Maria da penha Cinco anos da lei que mudou muitas vidas
nº 62
rodas rebeldes Ciclistas lutam por seu espaço nas cidades
longe do veneno Prazeres e dificuldades da produção orgânica
agosto/2011 www.redebrasilatual.com.br
contador de histórias I ssN 1981-4283 62 9
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R$ 5,00
Fernando Morais, biógrafo de Olga, Assis Chateaubriand e Paulo Coelho, investigou a missão secreta dos cinco cubanos presos nos EUA há 13 anos por não trair seu país
Cartas Núcleo de planejamento editorial André Luis Rodrigues, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Jailton Garcia Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares www.redebrasilatual.com.br
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Jonisete de Oliveira Silva, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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Que bobagem... Inventam de tudo do cigarro, só porque não gostam de fumaça. Me criei em lavouras de fumo, carreguei, brincávamos em cima dos fardos já prontos para exportação. Adoro até hoje aqueles tempos, aquele cheiro de tabaco cru. Nunca, jamais eu vi algum familiar ou vizinho ficar doente. Triste, muito triste isso. Luiz Carlos Pauli, Porto Alegre (RS)
Maldita fumaça Essa matéria está excelente (“O passivo do fumante”, edição 61). Cumpriu seu papel com uma abordagem muito completa. Conheci gente que ficou doente por ter trabalhado com fumo, os agricultores ficam sujeitos à vontade das empresas, sem contar o problema dos agrotóxicos, que, é claro, não estão apenas nesse tipo de cultura. Muito informativa. E não precisa acabar com as lavouras de fumo, para não frustrar os fumantes. A questão é como essa cadeia opera. Natália Pianegonda, Porto Alegre (RS) Essa reportagem vale ouro. Achei importantíssima, pois mostra todas as dificuldades dos cultivadores e plantadores do fumo, suas doenças adquiridas e como são explorados por atravessadores. E ainda não existe nenhum meio de o nosso ministro da Agricultura pôr em prática um plano de ajuda a essas pessoas. José Aguiar, São Paulo (SP) E as outras lavouras? O “agrobusiness”? Ah, já sei, não têm esses problemas, simplesmente porque não têm trabalhadores. A máquina substituiu todos. Será que as lavouras de fumo são as que estão na pior situação entre todas? Já perguntaram para os lavradores se eles gostariam de trocar de ramo? Sou fumante e não quero que o cigarro acabe. Com essas atuais paranoias antifumo, percebi que qualquer coisa vira pretexto para ONGs antitabagistas falarem mal. Claudio D’Amato
Mortes na floresta “Medo até de chorar.” Deveria ter sido essa a frase da capa da Revista do Brasil (“Medo na floresta”, edição 61). Para chamar mais a atenção das autoridades sobre a impunidade dos responsáveis pela morte dos trabalhadores rurais do norte e nordeste do Brasil. Parabéns pela reportagem. Deusdedite A. de Matos, Santo André (SP) O problema dos crimes agrários se arrasta há décadas e as autoridades fazem vista grossa. Em tempos de governos Lula e Dilma, não era para conter a impunidadedos mandantes e assassinos? O Brasil mudou em alguns pontos, mas parece que nada muda com relação às questões agrárias. Absalão Bandeira de Castro, Pentecoste (CE)
Boraceia A reportagem está muito interessante (“No colo da Serra”, edição 61). Fico feliz que ainda existam respeito e preocupação com o povo indígena, que eles tenham espaço e força para manter vivas sua tradição e cultura em meio a tanta transformação no mundo. Gisely Arbitrariedade Ao ler a reportagem da edição 61 “Caminho para o entendimento” (sobre a representação de trabalhadores em seu local de trabalho), lembro que no mês passado fui demitido porque apresentei dez propostas que iriam melhorar as condições dos trabalhadores. Segundo me informaram, isso não é papel de “chefe”. Robinson Zamora, São Paulo (SP)
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
Índice
Editorial
10. Cidadania
Cinco anos depois, Maria da Penha fala dos avanços da lei
14. Mundo
A crise do capitalismo e as novas marchas da juventude
19. Análise
Flávio Aguiar: a zona do euro numa sinuca de bico
20. Peru
Depois do susto, os peruanos derrotam o fujimorismo nas urnas Kevin Lamarque/REUTERS
22. Trabalho
Em Capanema (PR), um foco de resistência à cultura do agrotóxico
26. Capa
Fernando Morais mergulha numa missão secreta contra o terror
Protesto nos EUA: conservadores criam a crise, mas mantêm a cartilha do liberalismo
32. Memória
Minoria rica e cega
Romaria no Araguaia celebra os que deram a vida por uma causa
34. Comportamento
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Ciclistas peitam a negligência de governos para ocupar seu espaço
40. Cinema
ronaldo alves
Os 70 anos de Cidadão Kane, o clássico que nunca envelhece
Poesia e cantoria na Semana Roseana
42. Viagem
O sertão preserva as trilhas literárias de Guimarães Rosa
Seções Cartas 4 Destaques do mês
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Lalo Leal
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Mauro Santayana
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Crônica: B.Kucinski
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unca antes na história do capitalismo os Estados Unidos haviam sujado seu boletim com nota rebaixada por uma agência de classificação de riscos. O rebaixamento registrado no início de agosto pela agência Standard&Poor’s causou alvoroço nos mercados do mundo. No dia em que este texto era finalizado, o índice da Bolsa de São Paulo acusava queda de 8,08%, a maior desde a crise de 2008, a mesma da qual se sentem os efeitos até hoje mundo afora. E a S&P é a mesma que dava 10 com louvor às contas do Lehman Brothers dias antes de a instituição falir, deixar o sistema bancário americano com o mico na mão e dar origem ao colapso-dominó... de 2008. Ora, remoer o passado para quê, não é mesmo?, questionam os desmoralizados, porém ainda poderosos, gerentes do cassino global. Mesmo com o moral baixíssimo, não abrem mão de sua cartilha vencida, que prega a redução – se possível a nada – do papel do Estado, das despesas dos países com educação, saúde e proteção social. Essa elite, rica e cega, sustenta, por exemplo, o chamado Tea Party – o movimento de ultradireita norte-americano que simboliza o poder da minoria a esculhambar a democracia, inclusive aquela tida como a maior do mundo –, onde o presidente democrata é refém dos rivais republicanos; e de onde parte o bloqueio econômico que há 50 anos tenta estrangular a sobrevivência de Cuba só porque uma revolução botou para correr dali os que dela faziam a casa da mãe Joana. Por influência dessa regência mórbida do liberalismo, o pesadelo americano foi assombrar a Europa, deixou estarrecidas as populações da Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália e está prestes a pegar belgas e franceses na próxima esquina. E se uma minoria rica e cega ainda tem poder e influência para ditar rumos para a economia global, não é de surpreender que as recentes manifestações populares que proliferam no velho mundo comecem a pôr em xeque a própria democracia. Parece ser esta a ambição dos que insistem no beco do neoliberalismo sem saída: por que remoer o passado e buscar outros modelos, sustentáveis, de desenvolvimento e de democracia, não é mesmo? Para a frente andemos todos, dizem, ainda que dois passos adiante esteja o abismo que cavaram com suas cartilhas. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Racismo na escola
Uma professora chamada em 2009 de “macaca” pela diretora da escola em que leciona ainda convive com tristeza e falta de prazer no trabalho. A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo informou que não faz campanhas preventivas contra assédio moral por considerar que se trata de caso isolado. http://bit.ly/rba_racismo_escola
Foi ele
Outros destaques Crimes no campo: debate sobre federalização provoca polêmica http://bit.ly/rba_crimes_no_campo Ministério da Justiça facilita regularização de estrangeiros http://bit.ly/rba_anistia_estrangeiro
Fora do armário Ganhou o nome de Alexandre Ivo, morto em crime de homofobia no ano passado, no Rio, o projeto de lei que transforma em delito o ato de discriminação a homossexuais. Angélica Ivo, mãe do rapaz assassinado aos 14 anos, considera que a certeza de impunidade vitimou seu filho. http://bit.ly/rba_anti-homofobia. Essa mesma certeza moveu os agressores de pai e filho em S.J. da Boa Vista, no interior de São Paulo. A Justiça negou a prisão dos seis responsáveis. Afinal, foi só um engano. Eles achavam que os dois, por estarem abraçados, eram gays. http://bit.ly/rba_agressao_pai-filho
arquivo pessoal
A família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, jornalista morto pela ditadura, avançou na tentativa de obter o reconhecimento do Estado de que o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o responsável pelo fato. Todas as testemunhas presentes ao Fórum João Mendes, em São Paulo, confirmaram: foi Ustra quem ordenou as torturas que resultaram na morte de Merlino, em 1971. http://bit.ly/rba_ustra_tortura
Angélica: impunidade cria assassinos
Para “colaborar” com a não violência, os vereadores de São Paulo criaram o Dia do Orgulho Hétero.
As grandes obras em São Paulo estão empurrando as classes mais baixas para regiões cada vez mais distantes do centro. Disposto a investir em um modelo excludente de revitalização da região central, o prefeito Gilberto Kassab enfrenta ações de moradores e críticas de urbanistas. http://bit.ly/rba_kassab_ifigenia. Sobrou também para a população de Itaquera, que sofre com a especulação imobiliária criada pela construção do estádio do Corinthians – http://bit.ly/rba_kassab_itaquera. As ações municipais na zona leste chamaram a atenção também do Ministério Público Estadual: Kassab quer pagar R$ 62 milhões por um terreno que vale R$ 15,4 milhões. http://bit.ly/rba_kassab_terreno 6
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Mauricio Morais
Revolta em São Paulo
A região da Santa Ifigênia está na mira do prefeito
NaTV www.tvt.org.br
Um ano, já? wilson dias/abr
Com açúcar, com afeto
No segundo dia de agosto, o governo lançou o Plano Brasil Maior, de incentivos à indústria, incluindo estímulos fiscais e desoneração da folha de pagamentos. As centrais sentiram-se excluídas e boicotaram. “As nossas propostas têm de ser levadas em consideração”, protestou o presidente da CUT, Artur Henrique. Dois dias depois, a presidenta Dilma Rousseff pediu desculpas e garantiu que os sindicalistas serão ouvidos. http://bit.ly/rba_centrais http://bit.ly/rba_isencao_ipi
P Victor Caballero/Reuters
Retrocesso
O presidente do Chile, Sebastián Piñera, enfrenta os maiores protestos desde a redemocratização. Os manifestantes avisam: é preciso refundar o sistema político do país. Pouco afeito a mudanças, Piñera lançou mão de um decreto do ditador Augusto Pinochet para reprimir os atos. http://bit.ly/rba_chile_reprime
Em 23 de agosto de 2010 entrou no ar a TVT, a primeira emissora concedida a um movimento social organizado rojeto ousado de comunicação, a TVT – Fundação Sociedade Comunicação Cultura e Trabalho –, mantida pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, chega a mais de 300 cidades brasileiras e mostra a informação como ferramenta de tecnologia social, estimula a transformação e a inclusão. Com produção colaborativa de conteúdo, a emissora prova que é possível dar voz aos atores sociais, à comunidade que produz cultura, trabalho, luta e expressa a diversidade brasileira. A ideia de movimento e inovação estabelece novas formas de relação por meio da televisão, da internet e das tecnologias móveis. É, assim, algo em construção e capaz de se transformar no decorrer do processo, de se adaptar de acordo com os pares e com as possibilidades que a vida permitir – conduzido por princípios claros, que ajudam a construir o caminho e a escolher com quem percorrê-lo. O objetivo é conectar pessoas, promover o acesso a informação, cultura e lazer, no compromisso com o interesse público, com a democracia e com o trabalhador. No ar de segunda a sexta, das 19h às 19h30, o Seu Jornal exibiu neste primeiro ano mais de 300 vídeos de comunicação colaborativa. São vários espaços de participação todos os dias.
Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br
Geralmente, a imprensa fala sobre as coisas e as pessoas. A TVT é diferente, produz notícia a partir da sociedade, participa como veículo das relações entre indivíduos e coletivos. Além do Seu Jornal, são cinco programas: segunda-feira, Memória e Contexto; terça, Clique e Ligue; quarta, Bom para Todos; quinta, Melhor e Mais Justo; e sexta-feira, ABCD em Revista. Programas de participação, contextualização de fatos históricos, inclusão digital, prestação de serviços, opinião e reflexão sobre um Brasil que consegue se enxergar na tela da TV. A TVT experimenta a comunicação do futuro, em conjunto com a sociedade organizada e com os atores anônimos das redes sociais e das novas mídias. Os conteúdos desmistificam a tecnologia. A simplicidade na produção define a criação de uma nova metodologia. E lá se vão 365 dias... Conquistas, dúvidas, direitos, debate, música, arte, memória, história, feitos no dia a dia com todos e para todos. Assim é a TVT.
