Revista do Brasil nº 059

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MAPA DA INJUSTIÇA Projetos predatórios causam quase 300 conflitos no país

nº 59

maio/2011

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A LIDA NO CANAVIAL

Edilson e colegas esperam ônibus para trabalhar, em Guariba (SP)

Indústria do açúcar e do álcool se modernizou, mas deixou trabalhadores no meio do caminho

SERÁ QUE COLA? A controversa onda dos adesivos da família feliz nos automóveis


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Índice

Editorial

ALY SONG/REUTERS

Opinião 11 Cobertura da tragédia de Realengo expõe quem deveria ser protegido Capa 12 Setor sucroalcooleiro avança, mas também exclui milhares de cortadores Mundo 18 Apesar do mito, China não é mar de rosas para empresários gananciosos Cidadania 24 Mapa da Injustiça mostra dramas de populações atingidas em todo o país Entrevista 28 Dom Tomás Balduíno exige mais respeito para com o povo da terra Comportamento 32 Adesivos da família feliz viram moda. Muitos criticam exposição exagerada Memória 38 Cinemateca investe na restauração de nossos acervos mais importantes Perfil 40 Carlos Monte e sua luta para resgatar músicas carnavalescas de antigamente

Chinês é detido por pedir internet sem censura: desenvolvimento social ainda é esperança

Mundo de contrastes

Q JOÃO CORREIA

Estantes do Vermelho: raridades

Viagem 44 Passeio pelo Sebo Vermelho leva os turistas muito além das praias do RN SEÇÕES Cartas

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Ponto de Vista

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Na Rede

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Atitude

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Curta Essa Dica

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Crônica

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uantas vezes já se ouviu que o Brasil é um país de recursos abundantes, mas injusto? É fato que, desde os anos 1940, houve uma mudança de perfil da economia brasileira, com deslocamento gradativo da mão de obra do campo para a cidade, desenvolvimento da indústria e de um operariado urbano. A rigor, isso já acontecia desde o início do século, com a influência de imigrantes, principalmente espanhóis e italianos, que deu corpo à organização dos sindicatos, sob inspiração socialista (e depois comunista, sob o impacto da Revolução Russa) e anarquista. Ainda na primeira metade do século passado, ganhavam força expressões como reforma agrária e fim dos latifúndios. Dentro da ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas criou o arcabouço que ainda hoje serve de base para grande parte do nosso universo trabalhista e sindical. Veio outra ditadura, os movimentos sociais foram sufocados, e os bens produzidos por todos continuaram sendo divididos entre poucos. Situação que começou a mudar apenas em um período muito recente da história. Toda a digressão se justifica com a passagem do 1º de Maio, data histórica do trabalho e do trabalhador. Aqui no Brasil se discutem reformas na legislação para – argumentam alguns – adequá-la à realidade do mundo atual. É preciso saber se os de sempre continuarão tendo os privilégios de sempre ou se as mudanças virão para distribuir a riqueza de forma mais justa. Esta edição trata desse contraste entre o mundo moderno, desenvolvido, competitivo, e o dia a dia sofrido de milhares de trabalhadores país afora. Um setor que busca concorrer no exterior ainda precisa dar melhores condições a quem produz essa riqueza. Assim como o próprio país precisa tratar de outra maneira cidadãos e não permitir que tantos conflitos ambientais se espalhem por todas as regiões, outro tema da edição, assim como a China. A presidenta Dilma acaba de voltar de lá, dando sequência ao processo de transformação geopolítica que inclui privilegiar as relações com países em desenvolvimento ou com os quais o Brasil deveria ter maior proximidade, por pura identificação de realidades. Mas a simples aproximação Brasil-China não significa adesão imediata a políticas praticadas pelo gigante asiático. No mês em que se celebram os trabalhadores e seus direitos, há que se defender, ainda mais, a prática incansável da liberdade. MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial André Luis Rodrigues, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Lucas Mamede Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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Futebol de elite Entrevistar Juca Kfouri compromete todo o bom trabalho restante dessa reportagem (“Sem geraldinos e arquibaldos”, edição 58). Claudio Yida Jr., pelo Twitter Política externa e a Líbia Artigo forte, atual e preciso (“Por dentro da Líbia”, edição 58). Rubens de Sousa, editor da ITV, Campinas (SP) Escola nazista Essa reportagem (“Mais cruéis que a seca”, edição 57) retrata uma situação que é a mais nefasta e hedionda que já li até hoje. Simplesmente uma das maiores imbecilidades que podem vagar e permear a mente do ser humano (se é possível chamá-lo assim). É da pior crueldade, é pecaminosa, maquiavélica, e tantos outros adjetivos que é impossível transcrevê-los. Essa reportagem tem, sim, de chegar ao conhecimento de todos, nas escolas, nos bares, nas instituições públicas, e sobretudo fazer parte da história do nosso país, para evitarmos que novos “deitadores”, ou simplesmente idiotas, governem o mundo e os povos. Devemos evitar novos casos como essa tragédia no Ceará. Que Deus tenha piedade dessas almas que tornaram possível tamanha atrocidade. É desalentador saber que isso ocorreu e ainda está ocorrendo. Valmiro S., São Paulo Sem limites Espero que meu tio consiga enviar o satélite, que é seu sonho desde criança (“Nem o céu é o limite”, edição 57). Carlos Moura, Taubaté (SP) MST e música Beleza de reportagem, Walter (“Viola que cabe neste latifúndio”, edição 58). Parabéns. Nei Oliveira, São Paulo João Gilberto João é um gênio! Gênio vivo! (“João, made in Juazeiro”, edição 57). Glayce Carvalho, São Paulo

Justiça? É uma grande baixaria mesmo essa Justiça do Brasil (“Fugitivo da injustiça”, edição 58). Em vez de dar penas assim para um bandido que vive roubando ou matando, vai dar para um pai de família. Julgar sem provas? Acho que esse tipo de coisa acontece porque ele não é milionário, porque se fosse já estava livre. Hoje é ele quem é julgado, amanhã, eu ou vocês. Vamos lutar por um país melhor, para que um dia nossos filhos possam viver de verdade uma vida digna. Diego Montero, Osasco (SP) E, no entanto, tantos poderosos no Brasil ficam impunes porque têm dinheiro para corromper o Poder Judiciário ou porque têm costas largas (“Fugitivo da injustiça”, edição 58). Haja vista quantos políticos se safam de julgamentos porque têm sua imunidade parlamentar, que os assegura a acabar com os recursos produzidos pelo povo, mas gozam desse mesmo povo quando fazem barbaridades. No dia 17 de abril “comemoramos” o aniversário do massacre ocorrido no Pará. Quem ficou preso? Onde está a Justiça brasileira? Será que já não é hora de levantarmos a cabeça, exigirmos nossos direitos? Omirek, São Paulo Andando de lado Há duas conquistas na Constituição que devem andar para a frente: a universalização da educação e a da saúde. Todo cidadão brasileiro tem direito a cursar o ensino fundamental em uma escola pública e a cuidar do corpo no Sistema Único de Saúde. No SUS, porém, virou moda andar de lado, no estado de São Paulo (“Saúde pública na UTI”, edição 58). As tais parcerias com as Organizações Sociais de Saúde, à medida que “melhoram” o atendimento público, vão deixando o pobre usuário cada vez mais ao largo dos seus direitos. Marcela Goes, São Paulo revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

Duas espécies humanas O trabalho sempre se associou ao sacrifício, e não ao prazer. A criação, ao contrário, tem expressão lúdica. O marceneiro é um criador

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á quem decrete o fim da classe operária, Os operadores que usam o teclado e “interagem” com com a exacerbada corrida tecnológica, a tela não têm apenas seu movimento manual deterque vem substituindo os braços humanos minado pela máquina, mas também sua mente. Como na produção industrial. A expressão pode os bancários, que lidam com milhões alheios durante até se desusar, e de certa forma já está sen- o dia, eles não conseguem dormir em paz: uns sonham do abandonada. Mas o problema é de outra natureza. O com cifras, outros com bytes. A grande tragédia dos tramundo não se divide entre os trabalhadores manuais e balhadores modernos, submetidos às exigências da tecos outros, mas sim entre os assalariados e os donos do nologia, é se sentirem peças isoladas, exatamente iguais capital. Isso em uma visão ligeira do problema, porque às outras. Não tendo de intervir com sua inteligência, e todo trabalho humano é, ao mesmo tempo, manual e estando submetidos às tensões de cada minuto, são faintelectual. Quem opera uma máquina, ainda que o cilmente substituídos pelos robôs, cuja programação é faça mediante um ordenador eletrônico, usa ao mesmo obedecida sem que as emoções os perturbem. tempo as mãos e o cérebro. Um escritor paulista – e conhecido emMais ainda: toda a evolução do ho- Operadores presário –, Nelson Palma Travassos, achamem se deve a essa óbvia associação que usam va que as máquinas seriam a redenção do entre o pensamento e a ação. Por isso o teclado e homem moderno, e substituiriam os esmesmo, o filósofo Agostinho da Silva, cravos da Antiguidade, libertando-o para “interagem” um dos mais inquietantes pensadores do o exercício livre da inteligência – desde século 20, diz que o homem não nas- com a tela que esses robôs fossem de propriedade do ceu para trabalhar, e sim para criar. Os não têm Estado, que distribuiria os bens produzimarxistas definem essa diferença, ao apenas seu dos com equidade a toda a população. A identificar, no artífice do passado, o movimento tecnologia não está a serviço dos homens. criador, uma vez que ele dominava todo manual Está a serviço dos ricos, que a usam, soo processo de fabricação, e uma peça não bretudo na transferência instantânea de determinado era exatamente igual à outra. Na procapitais, roubando dos depositantes e dos dução industrial moderna, em que cada pela máquina, acionistas, enfim, de todos, porque o Estrabalhador executa – durante a jorna- mas também tado, ou seja, o povo, arca com o prejuída, meses, e quase sempre por muitos sua mente zo. Só há duas classes sociais, a dos ricos anos, quando não toda a vida ativa – a e a dos pobres. mesma tarefa, fazendo peças separadas, que serão Durante muito tempo, ricos eram os que detinham os montadas depois, só há realmente trabalho. meios físicos de produção, isto é, as terras, as máquinas, Trabalho vem do latim tripalium, que era um instru- enfim, o capital produtivo. O liberalismo novo, com a mento de suplício no mundo romano. O trabalho sem- globalização da economia, mudou o eixo da razão. Hoje, pre se associou ao sacrifício, e não ao prazer. A criação, são os bancos que dominam todo o processo. E os bancos ao contrário, tem uma expressão lúdica. O marceneiro não são administrados – salvo exceções – pelos acionisque faz um armário, partindo de sua própria imagina- tas, mas sim por executivos tais como os que vimos nos ção e desenho, é um criador. Até mesmo o lenhador, escândalos recentes de Wall Street. que escolhe na floresta a árvore a abater, é de certa forObservadores atentos, como o financista Paul B. Farma um criador. Mas o operário que lixa 500 peças por rell, comentarista do Wall Street Journal, mostram que dia ou aperta parafusos (hoje os robôs o substituem) a desigualdade social nos Estados Unidos é hoje maior na linha de montagem, como no belíssimo filme de do que em 1929, quando se iniciou a Grande DepresChaplin, Tempos Modernos, é um homem submetido são, e que, se os ricos não pagarem pesados impostos ao suplício permanente. Na visão magistral de Marx, que permitam melhor distribuição da renda, os pobres, o trabalhador de hoje é o “complemento vivo de um não só ali, mas no mundo inteiro, se sublevarão. É uma organismo morto”. questão de vida e morte.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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Não mata, mas machuca

A violência policial vem chamando a atenção. O exagero no uso de armas não letais pela Polícia Militar para coibir manifestações populares em diversos estados tem sido contestado por setores da sociedade civil. http://bit.ly/rba_naoletais

FLAGRANTE PM ataca com spray de pimenta em manifestação contra o aumento da tarifa de ônibus, em São Paulo

ANDRESON BRABOSA/FOTOARENA/FOLHAPRESS

Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Guilherme Amorim, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Vitor Nuzzi

NaRede

Livre para lutar

Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, foi absolvido em júri popular no dia 5 de abril no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista. O promotor do caso, responsável pela acusação, admitiu a inocência do líder do movimento de moradia, classificando como “temerária” sua condenação. Gegê aguardava julgamento havia nove anos, acusado de cumplicidade em homicídio. Apesar de estar livre para retomar a militância, ele ainda teme as “inimizades” de quem quis vê-lo condenado. http://bit.ly/rba_gege

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NACHO DOCE/ REUTERS

ANDRESON BRABOSA/FOTOARENA/FOLHAPRESS

Gegê: absolvido

Em escola pública no Rio, menina dá arma de brinquedo e recebe gibis

Comoção e confusão

A invasão de um atirador a uma escola municipal no bairro do Realengo, no Rio de Janeiro, que acabou assassinando 12 crianças e feriu outras, virou notícia no mundo e suscitou novamente o debate sobre o comércio de armas no país. http://bit.ly/rba_realengo


FHC: tucanos devem esquecer o povão

Bafômetro

Parado em uma blitz no Rio de Janeiro, o senador por Minas Gerais­Aécio Neves recusou-se a fazer o teste do bafômetro. Também estava com a carteira de habilitação vencida, em um carro que pertence à rádio Arco-Íris, de propriedade de sua irmã. Só um detalhe: senadores não podem ter rádios. http://bit.ly/rba_aecio

RENATO ARAÚJO/ABR

Pitos e apitos

FHC retornou ao centro do debate político. Por um lado, enquanto o PT eleva Lula como o “centro catalisador” das discussões, o PSDB briga publicamente. Fernando Henrique Cardoso pediu um novo foco para seu partido, desistindo do “povão”. Tão logo a declaração ganhou as manchetes dos jornais paulistanos, surgiram reações contrárias, inclusive no ninho tucano. Quem também levou “pito” foi o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega. Ao tentar atribuir o legado de Lula a FHC, foi advertido pelo professor Ricardo Carneiro, do Instituto de Economia da Unicamp: “É um dever valorizar o que conseguimos num período recente da economia brasileira”. http://bit.ly/rba_fhc1 http://bit.ly/rba_fhc2 http://bit.ly/rba_lula

Debate sobre o Código Florestal Brasileiro: disputa entre aliados

Código Florestal na pauta O presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), anunciou a promessa da Casa de votar as mudanças no Código Florestal Brasileiro no início de maio. O governo tentou mediar o cisma entre ruralistas e ambientalistas – a base aliada no Congresso possui representantes de ambos –, mas corre o risco de sair desgastado dos dois lados. http://bit.ly/rba_florestal

RENATO ARAÚJO/ABR

BRIZZA CAVALCANTE/AG. CÂMARA

Bolsonaro: quanta bobagem

Reação a tempo

O deputado estadual Jair Bolsonaro (PP-RJ) causou vários níveis de indignação ao exibir seus preconceitos durante um programa de televisão. As declarações explodiram nas redes sociais e provocaram atos públicos de repúdio pelo país, além de mobilizações dentro da Câmara que podem culminar em punições ao parlamentar. http://bit.ly/rba_bolsonaro

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NA RÁDIO

Público de verdade

Ministro Alexandre Padilha defende recursos maiores e mais bem aplicados para a saúde. Ele acredita que o crescimento do país será generoso com a área Por Oswaldo Luiz Colibri Vitta e Marilu Cabañas

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m entrevista à Rádio Brasil Atual, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, falou sobre investimento e financiamento no setor, formação de médicos e os desafios para a consolidação do SUS. A convite da rádio, outras pessoas fizeram perguntas ao ministro.

Nós fizemos uma série chamada Ferida Aberta, que mostrou problemas na gestão do Sistema Único de Saúde em São Paulo. Como o senhor vê o caos no SUS em algumas cidades?

O Sistema Único de Saúde faz parte da história da conquista da democracia. Estamos completando 22 anos da existência do SUS, que foi um projeto de inclusão social. E vamos lembrar que, antes de ele existir, quem não pagava a Previdência ou algum plano de saúde não tinha nenhum tipo de assistência médica integral no Brasil. Esses 22 anos são uma história de sucesso, mas também de muitos desafios pela frente, ainda. O sucesso vem do fato de termos construído um sistema que é um dos maiores sistemas nacionais e mais faz transplantes públicos totalmente gratuitos no mundo. Cobre 100 milhões de pessoas, faz 3,5 milhões de consultas por ano, 11 milhões de internações, mas ainda tem vários desafios. Todas as pesquisas mostram que a grande reclamação das pessoas em relação ao SUS é exatamente o tempo de espera, a demora no atendimento, a baixa qualidade no atendimento, seja no centro de saúde, seja na atenção hospitalar, no pronto-socorro, na internação hospitalar, entre outras situações. Nossa grande obsessão e prioridade é fazer um conjunto de ações das secretarias estaduais e municipais para garantir às pessoas o acesso em tempo adequado e com qualidade. Nenhum gestor pode se contentar com a situação da saúde no Brasil hoje.

O senhor pretende aumentar o investimento?

O senhor está a favor do retorno da CPMF?

Nosso governo nunca debateu, nunca cogitou recriar a CPMF para financiar a saúde.

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Alexandre Padilha: “O SUS é público, sou totalmente contrário a qualquer tipo de discriminação em leitos públicos”

ELZA FIUZA/ABR

Nós vamos fazer mais com o que temos. É possível, com maior organização, maior articulação, definindo melhor as prioridades e comprometendo mais os gestores municipais e estaduais e quem dirige a unidade. Estamos lançando, inclusive, um indicador nacional de acesso e qualidade que vai ter uma expressão no município, na região, no estado. Vamos avaliar o desempenho dos sistemas e remunerar mais quem fizer mais e, junto com isso, brigar por mais recursos. Acreditamos que o crescimento econômico vai ser generoso com a saúde no Brasil.


