PERIGO NA MESA Ação sindical global aperta a multinacional Sodexo
nº 60
junho/2011
velho oportunismo Quem ganha e quem perde com o alarmismo econômico
www.redebrasilatual.com.br
Ação!
Pai realizado, cidadão inquieto. Danny Glover fala de cinema, direitos humanos e da importância do Brasil para a África
poderosa sanfona A força de Gonzagão, Hermeto e companhia
Índice
Editorial
10. Economia
Catastrofismo, oportunismo e outros ismos de sempre
14. Trabalho
Denúncias contra Sodexo levam a uma movimentação internacional
18. Saúde
Novas pesquisas enfatizam alerta contra a praga do assédio moral
20. Capa
Os talentos de Danny Glover com os filhos, os filmes e o planeta Regina de grammont
26. Violência
Nova oportunidade para fazer valer o Estatuto do Desarmamento
30. Mídia
Os cinco anos da Revista do Brasil e algumas histórias revisitadas
Rubens, capa da edição nº 13, talvez nem tenha a dimensão de seu papel transformador
38. Cultura
A partir de uma vida
Os coletivos de teatro que se incomodam e não se acomodam
42. Música
Jesus Carlos e José Augusto Cindio
A riqueza multicultural e o mundo de possibilidades de uma sanfona
46. Viagem
Festa do Vaqueiro, a tradição que celebra os heróis do sertão
Seções Cartas 4 Mauro Santayana
5
Destaques do mês
6
Laurindo Lalo Leal Filho
9
Atitude: churrasco diferente
17
Curta essa dica
48
Crônica: Mouzar Benedito
50
N
a passagem dos cinco anos da publicação, em 12 de junho, a Revista do Brasil faz uma modesta viagem de volta à procura de seus personagens. O que aconteceu com as personalidades que foram destaque em reportagens e capas, por onde andam? Por personalidade, longe de revista de celebridades ou fofocas, entenda-se o foco em pessoas que dão exemplo de superação, de engajamento, com atitudes e movimentos. A partir de uma vida à primeira vista anônima, brota a mudança de toda uma realidade. E essa viagem de volta foi gratificante, ainda que não se quisesse com isso apontar um final de história, nem muito menos finais felizes. Trata-se apenas das histórias em andamento, à espera da ação de seus protagonistas para definir suas próximas páginas. A Revista do Brasil também se repete. E esse repetir-se tem sabor de reafirmação de ideais. Novamente, a capa está fora dos padrões vistos às centenas nas bancas e em gôndolas de supermercados. A maioria das nossas capas traz personalidades que jamais teriam lugar nas outras. Homens e mulheres, negros, pardos e brancos, sertanejos e urbanos. A RdB desafia o tabu estético das vitrines convencionais para dar valor ao conteúdo. É assim que Danny Glover abre a edição, com seu sorriso de feliz a enigmático. Afinal, o artista admirado no mundo todo veio ao Brasil para participar de uma celebração histórico-cultural Brasil-África, por iniciativa da CUT, no 1º de Maio. Ao almoçar e interagir com o público em botequim popular – “diferenciado”, para usar uma expressão graciosamente recém-reinventada –, usar o banheiro químico da praça ou jantar com companheiros brasileiros como se estivesse em casa, Glover esbanjou humildade e esparramou conhecimento sobre o que é ter personalidade inclusiva, bem ao estilo de Martin Luther King. O ativista e ator veio pelas mãos de sindicalistas norte-americanos, em busca de trocar experiências e expandir ações globais, como a que se vê nas denúncias sobre a Sodexo. É da certeza da nossa interação com os leitores que vem a força para superar obstáculos e fazer da Rede Brasil Atual – com revista, rádio, site, jornais impressos e a parceria da TVT – plataforma de uma nova mídia, componente essencial de quem quer construir um mundo novo. REVISTA DO BRASIL junho 2011
3
Cartas Núcleo de planejamento editorial André Luis Rodrigues, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Jailton Garcia Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares www.redebrasilatual.com.br
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
4
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Dom Tomás Uma entrevista bonita (“A lógica da transformação”, ed. 59), com um conhecimento amadurecido que nos permite ver o pensamento social da Igreja. João Alberto São Paulo (SP)
Violência ou esporte No artigo “Violência sem disfarce” (ed. 58), o autor, Laurindo Lalo Leal Filho, faz duras críticas ao esporte MMA (Vale Tudo). As lutas são sérias, os atletas as disputam com muita vontade de vencer, mas com muito respeito ao adversário. Os lutadores são preparados para isso. Percebe-se que quem faz a crítica o faz sem conhecimento de causa. No MMA, quando os atletas não estão em condições de reagir, a luta é interrompida para prevalecer a integridade física do competidor. Peço desculpa pelo desabafo, pois é triste um formador de opinião induzir as pessoas que também não vivem esse mundo a acreditar que o esporte é violento. Sergio Zunder Wasbus, São Paulo (SP) Nota do autor: Reafirmo tudo o que escrevi. Nada justifica essa brutalidade. Como ficam os neurônios, tão sensíveis, depois de o cidadão levar um chute na cabeça?
Chico César Romper com o conservadorismo e suas mais inusitadas formações contemporâneas exige não só coragem e atitude como propriedade para lidar com as muitas interferências que permeiam a cultura paraibana (“A voz e a vez do sertão”, ed. 58). Chico, sem dúvida, enfrentará confrontos, materializados em discursos que ratificam os interesses daqueles que não querem sair da sua zona de conforto, não conseguem pensar numa perspectiva pública, do povo. A ideia defendida pelo secretário reside na valorização das construções que nascem naturalmente na nossa terra, feitas pelo nosso povo, que historicamente esteve à margem, excluído de conhecer e aprender mais sobre história artístico-cultural. Chico e muitos artistas paraibanos devem ter histórias de sobra que revelam as dificuldades para levar adiante seus projetos. Nesse sentido, acredito que o “norral” entranhado nesse “home” paraibano certifica as ações da nova secretaria. João Correia, parabéns pela excelente construção textual. Izandra Falcão, João Pessoa (PB) Santayana Não pude deixar de enviar os parabéns pela clareza, capacidade de síntese, abrangência da análise e perspicácia do artigo de Mauro Santayana, “Memórias de Abril” (ed. 58). Em artigo curto, Santayana consegue fazer uma das melhores análises sobre o golpe de 1964. Eduardo T. Pereira, Rio de Janeiro (RJ) Brasília É absolutamente impensável ouvir um governante (entrevista com Agnello Queiroz, “Brasília tem de ser exemplo para o Brasil”, ed. 58) que, ao iniciar um novo período à frente de uma cidade, fale em “inaugurar um novo modelo de gestão pública baseado na ética e na transparência”. Como se governar assim não fosse dever, mas opção dos governantes. Vinicius Avelar, Brasília (DF)
revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
MauroSantayana
A rebelião dos homens
I
magine o leitor se em fevereiro de 1848 já houvesse a rede mundial de computadores. Vamos supor que, em lugar de imprimir os primeiros e poucos exemplares do Manifesto Comunista, Marx e Engels tivessem usado a internet. Que desdobramentos teriam decorrido daquelas movimentações? Como sabemos, o ano de 1848 foi de rebeliões operárias na Europa, reprimidas com toda a violência. O capitalismo selvagem de então, um dos filhos bastardos da Revolução Francesa, sentiu-se animado pela derrota dos trabalhadores. Na França, a burguesia tomou conta do poder e, com a derrocada da monarquia, assumiu-o sem disfarces e sem intermediários, em um período que os historiadores denominam de “A República dos homens de negócios”. Os trabalhadores e intelectuais tentaram, mais tarde, em 1871, logo depois de a França ser vencida pelos alemães, criar um governo autônomo e igualitário em Paris. Com a ajuda dos invasores, o exército de Thiers executou 20 mil parisienses nas ruas. As manifestações populares dos países árabes, que os governos e a imprensa dos Estados Unidos e da Europa saudaram como o fim dos tiranos e o início da democratização do mundo islâmico, entram em nova etapa, ao atingir os países ricos. Os analistas apressados são conduzidos a rever suasconclusões. O mal-estar que levou os povos às ruasnão se limita ao norte da África: é fenômeno mundial. Uma das contradições do capitalismo é sua incapacidade de estabelecer limites, principalmente nessa nova etapa, a do imperialismo desembuçado, no qual os governos nacionais não passam de meros servidores dos donos do dinheiro. Hoje, nos Estados Unidos – que foram, em um tempo, o espaço para a realização de milhões de pessoas mediante o trabalho –, a diferença entre os ricos e os pobres é maior do que durante toda a sua história, incluído o tempo da escravidão. Um por cento da população norte-americana detém 40% de toda a riqueza nacional. A mesma situação se repete em quase todos os países nórdicos. Quando redigia este texto, milhares de pessoas
Qual teria sido o desenvolvimento do processo, se todos os trabalhadores europeus e norte-americanos pudessem ler o Manifesto de Marx e Engels em tempo real, via web? se encontravam acampadas no centro de Madri, em continuidade ao movimento Democracia Real, Já, que se iniciou em 15 de maio, com protestos em todas as grandes cidades espanholas. A Espanha hoje está dominada pelos grandes banqueiros e pelas companhias multinacionais, que não só exploram o trabalho nacional como vivem de explorar os países latino-americanos. Bancos como o Santander – cujos resultados mais expressivos são obtidos no Brasil – dividem com os dois partidos que se revezam no poder (os socialistas e os conservadores) o resultado do assalto à economia do país. É contra esse sistema odioso que os espanhóis foram às ruas, e nas ruas continuam. Não são apenas os jovens desempregados que se indignam. São principalmente as mulheres e homens maduros os que estimulam o movimento. Eles sentem que seus filhos e netos estarão condenados a um futuro a cada dia mais tenebroso e mais violento, se os cidadãos não reagirem imediatamente. Os espanhóis estão promovendo a articulação internacional de movimentos semelhantes, que ocorrem em outros países, como Islândia, França, Inglaterra e mesmo os Estados Unidos. Se o sistema financeiro se articulou, com o Consenso de Washington e os encontros periódicos entre os homens mais ricos do planeta, a fim de dominar e explorar globalmente os povos, é preciso que os cidadãos do mundo inteiro reajam. Marx queria a união de todos os proletários do mundo. O movimento de hoje é mais amplo e seu lema poderia ser: Seres humanos do mundo inteiro, uni-vos. REVISTA DO BRASIL junho 2011
5
www.redebrasilatual.com.br
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Perigos transgênicos
Goleada da cidadania O dia 5 de maio ficará marcado, no Brasil, por um passo decisivo contra o preconceito. Por unanimidade (10 x 0), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu reconhecer como família a união entre pessoas do mesmo sexo. “A votação que favorece a união estável entre casais homoafetivos é um momento histórico para a cidadania e a conquista da igualdade no Brasil”, afirmou o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). “Isso nos dá uma segurança jurídica como cidadãos. Ninguém está saindo com vitória ou derrota. É o Brasil que ganha”, acrescentou o presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABLGT), Toni Reis. http://bit.ly/rba_homoafetivo
A próxima meta a alcançar é a aprovação do projeto de lei que torna crime atos de preconceito por motivações homofóbicas. Para pressionar, 5.000 pessoas protestaram na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no dia 18 de maio. Segundo Jocélio Ferreira, integrante do Movimento LGBT do Pará, a marcha dá visibilidade à luta contra todos os tipos de preconceito. “Queremos com essa passeata mostrar para a sociedade que nós, homossexuais, somos iguais a todos, só temos opções diferentes e, garanto, somos muito mais felizes do que muitas pessoas heterossexuais”, provocou. http://bit.ly/rba_homofobia_nao
Stédile: alteração no regime de chuvas
Jailton Garcia
Antônio Cruz/abr
Manifestação do Movimento LGBT em Brasília: conquista
João Pedro Stédile, um dos líderes do MST, afirma que o cultivo dos chamados transgênicos tem causado danos ambientais e de saúde pública. Ele também vê afrontas à soberania brasileira. E alerta ainda que o aumento do nível de chuva na região Sudeste seria já uma consequência da substituição de áreas florestais por plantações de soja na Amazônia Legal. No dia 17 de maio, Stédile proferiu palestra sobre o tema e concedeu entrevista à Rede Brasil Atual. http://bit.ly/rba_stedile
Manter o euro ou voltar para o dracma? Essa pergunta gira em torno da Grécia e de sua crise econômica – que, aliás, respinga gravemente no Velho Continente, sobretudo em Portugal, Irlanda e agora Espanha (leia Mauro Santayana, na página 5). Sem essa opção, na análise de Flávio Aguiar em seu Blog do Velho Mundo, os gregos entrariam em uma relação de gato e rato com os demais países da zona do euro. Além dos remédios já aplicados pela comunidade europeia, com os resultados conhecidos – como recessão e instabilidade social –, tentam enfiar goela abaixo da Grécia um pacote suplementar de euros, que pode prostrar ainda mais o país. A essa chantagem os gregos contrapõem outra chantagem: ameaça sair do guarda-chuva do euro. Ninguém quer isso? Então que se negocie, mas para valer. http://bit.ly/rba_grecia 6
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Nas ruas, os gregos dizem “fora FMI”
Yiorgos Karahalis/Reuters
Dilemas gregos
NoRádio
O Jornal Brasil Atual vai ao ar diariamente na Grande São Paulo, das 7h às 8h, na FM 98,9
Pela verdade histórica
Outros destaques de maio
Pesquisador cobra informações sobre Araguaia e denuncia envolvimento de agentes da Abin na repressão raquel camargo
Por Oswaldo Luiz Colibri Vitta e Lúcia Rodrigues
Lula e o “Oscar” dos metalúrgicos
Luiz Carlos Murauskas/Folhapres
http://bit.ly/rba_joao_ferrador
Pedágio em SP tem peso de imposto
http://bit.ly/rba_pedagiosp
Professores de SP e o reajuste de 42%
http://bit.ly/rba_professor_42
Privatização de aeroporto: apreensão
http://bit.ly/rba_aero_RN Lixo radioativo na Bahia
http://bit.ly/rba_lixo_bahia Morte de Bin Laden não elimina ameaça
http://bit.ly/rba_bin_laden
E
pisódio nebuloso da ditadura, a Guerrilha do Araguaia entrou na vida de Paulo Fonteles Filho desde o nascimento, na prisão. Seus pais, estudantes, foram interrogados e torturados – e assim tomaram conhecimento do que se passava no norte do Brasil. Ele “herdou” o interesse e há 15 anos se dedica a pesquisar o assunto. Com base nessa vivência, afirma que o ex-senador e então delegado da Polícia Federal Romeu Tuma chefiou a repressão aos guerrilheiros do Araguaia. Além disso, agentes da repressão que atuamhoje na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do Pará estariam envolvidos na ocultação de cadáveres de desaparecidos políticos e na destruição de documentos da ditadura. Com essas denúncias, não é de espantar que Fonteles venha sendo ameaçado, como afirmou em entrevista concedida à Rádio Brasil Atual. Na madrugada de 5 de maio, circulou nas redes sociais o anúncio de sua morte. “Foi um negócio absurdo e, o que é pior, nesse mesmo dia, coincidentemente, eu havia testemunhado em um processo interno da Abin, no Pará, que tratava exatamente de ocultação de cadáveres da Guerrilha do Araguaia e da queima de arquivos”, conta. “Na mesma noite bateram em casa dizendo que circulava na cidade que eu tinha morrido e amigos meus já estavam me velando. É uma tentativa de intimidação, não apenas a mim.”
O pesquisador salienta que a busca da verdade e a abertura dos arquivos são ingredientes de uma luta política, e sem a mobilização da sociedade nada irá acontecer. “Sabemos que dentro do próprio Estado brasileiro há servidores de instituições que procuram acobertar o que houve”, afirma. E aponta dois servidores da Abin como integrantes do DOI-Codi que atuaram na Guerrilha do Araguaia: o vice-superintendente da agência no Pará, Magno José Borges, e Armando Sousa Dias. “Seguramente, eles têm as mãos sujas de sangue.” Romeu Tuma, que morreu no ano passado, foi visto pela primeira vez no Araguaia em setembro de 1972, segundo informações colhidas por Fonteles. Seria conhecido na região como “delegado Silva” ou “doutor Silva”. Recentemente, o “aparelho” em que supostamente atuava foi descoberto em Marabá. “Ele chefiou a equipe que pegava depoimentos sob tortura, assassinava, empacotava e dava fim aos corpos.” Paulo Fonteles Filho destaca a importância da criação da Comissão Nacional da Verdade, observando que o mundo já assistiu a experiências semelhantes em 40 países. “A maioria ensejou democracias mais fortalecidas. E revisitando, naturalmente, seus passados de tragédia, tortura e infâmia.” Ouça a íntegra da entrevista ou leia os principais trechos no portal da Rede Brasil Atual. REVISTA DO BRASIL junho 2011
7
NaTV www.tvt.org.br
Viagem aos mitos do Irã
Praça Naqhsh-e-Jahan, em Isfahan
“C
hato, muito chato.” É assim que uma jovem iraniana define a vida naquele país de que muito se fala, mas pouco se conhece. O cotidiano na região é singular. Para os rapazes e garotas pouco existe para se divertir. Não há casas noturnas nem bebidas alcoólicas. Namorar e beijar em lugar público também não é considerado normal. Economicamente, o Irã se desenvolve apesar do embargo econômico encabeçado pelos Estados Unidos. A equipe do programa ABCD em Revista, da TVT, passou dez dias na região a convite do governo local. Flagrou o dia a dia das pessoas, visitou sítios arqueológicos e conversou com autoridades sobre o país e sua política de relações internacionais. Em dois programas, o ABCD em Revista faz uma análise minuciosa de um país demonizado pelo Ocidente, mas exportador de helicópteros, referência em saúde no Oriente Médio e com baixo índice de analfabetismo. Além de Tee rã, uma metrópole efervescente com 14 milhões de habitantes, a equipe da TVT esteve em mais três estados do Irã
8
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Persépolis
e conheceu Persépolis, berço do Império Persa, que terminou 330 anos antes de Cristo, quando Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, conquistou a Pérsia, derrotando Dario III. Em Yazd, as mesquitas impressionam e a arquitetura é inusitada e criativa. Pelo fato de a cidade estar próxima ao deserto, todas as casas foram feitas para ser quentes no inverno e frescas no verão – e têm mais de 600 anos de construção. Shiraz, com cerca de 1,5 milhão de habitantes, é um importante polo industrial, eletrônico e petroquímico. O lugar é conhecido como cidade dos poetas, das flores e do vinho. Atualmente, a produção vinícola é proibida, por se tratar de uma república islâmica, mas a uva Shiraz, nativa da região, está pre-
Teerã
sente em vinhos de todo o mundo. Dois dos principais poetas persas nasceram na cidade, Saadi e Hafez.
