminina a gente já nasce um pouco e, ao resto, somos moldadas”, afirma, referindo-se ao que chama de processo de “adestramento” a que a indústria cultural, do consumo e das relações sociais ainda submetem as mulheres. Na época em que a questão do aborto ocupou o centro das atenções na campanha eleitoral, Ruth escreveu um post sobre uma experiência própria. “Tive um aborto espontâneo e fui para o hospital, quase ao passo de morrer. Lá, uma mulher me interrogou como se eu fosse criminosa e como se tivesse feito aquilo de propósito”, lembra, observando como a cultura machista enraizada não se expressa somente pelos homens. “Para tentar desestruturar a candidatura de uma mulher à Presidência, tentaram de tudo”, indigna-se. “O aborto é uma questão feminina e feminista e, incontestavelmente, tem de ser decidida por nós mulheres.” E que venha o debate. Manter blog é estar pronto para conviver com admiradores e detratores. E conviver com os contrários é um exercício que agrada Conceição Oliveira. “Procuro argumentar e questionar essas pessoas do porquê de determinado pensamento, debater e sugerir a elas algum tipo de reflexão.”


na rede

Batalha contra o tempo

MAURICIO MORAIS

ae

Para Andrea Dip, a vida de blogueira-comunicadora tem de se encaixar em outra realidade não menos importante, a de ser mãe. Desde a época da faculdade, ela escrevia muito sobre direitos humanos, direito da mulher, da igualdade, da liberdade e principalmente sobre os costumes da sociedade. Foi quando a vida antecipou-lhe uma nova vocação: a gravidez ainda no último ano de Jornalismo, e o desafio de conciliar os ofícios de “recém-mãe” e recém-formada. “Quando a gente engravida, a sociedade vem com aquela história da mulher em estado de graça, de perfeição, mas eu vivi aquilo e sabia que não era bem assim. Não é fácil administrar carreira, filho e casa. Tudo isso é adaptação, e não uma condição”, afirma. Com o filho crescendo e a rotina se intensificando, um amigo sugeriu que ela dividisse os sabores e dissabores de seu dia a dia com outras pessoas. Foi aí que surgiram as histórias inusitadas de Mães em Surto, uma coluna criada dentro do blog Nota de Rodapé. As crônicas de Andrea seguem à risca as desventuras que as mães vivem e também passeiam por temas sugeridos por amigas que passam pela mesma empreitada. Com o trabalho fixo num grande portal, os “frilas” para completar o orçamento, o cuidar da casa e da “agenda” em torno do filhote, é difícil manter a regularidade dos posts. Mas pelo menos a página está lá, sempre pronta para o momento em que a inspiração, disposição e disponibilidade se encontrem no mesmo lapso de tempo.

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O aborto é uma questão feminina e feminista e, incontestavelmente, tem de ser decidida por nós, mulheres

MAURICIO MORAIS

Ruth Alexandre (www.falapovo.com)

Não é preciso busca minuciosa para chegar a dezenas, centenas, milhares de páginas na internet sobre moda, comportamento, beleza, algumas utilidades e outras tantas futilidades. Mas aos poucos, sobretudo na blogosfera, surgem as mulheres que querem aproveitar o tempo e o espaço para fugir dos estereótipos que acentuam uma desigualdade a ser superada. “Tenho uma filha que joga futebol melhor que muito homem. Mulher não precisa falar só sobre um assunto. Pode explorar outras coisas de acordo com o humor que estiver no dia”, afirma Conceição Oliveira.

Além do gênero

A jornalista Conceição Lemes, de tão assídua frequentadora e comentarista do blog Vi o Mundo, passou a sugerir e produzir pautas. A primeira foi sobre o Cansei – movimento hostil ao governo Lula que surgiu em 2007 – ter incluído indevidamente o Conselho Regional de Medicina de São Paulo entre seus integrantes. Outra

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abordava a campanha alarmista de grandes vros, séries de reportagens etc. “O blog eu jornais para que a população se vacinas- faço por prazer.” se em massa contra a febre amarela. E asO rigor é o principal ingrediente de suas sim sua participação foi crescendo, até que reportagens. “Não faço jornalismo opinarecebeu o convite formal de tivo, artigo. Entrevisto especialistas, gosto de escarafunLuiz Carlos Azenha para que No Orkut, uma char. Com todo esse tempo mantivesse sua coluna sobre dessas pessoas fazendo saúde, fui trilhando saúde. que já era um fontes éticas e competenRepórter especializada na conhecido tes, às quais recorro sempre. área há 29 anos, com oito liagressor Leio, checo, ‘tricheco’, vou vros publicados e mais de atrás. Em saúde você não 20 prêmios, Conceição en- disse que se pode errar. É muito sério.” controu no blog um espaço descarregasse Além de atuar nessa área, de liberdade. “O Vi o Mun- uma arma em no último ano Conceição do me possibilita fazer esse mim ninguém ampliou sua atuação no Vi jornalismo de verdade, sé- ia sentir minha o Mundo, com reportagens rio, o jornalismo em que falta investigativas. acredito. Em outros veícuLuísa Stern Casada e sem filhos, ela los, as reportagens que faço (culturacd.blogspot.com) dedica boa parte do seu dia não sairiam. Essa é a minha forma de estar na vida. Prefiro vender ca- à blogosfera, conversa com fontes, confere chorro-quente a fazer um jornalismo em informações, insiste por entrevistas. “Mique não acredite”, afirma. Sua fonte de ren- nha vida é normal, ando, leio, vou ao cida são projetos especiais ligados à saúde, li- nema, cuido dos gatos. Antes eu tinha ca-


RODRIGO QUEIROZ

Bryan Carrasco, jogador da seleção sub-20 do Chile, estava desesperado. Sua equipe perdia o jogo que decidia vaga para o Mundial. Nosso herói resolve ir para o tudo ou nada e protagoniza a simulação mais bizarra que já vi em um campo (http://bit.ly/na_cara_dura)