Arthur Pinto Filho (promotor de Direitos Humanos e de Saúde Pública) – Uma lei estadual, aprovada no final do ano passado em São Paulo, possibilita que hospitais gerenciados por organizações sociais (OS) entreguem 25% de seus leitos a particulares e a segurados de planos de saúde. Gostaria de ouvir sua reflexão acerca dessa lei estadual.

O SUS é público, sou totalmente contrário a qualquer tipo de discriminação em leitos públicos. Há uma outra discussão, o ressarcimento dos planos de saúde. Tem uma lei que obriga o ressarcimento pela operadora de planos de saúde quando um usuário, por meio dela, se utiliza de um serviço do SUS. Já sabemos que vários planos não cobrem os procedimentos de mais alto custo. Transplantes, tratamentos quimioterápicos, exames de maior complexidade e UTI acabam vindo para o SUS, e é importante que haja um ressarcimento. A lei atual exige que sejam vistos prontuário por prontuário de paciente, ficha por ficha de um usuário de plano de saúde que procurou o SUS. Isso às vezes causa certa morosidade do ressarcimento, as operadoras entram na Justiça. Por isso, nossa orientação no Ministério da Saúde é melhorar o sistema de informação para termos mais rapidamente essa resposta. Nós acreditamos que, em 2011, vamos ter um aumento no ressarcimento dos planos de saúde ao SUS em relação aos anos anteriores com esse aprimoramento do mecanismo de cobrança.

David Braga (médico do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo) – Estamos num momento de rápida expansão da população idosa e de portadores de doenças crônicas, que dependem de atenção especial. Quais são as políticas públicas que estão sendo desenhadas para atender a essa fenomenal e rápida mudança de demanda e de organização, e mesmo de formação de pessoal?

Os três grandes problemas contemporâneos do país na saúde vão ser o aumento do envelhecimento da população, a obesidade (uma pesquisa divulgada pelo ministério aponta 48% da população brasileira com excesso de peso e 15% obesa) e os acidentes de trânsito. Eu diria que, por conta do envelhecimento da população, precisamos já, hoje, reorganizar seus serviços. Inclusive aumentar a formação de médicos. É preciso rever a necessidade de abrir vagas no curso de Medicina, onde abrir, em que estados, para que em 2030 possamos chegar ao mesmo parâmetro de outros grandes países do mundo. Significa desde já ter políticas como as que fizemos com a oferta gratuita de remédios para hipertensos e diabéticos na rede “Aqui tem Farmácia Popular”. Em 30 dias do programa “Saúde não tem preço”, tivemos o aumento de 104% no acesso de hipertensos e 73% de diabéticos aos medicamentos gratuitos.

Como tornar atrativa a carreira no SUS para médicos e profissionais da saúde, já que hoje sabemos que faltam médicos na rede e existem diferenças salariais gritantes entre trabalhadores contratados pelo poder público e pelas OSs?

São várias as questões que envolvem esse problema. Não podemos ter em uma mesma unidade de saúde, hospital ou unidade básica pessoas com formas de remuneração diferentes, a não ser que essa forma de remuneração tenha a ver com o padrão de qualidade na atenção à saúde. Outra grande questão é que o Brasil precisa de mais médicos. Na comparação, por exemplo, o Rio de Janeiro tem quase 4 médicos por mil habitantes e o Maranhão, 0.6. Isso demonstra que há regiões pouco assistidas. Claro que temos de ter mecanismos de atração que levem profissionais às regiões periféricas, para a atenção primária à saúde.

Josefina Martins de Lima Moura (usuária do SUS) – Ministro, nós estamos morrendo na fila. Eu não sei onde esses políticos jogam o dinheiro, mas dinheiro tem, e eles têm dó de pagar um funcionário para trabalhar em um hospital. Uma coisa eu digo: quem tem dinheiro tem vida, tem saúde, quem não tem dinheiro tem a morte no caixão.

Infelizmente essa é uma situação recorrente ainda, em especial em um sistema que é descentralizado, em que o Ministério da Saúde estabelece diretrizes, constrói políticas, busca repassar recursos, mas não tem controle de tudo aquilo que é feito na gestão em cada município, em cada região. Nosso esforço tem sido exatamente esse, de estabelecer o acesso, ou seja, as pessoas terem a oferta dos serviços no tempo adequado. Uma grande prioridade é induzir financeiramente a isso, poder remunerar melhor os estados e municípios que apresentem melhor desempenho e fazer um conjunto de ações para organizar redes. Por isso lançamos a Rede Cegonha, para enfrentar o problema da atenção materno-infantil durante o parto e depois do parto. Por isso vamos lançar uma política de atenção primária, que vai remunerar melhor os centros de saúde que cumprirem alguns parâmetros de qualidade. Vamos conseguir uma política de urgência e emergência, para atacar, sobretudo, o problema de uma das principais portas de urgência em todo o Brasil.

O Brasil precisa de mais médicos. Na comparação, por exemplo, o Rio de Janeiro tem quase 4 médicos por mil habitantes e o Maranhão, 0,6. Claro que temos de ter mecanismos de atração que levem os profissionais às regiões periféricas, para a atenção primária à saúde

Isso vai ser implantado nos próximos meses?

Isso. As redes de tratamento de câncer de colo de útero já foram lançadas e estão no processo de adesão dos municípios e estados. A atenção primária, urgência e emergência serão os próximos passos. Estamos fechando o processo de pactuação das secretarias estaduais e municipais, tem de ter a parceria para que aquilo que é um desejo da presidenta Dilma possa chegar à casa da Josefina.

Ouça a íntegra: http://bit.ly/entrevista_padilha MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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NA TV

Informação e serviço

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esde que estreou, o Bom para Todos, da TVT, já abordou mais de 40 temas. Foram assuntos como solidariedade, emprego, segurança no trabalho, cidadania, direitos do consumidor, sustentabilidade, reciclagem em condomínios, orientação vocacional e adoção, entre outros. Apresentado pela jornalista Marília Zanardo, com edição de Miriam Portela, o programa busca ser um canal direto para que o espectador tire dúvidas sobre qualquer assunto. Mais que isso, um espaço para manifestações, opiniões e reclamações. A proposta é convidar gente que conhece o tema de interesse do trabalhador. Ele pergunta e a produção vai atrás de quem possa esclarecer, da melhor forma possível, questões sobre aposentadoria, carteira de trabalho, cultura, educação, esporte, Imposto de Renda, leis, saúde, sindicalismo. Perguntas que são feitas nas ruas, nas fábricas. Advogados, economistas, médicos e professores falam sobre como lidar com as dúvidas do dia a dia. Também ecologistas, líderes sindicais e representantes

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Programa Bom para Todos, da TVT, tira dúvidas sobre os mais diversos temas, além de ser espaço aberto para quem quiser manifestar opiniões e reclamar de ONGs respondem sobre os desafios do cotidiano. Mas o programa busca ouvir não apenas técnicos como também gente que, segundo a equipe, mesmo sem curso superior aprendeu com a vida. São pessoas simples, representantes da comunidade, vistos como exemplo de superação e de luta. Caso de Lúcia Soares, fundadora e presidenta, há 22 anos, da Associação do Bairro da Vila Mariana de São Bernardo do Campo. Ela conta como conseguiu unir a comunidade para conquistar benfeitorias, como luz, esgoto,

água, segurança. Quem também esteve lá foi a presidenta do Instituto GEA, Ana Maria Domingues Luz, mestra em Ciência Ambiental pela Universidade de Boston, nos Estados Unidos. No programa, ela ensinou como fazer a reciclagem do lixo em bairros carentes e como administrar a reciclagem em condomínios. Tem de tudo, e é para todos.

Programe-se Bom para Todos vai ao ar todas as quartasfeiras, às 19h30, pela TVT e pela internet. As reprises (somente no canal UHF 46, em Mogi das Cruzes) são exibidas às sextas, à 1h30, e às segundas, às 8h.

Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Às quartas-feiras, das 19h30 às 20h. Logo após o Seu Jornal Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Às quartas-feiras, das 19h30 às 20h Na internet www.tvt.org.br

ROSSANA LANA/SMABC

Bom Para Todos, apresentado por Marília Zanardo (à dir.), vai ao ar todas as quartas, às 19h30


Opinião

Por Laurindo Lalo Leal Filho

A dor como espetáculo O que pode haver de mais vexatório ou constrangedor do que uma criança, diante das câmeras, ser forçada a recordar cenas terríveis até que as lágrimas escorram pelo seu rosto?

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ouco menos de 24 horas depois do massacre violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. de Realengo, na manhã de sexta-feira, 8 de O que pode haver de mais vexatório ou constrangeabril, a apresentadora do programa matinal dor do que uma criança, diante das câmeras e à vista da Rede Globo, Ana Maria Braga, levava ao de milhões de pessoas, ser forçada a recordar cenas estúdio e colocava no ar uma das meninas terríveis até que as lágrimas escorram pelo seu rosto? sobreviventes da tragédia. Seu primeiro comentário foi É um tratamento cruel. sobre a aparência da garota, diferente daquela que vira Nada contra a obrigação da mídia de informar e atenno dia anterior, durante a cobertura dos crimes. der ao interesse do público. O que não é admissível é Além de produzida especialmente para o progra- transformar a notícia num espetáculo macabro. É prema, a menina teve de reviver os momentos dramá- ciso ter claros os limites de onde acaba a informação ticos passados em sala de aula e contar que faziam e começa o show. uma prova de Ciências na hora do atenLembro de um atentado à bomba ocortado. Sem nenhuma sensibilidade, Ana Infelizmente rido há alguns anos num bar da Irlanda do Maria Braga perguntou: “Vocês acaba- caem no Norte, no qual morreram mais de 50 pesram a prova?” Seria cômico se não esti- vazio todos soas. Imagino, com horror, o cenário de véssemos falando de uma tragédia sem um crime como esse, com corpos despeos apelos precedentes no Brasil. daçados espalhados por todos os cantos. Como em casos anteriores, o da me- para que Acompanhei pela BBC a cobertura do nina Isabela Nardoni e o da jovem Eloá, coberturas acontecimento. Fiquei sabendo a localizapor exemplo, a TV transformou o que já jornalísticas ção do bar, o número de mortos e feridos, era trágico em um show de horrores. Des- não tornem o nome da organização sobre a qual resa vez, dado o número de vítimas, o es- mais caía a suspeita do crime, as providências petáculo ganhou dimensões ainda maiotomadas pelas autoridades, enfim, tudo o dramáticas res. Os telespectadores ficam presos a ele que era importante na notícia. Mas não vi movidos por sentimentos ambivalentes: situações uma gota de sangue. o medo de passar pela mesma situação e que, por si só, Curiosamente aqui, naquele mesmo o alívio por não terem sofrido o mesmo já são trágicas dia, um ator de novela sofrera um assalto drama. As emissoras, por sua vez, sabem numa estrada próxima a São Paulo e fora como explorar essa tensão para manter os olhos do pú- baleado. Ao chegar ao local, as equipes de reportagem blico fixos na tela. obviamente não encontraram a vítima, mas a marca de Mas a responsabilidade não é só dos canais de TV, seu sangue no chão ficou na tela por alguns minutos. ávidos por segurar a audiência através do medo. É tamInfelizmente, caem no vazio todos os apelos para bém das autoridades públicas. Em vez de exibidas como que coberturas jornalísticas não tornem mais dramáanimais exóticos nesses programas, as crianças deve- ticas situações que, por si, já são trágicas. Dez dias deriam estar recebendo, naquele momento, apoio de psi- pois da tragédia de Realengo, as crianças voltaram à cólogos e assistentes sociais do Estado, protegidas do escola. A Secretaria de Educação do Rio pediu que os assédio de câmeras e microfones – o que vale também jornalistas as poupassem de novos constrangimentos. para seus familiares. Afinal, era preciso retornar gradualmente à normaliOcorreu o contrário, numa violação clara do Estatuto dade, sem câmeras, microfones e holofotes que caracda Criança e do Adolescente, que em seu artigo 17 ga- terizam situações extraordinárias. Em vão. Aos jornarante aos menores o direito da “inviolabilidade da in- listas e às empresas nas quais trabalham não interessa tegridade física, psíquica e moral, abrangendo a preser- a saúde psíquica vação da imagem...” E, no artigo 18, diz que “é dever de das crianças, mas apenas os índices de audiência todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, dos telejornais da noite e a tiragem dos jornais da mapondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, nhã seguinte.

Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da ECA/USP; diretor e apresentador do programa VerTV, da TV Brasil e da TV Câmara; autor dos livros A Melhor TV do Mundo e A TV sob Controle, da Summus Editorial; e ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação

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CAPA

Um pé no futuro, outro no atraso Setor de cana se moderniza para competir lá fora, mas grande parte dos trabalhadores ainda é excluída Por Vitor Nuzzi

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omeçou mais uma safra de cana-de-açúcar. O período 2010-2011 fechou com recorde de 625 milhões de toneladas colhidas, estima a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Na região Centro-Sul, segundo a Unica (associação que reúne empresários do setor), chegou a 557 milhões de toneladas e deve atingir 568 milhões na safra 2011-2012, com 55% destinados à produção de etanol e 45%, à de açúcar. O setor sucroalcooleiro se expandiu e se modernizou nos últi-

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mos anos, ganhando o mercado externo, mas não ocorreu o mesmo com as condições de trabalho. Apesar de iniciativas de melhoria, grande parte ainda se caracteriza por jornadas exaustivas, más condições de higiene e de moradia e pouca qualificação. E o processo de mecanização em curso elimina cada vez mais vagas. Em São Paulo, principal produtor brasileiro de cana (mais de 50% de todo o país), um acordo firmado em 2007 entre usineiros e o governo prevê o fim das queimadas em áreas mecanizadas em 2014 e, nas de-

mais, em 2017. De acordo com a Unica, a mecanização, que dispensa as queimadas, já representa mais da metade da área colhida. Deve alcançar 60% nesta safra. Do lado dos trabalhadores, é uma ameaça ao emprego. Por causa disso, em algumas regiões do estado, já são notadas alterações nas rotas migrató. Entre as mais comuns do mundo da cana hoje estão as de Codó ou Timbiras (MA) para Guariba ou Pradópolis e de Pedra Branca (CE) para Leme. Essas migrações temporárias, porém, tendem a diminuir nos próximos anos.


Ritmo insano n 17 flexões de tronco por minuto n 54 golpes de facão por minuto n 12 toneladas de cana cortadas e carregadas por dia n Percurso de 9 quilômetros/dia n Perda de 8 litros de água na jornada diária Fonte: Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo

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JOEL SILVA/FOLHA PRESS

EDSON SILVA/FOLHA PRESS

EXCLUÍDOS DO PROCESSO A colheita mecânica avança rápido. Estima-se que em dez anos o número de trabalhadores na colheita manual cairá de 190 mil para zero. São empregos que simplesmente desaparecerão

“A introdução da colheita mecanizada re- geralmente, e põem em risco a saúde dos duziu em São Paulo a mão de obra braçal, cortadores”, aponta o padre. que foi deslocada para o Triângulo MineiEssa realidade também chamou a atenção ro, Goiás e Mato Grosso”, diz o padre An- do Ministério Público do Trabalho, que em tônio Garcia Peres, da Pastoral do Migran- 2008 criou o Plano Nacional de Promoção do te em Guariba, palco de uma Trabalho Decente no Setor Sucroalcooleiro, greve famosa, em 1984 (leia em parceria com outros órgãos públicos. O quadro na página 16). Cidaobjetivo é impedir que a expansão do setor de do interior paulista, a 350 se dê em função de condições Sabe o quilômetros da capital, Guaride trabalho desumanas. ba acostumou-se a receber mi- que é ficar Coordenador de forçasgrantes principalmente do in- “borrado” no -tarefa em Alagoas, Bahia e terior do Maranhão, um dos eito da cana? Rio Grande do Norte, o proestados campeões em denún- É perder o curador Rodrigo Raphael­ cias de trabalho escravo. PaRodrigues de Alencar, do controle do dre Antônio relata que o traMPT alagoano, afirma que balhador preferiria continuar próprio corpo, as fiscalizações precisam se em São Paulo, porque em ou- é sentir um intensificar. “Um único item tras regiões as condições são quenturão não cumprido já causa enormais insalubres e os ganhos, doido, é me transtorno ao trabalhamenores. Mas a falta de quali- como passar dor. A atividade é quase subficação e de escolaridade o em-humana.” Nas fiscalizações por uma purra para onde existir trabade usinas entre 2008 e 2009, lho. “Esse é o grande drama da convulsão... que resultaram em dezenas Depoimento no livro mão de obra rural do Brasil.” de termos de ajustamento do Eito, da No início do ano, a Secreta- Vozes de conduta (TACs) e ações Pastoral do Migrante ria de Estado da Saúde de São civis públicas, os casos mais Paulo divulgou estudo sobre as condições comuns encontrados foram falta de exame nas lavouras de cana, baseado em inspe- médico, transporte irregular e ausência de ções da Vigilância Sanitária. A cada minuto instalações sanitárias, de abrigo para refeitrabalhado são feitas 17 flexões de tronco ções e até de água potável. e aplicados 54 golpes de facão. As pernas Outra situação comum é o tempo de perficam todo o tempo semiflexionadas e há curso até o campo. As chamadas horas in extensão da região cervical da coluna. Por itinere, que devem ser consideradas como dia, são cortadas e carregadas, em média, horário de trabalho, nem sempre são res12 toneladas de cana e percorridos quase peitadas e pagas. “Às vezes são duas horas nove quilômetros. Ao final da jornada, o até o canavial”, observa Alencar. Em abril, o cortador perdeu oito litros de água. MPT notificou usinas em Mato Grosso do O levantamento servirá de base para uma Sul, cobrando a incorporação dessas horas nova regulamentação, segundo a secreta- à jornada. Cláusulas em convenções e acorria. “O setor apresenta grandes contrastes dos coletivos contrariavam a legislação. O na cadeia produtiva. Apesar da alta lucrati- procurador também defende a contratação vidade, as condições de trabalho são ruins, por prazo indeterminado, para garantir di-