NoRádio Jornal Brasil Atual, as notícias que os outros não dão Informação e análise. Cidadania, movimentos sociais e cultura. De segunda a sexta-feira, das 7h às 8h, na FM 98,9, para toda a Grande São Paulo REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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Desenvolvimento Social e Combate à Fome
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Não é mais o pobre correndo atrás da ajuda do Estado.
É o Estado chegando aonde a pobreza está. Nos últimos anos, 28 milhões de brasileiros saíram da pobreza e 39 milhões entraram para a classe média. Mas é preciso melhorar a vida de 16 milhões de pessoas que ainda vivem na pobreza extrema. O Brasil Sem Miséria foi criado exatamente para ir aonde elas estão. Para isso, desenvolveu a “Busca Ativa”, que articula ações do Governo Federal, estados e municípios para localizar as pessoas extremamente pobres. No campo, o principal objetivo é aumentar a produção. Nas cidades, qualificar a mão de obra e identificar oportunidades de emprego e renda. E, de forma global, garantir o acesso dos mais pobres a serviços de saúde, educação e água. Principais ações do Brasil Sem Miséria • Beneficiar dois milhões de pessoas com qualificação profissional, intermediação de emprego, microcrédito e incentivo à economia popular e solidária.
• Incluir mais 800 mil famílias no Bolsa Família e ampliar o limite para a concessão do b e n e f í c i o de t rê s p a ra c i n co f i l h o s, beneficiando 1, 3 milhão de crianças e adolescentes. • Atender 750 mil famílias com cisternas e outras tecnologias para universalizar o acesso à água. • Beneficiar 250 mil famílias com fomento de R$ 2.400 a fundo perdido para a compra de insumos e equipamentos agrícolas. Assistência técnica e distribuição de sementes para milhares de famílias de agricultores pobres. • Ampliar de 66 mil para 255 mil o número de famílias em situação de extrema pobreza beneficiadas pelo Programa de Aquisição de Alimentos. • Criação da Bolsa Verde, para estimular famílias rurais a preservarem o meio ambiente.
A c e s s e o s i t e w w w . b r a s i l s e m m i s e r i a . g ov . b r e i n f o r m e - s e m a i s s o b r e o p l a n o . P a r t i c i p e .
cidadania
As conquistas de Maria da Penha A lei inspirada na luta dessa mulher contra a violência completa cinco anos. Para ela, a sociedade evoluiu, mas é preciso pressão sobre o poder público para que as pessoas se sintam mais encorajadas e esclarecidas Por Cida de Oliveira
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riada em 7 de agosto de 2006, a Lei 11.340, ou simplesmente Lei Maria da Penha, é uma das mais lembradas no país. Pesquisas recentes apuraram que mais de 90% dos entrevistados a conhecem ao menos superficialmente. Conjunto de medidas para assegurar à mulher o direito à integridade física, sexual, psíquica e moral, a legislação tem alguns de seus artigos contestados. Para alguns juristas, fere o princípio da isonomia, por exemplo, ao estabelecer que a mulher disponha de mais meios de proteção e de punição contra o agressor. Em cinco anos, foram criados 104 equipamentos públicos em 60 municípios de 23 estados, como juizados e núcleos especializados ligados a promotorias. A luta pessoal de Maria da Penha Maia Fernandes, 60 anos, contra a violência do ex-marido (que a deixou paraplégica) agigantou-se para uma das mais importantes conquistas de cidadania dos últimos tempos. Nesta entrevista, ela fala sobre os avanços tímidos, porém consistentes, promovidos pela lei.
Em sua avaliação, o que mudou nesses cinco anos de vigência da Lei Maria da Penha?
As coisas têm mudado, mas não com a rapidez que a mulher deseja. Essa mudança, infelizmente, tem acontecido mais nas grandes cidades. As pequenas ainda não contam com políticas públicas que atendam de maneira satisfatória as mulheres. A maioria ainda necessita trabalhar mais essa questão, oferecer equipamentos, principalmente os Centros de Referência da 10
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Mulher e as Delegacias da Mulher. Com os centros, a mulher passou a ter onde se inteirar, esclarecer suas dúvidas e ficar mais segura para o caso de fazer a denúncia. E as delegacias têm de dar apoio. Quando existe uma delegacia especializada ou uma delegacia comum com equipe multidisciplinar preparada para atender uma vítima de violência, a mulher, que chega muito fragilizada, se sente encorajada a denunciar. Por que esses serviços ainda não existem em todos os lugares?
Por falta de cobrança, de pressão. Nos locais onde o movimento da mulher é mais presente e articulado, o político cede à pressão da população que reivindica. Ouvi uma vez algo muito interessante: “O governo nunca concede, raramente concede, mas ele cede à pressão da sociedade”. E nesse momento a política pública é criada. Nas grandes cidades, principalmente nas capitais, há instituições que se articulam e agilizam o processo de implantação de mecanismos que permitam a aplicação da lei. No pequeno município, muitas vezes não existe nem a delegacia, o Ministério Público não está presente. Então é necessário que o Conselho da Mulher daquele estado consiga a criação, nos pequenos municípios, dos equipamentos que trabalhem essa questão. Também entre populações indígenas e quilombolas?
Exatamente. Para que mulheres de todas as regiões e etnias sejam atendidas. É necessário mostrar para o poder público que ele não está atento a essa questão, embora já saiba bem disso. E, na hora que a pressão vem, geralmente a política é criada. Aos poucos, a informação vai chegando a esses locais pela mídia, que tem um papel muito importante, pela igreja, por uma entidade, uma palestra, folhetos. Já concedi entrevista para revistas evangélicas que alcançam esses lugares. É preciso informar a mulher para despertar nela, se for vítima de violência, a possibilidade de sair dessa situação. Em muitas cidades as Delegacias da Mulher ainda não funcionam 24 horas por dia...
Há muitas reclamações de mulheres que vão à delegacia no fim de semana, quando estão mais vulneráveis à violência. Isso porque aumenta o convívio do casal, o problema da bebida, dos amigos, fatores que influenciam esse momento de atrito, de discórdia. Numa hora dessas, é muito importante que a mulher possa contar com um local para denunciar a violência que acaba de sofrer.
jr panela
É preciso informar a mulher para despertar nela, se for vítima de violência, a possibilidade de sair dessa situação REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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Antônio cruz/abr
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De acordo com a última pesquisa feita pelo instituto Ipsos, 94% da população sabe que existe a Lei Maria da Penha. Pode não ter conhecimento de como funciona, mas sabe que é para defender a mulher
As mulheres continuam escondendo que são vítimas de violência?
Elas foram criadas para manter as aparências, para manter a harmonia do lar, para não externar o que acontece entre quatro paredes e o que acontece de negativo em relação ao homem. E muitas ainda acreditam que, se apanharam, é porque alguma coisa fizeram para merecer. O homem, por sua vez, foi criado com a ideia de que é superior e a mulher lhe deve obediência. Enfim, um achando que é superior e outro que é inferior. A lei veio para mostrar que ambos são iguais, que não existe diferenciação de direitos nem de deveres. As estatísticas demonstram que, ano a ano, algo está mudando. De acordo com a última pesquisa feita pelo instituto Ipsos, 94% da população sabe que existe a Lei Maria da Penha. Pode não ter conhecimento de como funciona, mas sabe que é para defender a mulher. A que você atribui essa popularidade da lei?
Violência é uma realidade muito próxima da maioria das mulheres. E não são só elas que têm interesse em que essa lei funcione. Os homens também. A maioria deles não é de agressores e pensa na sua descendência, em filha, neta, sobrinha. Eles sabem que nenhuma delas está livre de sofrer violência doméstica, no relacionamento afetivo, num momento em que eles não estejam mais presentes para defendê-las. Se trabalharem pelo cumprimento da lei, sua descendência será beneficiada no futuro. Como você vê a reação dos homens?
As pessoas conversam muito comigo. Uma vez, um motorista de táxi me disse: “Graças à sua lei, voltei a viver com a minha mulher”. Perguntei por 12
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que, e ele: “Ah, porque eu não estava respeitando; meu filho acabava nervoso quando eu voltava pra casa porque eu tinha bebido. Precisei depois levá-lo pra fazer um tratamento psicológico. Eu não escutava as considerações da minha mulher, e ela me denunciou. Quando cheguei na delegacia, eu escutei o que a delegada tinha para me dizer. E hoje sou outra pessoa graças à sua lei”. Nesse caso a lei não foi punitiva, e sim educativa. Tem mulheres que chegam e dizem assim: “Desde que meu filho foi preso, meu marido nunca mais levantou a mão pra mim”. Porque, no momento em que a polícia fez o flagrante, eles repensaram sua conduta. Quando o Estado cumpre o seu papel, a gente espera que as pessoas respeitem mais. Assim é uma lei. Conversando com outro motorista, ele me perguntou: “A senhora é a mulher da lei? Ave Maria, mas é terrível essa lei, né?” Perguntei: “O senhor tem filha? E se a sua filha casasse e o marido batesse nela, o que o senhor faria?” “Em filha minha, homem nenhum bate.” “E se o senhor morrer, quem é que vai acudir sua filha?” Ele ficou sem resposta. E eu disse: “Então, é pra isso que a lei veio: para garantir que sua filha não apanhe de homem”. E ele concordou. Falta reflexão. Violência contra a mulher independe de classe social?
Sim. Como quem mais recorre às delegacias da Mulher são aquelas de baixa renda – as de classes mais favorecidas têm seus advogados –, tem-se a ideia de que é a pobre que sofre mais violência doméstica. Mas tanto quem bebe cachaça como quem bebe uísque, se cometeu violência, é agressor da mesma maneira. Muda apenas o tipo de bebida, mas no seu eu há presente a agressividade. E a presença do álcool intensifica isso. É o problema mais sério. Antes da lei, as mulheres denunciavam e tiravam a queixa depois porque o marido se comprometia a não mais agredir. Ele ficava um período legal e depois voltava a agredi-la, e ela voltava para denunciar. Hoje a denúncia não pode mais ser retirada. Então a reincidência é muito pequena nesses casos de relacionamento conjugal. Mas ainda é grande no caso de filhos e parentes próximos contra mães, principalmente por causa das drogas. O fato de termos uma presidenta aumenta o respeito e a valorização da mulher, diminuindoa violência?
Eu acredito. Até porque quem está à frente da Secretaria de Políticas para as Mulheres (Iriny Lopes), é uma militante da causa, foi uma das relatoras da lei. Ela conhece o que precisa ser feito para fortalecer a lei, ou seja, sensibilizar e estimular a criação das políticas públicas.
LaloLeal
Na Grécia, a arte contra a barbárie
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a Grécia as televisões mostraram, recentemente, imagens de bombas e gente correndo em meio a nuvens de gás lacrimogêneo pela praça central de Atenas. Era a resposta do governo às manifestações de rua contra a submissão do país às determinações do FMI, da União Europeia e do Banco Central Europeu. Organismos internacionais que, para conceder novos empréstimos aos gregos, impuseram a privatização de vários serviços controlados pelo Estado e a demissão de cerca de 150 mil trabalhadores do serviço público. A democracia grega subjuga-se ao poder real no mundo globalizado pelo capitalismo. Não importa se os deputados foram eleitos pelos trabalhadores ou pelos empresários. Todos são obrigados a votar de acordo com as regras impostas de fora. Fico a imaginar a saia-justa de parlamentares do partido socialista, eleitos por uma base de servidores públicos, tendo de votar medidas que colocarão seus eleitores na rua. Mas ordem é ordem, e o partido, no poder, acatou as determinações externas. É por isso que na praça, em frente ao Parlamento grego, um cartaz com a foto do primeiro-ministro Giorgius Papandrou tinha como legenda: “Funcionário do ano do FMI”. Nessa praça armaram-se dezenas de barracas para abrigar os indignados. Eles não admitem mais ser representados por deputados cada vez menos comprometidos com suas bases. Em meio às barracas e aos jardins, mesas de debates se sucedem, aprofundando as análises da crise grega, mostrando que suas origens estão nas próprias raízes do capitalismo. Mais uma vez o conjunto da população é obrigado a abrir mão de inúmeras conquistas sociais para satisfazer os apetites dos grandes conglomerados financeiros internacionais. A indignação só aumenta. A poucas quadras da praça, a resistência surge de outra forma. Dezenas de eventos marcam a realizaçãodo festival internacional de música, teatro, dança e artes visuais, uma tradição moderna grega cujas raízes podem ser encontradas nas Panateneias, festas religiosas, esportivas e culturais rea lizadas há mais de 2.500 anos. Hoje, em meio à crise econômica, os espetáculos transcendem os limites dos palcos, incorporando-se à resistência popular.