Programe-se Os episódios sobre o Irã foram ao ar nos dias 20 e 27 de maio e podem ser vistos também no site da TVT. O ABCD em Revista é um programa semanal, em formato de documentário, que dá voz à comunidade e prestigia sua participação. Toda sexta-feira, às 19h30, logo após o Seu Jornal.
Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br
Fotos luiz rafael cabral/divulgação
Programa mergulha no mundo persa com olhar detalhado e desmitifica – mas não muito – a região
LaurindoLaloLealFilho
Um domingo mais alegre na TV
P
resente em praticamente todas as residências, a TV tem no domingo uma audiência cativa de milhões de pessoas. Não é preciso sair de casa para consumi-la e, o mais importante, não é necessário tirar dinheiro do bolso. Poucos se dão conta de que o pagamento é feito na hora de comprar qualquer produto ou serviço anunciado, uma vez que o custo da propaganda está embutido no valor pago. Mas quem vai se lembrar disso logo depois do almoço de domingo? Pena que a TV brasileira retribua tão mal a fidelidade do público. Se sua qualidade já é duvidosa em qualquer dia da semana, no domingo torna-se insuperável. A emissora líder de audiência mantém há anos no ar o Domingão do Faustão, responsável por um dos momentos históricos da TV brasileira quando exibiu o “sushi erótico”. Em programa recente mostrou pés com calos e frieiras, em todos os detalhes, como se nada de mais agradável pudesse ser oferecido ao telespectador. O argumento de que quem não quer ver cenas desse tipo muda de canal não se sustenta porque as alternativas são do mesmo nível. Na verdade, troca-se de canal para ver a mesma coisa com outra roupagem. Basta lembrar o Gugu e a farsa do PCC, outro momento histórico. Desligar a TV é abrir mão de um direito de cidadania. Afinal, as emissoras receberam do Estado as concessões dos canais para prestar um serviço ao público, e deveriam fazê-lo com qualidade. É como se deixássemos de pegar o ônibus porque ele está sujo ou atrasado. No caso da TV, o telespectador fica condenado a ter como divertimento na tarde de domingo, além dos programas de auditório, partidas de futebol e, depois, suas intermináveis mesas-redondas. Para não falar de programas com quadros beirando a escatologia, como acontece, em alguns momentos, no Pânico. A seguir temos doenças, crimes e catástrofes nas revistas eletrônicas da noite, deixando um travo amargo na garganta do público. Nada mais melancólico para o fim do dia consagrado ao descanso e a retomada de ânimo para uma nova semana de trabalho. Mas não é todo brasileiro que passa por esse so-
Domingo pede cachimbo, diz antigo ditado popular. Hoje, conhecidos os males do fumo, o dia de descanso pede outros passatempos. Para a maioria dos brasileiros existe apenas um: a televisão frimento na frente da TV. Há os assinantes de canais pagos. No domingo das frieiras do Faustão, eles podiam ver no Canal Viva (da mesma Globo) Chico Buarque e Caetano Veloso em seus melhores momentos. Esses telespectadores, com certeza, terminaram o domingo em alto astral. Se os concessionários de canais de televisão são insensíveis à elevação cultural da população, que pode e deve ser oferecida pela TV, cabe então ao Estado agir para forçar a oferta de programações realmente diversificadas. Está mais que na hora de o Brasil instituir um órgão regulador para o rádio e a TV capaz de intermediar as relações entre o público e as emissoras, criando políticas voltadas para atender aos mais diferentes gostos e anseios da população. “É sempre melhor superestimar a mentalidade do público do que subestimá-la”, dizia no século passado um dos primeiros diretores da BBC, a rede estatal britânica. Enquanto outro acrescentava a necessidade de a televisão “despertar o público para ideias e gostos culturais menos familiares, ampliando mentes e horizontes, além de elevar a qualidade de vida do telespectador, capacitando-o para uma enriquecedora experiência de vida, em vez de meramente puxá-lo para o rotineiro”. Poderíamos começar a buscar esses objetivos, aqui no Brasil, pela programação dos domingos. É aquela que precisa de uma ação mais urgente tal o grau de degradação a que chegou. Com isso teríamos um final de descanso mais alegre, menos tenso, inspirador de uma semana melhor. REVISTA DO BRASIL junho 2011
9
economia Gatilho sensível Nos primeiros meses do ano, combustíveis foram um dos principais fatores da inflação
De previsões e oportunismos A inflação existe e preocupa, mas tem gente querendo se aproveitar para aumentar seus ganhos e atingir os salários Por Vitor Nuzzi 10
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
N
o mundo hermético e misterioso das previsões econômicas, passou praticamente batido a crise financeira que abalou o mundo em 2008. Talvez por isso o economista Nouriel Roubini, tido como o único a prever a crise, tenha sido chamado de “doutor apocalipse”. Ao comentar aquele período, um importante especialista de um grande banco brasileiro chegou a dizer que 2008 foi difícil para fazer projeções “porque houve muitas
Números que não batem
No final de 2010, a Exame pediu a alguns economistas previsões sobre vários indicadores. Alguns revelam a dificuldade que existe em traçar projeções na economia. Tanto que, em maio, a revista refez o pedido (leia íntegra no site) Especialista (previsões feitas em dezembro)
PIB 2011
Inflação 2011
Alexandre Schwartsman
4,50%
5,50%
Antônio Corrêa de Lacerda
5,00%
5,00%
Ilan Goldfajn
4,30%
5,60%
José Roberto Mendonça de Barros
5,00%
5,30%
Maílson da Nóbrega
4,40%
5,50%
Octavio de Barros
4,50%
5,00%
Ex-diretor do BC e ex-economista-chefe do Santander Professor da PUC
Economista-chefe do Itaú Unibanco e ex-diretor de Política Econômica do BC Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, gestão FHC Sócio da consultoria Tendências e ex-ministro da Fazenda, governo Sarney Diretor de Pesquisas e Estudos Econômicos do Bradesco
Apostas em 2010
O mercado previa...
...e fechou em
PIB
5,20% 7,50%
IPCA
4,50% 5,91%
IGP-M
4,41% 11,32%
Saldo da balança comercial US$ 11,2 bilhões US$ 20,3 bilhões Fonte: Boletim Focus, do Banco Central
Alessandro Shinoda/Folhapress
Salário não causa inflação Período
Inflação (INPC)
Acordos salariais iguais ou maiores que a inflação
1996 9,12%
56%
2000 5,27%
67%
2002 14,74%
53%
2003 10,38%
42%
2005 5,05%
88%
2010 6,47% 96% Fontes: IBGE e Dieese
incertezas”. O momento atual da economia, obviamente, suscita previsões, mas prescinde de cornetagens. E recomenda prudência, e não alarmismo. No início de maio, um telejornal matutino da maior emissora do país preparou uma longa reportagem sobre os tempos de hiperinflação. O economista Luiz Gonzaga Belluzzo espantou-se ao vê-la: “Como eles instigam o pânico!” Alguns já saíram até apontando para as campanhas salariais do segundo semestre, que vão coincidir, conforme preveem,
com o pico da inflação em 12 meses. De um lado, o “mercado” (em geral o financeiro) pressiona com projeções alarmantes, enquanto de outro o governo diz que o pior já passou. Para o professor Heron do Carmo, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o país vive uma situação paradoxal. A inflação anual, acumulada nos últimos 12 meses terminados em abril, vinha em alta. Mas, considerados os três ou os seis meses anteriores, desacelerou. Ele avalia que as medidas ado-
tadas até agora estão na direção correta. “É muito mais para controlar as expectativas de inflação”, afirma Heron, também presidente do Conselho Regional de Economia (Corecon) de São Paulo. Nesse sentido, não deixa de haver uma queda de braço entre mercado – leiam-se agentes financeiros – e governo, que produz expectativas sobre a própria inflação. “O mercado faz o jogo do mercado, ele vai ser sempre premiado com inflação mais alta. No mínimo, não vai ser chamado de ingênuo”, comenta o professor REVISTA DO BRASIL junho 2011
11
economia Antônio Corrêa de Lacerda, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “Assim, a tendência dos chamados analistas é carregar nas tintas, enquanto o governo sempre tende a ser mais otimista.”
12
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Doutor apocalipse Entre os videntes da economia mundial, Nouriel Roubini foi o único a prever a crise de 2008
administração de expectativas Belluzzo: “Quanto mais altistas sejam as previsões, mais influenciam os formadores de preços, que antecipam uma certa função de reação do BC”
Cesar Greco/FotoArena/Folhapress
O governo deve ser preciso e calculista para não tomar medidas que descambem para uma recessão. “Este ano vamos crescer metade do ano passado, e a inflação vai ficar perto da meta”, lembra Lacerda. Do lado do mercado, é necessário analisar os números com responsabilidade. “Os modelos de projeção são muito falhos.” Um exemplo simples está no boletim Focus, divulgado semanalmente pelo Banco Central. No começo do ano passado, os analistas estimavam inflação de 4,50%. Fechou em 5,91%. Já a aposta para o crescimento do PIB era de 5,2%. Deu 7,5%. Belluzzo observa que é função da política monetária justamente administrar as expectativas. “É um jogo de espelhos entre o BC e o mercado”, diz, chamando a atenção para a capacidade dos agentes do mercado de influenciar uma inflação mais elevada. “Quanto mais altistas sejam as previsões, mais influenciam os formadores de preços, que antecipam uma certa função de reação do BC.” Para Belluzzo, o mercado muitas vezes se apoia em mudanças de ritmo para expor expectativas negativas e, nessa relação, costuma colocar o BC no córner. “Não vamos pensar que é uma questão meramente técnica. É uma questão de poder.” Embora nada justifique alarmar a população exibindo cenários de catástrofe, segundo o economista, é preciso, claro, tomar cuidado. “De fato, o Brasil sofreu os efeitos do choque de commodities, que subiram 45% nos últimos 12 meses. Esse é o lado inevitável da inflação. Todos os países estão fora de suas metas.” O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, lembra que “em casa de enforcado, não se fala de corda”, aludindo à memória inflacionária do país. “Por outro lado, tem um certo terrorismo de alguns setores, que são os ganhadores com uma taxa de juros maior”, afirma. Ele também ressalta que o mundo inteiro está convi-
Steve Marcus/REUTERS
Sangue-frio
vendo com pressões inflacionárias. “Temos, no Brasil, vários componentes dessa pressão de alta. O Plano Real não representou uma desindexação total. Há também preços de serviços que subiram, relacionados a mudanças no mercado de trabalho. Isso está sendo enfrentado de forma diferente que no passado.” Na opinião de Pochmann e de outros analistas, o segundo semestre já deve mostrar inflação em queda. O Dieese observou que as causas da recente elevação da inflação não estão claramente determinadas. “Há um conjunto de situações que, de uma forma ou de outra, pressiona para cima o nível geral de preços.” Entre esses fatores estão alimentos, commodities, aquecimento da demanda, oligopólios, tarifas públicas, preços administrados, inflação mundial e as próprias expectativas criadas no mercado. Assim, o instituto alerta para a conduta dos chamados formadores de opinião. Alguns, “por motivos inconfessáveis”, exageram na importância dada a aumentos sazonais de preços (aqueles que sem-
pre têm variação em determinada época por razões de clima, safra, datas comemorativas etc.) e ajudam a criar expectativas negativas em relação ao comportamento futuro da economia. “Na esteira desse alarmismo, propugnam, em defesa da estabilização, o aumento das taxas de juros, o que, nesse instante, só beneficiará os rentistas e o setor financeiro.” Em outras palavras, os que sempre se beneficiam, mas também sempre querem mais.
O guarda-metas
O Comitê de Política Monetária (Copom) brasileiro é inspirado nos modelos do Federal Open Market Committee (Fomc) norte-americano e do Central Bank Council (CBC) alemão. “Uma vasta gama de autoridades monetárias em todo o mundo adota prática semelhante, facilitando o processo decisório, a transparência e a comunicação com o público em geral”, diz o Banco Central. Em 1999, o BC adotou o sistema de metas. Assim, cabe à autoridade monetária garantir o cumprimento da meta fi-
Salário não é vilão A Central Única dos Trabalhadores, e eu pessoalmente, estamos orientando nossos sindicatos filiados a organizarem as mais ousadas mobilizações e as mais arrojadas e exigentes pautas de reivindicações dos últimos tempos durante as campanhas salariais que vão ocorrer no segundo semestre. É tempo de ousadia, especialmente para mostrar nossa contrariedade com a ideia de que aumentos reais de salário podem representar uma ameaça ao controle da inflação no Brasil. Ora de maneira sutil, ora escancarada, análises inspiradas a partir do mercado financeiro, repercutidas pela imprensa, sugerem que a conjuntura desaconselha aumentos salariais acima da inflação, pois poderiam pressionar as taxas. Em primeiro lugar, para nos contrapor a esse ataque concentrado aos salários,
xada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do BC. Atualmente, a meta da inflação oficial (IPCA, calculado pelo IBGE) é de 4,5%, com tolerância de dois pontos percentuais. “O sistema de metas, no fundo, garante o mercado contra a desvalorização da riqueza financeira”, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. “Essa vigilância tem um lado bastante negativo. Pela maneira como são feitas as projeções, acabam provocando uma reação dos formadores de preços.” A CUT e a própria Fiesp contestam o modelo adotado pelo BC, que ouve agentes financeiros para publicar semanalmente o boletim Focus, com as expectativas para a economia. Para os críticos, isso influencia as decisões do Copom. “Se não pudermos acabar com essa forma de pesquisa, que pelo menos os trabalhadores sejam ouvidos. Afinal, somos o setor produtivo”, diz o presidente da CUT, ArturHenrique.
Por Artur Henrique
queremos dizer que é um absurdo tentar esconder que há outros fatores que pressionam de fato a inflação, mas jamais são citados por essas análises conservadoras. Lucro causa inflação. Distribuição de dividendos também pressiona a inflação. O fato de a estrutura tributária ser regressiva, punindo quem ganha menos, também causa inflação, pois os impostos incidem majoritariamente sobre o consumo e são repassados diretamente aos preços. A existência de setores oligopolizados, especialmente na indústria, faz com que a ausência de concorrência facilite o repasse para os preços de qualquer aumento nos custos. Os oligopólios também têm maior facilidade para aumentar margem de lucros. Devemos lembrar ainda das tarifas públicas, muitas regidas por contratos indexados, que
ajudam a ampliar os custos da produção e a pressionar a inflação. Querer tratar da questão inflacionária, e principalmente combatê-la, sem considerar essas variáveis é falso e mal-intencionado. Outro detalhe importante, ao qual é dado pouco destaque, refere-se ao fato de os salários estarem há muito tempo perdendo a corrida para o aumento da produtividade e para o crescimento veloz dos lucros obtidos por todos os setores de atividade. No período de quase 20 anos entre 1989 e 2008, a produtividade da indústria cresceu 84%, enquanto no mesmo espaço de tempo a renda média dos salários caiu 37 pontos. Se a teoria clássica associa inflação a aumentos salariais acima da produtividade, podemos então descartar o risco. Por fim, quero repetir que não estamos diante
de um cenário de inflação de demanda, no qual as pessoas querem comprar algo que está em falta no mercado. Segundo o Sistema de Contas Nacionais do IBGE, o consumo das famílias, em relação ao PIB, caiu entre 2009 e 2010, de 61,7% para 60,6%. Esse dado sinaliza que o consumo das famílias tem permanecido estável em relação ao crescimento da economia. Há alguns fatores que pressionaram a inflação nos últimos meses. Sazonais alguns, fruto das tarifas públicas indexadas, outros. Sem esquecer da ação dos oligopólios. Mas querer apontar os salários como vilões da inflação é uma falácia. A CUT e seus sindicatos não vão cair nessa. Artur Henrique é presidente da CUT. Artigo originalmente publicado n’O Globo, em 12 de maio
REVISTA DO BRASIL junho 2011
13
paulo donizetti de souza
trabalho
Aceita esse tíquete?
D
iariamente 50 milhões de pessoas são atendidas por algum tipo de serviço fornecido pela Sodexo (Sodexho Alliance), multinacional fran cesa fundada em 1966. O grupo tem 380 mil funcionários e, no ano passado, faturou mais de € 15 bilhões. No Brasil, seu produto mais conhecido é um cartão de tíquete-refeição usado por alguns milhares de trabalhadores. Mas a empresa presta numerosos serviços em 80 países, como programas de alimentação em escolas e hospitais públicos, organização de sistemas carcerários, contratos privados com corporações para elaboração de planos de benefícios, gestão de planos
14
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Em vários países do mundo, denúncias indicam que abusos trabalhistas e contra os direitos humanos bancam os lucros da multinacional Sodexo Por Guilherme Amorim
de saúde, aposentadoria complementar e integração de benefícios – tem até contratos que chegam a dezenas de milhões de dólares com forças armadas, principalmente a americana, para a qual fornece refeições e suporte logístico. A Sodexo ficou famosa entre os brasileiros em 2007 ao comprar o grupo de
vales-alimentação VR, o maior do país, por R$ 1 bilhão (assumindo os mais de 300 mil contratos com estabelecimentos, e mais de 5 milhões de clientes). Nesses quatro anos, o conglomerado tem se mostrado cada vez mais disposto a investir nos mercados em crescimento dentro do Brasil, projeta expansões
JACQUES DEMARTHON/afp
“Mudar a Sodexo, mudar vidas” Sindicalistas dos EUA, França e Inglaterra reúnem-se com a imprensa para denunciar abusos trabalhistas da empresa em várias partes do mundo
regionais além do eixo Sudoeste e a entrada no ramo de alimentação para o setor de saúde. Com 850 unidades operacionais e quase 17 mil funcionários, a Sodexo calcula um crescimento de 25% para este ano no país, onde já fatura mais de R$ 1 bilhão e cresce entre 15% e 20% ao ano.