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ESTRADA DE CHÃO João enfrenta duas horas de ônibus por dia até a lavoura

reito a seguro-desemprego ao final da safra e à multa do FGTS. Mas isso não ocorre, o que provoca conflitos. Na região de Ribeirão Preto (SP), uma das principais produtoras de cana do país, o esforço conjunto trouxe algumas melhorias. São itens como água gelada e lugar para sentar e almoçar. A jornada de trabalho, que já chegou a 12 horas diárias, em geral é das 7h às 16h. Os trabalhadores são registrados em carteira, eliminando o chamado “gato”, agenciador de mão de obra. Um drama relatado é a fixação de meta de produção, que pode excluir o trabalhador da próxima safra se não for atingida. A média

Em pleno dia de folga a usina ofereceu 100%. Ficamos sem descanso, mas ganhamos um pouco mais. É que a gente fica pensando nas dívidas que tem, e na família que está também na precisão e tão distante, que a gente faz qualquer sacrifício Depoimento no livro Vozes do Eito, da Pastoral do Migrante

Cidade com 30 mil habitantes no leste do Maranhão, a 300 quilômetros da capital, São Luís, Timbiras é uma das principais fornecedoras de mão de obra para as usinas de cana e outros setores. “Praticamente três em quatro famílias tinham um membro migrando, não só para a cana, mas para a construção civil ou para a soja”, observa o professor Marcelo Sampaio Carneiro, coordenador da pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). A pedido da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ele pesquisou a migração do trabalhador

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de Timbiras para outras regiões. O trabalho começou em 2005 e teve uma segunda fase iniciada em 2008. Foram entrevistadas 114 famílias. Entre os principais locais de destino, Goiás (31,18%), São Paulo (30%) e Pará (6,45%). Outras regiões do próprio Maranhão receberam 19,35% dos trabalhadores – especialmente o município de Campestre do Maranhão, onde fica a destilaria Cayman. A cultura da cana foi a ocupação mencionada em mais da metade (54%) dos casos. Quase 61% tinham de 20 a 29 anos (um terço, de 20 a 24), 54% eram casados e 84%, homens.

Fábia: “Vou voltar para a laranja”

LUCAS MAMEDE

Rota Maranhão-São Paulo

Essa migração é forçada pela falta de oportunidades no local, onde predomina a cultura do arrendamento. É uma região que também sofre o impacto da expansão da cultura da soja e de

eucaliptos, reduzindo o número de agricultores familiares. “Uma área de latifúndio tradicional”, define Marcelo Carneiro. “Só não tem o coronel.” Teoricamente, segundo o pesquisador, seria mais fácil fazer reforma agrária no local, já que o preço do hectare não é muito elevado, mantendo assim o trabalhador na região. Também vinda de Timbiras, Fábia Francisca, 29 anos, está há um ano em Guariba. Cruzou o país em busca de melhores oportunidades. Trabalha como “avulsa” no corte de cana há poucos meses. “Mas vou voltar pra laranja”, promete.


FOTOS LUCAS MAMEDE

ENTRE O RUIM E O PIOR Padre Antônio Garcia: “O trabalhador prefere ficar em São Paulo porque nos outros estados as condições são piores”

DURA ROTINA Ainda de madrugada, trabalhadores aguardam ônibus na entrada de Guariba

vai de 8 a 12 toneladas/ano por trabalhador. “É bem sofrido mesmo”, diz João de Souza Silva, 25 anos. Em 2007 ele saiu de Timbiras para trabalhar no corte de cana em Guariba, depois de muito plantar arroz, feijão e milho em sua terra. Mora sozinho a poucos metros do local onde todos os dias, a partir das 5h, os trabalhadores esperam os ônibus que vão levá-los às áreas de cultivo. Dia desses foi barrado pelo motorista. Teria reclamado de viajar em pé em um trajeto de mais de duas horas. “É muita estrada de chão”, conta. João perdeu o dia, mas não o ânimo: “Não tem guerra para não enfrentar”. Em Pernambuco, a Fetape, federação dos trabalhadores rurais do estado, avalia que o acordo coletivo, assinado em outubro passado, trouxe avanços, além do reajuste salarial de 10,51%. O salário passou a R$ 547. O acordo incluiu garantia de contratação formal após cinco dias de trabalho, ampliação do período de afastamento remunerado para internação hospitalar e itens relativos a abrigo e alojamento. Em Goiás, os 40 mil trabalhadores cobram reajuste de 34,7% no piso salarial – o salário-base atual é de R$ 606,77. A Fetaeg­, federação dos trabalhadores, quer fornecimento de alimentação, requalificação profissional e fim do trabalho precário e escravo. Segundo a entidade, poucas usinas se preocupam com o fato de o trabalhador ser obrigado a levar marmita.

Compromisso

A Unica estima que o número de empregados no setor sucroalcooleiro em São Paulo deve encolher de 260 mil, em 20062007, para 146 mil em 2020-2021. O comportamento é diferenciado entre as áreas de atividade: enquanto a indústria deve MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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ESPERANÇA Anisio espera vaga para curso de tratorista, e assim garantir o emprego

ganhar 20 mil empregados no período, de 55 mil para 75 mil, e a colheita mecânica multiplicar de 15 mil para 71 mil, os trabalhadores na colheita manual cairão de 190 mil para zero. Em 25 de junho de 2009, a entidade participou do lançamento, em Brasília, de um compromisso nacional para aperfeiçoar as condições de trabalho. O presidente da Unica, Marcos Jank, destacou a grandeza do setor. “O Brasil responde, mundialmente, por um terço da produção mundial de cana-de-açúcar, 20% da produção e 40% das exportações de açúcar, 30% da produção e 60% das exportações de etanol.” Ele garantiu que a requalificação dos trabalhadores seria tratada como prioridade. “O processo de mecanização acelerou-se por conhecidas razões ambientais e econômicas. No entanto, a perda de empregos no

Guariba não gosta de ser lembrada pela greve de maio de 1984, deflagrada por cortadores de cana e colhedores de laranja e marcada por conflitos violentos. Durante algum tempo, os trabalhadores da região ficaram estigmatizados. Por outro lado, a revolta contra as más condições de trabalho representou o início de um lento processo de melhorias. Para o presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba, Wilson Rodrigues da Silva, a greve de 1984 contribuiu para acabar com a “era do gato” na região. “Só se trabalhava para terceiros, menos (a usina de) São Martinho. Era um período sem negociação coletiva, sem direito a material de trabalho, água gelada, proteção para almoçar”, diz Wil-

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son, ressaltando que ainda falta melhorar a distribuição de renda. “Não tinha horário pra nada, trabalhava do jeito que os outros queriam, não tinha registro...”, enumera Antônio Mariano, 66 anos, 44 safras. Transporte era na base do pau de arara, em caminhões abertos. Os óculos de proteção só vieram muito mais tarde, assim como luvas e caneleiras. “Muita gente machucava a vista, sofria corte, trabalhava de tênis”, conta, exibindo as marcas em seu corpo. Colher até 17 toneladas de cana em um único dia permitiu fazer um bom pé de meia? “O que consegui foi esta casinha e criar meus (sete) filhos”, responde Antônio, que gosta de passar o tempo em um velho sofá no quintal.

Antônio Mariano: “Trabalhava do jeito que os outros queriam”

LUCAS MAMEDE

Lições de uma greve


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SAUDADE Depois de cinco anos longe, Manuel e Zuleine se preparam para voltar ao Maranhão

Perfil do trabalhador Número decrescente

n Um terço tem de 20 a 30 anos n 60% têm de 20 a 40 anos n A escolaridade média é de 4,5 anos n Renda média: R$ 676,88 Fonte: Grupo de Extensão em Mercado do Trabalho (GEMT)/Esalq-USP

setor ao longo dos anos é uma consequência negativa da mecanização, que agora será devidamente tratada por um amplo conjunto de políticas públicas e privadas no âmbito desse compromisso”, afirmou Jank, para quem a “alma” do acordo será valorizar as melhores práticas trabalhistas. Na mesma cerimônia, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou que, “depois de brigar a vida inteira” contra o trabalho insalubre no campo, o desafio mudou. “Somos favoráveis a que esse trabalho insalubre seja cada vez menos feito manual­ mente pelo homem. Mas aí entra o outro desafio: onde colocar esses trabalhadores?” Em 2010, a Unica lançou o RenovAção, um projeto de requalificação. “Um módulo é para dentro da usina, outro é para a comunidade”, diz Maria Luiza Barbosa, assessora de responsabilidade social corporativa da entidade. Assim, os cursos podem ser voltados tanto para outras funções no

SERGIO MORAES/REUTERS

1981 625.016 2009 542.588

próprio setor como para demandas específicas por região. Antes da atual safra, praticamente metade dos trabalhadores que passaram pelo projeto já estava exercendo outra atividade. Maria Luiza conta que a mecanização criou novas necessidades. “A máquina precisa de 18 homens. Essas 18 profissões voltadas para a máquina não existiam, como soldador especializado em colhedora, porque não havia colhedora.”

Na fila

Anísio Pequeno dos Santos, 28 anos, há dez na cultura da cana em Guariba, está na fila. “Estou esperando vaga para a escolinha (curso) de tratorista”, diz ele, pouco antes de pegar o ônibus para o trabalho. Sua jornada vai das 7h às 16h, com direito a uma hora de almoço, em marmita com valor descontado de R$ 1,90. “Alguns colegas já saíram”, conta Anísio, falando dos que perderam o emprego devido à mecanização. Ele diz que em dia ruim dá para tirar cerca de R$ 20. Em dias bons, de R$ 50 a R$ 60. Os trabalhadores ganham por quantidade colhida. Para a professora Marcia Azanha Ferraz Dias Moraes, do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, o impacto negativo sobre o emprego em São Paulo não é maior devido à expansão da produção. Mesmo o deslocamento para outras regiões é limitado,

porque em outros estados as novas áreas de corte já são mecanizadas. A vinculação da atividade com trabalho escravo ou degradação do meio ambiente também exigiu mudanças. A formalização cresceu e ultrapassou a do cultivo de laranja ou de soja. “O setor melhorou porque o consumidor exige”, afirma Marcia. “O etanol virou produto de exportação. Não tem como vender um produto ligado a isso.” A mesma colheitadeira que pode criar 18 funções pode corresponder a 80 cortadores a menos, reduzindo as oportunidades nessa função. Nas novas áreas de colheita, como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, tudo já estará mecanizado, segundo a professora. Para atenuar o problema, ela sugere políticas públicas na região de origem dos trabalhadores. Assim, eles poderiam permanecer na terra natal, em vez de migrar atrás de um emprego incerto. Manuel Vieira de Morais e sua mulher Zuleine estão prontos para voltar. Cinco anos depois de fazer uma viagem de dois dias e meio de Codó até Guariba, o maranhense acredita que é momento de fazer as malas e juntar toda a família novamente. Ele pediu para ser demitido. Já tem um terreno em sua cidade, no qual pretende trabalhar. Cinco dos seis filhos já se foram. O trabalhador, hoje auxiliar agrícola, não esconde a alegria ao falar do retorno. “Todo dia você sente saudade. Mas tem dia que bate mais.” MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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MUNDO

O mito chinês Quem acha que a China é um mar de rosas para a exploração da força de trabalho pode ter uma surpresa Por Wladimir Pomar 18

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China continua o país mais populoso do mundo. Nos últimos 60 anos, a população economicamente ativa se manteve próxima dos 60% da população total. Hoje, isso representa cerca de 830 milhões de trabalhadores, dos quais 300 milhões são agrícolas (autônomos e assalariados), 250 milhões urbanos (industriais, comerciais e de serviços), 160 milhões da indústria, comércio e serviços

existentes nas zonas rurais e 120 milhões assalariados migrantes. O número de aposentados ultrapassou os 143 milhões. De 1980 a 2010, a força de trabalho cresceu cerca de 300 milhões. Mas, enquanto o número de trabalhadores agrícolas se manteve relativamente estacionado, mais de 200 milhões se transferiram dos campos para as indústrias urbanas. Em vista de sua escala, o mundo chinês do trabalho desperta não só interesse como interpretações variadas.


BOBBY YIP/REUTERS

JOE TAN/REUTERS

GIGANTISMO De 1980 a 2010 a força de trabalho no país cresceu cerca de 300 milhões

PRESSÃO Apesar de a lei garantir a existência de sindicatos por empresas, a Foxconn, principal fornecedora dos iPhones, da Apple, entrou em atrito com seus trabalhadores, que querem se organizar

Embora tenha perdido força a ideia de que os baixos preços das mercadorias chinesas se devam a trabalho escravo, ainda há gente que considera essa prática predominante naquele mercado. Por outro lado, muitos empresários, no Brasil e em outros países, continuam supondo que os baixos salários são o componente fundamental dos preços dos produtos fabricados por lá. Sem distinguir a diferença entre salário nominal e real, gostariam de implementar o sistema de baixo salário real, como se este já não vigorasse há muito tempo por aqui. Além disso, a maioria não compreende os problemas que qualquer processo de transição de matrizes produtivas impõe a um país. Talvez por isso não sejam poucos os que veem os conflitos trabalhistas existentes na China como a característica principal de seu mercado de trabalho. Não levam em conta sua história a partir dos anos 1950, quando foi implantado o pleno emprego, com base no sistema 3 por 1, no qual três trabalhadores ocupavam um posto de trabalho, numa espécie de emprego vitalício designado pelo sistema de alocação governamental. Esse sistema garantiu emprego a toda a força de trabalho. Cada empresa era responsável pelos serviços médicos, aposentadorias e outros benefícios sociais. Embora teoricamente isso fornecesse tranquilidade aos trabalhadores, na prática travava a elevação da produtividade, impedia o desenvolvimento das forças de produção e, portanto, mantinha a sociedade num baixo nível de consumo e riqueza. A situação começou a mudar com as reformas nas zonas urbanas a partir de 1984. Com a adoção paulatina da economia de mercado, a força de trabalho passou à categoria de mercadoria. Os empresários, no início basicamente as estatais, podiam contratar ou demitir conforme suas necessidades. Os trabalhadores, por sua vez, estavam livres para trocar de emprego à medida que desejassem, ou ter o próprio negócio.

Mercado de trabalho

Tal processo não se implantou bruscamente. Por um tempo, as estatais e os governos locais se encarregaram de criar alternativas para a realocação dos excedentes e evitar um desemprego maciço. Somente depois de dez anos o mercado de trabalho se instalou em toda a China. Hoje, ele MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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atende 40 milhões de micro e pequenas empresas urbanas comerciais e de serviços, 22 milhões de empresas industriais rurais de povoados e cantões e centenas de milhares de médias e grandes empresas. São empresas privadas nacionais, privadas estrangeiras, públicas cooperativas, públicas estatais e mistas – neste último caso, associações entre os quatro tipos anteriores. A introdução, mesmo que paulatina, do mercado de trabalho, representou uma mudança considerável. Antes, os trabalhadores estavam despreocupados quanto à elevação da produtividade, escolha da carreira, competição por emprego, desemprego e outros fenômenos típicos das economias mercantis. A partir de então, passaram a enfrentar a disputa por vagas. Outra mudança significativa, com as reformas de 1984, refere-se à diversificação das profissões. Várias simplesmente desapareceram, ou se tornaram redundantes. Já as relacionadas com serviços de transportes, correios, telecomunicações, finanças, turismo, esportes e com as indústrias eletrônicas emergiram com força. Essas transformações representaram um desafio, tanto para as diversas categorias de trabalhadores como para o governo. Nem todos os empresários conheciam as leis trabalhistas, o que os levou a constantes conflitos com os empregados. Apenas de 2001 a 2005, numa inspeção em 4,2 milhões de empresas, mais de 1 milhão foram flagradas com empregados sem contrato, envolvendo 34 milhões de trabalhadores. Outro aspecto importante é que, a cada ano, devem ser criados milhões de empregos para atender à incorporação dos jovens que chegam à idade de trabalho. Nos anos 1980 esse número beirava os 14 milhões, mas caiu paulatinamente com a introdução da política de filho único. Ainda assim, são 9 milhões de novas vagas por ano. Além disso, cerca de 4% da população economicamente ativa não encontra emprego. Nessas condições, a interferência do Estado tornou-se relevante para garantir o cumprimento das leis, pagamento de seguro-desemprego e manutenção e instalação de indústrias intensivas em trabalho, isto é, geradoras de grande número de emprego. Em 2008, o Estado gastou 25,1 bilhões de yuans (US$ 3,1 bilhões) nesse seguro, mais as verbas destinadas a cursos de reciclagem

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DAVID GRAY/REUTERS

Desemprego

CONTRASTE Profissões ligadas a transporte, turismo, finanças e eletrônica são valorizadas...