Hoje, em meio à crise econômica, os espetáculos transcendem os limites dos palcos, incorporando-se à resistência popular Seus organizadores se colocam diante de perguntas acerca do papel da arte e da cultura nesse quadro ou sobre quão otimista você precisaria ser para olhar para a frente e por cima de tudo isso. O coordenador do festival, Yourgos Loukos, responde: “Estamos convencidos de que a arte aproxima as pessoas e isso pode nos imunizar contra o barbarismo, transformando-se numa ferramenta capaz de abrir nossos olhos em direção a novos caminhos”. É com essa perspectiva que público e artistas reúnem-se por mais de dois meses, de junho ao começo de agosto, em arenas milenares, como o Odeon de Herodes Atticus, inscrustado ao pé da Acrópole, com sua estrutura arquitetônica original preservada, mas dotado, agora, dos mais modernos recursos tecnológicos de luz e som. Por palcos como esse passam clássicos como o Ballet Bolshoi e a Filarmonica della Scala, de Milão, ao lado de grupos de arte de vanguarda. O Festival de Atenas quer “organizar o nosso pessimismo”, na mesma medida em que leva ao público “a diversidade, o espírito de aventura e a abertura para novos conhecimentos”. Formas de oferecer ao mundo relações humanas mais sensíveis, antepondo-as à violência brutal dos mercados e, com isso, estreitando a distância entre os manifestantes políticos da Praça Sintagma e os artistas de todos os palcos atenienses. Em vez de espetacularizar, sem explicar, os conflitos entre polícia e manifestantes na praça de Atenas, a televisão prestaria uma grande contribuição à sociedade se mostrasse a beleza da arte mundial reunida na Grécia. Não seria isso que poria fim à crise, mas, com certeza, tornaria nossa vida um pouco mais suave e digna de ser vivida. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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Nau sem rumo Parte do bloco que aderiu ao euro reclama e põe em dúvida o processo de integração. Crises desnudam padrões insustentáveis de desenvolvimento e deprimem até a crença na democracia Por Adriana Cardoso, Fabíola Ferreira e Vitor Nuzzi
Susana Vera /REUTERS
o último dia 22 de julho, dois ônibus partiriam lotados da Praça Catalunha, em Barcelona, rumo a Torrejón de Ardoz, na região metropolitana de Madri. Seus passageiros iriam juntar-se à Marcha Popular Indignada – protesto itinerante contra as medidas econômicas impostas por governos europeus frente à crise financeira –, desencadeada pelo movimento conhecido como Democracia Real Já, ou 15-M. O nome lembra o dia (15 de maio) em que manifestantes mobilizados a partir das redes sociais, como Facebook e Twitter, foram às ruas. Tomaram a praça da Porta do Sol para ali acampar e chamar a atenção da sociedade para a insustentabilidade do modelo econômico vigente no mundo. Da Praça Catalunha, onde se realizou uma acampada em seguida à de Madri, o 15-M passou a articular atividades em diversos bairros com o objetivo de disseminar a bandeira da democracia direta. Outros espaços públicos foram ocupados. A Marcha Popular Indignada partiu em 25 de junho de seis pontos do território espanhol. Ao longo de cada trajeto, assembleias populares avolumavam reivindicações sociais. Em 23 de julho, a marcha chegou a Madri para entregar ao Parlamento o documento resultante da peregrinação por mais de 300 povoados e cidades espanholas. A experiência constatou dificuldades comuns a diferentes comunidades, como os cortes em investimentos públicos em saúde e educação. Os amigos José, Nestor e Mônica, funcionários de um hospital próximo de Barcelona, conversam com a reportagem. “Sempre participei dos debates na Praça Catalunha, embora nunca tenha ficado acampado. Agora, com cortes de recursos públicos do hospital, eu não podia deixar de participar da chegada a Madri”, disse José. “Luto pelo aumento do meu salário, que vem sendo cortado, mas também pelo direito das pessoas à saúde. O quadro de pessoal encolheu, mas o volume de atendimento não”, comentava Mônica. Muitos militantes do 15-M estão entre os 40% da população jovem que não conseguem emprego. Na chegada a Torrejón de Ardoz, os ativistas começaram a andar rumo a Madri, onde encontraram os in-
Paul Hanna/REUTERS
tegrantes das outras cinco rotas da marcha e simpatizantes vindos de Portugal, Itália, França e Grécia. No dia seguinte, uma multidão caminhou da estação Atocha à Porta do Sol para protestar contra o capitalismo e a democracia representativa, que acusam de limitada – “Que no, que no nos representa!”, entoavam, denunciando que interesses de empresários e banqueiros são postos acima das necessidades da maioria da população. Na segunda, 25, no Fórum Social organizado no Parque do Retiro, integrantes do 15Mlembravam que poderosas instituições estimularam as operações que fizeram a bolha especulativa explodir e hoje lucram com os desdobramentos da crise. Na Praça Sintagma, em Atenas, uma acampada com raízes similares às do 15-M espanhol reage aos recentes cortes de direitos sociais anunciados pelo governo grego como condições impostas pelo Parlamento Europeu, Alemanha, França e Fundo Monetário Internacional (FMI) para socorrer as finanças do país. Na Espanha, o Congresso, de maioria socialista, aprovou o aumento da idade mínima para aposentadoria e a redução de direitos dos trabalhadores. Em Barcelona, chovem protestos contra a aprovação de um pacote de cortes de direitos sociais pelo Parlamento da Catalunha. A essa situação os movimentos associam a crise dos Estados Unidos, e dão dimensão global ao problema.
Paul Hanna/REUTERS
Quanto custa a entrada? Por toda a Europa, a população, sobretudo jovem, pergunta se o custo da entrada para a zona do euro não está saindo mais caro que o combinado. Em julho, Madri foi palco de grandes protestos (fotos)
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mundo Uma solidariedade entre nações manifesta-se em nova marcha, que deixou Madri no dia 26 de julho rumo ao Parlamento Europeu, em Bruxelas, Bélgica, com chegada prevista para 15 de outubro. No dia 17 de setembro, os peregrinos esperam se encontrar em Paris com militantes franceses e de Portugal, Itália, Grécia, Suíça, Alemanha, Bélgica, Holanda, Inglaterra e Irlanda. Na mesma data, 20 mil pessoas acamparão em Manhattan, Nova York, para perturbar a ordem financeira em Wall Street. Com fé no lema “ir devagar para chegar longe”, os indignados consideram a crise fruto de uma falsa ideia de democracia – sem poder para as maiorias – que rege o planeta. Autodefinido como “otimista trágico”, o sociólogo português Boaventura Sousa Santos, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, vaticinou em entrevista recente: “Provavelmente, daqui a um ano, estaremos na mesma situação que os gregos”. Medidas de austeridade deverão, segundo ele, ser sentidas em Portugal a partir deste agosto. “São os transportes públicos a aumentar 15%, as quebras de salário, o aumento do desemprego. As pessoas vão deixar de poder cumprir os seus compromissos e vão entregar as casas e os carros comprados a prestações.” Não é um sentimento isolado. Todo o esforço para preservar a zona do euro, posta em xeque por “sócios minoritários”, parece desconsiderar que há pessoas por trás dos números sobre gastos públicos ou déficit fiscal. Sousa Santos vê um período de “transição paradigmática”, um problema de civilização que “tem a ver com o tipo de sociedade que hoje temos e toma, por exemplo, a natureza como um recurso inesgotável” e não se resolve em uma geração. Mas, na questão econômica, algumas medidas são de natureza urgente. “Se não houver uma regulação dos mercados financeiros, o euro desaparece e, com ele, desaparece a Europa como a conhecemos.” O euro circula desde 2002. É usado por mais de 300 milhões de pessoas em 17 dos 27 países que compõem a União Europeia – Reino Unido e Dinamarca estão entre os dez integrantes do bloco que decidiram não adotar a nova moeda. 16
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Violência nas ruas No berço da democracia ocidental, os protestos gregos têm sido reprimidos com força bruta
Jose Manuel Ribeiro/REUTERS
Tragédia grega
Ironia trágica Portugueses fazem paródia com a Revolução dos Cravos (1974), que os livrou da ditadura política
Zona do euro Países 17* População 332 milhões Desempregados 15,6 milhões Taxa de desemprego 9,9% Inflação anual 2,5%
John Kolesidis/REUTERS
Fonte: Eurostat * Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Malta e Portugal
E já existe quem considere possível a saída de países de economia “mais frágil”. O pesquisador João Rodrigues, da Universidade de Coimbra, define assim a situação de Portugal: “Estamos entre um euro do qual não podemos sair e no qual não podemos ficar”. Ele considera o Banco Central Europeu refém dos interesses do capital financeiro. “O Consenso de Washington é hoje o Consenso de Bruxelas”, diz, associando o tratado do neoliberalismo à sede da União Europeia. Para o sociólogo e economista Vicenç Navarro, professor da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, o problema da falta de estabilidade do euro deve-se ao fato de que não há um Estado que dê suporte contra as avalanches especulativas. “O poder do capital financeiro nos países da UE-15 (os primeiros a adotar a moeda) é excessivo e atende as classes dominantes de cada país da zona do euro.”
Navarro afirma que tais classes e grupos transnacionais formaram a estrutura da zona do euro com o objetivo de enfraquecer o mundo do trabalho. “Hoje estamos vendo a aplicação de políticas de corte neoliberal (desregulação dos mercados de trabalho, enfraquecimento das convenções coletivas e dos sindicatos e redução do Estado de bem-estar social), que têm o propósito de reduzir os salários e debilitar as classes trabalhadoras.” O mercado de trabalho mostra comportamento diferenciado entre os países. A nave-mãe do continente, a Alemanha, exibe taxa de desemprego de 7%, enquanto a Espanha fechou o segundo trimestre com 21% e a Grécia, com 16%. Reunião do Conselho da União Europeia, em julho, aprovou novas regras para auxílio a paísesem dificuldade, com atenção especial à Grécia. Mas o ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, afirmou que não assinaria cheque em branco na compra de títulos da dívida de alguns países. “Um Estado que tenha problemas e seja ajudado terá, em contrapartida, de abdicar de parte da sua soberania em favor da União Europeia”, declarou à Agência Lusa. Para João Rodrigues, a questão central é que o bloco tem uma moeda única, mas não uma política econômica. E isso cria um clima anti-euro. “É uma crise sistêmica, não só de países.” O dilema é saber se o Velho Mundo caminhará para o incremento de sua integração ou para a desagregação. Os países com dificuldades já somam um universo considerável. “Se juntamos Itália e Espanha (a Portugal, Grécia e Irlanda), estamos a falar de 35% da zona do euro”, observa. O professor André Martins Biancareli, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concorda que o euro está em uma encruzilhada.
O que um país como a Grécia poderia fazer, por exemplo? “Uma solução seria baixar a taxa de juros e subir a de câmbio, mas a Grécia não tem essa opção”, diz Biancareli. Sair da zona monetária comum também seria um risco, uma vez que toda a dívida do país está em euro. A situação de Grécia e Portugal assemelha-se à do Brasil dos anos 1980-90: o corte drástico de gastos mantém o país em uma roda-viva desestimulante, a dívida cresce, e a economia não. “É um processo muito doloroso e conflituoso.” Portugal, por exemplo, sofreu com a reestruturação em setores intensivos em mão de obra, como o têxtil. Avançou no setor de serviços, mas perdeu terreno na indústria. Em 1999, o desemprego estava em 4% – hoje, acima de 12%. Resultado: “É um dos países da Europa com maior insatisfação com o euro”, diz João Rodrigues. Embora, acrescenta o pesquisador da Universidade de Coimbra, “a adesão à moeda tenha ocorrido com entusiasmo”. Até porque, em alguns casos, significou a transição de ditaduras que duraram décadas para um espaço mais democrático. “Mas não houve valorização econômica”, lamenta.