Porém...
Se colar, colou
fotos camila de oliveira
No final de abril, sindicatos de trabalhadores ligados às áreas de atuação da companhia se reuniram em São Paulo. Entre lideranças de seis dos países onde a Sodexo opera – Brasil, Estados Unidos, França, Colômbia, Marrocos e República Dominicana –, a empresa proporcio-
nou um raro consenso global: horas extras não remuneradas, falta de estrutura e itens de segurança em locais de trabalho, contratações precárias que induzem a uma alta rotatividade, pressão psicológica para impedir a formação de organizações dos empregados. Enfim, segundo os sindicalistas, os abusos trabalhistas e aos direitos humanos são componentes comuns no cardápio da multinacional. Nos Estados Unidos, membros da Seiu, sindicato nacional de trabalhadores da área de serviços, acusam a Sodexo de não proporcionar condições dignas de trabalho. Há casos em que os planos de saúde oferecidos custam ao trabalhador um quarto de seu ganho. Na França,
Encontro em são paulo Os sindicalistas Edgar Paez (Colômbia), Autumn Weintraub (EUA) e Romildo Garcez (Brasil): abusos não são casos isolados, mas política da empresa
Jean-Michel Dupire, da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), relatou a falta de acompanhamento médico a funcionários que sofreram acidentes de trabalho. No país, tem-se buscado a solidariedade da população para a causa, principalmente no setor metalúrgico, que mantém grandes contratos com a gigante de serviços. Presente há 18 anos na Colômbia, a Sodexo emprega 14 mil trabalhadores, dos quais apenas 1% é sindicalizado. O Sinaltrainal, sindicato nacional dos trabalhadores do sistema agroalimentício, ingressou na Justiça, exigindo que o governo garanta o cumprimento das leis trabalhistas e obrigue a corporação a negociar. A Colômbia, porém, é um dos países mais atrasados em termos de democracia nas relações de trabalho. São conhecidas as práticas de intimidação, agressão e até mortes e desaparecimentos de ativistas de movimentos sociais (a edição 30 da Revista do Brasil, www.redebrasilatual.com.br/revistas/30, traz reportagem sobre o tema, “A outra guerra da Colômbia”). O cenário conta com a conivência de órgãos do governo e do Judiciário. O processo contra a Sodexo, apesar das evidências, arrasta-se e aguarda decisão em última instância no Tribunal Superior. Foi também apresentada denúncia à Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra o Estado colombiano por omissão em fiscalizar. Edgar Paez, diretor de Relações Internacionais do Sinaltrainal, diz que a empresa exige testes de gravidez antes de contratar trabalhadoras, demite mulheres grávidas e reprime quem se aproxima do sindicato: “Há alguns meses demitiram 16 que haviam se associado”. A representante norte-americana Autumn Weintraub, diretora da Seiu, afirma que os abusos não são casos isolados, mas política da companhia. Nos Estados Unidos, existem ações em andamento e julgadas contra a multinacional. A Procuradoria-Geral do Estado de Nova York condenou, no ano passado, a Sodexo a ressarcir o Estado em US$ 20 milhões, depois de comprovadas irregularidades em faturas de serviços prestados a 21 escolas. Os documentos omitiam valores REVISTA DO BRASIL junho 2011
15
Karin ZEITVOGEL/afp
trabalho
“Limpem a sodexo” Protesto em frente à Sodexo nos Estados Unidos: empresa não é justa
de abatimentos obtidos em negociações com fornecedores de alimentos. Em março, o subprocurador John Carroll, em discurso em Washington para a Associação de Nutrição Escolar americana, mencionou que esse tipo de prática tem influência na qualidade dos alimentos distribuídos nas instituições, uma vez que a companhia pode utilizar produtos mais baratos, e não necessariamente de qualidade. Carroll demonstrou preocupação com o fato de muitas crianças de seu país receberem apenas uma refeição por dia – justamente a providenciada pelas escolas, fornecidas por empresas como a Sodexo. Também declarou que a companhia foi solícita durante toda a investigação, e, após as punições, prestou esclarecimentos a muitos de seus clientes. “É justo dizer que outros membros dessa indústria têm cooperado com a investigação, mas antecipo que anunciaremos novas penalidades nos meses que virão.” Para os sindicalistas, trata-se, no caso americano, de algo parecido com a tática do “se-colar-colou”. A empresa, uma vez questionada, repara o eventual deslize. Se o deslize não for identificado, porém, segue facilitando os meios de ampliar os lucros. E não é tão difícil “colar”. Relatos como esse já mobilizaram pais de alunos e comunidades locais. A sin16
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
dicalista Autumn Weintraub lembra, porém, que as manifestações contra as atitudes empresariais da Sodexo não são tarefa tranquila e já renderam prisões de ativistas também na dita maior democracia do mundo. Em abril do ano passado, 12 pessoas foram detidas, entre elas o ator Danny Glover (leia entrevista à página 20), durante protesto na sede da empresa no estado
Empresa contesta Em nota encaminhada à Rede Brasil Atual, no final de abril, após reportagem sobre o encontro internacional de sindicalistas em São Paulo – na sede do Sindicato dos Bancários –, a Sodexo negou praticar abusos e afirmou que atua com seriedade e transparência na relação com os funcionários. “A Sodexo esclarece, também, que permanece firme com o propósito de assegurar aos seus colaboradores o direito de afiliação sindical. Infelizmente isso parece contrariar interesses de organizações como um dos sindicatos trabalhistas dos Estados Unidos (Seiu, Service Employees International Union), tentando indispor a Sodexo com a opinião pública, por meio de práticas condenáveis”, rebateu.
de Maryland. Recentemente, em abril, sete estudantes foram presos na Universidade de Emory, em Atlanta, estado da Geórgia, em ato pelo fim dos contratos com a Sodexo. Em Nova Orleans, Louisiana, foram outros 21 alunos da Universidade de Tulane, pela mesma causa. Idem para 25 pessoas da Universidade de Washington, depois de ocupar a reitoria. A ocupação ocorreu após sete meses de conversas com representantes da instituição. A gota d’água foi a demissão de uma funcionária da Sodexo na República Dominicana, por “suspeita” de tentar se associar a seu sindicato. De acordo com a organização dos estudantes, há mobilizações com o mesmo teorpor todo o país. A Comissão Nacional de Relações de Trabalho (NLRB) avaliou, no começo de maio, que há provas o bastante para que a Sodexo seja processada por infringir leis trabalhistas dos Estados Unidos e de cooptar autoridades a colaborar com seus métodos. A conduta da multinacional francesa desencadeou uma articulação sindical internacional. No Brasil, o presidente da Confederação Nacional de Trabalhadores no Comércio e Serviços (Contracs-CUT), Romildo Miranda Garcez, considera que essa ação global pode ajudar a mapear as irregularidades da Sodexo e desencadear um movimento mais forte no mundo. “Essa companhia distribui comida em mau estado e contraria a legislação para enriquecer mais.” A entidade brasileira encaminhou denúncias ao Ministério do Trabalho, uma vez que a Sodexo é também fornecedora de serviços ao Fundo de Amparo ao Trabalhador. Entre as denúncias levadas ao ministro Carlos Lupi, está um relatório produzido pelo Fórum TransAfrica, presidido pelo ator Danny Glover. No documento há acusações de que os funcionários nativos da Guiné têm de se alimentar em refeitório separado dos europeus. Lá, como na República Dominicana e no Marrocos, são notificados problemas de saúde e segurança e de perseguições contra quem se queixa. Na Colômbia, na Mina La Divisa, em La Jagua, trabalhadores acreditam que a Sodexo deliberadamente serviu comida estragada, resultando em mais de 60 casos de intoxicação.
Atitude
Por Xandra Stefanel e Mauricio Morais
Churrasco diferenciado
E
spetinho, churrasqueiras, farofa, queijo coalho, batucada, isopores e palavras de ordem. O “Churrascão da gente diferenciada”, convocado por usuários da rede social Facebook, começou à tarde em frente ao Shopping Pátio Higienópolis, no dia 14 de maio, e seguiu noite adentro pela Avenida Angélica. O evento foi um pacífico e bem-humorado protesto – mais que por uma política de transporte público séria – contra o preconceito. O Metrô (vinculado à Secretaria dos Transportes Metropolitanos de São Paulo) havia desistido de instalar no bairro uma estação da futura Linha 6-Laranja, prevista para ligar a Rua da Consolação, na região central, ao bairro da Freguesia do Ó, na zona norte. A desistência teria sido “estimulada” pelo movimento de um grupo de moradores e comerciantes do bairro, de classe média alta.
A onda que arregimentou milhares de mensagens na rede social e culminou no protesto teve início após a lembrança, por ocasião da decisão do Metrô, da declaração da psicóloga Guiomar Ferreira, moradora do bairro, dada a um jornal em 2010: “Eu não uso metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada”. Com o cruzamento da Rua Sergipe com a Angélica cheio de gente e quatro churrasqueiras espalhadas – a pleno vapor –, os manifestantes esbanjaram ironias contra o preconceito por meio de músicas, faixas e gritos de “guerra”. No final da tarde instalaram, de um poste a outro no meio da avenida, um varal cheio de roupas. A resposta da “gente diferenciada”, além de engraçada, parece ter surtido efeito. Dois dias depois o governo anunciou: haverá estação em Higienópolis, apesar de, na época, não ter informado o local exato. REVISTA DO BRASIL junho 2011
17
saúde
Tortura em evidência Livro derruba argumentação de que transtornos emocionais em ambiente profissional são sinais de “fraqueza” do indivíduo e ratifica movimentos contra as humilhações do assédio moral Por Letícia Cruz e Virgínia Toledo
T
ema tabu na sociedade e geralmente associado a problemas pessoais, o suicídio foi alvo de estudos que delinearam outra causa importante, decorrente de condições do ambiente de trabalho. O livro Do Assédio Moral à Morte de Si – Significados Sociais do Suicídio no Trabalho resultou da análise de situações relacionadas às agruras do trabalhador que culminaram nesse ato extremo ou em tentativas. Os organizadores são Margarida Barreto, médica do Trabalho e pesquisadora do Núcleo de Estudos Psicossociais de Exclusão e Inclusão Social (Nexin PUC-SP), Lourival Batista Pereira, coordenador da Secretaria de Saúde e Meio Ambiente do Sindicato dos Químicos de São Paulo, e o psicólogo Nilson Berenchtein Netto, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. A obra, que reúne ainda outros 11 autores de diferentes nacionalidades e formações, originalmente trataria do suicídio em sua essência, mas passou a tomar outra forma depois que o sindicato preparou uma cartilha sobre o tema. Os autores identificaram ali a necessidade de ampliar a discussão. O suicídio ocasionado por relações de trabalho, para Berenchtein, é a quebra do silêncio imposto pelo setor patronal. “Percebemos que era importante incluir questões ligadas ao assédio moral e à violência em um âmbito geral e, mais especificamente, no trabalho”, diz.
18
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Um dos capítulos faz um resgate histórico da questão. A violência é analisada nas relações sociais em geral, associada à hierárquica entre patrões e subordinados. “Não dá para pensar em um capitalismo sem violência, ela é inerente a esse modo de produção. A exploração do homem pelo homem não está apartada dela”, ressalta Berenchtein. O pesquisador observa que a exposição forçada da pessoa a um ambiente nocivo potencializa pensamentos suicidas: “O cara vai para casa exausto fisicamente e também entristecido, e muitas vezes com raiva e impotência frente à violência que vem sofrendo”. Para Margarida Barreto, as formas como as relações de trabalho se organizaram nos últimos anos não eliminaram um caráter opressor. E, sobrecarregadas, as pessoas chegam a perder sensações positivas fundamentais à vida delas, o que pode levar a atos suicidas classificados como “assassinato corporativo”, pois não foi cometido individualmente, e sim resultado da condição indigna vivida dentro da empresa. “Normalmente, os casos parecem relacionados a questões de família, a grandes perdas e mesmo à depressão. Mas qual é a causa dessa depressão no ambiente de trabalho? Quando comparamos nas estatísticas da Previdência Social o número de doenças com status de acidente do trabalho ao número de mortes, identificamos uma situação grave”, alerta.
Abrir o debate
eduardo oliveira
já pensaram em dar fim à vida motivados por condições a A importância da publicação é manter o tema em alta nas que são submetidos, é um grande alerta sobre os riscos do discussões sobre saúde e condições de trabalho e nas negocia- pensamento suicida. ções coletivas entre patrões e trabalhadores. “Para nós foi muiA luta por um ambiente de trabalho mais sadio deve partir to impactante constatar que o trabalho nos últimos anos este- do engajamento sindical, segundo Berenchtein. “Na minha opija sendo tão duro, exigindo tanto, e que as pessoas estejam tão nião, os sindicatos são um dos principais agentes nessa quessobrecarregadas a ponto de, além dar o sangue e o suor, dar a tão da prevenção do suicídio. O patrão tem de fazer o que lhe vida em determinados casos”, afirma Margarida, para quem um cabe, a responsabilidade dele dentro da empresa. O que estou dos passos principais para a compreensão do trabalhador e pre- querendo dizer é que os trabalhadores não podem largar sua venção desses casos é o diálogo. vida na mão dos patrões. A atuação sindical é essencial para a “Falta um pouco de amor, de respeito e de fraternidade”, discussão da saúde no trabalho.” diz a médica. E não apenas no ambiente propriamente de Lourival Batista, da Secretaria de Saúde do Sindicato dos Quíprodução laboral, mas até dentro dos espaços sindicais, das micos, considera que, apesar da incidência de tentativas de suiONGs, entre outros relacionados ao mundo do trabalho. cídio e mesmo dessa tendência apontada na pesquisa, igualmen“Falta também o indivíduo te alarmante, os empregadores ver o outro como um igual ainda escondem o problema em direitos.” da sociedade. “A decisão de Para Berenchtein, as empublicar o livro vem da expecpresas ainda não adotam potativa de que trabalhadores, e líticas de prevenção eficienespecialistas em RH, cometes, mesmo com os diversos cem a conhecer mais a fundo o alertas emitidos e estatístiproblema, a questionar e a reicas crescentes de casos de vindicar melhores condições.” suicídio em local de trabaLourival espera que as dislho ou ocasionados por ele. cussões ocupem o chão de “Algumas companhias já fábrica, as reuniões de cenos têm, e a própria Orgatro acadêmico e, também, o nização Mundial de Saú- Autores Margarida Barreto faz exposição no Sindicato dos Químicos meio sindical. “Hoje é notóde (OMS) desenvolveu uma rio que esse modelo de decartilha sobre o assunto. O senvolvimento, em que as problema é que a cartilha é para orientar os patrões a impedir empresas priorizam o ritmo de produção em detrimento de o ato suicida no local de trabalho. A gente procura discutir e seu impacto para o trabalhador, está ultrapassado. É preciso criar formas de o trabalhador se sentir apoiado e seguro em modificá-lo. E o trabalho decente passa por aí.” seu emprego”, ressalta. A abordagem do tema pelo movimento sindical já surte alDe acordo com pesquisa realizada pelos autores com 400 guns efeitos no setor financeiro. A necessidade de identificar os associados (316 mulheres e 84 homens) do Sindicato dos impactos do assédio moral no trabalho vem ocupando muito Trabalhadores Químicos e Plásticos de São Paulo em 2010, espaço nas negociações da convenção coletiva nacional da cacerca de 71% dos entrevistados declararam já não sentir pra- tegoria nos últimos anos. No ano passado, foi finalmente estazer no exercício do trabalho como antes e 27% disseram ter belecido um programa de combate ao assédio, ao qual aderiram ideias suicidas relacionadas ao trabalho. Ou seja, a constata- nove dos maiores bancos do país, por meio de acordo assinação do estudo, de que quase três em cada dez trabalhadores do em fevereiro. Pelo acordo, profissionais que se sentirem vítimas dessa prática em seu local de trabalho devem comunicar, sob garantia de sigilo, ao sindicato dos bancários de sua base. O de São Paulo, por exemplo, já recebeu cerca de 160 denúncias. Todas são encaminhadas aos bancos, que têm até 60 dias para apurar e Sente prazer no trabalho hoje como quando começou? responder que medidas adotaram. O programa prevê ainda di Mulheres Homens Total vulgação – a cada seis meses – de números e informações que, SIM 89 (28%) 27 (32%) 29% numa etapa seguinte, subsidiarão a formulação de políticas mais NÃO 227 (72%) 57 (68%) 71% objetivas de combate ao assédio moral.
Números alarmantes
Já pensou em suicídio por razões ligadas ao trabalho? SIM NÃO
Mulheres Homens 76 (24%) 31 (37%) 240 (76%) 53 (73%)
Total 27% 73%
Fonte: Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo. A pesquisa ouviu 316 mulheres e 84 homens, totalizando 400 pessoas
Para saber mais
Do Assédio Moral à Morte de Si – Significados Sociais do Suicídio no Trabalho (304 páginas, R$ 10). Organizadores: Margarida Barreto, Nilson Berenchtein Netto e Lourival Batista Pereira. Edição: Sindicato dos Químicos de São Paulo. Pedidos: (11) 3209-3811, ramal 216 REVISTA DO BRASIL junho 2011
19
Pela sua liderança regional e mundial, o Brasil pode exercer uma influência extraordinária no futuro dos afrodescendentes
20
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Jailton Garcia
capa
Homem em movimento Conhecido pelos filmes que protagonizou especialmente dos anos 1980 para cá, Danny Glover é ainda mais atuante como cidadão engajado em melhorar o mundo Por Anselmo Massad e Paulo Donizetti de Souza
A
s lembranças de Danny Glover desde os primeiros anos de vida estão associadas ao ativismo pela igualdade de direitos e oportunidades e por justiça social. Primeiro em função do engajamento de seus pais em movimentos de trabalhadores quando os Estados Unidos ainda sentiam o sabor amargo da Grande Depressão e já se preparavam para ingressar na Segunda Guerra. O casal de funcionários públicos e testemunha de um momento em que a população negra estava ampliando sua participação na força de trabalho, e também nos sindicatos, logo veria o filho, nascido em São Francisco, Califórnia, embrenhar-se por movimentos sociais e raciais mundo afora, nos quais está metido até hoje. Glover preside o Fórum TransAfrica – maior e mais antiga ONG dedicada aos direitos da comunidade afrodescendente. No cinema, sua versatilidade pode ser constatada em filmes de ação, violentos ou cômicos, como a série Máquina Mortífera, Predador 2, Jogos Mortais e o western Silverado. Ou em dramas como A Cor Púrpura, Um Lugar no Coração e Testemunha. Fora desse universo blockbuster, o ator criou há sete anos a produtora independente Louverture – nome alusivo ao líder da revolução haitiana de 1808, Toussaint Louverture, que tem também o sentido de “abertura” de olhares para a diversidade do mundo. Se seu olhar de cineasta é totalmente “globalizado”, o de ativista não é diferente.