BOBBY YIP/REUTERS REUTERS

CHÃO DE FÁBRICA Protesto dentro da Honda: empresas desconhecem a legislação trabalhista, o que faz crescer o número de reclamações na Justiça

...já, no campo, ainda predomina o trabalho manual e a população mantém-se constante

profissional e financiamento de novos negócios. Algo interessante no sistema de seguro-desemprego na China é que, para recebê-lo, os trabalhadores devem prestar serviços comunitários e fazer cursos de reciclagem profissional. O Estado também aprovou uma lei de promoção do emprego, de modo a, pelo menos, impedir que o desemprego supere os 4%. Isso levou à criação, entre 2005 e 2010, de mais de 45 milhões de oportunidades de trabalho. Embora os salários tenham subido, em média, 6% ao ano, ainda estão longe dos níveis internacionais, mas são compatíveis com os preços locais. Em outras palavras, em termos nominais, relacionados aos salários em outros países, são baixos. Em termos reais, referentes a seu poder aquisitivo, são razoáveis ou elevados. Os salários médios mensais dos migrantes em 2006, por exemplo, eram de 953 yuans, ou US$ 125. Pela paridade cambial, esse valor é insignificante. No entanto, pela paridade do poder de compra ou em relação aos preços internos chineses, seu poder aquisitivo é de três a cinco vezes superior a um salário brasileiro equivalente a US$ 125. Os salários médios das estatais, correspondentes a US$ 1.032 em 1999, se elevaram para US$ 4.539 em 2008. Os trabalhadores também travam diferentes lutas por seus direitos. Apenas em 2005 ocorreram mais de 230 mil disputas trabalhistas, envolvendo cerca de 560 mil trabalhadores. Embora pareça muito, em escala chinesa esses números são pequenos. Os 560 mil representam 0,06% da população economicamente ativa, 0,22% dos trabalhadores urbanos, 0,35% dos trabalhadores das indústrias rurais e 0,46% dos trabalhadores migrantes. Com a industrialização e urbanização do país, muitos empregadores, inclusive estatais, sentiram-se estimulados a infringir os direitos dos trabalhadores. Não mais que 20% das pequenas e médias empresas assinaram contratos com seus empregados. Mais de 60% dos trabalhadores só possuem contratos de curto prazo. Governos locais sacrificam os interesses dos trabalhadores na busca de ganhos econômicos. Conflitos relacionados com agressões ao meio ambiente têm se multiplicado. Nesse sentido, o que distingue a China é a constante preocupação do Estado em estabelecer uma legislação que garanta os direitos dos trabalhadores, com punições MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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STRINGER SHANGHAI/REUTERS

severas aos empresários que os agridem. Paralelamente, o Partido Comunista e o governo consideram que a conquista e a consolidação de direitos devem resultar da luta dos trabalhadores, e não do paternalismo estatal. Estão convencidos de que as centenas de milhões de camponeses que se transformaram em operários industriais e trabalhadores de outras categorias urbanas não ganharão consciên­ cia de seus novos problemas e de sua força social se não passarem pela experiência da luta de classes. Diferentemente de muitos outros países, o que o Estado e o PC chineses garantem é estar ao lado desses trabalhadores.

Legislação

Como resultado desse processo, a China possui diversas leis em curso desde o início dos anos 1980. A Lei de Trabalho foi aprovada em 1994, mas seu sistema não protegia suficientemente os trabalhadores nem respondia aos desequilíbrios existentes entre oferta e demanda. Milhares de empresas

HABITAÇÃO Garantir acesso à moradia também faz parte do processo de crescimento chinês. O governo mantém os preços estáveis, dá financiamento e barra a especulação

Parceiro incômodo Dois anos atrás, chineses tornaram-se principais parceiros comerciais do Brasil. Mas preocupam desde Obama até empresários da indústria Por Vitor Nuzzi “As relações sino-brasileiras adquirem cada vez mais conteúdo estratégico e significado global”, assinala comunicado conjunto dos governos do Brasil e da China divulgado em 12 de abril, durante viagem da presidenta Dilma Rousseff ao país asiático, que incluiu ainda a terceira reunião de cúpula dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Exatamente dois anos atrás, a China ultrapassou os Estados Unidos e tornou-se nosso principal parceiro comercial. Em 2010, as exportações brasileiras para o país asiático atingiram US$ 30,8 bilhões (15% de nossas vendas) e cresceram 46,57% em relação ao ano anterior. Na relação comercial com os chineses, o Brasil teve supe-

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rávit de US$ 5,2 bilhões. Mais do que as transações, porém, a aproximação entre as duas nações se insere em uma fase de rearranjo de forças globais. Na visão do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Brasil se deu bem ao optar por relações mais profundas com países em desenvolvimento­, casos de China e Índia. “O grupo do Brasil está muito bem posicionado num mundo em que os mercados emergentes são o motor do crescimento mundial”, diz estudo divulgado em março. Por outro lado, há desafios como um possível superaquecimento­da economia e a apreciação da taxa de câmbio (valorização do real ante o dólar).

Na recente visita ao Brasil, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reconheceu que é preciso levar o anfitrião mais a sério. “Chegou a hora de tratar o Brasil como China e Índia”, declarou. Mas, para o ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim, Obama desperdiçou oportunidades, ainda mais se os norte-americanos se incomodam com a crescente influência chinesa na América Latina e na África. “Se os Estados Unidos estão preocupados com isso, podiam ter feito duas coisas: uma é apoiar o Brasil para o Conselho de Segurança (das Nações Unidas). Outra é abrir o mercado de etanol. Porque é dessa maneira que você neutraliza a influência dos outros”, disse Amorim à BBC Brasil. As principais ressalvas partem do setor industrial. Enquanto o Brasil tem superávit, a indústria de transformação é deficitária no comércio com os chineses. O presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, falou recentemente em práticas desleais de comércio. Para ele, o Brasil não deve reconhecer a China como uma economia de mercado.


a ausência de apoio ao primeiro emprego empresas estrangeiras – KFC, McDonald’s, dos graduados nas universidades; a falta de Roche, Pepsi, BNP, Kodak – decidiram não pagamento do seguro social pelas empre- mais resistir. Atualmente, a Confederação-Geral dos sas etc. Outro exemplo de lei de difícil aplicação, Sindicatos da China (ACFTU, na sigla em em especial pelas empresas estrangeiras, é inglês) possui 1,17 milhão de federações filiadas, englobando 7,7 mia que garante o direito dos tralhões de sindicatos de base e balhadores de se organizar em Um salário 150 milhões de membros. E, sindicatos nas empresas, sem de US$ 125 apesar de ainda existirem cernecessidade de aprovação dos na China ca de 500 milhões de chineses empresários. Das 100 mil com- tem poder na faixa da pobreza, panhias estrangeiras em terriaquisitivo de vivendo 800 milhões ascenderam aos tório chinês, com 25 milhões diversos patamares da classe de trabalhadores, apenas em 3 a 5 vezes superior ao média – metade situa-se no 40% existem sindicatos. nível de classe média alta. Vários exemplos foram no- mesmo valor Nessas condições, aqueles tórios. A FoxConn, de origem no Brasil taiwanesa, com 200 mil trabaempresários brasileiros que lhadores, tentou impedir a fundação do supõem o mercado de trabalho chinês sindicato em sua unidade de montagem de como um mar de rosas para a exploração iPods em Shenzhen. No caso da rede Wal- da força de trabalho, sem legislação e sem -Mart, com 62 supermercados em várias re- sindicatos, e pretendem adotá-lo no Bragiões e mais de 6.000 empregados, foi pre- sil podem ter uma surpresa desagradável ciso interferência judicial. Após a criação quando descobrirem que o mito não corde sindicatos nessa multinacional, outras responde à realidade.

INFLUÊNCIA Dilma e o presidente da China, Hu Jintao, celebram novas relações comerciais

O atual chanceler brasileiro, Antônio Patriota, disse que a intenção é fortalecer a relação comercial com a China, mas o governo está atento a “questões pontuais” relacionadas a alguns setores.

Na reunião dos Brics, além de agradecer à China pela liderança demonstrada no encontro, Dilma deixou claro que a influência desses países na ordem mundial será cada vez maior. “Vejam as iro-

ROBERTO STUCKERT FILHO/PR

nacionais e estrangeiras aproveitaram-se dessa brecha e estabeleceram salários e horários de trabalho arbitrários, assim como condições de trabalho e de vida incompatíveis com o conjunto da legislação social. Com isso, o projeto da Lei de Contrato, aprovado em março de 2006, acabou por receber o maior número de denúncias e sugestões populares, atrás apenas do projeto de Constituição de 1954. Quase 200 mil cartas chegaram ao comitê do Congresso encarregado do assunto. Todas denunciavam uma gama considerável de discriminações: as dificuldades que os 120 milhões de chineses que contraíram hepatite B enfrentavam para obter emprego, assim como as sofridas por mulheres, deficientes, trabalhadores rurais e os que não haviam recebido educação superior; as diferenças salariais nas estatais, para uma mesma função, entre os trabalhadores oficialmente contratados, com salários mais altos que os dos temporários e com seguro social; as agências ilegais que roubavam o dinheiro de migrantes com promessas de emprego;

nias da história. Até pouco tempo atrás, Brics era apenas uma sigla inventada por um economista do sistema financeiro. Mas a história nos atribuiu responsabilidades crescentes.”

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Retrato da g CIDADANIA

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Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil é um painel do drama de populações atingidas, no próprio território, por projetos predatórios Por Cida de Oliveira reitos humanos e da economia solidária, a iniciativa tem apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Seu principal objetivo é sistematizar situações relevantes do ponto de vista socioambiental e sanitário e torná-las públicas, dando voz às populações atingidas. “Lamentavelmente, após a publicação do mapa, já ocorreram outros 88 conflitos, 60 estão em vias de pesquisa e validação e denúncias chegam diariamente pelo canal de contato do site”, diz Tania Pacheco, pesquisadora e coordenadora executiva do estudo. Dos 297 conflitos iniciais, 61% estão localizados na zona rural – 227 deles envolvendo

disputa por terra e território –, 31% nas regiões urbanas e o restante em lugares onde ambos se misturam. Indígenas, agricultores familiares, quilombolas, pescadores e ribeirinhos estão entre os mais atingidos. Um olhar sobre o mapa, segundo Tania, revela um Brasil devastado. No interior imperam a pecuária, a soja, a cana e os grandes empreendimentos consumidores de energia, que desmatam, queimam, inundam, contaminam e demandam a construção de mais hidrelétricas e termelétricas. O litoral, marcado pela carnicultura e por megaempreendimentos turísticos, tem seus manguezais destruídos, além de praias e do próprio mar privatizados. E, de norte a

MELQUÍADES JR.

A

bril de 2010, dia 21. José Maria Filho é assassinado com 19 tiros, ao voltar para casa, no sítio Tomé, em Limoeiro do Norte, interior do Ceará­. Trabalhador rural e líder comunitário, ele vinha denunciando desapropriações de agricultores em função de grandes projetos de irrigação na região do Vale do Jaguaribe, bem como o uso de agrotóxicos e a pulverização aérea que, de dez anos para cá, contaminam a população, animais e a água de toda aquela área. O crime ainda não foi esclarecido, mas sabe-se que os documentos que comprovam essas denúncias foram levados pelos autores da emboscada. Pesquisas do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará mostram que, em 2002, o câncer matou 37 pessoas em Limoeiro, número que subiu para 56 em 2006 e para 188 em 2009. Os tumores mais comuns foram de fígado, estômago, pulmões, mama e próstata. A maioria das vítimas era de agricultores. Segundo a médica Raquel Rigotto, que há quatro anos estuda o impacto dos agrotóxicos na saúde dos trabalhadores rurais e dos consumidores de frutas no estado, as pulverizações sobre as lavouras de abacaxi, melão e banana próximas à casa dos agricultores – proibidas em março passado graças a denúncias como as de Zé Maria – fazem grande estrago à saúde. “Pesquisas científicas comprovam a relação entre câncer e agrotóxicos”, afirma. Provável razão da crescente incidência de câncer em trabalhadores e moradores do Vale do Jaguaribe, a prática acontece em muitas outras regiões brasileiras, e é um dos 297 conflitos listados pelo Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, que desde janeiro de 2010 pode ser acessado na internet (www.conflitoambiental.icict. fiocruz.br/index.php). Fruto de um projeto conjunto da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Fase, organização não governamental voltada à promoção dos di-

CRIME SEM CASTIGO José Maria defendia os agricultores de desapropriações no Ceará


RENATA PINHEIRO/MOVIMENTO XINGU VIVO PARA SEMPRE

ganância

Usina de Belo Monte ameaça a pesca e a vida no Xingu Naquela segunda-feira de março o almoço foi farto em Altamira, sudoeste do Pará, onde começa a grande volta do Rio Xingu e será erguida a hidrelétrica de Belo Monte. Cerca de 250 moradores saíram no dia 11 para fazer uma pescaria-protesto. Voltaram três dias depois, com 6 toneladas de peixe em seus barcos. A Grande Pescaria em Defesa do Xingu se encerrou em dia de luta contra a construção da usina. Esta, segundo o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental do Ibama, deve acabar com parte do estoque de peixes da região, base da alimentação e da economia de comunidades indígenas e ribeirinhas.

A chegada dos pescadores ao Porto de Altamira, próximo ao prédio da Eletronorte (responsável pelo empreendimento), ocorreu com uma “romaria fluvial”, seguida da preparação e distribuição dos peixes a mais de 600 pessoas. Depois do almoço coletivo, entidades de apoio à causa e famílias carentes de Altamira receberam o pescado. A coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, Antonia Melo, afirma que a resistência à usina unificou comunidades de pescadores de diversos municípios. “Muitos que hoje moram no Xingu foram expulsos da região de Tucuruí e conhecem muito bem a destruição que uma hidrelétrica causa.”

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Mapa da Injustiça Ambiental O quadro, baseado nos 297 conflitos iniciais, destaca um dos casos listados por estado. Para conhecer todos os grupos atingidos pelos os conflitos, bem como os riscos a que estão diretamente expostos, acesse o portal da Rede Brasil atual: www.redebrasilatual.com.br Roraima: 3 conflitos Continuam os embates em torno das terras indígenas de Raposa Serra do Sol, envolvendo índios, governos estadual e federal, empresas públicas e privadas

RR

Amazonas: 15 conflitos O Arco do Desmatamento, que engloba o sul amazônico, parte do Maranhão, o norte de Rondônia e o norte de Mato Grosso, é visado por grandes produtores de soja, madeireiros e pecuaristas

Acre: 8 conflitos Índios Ashaninka lutam contra madeireiras, prospecção de petróleo e gás, biopirataria e apropriação de conhecimentos de seu povo pela indústria Tawaya, que, no processo, arrola a Natura Cosméticos

FOTOS RODRIGO QUEIROZ

sul, vê-se o deserto verde pintado pela monocultura do eucalipto, viciada em pesticidas e agrotóxicos, nocivos à flora brasileira. O estudo também desfaz o mito das invasões estrangeiras. Proprietários brasileiros são responsáveis por muitos empreendimentos que acabam com as florestas nativas, dizimam o ambiente e expulsam habitantes, partindo do Sul rumo ao Norte e Nordeste e arrasando o Centro-Oeste na passagem. “Entre eles, pessoas que se orgulham de ter entrado para a lista dos mais ricos do mundo, sem se envergonhar do custo que essa riqueza impõe ao nosso país e à grande maioria da população”, afirma Tania. “E os conflitos ambientais mapeados mostram que as mais atingidas são, sobretudo, as comunidades historicamente discriminadas por suas origens étnicas, como indígenas e quilombolas, entre outras.” Segundo Tania, atuações do Judiciário, do Ministério Público e de Defensorias são causadoras de 4% dos problemas listados no mapa. É o caso de Palmeira dos Índios, em Alagoas, onde há confusão jurídica, terras, interesses econômicos e ligações obscuras dividindo o povo Xukuru de Ororubá. Indígenas são condenados à prisão e pistoleiros permanecem impunes ou vivendo em regime semiaberto. “A etnia é apoiada por diversas entidades indigenistas e de defesa dos direitos humanos, sindicatos locais e pelo Ministério Público Federal. Em contrapartida, a Defensoria Pública Estadual teria auxiliado alguns dos fazendeiros opositores da demarcação”, aponta. Há pouco mais de um ano na internet, o retrato dos conflitos, que sofreu várias pressões, já tem o que comemorar. No final de janeiro, foi criado o Núcleo Maranhense do Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, formado por entidades como o Grupo de Estudos sobre Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente da Universidade Federal do Maranhão, a Campanha Justiça nos Trilhos, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, o Fórum Carajás e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Cabe ao núcleo abastecer o mapa, denunciando outros conflitos no estado e complementando os já documentados à medida que fatos novos ocorram. A ideia é que núcleos como esse sejam instituídos em todos os estados, possibilitando um aprofundamento no número de conflitos e nos relatos, sob a responsabilidade de entidades e pesquisadores locais.