Geração deprimida
A economia da Irlanda foi uma das primeiras a ruir. O euro foi introduzido em 1999 – quando o país era uma das nações mais prósperas do mundo – e começou a circular em janeiro de 2002, tomando o lugar da libra irlandesa. O historiador Gavin Reddin, 33, lembra que tudo ficou mais caro. “As taxas de juro, definidas pelo Banco Central Europeu, eram muito baixas naquele tempo e, em vez de poupar, começamos a tomar crédito em bancos para gastar com toda sorte de produtos de que não precisávamos”, recorda. No setor imobiliário, os bancos financiavam tanto o construtor quanto o comprador. A equação preços altos e juros baixos provocou uma bolha imobiliária que estourou com a crise de 2008. Muitos não conseguiram saldar dívidas, obras pararam e hoje, mesmo com preços mais baixos, ninguém tem dinheiro para comprar. Para Reddin, as desvantagens do euro foram inúmeras. “Perdemos autonomia. Quando crescíamos rápido nos idos de 2001, precisávamos de altas taxas de juro como forma de conter a inflação, REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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mundo porque os preços fugiam ao controle. E, quando houve o crash de 2008, precisávamos de taxas menores, mas outros paí ses da União Europeia não, e sofremos as consequências”, avalia. O euro e a União Europeia fracassaram, na opinião de Reddin, por juntar num “balaio de gatos” países de economias muito distintas. Ele acredita que o fim da moeda única está próximo – “a menos que a Alemanha tome a frente na gestão das fracas economias do bloco e pague por elas, o que não acredito que fará”. Tommy Tian, 30 anos, largou Shenyang, nordeste da China, rumo a Dublin, em 2001. “Mesmo que você chegasse aqui sem falar inglês, era mais fácil arranjar emprego, o salário era melhor.” Tommy trabalha em lanchonete e nunca caiu no conto do crédito fácil, mas viu amigos se endividarem. “Alguns voltaram.” Ele
mesmo não descarta retornar ao seu país. Antes, quer criar um pouco o filho em solo irlandês para que “aprenda inglês e possa ter uma vida boa na China”. Os italianos também adotaram o euro em 2002. Da noite para o dia, viveram uma experiência já vista pelos brasileiros, com sucessivas trocas de moedas e corte de zeros. Imagine que o país começou agosto com € 1 equivalendo a 2.000 liras. “Comerciantes e prestadores de serviços valeram-se do espírito de esperteza e ‘arredondaram’ produtos e serviços que custavam 1.000 liras para € 1”, lembra o piloto Antonio Ruju, 28 anos, da província de Nuoro, Sardenha. “A lira italiana nunca foi moeda forte, mas éramos mais ricos”, avalia. Ruju lamenta os dramas de seu país, em relação tanto à União Europeia como bloco quanto às trapalhadas do pri-
meiro-ministro Silvio Berlusconi. “Experimentamos o pior momento de nossa história. Como todo mundo sabe, nosso primeiro-ministro está envolvido em toda sorte de falcatruas e negócios escusos”, dispara. Empregado e com bom salário, Ruju não se sente feliz porque vê seus amigos infelizes e percebe o país deprimido. “Vivemos numa situação insustentável, mas creio que teremos de conviver com isso por mais alguns anos”, desabafa. Sua geração corre o risco de ter padrão de vida inferior ao de seus pais. O piloto tem amigos médicos, engenheiros e advogados que mandam currículos para dezenas de lugares e só recebem propostas para contratos de, no máximo, cinco meses, sem promessa de renovação, por ganhos de € 500 mensais. “Como alguém pode ter uma vida normal dessa forma?”
Em julho, o filme Capitão América entrou em cartaz. Enquanto o herói americano desbancava Harry Potter da liderança de bilheteria, na vida real um acordo no último minuto do segundo tempo entre governo e oposição evitou o risco de um calote norte-americano, situação razoavelmente comum nas economias latinas na década de 1980, mas impensável no caso da principal economia global. O professor da Unicamp André Biancareli afirma, com ironia, que Barack Obama “entregou a chave do cofre aos republicanos”. Durante semanas, o presidente democrata tentou um acordo que evitasse redução de gastos públicos, principalmente na área social. Mas o país ainda tropeça na busca pela recuperação. Cresceu abaixo do esperado no segundo trimestre (1,3%) e o consumo das famílias, principal componente do PIB, quase não aumentou. A taxa de desemprego ainda se mantém próxima dos 10%.
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Com dois filhos na faculdade, o faxineiro Elpídio Sanchez, 47 anos, morador do Bronx, em Nova York, diz que a vida está muito difícil. “Tudo está muito mais caro. Temos de trabalhar mais e cortar gastos. Para economizar, não ligamos o ar-condicionado no verão, ficamos em casa o tempo todo, não viajamos nas férias. Eu não tenho um carro e todo o meu dinheiro vai para os planos de saúde e para a educação dos meus filhos, que é o melhor que eu posso dar para eles”, conta Sanchez, que emigrou da República Dominicana para os Estados Unidos há 22 anos. Para ele, a política dos republicanos é míope por se limitar ao equilíbrio orçamentário e não levar em consideração a qualidade de vida e o futuro das pessoas. “Estão falando em cortar programas de auxílio aos idosos, que pagaram impostos a vida inteira, e aos pobres, que precisam de cuidados. Mas precisamos pensar também nas gerações futuras.”
Shannon Stapleton/REUTERS
Capitão América em ação
“Vamos fazer Wall Street pagar, não o povo”: americanos protestam contra cortes nas políticas sociais
Gaspar Santiago, 41 anos, pai de dois filhos, é diretor de segurança no edifício Rockefeller Plaza, em Nova York. Ele, americano nato, conta que está trabalhando entre 12 e 16 horas diárias para cobrir as despesas sobretudo com as hipotecas, cujos juros são astronômicos. “Com a economia ruim e o desemprego crescente, fica difícil encontrar trabalho com salário mais alto. Além disso, tudo está mais caro, mas meu salário permanece o mesmo”, reclama.
A prioridade, porém, é a disputa pela Casa Branca nas eleições do ano que vem. Para o economista norte-americano Paul Krugman, enquanto há uma “catástrofe” em vários níveis, como afirmou em artigo no The New York Times, os republicanos põem em dúvida todo o sistema de governo. “Afinal, como a democracia americana pode funcionar se um dos partidos está mais disposto a ser implacável e ameaçar a segurança econômica da nação? Talvez a democracia não consiga.”
análise
Era uma vez na Europa... A União Europeia e a união monetária do continente foram ideias plantadas num universo intelectual de bem-estar social, mas colhidas em outro, reacionário e individualista
Reuters
Mitterrand e Kohl: outros tempos, outra Europa
Por Flávio Aguiar
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foto galvanizou corações e mentes: no dia 22 de setembro de 1984, no ossuário de Douaumont, em Verdun, na França, durante a homenagem aos mortos de uma das maiores e mais inúteis batalhas da Primeira Guerra Mundial entre alemães e franceses (10 meses, 700 mil baixas, 317 mil mortos), o presidente François Mitterrand e o chanceler Helmut Kohl deram-se as mãos diante de dois túmulos, o de um francês e o de um alemão. Não era apenas um preito ao passado; era a promessa de uma nova Europa, renascida das cinzas de séculos e séculos de guerras e ocupações. Pois bem, hoje Alemanha e França são aliadas estreitas na luta para preservar o equilíbrio do combalido euro, a moeda-símbolo da unificação da Europa. Mas se o presidente Nicolas Sarkozy e a chanceler Angela Merkel aparecessem numa foto de mãos dadas, em vez do protocolar aperto de mãos... As risotas à socapa seriam inevitáveis. Sabe-se, à boca pequena, dos conflitos e confrontos amargos provocados por isso que se chama “preservar o equilíbrio do combalido euro”. Houve narrativas na mídia sobre o presidente francês dando murros na mesa e ameaçando abandonar a moeda se o Fundo de Emergência para
socorro dos países endividados não fosse criado na base de € 750 bilhões. Além disso, quem acompanhou o noticiário se deu conta das desavenças e dificuldades enormes dos governos da zona do euro para concertar um novo empréstimo à Grécia no valor extra de € 107 bi (além dos € 110 bi inicialmente repassados). É que os tempos mudaram, e com eles os corações, mentes e vontades. Se a desvalorização do euro favorece as exportações alemãs (sobretudo para a China e o Sudeste Asiático), na periferia da moeda ela tem um efeito devastador, porque vem acompanhada de desemprego sobretudo para os jovens, desvalorização brutal de salários e aposentadorias, queima de programas sociais, enfim, tudo aquilo que se chama “austeridade”, e se traduz por “para os bancos inimigos, tudo; para os cidadãos nossos amigos, o rigor da economia”. Qual a chave do mistério? Quando Mitterrand e Kohl (um socialista e o outro democrata-cristão) deram-se as mãos, a hegemonia residual na Europa era de herança social-democrata e parceira de John Maynard Keynes. Hoje, a hegemonia a cavalo da situação é a de herança neoliberal e submetida aos ditames de Margaret Thatcher. Quer dizer: a União Europeia e a união monetária da Europa foram ideias plan-
tadas num universo intelectual e colhidas em outro, muito mais reacionário, conservador, individualista, cultor da desigualdade e do laissez-faire econômico e financeiro – o que levou aos desastres das crises de 2007-2008 e do endividamento dos países europeus, dívidas ironicamente chamadas de “soberanas”. Outro efeito colateral dessa hegemonia conservadora foi o enorme estímulo dado à pregação da extrema direita, xenófoba, antiprogramas sociais, antiesquerda, que hoje varre a Europa. O último broto desse clima de violência retórica foi o massacre de Oslo, perpetrado por um fanático de direita. Sim, ele era islamofóbico; mas não saiu atirando em muçulmanos ou estrangeiros. Ao contrário, dedicou-se com afinco a exterminar a possível futura elite de um partido do espectro à esquerda na Europa, o Trabalhista da Noruega. Nesse clima de fundo ameaçador, grassam as flores amarelas do medo, como dizia Drummond no seu poema de 1940. Enquanto isso, a agência financeira PricewaterhouseCoopers (PwC) anuncia – leio enquanto redijo essas linhas – que, embora representem apenas 17% da economia mundial, os países do Bric serão responsáveis por 40% do seu crescimento nos próximos dois anos. Durma-se com um crescimento desses! REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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mundo
Página virada
Apertada e só definida na reta final, eleição no Peru enterra o fujimorismo e favorecece a integração no continente Por Brunna Rosa
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E estarão também na agenda dos titulares da Economia e do Banco Central. “A Economia precisa ter claro que o programa do governo é de inclusão”, avisa. Durante o discurso de posse, no Congresso Nacional, Ollanta Humala prometeu trabalhar para enterrar a expressão “exclusão social” no país e decretou o aumento do salário mínimo, dos atuais 600 soles (cerca de R$ 340) para 675, imediatamente, e para 750 (R$ 430), em 2012. Declarou a ampliação dos programas sociais, como o Juntos, versão peruana do Bolsa Família, que atende 471 mil famílias. E a criação de outros, como o Pensión 65, dirigido à população acima de 65 anos desprovida de seguridade social pública, e o Cuna Más, espécie de auxílio-creche para que as mães deixem os filhos em local sob cuidado profissional. Discursou ainda sobre investimentos em saúde, em todos os níveis de educação e na agricultura familiar. “Estamos com esperanças novamente”, declaravam vários populares que se aglomeravam na manifestação na Praça das Armas. Sobre a relação com o mercado, em vista da desconfiança dos que viram, no desenrolar do processo eleitoral, o candidato abrandar o discurso que adotara, o presidente prometeu uma “nova relação” entre o Estado e o mercado. Avisou que o Estado será “promotor do desenvolvimento” e impulsionará a criação de “oportunidades para todos”.