Atualmente, apoia uma campanha internacional de trabalhadores da multinacional Sodexo (leia mais na página 14) . E foi como militante do movimento negro internacional que veio ao Brasil pela primeira vez, em 2003, onde conheceu a educadora Eliane Cavallero, com quem é casado. Sua visita mais recente ao país foi durante as comemorações do 1º de Maio da CUT, que este ano destacou os laços históricos entre Brasil e África. Onde quer que fosse visto, se apresentava com o boné da central na cabeça. Foi assim que Danny Glover, que completa 65 anos em julho, recebeu por quase duas horas uma equipe da Rede Brasil Atual – rádio, site e revista – e da TVT no último dia 30 de abril. Leia a seguir os principais trechos da entrevista. Por que o Brasil o atrai?
Muito do meu trabalho no Fórum TransAfrica está ligado aos direitos dos trabalhadores, principalmente aos direitos e à situação dos 150 milhões de afrodescendentes no hemisfério, dos quais cerca de 80 milhões vivem no Brasil. Pela sua liderança regional e mundial, o Brasil pode exercer uma influência extraordinária no futuro dos afrodescendentes. Estou muito contente de ver o ex-presidente Lula expor seu desejo de trabalhar com países da África, estabelecendo relações voltadas ao desenvolvimento. Esse seu engajamento em questões sociais é anterior a sua formação como ator? De onde vem?
Eu acho que nasci assim. Nasci em um período de mudanças nos Estados Unidos. Meus pais eram de crianças a jovens durante a Grande Depressão (anos 1930), a recessão mundial e a Segunda Guerra. Logo depois que se casaram, foram trabalhar como funREVISTA DO BRASIL junho 2011
21
Danny Glover contracena com Julianne Moore, Mark Ruffalo e Alice Braga em Ensaio sobre a Cegueira
Cabe a nós a responsa bilidade de mudar paradigmas no modo de contar histórias. Ensaio sobre a Cegueira é um exemplo disso
cionários públicos, categoria que então se transformava ao incluir mais e mais afro-americanos. Assim, meus pais foram se politizando. Minha infância em São Francisco colheu benefícios disso. Como estudante de Economia, eu era ativo na faculdade e na minha comunidade. Fui parte da liderança dos estudantes negros na Universidade de São Francisco. Só depois se tornaria ator?
Depois de formado, trabalhei por seis anos na prefeitura de São Francisco, no escritório de desenvolvimento comunitário. Naquele período surgiam movimentos democráticos populares, de modo que boa parte das minhas ideias foi resultado dessa relação. Só então comecei a participar de cursos e atividades que me levariam a ser ator. E nada disso mudou minha relação com o mundo do trabalho, que segue parte da minha vida. Eu me envolvi nos movimentos anti-Apartheid e pela libertação africana, no início dos anos 1970. Meu primeiro trabalho em um palco foi uma peça de um grande dramaturgo sul-africano, Athol Fugard. O ativismo fechou-lhe alguma porta na indústria do cinema?
22
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
divulgação
capa
Posso dizer que não tive tempo para me preocupar com isso. Nos anos 1950, nos Estados Unidos, você não conseguiria trabalhar se dissesse que era comunista ou se falhasse ao testemunhar na Comissão de Atividades Anti-Americanas. Teria de sair do país definitivamente ou não conseguiria nada, nem como roteirista, nem como ator, nem como diretor. Mas, hoje, sei lá se atrapalhou. Sempre digo que sou, nesta ordem: pai, no que provavelmente fiz meu melhor trabalho; depois, cidadão; e só então artista. O maior nível de engajamento para o ser humano deve ser a cidadania. Em 2010, você participou de uma campanha para pedir que os atores convidados à cerimônia do Oscar não vestissem roupas da Hugo Boss. Como foi isso?
Era uma ironia. A marca estava fechando fábricas no Brooklyn, no estado de Ohio, perto de Cleveland, onde trabalhavam 300 pessoas, a maioria mulheres. Ao mesmo tempo, expandia sua presença no mercadodos Estados Unidos. A maior parte dessas mulheres era chefe de família e até da comunidade, então o impacto da perda do emprego não era só para as 300. Enviei carta à Academia e a todos os que
Seria possível pensar hoje em algo como a United Artists, a produtora criada nos anos 1920 por figuras como Charles Chaplin e D.W. Griffith, que reunia talentos independentes da indústria americana?
Primeiro, vamos falar sobre essa indústria. Ela tenta institucionalizar a imagem do mundo. No caso dos Estados Unidos, isso tem consequências globais: é a ferramenta usada pelo império para estabilizar seu poder. Quando esse império vive uma angústia ou crise, pode haver mais lançamentos desse ou daquele gênero com esse objetivo. Mas é possível encontrar formas nas quais um grupo pode se unir para estabelecer outros critérios e modos de contar uma história. O problema é o quanto foi institucionalizado que a indústria deve separar-se da vida real, funcionar como válvula de escape ou mecanismo de fantasia, longe do que está ligado à cultura e à vida das pessoas. Cultura é simplesmente a manifestação da experiência das pessoas, a história, a visão, quem são, a que aspiram. Sua experiência como produtor baseia-se nessa ideia?
Há sete anos criei, com minha extraordinária e maravilhosa parceira de produção, Joslyn Barnes, a L’Ouverture Films. Partimos da premissa de criar conteúdo que reflita histórias das pessoas pelo mundo. Produzimos um filme sobre o furacão em Nova Orleans, As Águas de Katrina (2008, de Carl Deale Tia Lessin), que foi indicado ao Oscar. Há um documentário sobre a música do movimento pelos direitos civis, Soundtrack for a Revolution (2009, de Bill Guttentag e Dan Sturman). Também produzimos Tio Boonmee, Que Consegue Lembrar das Suas Vidas Passadas, do tailandês Apichatpong Weerasethakul, Palma de Ouro em Cannes em 2010. E ainda Bamako, do extraordinário diretor Abderrahmane Sissako, do Mali, no oeste africano, sobre a crise da dívida. Especificamente em Mali?
É a história sobre a crise de todos os países do hemisfério sul. Há ainda dois filmes palestinos, Sal deste Mar (2008, de Annemarie Jacir) e O Que Resta do Tempo (2009, de Elia Suleiman), além de Black Power Mixed Tape, sobre o movimento black po-
wer (que abriu no Brasil o festival É Tudo Verdade, neste ano). Estamos para desenvolver um projeto com a escritora canadense Naomi Klein, autora de Doutrina de Choque e Sem Logo, sobre a economia argentina e a crise climática. Nenhuma outra empresa está fazendo o tipo de trabalho que fazemos. Tenho tentado fazer filmes por mais de 30 anos sobre Toussaint Louverture, o líder da revolução no Haiti, que dá nome a nossa empresa – aliás, l’ouverture em francês significa “a abertura”, que é o que tentamos fazer. Por que ninguém mais faz esse tipo de cinema?
A indústria tende a dividir as pessoas, já que é capaz de pagar ou não salários enormes, permitir ou não que trabalhem. Por exemplo, cada grupo, cada ator que atinge um certo status tem um exército de assessores, advogados e tudo o mais para cuidar de sua imagem. Além disso, fazer um filme é caro. A ideia do que aconteceu na United Artists, com Chaplin, Mary Pickford (uma das grandes atrizes do período) e Douglas Fairbanks (comediante e ator), unindo-se para formar uma empresa, foi ótima naquele momento; hoje só seria viável se houvesse muita grana (risos). Mas a própria indústria hoje não abre mais espaços?
Acredito que o império dá espaço para a imaginação até certo ponto... É como um bebê começando a dar os primeiros passos. Ele engatinha e começa a andar. Quando está prestes a sair correndo, o império e o poder tratam de tentar “educar” esse bebê, para não perder o controle, o poder e a influência sobre ele. Pegue um filme que ainda repercute hoje. Vi em 1965, e muitos viram pelo mundo, A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo. O filme ainda é discutido, mesmo sendo de uma história feita 46 anos atrás. E sabe o que fez o “todo liberal” governo francês? Baniu-o em Paris por uns 20 anos. É assim que o poder faz e usa a indústria do cinema. Eles tentam controlar nossa imaginação, controlar em que as pessoas devem ou não acreditar ou o que devem estar ou não dispostas a fazer.
Jailton Garcia
participariam da cerimônia do Oscar, pedindo que não usassem Hugo Boss, já que a empresa oferecia roupas, ternos e smokings para o evento. Aquelas mulheres que achavam não ter voz nem oportunidades para mudar a situação sentiram-se fortalecidas para reivindicar o não fechamento da fábrica. Aquelas trabalhadoras desafiaram a empresa a criar novas possibilidades.
Sempre digo que sou, nesta ordem: pai, no que provavel mente fiz meu melhor trabalho; depois, cidadão; e só então artista. O maior nível de engajamento para o ser humano deve ser a cidadania
O documentário Trabalho Interno ganhou Oscar tecendo veneno sobre o colapso financeiro que levou à crise.
É um filme decente, não chega a desvendar a complexidade do que sucedeu antes da crise, porque tudo o que ele diz é que havia algumas maçãs podres no sistema, não que “o” sistema é o problema. Mas, mesmo assim, havia empresas desafiando o Oscar e a Academia a não mostrar o filme e a não lhe dar apoio. Antes, tudo o que era aceito como razão para a crise era o que tinha sido noticiado pela mídia.
REVISTA DO BRASIL junho 2011
23
capa
Jailton Garcia
Você apoia uma campanha internacional sobre a Sodexo, envolvendo sindicatos de vários países. Está otimista quanto à capacidade de organização de trabalhadores globalizar-se como as economias?
Quem define o que vão ser nossas relações e possibilidades culturais quer saber apenas do dinheiro. Não quero saber de Transformers, que meu neto adora (risos), ou Batman, que ele ama também
Estou otimista sobre a dinâmica permanente disso. Essa colaboração é estratégica. A tática que usamos agora é achar um modo de fazer com que o poder que reside em nós como trabalhadores possa atender a demandas ou mudanças que acontecem em todo o sistema econômico. No filme Ensaio sobre a Cegueira, brasileiros, americanos e mexicanos trabalham numa história do autor português José Saramago. É uma forma globalizada de contar uma boa história?
O autor era comunista também (risos). E um dos meus escritores favoritos. Seria brilhante se isso ocorresse mais. E cabe a nós a responsabilidade de mudar paradigmas no modo de contar histórias. Ensaio sobre a Cegueira é um exemplo disso. São relações com as quais eu sonho quando penso em fazer filmes, que mostram a interdependência entre nós no mundo. Mesmo quando eu assistia a filmes estrangeiros antes de me tornar ator, via-os não só em relação à identidade nacional associada – se era italiano, francês, brasileiro, chinês ou indiano –, mas às possibilidades de fundir as histórias. Cresci em São Francisco, na fusão de várias culturas e etnias. Que ótima forma de sonhar com a produção de cinema! Mas para quem define o que vão ser nossas relações e possibilidades culturais isso é irrelevante. Querem saber apenas do dinheiro. Não quero saber de Transformers, que meu neto adora (risos), ou Batman, que ele ama também. A indústria americana faz muitos filmes de ação e violência porque o público gosta ou o público gosta de ação e violência porque a indústria os faz?
Acredito que as pessoas são condicionadas de muitas formas. Como disse antes, o que acontece é que o império o vê engatinhando um pouco e, quando percebe que você se levanta, até o deixa andar um pouco, mas se você começar a correr ele tenta desviá-lo do seu caminho natural.
O Roger (policial vivido por Glover na série Máquina Mortífera) foi um pouco desviado pelo Martin Riggs (seu parceiro, personagem de Mel Gibson)?
É um personagem interessante. Se você olhar Máquina Mortífera só a partir do gênero, é um filme policial de ação, tem todos os elementos para isso. Mas há um tipo de condução da história, percebida nas 24
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
entrelinhas da narrativa, que resulta da interação entre Mel, o diretor Richard Donner e eu. O primeiro filme falava sobre proliferação das drogas. O segundo, sobre lavagem de dinheiro e o movimento anti-Apartheid. O terceiro, tráfico de armas. O quarto, migração. E tudo dentro do mesmo gênero de ação. O segundo filme, ao incluir a África do Sul, associa lavagem de dinheiro e regime racista. Pudemos mostrar coisas, porque a opinião internacional estava se posicionando. Em todo lugar falava-se em “Libertem Mandela” e “Fim do Apartheid”. E essa estrutura leva à introdução de ideias diferentes, como ter um personagem negro como o Roger Murtaugh, com família estável, funcionário público, que combate o crime etc. A isso, adicionam-se outros elementos. Ficamos orgulhosos do fato de Máquina Mortífera 2 ter sido proibido na África do Sul ao ser lançado em 1989, por suas críticas ao Apartheid. Como foi atuar no papel do jovem Nelson Mandela? Nunca se interessou em interpretá-lo depois da liberdade?
A parte maravilhosa para mim era atuar no papel quando não havia imagens de quem era Mandela. Ele estava preso desde 1963, ninguém o conhecia, nem se sabia como ele era fisicamente, como soariam seus discursos. Para mim, só o que havia eram suas palavras escritas. A primeira coisa a fazer foi acreditar que aquelas palavras seriam as minhas. Há um grande momento de O Carteiro e o Poeta (1985, de Michael Radford), em que Pablo Neruda era um exilado na Itália – adoro esse filme –, e o carteiro diz a Neruda: “Essas palavras não pertencem a você, você pode tê-las escrito, mas agora elas pertencem a nós e podemos usá-las no amor, na vida”. As palavras pertencem a todos, não apenas a Mandela. Agora, tiram até sarro da forma como ele fala e anda. Mas em 1986 ninguém o conhecia. Mesmo reconhecendo que o filme tinha suas limitações, vimos seu surgimento. Já pensou em levar para o cinema temas como a situação da base de Guantánamo ou a história dos cinco cubanos presos nos Estados Unidos na condição de terroristas?
Não sei. Mas certa vez me encontrei com um desses presos, Geraldo Hernandez, cercado por traficantes de drogas e assassinos, e pensei: que ser humano incrível. Sabe que pode nunca mais sair da prisão, a menos que fizesse algum tipo de acordo de cooperação com o governo americano, e não o fez. É um cara preso por suas convicções, por crer em ideais, e isso é poderoso. Deixe-me contar por que fico tão orgulhoso (desses combatentes cubanos e suas convicções). Quando Fidel Castro compareceu à posse de Nelson Mandela, em 1994, foi cumprimen-
Afp
Mel Gibson e Danny Glover interpretam os policiais Martin Riggs e Roger Murtaugh em cena de Máquina Mortífera 2
tar o presidente sul-africano recém-conduzido ao cargo. Mandela empurrou sua mão e o abraçou. E cochichou em seu ouvido: “Você fez isso acontecer”. Por que ele disse isso?
Uma amiga egípcia, Jihan El Tahri, fez um documentário chamado Cuba, uma Odisseia Africana, que trata do envolvimento da ilha na África desde 1961, no Congo, depois do assassinato de Patrice Lumumba (líder da luta pela independência, primeiro-ministro eleito, depois deposto por golpe de Estado e morto). E há um momento da Guerra Civil em Angola (em maio de 1988) em que sul-africanos e cubanos abrem negociação depois de as forças militares cubanas terem barrado uma investida dos sul-africanos na batalha de Cuito Cuanavale. A discussão vai e volta, mas o ponto central para fazer a negociação avançar, a ponto de os dois exércitos estrangeiros se retirarem de Angola, foram a independência da Namíbia, subordinada aos sul-africanos desde a Primeira Guerra, e a libertação de Mandela, concretizada em 1990. Você não vai ouvir falar sobre isso. Sabemos das negociações, mas não em que termos se deu o acordo. Bem, essas eram as demandas das Forças Armadas cubanas.
Qual sua opinião, como afro-americano e ativista, sobre o presidente Barack Obama?
Tento ser bem cuidadoso sobre isso, mas não respondo olhando as pesquisas de opinião para saber o que falar. Bem, há um episódio interessante que envolve o presidente Franklin Roosevelt quando os Estados Unidos estavam para entrar na Segunda Guerra. Era 1941, Eleanor Roosevelt – uma das maiores primeiras-damas da história – convidou um grande líder trabalhista negro, Asa Philip Randolph, para uma reunião na Casa Branca com o presidente. Randolph está na audiência e fala ao presidente sobre todas as formas pelas quais se poderia fazer um país melhor, incluindo garantir direitos e oportunidades iguais a todos os trabalhadores. Ele fala sobre as mais horríveis coisas que aconteciam com os negros. O presidente, com todo o seu poder, vira-se para Randolph e diz: “Você está certo. Acredito que essas suas ideias são ótimas, mas você precisa achar um jeito de me permitir fazer isso”. Entende o que quero dizer? Precisamos encontrar formas de permitir que Obama faça. O poder só cede quando o forçamos a isso.