MAURICIO MORAIS

Thalita Pires, no www.futepoca.com.br

Vejo no twitter um link de mais um vídeo do garoto exibicionista disponível no Youtube... O garoto explicava pela enésima vez que não é pedófilo, que é ‘de menor’, que a garota consentiu, que tudo era jogo etc. etc.” Conceição Oliveira, no www.viomundo.com.br/blog-da-mulher

chorros... Adoro bichos.” Seu sonho de jornalista full time nada mais é que “continuar exercendo a profissão de forma responsável”. A blogosfera também é espaço para furar o cerco do clube do Bolinha. Futebol, por exemplo, é assunto de menina, sim, senhora. A jornalista Thalita Pires, que não tem como objetivo de carreira escrever sobre o esporte, leva essa paixão para o blog Futepoca – Futebol, Política e Cachaça, que já ganhou prêmio em 2007. Thalita trabalhou nas revistas Fórum e Época e no Jornal da Tarde, decidiu ir para Londres em 2008 com o marido para estudar e voltou de lá em 2010 com um mestrado em Planejamento Urbano. “Tema mais distante ainda do futebol”, pontua, mas no qual pretende se estabelecer profissionalmente. São-paulina, com uma “quedinha pela Portuguesa”, ela não se queixa de já ter recebido comentários preconceituosos por seus textos no Futepoca. “Sempre que há discordância de opinião os leitores tratam de argumentar, não de falar que eu deveria estar na cozinha.” E, se há alguma ousadia no fato de meninas circularem com desenvoltura em ambientes tipicamente masculinos, a gaúcha Luísa Helena Stern vai ainda mais longe: nascida menino, ela decidiu corrigir esse capricho da natureza assumindo de corpo e alma o seu universo: “Sou uma mulher múltipla”, define-se. Transexual, Luísa é funcionária pública e divide seu tempo entre diversas tarefas, incluindo manter o blog Cultura Crossdresser, para defender o direito LGBT – de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Seu engajamento virtual tem o objetivo de disseminar uma reflexão da condição do homossexual e de tratar o tema com naturalidade, com discurso igualitário. “Já sofri muito preconceito, inclusive das redes sociais.” Antes de tomar a decisão e se tornar transexual, a blogueira era crossdresser – pessoa de um sexo que se veste e age como se fosse­ do sexo oposto. “Vivi muito tempo nessa­ condição. Os crossdressers são pessoas­ escondidas­do mundo real. No meu caso, recorria ao virtual para participar de grupos e clubes sobre crossdresser”, conta. “Meu blog foi criado por isso.” Depois que Luísa assumiu sua identidade feminina, outros assuntos vieram à tona, como o combate à homofobia, o ativismo para o direito dos transgêneros e o combate a toda forma de discriminação. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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PERSONAGEM

A rainha Maria Bonita

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ários eventos estão programados no Brasil para celebrar o centenário de Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, primeira mulher a participar de um grupo de cangaceiros. Nascida em Glória, atualmente Paulo Afonso (BA), em 8 de março de 1911 e morta 27 anos depois, em Poço Redondo (SE), ela ainda divide opiniões entre pesquisadores se foi uma mulher valente e guerreira ou não mais que a mulher do “Rei do Cangaço”, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. “Maria Bonita formou com Lampião o casal mais famoso de cangaceiros. Ela não defendia nenhuma causa específica, assim como não tinha inclinações políticas. Acompanhou o marido por paixão”, diz João de Sousa Lima, autor dos livros A Trajetória Guerreira de Maria Bonita, a Rainha do Cangaço e Moreno e Durvinha, Sangue, Amor e Fuga no Cangaço. Para Lima, membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), o simples fato de ela se juntar a um grupo de homens que viviam à margem da lei bastava para chocar a sociedade de então. “Ela não teve a intenção de se tornar exemplo para ninguém. Mesmo assim, quebrou todas as regras e parâmetros de uma época totalmente machista e dominada pelo homem rude, bravo, violento. Até os dias atuais buscamos entender o que passou pela cabeça daquela menina de apenas 18 anos”, acrescenta. Aos 15 anos, Maria Bonita se casou com um sapateiro, com quem tinha constantes brigas. Três anos mais tarde, conheceu Lampião, então com 31 anos. No início, ela continuou morando na fazenda dos pais até ser chamada pelo novo marido para integrar o bando de cangaceiros liderado por ele. Ela permaneceria entre eles por oito anos, até que, junto com o marido e mais oito cangaceiros, foi assassinada numa emboscada da polícia armada oficial, na Grota de Angico, em Poço Redondo (SE), em 28 de julho de 1938. Lampião e Maria Bonita tiveram três filhos, Expedita Ferreira Nunes, a única ainda viva, e os gêmeos Arlindo e Ananias Gomes de Oliveira. “Eu me sinto muito gratificada pelas ho-

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A personalidade da “Rainha do Cangaço”, que completaria 100 anos neste 8 de março, ainda divide historiadores. Mas, ao romper as regras de uma época dominada pelo homem rude, o mito tem sua memória preservada na cultura popular Por Guilherme Bryan

REBELDES Lampião, Maria Bonita e oito cangaceiros foram assassinados em 28 de julho de 1938. As cabeças foram cortadas e expostas aos sertanejos na escadaria da Prefeitura de Piranhas, em Alagoas

menagens prestadas a minha mãe, uma mulher de fibra que teve a coragem de entrar no cangaço muito jovem e que foi morta tão cedo. Hoje em dia, nenhum homem tem a coragem que ela e meu pai tiveram, tanto que eles nunca foram covardes como os homens engravatados de hoje que nunca são punidos”, diz Expedita. Aos 78 anos e vivendo em Aracaju (SE), ela conta que teve poucas vezes contato com os pais, apenas quando levada da fazenda onde morava ao esconderijo pelo pai de criação.

Trajetória

Esse centenário é comemorado desde o início do ano passado e deve continuar por todo este ano em Paulo Afonso. Entre 23 e 26 deste mês, ocorrerá ali um seminário internacional, com apresentações folclóricas, peças, lançamentos de livros e exposições fotográficas e de pertences usados pelos cangaceiros. Um dos maiores escritores e pesquisadores do cangaço, o francês Jack Dewitte, participará do evento. “Resolvemos comemorar essa data com o intuito de levar para as gerações vindouras os fatos acontecidos em nossa cidade­. Foi aqui que Lampião arregimentou o maior número de cangaceiros, 47 homens e mulheres. Aqui ele também viu morrer em combate seu irmão mais jovem, Ezequiel Ferreira”, conta Lima. Em Paulo Afonso fica a casa que pertenceu à família de Maria Bonita, transformada no Museu Casa de Maria Bonita, que tem como funcionária a sobrinha-neta da figura histórica, Adenilda Alves. Ali estão disponíveis fotografias tiradas entre 1935 e 1938. Outra opção de passeio é a denominada “Rota do Cangaço”, com quatro horas de duração, desde a travessia pelo leito natural do Rio São Francisco até Poço Redondo (SE), quando começa a trilha para a Grota de Angico. Nem todos os pesquisadores concordam com o papel libertário e revolucionário exercido por Maria Bonita. O escritor Antônio Amaury Corrêa de Araújo, que se dedica ao tema há mais de 60 anos e já publicou dezenas de livros, está para lançar mais um, Maria Bonita, a Mulher de Lampião. “A imagem que se traça das mulheres,