AM

AC RO Rondônia: 8 conflitos Violações aos direitos humanos, como assassinatos, tortura e semiescravidão, sofridas pelos indíos Cinta-Larga e por garimpeiros, além da disseminação do alcoolismo, prostituição e aumento da ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), desnutrição e mortalidade infantil

TRABALHO SEM FIM Tania Pacheco, pesquisadora e coordenadora executiva do estudo: “Desde a publicação do mapa já ocorreram outros 88 conflitos”

Mato Grosso: 15 conflitos Trabalhadores de mais de 20 municípios são submetidos a um regime análogo às condições da escravidão

Mato Grosso do Sul: 4 conflitos Os impactos da poluição gerada pelas usinas de álcool e da monocultura da cana serão devastadores caso a atividade seja liberada pelo governo estadual

Goiás: 8 conflitos Minaçu tem minas de amianto em operação. O mineral, cancerígeno, continua a fazer novas vítimas, embora seu banimento total seja defendido em quase todo o mundo

Rio Grande do Sul: 10 conflitos São registrados distúrbios psíquicos, que resultam em suicídios, e problemas associados ao manuseio de agrotóxicos por agricultores na região de Bento Gonçalves


e Saúde no Brasil Amapá: 7 conflitos Mulheres e crianças de mais de 20 municípios ribeirinhos têm os cabelos e o couro cabeludo puxados para dentro do motor das embarcações, em péssimas condições e sem fiscalização

Pará: 13 conflitos O risco de construção do complexo hidrelétrico de Belo Monte poderá destruir as formas tradicionais de organização social e econômica das populações indígenas da região de Volta Grande do Xingu (leia mais na pág. 25) Tocantins: 9 conflitos A monocultura de soja transformou o município de Campos Lindos em campeão nacional de pobreza e desigualdade

Piauí: 4 conflitos O extremo sul, singular patrimônio arqueológico e transição entre caatinga e cerrado, está ameaçado por projetos de expansão agrícola e mineração Ceará: 12 conflitos Entre eles o que envolve 12 municípios do Vale do Jaguaribe, nos quais o uso indiscriminado de agrotóxicos contamina recursos hídricos e é a provável razão da forte incidência de câncer em populações trabalhadoras de toda a região

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Santa Catarina: 13 conflitos Moradores de 8 municípios são contrários à construção de estaleiros do grupo EBX, que trará impactos ambientais e socioeconômicos

Rio Grande do Norte: 8 conflitos O mau uso do solo e abuso dos recursos hídricos em 9 municípios ampliam a desertificação no Nordeste; 95% do território do Rio Grande do Norte já apresenta sinais do estresse natural Paraíba: 6 conflitos Contaminação dos rios do território das 24 aldeias Potiguara e convivência das crianças em lixões Pernambuco: 15 conflitos Um aterro sanitário industrial ameaça a vida marinha e a saúde pública na principal região pesqueira do estado

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MG

Maranhão: 8 conflitos A construção de mais uma barragem pela Vale do Rio Doce, Alcoa Alumínio e Camargo Corrêa vai alterar o regime de cheias e vazantes do Rio Tocantins e afetar comunidades ribeirinhas que vivem da pesca

Alagoas: 9 conflitos Quilombolas de Palmares dos Índios são ameaçados de morte e negligenciados, ironicamente na mesma região do Quilombo dos Palmares Sergipe: 10 conflitos Os Xocó-Kuará, a última etnia indígena do estado, sofrem por falta de atendimento médico, sanitário e educacional na llha de São Pedro Bahia: 23 conflitos Em Caetité e Lagoa Real a exploração de urânio envolve licenciamentos obscuros, contaminação e falta de transparência na fiscalização

São Paulo: 30 conflitos Em terreno na região densamente povoada da zona sul da cidade de São Paulo está armazenada quase 1 tonelada de material radioativo produzido pela extinta Nuclemon Paraná: 14 conflitos A população de Adrianópolis convive com montanhas de escória de chumbo a céu aberto deixadas por mineradora desativada

Espírito Santo: 12 conflitos A Aracruz Celulose, em Barra do Riacho, é acusada de desorganizar comunidades e utilizar de violência para expulsá-las de seus territórios Minas Gerais: 13 conflitos O Alto e Médio São Francisco, em mais de 14 municípios, sofrem com a poluição causada pela mineração e siderurgia dos grupos Votorantim e Vale

Rio de Janeiro: 24 conflitos Degradação ambiental da baía de Sepetiba pela instalação de terminais portuários e usinas termoelétricas pela Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA)

Barcos na praia em Sepetiba: sem pescaria

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ENTREVISTA

A Lร GICA DA TRAN O cerrado, escolhido para o avanรงo da monocultura, foi tomado primeiro pela soja e estรก sendo dominado pela cana para o etanol e pelo eucalipto para a celulose

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ANSFORMAÇÃO Dom Tomás Balduíno só quer uma sociedade mais justa e que respeite os direitos do povo da terra Por Cida de Oliveira

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os 88 anos, o bispo emérito de Goiás, dom Tomás Balduíno, mora no Convento dos Dominicanos São Judas Tadeu, em Goiânia, mas viaja pelo mundo a convite de organizações para palestras sobre latifúndio, monocultura e água. Cofundador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da qual foi presidente, ele defende uma sociedade mais equilibrada, sem tamanha sede de consumo e conforto a todo custo. Bem-humorado, manteve sua postura crítica durante as quase duas horas de entrevista. Confira os principais trechos. O que mudou no tratamento do homem do campo da ditadura­até hoje?

Superamos um estado de repressão, de desaparecimento, de matança. Eles não brincavam em serviço. Mas o golpe foi dado prioritariamente para quebrar a espinha dorsal das organizações camponesas, porque eles achavam que elas eram a porta de entrada do comunismo internacional. Não sei se os militares faziam isso (por conta própria) ou se eram orientados pelos Estados Unidos. Eles generalizavam porque eram partidos de esquerda que organizavam os trabalhadores. Foi por isso que nasceu a CPT: havia repressão aos trabalhadores rurais e aos indígenas. Então a Igreja entrou em cena. O MST nasceu nesse tempo, embaixo do guarda-chuva das igrejas ligadas às Comunidades Eclesiais de Base, e cresceu com a abertura lenta e gradual. Assim como as organizações indígenas, que cresceram muito. Hoje há muitas organizações, autônomas. E isso é que é bonito: a Igreja com a opção pelos pobres. A gente não discutia com eles, apoiava.

PABLO DE REGINO

Hoje há mais de 300 conflitos envolvendo indígenas, trabalhadores rurais e quilombolas. A questão da terra está longe de ser resolvida?

Os povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, ribeirinhos e seringueiros têm outro relacionamento com a terra, com as águas. Por isso não são levados em consideração pelas políticas, já que o governo se relaciona com a terra do ponto de vista da produção, do agronegócio. O cerrado, escolhido para o avanço da monocultura, foi tomado primeiro pela soja e está sendo dominado pela cana para o etanol e pelo eucalipto para a celulose, entre outras culturas. Isso preocupa muito porque, embora seja de grande importância para o equilíbrio ecológico do país e da América Latina, é um bioma desvalorizado pelo capital, tratado como área MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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de exploração. Suas plantas funcionam como reservatórios de água do nosso país. Se o cerrado for arrasado pela monocultura, haverá desequilíbrio.

FOTOS PABLO DE REGINO

Qual a razão desse interesse no cerrado?

Por que tem de prevalecer a lógica da superprodução? O índio se relaciona com a mãe terra de maneira harmoniosa, mística, afetiva

Porque o terreno em geral é plano, com vegetação frágil, tortuosa, pequena, não dificulta o trabalho das máquinas. O que não acontece na floresta, onde é mais complicado desmatar em pouco tempo para fazer campos de monocultura até perder de vista. O desmatamento do cerrado prejudica o sistema freático. A rama, a copa das plantas, tem o correspondente em raiz – que funciona como uma esponja, uma caixa d’água, alimentando o freático e a planta durante a estiagem. Se arrancá-la, o circuito da água deixa de ser vertical, em direção ao freático, e torna-se horizontal, causando erosão, assoreamento de córregos e rios.

Mas há alternativas que garantam maior produção em menor área plantada?

Há várias alternativas à destruição da vegetação nativa que vão em direção oposta à chamada revolução verde (o plantio de eucaliptos em grandes extensões). Aparentemente são bonitas as grandes extensões verdes, que produzem o suficiente para alimentar o mundo, não é? Mas isso é um engano. A revolução verde foi pensada para substituir aquilo que existia antes, onde entra o trator que corrige a terra, aduba, põe calcário, semente, tudo de uma forma mecânica, pesada. Embora a cobertura seja verde, é na verdade um deserto verde. Esse modelo destrói o meio ambiente, acaba com as nascentes, leva à seca. Na Bacia do São Francisco, onde há plantação de eucalipto, ficaram secas 1.500 pequenas vertentes que fluíam para o São Francisco.

Há quem defenda que monoculturas como a do eucalipto só ocasionam problemas quando não há manejo correto.

Há mil justificativas para a manutenção desse modelo que destrói o bioma em troca de dinheiro, divisas. Mas não se buscam alternativas técnicas. Nós temos em Goiás, Tocantins, Bahia, Minas, grupos extrativistas organizados, que convivem com o cerrado sem destruí-lo. São todos desconsiderados. O que realmente interessa ao governo, bem como aos anteriores, é o agronegócio que passa por cima das pequenas propriedades mas não mata a fome, porque seu objetivo não é distribuir, mas concentrar, sobretudo o lucro. Está comprovado que 70% do alimento consumido no país vem dos pequenos produtores.

E quanto à energia?

Com a energia é a mesma coisa. Insiste-se no mesmo modelo, seja de usina hidrelétrica, seja de nuclear. Ficam de lado outras possibilidades, como a energia solar, que alimenta diversas cidades na Alemanha. O excedente das casas vai para as redes de distribuição.

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É claro que isso requer pesquisas, abertura ao entendimento e resistência às pressões do mercado. Às vezes, o governo segue uma linha predatória, prejudicial aos povos indígenas, por exemplo, porque sofre pressão fortíssima de conglomerados econômicos nacionais e internacionais. Por que tem de prevalecer a lógica da superprodução? O índio se relaciona com a mãe terra de maneira harmoniosa, mística, afetiva. Não é transformada violentamente, depredada, arrasada, destruída­em nome da produção, do ter cada vez mais. O povo da terra do semiárido também tem consciência do valor e da riqueza da caatinga, em oposição ao capital. Durante muito tempo, prevalecia a proposta dos versos de Luiz Gonzaga, de ir embora dali. Agora eles estão descobrindo que o semiárido tem água, um total de 37 bilhões de metros cúbicos. Segundo técnicos, isso prova o equívoco da transposição do São Francisco, um investimento caríssimo para levar água ao Nordeste. Mas lá não falta água, e sim política governamental para distribuir essa água que está concentrada. Uma vez distribuída, alimenta tudo. Com a transposição do São Francisco, vão ser levados 3 bilhões de metros cúbicos para uma região que tem 37 bilhões. Se com 37 bilhões não se resolve o problema da seca, como é que 3 bilhões vão resolver? Os acidentes nucleares no Japão põem em xeque os projetos de construção de usinas atômicas como­os previstos no Nordeste?

Um desenvolvimento “de ponta”, né? Bem no momento em que o mundo começa a repensar esse modelo nuclear para a produção de energia. O Japão, por exemplo, que na conferência do clima em Cancún lutou para anular o Tratado de Kyoto e não ter de reduzir as emissões de poluentes nem o lucro, tem um modelo mundialmente questionado. Suas usinas não resistiram aos terremotos, têm vazamentos e passaram a ser uma ameaça à população. Independentemente de estar no Nordeste, no Centro-Oeste, Sudeste ou Japão, é o modelo que está sendo questionado pelos melhores técnicos, por todos aqueles que eram a favor e agora são contra. É o feitiço que se volta contra o feiticeiro. Acredito que brevemente toda a humanidade estará esclarecida e terá uma consciência contrária a respeito. Por enquanto são grupos mais seletos, cientistas que começam a repensar a coisa. A consciência ecológica, aliás, é um ganho para a humanidade, um avanço como a conquista da igualdade dos direitos da mulher, que custou séculos para chegar a esse ponto e deve ser aprimorada, mas é uma conquista.

Qual é o modelo que o senhor defende? Menos produção, consumo e conforto?

Isso mesmo. É necessário tudo isso que se busca? O conforto dos Estados Unidos pode ser aplicado a uma população de 6 bilhões, mas a terra é insuficiente, e isso mostra que tem algo errado aí. Como pensar num


mundo e numa humanidade equilibrados e sustentáveis? Produzindo de acordo com a necessidade. Uma coisa é a necessidade em que todos participem. Outra, é atender a um modelo superpredador de determinados países do Primeiro Mundo. Então, volto à pergunta anterior. Não seria a hora de questionar o modelo vigente e dar a palavra à população camponesa, ao indígena? A CPT conta com apoio do Vaticano?

O Vaticano está muito longe. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), à qual pertence a CPT, é um organismo suficiente para resolver o problema pastoral, eclesial. A CPT nasceu assim, da Igreja, e não para a Igreja, a serviço do trabalhador do campo. Como o bom samaritano que se dá para levantar o caído, dando a ele autonomia para se erguer e um dia levantar outro caído, tratando-o como sujeito, e não objeto da nossa ação caritativa. A Pastoral Indigenista segue o mesmo princípio, de dar todo o auxílio a uma população que sofre repressão, vive em conflito com o roubo da terra e a expulsão do campo pelas autoridades armadas para deixar o terreno livre para a monocultura do grande capital. A terra pode ser de japonês, americano, alemão, desde que seja do capital. Não pode ser dos índios, dos lavradores, senão vem a polícia e despeja. São milhares de ações de despejo no nosso Judiciário contra quem ocupa a terra há vários anos de forma pacífica.

Como o senhor avalia a impunidade no campo? Dorothy Stang, Corumbiara, Eldorado dos Carajás...

Entre 1985 e 1996, a CPT fez um levantamento sobre os assassinatos no campo por disputa pela terra. São assassinatos encomendados pelo latifúndio. Raramente aparece o mandante. Há o pistoleiro que é contratado, faz o serviço e recebe. Nesses 11 anos do estudo, foram constatados cerca de mil assassinatos, dos quais só 70 viraram processos levados ao tribunal e apenas 14 tiveram os pistoleiros condenados. Dos mandantes, só sete foram condenados e cinco fugiram. Os pistoleiros que escaparam na certa voltaram a matar. É o quadro da impunidade. Eu participei de uma sessão do Supremo Tribunal Federal em que se julgava a possibilidade de federalizar os crimes contra os direitos humanos. Era justamente na época do assassinato da Dorothy. Como envolvia vítima internacional, norte-americana, o estado do Pará agilizou o processo, que está praticamente concluído. Muito boa a Justiça naquele caso. E nos demais? E naqueles em que o assassinado não é norte-americano ou alemão? Isso tem favorecido a manutenção do crime, o que interessa aos grandes fazendeiros, a muitos detentores do poder, juízes, latifundiários e parlamentares. E, por falar em parlamentar, a proposta de confisco da terra onde há trabalho escravo, para fins de reforma agrária, não caminha. Acho que com esse time que está aí, de congressistas latifundiários, uma bancada ruralista fortíssima e numerosa, jamais será aprovada.

O que o senhor acha da atualização do Código Florestal?

É um desastre, um absurdo diminuir a já pequena cobertura vegetal em torno dos mananciais, facilitar a devastação da floresta e não oferecer nenhuma proteção ao meio ambiente. A gente sabe que nem todas as pessoas no Congresso concordam com isso. Pena que sejam minoria.

Como o senhor vê o fato de termos pela primeira vez uma mulher na Presidência da República?

É muito positivo, mas não deixa de ser um continuís­mo, um tempo de inverno para o movimento de reforma agrária. E, com o avanço do agronegócio, pior ainda. Do ponto de vista do homem da terra, ainda há retrocesso. Durante a campanha, ela nada falou sobre reforma agrária, o que pode ser significativo. Embora tapeasse e protelasse, dizendo que ia cumprir as promessas de campanha, Lula dialogava e não reprimia, ao contrário de FHC. Em compensação, durante os anos FHC os movimentos se fortaleceram, com todo o grande capital por trás. É que, conhecendo o adversário, isso fica mais fácil. Tanto que a oposição ao governo tucano foi feita mais pelos movimentos do que pelo PT. Mais do que enrolar, Lula traiu o compromisso de fazer a reforma agrária, que acabou ficando por conta dos movimentos via ocupações e pressões das bases, e não do Incra, cada vez mais sucateado.

E quanto aos transgênicos?

O transgênico é sério porque atinge a semente, e ela é a força do lavrador. Em vez de manipular sua semente para plantar, ele tem de ir ao mercado e pagar (por ela). O pessoal diz que tudo o que é transgênico é duvidoso, não se tem segurança. Mas nós, da área rural do CPT e os trabalhadores rurais, consideramos que o principal veneno é o fato de a semente ser subtraída. Aquilo que é vital para o trabalhador, e é milenar, ser levado ao monopólio. O trabalhador tem de ter o domínio da semente e da terra.

Em 11 anos do estudo, foram constatados cerca de mil assassinatos, dos quais só 70 viraram processos levados ao tribunal e apenas 14 tiveram os pistoleiros condenados

O senhor já recebeu ameaças de morte?