Fujimorismo
Durante o segundo turno da campanha presidencial, Humala enfrentou Keiko Fujimori. Foi de apenas três pontos percentuais a vantagem sobre a filha do ex-presidente Alberto Fujimori, eleito em 1990. Dez anos depois, sob uma saraivada
Vidal Tarqui/foto andina
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iva Perú, c...!, bradou o presidente eleito Ollanta Humala em praça pública, na festa de sua posse, em 28 de julho. A frase, uma das mais populares do país, resumiu o sentimento de alívio com a vitória suada sobre Keiko Fujimori, herdeira de um dos ícones do vizinho sul-americano, há décadas imerso numa intensa história de corrupção, violações aos direitos humanos e com 52% de seus habitantes vivendo na corda bamba da pobreza. “É um triunfo de todos vocês”, declarava Humala, depois de, nos bastidores, trocar de roupa e fugir do protocolo e dos seguranças para conseguir chegar à festa como a maioria dos peruanos, de calça jeans e camisa branca, e de mãos dadas com a mulher, Nadine Heredia. Não é só o gosto pela quebra protocolar que o assemelhou ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O discurso moderado, que aponta um governo que priorizará a inclusão social, porém sem grandes rupturas com o modelo econômico, foi outro ponto em comum. Para acalmar o mercado financeiro, Humala nomeou para o cargo de primeiro-ministro o empresário Salomón Lerner Ghitis, e o economista Luis Miguel Castilla para a pasta da Economia. Castilla ocupava, até o começo de julho, o cargo de vice-ministro da Fazenda do governo conservador de Alan García, alvo frequente de críticas de Humala durante o período eleitoral. O fato esquentou o ambiente partidário do primeiro presidente de esquerda eleito no país. A recém-nomeada ministra da Mulher, Aida García Naranjo, no entanto, tratou de assegurar que os compromissos com as políticas sociais de combate à pobreza e à desigualdade darão o tom do mandato.
piero vargas/foto andina
Distribuição de renda O novo governo promete ampliar os programas sociais existentes e criar outros, como o Pensión 65, dirigido à população acima dos 65 anos
Enterrando o Fantasma Humala e sua mulher comemoram em praça pública a vitória apertada sobre a filha do ex-presidente Alberto Fujimori
de denúncias, de corrupção a violação de direitos humanos, foi forçado a renunciar. Em 2009 a Justiça o condenou a 25 anos de prisão e lhe impôs o pagamento de indenizações ao Estado no valor de US$ 13,5 milhões e US$ 1,6 milhão a 28 vítimas. No governo a partir de 1991, Alberto Fujimori aplicou no ano seguinte o que se chamou de um “autogolpe”. O Congresso foi dissolvido e houve intervenção no Judiciário. Apenas em janeiro de 1993 o país voltou a ser regido por uma Constituição, que ainda vigora e dá mais poderes ao Executivo que a de 1979, elaborada ainda durante o governo militar, um ano antes da volta de um presidente civil. Para se distanciar desse legado, Ollanta Humala jurou obediência à Constituição de 1979, e não à vigente, promulgada em 1993 por Fujimori. Sua atitude sinaliza disposição ao diálogo e respeito ao Legislativo. Parlamentares ligados ao fujimorismo a receberam com vaias e gritos durante a sessão solene. Martha Chavez, a principal referência do recente passado peruano, declarou que o país está “sem presidente e vice”, uma vez que o juramento foi realizado a partir de uma Constituição não vigente.
O Peru mantém uma política de alinhamento com os Estados Unidos. Um acordo de livre-comércio vigora desde 2007 entre os dois países. O discurso de posse observou o interesse em privilegiar uma aproximação com os países latinos. “Queremos uma economia integrada especialmente com os países andinos e a América do Sul”, declarou Humala ao Congresso, evocando nomes como os de Simón Bolívar e San Martín. “Nossa região é imensa, rica em recursos, porém também em histórias e em culturas comuns. Como escreveu Bolívar, a união é o que falta para completar a nossa regeneração, e esse é um objetivo pendente para todos os povos da América.” Sintomaticamente, ainda no dia 28 uma reunião extraordinária da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi realizada no Palácio do Governo, em Lima. Um dos temas era a integração regional para evitar consequências da crise que afeta os Estados Unidos e a União Europeia. Em entrevista à imprensa antes dos dois eventos, o assessor especial da Presidência do Brasil, Marco Aurélio Garcia, alertou: “O continente tem de estar preocupado com a situação mundial, porque estamos assistindo a modelos econômicos derretendo”. Durante a reunião, a presidenta Dilma Rousseff apresentou um estudo elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), com o apoio da Unasul, demonstrando taxas mais reduzidas de pobreza e de indigência nos países graças aos “governos mais democráticos e representativos das camadas menos favorecidas”. Dilma endossou a necessidade de a América do Sul se comprometer com o combate à pobreza extrema. “Sabemos que isso requer vultosos investimentos na área social, tendo como objetivo a universalização de serviços essenciais, como os de saúde, educação e previdência. Esse desígnio, eu tenho certeza, orienta as ações dos governos e dos países da região”, disse. “Não podemos incorrer no erro de comprometer tudo o que conquistamos, não porque quiséssemos ou por erros que cometêssemos, mas por conta dos efeitos de uma conjuntura internacional desequilibrada que estamos enfrentando.” REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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Resistir ao vene Maior polo de agroecologia do Brasil garante qualidade de vida a produtores e consumidores, mas agrotóxicos dos vizinhos e falta de mão de obra deixam em dúvida continuidade do trabalho Por João Peres. Fotos Gerardo Lazzari 22
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apanema, meio sem querer, meio querendo, transformou-se no principal polo organizado de agroecologia do Brasil. Na cidade, 250 agricultores produzem em núcleos familiares voltados à alimentação orgânica e preocupados com uma prática social e ambientalmente justa. “Sempre trabalhei na lida orgânica. Nunca usei tóxico. Melhor para mim, para a saúde, para o meio ambiente”, afirma o produtor Alberto José Fritzen. Com a ajuda de um chapéu de palha e de um trator, esse homem de 56 anos, cabelos bagunçados, joga esterco em suas terras numa tarde quente de maio. Cuida da produção
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Como os pais e os avós Alberto, de cima do velho trator: “Sempre trabalhei na lida orgânica. Nunca usei tóxico. Melhor para mim, para a saúde, para o meio ambiente”
tecnologia própria César: compradores pagam bônus para estimular a agroecologia
de mandioca, milho, feijão, arroz, batatinha, cebola, alho e repolho. De cima do trator, sempre com a boca em forma de sorriso, conta que está há 32 anos em Capanema, cidade no extremo oeste do Paraná, a 550 quilômetros de Curitiba e a 20 da fronteira com a Argentina. Fritzen viveu o começo do movimento desses produtores atentos à própria qualidade de vida e à dos seus consumidores. Cansados dos danos do agrotóxico, muitos deles empreenderam o caminho de volta à cultura dos pais e dos avós. Até a primeira metade do século 20, a humanidade havia se alimentado durante algumas dezenas de milhares de anos sem se preocupar com “defensivos” agrícolas. O desenvolvimento de uma hostil indústria agroquímica, no entanto, trouxe consigo a promessa de que era possível produzir mais, melhor e com melhores preços graças à aplicação de algumas substâncias. Em Capanema, alguns nem quiseram ingressar nessa viagem. Outros foram e não tardaram a retornar. No fim da década de 1980, era preciso articular uma maneira de escoar a produção orgânica, naquela época não tão valorizada quanto hoje em dia. Surgiu então a Terra Preservada, empresa que serviu de elo entre produtor e consumidor até os anos 1990. No começo deste século, foi criada a Gebana Brasil, com o propósito de garantir um mercado consumidor a agricultores preocupados com a qualidade de vida. O trabalho começou com a comercialização de soja, ainda seu carro-chefe, e com o tempo foram surgindo mercados para feijão, milho e trigo. O preço é acertado com o produtor no começo da colheita. Para garantir que o agricultor não volte a um cultivo convencional, com uso de agrotóxicos, os compradores de orgâni-
cos – por aqui e em quase todo o mundo – pagam bônus que tornam mais atrativa a agroecologia. Na prática, quem entra nesse segmento só pelo dinheiro sai em pouco tempo. A labuta do produtor de orgânicos é mais árdua porque, sem poder utilizar agrotóxicos, resta-lhe a força da enxada na hora de remover ervas daninhas, prejudiciais ao crescimento dos alimentos. Não é simples encontrar saídas para tornar mais fácil sua vida. “Trabalhar com pequeno é complicado. Nem dão bola para ele. Temos de desenvolver nossa própria tecnologia”, afirma César Colussi, sócio-gerente da Gebana. Enquanto caminha pelos armazéns, ele conta os avanços obtidos na última década. Deve ser o único lugar barulhento da pequena Capanema, de 18 mil habitantes, ruas arborizadas e planejadas. As máquinas trabalham a todo o vapor no processamento de soja, que é ensacada e levada ao porto de Paranaguá, de onde é enviada à Europa, o principal mercado consumidor. Hoje, toda a produção é aproveitada: vira farelo, farinha, lecitina – usada na produção de chocolate orgânico – e até mesmo tofu, do qual são feitos outros 25 produtos. A maior parte da soja colhida em Capanema chega ao Velho Continente sem industrialização. Numa outra sala se processa o trigo. A farinha obtida vai para padarias e restaurantes de algumas cidades brasileiras.
Sem patrão, dá
A vantagem da vida de Pedro Rama é que ele nunca teve chefe. Pode, sem que ninguém reclame, sentar-se à sombra de uma frondosa árvore em uma tarde de outono. Aos 73 anos, mantém o bigode ralo e o forte sotaque de “R travado”, herança dos colonizadores da região. Capanema foi fundada por filhos de imigrantes alemães e italianos migrados do Rio Grande do Sul, a maior parte, e de Santa Catarina. Em dia de clássico entre Grêmio e Internacional, a cidade para, tal qual fosse gaúcha, e os torcedores do time derrotado desfilam pelas ruas empurrando uma carrocinha carregada de adeptos do rival. “A gente se criou no campo. Nunca tive patrão. Se vou para a cidade, não me acostumo”, constata Pedro, ao lado do pasto em que ficam as vacas, muitas REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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trabalho vacas, gordas e bem alimentadas. Sem precisar lançar mão de remédios que estimulem a produção, ele e a família do filho vivem com tranquilidade. “Não plantamos muita coisa. Então, dá para segurar. Rico a gente não fica mesmo”, afirma a nora Rosane Rama, de 32 anos. Eles têm 53 hectares de terras, mas respeitam as regras de preservação e a área plantada é muito menor. Entre quatro e seis hectares para a soja, além de milho e feijão. Para subsistência, há de tudo. Quase nada se compra fora. “Sou bem enjoada. Não como fruta do mercado. As frutas são meio murchinhas, a banana não é tão macia.” A única preocupação de Rosane é a chegada de novos vizinhos que adoram um “veneno”. Defensivos agrícolas quase puseram a perder o trabalho dos agricultores. No ano passado, boa parte da produção acusou uma concentração tóxica maior que a tolerada pela União Europeia para o mercado orgânico. “Tivemos de examinar cada lote para entender. Contratamos uma empresa da Alemanha especialista em contaminações ambientais e começamos a rastrear. Fizemos coleta de água, de solo, de folhas, para ver onde estava a contaminação. Estava no Endosulfan”, lamenta César. Endosulfan é um defensivo de alta toxicidade, banido em meia centena de países. Sua aplicação está associada a distúrbios nos sistemas endócrino e reprodutivo. Em 2010, uma comissão de órgãos governamentais brasileiros decidiu seguir o mesmo caminho ao estabelecer que se trata de um produto “extremamente tóxico”, a mais grave classificação existente no país. No entanto, definiu-se que a importação seria barrada na metade de 2011 e o uso, apenas em julho de 2013. Com isso, quem tinha estoques “desestocou”. E o resultado foi uma aplicação enorme nas lavouras convencionais de Capanema, contaminando os vizinhos orgânicos. “A empresa não quebrou por milagre”, diz o gerente da Gebana. Este ano, o nível de contaminação por agrotóxico baixou bastante nas lavouras agroecológicas da cidade, mas ainda está acima do permitido em algumas, que por isso perdem um valioso mercado. Na sede da Gebana Brasil, é realizado um pré-rastreamento para saber 24
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Falta mão de obra A agricultura orgânica demanda gente, artigo cada vez mais raro no campo. Deoclides, de Capanema, avisa: “Este ano ainda vou segurar o orgânico, mas o outro ano, não sei”
Simplicidade Pedro mantém a produção agroecológica com ajuda da família do filho: “A gente se criou no campo. Nunca tive patrão. Se vou para a cidade, não me acostumo”
se algumdos produtores usou soja geneticamente modificada ou teve sua lavoura contaminada por transgênicos do vizinho. Depois disso, a avaliação corre por conta do Instituto de Mercado Ecológico, o IMO Brasil, que certifica se o grão está dentro dos padrões e pode seguir para exportação. Tudo é lacrado e cada saco de mil quilos é numerado e rastreadoaté o destino final.