FOTOS ARQUIVO JOÃO DE SOUSA LIMA

Maria Bonita, com os cães Ligeiro e Guarany

Maria Bonita em especial, atirando, assaltando, cobrindo as fugas dos companheiros, é uma fantasia que escapa muito ao real. Trata-se de uma balela inadmissível para pesquisadores sérios”, afirma Araújo. O escritor faz uma ressalva para Dadá, mulher de Corisco, como única cangaceira, no sentido lato. As demais, incluindo Maria Bonita, seriam simplesmente a companhia feminina. “Tanto é que, quando os cangaceiros participavam de tiroteios ou encontravam com a polícia, as mulheres eram colocadas num local seguro, sob a proteção de cinco homens. Jamais se envolviam em combate. A exceção foi Dadá”, conta. Heroína ou não, Maria Bonita faz parte de um dos momentos mais pesquisados, estudados e descritos da história do Brasil. Não é à toa que, apenas no cinema, há clássicos como O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, premiado em Cannes, na França, como melhor filme Heroína ou de aventura; Deus e não, Maria o Diabo na Terra do Sol (1964), de GlauBonita faz ber Rocha; e Baile parte de Perfumado (1997), um dos de Lírio Ferreira e momentos Paulo Caldas, que mais relata a história do pesquisados, libanês Benjamin estudados e Abrahão, mascate descritos da e autor das únicas imagens de Lamhistória do pião e Maria BoniBrasil ta. Até Os Trapalhões toparam brincar com o tema em O Cangaceiro Trapalhão (1983), dirigido por Daniel Filho. Ainda há várias testemunhas vivas e capazes de relatar o que aconteceu de fato nesse momento tão retratado e folclorizado da história do Brasil. E, mesmo que algumas pessoas ainda vejam os cangaceiros como bandidos e detentores de má índole, há imagens de Maria Bonita, Lampião e os outros em praticamente todos os lugares do Nordeste. A história oral ainda é muito viva e latente. “Podemos encontrar muitas pessoas que participaram ativamente do ciclo do cangaço. Por respeito ao nosso povo e suas raízes culturais, e aos seus laços de família envolvidos nesse contexto social, é que estamos comemorando essa data e incentivando o lançamento de obras literárias, xilogravuras, cordéis, danças, teatro e cinema”, ressalta Lima. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

Mais cruéis que a seca Construídos no Ceará para manter os flagelados longe da capital, os campos de concentração prometiam trabalho, comida e atendimento médico. Ali, os sertanejos encontraram fome, sede, doenças e morte Por Cida de Oliveira

A

fé e a emoção unem os mais de 6.000 romeiros, quase todos vestidos de branco. Partem da igreja matriz do município de Senador Pompeu e percorrem mais de três quilômetros de estrada de terra até a capela do Cemitério da Barragem. Acendem velas e rezam pela alma dos enterrados ali. Acreditam que sejam intercessores de graças alcançadas. A procissão ocorre há 28 anos e mantém viva a memória de uma das páginas mais cruéis da história brasileira: a morte­ de milhares de flagelados da seca de 1932 em campos de concentração­construídos­no estado pelo governo cearense­. O governador Roberto Carneiro de Mendonça, interventor nomeado por Getúlio Vargas, atendia aos in-

FLAGELO SEM PERDÃO Caminhada da Seca, realizada há 28 anos em memória dos mortos de 1932: nos campos de concentração as pessoas morriam de fome, cólera ou maustratos

ALEX PIMENTEL

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teresses da elite política e coronelista da ocasião. E Vargas precisava de apoio ao processo que levaria ao Estado Novo, posto em andamento a partir do golpe­de 1930. A 270 quilômetros de Fortaleza, Senador Pompeu abrigou um desses campos. Entre 1932 e 1933, mais de 16 mil pessoas foram confinadas nos casarões do canteiro de obras da barragem do açude Patu – cuja construção começou em 1919, paralisada em 1923, foi retomada em 1984 e, finalmente concluída em 1997. O tombamento dos casarões em ruínas, bem como da própria procissão, é uma luta antiga. “Preservá-los é perpetuar a lembrança dos mais de mil enterrados aqui e de todas as vítimas de outros campos, da seca, da fome, de doenças e do

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descaso do governo”, diz o advogado e escritor Valdecy Alves, um dos articuladores do Fórum Popular do Patrimônio Cultural e Ambiental de Senador Pompeu. A professora Kênia Sousa Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), conta que a ideia desses campos surgiu bem antes de 1932. Um deles foi construído em Fortaleza em 1915, ano marcado por longa estiagem. Mencionado no romance O Quinze,

MARA PAULA DE ARAÚJO/DIVULGAÇÃO

Massacre Quatro anos depois do fim de seu campo de concentração, Crato, no interior do estado, voltou a ser palco de violência contra os direitos humanos. Segundo historiadores, as casas localizadas no Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foram destruídas por forças do Exército e da polícia do estado. A comunidade não resistiu, como em Canudos. Os militares metralharam de aviões o pouco que sobrou e, em terra, com fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, liquidaram os sobreviventes. Cerca de mil moradores morreram e foram enterrados em vala comum. Alguns meses depois, foram encontrados 16 crânios de crianças numa área da Chapada do Araripe. A SOS Direitos Humanos move ação civil pública contra a União e o estado do Ceará. A ação cobra do poder público: a entrega dos documentos de identidade dos mortos, os documentos secretos da ação militar, a localização da vala comum, a lista de todos que participaram da ação criminosa, exames de DNA dos restos mortais para identificação e enterro digno e indenizações a sobreviventes e seus descendentes. A ONG defende ainda a inclusão do episódio em livros de História de todo o país. O sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, chefiado pelo beato negro José Lourenço, representou para as elites cearenses um “antro de fanatismo e comunismo primitivo”. Já para seus exmoradores­, era um reduto de “bondade cristã”. O Caldeirão tinha no trabalho coletivo e na religiosidade pilares da organização social. O fruto do trabalho era dividido conforme a necessidade de cada família, constituindo-se assim numa economia alternativa. Mais que “fanáticos desprovidos de qualquer organização racional”, seus habitantes promoveram uma política de convívio com a natureza, desfrutavam de água e alimentos com fartura. A autonomia da comunidade era um modelo ameaçador para as relações de exploração vigentes.

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ESCRAVIDÃO Restos do campo de Senador Pompeu: os sertanejos, atraídos por promessas de trabalho, abrigo e saúde, trabalhavam por comida

de Rachel de Queiroz, o espaço já tinha o objetivo de poupar as elites da capital cearense do incômodo convívio com retirantes sem trabalho, famintos e doentes, que para lá iam em busca de meios de sobrevivência sempre que a estiagem se prolongava. Segundo a professora, o sanitarista Rodolfo Teófilo (1853-1932), grande cronista da seca, relatou que em 1877 cerca de 110 mil sertanejos deixaram a própria casa com a esperança de vida em Fortaleza. Pelo menos 400, porém, eram encon-

trados mortos todo dia nas ruas da cidade. Para proteger a elite da capital dos “dissabores” dessa experiência migratória, o governo cearense desenvolveu o primeiro projeto de campos de concentração em 1915. O governador era Benjamin Liberato Barroso e seu vice, o padre Cícero Romão Batista, mas as oligarquias políticas cearenses eram lideradas pelo senador José Gomes Pinheiro Machado. Não faltavam inspiração e apoio para o método higienista das elites, uma vez que era forte a presença

de ligas religiosas e até mesmo operárias de inspiração conservadora.