Várias vezes. E tive medo não por mim, mas por outros padres, sacerdotes. Ninguém vinha direto a mim, mas estimulavam gente maluca. Eu soube de vários planos de morte, como uma emboscada numa festa em que iria, numa paróquia, mas fui ao sepultamento do padre Rodolfo e do índio Simão, assassinados por fazendeiros. Toda noite rezo para o padre Rodolfo, que me salvou de uma emboscada. Soube também que na ditadura fui vigiado durante todo o tempo. Pior é quando é pistoleiro, como aquele que atirou no padre Chicão, um defensor dos sem-terra, que levou tiro de cartucheira no rosto e ficou cego dos dois olhos. Sei que aquele tiro era para mim. Mas é complicado matar um bispo. Escapei, e agradeço ao Chicão. MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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COMPORTAMENTO

Exposição no trânsito Febre dos adesivos da “família feliz” cola no país todo. Mas há quem veja exagero no modismo Por Andrea Dip

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ocê está parado em um congestionamento, algo comum para quem vive em qualquer grande cidade do país. Naquela lentidão dos carros, percebe algo curioso: adesivos de bonecos palito formam uma família feliz na traseira do veículo à sua frente. Roda mais um pouco, e lá estão eles em outro carro, agora arran-

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jados de maneira diferente e com desenhos de cachorros e passarinhos. Uma boneca aqui, um gato ali, um homem e uma mulher grávida acolá. E você descobre a febre que tomou o país: os “adesivos da família feliz”. A professora aposentada Alfa Torchia, de São Paulo, conta que os colocou em seu carro porque viu na rua e se identificou com a cena. “Sou evangélica e muito a favor da fa-

mília, a favor da união. Então quis mostrar para todo mundo que tinha uma família, porque me orgulho dela. E a moda pegou, viu? Na minha igreja todo mundo colocou!” Alfa tem adesivos na traseira do carro representando ela, o marido, as duas filhas adultas e o cachorro Kim, “que é parte da família”. Nos últimos dias, depois de ouvir comentários de que os adesivos poderiam ser perigosos por expor demais os donos do veículo, ela incluiu um sexto elemento: mais um cachorro, “para despistar bandidos”. O novo “membro” autocolante também serve para provocar: “Eu digo que é meu genro, aquele cachorro”.


tantos adesivos que eu fico pensando como em sites de relacionamento, na internet. De vão caber no carro!” qualquer forma, eles já têm nome para a poHistórias bizarras também não faltam: lícia. São os “adesivos currículo”, que con“Outro dia, um homem encomendou a fa- têm informações sobre a vida particular das mília toda, mas pediu para deixar a sogra pessoas. Além dos “adesivos da família fesem cabeça e ainda escrever ‘sogra’ embai- liz”, autocolantes de faculdades, academias xo. Teve uma mulher que e preferência religiosa, por pediu o gato com auréoexemplo, dão igualmente la, porque o bicho já hadicas importantes. via morrido. Familiares A tensão causada pelos falecidos com asas tamadesivos envolve sobretudo bém são comuns”. A novidasequestro. No falso sequestro, Dar tantas de, segundo o empresário, é por exemplo, poderiam ajuinformações o adesivo do “segurança” da sobre aquele dar golpistas a convencer a família. “Como algumas pesde que há um familiar núcleo familiar vítima soas estão falando que é perirefém, pois eles teriam a ideia poderia deixá- de como é a constituição da fagoso, que dá informação para lo vulnerável bandido, criei a linha de bomília. O veículo estacionado necos seguranças, para colar a sequestros, em garagens que permitam o ao lado dos familiares.” acesso visual também poderia assaltos e O que é motivo de piafacilitar a vida de bandidos. A chantagens da para o inventor preocorporação militar, no entancupa uma parte da população. Dar tanta to, afirma que os “adesivos currículo” não informação sobre quantas e que tipo de pes- têm influência significativa nesse caso: “Cosoas formam aquele núcleo familiar pode- nhecer a estrutura familiar não vai aumentar ria deixá-lo vulnerável a sequestros, assal- ou diminuir o potencial de uma pessoa se tos e chantagens. Diversas reportagens, tornar vítima. Os sequestros-relâmpago, por algumas sensacionalistas, outras coerentes, exemplo, são crimes planejados, e os adesiabordaram o assunto. Amigas da dona Alfa vos pouco podem acrescentar. O objetivo é removeram os adesivos, com medo. encontrar uma pessoa com dinheiro e carA Polícia Militar diz que é preciso cui- tões bancários”. dado, mas não os considera mais perigosos O marido da assistente social Neiva do que o modo como as pessoas se expõem Imhoss, de São Miguel do Oeste, Santa Ca-

MAURICIO MORAIS

CONVICTA Alfa: “Sou evangélica e muito a favor da família. Então quis mostrar para todo mundo que tinha uma família, porque me orgulho dela”

Quem está rindo à toa com essa moda é o paulista Germano Spadini, dono de uma empresa de adesivos, que afirma ter sido o criador da coisa. Ele conta que em 2008, com o nascimento do filho, fez um adesivo com ele, a mulher e o bebê, para pôr no próprio carro. “As pessoas começaram a pedir, encomendar desenhos personalizados, e não parei mais. Mas o negócio estourou mesmo de um ano para cá.” Spadini chega a vender 8.000 adesivos por mês, fora os kits-padrão para revendedores. Cada personagem custa de R$ 2 a R$ 5, dependendo da cor e do tema. “Tem gente que encomenda

IDENTIDADE Roberta, de Atibaia (SP): “Todo mundo sabe que o carro é meu por causa dos adesivos!”

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RODRIGO ZANOTTO

De riso e tensão

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tarina, não gosta muito dos adesivos que ela colou no carro: pai, mãe, dois filhos pequenos, passarinhos, tartarugas e dois cachorros. “Ele acha que é muita exposição, porque a cidade é pequena e todo mundo sabe que o carro é meu” conta. “Mas, então, ele que não cole no dele! No meu, só não coloquei as ovelhas que temos porque não couberam.” Neiva diz que aderiu ao modismo porque o filho de 3 anos via os desenhos nos outros carros e apontava. “Quando comprei, ele me ajudou a colar.” Segundo a assistente social, oito em dez carros em sua cidade têm os adesivos da família feliz, que são vendidos em todas as livrarias, bazares, bancas de jornal. “Também tem com as cores do Grêmio e do Inter, porque futebol é uma febre ainda mais antiga por aqui.” A auxiliar de escritório Roberta Santos, de 28 anos, também colocou os adesivos da família a pedido da filha Laís, em outubro de 2010. Na traseira do carro estão devidamente representados ela, o marido, as duas filhas e a cachorra. Em Atibaia (SP), todos sabem que aquele carro é dela. “Não dá para fazer nada de errado, todo mundo sabe que ele é meu por causa dos adesivos! Um dia desses, meu marido ficou com o carro e foi me buscar no trabalho. O vigia achou que era eu, mas quando viu que eu estava dentro da loja, ficou superconfuso e veio perguntar quem estava dentro do meu carro.” O marido, o gerente de produção Julio Cesar dos Santos, de 38 anos, não se importa com os adesivos, e ela diz que não acha a moda perigosa. “Se alguém for nos assaltar ou fazer mal, não será por causa dos adesivos. Acho isso uma besteira.”

“Família Doriana”

Mas por que essa onda em 2011? A psicanalista Dinah Stella Bertoni afirma que há algumas explicações. Segundo ela, a sociedade atual parece valorizar o ser humano mais pela imagem que ele transmite publicamente do que pela troca de experiências proporcionada pelas relações humanas. “Essa tendência tem sido cada vez mais intensa, e aquilo que deveria ser íntimo passa a ser exposto, como no caso das redes sociais, dos reality shows e dos tais adesivos, que promovem o conceito de ‘família Doriana’ ”, diz Dinah, numa alusão às famílias perfeitas dos comerciais de margarina.

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RINDO À TOA Germano diz que foi o criador. Sua empresa chega a vender 8.000 adesivos por mês

Para o arquiteto e urbanista Giancarlo dessa lógica, porque o carro está mais do que Morettoni Júnior , os veículos se tornaram inserido na família e, para muitos, é mais immembros da família e recebem muitas vezes portante que ela.” mais cuidados do que os parentes de carNo Rio Grande do Sul, os adesivos se torne e osso. “Os carros na sociedade moderna naram tão presentes que um grupo de amiocidental são sagrados, quase como as vacas gos resolveu brincar com o assunto. Eles na Índia. Fazem parte da inventaram a “guerrifamília.” Ele lembra que lha dos adesivos da faa garagem da casa gemília”, e saíram colanralmente é maior que os do componentes a mais quartos, assim como as nos carros. Onde antes vagas dos escritórios são tinha apenas um casal, maiores que as baias. uma moça Os veículos se tornaram apareceu As cidades são projeao lado. Onde tinha membros da família e tadas para os carros. pai, mãe e criança, recebem muitas vezes “Eles são protegidos de repente surgiu mais cuidados do que os uma mulher gráviaté do frio e da chuva… O marido leva o parentes de carne e osso da. Os “guerrilheicarro para lavar, enceros” filmaram a ação rar, passar produtos especiais, e não deixa a e jogaram no YouTube. A brincadeira renmulher ir ao cabeleireiro porque é caro. Re- deu mais de 230 mil views e repercutiu em presentar a família com os adesivos é parte todo o país.


MAURICIO MORAIS

Marcos Piangers, um dos autores da faça- da visão alheia para nos sentirmos aprovanha, diz que a ideia era provocar. “Achamos dos, seguros de nossos papéis sociais e, por aquilo meio patético, essa mania moderna que não dizer, para que não nos sintamos de tentar exibir para os outros como você sozinhos. A opinião que mantemos sobre é feliz, como sua família é perfeita. Toda nós não parece mais suficiente. Necessitafamília, vista de perto, tem defeitos”, diz mos de um olhar que aprove nosso corpo, Piangers. “E as pessoas fazem isso o tem- ‘curta’ nossas opiniões e que nos ‘siga’, mespo todo, no Facebook, no mo nos momentos de priOrkut, nas frases do MSN, vacidade.” sempre tentando mostrar Dinah aborda também que a vida delas é ou está a questão do modelo faincrível.” Dessa constamiliar, por que se busca tação nasceram adesivos tanto a imagem de famíque aludem a um bebê inlia tradicional, a exibição desejado, um amante, um do clichê “mãe-pai-filhosA sociedade atual -animal de estimação”. casal gay, “esse tipo de coisa que acontece, mas ninparece valorizar o Isso parece indicar, em sua guém anuncia”, pontua. ser humano mais opinião, um receio de que Piangers conta que ele e pela imagem que os novos arranjos familiaos amigos não esperavam res – o namorado da mãe ele transmite do para ver a reação das pesou o meio-irmão da nova que pela troca soas porque acharam mais família do pai – ameacem de experiências engraçado deixar o dono a função familiar, que é do carro imaginar o que proporcionada pelas transmitir valores e consteria acontecido. “Além relações humanas truir nossa identidade. E do que esperar o dono do conclui com uma proposcarro aparecer seria muito mais trabalho- ta: “Devemos valorizar mais a convivênso.” Apesar das críticas, ele afirma que não cia familiar real, em vez de mantê-la numa houve nenhuma preocupação social e polí- imagem paralisada, com expressão de felitica. “Apenas fazer rir e questionar essa ma- cidade. Precisamos procurar nossa família, nia besta.” discutir essas novas configurações e expresPara a psicóloga Dinah, a “mania besta” sar o amor por todos os seus membros tamdiz muito sobre nosso tempo. “A impressão bém do lado de dentro do carro, por meio que se tem é que cada vez mais precisamos do cuidado e da aceitação das diferenças.”

ANDREA GRAIZ

GUERRILHA Marcos: “Toda família, vista de perto, tem defeitos”

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CULTURA

Tirania nas telas Documentários Amor? e Sequestro mostram duas faces da violência Por Guilherme Bryan

A

violência é o tema que une os dois novos filmes dos documentaristas brasileiros João Jardim e Jorge Wolney Atalla Junior, respectivamente Amor? e Sequestro, que estrearam na segunda metade de abril. Enquanto o primeiro mostra, por meio de depoimentos interpretados por atores famosos, histórias de relacionamentos amorosos em que a violência aparece sempre ou uma única vez, o segundo mergulha nas táticas e investigações da Divisão Anti-Sequestro de São Paulo. “O filme é um ensaio a respeito do que acontece numa relação amorosa que vai permitindo, aos poucos, que as pessoas trilhem um caminho para a violência. É essa permissividade e cumplicidade que leva a um lugar perigoso do ponto de vista da sanidade”, avalia João Jardim. Para fazer o filme, ele contou com o auxílio do jornalista Renée Castelo Branco, que realizou pesquisas em ONGs de defesa da mulher, delegacias e instâncias judiciais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Entre as histórias retratadas em Amor? estão a de um casal de lésbicas que mantinha uma relação repleta de brigas e baseada no ciúme patológico e a de uma mulher que foi reconquistada pelo marido depois de ser agredida. “São mecanismos de insegurança, masoquismo, sadismo, dependência e radicalismo, que muitas vezes podem nem 36

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ser malignos, mas são capazes de atingir muita gente, até quem nunca teve predisposição à violência”, acrescenta. João Jardim não sabe definir se o filme é ficção ou documentário, uma vez que escolheu atores, como Lilia Cabral, Eduardo­ Moscovis, Julia Lemmertz e Ângelo Antônio, para interpretar depoimentos reais­ e, assim, preservar os autores. Essa razão, segundo o diretor, também o afasta da comparação direta com o hoje célebre documentário Jogo de Cena, dirigido por Eduardo Coutinho, que conta com grandes artistas e anônimos para analisar a arte da representação. Atualmente trabalhando num filme de ficção baseado nos últimos 19 dias da vida do presidente Getúlio Vargas, João Jardim, de 49 anos, é reconhecido como um dos principais documentaristas do país. Afinal,

depois de ser assistente de direção de feras como Cacá Diegues, em Dias Melhores Virão, de 1989, ele dirigiu, junto com o fotógrafo Walter Carvalho, o documentário Janela da Alma, de 2002. Três anos depois, em 2005, João Jardim mergulhou no universo da educação para realizar Pro Dia Nascer Feliz, que recebeu o prêmio especial do júri no 10º Cine-PE (festival do audiovisual), em Recife. Mais recentemente, codirigiu Lixo Extraordinário, com Lucy Walker e Karen Harley, premiado no Festival de Berlim e no Sundance Film Festival e o primeiro documentário com profissionais brasileiros a ser indicado ao Oscar, ao mostrar o trabalho do artista plástico Vik Muniz junto aos catadores de lixo do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), onde fica o maior aterro sanitário da América Latina.


Lilia Cabral

Ângelo Antônio

Eduardo Moscovis

APOIO LUXUOSO Elenco estelar embala os depoimentos em Amor?, do diretor João Jardim

FOTOS HELOISA PASSOS/DIVULGAÇÃO

Julia Lemmertz

entidade de psicólogos e psiquiatras que trabalham gratuitamente com vítimas de sequestros que sofrem de estresse pós-traumático, fomos apresentados às pessoas que deram depoimentos ao filme”, conta. Entre elas, uma garota que foi estuprada no cativeiro e outra que menstruou no primeiro dia do sequestro e passou mais de uma semana sem tomar banho. “Antes das entrevistas, o médico da vítima me explicava o caso e o que poderíamos abordar. Não entrávamos em assuntos que fossem psicologicamente perigosos, somente se a própria vítima comentasse­.”­ A ideia para Sequestro surgiu durante uma das exibições do primeiro documentário de Atalla Junior, A Vida em Cana, a respeito dos cortadores de cana, inspirado em Buena Vista Social Club (1999), de Wim Wenders, e foi premiado pela Academia de Imprensa Internacional de Los Angeles. “Estava no Festival Brasileiro de Cinema em Miami, em 2001, e dizia a um amigo que não voltaria a morar no Brasil devido à (falta de) segurança, que preferia continuar vivendo nos Estados Unidos. Ele citou o sequestro do publicitário Washington­Olivetto, ocorrido naquele ano, e perguntou por que ninguém mostrava o que acontecia em São Paulo. Eu disse, então, que faria meu próximo filme sobre a verdade por trás da motivação do crime e a razão pela qual se espalhou e se banalizou tanto no Brasil”, lembra. Formado em Economia pela Universidade do Texas, nos Estados Unidos, Jorge

Wolney Atalla Junior praticamente abandonou os cuidados com os negócios do pai empresário para se dedicar ao cinema, começando com o curta-metragem Princess, de 1999, que recebeu menção honrosa no Columbus International Film Festival. “Quando fui estudar cinema em 1998, havia terminado a faculdade de Economia e o mestrado em Administração de Empresas. Trabalhei algum tempo com meu pai, mas sempre tive vontade de estudar cinema. Comecei fazendo cursos de interpretação, e minha mulher me incentivou a fazer direção cinematográfica”, conta. Enquanto se prepara para dirigir uma ficção inspirada num caso real de sequestro ocorrido em São Paulo – mais uma vez com base no trabalho da Divisão Anti-Sequestro –, Atalla Junior garante que não pensa em fazer carreira internacional: “Aqui a gente tem um papel a cumprir e a função de ajudar, ainda que minimamente, a criar uma identidade audiovisual para o país. Não que eu tenha essa pretensão, mas acho que sou uma pecinha no meio de todas as outras pessoas”. Os dois cineastas e uma nova geração de documentaristas brasileiros estão ajudando a mostrar aos brasileiros uma realidade até então pouco conhecida e exibida nas telas de cinema, que perpassa a questão da violência a que todos estão sujeitos diariamente, seja no ambiente doméstico e das relações amorosas, seja como vítima de roubos, sequestros, e a ação da própria polícia.