Se é justo, dá
A Gebana trabalha ainda no desenvolvimento do conceito de comércio justo. É, de certo modo, um retorno às origens. A empresa nasceu na Suíça como organização não governamental. Lá, um grupo de mulheres achou ruim o preço da banana – estava muito mais baixo que o da maçã, um produto nacional. Não fazia sentido. Investigando, descobriram que a banana era produzida em terras americanas sob o preço da exploração da mão de obra. Começaram a quebrar o elo com as empresas tradicionais, passando a fornecer diretamente ao mercado consumidor e garantindo um preço justo. Esse movimento teve início entre os anos 1960 e 1970. Hoje, está muito mais articulado e é motivo para que muitos europeus comprem ou não determinados produtos. O selo Fair Trade, ou Comércio Justo, é concedido a produtores que levem em conta parâmetros sociais, como a eliminação de trabalho infantil ou degradante, e ambientais, sem desmatamento e sem queimadas. Isso assegura o pagamento de um bônus que se soma ao extra pago pela produção orgânica em relação à convencional. A condição fundamental desse bônus é que sua destinação seja decidida pelos trabalhadores, sem interferência da empresa ou dos consumidores. A principal certificadora do Fair Tarde é a FLO, uma organização internacional. “O FLO Cert garante um preço mínimo. Quem quer usar o selo vai pagar ao produtor esse preço. Se o preço de mercado estiver acima do mínimo, paga-se o preço de mercado”, explica Janine Rossman, responsável da Gebana por esses certificados. Não é um trabalho simples, mas altamente rentável, e a expectativa é que se desenvolva no próximo ano no Brasil, acompanhando o crescimento do
mercadode orgânicos e a preocupação dos consumidores com a origem daquilo que adquirem. É um trabalho fundamental para que o polo de agroecologia se mantenha e, mais que isso, deixe de ser exceção.
Sem filhos, não dá
Deoclides Peraro, de 61 anos, tem um vizinho imenso mas silencioso. Seus 12 hectares vão dar logo ali, no Rio Iguaçu, que lhe garante não só uma bela vista como água para a lavoura. Do outro lado já está o Parque Nacional Iguazú, portanto a Argentina. É uma mata preservada, bonita, que corta toda a região da Tríplice Fronteira, com Brasil e Paraguai. A cidade vizinha, a 40 quilômetros, é Comandante Andrecito. Uma cooperativa argentina também fornece para a Gebana, a exemplo do que ocorre no Paraguai, em dois projetos ainda em fase de crescimento. Do lado de cá, seu Deoclides é só ele e a esposa para plantar até oito hectares de lavoura, cinco apenas de soja. “A mão de obra está ficando cada vez mais difícil. Este ano ainda vou segurar o orgânico, mas o outro ano, não sei. A gente não tem ideia fixa de continuar porque também está ficando bem pesado.” Ele lamenta a possibilidade de ter de passar a produzir com uso de agrotóxico, e não está só. Estimulados pelo atual modelo de desenvolvimento, os filhos dos produtores migram para as cidades, deixando de ajudar na produção de alimentos importantes para a economia, a saúde e a cidadania. Restam em Capanema produtores mais velhos, que muitas vezes não têm energia para aguentar um modo de produção tão exigente. Se o sol de outono, com a gente assim, parado, maltrata, o de verão, trabalhando na enxada, deve ser algumas vezes mais complicado. Com 40, 50 anos de lida, então, entende-se o cansaço. Para que tenham direito à agricultura ecologicamente correta, os produtores de Capanema precisam de ajuda. “Minha ideia é continuar produzindo. É difícil desistir. Só se a empresa amanhã ou depois fechar as portas. Mas sempre digo que fui dos primeiros a entrar, e quero ser o último a sair”, conclui Alberto. Que o sorriso dele, então, continue desenhado em seu rosto. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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entrevista
Na rota da vespa Livro Os ร ltimos Soldados da Guerra Fria, mais um potencial best-seller de Fernando Morais, relata em ritmo de romance policial a saga dos cinco herรณis cubanos presos hรก 13 anos pelos EUA Por Paulo Donizetti de Souza
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O
agente René Gonzáles foi o primeiro a entrar na Flórida, em 1990. Saiu de Havana simulando ser um traidor da revolução cooptado pelo sonho americano. Nos dois anos seguintes, seria seguido por outros 13 companheiros, entre eles duas mulheres. A Rede Vespa estava pronta, com a missão de infiltrar-se entre organizações de direita que jamais digeriram a revolução de 1959. Com apoio de empresários e políticos norte-americanos, essas organizações contratavam mercenários para sabotagens como lançar pragas contra as lavouras e interferir nas comunicações do aeroporto de Havana. No início dos anos 1990, passaram a privilegiar o terror à indústria do turismo, base da economia da Ilha depois da derrocada da União Soviética. As ações incluíam de rajadas de metralhadoras contra turistas em praias cubanas a atentados a bomba em hotéis. As reclamações diplomaticamente dirigidas ao governo americano eram ignoradas. Distante apenas 160 quilômetros do maior império militar do mundo, restava ao governo cubano, para defender-se, a inteligência. Os agentes da Rede Vespa, disfarçados em profissões inusitadas como instrutor de salsa em Key West ou personal trainer de milionários de Miami, conseguiram proteger seu país de centenas dessas operações. Em 1998, uma ofensiva do FBI levou à captura dos agentes. Quatro esca param. Outros cinco negociaram a liberdade em troca de informações. Restaram René e seus companheiros Fernando González, Antonio Guerrero, Ramón Labañino e Gerardo Hernán. Fiéis à sua causa, desde aquela época estão encarcerados em diferentes presídios de segurança máxima, condenados pela Justiça americana a penas de 15 anos a prisão perpétua. Habituado a grandes reportagens, o jornalista e escritor Fernando Morais foi atrás da história. O autor de A Ilha (1976, atualizado em 2001) e das biografias de Olga Benário Prestes, Assis Chateaubriand e Paulo Coelho (traduzido em mais de 40 países) conhece o caminho das pedras e dá a suas histórias narrativas cinematográficas. Olga foi o primeiro a ir para as telas. Chatô, o Rei do Brasil está filmado. Toca dos Leões, livro que tem como pano de fundo o sequestro do publicitário Washington Olivetto, já está nas mãos da produtora de Fernando Meirelles. Corações Sujos, uma história da imigração japonesa na Segunda Guerra Mundial, foi sucesso no Festival de Paulínia e estreia em breve em circuito comercial. E, antes mesmo de ser escrito, Os Últimos Soldados da Guerra Fria, lançado este mês pela Companhia das Letras, já teve seus direitos vendidos para cinema. Trata-se, segundo o autor, de uma história eletrizante como um romance policial. Pena que, a exemplo dos 50 anos de agressões norte-americanas a Cuba, nenhuma de suas 350 páginas tenha uma linha sequer de ficção. É tudo verdade.
O filme Cidadão Kane, que completa 70 anos, fez história no cinema inspirado no poder de um magnata da mídia, o vaidoso e excêntrico William RandolphHearst. Assis Chateaubriand se encaixaria no papel?
Jailton Garcia
Tem um outdoor em Cuba que diz: “Esta noite 200 milhões de crianças vão dormir naruaemtodoo mundo. Nenhuma delas é cubana”. Que país pode fazer isso? É por isso que sou solidário
Sim, o Chatô foi um Hearst brasileiro, com características tropicais. Provavelmente, um dos homens mais poderosos da primeira metade do século 20. Talvez nem Getúlio tenha tido tanto poder quanto ele. O Cruzeiro foi a única revista no Brasil a vender 700 mil exemplares em banca, numa época em que o Brasil tinha 40 milhões de habitantes e índices de analfabetismo altíssimos. Acho que nem Roberto Marinho teve tanto poder. É um personagem fascinante, e com excentricidades muito peculiares, como aquela mania de condecorar autoridades com a Ordem do Jagunço. Ele punha um gibão de couro de bode fedorento e um chapéu de cangaceiro no condecorado e batia com um punhal enferrujado – fez isso com o Churchill. As pessoas ressaltam que ele usava seus veículos para fazer chantagem, mas foi assim que montou o Masp, que é um museu público, não é da família Chateaubriand, não é dos Diários Associados, não ficou para os filhos. Tudo isso conseguido na ponta da faca. Seria também comparável a outra figura agora em evidência pelos escândalos em seus jornais britânicos, Rupert Murdoch?
É bem diferente. O Murdoch não tem a riqueza humana que o Chatô tinha. Compará-los é injusto com o Chatô. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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entrevista Murdoch seria um ícone desse tipo de jornalismo que se faz hoje, que não investiga, é pautado, movido a “fontes” e releases?
O Murdoch, você pode dizer sem medo de cometer injustiça, é um cara de direita. Do Chatô você não podia dizer isso stricto sensu. No golpe de 64 ele ajuda os militares e depois rompe. No dia em que o avião do Castello Branco se arrebenta numa montanha no Ceará ele dá uma festa, celebra com champanhe a morte do ex-ditador. E a produção do filme Chatô, o Rei do Brasil, será finalizada um dia?
Os caras saem de Cuba como traidores, como desertores, gente que roubou avião... Um deles arrancou com o avião e pousou quase em pane seca em Miami. As mulheres não sabiam, os filhos não sabiam, não podiam saber
O Guilherme diz que o filme está pronto. (O ator e diretor Guilherme Fontes comprou os direitos do livro e começou a filmá-lo em 1995; depois de consumir mais de R$ 8 milhões, teve a prestação de contas rejeitada pelo TCU, não conseguiu terminar a obra nem obteve mais recursos.) A única coisa que eu sei é que o Guilherme é honesto. Ele não se apropriou de dinheiro público, certamente tem menos bens hoje do que há 16 anos, quando comprou os direitos do livro, e eu não sei se foi má administração. Enfim, cinema não é a minha praia, embora eu já tenha tido outros livros vendidos para o cinema. Teve o Olga, agora o Corações Sujos vai estrear. Esse não foi o Cacá Diegues quem comprou os direitos para filmar?
Quem tinha adquirido originalmente os direitos para filmar Corações Sujos era o Cacá Diegues, mas ele vendeu para o Vicente Amorim, filho do Celso Amorim. É um bom cineasta. Assisti à exibição no Festival de Paulínia, ficou uma beleza. Esse livro que estou lançando agora também vai virar filme. E foi comprado antes de eu escrever. Tem um jovem aqui de São Paulo, chamado Rodrigo Teixeira, que é um investidor. Ele compra argumentos, histórias, para depois chamar diretores. O que permitiu que eu fizesse 20 viagens para Cuba e para os Estados Unidos nos últimos três anos foi o adiantamento que recebi da editora mais o direito que recebi para o filme. Além disso, vendi para a O2, do Fernando Meirelles, o Toca dos Leões, que é a história da W/Brasil, do Washington Olivetto. Eu estava trabalhando com o Washington quando ele foi sequestrado (em 11 de dezembro de 2001; ficou 53 dias em cativeiro), então comecei a investigar o sequestro junto com a polícia, com a família. Você falou do Toca dos Leões. É por causa desse livro que o Ronaldo Caiado...
Está me processando. E eu prefiro não falar disso. Há um processo, e falar sobre algo que está sub judice pode acabar soando como uma manifestação de afronta à Justiça. 28
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Então vamos ao livro dos cinco cubanos, Os Últimos Soldados da Guerra Fria.
Eu estava num táxi com a minha mulher quando ouvi no rádio que agentes de inteligência cubana tinham sido presos havia algumas horas. Originalmente eram 14, quatro escaparam. Cinco traíram, fizeram delação premiada, estão em algum lugar do mundo, com nome falso. E cinco não aceitaram fazer acordo, disseram: “Não somos espiões, nunca quisemos nem queremos tocar num único documento norte-americano, viemos aqui para nos infiltrar em organizações de extrema direita que estavam colocando bombas em Cuba, sobretudo na indústria turística”. Que foi o que salvou Cuba nos anos 1990.
Foi a atividade que salvou Cuba depois do fim da União Soviética. E quando ouvi essa história no rádio, comentei com a minha mulher: “Pô, isso aí dá um livro”. Na primeira oportunidade que tive de ir à Cuba, comentei com amigos lá da direção do partido: “Eu quero fazer essa história”. Eles diziam que isso podia comprometer a segurança pessoal de muita gente, que era segredo de Estado, e toda vez que voltava a Cuba eu insistia. Em 2005, fui a Havana para a bienal do livro. Na véspera de eu voltar para o Brasil, toca o meu celular. Era o Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional. Eu estava jantando no Floridita, e ele foi até lá: “Ainda está interessado na história dos cinco?” Em 2008, comecei a falar com familiares, ouvi gente envolvida com eles, governo, inteligência, militares. Ao longo desses três anos pude entrevistar alguns dos presos, porque eles estão em cinco prisões de segurança máxima, cada uma em um estado, com regimentos diferentes. Algumas permitiam que eu falasse por internet, outras não. Nas que não permitiam, eu chegava por meio da família, que tinha uma cota de telefonemas mensal; mandava perguntas pelas mulheres, filhos e tal. Pouca gente em Cuba sabia dessa missão?