Isca

Com a seca de 1932, aprimorou-se o projeto de 1915. Foram construídos sete campos. Em Fortaleza havia dois, para confinar retirantes que lá já estavam. Ambos chegaram a ter 1.800 presos. Os de Crato e de Senador Pompeu receberam mais de 16 mil cada um; Quixeramobim, 4.500; Cariús, 28 mil; e Ipu, cerca de 6.500. “Os sertanejos eram atraídos

Mãos e rosto enrugados, olhar profundo, voz miúda, corpo castigado. Aos 84 anos, uma das últimas sobreviventes do campo de concentração de Senador Pompeu, Luiza Pereira, dona Lô, ainda recorda passagens angustiantes do cativeiro erguido no sertão do Ceará, comparado aos campos nazistas. Única herdeira viva dos oito filhos do casal de agricultores José Pereira e Josefa Bezerra, todos de Tauá, dona Lô continua solteira, morando em uma casa modesta próxima ao centro dessa cidade do sul do estado, outrora próspera devido à infraestrutura ferroviária, no corredor de escoamento do “ouro branco”, como eram conhecidas as plumas de algodão colhidas na região. A passageira do “curral do Governo”, como também eram conhecidas as áreas de agrupamento de retirantes espalhadas pelo Ceará naquele ano de 1932, ainda fala com lucidez e firmeza sobre a época. Ao registrar o sofrimento dos pais e da irmã, nascida e morta no campo onde mais tarde se ergueu a barragem do açude Patu, revela o trauma que a fez abdicar de se casar e ter filhos. “Tenho muita coisa pra dizer não. Minha mãe não deixava nós desgrudar dos pé dela. Era muita gente. Ela tinha medo de alguém carregar eu e meu irmão. Do resto todo mundo já sabe. Perdi a conta de quantas vez já repeti tudo isso. O sofrimento foi medonho... Quando chegamos neste lugar, após caminhada de 16 léguas, deitamos ali mesmo, no chão. Exaustos, sem ter o

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FOTOS ALEX PIMENTEL

Lembranças do holocausto


por promessas de trabalho, alojamento, alimentação e serviço de saúde”, afirma Kênia Rios. Mas a multidão era concentrada em espaços precários. Tinha a cabeça raspada, usava roupas feitas com sacos de farinha e trabalhava praticamente em troca de comida. Os homens lidavam principalmente com marcenaria e construção de tijolos, as mulheres na fabricação de sabão e as crianças, que não tinham escola, podiam trabalhar e aprender artes e ofícios. Faltavam comida, água e remédios. Soldados armados detinham aqueles que tentavam fugir. Os campos mantinham locais para punir e encarcerar os rebeldes. “Atestados de óbito mostram que no campo de Ipu a fome e doenças como cólera chegavam a matar oito pessoas por dia”, destaca a historiadora. Registros oficiais contabilizam mais de 60 mil cearenses mortos nesses campos. Estudiosos creem que morriam mais pessoas em função deles que da seca. “O flagelo era maior lá dentro, com tamanha concentração de gente doente. Por maior que fosse a seca, em liberdade o sertanejo poderia caçar ou se alimentar de frutos silvestres em muitas regiões, como no Cariri (região do

Dona Lô (à esquerda) e dona Carmélia: “sofrimento medonho”

Ceará)”, ressalta­Valdecy Alves. rém, retornaram. Em Fortaleza, a maioria fiO advogado Otoniel Ajala Dourado, da cou e deu início a uma das maiores favelas, ONG SOS Direitos Humanos, afirma que a Moura Brasil, em Pirambu. “A violência os flagelados eram aprisionados por ser po- desses campos reflete os primeiros anos da bres, forçados a trabalhar para prefeituras, República, a crueldade com os pobres e com sem remuneração, e torturados por se rebe- os negros”, diz Kênia Rios, autora do livro lar. Desde 2009 a entidade move uma ação Campos de Concentração no Ceará – Isolacivil pública contra a União e mento e Poder na Seca de 1932, o estado do Ceará por danos Soldados que inspirou documentários e morais às vítimas do crime, armados peças teatrais. Para a pesquiimprescritível, de lesa-huma- detinham sadora, o episódio não findou nidade e genocídio. A indeni- aqueles que em 1933. Ainda há projetos zação pedida é de R$ 500 mil tentavam fugir. políticos que levam às pratipara sobreviventes e famicas de repressão, humilhação e Os campos liares dos mortos. No messegregação. “Exemplos são os mo ano, o juiz substituto da mantinham conjuntos habitacionais cons6ª Vara da Justiça Federal no locais para truídos em cidades-dormitóCeará extinguiu a ação sem punir e rio para afastar os pobres do julgar seu mérito. Nova ação encarcerar os usufruto dos bens culturais e foi protocolada e está para ser rebeldes de lazer oferecidos pelas cidajulgada. A denúncia foi apredes. Desestimulados pelo cansentada também à Comissão Internacional saço da semana de trabalho, pela distância e dos Direitos Humanos, em Nova York. pelo transporte ruim, os mais humildes acaEm 1933, quando as chuvas voltaram a bam deixando para os ricos o que as cidades cair, os campos foram desativados e os so- oferecem de melhor.” breviventes deveriam ser encaminhados de volta aos locais de origem. Nem todos, po- Colaborou Alex Pimentel

que comer, minha mãe ferveu água para passar a fome. Era apenas o começo dessa miséria que nunca esqueci... Desesperado, meu pai resolveu carregar a gente de Tauá para cá (Senador Pompeu) à procura do que comer e beber. Mas se estava ruim ficou pior.” Carmélia Gomes Pinheiro, de 87 anos, foi criada em Senador Pompeu, na Vila da Comissão, onde ainda mora. Seu pai, Antônio Gomes da Silva, foi vigia noturno do campo. Ela tinha 8 anos quando começou a ver famílias chegando de todos os cantos do sertão. Pouco saía. Os pais ficavam preocupados. Das colinas do outro lado da vila sabia apenas de imaginar e de ouvir as descrições da irmã, 12 anos mais velha, que às vezes doava alimentos aos flagelados. “A maioria era desviada. Medicamentos, chegavam poucos para atender a tantos doentes. Roupas não eram enviadas. Quando as vestimentas já estavam aos trapos, os corpos eram cobertos com sacos de mantimentos. Muitos sacos eram costurados e transformados em camisões. E era assim que a maioria era sepultada. Com receio de arrancarem o fígado dos mortos quando eram jogados nas valetas do cemitério, muitas famílias enterravam seus mortos no mato, escondido”, conta. Carmélia lembra um momento marcante naquele ano da concentração, quando caminhando pelo campo viu corpos ainda não enterrados. Ficou paralisada. “Vi uma lagartixa saindo de dentro da boca de um dos mortos.” MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