Ficamos orgulhosos do fato de Máquina Mortífera 2 ter sido proibido na África do Sul ao ser lançado em 1989, por suas críticas ao Apartheid
Colaboraram Lúcia Rodrigues, Oswaldo Luiz Colibri Vitta e Thalita Galli REVISTA DO BRASIL junho 2011
25
violência
Ecos de Realengo Após assassinato de crianças em uma escola no Rio, governo espera mais adesões em nova campanha de desarmamento Por Maurício Thuswohl
E
xatamente um mês após o assassinato de 12 crianças por um atirador em uma escola no bairro carioca de Realengo, o poder público deu início a uma nova tentativa de desarmar a população. Lançada no começo de maio pelo Ministério da Justiça, um mês antes do previsto, a terceira Campanha Nacional do Desarmamento receberá até 31 de dezembro, em postos de coleta espalhados por todo o país, doações de armas em troca de indenizações que variam entre R$ 100 e R$ 300. A atual campanha conta com alguns trunfos para conquistar maior adesão popular e ser mais bem-sucedida do que as duas anteriores, realizadas em 2004-2005 e 2008-2009. A principal diferença diz respeito ao anonimato de quem vai entregar as armas nos postos de recebimento. Antes, apesar de estar teoricamente garantida a preservação da identidade do doador, era exigido o CPF da pessoa para que pudesse receber a indenização, o que era uma contradição. Desta vez existe somente um recibo, com um selo de segurança bancária, no qual consta apenas a identificação da arma. No documento não aparece o nome da pessoa, em respeito ao anonimato do doador. Outro item que deve aumentar o sucesso desta terceira edição é a maior facilidade de acesso às indenizações. O tempo de demora para pagá-las era de pelo menos três meses. Agora, com o recibo, em até 72 horas o doador poderá sacar o valor 26
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Tragédia Parentes e amigos choram os mortos junto ao muro da escola municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio
em qualquer agência do Banco do Brasil: “O governo está ousando ao garantir o anonimato e temos orçamento de R$ 10 milhões para indenizar as pessoas que entregarem suas armas. Espero que até o fim do ano falte dinheiro”, diz o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Além da garantia de sigilo e da rapidez do pagamento, espera-se que a atual campanha seja impulsionada por uma maior mobilização das entidades da sociedade civil. Coordenador do programa de Controle de Armas da ONG Viva Rio, Antonio Rangel Bandeira já vê sinais claros nessa direção: “Esperamos participação maciça da sociedade civil. Não serão mais somente algumas igrejas ou ONGs. A maçonaria O Grande Oriente do Brasil, por exemplo, pôs à disposição suas 2.000 lojas no país. O
presidente da OAB mobiliza as 4.000 seções da entidade em todo o Brasil. As igrejas estão se movimentando fortemente, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic)”. A entrada em cena de grandes redes, segundo Rangel, é muito importante: “Tem gente que não quer entregar a arma à polícia. Isso é muito comum, principalmente nos lugares onde a polícia não goza de boa reputação, ou seja, na maioria dos estados brasileiros. Essa é a grande razão para que a sociedade civil possa receber essas armas, sobretudo em um território neutro como são as igrejas, as ONGs, a maçonaria. São todas instituições filantrópicas, que trabalham para o bem comum, e por isso têm muita legitimidade
Renato araujo/abr Daniel Marenco/Folhapress Nacho Doce/REUTERS
Munição do bem O ministro José Eduardo Cardozo: “O governo está ousando ao garantir o anonimato e temos orçamento de R$ 10 milhões”
e idoneidade”, avalia. Outro fator apontado como trunfo para aumentar a adesão popular é a garantia de que as armas serão inutilizadas no ato da entrega. Nas vezes anteriores, isso ocorria apenas nas ONGs e igrejas que abriram postos de recebimento. Na frente do doador, a arma era colocada em uma base metálica e, com uma marreta, inutilizada. Esse processo agora será adotado por todos os postos de recolhimento, inclusive na polícia. “Isso é essencial por duas razões. Primeiro porque evita o desvio de armas. Em 2004, foram constatados casos em algumas delegacias do Brasil e também por parte de elementos corruptos do Exército em Brasília. As armas, depois de recebidas, eram entregues ao Exército para ser destruídas. Com esse novo método, viram ferro-velho na hora. A segunda razão é dar segurança aos postos de recebimento civis. Foi do medo dos padres e
Arma não é brinquedo Em abril, a PM paulista trocou armas de brinquedo por gibis em escolas da rede pública REVISTA DO BRASIL junho 2011
27
violência pastores que guardavam armas perto de áreas de risco que nasceu nossa ideia de marretá-las”, conta Rangel. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) especializado em segurança pública, o sociólogo Ignacio Cano afirma que a campanha tem de persistir nos argumentos tradicionais. “Primeiro, mostrar às pessoas que a ideia de que existem armas para se proteger e armas para combater crimes é ilusória, porque a transferência entre o circuito legal e ilegal é muito grande. Segundo, que são um fator de risco, e não de proteção. As pessoas que se armam para se proteger, os estudos demonstram, estão se expondo a um risco maior. Por fim, aproveitar a tragédia de Realengo para frisar que o livre acesso às armas é extremamente perigoso para a sociedade.” Segundo observa o Viva Rio, o massacre tem servido como incentivo para que as pessoas entreguem as armas: “No dia seguinte, antes mesmo de qualquer anúncio sobre campanha de desarmamento, nosso telefone não parava de tocar. O homem de bem sempre tende a ver a arma como um instrumento de defesa do seu lar, dos seus bens, da sua vida, mas um episódio como esse mostra que a arma também pode se voltar contra as pessoas de bem”, diz Rangel. Ele dá como exemplo o ocorrido em 1996, em Port Arthur (Austrália), quando um homem com várias armas automáticas matou 35 pessoas e feriu 18 em um bar. “Isso provocou uma comoção tão grande no país que os australianos proibiram a venda e fizeram a maior campanha de entrega voluntária de armas do mundo, recolhendo 700 mil, o que baixou os homicídios por arma de fogo em 43%.” Na primeira semana de coleta, o Viva Rio recebeu 350 armas de diversos tipos. Cerca de 70% são revólveres, seguidos por pistolas (14%) e armas longas de caça (10%). Os dados mais curiosos, entretanto, revelam que existe uma grande predisposição social para a campanha: “A maioria esmagadora dos doadores concluiu que ter arma era mais um risco do que uma proteção e 65% se disseram convencidos pela campanha. Apenas 6% afirmaram que estavam entregando a arma 28
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
MÁRCIO MACHADO/ae
Convencimento
erro estratégico Nas campanhas anteriores, o Estado armazenava as armas para posterior destruição em massa, o que possibilitava desvios e roubos
Informação
Rangel prega a efetiva aplicação do estatuto. “Achamos que o eleitorado votou de forma equivocada no referendo de 2005 porque estava mal-informado, mas perdemos e temos de respeitar isso porque somos democratas. Não se trata de mudar lei. Achamos que o problema é muito mais grave e mais simples, isto é, trata-se de cumprir a lei. A nossa ótima lei, que é o Estatuto do Desarmamento, continua quase toda no papel, foi aplicada em 10%”, lamenta.
Destruição no ato da entrega “Isso é essencial por duas razões: evita o desvio e dá segurança aos postos de recebimento civis”, diz Rangel, da Viva Rio
Marcia Farias/vivario
pela indenização. Catorze por cento revelaram que houve uma grande discussão em casa, geralmente com esposa e filhos, para o chefe de família se desfazer da arma”, afirma Rangel. A determinação da Subcomissão de Armas e Munição da Câmara, segundo seu presidente, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), é começar o trabalho pela “primeira e mais desafiadora etapa”: verificar o cumprimento do Estatuto do Desarmamento. “Vamos analisar item por item, para ver o que já está sendo cumprido e o que ainda não está. Depois, discutir de que maneira aperfeiçoar o estatuto. Por fim, analisaremos os projetos em tramitação no Congresso que digam respeito a posse, porte e propriedade de armas. São esses os três movimentos que vamos fazer na subcomissão e, se formos bem-sucedidos, vai melhorar muito esse problema no Brasil, mesmo sem proibir totalmente a comercialização de armas, como gostaríamos”, aposta.
O coordenador do Viva Rio cita a falta de colaboração entre as próprias forças de segurança. “A lei prevê o acesso da Polícia Federal ao banco de dados Sigma das Forças Armadas, que tem o registro das armas privadas de todos os militares e policiais brasileiros. São armas que se prestam muito a ser vendidas para terceiros e cair na criminalidade. Existem também as dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), artifício muito usado pelos bandidos para conseguir armas e munições, como o próprio Exército já apurou na Operação Planeta. Mas as Forças Armadas se recusam a cumprir a lei e não dão acesso a esse cadastro à PF, que não pode fazer o rastreamento.” Ele cita outros exemplos de não cumprimento da lei: “O estatuto também fala em controle irrestrito das lojas de armas,
mas ninguém faz isso. As autoridades não fiscalizam sequer o transporte delas, em que há muito desvio. As empresas de segurança privada também não são fiscalizadas e são sabidamente grandes fontes de desvio de armas de fogo para a bandidagem”. Todos concordam que, naquilo em que o Estatuto do Desarmamento foi de fato aplicado, as coisas melhoraram muito. É o caso das campanhas de entrega voluntária e da proibição de andar com arma na rua: “A combinação de somente essas duas medidas já baixou os homicídios em 11%, o que representou mais de 5.000 vidas salvas em cinco anos. Mas os outros mais de 30 artigos do estatuto estão no papel até hoje. A melhor resposta que podemos dar à tragédia de Realengo é fazer com que as autoridades cumpram a lei”, diz Rangel.
As pessoas mais diretamente envolvidas com a Campanha do Desarmamento se mostram contrárias à realização de um novo plebiscito ou referendo para determinar a proibição da venda de armas no Brasil. Na consulta anterior, realizada em 2005, 64% do eleitorado votou contra a proibição desse tipo de comércio. “Acho que a convocatória do referendo só deveria acontecer depois de assegurados muitos apoios
e uma certeza clara de que haveria um avanço. A maior parte dos avanços que tivemos nos últimos anos ocorreu antes e a despeito da derrota no referendo de 2005. Então, não me parece que isso seja uma peça central nesse processo”, opina Ignacio Cano. O deputado Alessandro Molon também é contra um novo referendo. “Eu estava entre os que defendiam a proibição e perderam, mas
saulo cruz/ag câmara
Novo referendo?
Molon: mais importante agora é garantir que o Estatuto do Desarmamento seja plenamente cumprido
defendo que não seja feito um novo plebiscito ou referendo neste momento, porque a população brasileira se manifestou há pouco tempo a esse respeito e não acredito que os dados recentes tenham sido suficientes para mudar majoritariamente a posição que levou ao resultado de 2005”, diz. Mais importante agora, em sua opinião, é garantir que o Estatuto do Desarmamento seja plenamente cumprido.
REVISTA DO BRASIL junho 2011
29
mídia
Histórias sem fim Ao completar cinco anos, revista consolida política editorial com foco em personagens e atitudes que ilustram uma nova mídia e retratam uma realidade em movimento
30
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
No mês passado, em evento do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em que Lula receberia o prêmio João Ferrador, Sabrina Sato, do Pânico, e Mônica Iozzi, do CQC, estavam lá com suas equipes. Sabrina queria provocá-lo quanto à exposição na mídia da presidenta Dilma. E Mônica foi cobrar de Lula uma participação no programa de Marcelo Tas. Longe do palco, usou o megafone para chamar a atenção do homenageado, que dialogou com a repórter pelo microfone. À reportagem, Mônica admitiu que o presidente atrai muita mídia porque atrai povo: “Querendo ou não, a gente faz TV para as pessoas, a audiência conta, sim. Seria bom se não contasse tanto, mas conta. E tudo o que o Lula fala vira notícia, vende jornal, e ele tem graça. Pra gente, que mistura jornalismo e humor, ele sempre rende”. Sabrina Sato concordou: “O ex-presidente tem uma resposta boa pra tudo, veja o tanto de palestra que está dando. Ele tem uma história de vida e é um comunicador muito bom”, definiu a musa do Pânico, com seu carregado sotaque interiorano.
Espírito crítico
As edições que se sucederam consolidaram a opção da RdB por um jornalismo dedicado a encontrar – entre personalidades influentes na cena política, econômica, cultural e social ou escondidas no ano-
campeão de popularidade Lula na edição nº 1: “comunicador nato”, disse Sabrina Sato durante entrega do prêmio João Ferrador
Roberto Parizotti
“O
segredo de Lula”, como chamava a capa do primeiro número da Revista do Brasil, há cinco anos, não era de fato um segredo. Aquela edição apenas demonstrou, com abordagem jornalística factual, que algo diferente ocorria no país naquele momento e não passava pelas manchetes da velha mídia, mas mexia com a vida de milhões de brasileiros. Havia uma movimentação na imprensa comercial a oscilar entre a hostilidade e o golpismo, que era quase unânime, mas incompatível com o elevado grau de aprovação do governo do operário. O resultado daquela eleição, como todo o desenrolar do segundo mandato conquistado, deu pistas de que o jornalismo diferenciado estava no caminho certo. Como estavam certas as políticas sociais, que tiraram da pobreza um contingente considerável de brasileiros, e a política externa, que colocou o Brasil numa posição de mais respeito no mundo. Os acertos de Lula foram atestados por estatísticas, pesquisas de opinião e pelos resultados eleitorais, em sua reeleição e na vitória de sua candidata em 2010. E impuseram à velha mídia a tarefa de ser dura com o governo sem “bater” no presidente. Na mídia, Lula tornou-se imbatível. E garantia de audiência, como o demonstram até os programas que não abrem mão de tirar uma casquinha de sua popularidade.
fotos Roberto Parizotti
uma loja de sua marca 1daSul no Capão Redondo e outra no centro de São Paulo, uma gravadora e um instituto que trabalha com projetos sociais. Estimula a cultura hip-hop, criação de bibliotecas alternativas, edita e publica autores “periféricos” e lançou o documentário Literatura e Resistência, sobre sua trajetória de ativista. Só não é mais rapper. Atua na ONG Casa de Zezinho e, em 2009, fundou a Interferência, entidade que faz atividades culturais com crianças do Jardim Comercial, bairro que pertence ao Capão Redondo. “É um trabalho social que estamos tocando, mas com muita dificuldade porque não é um trabalho cultural que dá visibilidade. Resolvi encabeçar essas coisas. Acho que isso é revolucionar de verdade. Estou lidando com vidas, as crianças estão lá aprendendo, estudando. Dá mais resultado que subir no palco e ficar cantando. Larguei o hip-hop e várias coisas que eu estava fazendo pra fazer isso. Vi mais resultado.”
Querendo ou não, a gente faz TV para as pessoas. A audiência conta, sim. Seria bom se não contasse tanto, mas conta. E tudo o que o Lula fala vira notícia, vende jornal. E ele tem graça Mônica Iozzi, do CQC
Ainda os escombros
Paulo de Souza/ABCDigipress
nimato do cotidiano – pessoas e atitudes que podem fazer diferença no permanente desafio de melhorar a realidade. Também não se abriu mão da crítica, da contundência em apontar demandas não atendidas por todas as esferas do poder público – em questões agrárias e urbanas, em omissões dos três Poderes ante a necessidade de aperfeiçoar o funcionamento e a estrutura do Estado –, dando voz a pessoas que são referência em sua área de atuação. O escritor Ferréz, por exemplo, quatro anos depois de sua entrevista na edição de novembro de 2007, mantém um distanciamento crítico em relação aos avanços do país. “Nesse terceiro governo de esquerda, ficou mais evidente que as pessoas estão tendo mais condições de comprar um carro, parcelar um apartamento. Só que tenho visto muito que elas têm gastado mais, mas não têm adquirido cultura. O cara deixa o carro mais potente, troca a roda, mas não põe o filho numa escola melhor, não compra um livro. Como uma pessoa que mexe com educação, fico muito chateado, frustrado mesmo. Chegou a parte financeira, mas não chega orientação de como você pode melhorar um pouco sua vida tendo um estudo melhor, de como curtir um teatro em vez de comprar televisão de 50 polegadas.” Referência quando o assunto é periferia, Ferréz apresentou durante dois anos o programa Interferência, na TV Cultura. E continua ativo. Mantém
Uma das importantes pendências do poder público com as populações é a falta de soluções para áreas de risco mais vulneráveis a tragédias, sejam elas naturais, sejam resultado da negligência humana na ocupação imobiliária. Dramas como os vividos em Santa Catarina, no Piauí, em São Paulo ou no Rio de REVISTA DO BRASIL junho 2011
31
mídia
Troca de sinais Mano Menezes (edição nº 30), campeão da Série B do Campeonato Brasileiro com o Corinthians, queria mais. Quem sabe em 2014, com a taça na mão, o técnico troque com Lula (edição nº 25) a chamada de capa
32
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
de contar até o início de 2012 com os R$ 500 que o casal receberá do programa. “Depois, não sei. Deus tem que ajudar os servos dele, né? Minha casa tinha 26 anos, eu mesmo construí. Eu me sinto sem lugar, sem rumo”, lamenta. Quando vai até sua antiga vizinhança, constata que pouco foi feito. A assessoria de imprensa da prefeitura justifica: “As chuvas pararam há pouco tempo. Toda vez que chove desce lama das encostas. Nesse bairro precisa ser feita uma obra de contenção orçada em mais de R$ 40 milhões”. Em Teresópolis, a prefeitura desobstruiu acessos e normalizou o transporte coletivo. “Mas ainda há lugares onde parece que o temporal foi ontem, com lixo, lama, escombros. E algumas empresas que a prefeitura contratou para fazer a limpeza não têm estrutura para realizar o serviço”, reclama o vereador Claudio Mello. O vereador friburguense Cláudio Damião aponta situação semelhante: “Uma das empresas contratadas para a remoção de lama e entulho das ruas do 6° Distrito tem como atividade principal ‘comércio de varejos de peças e acessórios novos para veículos automotores’”, denuncia. Em Petrópolis, onde a destruição foi menor e mais restrita, a reação foi mais rápida e a vida já começa a voltar ao normal. Pelo menos de acordo com dados de abril do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Emprego, Petrópolis já aponta saldo positivo de 1.147 novas vagas no ano. Em Teresópolis, o saldo ainda era negativo (378 empregos a menos no ano). Nova Friburgo, a mais duramente atingida pela tragédia, mostra recuperação, mas ainda insuficiente para repor as 736 vagas fechadas desde o início do ano, metade delas em decorrência das chuvas. A economia dos três maiores municípios se recupera aos poucos. Nos menores, mais frágeis, a situação é mais grave. As doações, ainda necessárias, não chegam mais. Com a aproximação do inverno, o frio já incomoda quem vive em alojamentos improvisados. Mas as soluções esbarram na burocracia e em batalhas políticas que atrasam o amparo a quem necessita. O tempo passa, o frio está chegando, a solução tarda. Haja cobertor.