Ninguém! Só altíssimo escalão, Fidel, Raúl Castro e mais dois ou três dirigentes do partido. Os caras saem de Cuba como traidores, como desertores, gente que roubou avião... Teve um deles que arrancou com o avião de lá e pousou quase em pane seca em Miami. As mulheres não sabiam, os filhos não sabiam, não podiam saber. Era uma coisa dolorosa, porque a mulher era apontada na rua como a mulher do gusano (traidor). Tem uma passagem da filha de um deles, hoje já casada, que com 11, 12 anos estava com o primo jogando um jogo qualquer. Ganhou dez vezes seguidas e virou para o priminho e disse: “Eu sou mais nova do que você e sou campeã”. E ele: “Mas meu pai não é gusano, o seu é”. Pô, a menina avançou nele. Então, esse tipo de tragédia humana tem um impacto muito grande.
Tem coisas muito interessantes. Um deles era comandante de uma coluna de tanques na África, durante a guerra de Angola, e foi dar aula de salsa em Key West, que é um paraíso gay. Então, era um sujeito com formação em Engenharia Aeronáutica na Ucrânia, na União Soviética, que ia dar aula de salsa para os gays em Key West. Outro era comandante de MIG, de caça-bombardeiro, tinha longa experiência em combates, e foi trabalhar como personal trainer, fazer ginástica com milionários de Miami. Outro, o Gerardo, que chefiava o grupo, vendia charges para jornal em Miami. Estamos acostumados com os filmes de James Bond, em que a vida do agente de inteligência é cercada de champanhe, mulheres, glamour. Imagina: todos moravam em quitinete, alguns tinham carro, nenhum tinha celular, que começava a aparecer. O primeiro que vai para lá, o René, vai em 1990, depois vão os outros. Em 1992 a equipe, a chamada Rede Vespa, estava montada. E a ação deles nos EUA conseguiu evitar...
Conseguiu evitar dezenas, centenas de atentados e permitiu a prisão de vários mercenários, alguns dos quais eu pude entrevistar. Mercenários estrangeiros que eram contratados pelo pessoal de Miami para botar bomba em hotel, em avião, agência de turismo cubana. O turismo estava salvando a revolução, então era o que tinham de destruir. É uma história muito dramática e ao mesmo tempo eletrizante, você lê como quem lê um romance policial. Tem histórias incríveis. Tem uma correspondência secreta entre o Fidel e o Bill Clinton, com informações que os cinco mandaram de Miami para Havana, e o pombo-correio entre o Fidel e o Clinton era o Gabriel García Márquez. (O objetivo era alertar o governo americano para que impedisse os atentados.) Você falou com autoridades americanas. Há quem defenda afrouxar a pena, soltura?
Tenho uma declaração do ex-presidente Jimmy Carter dizendo que espera que o Barack Obama indulte a pena deles e os coloque em liberdade. O processo judicial tem um erro atrás do outro. Primeiro, o fato de eles terem sido julgados em Miami, que é uma cidade visceralmente anticubana, anticastrista. Um funcionário da Casa Branca declarou o seguinte: “Julgar agentes de inteligência cubanos em Miami é o mesmo que julgar agentes de inteligência israelenses em Teerã”. É a crônica da condenação anunciada. O pessoal do FBI não pode falar oficialmente, mas conversei com muita gente em off que me deu dicas de onde procurar documentos. Folheei 30.000 páginas de material que eles mandaram para Havana, selecionei 6.000 folhas de papel para trazer e trabalhar em cima. O FBI já estava de olho neles três anos antes
de prendê-los. Entrou em todas as casas clandestinamente e todos os dias copiava tudo que eles estavam mandando para Cuba. E esse material eu peguei todo. Tive acesso a grampo telefônico, filmagem de gente preparando atentado, transcrição de conversa de mercenários. Abundância de material secreto. Quem contratava mercenários?
Era gente da extrema direita cubana, que começou a se exilar, gente que perdeu banco, usina, indústria, e fica em Miami financiando o terror contra Cuba. Então, esses mercenários recebiam em média US$ 1.500 por bomba. Tem um deles preso em Cuba. Foi condenado à morte por fuzilamento e teve a pena comutada para 30 anos de prisão. Alguma expectativa de que isso possa resultar em acordo para os cinco cubanos?
Eu acho que pode ser objeto de troca.
Mas esses mercenários não têm valor nenhum para os americanos...
Claro... Tem um americano lá, Allan Gross, que foi a Cuba duas vezes. Na primeira conseguiu botar bomba e escapar, e na segunda foi preso, a partir de informações mandadas pelos cinco. Ia colocar cinco ou seis bombas por US$ 7.500. Eu fui falar com ele. É uma história de dar calafrio. E, com relação ao pedido de Carter a Obama, alguma expectativa?
Eu não sei. O Obama primeiro tem de resolver essa pepineira em que ele está lá. E ele não pode desagradar a bancada anticastrista, ele depende de maioria no Congresso, como todo mundo. Eu tenho esperança de que o Obama possa indultá-los não neste mandato, mas se for reeleito. Se indultar agora, a dificuldade de se reeleger vai ser grande, por isso e pela soma dos problemas que está vivendo.
fotos Jailton Garcia
Haja frieza.
Um americano, Allan Gross, foi a Cuba duas vezes. Na primeira conseguiu botar bomba e escapar. Na na segunda foi preso, a partir de informações mandadas pelos cinco. Ia colocar bombas por US$ 7.500. É uma história de dar calafrio
Você, que vai tanto a Cuba, vê alguma perspectiva de mudança, de abertura do regime?
O problema é o seguinte: você não pode ver Cuba como vê um país qualquer, não se pode discutir a realidade cubana sem considerar o bloqueio. A maioria das pessoas nem sabe o que é o bloqueio. Por exemplo, um navio japonês que aporte em Cuba – porque o país comprou dez tomógrafos da Toshiba, no Japão – assim que atraca num porto cubano, ficará não sei quantos meses sem poder atracar em portos norte-americanos. Eles multam empresas pelo mundo. A expressão que usam não é “comercializar”, é “traficar” com Cuba. São 50 anos de agressões, nenhum outro país na história foi vítima da agressão norte-americana durante tanto tempo em todos os sentidos, militar, político, econômico, diplomático. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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entrevista
Jailton Garcia
Você não acha que o regime, mantido há 50 anos, ficou um tanto decrépito?
O Raúl Castro já fez alguns acenos de abertura. É evidente que eles radicalizaram muito quando a revolução triunfou. Pô, estatizaram até quiosques de batata frita. Aí você tem de criar um ministério com um bando de burocratas para administrar quiosques de batata frita. Não é papel do Estado... Eu tenho uma unha do pé encravada e, em Cuba, toda vez que precisei de uma podóloga era do Estado. Aparar a barba, cortar o cabelo? Barbeiro do Estado. Então, é evidente que assim você desenvolve um dinossauro burocrático, e os cubanos percebem isso. O bloqueio justifica o regime tão fechado?
Esse tipo de pergunta precisaria de horas para ser respondida com um pouco de consistência. Então, A biografia prefiro usar imagens. Muita gente me pergunta por do Paulo que sou solidário à Revolução Cubana até hoje se é Coelho, um um regime que tem tantas mazelas. Eu costumo respersonagem ponder o seguinte: tem um outdoor em Cuba que diz humano, um “Esta noite 200 milhões de crianças vão dormir na rua fenômeno em todo o mundo. Nenhuma delas é cubana”. Que literário, país pode fazer isso? A França? Imagina! No inverpermitiu que no, você vê imigrantes dormindo embaixo das poneu contasse tes. No Japão? Eu fui ao Japão duas vezes para fazer o Corações Sujos, e você vê velhinhos morando em um pouco sobre o Brasil caixas de papelão na rua, pedindo dinheiro. Em Nova York tem miseráveis. Falo de países do primeirísda época. simo mundo. Em Cuba você não vê ninguém descalEnquanto ço, banguela. É por isso que sou solidário. Você pode resistíamos dizer que a liberdade é um valor universal. Tudo bem, à ditadura, mas eles transformaram um bordel norte-americano ele estava em um país civilizado, um país exemplar. Pode abrir, fumando ter liberdade de expressão, de organização, partidária? maconha Eu acho que, enquanto houver bloqueio e os Estados Unidos forem inimigos tão agressivos da Revolução Cubana, é difícil. O bloqueio é questão de honra, ou pirraça?
É loucura! Cuba tem o PIB da Daslu, uma economia de nada, e é um país de 10 milhões de habitantes. A maior potência bélica, econômica e militar do planeta está ali, a 160 quilômetros de distância. É a distância de São Paulo a Piracicaba, do Rio de Janeiro a Juiz de Fora. São 50 anos de agressão de toda natureza. O Fidel mandou para o Bill Clinton um contêiner do tamanho desta mesa com fitas de vídeo, áudios, grampos, dossiês dizendo quem eram os caras que estavam em Miami financiando o terrorismo. Por que não prenderam? Podem dizer o que quiserem, que sou dinossauro, não me importo. Uma das poucas coisas boas que eu conquistei na vida foi a minha independência. As pessoas me perguntam por que escrevi a biografia do Paulo Coelho depois de ter escrito um livro sobre Cuba. 30
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E por que escreveu biografia do Paulo Coelho?
Porque eu quis. E porque acho o Paulo um personagem interessante, humano, é um fenômeno literário e permitiu que eu contasse um pouco sobre o Brasil na época da ditadura para um público talvez alheio a essa história e por meio de alguém que não era militante. Enquanto estávamos enfrentando a ditadura, ele estava fumando maconha. É um pedaço do Brasil ou não é? Essa independência é o maior bem de que eu disponho. Mas, entre você e Marco Maciel, a Academia Brasileira de Letras ainda preferiu o Maciel...
Que não tinha escrito livro nenhum e me deu uma surra (em 2003). Foram 30 votos a 9. Mas tive voto do Carlos Heitor Cony, do Celso Furtado, do João Ubaldo. Então eu não perdi, ganhei. O que acrescentaria ser integrante da ABL?
Olha, se você olhar para a lista dos membros da Academia, vai ver que seria um privilégio conviver com boa parte deles. Não todos, claro. Tem o Merval Pereira, mas tem o João Ubaldo, o Antonio Callado, o Alfredo Bosi, tinha o Celso Furtado... Gente interessante, me acrescentaria muito. Se eu tivesse oportunidade, me candidataria de novo, sem o menor pudor. O nível de leitura está melhorando no Brasil?
Consumindo mais livro, está. Existe uma dezena ou mais de autores que vivem exclusivamente de livros. Não levo vida de rico, mas vivo razoavelmente bem, tenho um escritório, meu carro, viajo... Enriquecer, não, mas dá para viver disso. Também não sustento amante, não cheiro cocaína... Meu único vício caro são meus charutinhos, que já estão depauperando minha garganta. Não tenho um terno. Casei no ano passado e tive de alugar. O livro é o futuro da grande reportagem?
Para mim tem sido nos últimos 30 anos. Todos os meus livros – esse é o décimo – poderiam ser publicados em jornais e em revistas. E hoje tem uma coisa fascinante, a internet. Eu achava que a liberdade de expressão, sobretudo nos meios eletrônicos, ia ser conquistada nas barricadas, nas tribunas, e a tecnologia foi mais rápida que a ideologia. Hoje, se você tiver um notebook e uma linha telefônica, pode ser seu próprio Roberto Marinho. Se tiver o que dizer, vai ter audiência. Hoje você monta uma estação de televisão com uma linha telefônica e um notebook. O Paulo Coelho está fazendo uma experiência interessante, colocar os livros na internet, de graça. Achei que fosse destruir as vendas, e está vendendo mais. A Amazon em 2010 vendeu mais livros virtuais do que físicos, pode ser um indicador, não sei. Mas uma revolução está acontecendo nas nossas barbas.