Viola que cabe neste latifúndio

Tocadores e MST se movimentam para cobrar espaço na mídia para boa música e defender a identidade da cultura violeira Por Walter de Sousa. Fotos de Paulo Pepe

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ual a diferença artística entre o violeiro Pereira da Viola e a dupla sertaneja Victor e Leo? Além da evidente escolha de estilo musical de um e outro, é o quinhão de espaço na mídia de cada um que os torna tão distantes. Certamente os violeiros querem um pedaço desse latifúndio musical, ambição semelhante à do lavrador sem terra: ter espaço para produzir e garantir seu sustento. Essa convergência 42

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entre trabalhadores rurais e violeiros – o nome é genérico para aqueles que vivem o universo da viola, seja caipira, pantaneira­ ou nordestina – é mais antiga do que se imagina e está rendendo uma roça bem produtiva. Pereira da Viola é um dos fundadores e ex-presidente da Associação Nacional dos Violeiros do Brasil (ANVB), criada em 2004. A entidade começou a ser gestada quando Pereira e Felinto Procópio dos

Santos, o Mineirinho, coordenador cultural do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tocavam viola debaixo de uma figueira centenária, em Ribeirão Preto. Surgiu daí o Encontro Nacional de Violeiros, que reuniu 60 tocadores e foi visto por mais de 10 mil pessoas. O evento virou anual e deu margem à fundação da ANVB. Para firmar a identidade da viola e encontrar­meios alternativos de financiamento dos violeiros, a associação avançou significativamente ao realizar em 2008 o I Seminário Nacional de Viola Caipira, em Belo Horizonte. “Foi um evento que conseguiu formalizar uma participação política dos violeiros do Brasil”, resume o atual presidente da entidade, Valmir Ribeiro de Carvalho, o Bilora.


TRINCHEIRA Julio Santin, organizador do Caipirapuru

Esse viés político tem sido constante no movimento. “Realizamos o seminário com 80% de verba patrocinada pela Petrobras, que virou nossa parceira de fato. E isso permitiu que a companhia estivesse também no Caipirapuru, ocorrido em dezembro passado”, conta Pereira. Organizado pelo violeiro e médico cardiologista Julio Santin na cidade de Irapuru (SP), a 700 quilômetros da capital, o Caipirapuru tem sido uma das “trincheiras” dos violeiros, na definição de Mineirinho. A ANVB reúne instrumentistas de todo o país, entre eles nomes que despontam no cenário musical da viola: os caipiras Julio Santin, Levi Ramiro e Zeca Collares, a dupla Levi Ramiro Zé Mulato e Cassiano, o herdeiro da viola pantaneira de Helena Meirelles, Milton Araújo, e a violeira paraibana Socorro Lira. Portanto, não se trata de um coletivo de artistas, mas de um movimento organizado com identidade e propósito. “Não foram dois ou três que se juntaram para fundar a entidade, e sim mais de 100 violeiros, entre os quais nomes de peso como o de Inezita Barroso”, lembra Joaci Ornelas, organizador do seminário, evocando o maior ícone de resistência da música caipira, apresentadora do programa Viola Minha Viola, há 30 anos no ar na TV Cultura de São Paulo. A ANVB prepara para 2012 um congresso nacional de violeiros, que deverá, enfim, revelar a grande força do movimento. Para o público e para a mídia.

Mercado

Por atuar a partir de um forte componente cultural, o da identidade com a tonalidade musical da viola, instrumento trazido ao país pelos jesuítas durante

TALENTO Mineirinho, um dos pioneiros

a colonização, os violeiros têm uma visão diferente do chamado mercado fonográfico e musical. “Existe hoje uma música para o corpo e uma para a alma. Eu vejo para o corpo esse movimento de música de massa. Você agita, transpira, chega em casa, toma banho, e ela vai embora pelo ralo. No dia seguinte não sobra nada. A música para a alma vai além do divertir, tem a função da transformação, de fazer pensar, de fazer nos assumirmos enquanto povo e nação”, define Zeca Collares. Não se trata, portanto, de concorrer num mercado em que a hegemonia é do chamado “sertanejo universitário”, mais dançante e com temática romântica. Mas de oferecer algo mais ligado às origens da música brasileira. Por ter o caráter de resistência cultural – embora boa parte dos violeiros hoje tenha formação musical estruturada, quando até algumas décadas atrás se pensava somente no violeiro autodidata e de origem humilde –, o movimento se firma a partir de formas alternativas de financiamento. Entre elas, as leis de incentivo à cultura para a promoção dos encontros e a gravação dos discos e a estrutura de palcos do Sesc, por exemplo, para a difusão dos artistas. Nessa luta, um grupo de violeiros encerrou em 28 de janeiro a reunião de coordenação nacional do MST, realizada na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP). Ante um público de 400 pessoas, menos uma trincheira e mais um palco de afirmação cultural, por mais de oito horas eles dedilharam as 10 cordas de suas violas. Enfim, para ocupar espaço na mídia é preciso conquistar antes o público que, ao contrário do que a indústria fonográfica pensa, também gosta de “música para a alma”.

ENGAJADOS Bilora, Pereira da Viola, Wilson Dias e Joaci Ornelas: música e justiça social MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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PERFIL

O

homem vai fazer 80 anos e ninguém conseguiu entendê-lo ainda. A condessa de nome interminável (Georgina de Fauciny Lucinge Brandolini d’Adda), proprietária do apartamento onde ele mora, o ameaçou: ou ele passa a prestar atenção na evolução das rachaduras da parede da sala e do piso do banheiro, ou será despejado. Justamente ele, João Gilberto, que não tem nada de edificante para fazer a não ser tocar seu violãozinho. A Prefeitura de Juazeiro, sua cidade natal, fez pior. Prometeu para junho, mês de seu aniversário, um megaevento, com o homenageado subindo ao palco com todos os artistas influenciados por sua bossa, de Caetano Veloso a Ivete Sangalo (sic). Fala-se até em Norah Jones. Horrorizado, ele já avisou a amigos próximos: “Eu não vou”. João Gilberto gostou mesmo foi de um presente que ganhou adiantado da filha Luísa, de 6 anos: um pente para colocar dentro do violão, junto com o afinador. Achou o máximo. Filha de seu relacionamento com a produtora Claudia Faissol, Luísa é responsável pelos raros momentos de alegria do violonista. João anda triste. Já pediu ajuda ao então presidente Lula – de quem é fã – e ao Ministério da Cultura. Ninguém quis atendê-lo. Ele trava uma batalha na Justiça para trazer de volta ao mercado três de seus principais discos, incluindo sua obra-prima, Chega de Saudade (1959). Em 1992, a gravadora EMI, detentora do catálogo da Odeon­, reuniu­, à sua revelia, três álbuns (mais o LP Orfeu da Conceição) em um único CD, O Mito. O bem-bolado dos ingleses desagradou a João, que processou a EMI. Seu ouvido atômico detectou diversas mudanças nas faixas originais, desde problemas na masterização até um pout-pourri (a mistura de várias faixas em uma só) inventado pela gravadora. Cada vez mais recluso (a bateria do seu Monza cinza-grafite arriou de vez), João foi visto fora de casa apenas uma vez nos últimos dois anos. Fez questão de comparecer a uma das audiências do caso EMI. Ouviu, perplexo, um juiz afirmar que as mudanças nas faixas eram “subjetivas”, que ele, ora essa, estava sendo exigente demais. Calado até então, João pediu a palavra: “Excelentíssimo: o senhor compraria uma Mona Lisa de bigode?” “Ele ficou tão chocado com a indiferença da Justiça brasileira que se tornou um homem ainda mais fechado. Cancelou to-