Horror

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Penetrar numa realidade praticamente desconhecida foi o objetivo do documentarista Jorge Wolney Atalla Junior ao realizar Sequestro. “Foi um filme muito complicado pessoalmente e profissionalmente. Através do Gorip (Grupo Operativo de Resgate da Integridade Psíquica),

BASE REAL Atalla Junior e os policiais Rafael e Arthur: dia a dia da Divisão Anti-Sequestro de São Paulo MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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MEMÓRIA Leão de Sete Cabeças, com Hugo Carvana (à esq.), foi filmado por Glauber no Congo e lançado em 1970

Cinemateca assume obra de Glauber Rocha e restaura imagens do Canal 100. Estúdio Vera Cruz e Atlântida entram no pacote Por Vitor Nuzzi

Acervo democrático A os 70 anos, completados em 2010 (considerando como ponto de partida a criação do Clube de Cinema de São Paulo), a Cinemateca Brasileira iniciou projetos que preveem a restauração de alguns dos mais importantes acervos brasileiros: da antiga companhia Atlântida, do Canal 100, da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e do cineasta Glauber Rocha. Ainda não há previsão, mas a ideia é que esses acervos se tornem disponíveis para o público. No caso de Glauber, há a expectativa de lançamento em agosto, quando se completam 30 anos da morte do cineasta. Entre 2009 e 2010, na primeira parceria mais integrada, foi feito o processo de restauração de Leão de Sete Cabeças (Der Leone Have Sept Cabeças, no título original), uma coprodução ítalo-francesa de 1970, filmada no Congo. “É uma história geral do colonialismo euro-americano na África, uma epopeia africana, preocupada em pensar do ponto de vista do homem do Terceiro Mundo, por oposição aos filmes comerciais que tratam de safáris, ao tipo de concepção dos brancos em relação àquele continente”, descreveu o diretor.

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Foi o primeiro trabalho de Glauber no exílio – um ano antes, ele havia lançado O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Segundo a cineasta Paloma Rocha, filha de Glauber, trata-se de um projeto de gestão compartilhada. A família levou ao então ministro da Cultura, Juca Ferreira, e ao diretor da Cinemateca, Carlos Magalhães, a proposta de aquisição da guarda, visando “dar sobrevida aos originais e ampliar a difusão”. O processo de digitalização está sendo concluído, e ela acredita que a transferência para a Cinemateca saia em dois ou três meses. Hoje, o acervo está sob a responsabilidade do Tempo Glauber, espaço mantido pela família. Paloma acredita que o lançamento público do acervo possa ocorrer em agosto. “É uma maneira simbólica de dizer que ele está vivo”, afirma. Os interessados poderão ver também mais de 220 projetos, entre roteiros, peças, romances e anotações diversas. Em São Bernardo, no ABC paulista, a prefeitura informa estar aguardando a definição do perfil de projeto para os estúdios da Vera Cruz – concessão ou parceria público-privada (PPP), por meio de uma fundação. Segundo o secretário-adjunto de Cultura, Osvaldo de


Valor incalculável Vera Cruz O Cangaceiro

A Cinematográfica Vera Cruz foi fundada em 1949, como parte de um projeto ambicioso de produção de filmes brasileiros. O primeiro foi Caiçara (1951), dirigido por Adolfo Celi. Alguns se tornaram marcos da cinematografia nacional, caso de Tico-Tico no Fubá (1952), Floradas na Serra (1954) e, principalmente, O Cangaceiro (1952-1953). Outro sucesso foi Grande Sertão: Veredas (1965), inspirado na obra de Guimarães Rosa. Segundo a Cinemateca, o acervo inclui 32 longas e cinco curtas, além de mais de 10 mil fotografias

Oliveira Neto, também presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (Compahc), os planos compreendem uma escola de audiovisual e uma incubadora de projetos. “O objetivo é que haja toda uma cadeia produtiva para quem queira fazer um filme”, afirma. No final de 2009, a prefeitura e o Ministério da Cultura assinaram convênio para investimentos em projetos culturais, com instalação de escola de formação audiovisual. Para que os projetos se viabilizem, há também uma negociação em curso com a família do cineasta Walter Hugo Khouri, dona da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. “Estamos nesse momento em um processo de diagnóstico do acervo”, afirma o secretário. Em relação aos mais de 40 filmes que compõem o acervo, a ideia é que a Cinemateca se responsabilize pela guarda das obras originais e forneça cópias ao município. No caso do Canal 100, famoso pelos diferentes ângulos em que suas lentes exibiam lances de futebol, o acervo será restaurado com vistas à exibição durante a Copa de 2014. “Esse acervo é constituído por milhares de latas com materiais em película, aproximadamente 9.000 latas, que serão avaliados, recondicionados em novos estojos e armazenados em câmaras de preservação, além de catalogados para que possamos oferecer o acesso às informações e às imagens”, informa a Cinemateca.

Glauber de Andrade Rocha nasceu em março de 1939 em Vitória da Conquista (BA) e morreu na madrugada de 22 de agosto de 1981, no Rio de Janeiro. Em sua filmografia, destacam-se obras como Barravento (1961), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Foi um dos idealizadores do Cinema Novo.

Canal 100 Os mais velhos devem se lembrar até dos acordes que anunciavam o início dos cinejornais do Canal 100, produzidos dos anos 1960 até meados dos anos 1980. Idealizados por Carlos Niemeyer, os filmes ficaram marcados principalmente pelos ângulos diferentes dos jogos de futebol, tanto no campo como entre os torcedores.

Atlântida A companhia Grande Atlântida surgiu Otelo e há 70 anos, em Oscarito setembro de 1941. Ganhou fama com suas comédias populares, também chamadas de chanchadas, às quais o Cinema Novo iria se contrapor tempos depois. Oscarito e Grande Otelo formaram a dupla mais famosa do cinema brasileiro. Foram quase 70 filmes até 1962 (depois disso, a companhia ainda manteve coproduções). A Cinemateca informou que o acervo recebido inclui mais de 60 longas de ficção produzidos entre 1942 e 1974 e 27 horas de telejornais.

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FOTOS DIVULGAÇÃO

FOTOS TEMPO GLAUBER/DIVULGAÇÃO

Glauber

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PERFIL

O

diálogo a seguir ocorreu na Rua da Relação, no bairro da Lapa, centro do Rio, mais exatamente num portãozinho de entrada do número 3, onde está localizada a sede do Cordão do Bola Preta, o mais antigo bloco de Carnaval do Rio. Quem iniciou o colóquio foi um homem de 71 anos, de bigode branco, elegantemente trajado. Dirigia a palavra ao sujeito que atendera à campainha. – Boa tarde. Vou dar uma entrevista e fazer fotos aí no Bola Preta. – O senhor e o repórter têm autorização para entrar? – Eu sou o Carlos Monte, amigo do Pedro Ernesto (presidente do bloco). – O Pedro Ernesto foi almoçar. – Então deixe a gente entrar. Esperamos no bar. – Não posso, senhor. – Mas eu conheço todo mundo aí. Organizei a homenagem ao Haroldo Lobo... – Ele trabalha aqui? – Quem? – Esse tal de Haroldo Lobo. – Deixa pra lá. A gente espera aqui fora o Pedro chegar. Pesquisador do samba carioca, ex-diretor cultural da Portela, Carlos Monte iniciou a entrevista em pé mesmo, em frente ao portão, sob o calor infernal do centro do Rio. Estava mais resignado do que irritado. Ele não ficou nada surpreso em constatar que o porteiro nunca ouvira falar de Haroldo Lobo, o mais talentoso compositor carnavalesco do Brasil – ao lado de Braguinha e Lamartine Babo. Até há pouco tempo, Monte usava um método peculiar para testar o índice de popularidade de Haroldo, morto há mais de 40 anos, mas autor de marchinhas que se eternizaram no imaginário carnavalesco, como Índio Quer Apito e Alá-lá-ô, entre outros grandes sucessos. A pesquisa era feita dentro do táxi, seu meio de transporte favorito. Antes mesmo de dizer o itinerário, Monte começava a cantarolar uma marchinha do compositor. Diante do estranhamento do motorista, perguntava: “Você sabe quem é o autor dessa canção? Se adivinhar, pode mudar para bandeira 2”. O taxista chutava todos os nomes possíveis, de Zeca Pagodinho a Diogo Nogueira, e nada de virar a bandeira. Monte, então, dava a primeira dica. “Haroldo...” E o motorista dizia, animado: “Haroldo Costa!”, citando o nome do ator e

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Memórias de um sambista Ex-diretor da Portela tenta estimular o gosto do público por músicas carnavalescas antigas Por Tom Cardoso

escritor carioca. “Não, errou”, avisava o passageiro. Um longo silêncio e um novo pulo do motorista, entusiasmado. “Lembrei! Haroldo de Oliveira!”, citando agora o nome de outro ator, esse já falecido, que fez sucesso no Zorra Total, humorístico da TV Globo. “E o mais impressionante é que eu testava apenas taxistas com mais de 60 anos”, afirma o pesquisador. Carlos Monte é uma espécie de eminência parda do chamado samba de raiz carioca, denominação relativamente nova que serve para diferenciar o samba de mestres como Cartola, Zé Kéti, Geraldo Pereira, Candeia, Wilson Batista e Nelson Cavaqui-

nho do que é feito hoje em dia, sobretudo pelas escolas de samba. “O desfile virou um espetáculo midiático e turístico, sem nenhuma expressão cultural digna de nota”, diz Monte. “Restam as escolas do grupo de acesso, que desfilam na Estrada Intendente Magalhães, na zona norte do Rio; elas ainda guardam a força de suas características originais”, completa o pesquisador, com a autoridade de quem dirigiu a Portela no começo dos anos 1970, numa das fases mais gloriosas da escola de samba, e escreveu, junto com João Batista Vargens, o livro A Velha Guarda da Portela (Editora Manati), referência entre pesquisadores do gênero.


AG. O GLOBO

LEO PINHEIRO/VALOR/FOLHAPRESS

FACETAS Pai da cantora Marisa Monte, Carlos Monte é engenheiro por formação e pesquisador musical por paixão

ILUSTRE DESCONHECIDO O carioca Haroldo Lobo (1910-1965) é autor de marchinhas carnavalescas como Índio Quer Apito e Alá-lá-ô

Atualmente, engenheiro aposentado, Monte organiza shows para resgatar a música brasileira. Os mais recentes foram apresentados na sede do Bola Preta, um dedicado à obra de Haroldo Lobo e ou-

tro mostrando parcerias carnavalescas de compositores nascidos em torno de 1910 – ambos com a participação do Sururu na Roda, grupo de samba formado por jovens que sabem quem foi Haroldo Lobo. “Tenho interesse em continuar nessa linha, estimulando o gosto do público pela música carnavalesca de outrora, com seu romantismo e suas sátiras de costumes”, diz Monte, que deve organizar outros shows em 2011. “Estou com diversas ideias na cabeça, nada ainda­concreto para anunciar. Mas certamente quero continuar a parceria com o Bola Preta, que vem dando certo.” Pedro Ernesto, presidente do Cordão do

Bola Preta, já havia chegado do almoço. Estranhou ao ver o amigo suando em bicas, parado em frente ao portão. Os dois caminharam abraçados até o bar do bloco carnavalesco, decorado com um imenso painel com fotos dos sambistas que ajudaram a construir a história do Bola Preta, fundado em 13 de dezembro de 1918, na Rua da Glória. Monte identificou um a um os sambistas homenageados no painel. Ele deve ao Cordão e aos programas da Rádio Nacional seu interesse por música popular, especialmente por samba. “Meus pais gostavam de música, mas não se interessavam tanto assim. Nunca tive um músico na família. Acabei na Portela por paixão mesmo.” No começo dos anos 1970, Monte assumiu, a convite de Hiram Araújo (pesquisador, um dos grandes nomes da história da Portela), o Departamento Cultural da escola de samba de Oswaldo Cruz, bairro da zona norte carioca. Responsável por todas as atividades ligadas aos desfiles, estreitou os laços com seus ídolos de juventude, nomes como Candeia, Zé Kéti, Valter Rosa, Ratinho, Valdir 59, Wilson Moreira, Noca e Jabolô. Ficou, porém, apenas três anos no cargo. “O trabalho na Portela me tomava duas noites por semana e acabou ficando incompatível com minha rotina de engenheiro.” Distante do convívio diário na Portela, Monte jamais quebrou o vínculo com a escola do coração. Além do mais, sua filha, a cantora Marisa Monte, virou uma espécie de embaixadora portelense. Gravou discos ao lado da Velha Guarda e promoveu homenagens aos grandes compositores da escola. A modéstia de Monte impede que o pesquisador assuma sua influência no trabalho de Marisa, uma cantora que se notabilizou pelo bom gosto na escolha do repertório, privilegiando compositores do começo do século passado, sobretudo sambistas. “Ela tem um gosto apurado e se interessa por tudo o que é bonito na música. Fatalmente, sendo minha filha ou não, acabaria se aproximando da Velha Guarda da Portela, como de fato aconteceu, aos poucos”, diz o pai de Marisa. “É claro que isso me deixa muito orgulhoso, pois a música portelense mora no meu coração.” Para terminar, Monte é provocado a contar histórias de seu tempo de diretor da Portela. “Histórias? São tantas, mas, como diz o grande Monarco, “se eu for falar da Portela, hoje eu não vou terminar...” MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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TRADIÇÃO

Patrimônio na mesa

Queijo mineiro, marca registrada do estado, leva receita herdada de pai para filho e influência portuguesa Por Adriano Ávila, texto e fotos

“Q

ueijo bom, bom mesmo, tem que ser muito bem espremido com as mãos”, ensina o bem-humorado Zé do Jacinto. “Ou fica uns buracos cheios de soro e o queijo azeda, e daí, pra gostar, é só vocês da cidade e as ratoeiras aqui da roça”, acrescenta, enquanto cai na gargalhada e tira uma “casquinha”. Zé e seus irmãos, Maria de Ávila San42

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A fazenda Canta Galo produz 150 litros de leite por dia

dim (Lia) e Chico Ávila, são filhos de Jacinto de Ávila, cujo pai e avô também faziam queijo. Suas terras ficam em São Miguel do Cajuru, distrito de São João del-Rei numa variante da Estrada Real, ao sul da Trilha

dos Inconfidentes, formada por 20 municípios. O queijo veio na bagagem dos portugueses que se instalaram na região atraídos pelas inúmeras minas de ouro, no século 18. A técnica para fazer queijo coalhado,


feita de leite fresco, foi adaptada às condições locais. A receita virou patrimônio nacional, conforme decisão de 2008 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E é preciso fazer jus à fama. A rotina na fazenda começa quando o galo canta, às 5 da manhã: arrear o cavalo, levar o gado do campo pro curral, tirar o leite e fazer queijo. Na fazenda Canta Galo, do Zé, 150 litros de leite são produzidos diariamente. Para fazer um quilo de queijo, vão seis ou

sete litros. E o queijo é vendido a cerca de R$ 5 o quilo. “Dá lucro, mas muito trabalho. Penso em deixar o queijo e só vender o leite, sobra mais tempo pra eu trabalhar na roça.” Já Chico, seu irmão, afirma: “O queijo dá muita fartura. Além do seu preço, o soro que sobra é usado pra engordar os porcos e dado pras galinhas botarem mais ovos”. A tradição corre o risco de extinção na família. “As novas gerações não se interessam. Querem a vida mole da cidade, a não ser minha neta Valdilene, minha única espe-

Zé do Jacinto: “Dá lucro, mas muito trabalho”

rança”, lamenta-se Jacinto. Valdilene Sandim tem 21 anos e é filha de Lia. “Faça chuva, faça sol, de manhã estou no curral, eu gosto”, diz a moça. “E não é porque estou namorando um moço da cidade que vou sair da roça, ainda mais agora, que ganhei um trator do meu pai.” Segundo a lenda, o queijo foi descoberto por Aristeu, filho de Apolo. A fabricação tem seu início 12 mil anos antes do nascimento de Cristo. E era apenas o leite coagu­lado desprovido de soro e sal. A partir da Idade Média, os mosteiros católicos

A tradição está nas mãos das gerações futuras

desenvolveram o queijo fino, e a técnica modernizou-se.

Receita do queijo mineiro

Especialidade da casa

Ingredientes 4 litros de leite não pasteurizado 2 colheres de sopa de sal 2 colheres de sopa de coalho líquido Meio copo de água morna Preparo Misture o coalho e o sal com a água morna. Adicione-os ao leite, que deve estar também em temperatura morna. Mexa bem e deixe coalhar. Retalhe com colher de pau ou faca e ponha para descansar por mais dez minutos. Retire com uma escumadeira o leite coalhado e coloque em forma própria, pressionando levemente. Ponha mais um

pouco de sal por cima e deixe escorrer por quatro horas. Vire a fôrma, coloque outro pouco de sal e deixe escorrer mais quatro horas. Se não tiver fôrma própria, faça uma de pote de margarina de 1 quilo vazia e toda furada com ponta de prego, bem esquentada no fogo. Se quiser queijo curado, no dia seguinte lave o queijo em água corrente, passe-o no lado fino do ralador, alise com a mão ou espátula a parte de cima e a debaixo e deixe descansar por três dias.

O governo estadual mantém até um programa oficial, Queijo Minas Artesanal (a partir de leite cru, não pasteurizado), com 150 queijarias cadastradas. A produção é regulamentada por uma lei de 2002. Segundo o Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), o objetivo é promover a “identidade” desses queijos, que são produzidos em cinco regiões do estado: Araxá, Canastra, Cerrado, Serro e Campo das Vertentes. São João del-Rei faz parte desta última. No total, mais de 60 municípios são reconhecidos produtores daquele que, provavelmente, é o mais conhecido produto de Minas Gerais. E ganhou o mundo. “Atualmente, estudos sobre a produção de queijo no mundo classificam 18 classes do produto, de acordo com a técnica produtiva, que agregam 400 tipos, em 800 denominações distintas”, diz dossiê de 2006 feito para o processo de análise do “tombamento” do queijo artesanal mineiro. MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

O

local não é o que se pode chamar de ponto turístico. Uma pequena porta de correr pintada de vermelho, com a tinta já descascada, um amontoado de livros entre poeira, móveis e pilhas de papel. Mas se engana quem não vê nesse estabelecimento, no centro histórico de Natal, uma das maiores referências para conhecer a cultura potiguar e adentrar o Rio Grande do Norte de norte a sul, praia e sertão, erudito e popular. Criado em 1985, o Sebo Vermelho tornou-se muito mais que um sebo a partir de 1990, quando seu proprietário, o ex-bancário Abimael Silva, resolveu publicar o livro de um amigo sobre a história do cinema em Natal. E foi assim, com Écran Natalense, de Anchieta Fernandes, que Abimael começou sua saga editorial, que já chega à marca de mais de 300 livros lançados, dos mais variados temas, mas todos voltados para a cultura potiguar. “Anchieta não encontrava espaço para publicar esse brilhante ensaio, sempre com negativas das editoras daqui. Decidi procurar Varela Cavalcanti, então presidente do Sindicato dos Bancários, que sabia da importância da obra. Comprei todo o material e ele topou fazer a impressão. Imprimimos 300 exemplares e, felizmente, conseguimos vender todos”, conta Abimael­, que a partir daí passou a lançar outros títulos por conta própria.