Espírito esportivo
Gustau Nacarino/REUTERS
Distanciamento crítico Ferréz, capa da edição 18: “Tenho visto muito que as pessoas têm gastado mais, mas não têm adquirido cultura”
Janeiro foram pauta frequente na revista impressa, nas reportagens de rádio, dos jornais e no jornalismo em tempo real da Rede Brasil Atual na internet – veículos reunidos na Editora Atitude, empreendimento privado criado pelas entidades sindicais para absorver essas iniciativas de comunicação. Questões ambientais, sociais e urbanas associadas ao Rio de Janeiro, aliás, ocuparam diversas capas da RdB nesses cinco anos. A mais recente foi em fevereiro. O personagem daquela capa, o metalúrgico desempregado José Lino da Silva, fora fotografado pela reportagem procurando pertences entre os escombros de sua casa, no bairro Três Irmãos, em Nova Friburgo – depois das destruições causadas pelas fortes chuvas de janeiro na região serrana do estado. José Lino até hoje não pôde voltar para sua casa. Ainda desempregado, paga R$ 280 pelo aluguel de dois cômodos no bairro de Santo André, a 15 quilômetros da antiga casa, onde mora com Gilda, sua namorada. O programa Aluguel Social, convênio do governo estadual do Rio de Janeiro com as prefeituras, beneficiou 7.000 famílias desabrigadas ou desalojadas, segundo a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. Além dos bicos que faz para ganhar algum dinheiro, José Lino sabe que po-
O esporte, tema recorrente na pauta da revista, cravou uma capa visionária com o técnico Mano Menezes, em dezembro de 2008. Mano se consolidava como um dos grandes treinadores do país depois de vencer o Campeonato Brasileiro da Série B com o Corinthians. O título “Mano quer mais”, admita-se, ainda se referia às expectativas do técnico com seu time. O Corinthians de 2009 acabara de contratar o fenômeno Ronaldo e estava melhor que seu Grêmio de 2005, que subiu, conquistou o estadual e uma vaga na Libertadores. De fato, o alvinegro foi também
campeão estadual e conquistou a Copa do Brasil daquele ano, alcançando uma vaga na Libertadores do ano seguinte, o do centenário do clube. Depois de uma primeira fase impecável no torneio continental, o time seria eliminado pelo Flamengo nas oitavas de final. A tragédia corintiana não comprometeu a credibilidade de Mano Menezes, que ainda tinha o direito de “querer mais”. E desde julho de 2010 é o técnico encarregado de preparar a seleção brasileira que vai disputar a Copa do Mundo, em 2014. Até o momento, antes do amistoso contra a Romênia em 4 de junho, o comandante contabiliza quatro vitórias e duas derrotas. Dada a complexidade do desafio, uma possível manchete para o dia em que o treinador se despe-
rodrigo queiroz
Começar de novo José Lino foi capa da edição 56, fotografado entre os escombros do que foi sua casa. Ainda desempregado, paga R$ 280 pelo aluguel de dois cômodos
dir deve ser: “Mano quer descansar”, de preferência, depois de uma missão bem cumprida. A exemplo de Lula, quando estampou a capa de junho de 2008: “Em 2011 vou descansar”, dizia ele, refutando mexer nas regras do jogo para disputar um terceiro mandato. A propósito, não é improvável que Mano e Lula inspirem capas invertidas num futuro próximo. E que em 2014 a manchete constate: “Lula quer mais”. Este texto e os das páginas seguintes a respeito dos cinco anos da Revista do Brasil tiveram a colaboração de Alberto César Araújo, Benonias Cardoso, Cida de Oliveira, Maurício Hashizume, Miriam Sanger, Paulo de Tarso, Paulo Donizetti de Souza, Regina de Grammont, Renata Silver, Rodrigo Queiroz, Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel
Questões ambientais, sociais e urbanas associadas ao Rio de Janeiro ocuparam diversas capas da RdB nesses cinco anos. A mais recente foi em fevereiro
Uma equipe, uma rede A Rede Brasil Atual conta também com outros canais e ferramentas de informação voltados a uma diversidade mais ampla de públicos. Como as edições impressas de jornal regional no interior paulista e em bairros da capital. A Rádio Brasil Atual, com programa diário nos 98,8 FM para a Grande São Paulo e também com noticiário exclusivo em sistema de radioweb. E o portal de notícias em tempo real na internet. Em 19 de maio, o portal completou dois anos no ar. No período, foram 2,4 milhões de acessos, em mais de mil cidades brasileiras e em 160 países.
REVISTA DO BRASIL junho 2011
33
Retorno às origens Dançarino volta ao projeto social onde deu os primeiros passos e os retribui ensinando
E
m junho de 2007, Rubens Oliveira Martins já era uma espécie de professor para aqueles que faziam parte do projeto Cidadança, em que o coreógrafo Ivaldo Bertazzo selecionava jovens da periferia para ter aulas na Escola de Reeducação do Movimento. Rubens começou da mesma forma que aqueles garotos e, depois de um ano de aprendizado, transformou-se no que Ivaldo chamava de “pequenos jovens professores”. Hoje com 25 anos, Rubão diz que muita coisa aconteceu depois que saiu na capa da edição 13 da Revista do Brasil, há quatro anos. Logo abriu uma sala para dar próprias aulas. Voltou ao lugar onde teve seus primeiros contatos com a dança, o Projeto Arrastão, e apresentou o projeto Pélagos, de formação de jovens. “A ideia é
34
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
reproduzir o que aprendi com o Ivaldo, mas com uma ‘técnica Rubens’”, orgulha-se. Desde o ano passado, o mestre recebe apoio financeiro para dar aula a 20 alunos de 15 a 22 anos da região de Campo Limpo, zona sul de São Paulo. “É uma formação complementar que culmina em um espetáculo. A gente coloca os dois pés deles no mundo das artes, mas a escolha do que querem fazer é com eles. Não é nosso objetivo formar bailarinos, apesar de isso poder acontecer.” Foi no espetáculo Milágrimas, ainda com Ivaldo, que Rubens conheceu a gumboot dance – dança das botas de borracha, surgida nas minas de ouro da África do Sul, no século 19. Os trabalhadores viviam em situação precária, impedidos de conversar, e começaram a se comunicar por percussões corporais, barulho das
Rubens: mestre no Projeto Arrastão
correntes e outros sons. Treinavam tanto nos alojamentos e nos momentos de descanso que virou manifestação política. Rubens formou um grupo de 12 pessoas, a maioria não profissionais, e seis meses depois de iniciar as aulas no Arrastão estreou a peça Volúpia, o primeiro trabalho como coreógrafo. Ivaldo Bertazzo estava na plateia. O espetáculo rendeu-lhe um convite para passar um mês na África do Sul. “Vou para pesquisar gumboot, mas todo passo que eu der nessa outra terra vai acrescentar. Quero visitar ONGse ver como é o trabalho musical e de organização, para somar ao que eu faço.” Rubens já participou de minissérie de TV (Som e Fúria) e foi convidado a integrar o corpo de dança de um filme sobre o músico Antonio Nóbrega. E é assim que vai realizando sonhos e, por tabela, os de sua família, já que todos os irmãos do moço são músicos. “Eles não trabalham com música, por isso acho que de alguma forma acabo realizando o sonho de alguns deles.”
regina de grammont
mídia
Além da liberdade Francisco, capa há dois anos, trabalha em assentamento que pode ser modelo contra a escravidão contemporânea. Pena que a experiência é ainda uma raridade
N
Benonias Cardoso/Piauiimagens
os últimos anos, o Brasil aprimorou medidas preventivas ao trabalho análogo à escravidão, envolvendo empresas, bancos e organizações não governamentais, e inovações como a “lista suja”, que o governo atualiza a cada seis meses. A divulgada em 13 de maio tem 220 infratores, flagrados por prática de aprisionamento por dívida e condições indecentes de moradia e trabalho, entre outros crimes. Essas ações somam-se às medidas de fiscalização e repressão, que já “libertaram” quase 40 mil pessoas nessa situação nos últimos 15 anos.
Os resultados alcançados no combate à escravidão contemporânea conferem reconhecimento internacional ao país. O que falta são ações mais contundentes para abrir “portas de saída” nas regiões pobres em que os infratores recrutam suas vítimas. Um modelo a ser seguido é o Assentamento Nova Conquista, em Monsenhor Gil (PI), que reúne hoje 41 famílias de agricultores. É lá que trabalha Francisco Rodrigues dos Santos, personagem de capa da edição de maio de 2009. Ele e seus dois irmãos haviam caído no conto do gato e passado seis meses aprisionados em fazendas de Santana do Araguaia (PA). Após ação de fiscalização e repressão, voltaram para casa. O proprietário infrator, Rosenval Alves dos Santos, ficou dois anos na lista suja, saiu, mas ainda tem o nome envolvido em denúncias de desmatamento ilegal.
No assentamento, recursos prometidos pelo Incra em 2009 só começaram a sair no ano passado, e as coisas começaram a evoluir. Foram erguidas 33 casas, algumas têm até telhado, mas ainda faltam acabamento e partes hidráulica e elétrica. Enquanto Francisco e os companheiros tocam o trabalho nas instalações, sua mulher, Teresa Cristina, cuida da casa e dos filhos, Ana Cristina, 11 anos, Marcos Antonio, 7, e Sara Noeli, 5, todos estudando. As famílias cultivam mandioca, arroz, feijão e melancia. Nesta safra, chegaram a colher o bastante para reforçar o orçamento, que tem o apoio do Bolsa Família. Francisco diz que o objetivo de todos é alcançar o sustento exclusivamente do próprio trabalho. Mas falta resolver problemas como fornecimento de água e de energia e melhorar o acesso ao local. A liberação de recursos pelo Incra está parada. Além disso, um invasor ocupa quase metade da área de 2.200 hectares do assentamento – “justamente a melhor parte da terra”, diz Francisco – e tem contado com decisões favoráveis da Justiça local para protelar sua saída. “Não está completamente bom, mas também não está ruim como antes”, define Chiquinho Oliveira, presidente da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Prevenção do Trabalho Escravo, criada em 2009. “Toda vez que chegamos lá na Superintendência do Incra para reclamar, dizem que ainda não podem fazer nada. Mas, mesmo com essas dificuldades, todos estão animados. A terra é boa para plantar e, em breve, estaremos todos lá, morando e produzindo.” O Assentamento Nova Conquista, primeiro e único a organizar ex-vítimas da escravidão contemporânea, é ainda um modelo solitário do que pode ser feito para combatê-la pela raiz. Outra iniciativa capaz de fortalecer o processo de erradicação do trabalho escravo é a proposta de emenda constitucional (PEC 438) que prevê o confisco de propriedades em que o crime seja flagrado. A PEC encontra-se engavetada na Câmara dos Deputados. Francisco com a família: o objetivo é se sustentar exclusivamente do próprio trabalho REVISTA DO BRASIL junho 2011
35
mídia
Mais proteção, menos hipocrisia Prevenção de DSTs/Aids e defesa dos direitos das mulheres mudaram a vida da ex-agente de saúde Lúcia de Souza
36
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Lúcia: os estudos continuam
mulheres. “Há um respaldo que antes não tinha. Mas as mulheres têm de denunciar. Se eu apanho e fico dentro de casa, como é que alguém vai saber? O agressor tem de ser punido”, diz. Hoje, ela defende também a organização das mulheres que atendia no Projeto Princesinha em um sindicato das profissionais do sexo. “Não tem ninguém por elas, são discriminadas pela própria família, até no posto de saúde. A sociedade tem esse lado podre, que discrimina as pessoas.”
A presidente do Instituto Pro Homine percebeu em mulheres que participaram do Promotoras Legais Populares a necessidade de voltar a estudar. Por isso entrou com pedido para que o curso seja reconhecido pelo Ministério da Educação. “Outras mulheres, como Lúcia, procuraram a continuidade dos estudos depois do curso, muitas tinham apenas o nível fundamental. Seria importante o MEC reconhecê-lo, seria um estímulo a mais”, afirma Alichelly.
Alberto César Araújo
D
epois que Lúcia de Souza começou a trabalhar com temas ligados aos direitos das mulheres, sua vida mudou. Capa da Revista do Brasil de outubro de 2009, Lúcia na época trabalhava no Projeto Princesinha em Manacapuru (AM), na prevenção de DSTs/Aids entre as prostitutas. Naquele ano participou também do curso de Promotoras Legais Populares, em Manaus, para aprender noções de cidadania, direitos humanos, leis e outros instrumentos de capacitação de lideranças comunitárias para intervir em situações de risco e em casos de agressão a mulheres, com base na Lei Maria da Penha. O Projeto Princesinha, porém, foi extinto no final de 2010. Hoje Lúcia é assistente administrativa da Secretaria de Saúde e lamenta o término de seu trabalho. “Eu era uma dona de casa que não sabia nada sobre DSTs. Aprendi a viver depois desse projeto, até mesmo a me relacionar sexual mente eu aprendi, a usar preservativo.” Segundo a advogada Alichelly Carina Macedo Ventura, presidente do Instituto Pro Homine e coordenadora do Promotoras Legais Populares, desde 2009 o curso parou por falta de recursos. A expectativa é poder retomá-lo em fevereiro de 2012. “O curso ajudou. Percebo a mudança não só nas mulheres que participaram, mas em todas as pessoas envolvidas, inclusive o poder público.” Outra conquista que está em vias de ser alcançada é uma segunda Vara Maria da Penha para a região. “Já foi pedido ao Tribunal de Justiça. Está havendo uma movimentação por parte do poder público e da sociedade civil”, diz Alichelly. Para a ex-aluna Lúcia, a Lei Maria da Penha ajudou a melhorar a condição das
Alana: sem abrir mão dos sonhos
Gravidez precoce mexe com adolescentes e pais. A parceria é fundamental para superar as mudanças e dar novos rumos a vidas
E
m agosto de 2008, Alana Koveroff Kusminsky estampava, grávida aos 16 anos, a capa da Revista do Brasil. A reportagem de Miriam Sanger, “Dizer não não é pecado”, abordava como as mudanças hormonais, as novas sensações e as pressões do grupo de amigos seduzem o adolescente para a primeira experiência sexual, que pode trazer tanto um pouco mais de maturidade como também uma gravidez precoce. Vinícius Domingues de Paula nasceu no dia 31 daquele agosto. A jovem mãe fez acordo na escola onde estudava e terminou o segundo ano do ensino médio em casa. Quando voltou para completar o terceiro ano, em 2009, já não amamentava. Estudava à tarde e o bebê ficava no berçário. No ano seguinte, conseguiu seu primeiro emprego numa rede de fast-food
em um shopping e depois migrou para uma agência de turismo. “Meus horários cabiam no horário do Vinícius ficar na escolinha. No começo foi difícil, deu uma insegurança... Mas eu não tinha outra opção”, lembra Alana, que mora com a mãe. Ela recomeçou a estudar e calcula que, passado o susto, tenha sido a nova realidade que a fez optar pela carreira a seguir. “Estou fazendo um curso técnico em alimentos no Senai e comecei a estagiar este ano. Se eu não tivesse passado por tudo isso, talvez não estivesse fazendo o curso. Amadureci – tive de amadurecer. A gravidez foi um acaso, mas hoje estou bem e feliz.” Alana pretende fazer faculdade de Engenharia de Alimentos. A mãe, Luciana Vinchevichi Koveroff, insistiu que Alana continuasse a estudar. “Ela está trabalhando e estudando. Cuida do filho como uma adolescente que teve
regina de grammont
De repente, outros planos bebê. A minha participação e a do avô são essenciais. A gente se desdobra para dar suporte, dar apoio para que ela não desista dos sonhos. Isso já seria importante sem o filho, com ele, então...”, diz Luciana. “A Alana tinha 16 anos, a Sophia, 13. Eu estava tranquila, pensando em fazer um curso, ter um recomeço. Tive, mas de outra forma. De certa maneira, ele é meu filho também.” Fábio, o pai, vê Vinícius com frequência, acompanha seu desenvolvimento e paga pensão. Guilherme, com quem Alana namora há dois anos, se adaptou completamente à rotina de mãe e filho. “A gente está superbem. Estudamos juntos desde o primeiro colegial. Ele conhecia a minha situação e sabia o que ia encarar. Meu filho adora ele e ele adora meu filho. Ele praticamente assumiu o Vinícius.” Alana quer seguir os estudos e pretende “sair do rabo da saia” da mãe quando estiver estabilizada. “Por enquanto dá pra ficar aqui. Tenho planos de casar, mas o Guilherme está na faculdade ainda e a gente não quer fazer nada com pressa.” Afinal, como ilustrava a capa daquela edição, pressa, por quê? REVISTA DO BRASIL junho 2011
37
cultura
A
plateia estava lotava naquela sexta-feira, debaixo da tenda no albergue Arsenal da Esperança, na zona leste de São Paulo. O público, praticamente só homens e usuários da hospedaria, esperava para assistir ao espetáculo Carne: Patriarcado e Capitalismo, da Kiwi Companhia de Teatro. As atrizes Fernanda Azevedo e Mônica Rodrigues encenavam temas que discutiam o machismo, a violência, a opressão contra a mulher e as conexões entre patriarcado e o sistema capitalista, com texto rápido, linguagem simples e direta. No debate proposto pelo grupo depois da peça, o público opinou, elogiou, criticou, disse o que quis. Logo se instalou uma polêmica: alguém afirmou que as mulheres nasceram para cuidar de casa, do marido e gerar filhos. Levou sonora vaia. Outro contrapôs que as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens, e foi aplaudido. Não se tratava de manifestação feminista, tampouco a plateia era engajada. Naquele momento, homens sem posses, sem teto nem esperanças, tinham voz. Ao final, uma das atrizes explicou um dos motivos de estarem ali: “Ou a gente se junta para lutar por uma humanidade mais justa para todos, ou vai para o buraco todo mundo junto. O que não pode é reproduzir o discurso do opressor”. Palmas. Muitas palmas. A Kiwi faz parte de um coletivo que ainda não tem nome oficial,
Coletivo paulista reúne 11 grupos que levam aos palcos sonhos revolucionários Por Xandra Stefanel
O teatro impaciente
Tenda itinerante Engenho Teatral: “Onde a população mora e o teatro não chega”
38
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
mas foi apelidado pelos participantes de “grupo de quinta”, uma menção ao dia da semana em que se encontram com outras companhias para ensaiar o que chamam de estéticas de combate, ou seja, ações que coloquem os atores nas ruas e dialoguem com a população trabalhadora. Em comum, além do público-alvo, elas têm o posicionamento político – denominam-se socialistas – e estão na e/ou são da periferia. Também fazem parte do coletivo as companhias Estável, do Latão, Antropofágica, Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, Brava, Engenho Teatral, Buraco d’Oráculo, Estudo de Cena, Teatro Parabelo e o Coletivo de Cultura do MST. O espaço em que a Kiwi se apresentou naquela noite foi cedido pela Cia. Estável de Teatro, que em 2006 armou uma
fotos divulgação
As pessoas comerão três vezes ao dia E passearão de mãos dadas ao entardecer A vida será livre e não haverá concorrência Quando os trabalhadores perderem a paciência Trecho de Quando os Trabalhadores Perderem a Paciência, de Mauro Iasi, adaptado pela Brava Companhia em Este Lado para Cima
grandetenda circense dentro de um albergueque, diariamente, oferece abrigo a 1.150 homens, e chegou a abrigar imigrantes a partir do final do século 19. A atriz Daniela Giampietro lembra que, quando a companhia se instalou no albergue, o grupo começou a se questionar sobre a realidade daqueles homens. A visão que os atores tinham do espaço passou a ser menos ingênua. “Questionávamos que relação havia entre nós e essas pessoas. Começamos a estudar o materialismo dialético, e decidimos fazer um espetáculo sobre relações de trabalho, o Homem Cavalo & Sociedade Anônima. Chegamos ao eixo de investigação, que é a relação de exploração do trabalho, sobre esse exército de reserva de trabalhadores à espera de uma vaga para voltar a ser explorado.”