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João, made in Juazeiro Um dos criadores da bossa nova e fonte das melhores safras de músicos, João Gilberto completa 80 anos em junho, e na certa longe do oba-oba. Quem sabe, no máximo, um banquinho e um violão em sua Bahia Por Tom Cardoso

dos os seus shows e gravações. Ficou deprimido”, diz Claudia Faissol. A produtora, de 38 anos, engravidou de João quando ainda estava casada com o empresário Eduardo Zaide. O escândalo alimentou a pauta das revistas de fofocas, mas não abalou a relação de Claudia e João. Claudia tornou-se a assessora, a empresária e a relações-públicas de João. Ah, ela também está escrevendo uma biografia e produzindo um documentário – já tem um acervo enorme de imagens gravadas do namorado, todas, claro, com ele tocando violão em sua casa. “Como o João não faz show nem grava há muito tempo, ele já tem ensaiado um repertório para pelo menos três discos”, revela

Claudia. “O passatempo dele é transformar tudo o que ouve em bossa nova. Outro dia, eu o surpreendi cantando baixinho, com seu violão, uma versão em bossa de uma canção do Chitãozinho e Xororó.” João, quando não está tocando violão, o que é raro, ou falando ao telefone com algum amigo (uma conversa com ele não dura menos de duas horas), está vendo TV. Vê de novela a futebol. Vascaíno doente, não anda contente com o time do coração – prefere o Santos de Neymar e Ganso. Ultimamente­, tem assistido a muitas lutas de vale-tudo. Os parentes não entendem sua fixação pela modalidade, já que João tem horror a qualquer manifestação de violência­. Os passeios


GERARDO LAZZARI

de madrugada são cada vez mais raros. “A criminalidade o assusta. Ele tem pânico de pegar um túnel e ser surpreendido por traficantes”, diz Claudia.

Mitos

Há muitas lendas em torno de João Gilberto. Algumas histórias são puro folclore, como aquela em que seu gato, depois de ouvir o dono ensaiar 546 vezes a mesma música, sofreu um surto psicótico e pulou do 12º andar. Mas uma história que João compartilhou com Fernando Faro, este não esquece nunca mais. João sabe que pode contar sempre com o produtor, um dos maiores nomes da televisão brasileira,

criador do programa Ensaio, da TV Cultura, e amigo do peito do intérprete. Faro, de 83 anos, lembra como se fosse ontem o dia que encontrou­João pela primeira vez no corredor da TV Tupi. Ambos são dois grandes contadores­de história. João morava no bairro da Barra, em Salvador, e costumava andar de bicicleta até Amaralina. No caminho, passava sempre por uma construção e ficava impressionado com a idade dos meninos que trabalhavam na obra. Um dia ele resolveu parar. Perguntou a idade de um deles. “Onze anos.” Depois seu nome. “Nascimento.” “João parou a história aí. Não disse mais nada. Ficou em silêncio até eu perguntar o que ti-

nha acontecido depois”, lembra Faro. “Não aconteceu nada, Faro. Eu fiquei deprimido e fui embora. Onde é que se viu uma criança se chamar Nascimento? Deveria se chamar Zezinho, Luizinho, Pedrinho. Fiquei muito triste.” No começo de fevereiro, Faro conversou com João por telefone. “Ele estava animadíssimo.” Só perdeu o humor quando lembrou mais uma vez a história da EMI. “Ele fica realmente muito chateado em saber que três dos seus discos mais importantes dependem de uma decisão judicial para serem ouvidos”, conta Faro, que espera estar junto do amigo quando ele completar 80 anos, no próximo 10 de junho. Sabe, porém, que não precisa estar perto fisicamente. Basta um telefonema. “João nunca gostou de oba-oba. Ele adora conversar, gosta de ser paparicado. Mas por quem ele gosta, por quem ele conhece”, diz Faro. A tendência é que João dispense todas as homenagens, os convidados (“Eu não sou o Roberto Carlos”, costuma dizer aos amigos) para fazer um show sozinho, acompanhado apenas de seu violão, em Juazeiro. Desde que saiu do norte do estado da Bahia, aos 18 anos, rumo a Salvador, com a vontade de ser crooner de boate e cantor de rádio, João nunca mais voltou. Na verdade, a cidade não acompanhou no mesmo ritmo a trajetória de seu mais ilustre rebento. João ganhou o mundo, inventou a bossa nova, influenciou toda uma geração de grandes compositores, de Caetano Veloso a Edu Lobo, de Gilberto Gil a Chico Buarque, e mudou a maneira de pensar dos jazzistas americanos. Juazeiro, não, seguiu estagnada, característica que costuma afetar quase todas as cidades de médio porte do país, precárias em infraestrutura e carentes de investimento em cultura. Nunca pôde dar a João uma casa de shows à altura de seu perfeccionismo. Mas agora João decidiu voltar à terra onde nasceu. Vai na raça. Cantará onde der. Se precisar, seu técnico de som, que ele costuma importar do Japão, dá um jeito. Ele já avisou Claudia Faissol e a todos os seus amigos mais próximos: não quer saber de Carnegie Hall nem de Teatro Municipal do Rio. Cantará em Juazeiro. Quem sabe não abre o show com aquela música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, da qual gosta tanto: “Ai, Juazeiro, não me deixe assim roer/ Ai, Juazeiro, tô cansado de sofrer/ Juazeiro, meu destino tá ligado junto ao teu”. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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Ponte 25 de Abril, sobre o Rio Tejo

VIAGEM

Lisboa ao pé da letra Fernando Pessoa leva a uma cidade para ser observada com a serenidade de quem lê um livro Por João Correia Filho, texto e fotos