Livreiro por natureza

Antes disso, trabalhara quatro anos no setor de conta corrente de um banco. “Ficava o dia inteiro somando cheques, mas sempre pensando que queria trabalhar numa livraria. Na primeira oportunidade, saí do banco e resolvi começar meu próprio sebo”, diz Abimael. Na época, sua biblioteca particular tinha mais de 700 livros, e 600 foram colocados à venda. “Lamento a perda de alguns poucos que nunca mais encontrei em 26 anos de sebo, como Cartas a Nora, de James Joyce, e alguns do Graciliano Ramos.” As publicações do Sebo Vermelho, depois de quase três décadas de existência, apresentam um completo panorama da cultura do estado, além de importantes resgates de livros. É o caso de Antologia Poética do Rio Grande do Norte, publicado originalmente em 1922 e reeditado pelo selo em 1993. Os Americanos em Natal, do historiador Leni-

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Um sebo de resistência Com mais de 300 livros publicados sobre o Rio Grande do Norte, o editor Abimael Silva, proprietário do Sebo Vermelho, no centro de Natal, tornou-se uma espécie de guardião da cultura de seu estado, e uma referência para quem quer ir muito além das praias e dunas João Correia Filho, texto e fotos

ne Pinto, é outro destaque. Retrata a cidade durante a Segunda Guerra Mundial, quando se tornou uma base dos Estados Unidos e sofreu forte influência da cultura americana. Outra pérola, O Carteiro de Cascudinho, foi escrita por José Helmut Cândido, o carteiro de Câmara Cascudo durante anos, que conta suas experiências servindo um dos maiores intelectuais do Nordeste. As tiragens do Sebo Vermelho costumam

ser pequenas, no máximo 500 exemplares, e com distribuição extremamente complicada, já que é difícil entrar no esquema das grandes livrarias, que dominam o mercado. “Até o livro número 34, ainda tinha esperança de que isso pudesse render algum dinheiro, mas hoje, para mim, o que importa é apenas que as edições se paguem, pois o objetivo de um livro é fazer outro, e assim por diante”, resume o editor. Ele lembra que


um dos livros que mais venderam foi História do Rio Grande do Norte, do pesquisador Ezequiel Vanderlei, publicado originalmente em 1992. Foram 500 exemplares em seis meses. É dessa forma que são lançados cerca de 30 títulos por ano, e o editor pretende alcançar a marca de 500 livros editados até 2012. “O mérito é todo do Rio Grande do Norte, que tem tudo isso para ser dito”, argumenta Abimael, que garimpa preciosidades em viagens pelo interior e em conversas com amigos. A triagem é feita pelo valor histórico e editorial, que conta com a sensibilidade de quem conhece seu estado e vive envolto por livros e intelectuais de peso. “Também aparecem várias porcarias, como uma senhora que queria pagar a publicação do livro do neto, de 5 anos, edição bilíngue, pelo selo. Obviamente, não aceitei.”

Vermelho?

“O OBJETIVO DE UM LIVRO É FAZER OUTRO” Poucos lugares do Sebo Vermelho são arrumados como a estante das edições do próprio selo

Embora o caráter político-literário do trabalho de Abimael esteja claro, o nome de seu sebo nada tem a ver com posições ideológicas. Ao alugar um quiosque para montar sua banca, ele notou que todos eram azuis ou pretos. Para destacá-lo, pintou tudo de vermelho. “Até o dia em que chegou alguém e perguntou: ‘Aqui é o sebo vermelho?’ E o nome acabou ficando. Mas minha mãe achou horrível, achava que tinha de se chamar Sebo São José”, brinca Abimael. Hoje, o sebo não está mais instalado em um quiosque de rua, mas na Avenida Rio Branco, bem no centro da cidade. E mantém a cor como chamariz. Ano após ano, a luta do sebista-editor foi se tornando também uma bandeira política e social, à medida em que virava um verdadeiro guardião da cultura do estado. Além de ser hoje o maior editor potiguar (talvez do Nordeste, pelo número de títulos), tem acumulado uma série de resgates cuja importância é negligenciada pelo poder público e pelas editoras privadas. “Só querem saber do que vende em grandes tiragens. É nisso que investem ainda mais. Quando houve o lançamento do livro do Padre Marcelo aqui em Natal, venderam 5.000 exemplares num único dia, graças a um aparato gigante de marketing”, alfineta o sebista. “Aqui, nunca a prefeitura comprou ou indicou um único livro meu que fale do Rio Grande do Norte. Já tentei, já mandei ofício, mas esse povo fica esperando que a gente puxe o saco.” Segundo ele, um dos raros momentos MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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PRÉ-HISTÓRIA O sertão do Seridó, sul do Rio Grande do Norte, e suas pinturas rupestres: contraste com as praias e dunas dos cartões-postais

de destaque do Sebo Vermelho ocorreu quando foi entrevistado pelo apresentador Jô Soares­. Na ocasião, havia alcançado 100 livros editados e os poucos momentos televisivos renderam visibilidade, embora isso não tenha mudado substancialmente a venda de seus livros. “Foi bom pra chamar a atenção, por exemplo, para o sertão do Rio Grande do Norte, que quase sempre é deixado de lado”, diz Abimael. Sem uma empresa distribuidora, os títulos do Sebo Vermelho são vendidos, em sua grande maioria, no dia do lançamento e no boca a boca, ou em algumas livrarias de Natal, nas quais Abimael leva pessoalmente cada exemplar. “Quanto maior a livraria, maior o obstáculo”, reclama. No sebo, os livros editados por ele são os que têm maior destaque, expostos nas paredes da entrada, com um pouco mais de organização que os demais. Quando sobra tempo ou dinheiro, Abimael viaja para as duas capitais próximas de Natal, Recife (a 285 quilômetros) e João Pessoa (a 190 quilômetros), sempre com o carro lotado de exemplares, que vai entregando de livraria em livraria, numa verdadeira romaria literária. Já no interior do Rio Grande do Norte, além da pesquisa de novos títulos, realiza eventualmente lançamentos de obras que falem do sertão ou de autores locais. É o caso de O Ataque de Lampião a Mossoró, 46

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história em quadrinhos escrita por Emanoel Amaral e Alcides Sales. Para este ano, um dos destaques entre os lançamentos é a reedição de Indícios de uma Civilização Antiquíssima, de José de Azevedo Dantas. Autodidata e pioneiro da antropologia brasileira, escreveu em 1925 um verdadeiro tratado sobre as pinturas rupestres do sertão potiguar, mais especificamente sobre a região do Seridó, no sul do estado, já na divisa com a Paraíba. Para quem quer conhecer o Rio Grande do Norte além dos livros, é bom lembrar que se trata de uma região riquíssima, com belas paisagens, cidades históricas e muitas pinturas rupestres, a maioria datada de 10 mil anos. Somente Carnaúba dos Dantas, a 200 quilômetros da capital, onde viveu José Dantas, possui mais de 60 sítios arqueológicos para serem visitados. Outra predileção de Abimael são os livros de história e de fotografias. Entre os mais importantes lançados por ele estão Uma Câmara Vê Cascudo, com imagens raras do escritor, feitas no final dos anos

1970; e Natal Através dos Tempos, que retrata a cidade desde os anos 1940, ambos do fotógrafo potiguar Carlos Lyra, falecido em 2006. Além de um lugar para comprar livros sobre o Rio Grande do Norte, o Sebo Vermelho também se tornou, em seus 26 anos, um importante reduto de intelectuais, a maioria em busca de boa literatura ou boas conversas, que acontecem ali quase todos os dias. No fundo da loja há uma pequena mesa de sinuca e uma geladeira, aos sábados repleta de cervejas. O ponto de encontro virou tradição entre os amigos que frequentam o sebo. Não faltam uma boa cachaça e a carne de sol, “a melhor de Natal, que eu mesmo escolho”, faz questão de dizer Abimael. Nesses churrascos, o papo rende e surgem ideias para novos livros, além do incentivo dos amigos para que Abimael continue na dura batalha a favor da cultura do Rio Grande do Norte, um estado que, se você quiser conhecer a fundo, não pode deixar de incluir o Sebo Vermelho em seu próximo roteiro.


Por Xandra Stefanel

ALEXANDRE ARRUDA/CBV

Atitude

Ponto contra a homofobia

P

oderia ser brincadeira (de mau gosto) pelo dia da mentira, mas não. Em 1º de abril, no duelo pela semifinal da Superliga Masculina, o meio de rede Michael, da equipe Vôlei do Futuro, de Araçatuba (SP), foi ofendido com gritos homofóbicos da torcida do Sada-Cruzeiro, em Contagem (MG). Além de o Sada-Cruzeiro ter sido punido dias depois pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) em R$ 50 mil, no jogo seguinte ao dos insultos o time e a torcida de Michael deram a resposta. Dessa vez era um jogo em casa, no interior paulista. Com a arena lotada, o clube lançou a campanha “Vôlei Futuro contra o preconceito”, em uma enorme faixa amparada pela torcida. Antes do jogo foram distribuídas 5.000 bisnagas cor-de-rosa. Da

mesma cor eram as ataduras e camisetas dos jogadores durante o aquecimento, todas com o nome de Michael. O líbero Mário Jr. jogou com uma listrada com as cores do arco-íris, símbolo de luta do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros). Emocionado com o apoio que recebeu, Michael agradeceu, por meio da assessoria de imprensa: “Antes do jogo, eu sabia que teria alguma coisa, mas não imaginava o quê. Antes de entrar em quadra vi a camisa do Mário Jr. e achei muito criativa, mas, quando a equipe entrou no ginásio e vi aquele povo todo com os ‘bate-bate’ com meu nome, com aquela megabandeira... Fiquei emocionado, foi um gesto muito carinhoso”. Ele e o time ganharam nos dois jogos, nos pontos e contra o preconceito. MAIO 2011 REVISTA DO BRASIL

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CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Ousados

O documentário Dzi Croquettes passeia pela irreverente trajetória do grupo carioca que abalou os pilares do cenário artístico brasileiro nos anos 1970. Andróginos, eles formavam um grupo de 13 bailarinos que se vestiam de mulher sem deixar de exibir barbas e corpos másculos. Usaram de deboche e ironia para contestar padrões sociais e sexuais, e provocaram a ditadura. Liza Minelli, Gilberto Gil, Miguel Falabella, Nelson Motta, Ney Matogrosso, Marília Pêra, Betty Faria e Cláudia Raia são alguns dos que contam histórias de sucessos, fracassos, assassinato e influências desse grupo que marcou época no teatro e em casas de show no Brasil e no mundo. O filme é uma espécie de memória afetiva de uma das diretoras, Tatiana Issa, filha de Américo Issa, na época técnico de som da família Dzi Croquette. Em DVD.

Amante improvável

Canto de Tiê Depois do minimalista Sweet Jardim, a cantora e compositora Tiê lança seu segundo álbum, A Coruja e o Coração (Warner Music), com voz e violão doces e intimistas. A paulistana, que fez parte da banda de Toquinho antes de se “descobrir” compositora, regravou Só Sei Dançar com Você, de Tulipa Ruiz, traz o uruguaio Jorge Drexler na faixa Perto e Distante, faz uma versão dramática da brega Você Não Vale Nada e remete à filha na suave Na Varanda da Liz. Um disco despretensioso e gostoso de ouvir, como canto de passarinho. 48

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Em Eva Braun – A Vida com Hitler, a historiadora Heike Görtemaker esmiuçou a vida íntima da companheira do Führer e desmistificou a historiografia que sempre ressaltou sua posição à margem das decisões que levaram aos piores crimes do século passado. Heike teve acesso à primeira biografia acadêmica de Eva, descobriu que ela era amante de esportes, cinema música, dança e outras artes que, aliás, o ditador nazista também cultuava. R$ 51.


Matemática lúdica

Subindo e descendo (1960) e, à direita, Auto-retrato no espelho esférico (1950)

Noventa e quatro obras de Escher, o gênio da imaginação lúdica, ficarão expostas no Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo até 17 de julho. Gravuras originais, desenhos e todos os trabalhos mais conhecidos do artista mostram de forma analítica o desenvolvimento da obra gráfica de Escher, conhecido por representar construções impossíveis e explorar o infinito. A chave para muitos de seus efeitos está na matemática, usada intuitivamente. Além das obras, a exposição O Mundo Mágico de Escher conta com instalações interativas e lúdicas e um filme em 3D. De terça a domingo, das 9h às 20h. Rua Álvares Penteado, 112, Centro. Mais informações: (11) 3113-3651.

Para não esquecer

A exposição Registros de uma Guerra Surda, em cartaz até agosto na sede do Arquivo Nacional, no centro do Rio de Janeiro, traz a público documentos, fotos e materiais produzidos pelos aparatos repressores no período da ditadura, entre 1964 e 1985. Lá se veem documentos oficiais, como sumários informativos, fichas de polícia, pareceres de censura e fotos de atividades consideradas suspeitas por agentes de órgãos repressores; e não oficiais, como publicações da imprensa e de organizações que combatiam o regime. A mostra faz parte do projeto Memórias Reveladas, cujo objetivo é organizar e divulgar esse tipo de acervo e manter viva a memória desse período. Além dos documentos e fotos, haverá exibição de filmes sobre regimes autoritários no Brasil e em outros países. Confira a programação em www.memoriasreveladas.gov.br. Das 8h30 às 18h. Praça da República, 173, Centro. Mais informações: (21) 2179-1360.

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Crônica

Por Andréa del Fuego

Coração por inteiro S

Andréa del Fuego, escritora, é autora da trilogia de contos “Minto Enquanto Posso”, “Nego Tudo” e “Engano Seu” e do romance juvenil Sociedade da Caveira de Cristal. Blog: www.delfuego. zip.net

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oube que seria tia pelo telefone, mal conseguia falar com meu irmão, tamanha euforia, lembrei dele ainda bebê em meu colo. É impressionante como os ciclos naturais são imbatíveis no quesito preenchimento existencial. Passado o alvoroço, meu irmão começava a se abater com preocupações referentes ao convênio médico e aos procedimentos a que seria submetida a minha sobrinha, a Lorena. A pequena havia sido diagnosticada, ainda no ventre materno, com uma malformação cardíaca. Em português claro, ela não tem uma parte do coração, mas para nosso alívio o problema pode ser corrigido com três cirurgias. Lorena nasceu e foi direto para a UTI, preparar-se para a primeira correção. Frequentei a sala de espera do hospital por quase um mês, olhando-a pelo vidro, enquanto meu irmão e minha cunhada ficavam lá dentro. Observei outros pais de UTI, casais que passam semanas ou meses aguardando o tempo próprio da recuperação. Tudo isso envolve tristeza, e não tenho como provar o quanto isso tudo também é seu oposto, um grau da alegria. Mas como? Por uma simples razão: o corpo tem defesas que a emoção desconhece. O corpo traz a sensação do sentimento, é a expressão dele, as mães choram sem teatro. Um choro pequeno que o cotidiano trata de torná-lo simples, uma manifestação necessária. Neste momento, Lorena está em casa, já dormiu sobre a barriga dos pais, e presenciei minha mãe tornar-se avó na primeira vez em que ninou a neta. Não há vertigem mais radical que essa, as histórias dos corpos com seus códigos genéticos e amorosos se aflorando na ausência, nesse caso, de um pedacinho do coração da Lorena que só não está manifesto, mas já está refeito em nosso colo. Um coração aristotélico que, se não está em ato, está em potência. Os pais de UTI recolocam os problemas rotineiros em seus lugares reais, a saber, na área de serviço, e não mais na sala de estar. Não se trata de camuflar uma questão menor pela maior, é uma assepsia do pavilhão emocional. A UTI não é terapia de amadurecimento, evidente, embora isso aconteça. A minha descoberta é

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que a UTI não é o lugar de quem está em vias de perder a normalidade dos dias nem sinal de fracasso ou perturbação da realidade – ela é passagem e, como tal, transitória e fluida. O que mais me impressionou nas mães é que elas suspendem o tempo habitual, o dos relógios, para entrar no tempo da recuperação, no tempo da vida, das profundezas celulares, no mistério maior. Nesse ambiente é oferecida ajuda psicológica, que nem sempre socorre, embora seja fundamental. Em alguns casos, tratam as mães como doentes emocionais, dão nome à coisa ainda disforme, sentimentos fortes prontos para receber significados mais leves, e não técnicos. Mas mãe também é mãe de si e se protege. No que uma psicóloga se aproximou da minha cunhada, dizendo fazer parte de um núcleo de pesquisa do luto – só a apresentação dá calafrio –, ela logo se defendeu: “Não quero, obrigada”. Talvez a tia aqui também precise de psicólogo. Por enquanto, o amor tem feito seu trabalho.




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