O Homem Cavalo & Sociedade Anônima é um cruzamento de situações que envolvem trabalho, moradia e consumo, costurado pela fábula de um homem animalizado e explorado em seus esforços de sobrevivência. Nas apresentações feitas na hospedaria geralmente há muitos albergados e algumas pessoas de fora, fator considerado relevante para a reflexão proposta, na opinião do integrante da companhia Luiz Calvo. “Quem vem de fora assistir ao espetáculo olha as pessoas da plateia e diz: ‘É desse cara aqui que estão falando.’ É importante para entenderem, talvez, o que é esse espaço. E quem é do albergue se identifica com o que está sendo representado.” Numa das apresentações do ano passado surgiu da plateia uma pergunta que
não queria calar: “O nome da peça já fala, né? Mas me pergunto qual dos dois nós somos. A sociedade anônima, quando saímospor aí atrás de emprego e temos de falar que não moramos aqui (no albergue)? Ou o homem cavalo, que trabalha por tão pouco, tem de acordar cedo, passar por humilhação, falatório de patrão que fica jogando na cara?”
Arte e trabalho
Esses ingredientes compõem os objetivos em geral semelhantes dos grupos. Luciano Carvalho, da Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, avalia como positiva a resposta que vem do público. E cita como memorável o fato de terem reunido na sede da companhia, na Cidade Patriarca (zona leste), cerca de 600 pessoas para REVISTA DO BRASIL junho 2011
39
cultura
divulgação
memorável Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes reuniu cerca de 600 pessoas para assistir à última apresentação de A Saga do Menino Diamante, uma Obra Periférica
40
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
engajado Cia. Estável: debate social, materialismo dialético e oficinas gratuitas (ao lado)
paulo pepe
assistir à ultima apresentação de A Saga do Menino Diamante, uma Obra Periférica, que aborda a construção e destruição da metrópole e da favela. “O que produzimos é expressão de classe. É um trabalho de luta contra-hegemônica. Estamos numa disputa, e parece que estamos avançando muito. Para essa apresentação rolou um boca a boca muito intenso na cidade, principalmente na periferia. Foi um êxito muito vigoroso, porque eu não conheço notícia parecida com esta: levar 600 pessoas na periferia para ver teatro”, afirma Luciano. Além de se apresentarem nos espaços próprios, quase todos os grupos levam seu trabalho para as ruas, seja na periferia, seja em centros urbanos, assentamentos do MST, sindicatos ou outras organizações sociais. Com uma tenda itinerante, agora instalada na Radial Leste, a Engenho Teatral também foi “onde a população mora e o teatro não chega”. E é essa convivência que leva aos palcos, segundo um dos criadores do grupo, Luiz Carlos Moreira. “O lugar econômico, físico, geográfico, cultural e social onde a gente se encontra também define o que é a obra colocada no palco. Nossa função
é construir uma linguagem que se contraponha ao pensamento e a valores dominantes dessa sociedade, é botar o dedo nas contradições da sociedade capitalista. A gente tenta ir ao encontro da classe trabalhadora marginalizada dessa produção cultural”, declara Luiz Carlos. A Cia. Antropofágica se apresenta em sua sede, o Espaço Pyndorama, e também nas ruas. O nome da peça é praticamente um texto: Entre a Coroa e o Bandido – Terror e Miséria no Novo Mundo Parte II: O Império. O trabalho reúne episódios da história do Brasil Império
carroça, apresentando temas diversos à população. Um deles, no início do ano, foi o aumento da passagem do ônibus na capital. No fim do trajeto, os atores convidam os espectadores a participar de um banquete-debate. A rua também é o principal espaço de trabalho da Brava Companhia. Atualmente com a peça Este Lado para Cima – Isto Não É um Espetáculo, travam, com bom humor, um diálogo com os trabalhadores sobre a máquina capitalista, a exploração do trabalho e a supervalorização do dinheiro, que conduzem à opressão e ao autoritarismo. Em março passado, a Brava levou o espetáculo à Flaskô, fábrica de Sumaré (SP) que, em vias de decretar falência, em 2003, foi ocupada pelos funcionários. Fabio Resende, integrante da companhia, afirma que o grupo não tem a intenção de mostrar a vida como ela é, mas sim “desnaturalizar” construções feitas pelo capitalismo e dialogar com os trabalhadores de forma divertida. “Quando a gente aponta as contradições, as pessoas querem conversar sobre aquilo. Mas, dizer que por intermédio do teatro nós vamos mudar a realidade, isso não. Somos um grupo de pessoas que pensa o mundo como possibilidade de transformá-lo, queremos fazer um teatro que tenha potencial revolucionário. Pode ser que a gente consiga criar uma faísca que estoure. Existem muitos grupos de teatro fazendo isso. Então, o movimento tem se espalhado.”
fotos divulgação
Como um grupo de estudos
e propõe uma reflexão sobre seus desdobramentos nos dias de hoje. Ao final da peça, o grupo se posiciona por meio de um verso do poeta e dramaturgo russo Vladimir Maiakovski: “Dai-nos, camaradas, uma arte nova – nova – que arranque a república da escória”. O diretor Thiago Reis Vasconcelos explica a intenção da companhia: “Nós nos colocamos como grupo que está disposto à militância, a organizar esse período da República que estamos vivendo. Entre nós, tem gente que é do MST, do Passe Livre e de outros movimentos sociais. O teatro, para nós, é um meio, não um fim; é um meio de debater essas questões sociais e de militância”. Já a Karroça Antropofágica é uma intervenção cênico-musical baseada em pesquisa sobre os trabalhadores tropeiros no Brasil Império. Nela, os atores saem pelas ruas e avenidas de São Paulo, com uma
história e reflexão A Cia. Antropofágica se apresenta em sua sede, o Espaço Pyndorama, e também nas ruas, com a Karroça Antropofágica
Assim surgiu, em 2009, o coletivo que hoje agrega 11 companhias teatrais. “Começamos a nos reunir com três grupos parceiros, Dolores, Engenho e Brava, para discutir pontos de identificação. No começo de 2010 outros se agregaram, e fomos nos estruturando como um grupo contra-hegemônico, que quer pensar o teatro para a luta de classes do lado de cá da trincheira”, lembra Daniela, da Cia. Estável. Com pressupostos em comum, mas estéticas distintas, os grupos passam mais ou menos pela mesma situação quando o assunto é grana. Se já não é fácil sobreviver do teatro “convencional”, do engajado, então, é mais difícil ainda. Para desenvolver seus projetos, realizar oficinas gratuitas e levar suas peças gratuitamente à classe trabalhadora, um dos caminhos foi participar dos editais da Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo. Quando é aprovado, o projeto recebe recursos para ser desenvolvido. Quando não, os atores, individualmente ou como grupo, trabalham em outras frentes, seja no teatro, seja fora dele, como é o caso do Dolores Boca Aberta, que tem no grupo jardineiro, técnico em telefonia, professores e outras categorias profissionais. Unir-se é, para Luciano Carvalho, um meio de resistir e, quem sabe, criar formas de produzir um teatro que ajude na construção de um mundo mais justo para todos, incluindo quem o faz. “Chegamos a uma conclusão conjunta: temos um trabalho em luta que se direciona a uma classe específica, porque compomos essa classe. A necessidade de nos juntar é para nos tornarmos mais fortes, criarmos espaços de encontro, treinamento e troca de estéticas que não conhecemos ainda, como fazer uma cena com 100 pessoas. O modo de organização e solidariedade entre os grupos pode criar uma ferramenta estética inédita”, diz Luciano. REVISTA DO BRASIL junho 2011
41
música
Ouvi o toque me chamar
Do baião ao jazz. De Luiz Gonzaga a Beethoven. De Sivuca a Tchaicovsky. Da leveza nordestina ao orgulho dos pampas. Quem pode com a força multicultural e multimusical de uma sanfona? Por Guilherme Bryan
L
uiz Gonzaga, Dominguinhos, Sivuca, Hermeto Pascoal, Toninho Ferragutti, Oswaldinho do Acordeon e Renato Borghetti são unidos pela mesma paixão: a sanfona. De origem incerta – alguns acreditam que tenha surgido no norte da Península Ibérica, no século 16, outros apostam no norte da África –, esse instrumento se abrasileirou rapidamente, assim que chegou ao país no final do século 19, trazido por imigrantes italianos e alemães. Há quem diga, porém, que a primeira sanfona teria aportado aqui numa das caravelas de Pedro Álvares Cabral, com o nome de concertina. Certo mesmo é que a sanfona ou concertina – ou harmônica, cordeona, acordeão, pé de ode, gaita ou fole – é versátil a ponto de servir de inspiração desde a uma peça clássica do russo Tchaicovsky (1849-1893) até a música brasileira executada nas mais diferentes regiões, dos pampas gaúchos ao sertão nordestino. Também rompeu fronteiras, virou tema de documentários e passou a ser aclamada na Europa e nos Estados Unidos. “A sanfona é, de todos os instrumentos, o que mais está ligado às tradições culturais de um povo. E em cada região é tocada de maneira diferente. Através dela, pode-se conhecer as tradições da música religiosa em Minas Gerais, das italianas e alemãs e adentrar na melancolia alegre do sertanejo”, avalia o cineasta Sérgio Roizenblit, diretor do documentário O Milagre de Santa Luzia (2009). O título homenageia Luiz Gonzaga, que nasceu
42
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
Inspirado Renato Borghetti virou mestre em misturar música folclórica gaúcha com vários elementos modernos
no dia da santa, 13 de dezembro, e a narrativa é conduzida por Dominguinhos, por meio de uma viagem realizada pelo país e por várias escolas de sanfoneiros. “É o único instrumento que embute vários outros, como o sopro e o piano, por exemplo. Assim, a sanfona faz uma festa sozinha e, no Sul ou no Nordeste, agrega a comunidade”, observa Roizenblit. Seu documentário mergulha neste universo: o toque nordestino e sua saga de retirante, a partida e o desejo de um dia voltar; o pantaneiro e sua atitude contemplativa, conectada ao tempo da natureza; o gaúcho e sua ode às tradições, o orgulho pela terra; e o paulista, que dividido entre a cultura caipira e o emaranhado de informações da metrópole cria um estilo único e diversificado. “Musicalmente, o instrumento se caracteriza como capaz de traduzir as mais variadas culturas, seus diferentes povos”, descreve o diretor.
diferenças O nordestino toca com leveza enquanto o gaúcho prefere mostrar virtuosidade, segundo o paulista Toninho Ferragutti
fotos divulgação
Folclóricos e modernos
Para o músico Toninho Ferragutti, o nordestino toca com maior leveza, com contenção no volume. “Geralmente aprende observando e não prioriza o estudo da técnica separado do estudo da música. O gaúcho, não. Em geral aprende por método e leitura, tem um volume mais alto de tocar e gosta de acordeom de som mais aberto e de mostrar virtuosidade”, descreve. “No Centro-Sul há influência dessas duas escolas. Assim como o pantaneiro do Centro-Oeste recebe influência do Paraguai e do nordesteda Argentina.” Nascido em Socorro (SP) e filho de saxofonista e maestro de banda, Ferragutti cursava Veterinária quando abandonou a faculdade. Atribui sua dedicação à música à obra e personalidade do multi-instrumentista Hermeto Pascoal. Nascido em Lagoa da Canoa (AL) em 22 de junho de 1936, Hermeto conquistou o mundo tocando, além de sanfona, flauta, piano, saxofone, trompete, violão e diversos outros objetos de onde consegue extrair sons e notas. Ferragutti já acompanhou o ídolo e outros grandes nomes da música brasileira, como Dominguinhos, Elba Ramalho, Marisa Monte, Gilberto Gil e Antonio Nóbrega, e astros internacionais, como a cantora cubana Omara Portuondo, o norte-americano
Realeza Lírio Ferreira: “A sanfona faz parte da feitura do baião, que é uma das duas dinastias da música brasileira, junto com o samba”
Doug Kershaw e o japonês Seigen Ono. Sempre com a sanfona. Outro nome importante em São Paulo é Mario Zan (1920-2006). Mario Giovanni Zandomeneghi nasceu em Roncade, uma comuna italiana da região do Vêneto, e chegou com a família a Catanduva (SP). Ficou famoso por canções típicas das festas juninas, como Quadrilha Completa, Balão Bonito, Noites de Junho e Pula a Fogueira, compôs os hinos comemorativos dos 400 e dos 450 anos da cidade de São Paulo e, certa vez, pelo conjunto da obra, foi considerado por Luiz Gonzaga o “verdadeiro rei da sanfona”. Dois dos mais expressivos sanfoneiros do Rio Grande do Sul são Gilberto Monteiro e Renato Borghetti. Natural de Santiago do Boqueirão, cidadezinha próxima à fronteira com a Argentina, Monteiro é um dos maiores nomes da música gaúcha e autor de sucessos como Milonga pras Missões e Pra Ti Guria. Já Borghetti fez o primeiro disco brasileiro de música instrumental, Gaita-Ponto (1984), com mais de 100 mil cópias vendidas. Borghettinho, de 48 anos, é de Porto Alegre. Aos 10 anos ganhou uma gaita-ponto do pai e nunca mais parou de tocar – e virou mestre em misturar música folclórica gaúcha com vários elementos modernos. O maior sanfoneiro da região Centro-Oeste é Dino Rocha. Filho de mãe alemã e pai paraguaio, ele começou a tocar aos 9 anos e, desde essa idade, vive em Mato Grosso do Sul. Já lançou mais de 20 discos e trabalhou com artistas como Almir Sater, Renato Teixeira, Chitãozinho & Xororó. Seu trabalho mistura viola, acordeom e harpa paraguaia e músicas cantadas em português, guarani e castelhano. REVISTA DO BRASIL junho 2011
43
música Rei do Baião
Veio do Nordeste, de Exu (PE), aquele que ganhou o título mais nobre entre os sanfoneiros. Luiz Gonzaga (19121989) imortalizou a imagem do músico de gibão, chapéu na cabeça e sanfona no pescoço, e emplacou sucessos hoje considerados clássicos obrigatórios do cancioneiro popular, como Asa Branca, Baião, Juazeiro, Assum Preto, Qui Nem Jiló e Baião de Dois, entre outros. Ele arrastava verdadeiras multidões a cada show que realizava pelo Brasil e encantou músicos internacionais, como o ex-líder do Talking Heads, David Byrne. “A sanfona faz parte da feitura do baião, que é uma das duas dinastias da música brasileira, junto com o samba. Ela também faz parte da tríade de instrumentos do forró pé de serra, ao lado da zabumba e do triângulo. Em 1975, havia predomínio de foxtrotes por aqui, e Luiz Gonzaga, com Humberto Teixeira, foi fundamental para a revitalização do baião, como a música autêntica brasileira, até hoje reconhecida e institucionalizada, alcançando sucesso também em Nova York”, destaca o cineasta Lírio Ferreira, diretor de O Homem Que Engarrafava Nuvens (2009), a respeito do compositor, advogado e político pernambucano Humberto Teixeira. Luiz Gonzaga também foi mentor de José Domingos de Morais, o Dominguinhos, que completou 70 anos em 12 de fevereiro. Para o cineasta Felipe Briso, é o melhor sanfoneiro em atividade. Briso prepara um documentário, Dominguinhos Volta e Meia, com lançamento previsto para o início de 2012, que traz também encontros dele com outros grandes nomes da música brasileira. “Nosso intuito é mostrar o lado universal de um músico virtuosístico e talentosíssimo. Carregando um instrumento pesado com muito prazer, ele faz questão de levar a sanfona além das fronteiras do regional e colocá-la num pedestal, tanto que se envolveu, por exemplo, com a tropicália e a bossa nova”, observa o cineasta.