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Oceanário

Museu de Arte Antiga Centro histórico

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m dos livros de Fernando Pessoa mais vendidos a turistas que visitam Lisboa é pouco conhecido no Brasil. Nem mesmo é livro de poesia, tampouco leva o nome de algum de seus heterônimos ou lembra os temas introspectivos, que são sua marca. Lisboa: O Que o Turista Deve Ver é, na verdade, um roteiro que o poeta escreveu para divulgar “tudo que for de algum modo digno de ser visto nesta maravilhosa Lisboa”. Esse discreto best-seller envereda pela capital portuguesa com base nas aventuras de Pessoa, grande conhecedor da cidade onde nasceu, em 1888, e morreu, em 1935, aos 47 anos. “Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem desfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular multicolorida massa de casas que constitui Lisboa”, anuncia já no primeiro parágrafo. Escrito há 86 anos, esse roteiro turístico-literário ainda é atual. Traz praticamente todos os locais hoje visitados por turistas, como o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, a Catedral da Sé, o Museu Nacional dos Coches, o Castelo de São Jorge,

o Teatro Nacional São Carlos, o bairro do Chiado, a região da Baixa. Também passeia pelos bairros de Alfama, berço do fado, pelas avenidas que levam à Praça de Touros do Campo Grande e a palácios como o da Ajuda, que mantém intactos os aposentos de reis e rainhas de Portugal. Escrito originalmente em inglês, o texto é mais um sinal da conhecida megalomania do poeta, como sugere uma das maiores estudiosas de sua vida e obra, Teresa Rita Lopes, que assina o prefácio da edição portuguesa – o livro também foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras. “Antes mesmo de escrevê-lo, ele já devia imaginar seu texto rodando os quatro cantos do mundo, talvez por isso tenha escrito em inglês”, diz a pesquisadora. É bom lembrar que em vida Pessoa publicou apenas o livro A Mensagem. A fama mundial viria só depois de sua morte. Seu roteiro turístico alardeia uma Lisboa moderna, a ponto de realizar sua viagem imaginária num automóvel que rompe as ruas do centro e de alguns bairros para passar rapidamente às atrações que merecem visita. “O nosso automóvel vai andando, percorre a Rua do Arsenal, e passa junto à


“Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem desfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular multicolorida massa de casas que constitui Lisboa” Fernando Pessoa

Câmara Municipal, um dos mais belos edifícios da cidade” é um dos trechos que hoje podem soar como ironia, posto que Lisboa é uma cidade excelente para conhecer a pé e com ótimo sistema de transporte público. Embora não seja um texto poético, bastam algumas páginas para se encantar com as descrições: “No nosso caminho de retor-

GUIA Estátua de Fernando Pessoa em frente ao café A Brasileira

no à Baixa ou, por outras palavras, à parte baixa e central da cidade, passamos por um dos mais pitorescos bairros de Lisboa – Alfama, o velho bairro de pescadores, que ainda conserva uma grande parte do seu antigo aspecto”. E completa: “O turista que pode passar alguns dias em Lisboa não deve deixar de visitar este bairro; ficará com a noção de que nenhum outro lugar lhe pode proporcionar o aspecto que Lisboa tinha do passado”. Em alguns casos é mais detalhista. “O corrimão, ricamente decorado de cobre e aço, abre com uma cabeça de carneiro de cobre reluzente”, diz ele, referindo-se ao Palácio Foz. E vai além em suas minúcias: “Este admirável corrimão foi executado em Paris e custou então 9.000 libras. É um espécime mais suntuoso que o do Castelo de Chantilly, dos duques de Aumale, que é tido como o mais belo do mundo”. Mesmo para quem vai ao Palácio Foz não apenas para ver tal corrimão, o relato é, no mínimo, curioso. Hoje no local funciona um grande centro de informações ao turista e seus salões requintados são abertos ao público. O poeta, porém, deixa de citar os locais da cidade que ele frequentava. Talvez não tivessem ganho o status de turístico, como é o

caso do café Martinho da Arcada – inaugurado em 1782 – ou do café A Brasileira, no bairro do Chiado, que passaram a ser visitados justamente pela fama do próprio Pessoa. Outro aspecto de Lisboa: o Que o Turista Deve Ver é que seria impossível percorrer o roteiro em um único dia, como propõe o poeta. Seriam necessárias semanas para completar o trajeto “dessa curta mas interessante visita”, como ele sugere. Talvez esteja­aí a maior ironia do texto. Afinal­, viajar­exige tempo para silenciar, mente aberta para refletir, os olhos atentos para contemplar e, de preferência, um livro embaixo do braço. João Correia Filho é jornalista, colaborador da Revista do Brasil e autor do guia Lisboa em Pessoa (Editora Leya, 370 páginas, R$ 80), baseado em Lisboa: o Que o Turista Deve Ver. Além dos lugares citados pelo poeta, o autor incluiu cafés, livrarias e outros locais imperdíveis da capital portuguesa. Lisboa em Pessoa traz ainda poemas de Fernando Pessoa, claro, e referências de obras de escritores portugueses, como Inês Pedrosa, José Saramago, Camões, Lobo Antunes e Batista-Bastos. O guia, portanto, pode ser degustado mesmo se o passeio for apenas literário. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Sonho Vazio

Alienígenas Em sua primeira exposição no Brasil, a artista e designer japonesa Mariko Mori traz Oneness para o Centro Cultural Banco do Brasil Brasília, com obras interativas e de grandes dimensões. Wave Ufo, com 10 metros, acolhe três pessoas “ligadas” a terminais que captam suas ondas cerebrais. A obra-título da exposição é formada por um grupo de pequenos extraterrestres que interagem com os espectadores ao ser tocados e abraçados. Mariko utiliza o design e a arte de vanguarda para compor elementos de engenharia de ponta e interativos em obras e pequenos prédios de alta complexidade tecnológica. Em Brasília até 3 de abril. No Rio de Janeiro, de 9 de maio a 17 de julho e em São Paulo, de 22 de agosto a 23 de novembro, todas nos CCBBs – http://bit.ly/ccbb_ondefica

Wave Ufo

Nossos escritores No livro Crônicas do Mundo ao Revés (Boitempo), o correspondente da Rede Brasil Atual em Berlim, Flávio Aguiar, reúne 19 contos e crônicas que vão de sua história familiar aos tempos da ditadura militar e suas cicatrizes. “São histórias de amor, paixões, ódios e sobrevivência, nesse mundo em que é cada vez mais difícil distinguir ficção e realidade”, diz o autor. Os textos têm doses de humor até mesmo nas histórias mais trágicas, como muitas do golpe de 1964 e suas consequências. O gaúcho Flávio Wolf de Aguiar tem mais de 30 livros publicados e ganhou três vezes o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Foi professor de Literatura da USP e participou da criação do site Carta Maior e da RdB. Assina o Blog do Velho Mundo, na Rede Brasil Atual, e é analista internacional do programa de rádio Jornal Brasil Atual (FM 98,9 na Grande São Paulo, das 7h às 8h) e também do noticioso diário da TVT Seu Jornal (das 19h às 19h30).

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Trem Doido, de Mouzar Benedito (Ed. Limiar), é o 23º título desse cronista mineiro de Nova Resende aficionado por viagens e causos, como os que podem ser acompanhados com frequência na última página da RdB, inclusive nesta edição. O conto que dá nome ao livro foi publicado na edição de janeiro de 2007 e fala sobre a mania dos mineiros de chamar tudo de trem – menos o trem de ferrovia mesmo, que chamam de “baita”. Tem ainda o relato de quando conheceu Cora Coralina, em 1976, e publicou no jornal Movimento o que credita como a primeira reportagem de São Paulo com a poetisa. Como viajou o país de ponta a ponta, Mouzar foi “recolhendo” histórias pitorescas e engraçadas aqui e ali. As ilustrações são do cartunista Ohi, também colaborador da revista. Outro lançamento é o guia Lisboa em Pessoa, do jornalista e fotógrafo João Correia (leia mais na página 46).


Fiuk (Pedro), entre Francisco Miguez (Hermano) e Júlia Barros (Bia)

Dores e delícias de ser jovem

A transformação de um adolescente virou um retrato sincero do universo jovem nas mãos de Laís Bodanzky, diretora de Bicho de Sete Cabeças e Chega de Saudade. O filme As Melhores Coisas do Mundo conta as descobertas de Mano (Francisco Miguez) aos 15 anos: as aulas de violão com Marcelo (Paulo Vilhena), a separação dos pais (Denise Fraga e Zé Carlos Machado) e como isso afetou a ele e ao irmão mais velho, Pedro (interpretado pelo ídolo teen Fiuk), a descoberta do amor e tudo o que envolve essa fase repleta de mudanças. Something, dos Beatles, permeia todo o filme e traz ainda mais encanto à tela. Em DVD.

Festa de Elba Os 30 anos de carreira de Elba Ramalho foram celebrados em 2010 com um grande show no Marco Zero de Recife, e o resultado chega às lojas pela Biscoito Fino. O DVD começa com um tour aéreo pela cidade até alcançar a multidão de 100 mil pessoas, que vibram ao som de 24 canções. Entre outros sucessos, Anunciação, Banquete dos Signos, Na Base da Chinela, Morena de Angola e Pavão Mysteriozo. Participam da festa Geraldo Azevedo (Canta Coração e Chorando e Cantando), Zé Ramalho (Admirável Gado Novo e Chão de Giz), Lenine (Queixa), Chico César (Recife Nagô) e Marrom (O Meu Amor). R$ 30 (CD) e R$ 45 (DVD).

Uma pirueta, duas piruetas O espetáculo Tarde de Palhaçadas presta homenagem a grandes palhaços brasileiros, como Arrelia, Carequinha, Piolim e Fuzarca. Batata, Tonelada, Pinhão e a percussionista Maestrina Jujuba transformam o palco em picadeiro e levam a magia nada inocente dos palhaços a crianças (acima de 3 anos) e adultos. Teatro Maria Della Costa. Rua Paim, 72, Bela Vista, São Paulo, tel. (11) 32569115. Aos sábados, às 17h30. R$ 12,50 (crianças até 12 anos), R$ 25 (adultos) e R$ 10 (compra antecipada). Até 30 de abril. MARÇO 2011 REVISTA DO BRASIL

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Crônica

Por Mouzar Benedito

Uma bússola na cabeça

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Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi

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empre me diverti com uma coisa que acontecia direto nos filmes de bangue-bangue: um cavaleiro chega a um rancho, tem um moleque curioso que puxa conversa com ele, e, depois de um “olá, garoto” e qualquer frase, o cavaleiro pergunta: “Onde é o rancho WKO?” Primeiro, uma curiosidade inútil: fazenda, nos filmes de bangue-bangue, é rancho. E seus nomes são sempre duas ou três letras. Não é como aqui, Fazenda Vista Alegre, Fazenda Santa Terezinha... Mas o curioso mesmo é que o moleque não titubeia, parece que conhece tudo ali e tem um enorme senso de direção: “Siga 12 milhas ao norte e mais três a oeste”. O cavaleiro agradece e segue em determinada direção como se tivesse uma bússola. E parece ter também (no cavalo) um odômetro, o aparelhinho que mede a distância percorrida. Naquela pradaria imensa, sem nenhuma referência, sem montanhas nem nada, em uma determinada altura o sujeito vira para o oeste de repente. Exatamente ali teria dado as 12 milhas. Percorre mais três milhas e chega exatamente aonde queria. Pois fiquei sabendo que existem povos que usam sempre as coordenadas geográficas como referência. Não têm o senso de distância dos moleques e caubóis dos bangue-bangues, nunca usam as chamadas “coordenadas egocêntricas”, em que a gente se põe como referência. Não dizem “siga duas quadras à direita”, ou “é ali atrás”... É sempre assim: “Vá para o norte”. Até em coisas mínimas usam as coordenadas geográficas, segundo um excelente artigo de Guy Deutscher, publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, há algumas semanas. Por exemplo: ele avisa que há uma aranha a leste do seu pé. Ou, se está apertado no banco de um carro, pede que você vá um pouco mais para oeste... O autor se refere, nesse caso, ao idioma guugu yimithirr, de um povo aborígene da Austrália. Mas informa que vários povos da Polinésia e também os falantes do idioma tzetal, do sul do México, usam esse método de localização. Chegaram a pôr um homem que falava tzetal num quarto escuro, vendado, dar várias voltas em seu corpo e depois pedir que ele dissesse onde era o norte etc. Acertou na mosca. Curioso. Mas podemos pensar nos peixes que sobem sempre o mesmo rio para desovar, nas borboletas e aves que seguem sempre a mesma rota de migração, nas tartarugas marinhas que dão voltas ao

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mundo e retornam para desovar na praia onde nasceram, nas abelhas que dão notícias à colmeia de um lugar onde existem bastantes flores com néctar, por puro instinto. Será que se fôssemos acostumados desde bebês não teríamos o mesmo “poder” de referência? Aliás, fico curioso com os muçulmanos, que têm de rezar sempre virados para Meca. Precisa ter um senso danado de direção, de localização. Mas o que vejo mesmo, no dia a dia, são pessoas sem a mínima ideia de onde é o norte, o leste... Eu, se não tiver o sol como referência, fico perdido. À noite, às vezes consigo localizar o Cruzeiro do Sul. Se não conseguir, fico perdido do mesmo jeito. Mas meu amigo Gonzaguinha é muito pior. Uma vez foi conosco a Conservatória, um povoado na serra fluminense. Ficamos num hotel composto de alguns chalés em torno de uma pequena “praça”. Conversador compulsivo, na primeira noite em que estávamos lá, antes de amanhecer escutei o Gonzaguinha andando de um lado para o outro, no meio dos chalés, de vez em quando falando sozinho. Aí apareceu uma figura salvadora, um rapaz que foi varrer as folhas caídas durante a noite, na pracinha. Gonzaguinha puxou assunto com ele e ficaram conversando enquanto o rapaz varria. Então começou o nascer do sol. Gonzaguinha disse para ele em tom de admiração: — Nossa! Aqui o sol nasce daquele lado? O rapaz resmungou alguma coisa dizendo que era óbvio, e o Gonzaguinha, sei lá com que referência, disse como se isso fosse possível: — Em São Paulo, nasce daquele outro...




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