Eclético Oswaldinho: “Sempre soube que o acordeom é um instrumento sem limites e cabe em qualquer situação”
Dominguinhos aprendeu a tocar com o pai, Chicão, que era afinador e tocador do instrumento de oito baixos. “Luiz Gonzaga foi o que sempre permaneceu na história, talvez seja por sua astúcia e simpli44
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
divulgação
Instrumento sem limites
fotos divulgação
cidade... Foram décadas de dedicação, fé, perseverança e luta, e por isso ele deve ser lembrado. Já eu fui aprendendo, tocando, estudando, e são anos tocando. A única coisa que quero daqui para a frente é saúde. Saúde para poder continuar fazendo aquilo que tanto gosto, e espalhar por todo o país”, afirma Dominguinhos. Gravando desde 1942, com mais de 40 álbuns lançados, ele acompanhou o mestre durante vários anos e também fez escola, influenciando músicos hoje reverenciados do instrumento, caso de Oswaldo de Almeida e Silva, mais conhecido como Oswaldinho do Acordeon, com quem lançou, junto com Sivuca, o disco Cada um Belisca um Pouco, de 2004. A primeira sanfona Oswaldinho ganhou aos 6 anos – o pai e o avô também eram sanfoneiros. Inquieto, Oswaldinho se destacou por misturar a 5ª Sinfonia de Beethoven com ritmos nordestinos, ou Asa Branca com blues. “Sempre soube que o acordeom é um instrumento sem limites e cabe em qualquer situação. Acredito que, com essas experiências, incentivei muitos acordeonistas a tocar outros estilos. Meu ecletismo, devido aos meus estudos e minhas influências da música regional, do jazz, blues, rock e do erudito, é uma forma de valorizar a música brasileira, pois seus clássicos podem perfeitamente fundir-se aos universais”, defende Oswaldinho.
mistura fina Hermeto foi um dos pioneiros na fusão da sanfona brasileira com o jazz
O acordeonista considera seu maior mestre Severino Dias de Oliveira, o Sivuca (1930-2006). Filho de Itabaiana (PB), Sivuca fez de baiões como Adeus, Maria Fulô, com Humberto Teixeira, um clássico da MPB, e João e Maria, com Chico Buarque. E foi, ao lado de Hermeto Pascoal, pioneiro da fusão do sotaque brasileiro da sanfona com a universalidade do jazz. “Sua genialidade colocou o acordeomna frente, com suas adaptações harmônicas modernas. Seu som era um ‘jazz tupiniquim’, como ele mesmo dizia.” Oswaldinho agora leva as lições dos mestres adiante. Para ele, os sanfoneiros
brasileiros ainda não têm domínio de técnicas e estudos teóricos, se comparados com os que optam pelo violão, guitarra, teclado ou instrumentos de sopro. “Estou planejando o desenvolvimento de métodos para acordeom, pois no Brasil somos muito deficientes de conhecimento específico do instrumento”, admite. “Quando comecei a ter intimidade com o acordeom, descobri que seria meu companheiro para o resto da vida, enfrentando preconceitos e conquistando espaços, pois já chegou a ser considerado em extinção. Pretendo perpetuar para as novas gerações o meu conhecimento.”
Música para os olhos Dominguinhos
O Milagre de Santa Luzia (2008) Em documentário de Sérgio Roizenblit, Dominguinhos percorre o Brasil e mostra os diferentes mestres, estilos e culturas, a versatilidade regional da sanfona e a infinita universalidade do instrumento
Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga
O Homem Que Engarrafava Nuvens (2009) Documentário de Lírio Ferreira a respeito do compositor Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga, que aponta a influência do baião na origem da bossa nova e de variações do pop e do jazz
REVISTA DO BRASIL junho 2011
45
viagem
Festa da cultura sertaneja Por José Paulo Borges
A
Festa do Vaqueiro é um evento popular sertanejo ao mesmo tempo festivo e religioso. É realizada todos os anos, em datas diferentes, nos rincões mais distantes do Nordeste. A de Santa Maria da Boa Vista, no sertão pernambucano, ocorreu agora em maio. Centenas de vaqueiros, com suas armaduras de couro e seus cavalos reluzentes, tomaram conta das ruas. “A festa é importante porque preserva e valoriza a nossa cultura, além de representar uma justa homenagem aos heróis do sertão, que são os vaqueiros”, destaca José Mendonça Filho, o Mendoncinha, presidente da Associação de Vaqueiros João Barros de Araújo, promotora da festa. O acontecimento tem origem em uma tragédia: o assassinato de Raimundo Jacó na caatinga de Araripe, em Pernambuco, na
46
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
madrugada de 8 de julho de 1954. Raimundo foi um dos melhores vaqueiros de sua época. Quando aboiava, seu canto atraía o gado para perto dele. Era capaz de adivinhar onde dormia e comia cada cabeça de gado sob sua responsabilidade. As qualidades de Raimundo provocaram inveja em um companheiro, também vaqueiro, Miguel Lopes, que o teria assassinado com uma pedrada na cabeça. O crime nunca foi esclarecido. Miguel morreu negando a autoria. Conta-se também que o cachorro de Raimundo acompanhou todo o trajeto do enterro. Depois, ficou guardando o túmulo do dono até morrer.
Fotos Jesus Carlos e José Augusto Cindio
Evento tradicional do Nordeste celebra a importância dos vaqueiros, considerados heróis do sertão, mas ainda à espera do reconhecimento profissional
Em julho de 1971, por iniciativa do padre João Câncio e do músico Luiz Gonzaga, surgiu no município de Serrita, alto sertão pernambucano, a Missa do Vaqueiro. Raimundo virou mito na voz de Gonzagão. “Numa tarde bem tristonha/ Gado muge sem parar/ Lamentando seu vaqueiro/ Que não vem mais aboiar/ Sacudido numa cova/ Desprezado do Senhor/ Só lembrado do cachorro/ Que inda chora sua dor/ É demais tanta dor...” Não demorou muito e a missa passou a atrair milhares de vaqueiros, que, com seus gibões e os chapéus de couro, a intimidade com as montarias e as músicas típicas do sertão, deram um toque de festa ao evento religioso. Em Santa Maria da Boa Vista não foi diferente. Carregando com orgulho as bandeiras do Brasil, de Pernambuco e da cidade de 40 mil habitantes às margens do Rio São Francisco, centenas de vaqueiros “encourados” desfilaram, sob os aplausos da multidão, até a Igreja Nossa Senhora Imaculada Conceição, onde foi reverenciada a memória não só de Raimundo Jacó, mas dos vaqueiros que morreram recentemente.
Toda a liturgia é baseada na vida desses heróis, que assistem à celebração montados nos cavalos. O padre Xavier, vigário de Santa Maria, transforma a homilia num credo. “Creio na realidade sertaneja, sua cultura e seus valores sociais...” No ofertório, os vaqueiros, um a um, depositam seus instrumentos de trabalho em frente ao altar: gibão, perneira, arreios, assim por diante. Ao final, comungam pedaços de rapadura e queijo.
Que nem jumento
Raimundo Nonato de Souza Pereira, o “Nonato do Neco”, 60 anos, vice-presidente da Associação de Vaqueiros João Barros de Araújo, conhece bem o ofício, mas não se ilude. “O trabalho do vaqueiro só é reconhecido quando ele ainda é novo. Depois de velho, o patrão não dá cobertura e, então, o vaqueiro pode morrer na beira da estrada que nem jumento. O vaqueiro já nasce sofrendo.” O desabafo se justifica. Embora a figura do vaqueiro tenha se originado a partir da expansão da pecuária sertão adentro, lá pelos confins do século 17, até hoje a profissão não foi reconhecida. “Não conheço
nenhum vaqueiro com carteira assinada”, diz Nonato, sem disfarçar a ironia. “Hoje, a gente se aposenta como lavrador, e não como vaqueiro, profissão que a gente exerce a vida inteira.” Em 2003, uma comissão esteve com o presidente Lula para pedir o reconhecimento da profissão. “Ele nos disse que, se dependesse dele, a questão seria resolvida na hora. Até agora, nada.” De acordo com Nonato, a regulamentação pode ser feita seguindo o mesmo modelo adotado para a profissão de pescador. “Durante o período do defeso, época de reprodução quando a pesca fica proibida, os pescadores recebem o seguro-desemprego, que ajuda na sobrevivência deles. O mesmo poderia ser feito com os vaqueiros no período das secas, quando falta serviço e ficamos completamente abandonados”, explica. Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que regulamenta a profissão. Pelo texto, considera-se vaqueiro “o profissional que trata, faz o manejo e a condução de bovinos, bubalinos, equinos, muares, caprinos e ovinos”. A proposta define “trato e manejo” como os cuidados que o
Toda a liturgia é baseada na vida desses heróis, que assistem à celebração montados nos cavalos
“Bom mesmo era o meu cavalo” José Manoel de Oliveira, o “Zé Ribeiro”, 95 anos, é o decano dos vaqueiros da região. Apesar da ponte de safena e da “fraqueza” nas pernas, faz questão de comparecer a todas as festas. “O senhor quer saber? Nunca fui um bom vaqueiro. Bom mesmo era o meu cavalo. Quando ele percebia uma árvore mais alta pela frente, baixava a cabeça e me livrava do perigo”, conta. Viúvo, Zé Ribeiro diz que não fica sem dar suas voltinhas. “Nunca deixei de gostar de mulher. Afinal, não tô cego nem tô doido.” O velho só lamenta a falta de conhecimento das coisas da caatinga pelas gerações mais novas. “Vaqueiro bom não passa fome no meio da caatinga. É só cortar uns pés de xique-xique, assar na brasa e comer com mel de abelha. A moçada de hoje não sabe fazer isso.”
vaqueiro deve ter com os animais sob sua responsabilidade, garantindo que não sejam submetidos a atos de violência e recebam alimentação adequada e atendimento à saúde. Também inclui na categoria de vaqueiro o profissional que presta consultoria técnica relacionada a questões de meio ambiente rural. “Essa demora acaba desanimando os vaqueiros. Quando fundamos a Associação de Vaqueiros aqui em Santa Maria, tínhamos cerca de 400 associados. Hoje restam apenas uns trinta e poucos”, lamenta. REVISTA DO BRASIL junho 2011
47
xandra@revistadobrasil.net
No balanço de Adriana Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
Adriana Calcanhotto foi infectada. O Micróbio do Samba (Sony Music), em referência a uma frase de Lupicínio Rodrigues, é o primeiro álbum em que a cantora se dedica apenas ao gênero. Delicadeza e samba convivem em plena harmonia nas 12 faixas do disco. Em Tá na Minha Hora ela demonstra seu amor pela escola Estação Primeira de Mangueira; explora o ritmo das marchinhas em Tão Chic e Deixa, Gueixa; e dá uma pitada tropicalista a Pode Se Remoer. R$ 23.
Thriller Elvira (Ana Lúcia Torre) é uma dona de casa aparentemente pacata que vai à polícia dar queixa do sumiço de seu marido. Em Reflexões de um Liquidificador, a história é contada pelo próprio eletrodoméstico (na voz de Selton Mello), que fala sobre sua amizade com a senhora e filosofa acerca da diferença entre os seres humanos e os objetos. Elvira passa a tê-lo como único amigo em quem confiar, ainda mais porque a polícia anda desconfiando de um possível assassinato. Em DVD.
fotos José medeiros/iacervo instituto moreira salles
País do futebol
48
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
A exposição O Futebol no Acervo do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, reúne 26 fotografias sobre o esporte no Brasil, a maioria entre os anos 1940 e 1960. A mostra traz fotos de times, jogadores e dos então recém-construídos estádios do Pacaembu e do Maracanã feitas por Thomaz Farkas, Hildegard Rosenthal, Marcel Gautherot, Juca Martins, Alice Brill, Carlos Maskovics e José Medeiros. No Espaço Unibanco Arteplex, Praia de Botafogo, 316, das 13h às 22h. Grátis.
gilda midani/ sony music divulgação
CurtaessaDica Por Xandra Stefanel
Repórter em ação: 78 países
Todo mundo no Masp A videoexposição 6 Bilhões de Outros, em cartaz até 10 de julho no Museu de Arte de São Paulo (Masp), reúne pessoas dos quatro cantos do mundo, de diferentes gêneros, classes sociais, etnias, raças e profissões. A proposta do fotógrafo e ambientalista francês Yann Arthus-Bertrand é caracterizar a população mundial, ideia alimentada desde 2003, quando
mobilizou repórteres em 78 países para entrevistar pessoas sobre questões relacionadas a vida, morte, amor e coisas do cotidiano. A mostra tem salas temáticas. De terça a domingo, das 11h às 18h, na Avenida Paulista, 1.578. De R$ 7 a R$ 15, grátis para crianças até 10 anos, pessoas acima de 60 e às terças para o público em geral.
Black in Sampa
Sandra de Sá
A primeira edição do Black na Cena ocupará por três noites, de 22 a 24 de julho, a Arena Anhembi em São Paulo. Participam do evento nomes consagrados da black music, como Racionais MC’s, Seu Jorge, Baile do Simonal, Thayde e Funk Como Le Gusta, Xis, Jorge Ben Jor, Banda Black Rio, Marcelo Yuka, Sandra de Sá, George Clinton, Pato Banton, Naughty by Nature, Public Enemy, Method Man e Redman, além de DJs discotecando nas tendas. Veja a programação completa em www.blacknacena.com.br.
Lembranças em quadro Morro da Favela (LeYa, 128 páginas) é uma graphic novel de André Diniz, que narra em branco e preto a trajetória do fotógrafo Maurício Hora, nascido e criado no Morro da Providência, o primeiro a ser ocupado no Rio de Janeiro, em 1897 – mais conhecido como Morro da Favela. Filho de um apontador do jogo do bicho considerado um dos responsáveis por introduzir o tráfico de drogas no local, Maurício quis trilhar um caminho diferente. Nas páginas da HQ estão suas memórias e sua relação com a vida e a morte, a política e os bandidos, a prisão e a liberdade. R$ 40.
Arte para refletir Um Sequestro, de Botero
A violência sofrida pelos colombianos é denunciada por Fernando Botero na exposição Dores da Colômbia, em cartaz até 14 de agosto no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. Os traços inconfundíveis e as cores vibrantes do artista retratam os abusos sofridos pelo povo como consequência da ação de grupos guerrilheiros, paramilitares e políticos nas últimas décadas. Os 67 quadros que fazem parte da mostra foram doados por Botero ao Museu Nacional da Colômbia. “Não vou fazer negócio com a dor do meu país”, disse o artista. De terça a domingo, das 10h às 18h, na Rua Marechal Hermes, 999, Curitiba. De R$ 2 a R$ 4. REVISTA DO BRASIL junho 2011
49
MouzarBenedito
Matutações sobre o banheiro Ao andar pela região central de São Paulo, vendo casarões burgueses que viraram cortiços, lembrei-me de uma coisa que aparentemente não tem nada a ver: o hábito de ir ao banheiro
A
lgo que melhorou muito com a urbanização foi o entendimento de que ir ao banheiro é normal e bom, que os ambientes dos banheiros devem ser saudáveis, tem de dar gosto entrar neles e ficar um tempão, lendo ou matutando. Isso em casas de classe média pra cima, pois as construtoras que fazem habitações populares parecem considerar que banheiro de pobre tem de ser uma porcaria. Parece meio bobo, não é? Mas durante muito tempo fazer as tais necessidades fisiológicas era motivo de vergonha. Ir ao banheiro tinha de ser uma coisa meio clandestina. E o ambiente era de ruim a péssimo. Era pra gente entrar, fazer o que era preciso e sair depressa, com nojo. Certa vez, há uns 40 anos, estava conversando com uma colega de trabalho e ela pediu licença: – Vou ao banheiro e já volto. Estou apertada para... – fez uma pausa, ficou corada e continuou – ...lavar as mãos. Brinquei: – Nunca vi ninguém ficar apertado para lavar as mãos. Uma cena de um filme surrealista de Luís Buñuel, O Discreto Charme da Burguesia, aborda o que é vergonhoso ou não é. Um monte de gente está em volta de uma mesa, mas não tem comida, pratos, talheres. As pessoas não estão sentadas em cadeiras, mas em vasos sanitários. De repente, alguém pede licença e entra num cômodo fechado, tranca a porta e traça uma comida. Há muito imagino que isso de encarar como vergonhoso o ato de ir ao banheiro – que felizmente não existe mais – foi trazido por europeus. Nossos índios não tinham isso, viviam de bem com a natureza e com o que ela exige da gente. Nos pré-
50
Junho 2011 REVISTA DO BRASIL
dios antigos das cidades europeias, os banheiros são poucos e coletivos, um por andar ou às vezes nem isso, um só no andar térreo. No Brasil também eram escassos. Bares raramente tinham banheiro, e quando tinham (isso permanece em muitos) parecia um chiqueiro. Na minha cidade, só um bar tinha banheiro. Um luxo! No campo de futebol, nem no vestiário tinha banheiro. Eu ficava admirado com as mulheres, que iam assistir aos jogos e aguentavam o tempo todo ali, enquanto os homens – principalmente no intervalo – corriam para o mato. Na cidade toda, poucas casas tinham a chamada “privada patente”, essa de vaso sanitário, dentro de casa. O que havia era uma casinha com uma fossa, que servia também pra gente jogar coisas indesejadas. Meu pai tinha um chicote de três pernas que era uma barra no lombo da gente. Um dia meu irmão menor, depois de apanhar, jogou o chicote na “privada”. E era um ambiente também para coisas meio clandestinas. Por exemplo: fumar escondido, como certa vez peguei meu irmão mais velho. Ele pediu pra eu não contar aos meus pais. Voltamos juntos para dentro de casa e eu, com 4 ou 5 anos de idade, disse para meu pai e minha mãe: – O Toninho não tava fumando na privada não, viu? Ele tava era fazendo cocô. Eles caíram na risada e ficaram sabendo que o Toninho fumava. Não o castigaram. Na zona rural, muita gente não tinha nem “casinha”. A moita de bananeiras era o mais tradicional banheiro rural. Mas, voltando ao início, por que lembrei isso tudo vendo casarões que viraram cortiços? É que há cortiços em que moram centenas de pessoas só com dois banheiros. Imagine as brigas de gente com dor de barriga esperando a fila andar. Há muitos anos, fazendo uma reportagem, perguntei a uma líder do movimento dos moradores de cortiço qual era seu maior sonho. Ela respondeu com os olhos brilhando: – Morar numa casa que tenha um banheiro só pra minha família.