MauroSantayana
Murdoch em Oslo
E
ntre as explicações para a grande tragédia de Oslo – anúncio sangrento de que o nazismo, com outros nomes, está de volta –, uma não mereceu maior atenção dos analistas: a influência dos grandes meios de comunicação, como os controlados por Rupert Murdoch, xenófobos, anti-islâmicos, defensores de uma “Europa limpa e pura”. Não é difícil associar o processo de homogeneização dos meios de comunicação do mundo inteiro – na defesa de ideias como as de que há uma guerra de civilizações, entre o Islã e o Ocidente Cristão – e o crescimento global de organizações de extrema direita. Melanie Phillips, no Daily Mail, resumiu a situação: “Brejvik talvez seja um psicopata desequilibrado, mas o que emerge agora de seu ato atroz é o delírio de uma cultura ocidental que perdeu sua razão”. Por mais voltas que dermos à inteligência, na busca de profundas e complexas interpretações para essa tendência ao suicídio da civilização contemporânea, sempre chegaremos à ideia mais simples: o capitalismo apodreceu o que restava de solidariedade no processo de civilização ocidental ao universalizar o american dream, fundado na competição e no êxito individual, de qualquer forma. Quando um líder chinês, Deng Xiaoping, proclama que é bom enriquecer, o calvinismo se une ao taoísmo para sepultar Mao Tsé-tung e execrar Marx. O grande perigo da infecção que, sob a Alemanha de Hitler, se identificou no nazismo é a combinação do instinto das feras – que lutam pela supremacia em seu espaço de caça – com a aparente lógica científica. O racismo é o mais perfeito “apodrecimento da razão”, conforme a definição de Lukács. Investigações recentes sobre a inteligência revelam que não há a menor diferença da capacidade mental entre todas as etnias do mundo: um negro africano tem, em média, o mesmo QI de qualquer nórdico. O que pode diferenciá-los, como indivíduos, e não como grupos étnicos, é a educação, isto é, o treinamento intelectual. Desde que as sociedades políticas se organizaram, a linguagem passou a servir como instrumento de convencimento a favor do poder e como arma na resistência contra os opressores. A retórica está a serviço do poder, legítimo ou não; a crítica serve à resistência libertária. Como em tudo o mais, o melhor exemplo é grego: os oradores se dividiam,
O ódio ao imigrante é um dos produtos de um jornalismo sórdido que alimenta a direita, da Alemanha à Inglaterra, dos EUA ao Brasil. O racismo é o mais perfeito apodrecimento da razão na praça pública, em defesa dos governantes ou contra eles. E os outros meios de comunicação – textos literários, ensaios filosóficos e, sobretudo, o teatro – iam mais além, na crítica ou no elogio ao sistema político de então. As coisas não mudaram muito em sua essência, mas a tecnologia ampliou a força da palavra – e da imagem. A maioria dos mais poderosos veículos é controlada pelo poder financeiro, e tem servido para submeter governantes aos seus interesses. A técnica é impor o pensamento único e exacerbar a violência, a fim de manter os povos submissos, reduzir os homens à condição de trabalhadores dóceis e consumidores vorazes. Murdoch é hoje o símbolo da manipulação da verdade e das ideias, a serviço do fundamentalismo mercantil. A crise política de 1929 fez com que o capitalismo alemão financiasse Hitler e seus criminosos. E mediante o controle dos meios de comunicação o nazismo envenenou parte do povo alemão com o mito da superioridade racial. A crise atual do capitalismo neoliberal financiou Murdoch e seus 200 jornais no mundo – mas ele não está só. O ódio ao imigrante, um dos produtos desse jornalismo sórdido, deu origem a Brejvik, e alimenta a direita, da Alemanha à Inglaterra, dos Estados Unidos a São Paulo e ao Rio Grande do Sul. Os muçulmanos são os novos judeus da Europa, enquanto, para a extrema direita nacional, os negros, nordestinos e mestiços são os odiados “muçulmanos” do Brasil. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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memória
Celebração da
esperança A cada cinco anos, gente de todas as partes do Brasil e do mundo enfrenta longas jornadas para uma romaria no Araguaia, em memória de quem deu a vida por uma causa Por João Peres 32
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N
ão é festa, está longe de ser show. Mas leva milhares de pessoas a encarar 30, 35, 40 horas de estrada Brasil adentro para visitar Ribeirão Cascalheira (MT), que a cada cinco anos é sede da Romaria dos Mártires da Caminhada. O município de 8.800 habitantes, no tórrido Araguaia, se vira como pode para abrigar os visitantes. Escolas e casas são colocadas à disposição de romeiros vindos de várias partes do Brasil, América do Sul, Europa. É uma celebração religiosa incomum à memória de quem caiu na luta por uma causa – como Chico Mendes, Dorothy Stang, Galdino Jesus dos Santos, Vladimir Herzog, Antônio Conselheiro.
Há grande preocupação com companheiros de América Latina no Santuário dos Mártires, construção simples, com um mural que reverencia os trabalhadores. Fotos lembram Enrique Angelelli, bispo argentino vitimado pela ditadura da década de 1970, Florinda Muñoz, camponesa da República Dominicana, e Frank País, revolucionário cubano. O mártir local é o padre João Bosco Burnier. Em 1976, Burnier e o então bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, retornavam de um encontro com indígenas quando foram informados de que duas mulheres estavam sendo torturadas. Uma irmã e uma nora de um sitiante que atirara contra um soldado em defesa de seu filho. Mais um conflito decorrente da disputa pela terra – isso em um momento em que o Araguaia se preparava para entrar na memória brasileira por causa do massacre aos grupos armados de resistência ao regime ditatorial.
fotos Douglas mansur
Símbolo da resistência Aos 83 anos, dom Pedro Casaldáliga é uma espécie de mártir vivo para os povos dessa região de 150 mil quilômetros quadrados, situada no nordeste de um dos estados mais marcados pelo desmatamento
Quando Burnier foi à delegacia cobrar a liberdade das mulheres, foi chamado de “comunista” e “subversivo”, acabou baleado e morreu. Dez anos depois, tem início a romaria, que em julho deste ano celebrou ainda os 40 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia, um marco na luta contra o coronelismo e a violência no campo. Quem vem para tão longe professa a fé em uma outra Igreja Católica, livre de amarras hierárquicas, aberta à voz da sociedade e a temas como um mundo sem desigualdades – e, por isso, sabe que rezar é bom, mas é preciso ação. “Devemos renovar nosso compromisso de seguir em caminhada rejeitando tudo quanto seja mentira, corrupção, morte”, aconselhou Casaldáliga, ou Pedro, como prefere. Aos 83 anos, o bispo é um mártir vivo para os povos dessa região de 150 mil quilômetros quadrados, no nordeste de um dos estados mais marcados pelo desmatamento – e pela violência originada deste.
Durante quase quatro décadas, utilizou sua força moral e política contra a violência dos conflitos agrários. A política da ditadura de ocupação do interior acirrou os ânimos na década de 1970, e Pedro, recém-chegado, se deu conta de que era preciso pulso firme para resistir. “Era aquele coronelismo”, lembra Meci Martins Lima, moradora de Porto Alegre do Norte e que chegou à região ainda criança. O bispo estimulou a formação de uma associação de moradores para enfrentar as pressões. Os coronéis não queriam a criação de um novo município para não perder poder. A situação melhorou, mas segue longe do ideal. Na romaria, os povos dessa e de outras regiões externam problemas, buscam apoio e oferecem um ombro amigo. “Mesmo que as pessoas não se conheçam, todo mundo se vê como irmãos”, diz Meci. A celebração dura dois dias, nos quais todos na cidade fazem as refeições na praça central. Em enormes panelas preparam o alimento do dia desde as primeiras horas da manhã. Os romeiros trazem os próprios pratos, talheres e copos, para evitar que a pequena cidade sofra um colapso. Os ônibus começam a chegar em massa na sexta-feira, 15 de julho. Nas primeiras horas do sábado, aumenta o trabalho na tenda de acolhida, que dá as boas-vindas e encaminha os fiéis para os alojamentos.
Todos tornam a se encontrar na refeição da tarde de sábado, e em seguida partem em procissão para o ato de abertura da romaria. É noite quando se acende uma vela, que acende outra, que acende outra, e logo são milhares a iluminar o caminho de cinco quilômetros entre a praça central e o Santuário dos Mártires. Algumas vozes, uma voz feminina bem afinada, entoam cantos que, de novo, mostram que essa não é uma romaria de louvação a um santo, mas a uma causa. “Comungar é tornar-se um perigo/ Viemos pra incomodar/ Com a fé e união/ nossos passos um dia vão chegar” e “Virá o dia em que todos/ Ao levantar a vista/ Veremos nesta terra/ Reinar a liberdade”, avisam os fiéis, que ao fim da caminhada fazem denúncias sobre deslocamento forçado de populações e ameaças aos direitos indígenas. Poucas horas depois, ao amanhecer, todos estão novamente reunidos para o café comunitário e a celebração que encerra o encontro. Mais uma vez, Pedro emociona os fiéis ao afirmar que essa é sua última romaria em vida. “O outro mundo possível somos nós. Podem nos tirar tudo, menos a esperança”, afirma. Em cinco anos, muitos voltarão a empreender viagem interior adentro. Leia mais no www.redebrasilatual.com.br
Unidos pela terra Socorro Lima e Vanderlei Moreira não perdem a viagem. Aproveitaram a ida a Ribeirão Cascalheira, o clima de confraternização e os amigos reunidos para celebrar a união. Casaram-se, com padre e tudo, no Santuário dos Mártires. Entraram na igreja cantando, no gogó mesmo, sem acompanhamento, coral, teclado ou o que o valha. Ela, terna, olhando para ele. Ele, nervoso, olhando para todos os lados. No altar, nada de alianças: bandeiras vermelhas para simbolizar a luta pela reforma agrária e a militância no MST. Após o “que sejam felizes para sempre”, cantoria: Tocando em Frente, de Almir Sater e Renato Teixeira, e Casinha Branca, de Elpídio dos Santos, esta para lembrar que a caravana casamenteira veio de Jacareí, no Vale do Paraíba, interior paulista. Ele, tímido, saiu contente, falando baixinho. Ela, expansiva, gritava “viva o amor, viva a luta”.
Vanderlei e Socorro: “Viva o amor, viva a luta”
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Obstinados ciclistas Eles acreditam que, com mais pessoas pedalando, motoristas tendem a se acostumar com as magrelas e a respeitá-las Por Fábio Fujita
Mobilidade Waldson, de Aracaju: intervenção no espaço urbano
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o início deste ano, a capital paulista ultrapassou a marca de 7 milhões de veículos (70% deles automóveis). Isso significa média de 0,63 carro por habitante, superior ao índice americano (0,47), italiano (0,53) e japonês (0,40). A estatística pode até denotar ascensão social, mas o crescimento da frota não é acompanhado pela expansão das condições de tráfego. Em 1970, a cidade registrava cerca de 965 mil veículos para 14 mil quilômetros de vias. Quatro décadas depois, para uma frota 600% maior, o sistema viário, com 17 mil quilômetros, cresceu pouco mais de 20%. 34
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Não é pessimista constatar: o apocalipse motorizado chegou. E o inchaço no trânsito não é privilégio da maior cidade do país. A falta de mobilidade nas ruas, que “dá nos nervos” dos habitantes da capital e de seus vizinhos do ABC, Osasco ou Guarulhos, é uma doença crônica na maioria dos centros urbanos brasileiros. É em meio a esse caos que muita gente redescobre um arcaico meio de locomoção: a bicicleta, inventada muito antes do automóvel. Que o diga a jornalista Renata Falzoni, 57 anos, apresentadora do canal pago ESPN Brasil, onde comanda um programa sobre cicloativismo: “A bicicleta é uma máquina que carrega dez
vezes o próprio peso. O corpo humano gasta mais energia para caminhar do que se você pedalar o mesmo trecho. É a melhor máquina que o homem já inventou”. Para ela, a “magrela” é, mais que um veículo, um estilo de vida. Se bem desenvolvido, o hábito de pedalar tende a se tornar gradativamente viciante. “Você chega ao trabalho com um baque de endorfina”, define a fotógrafa paulistana Laura Sobenes, de 23 anos, que vai pedalando de casa até o emprego, num percurso de cerca de cinco quilômetros. Laura habituou-se de tal modo à praticidade que pedala, inclusive, nas saídas noturnas para as baladas.
jorge henrique
“Depois que você começa a usar com frequência, dá um tesão: não consegue mais ficar muitos dias sem pedalar, porque é saudável”, concorda Guilherme Schröder, 29 anos, educador e biker em Porto Alegre. O geógrafo de Aracaju WaldsonCosta, 27, aponta igualmente o contraponto ao sedentarismo como um valor a ser destacado. “Faço o caminho da minha casa ao trabalho como academia, como atividade física.”
Mais que saúde
Não guardar distância lateral de 1,5 metro ao passar por bicicleta é infração média. Se a “fina” for em alta velocidade, são duas infrações, média e grave
A bicicleta ganha cada vez mais adeptos em função, também, da relação trânsito-estresse. “O motorista desesperado joga aquela descarga em quem estiver na frente dele”, observa Renata, sobre a agressividade característica de quem dirige. José Lobo, 50 anos, cicloativista carioca que trabalha exclusivamente com a promoção do uso da bicicleta, ressalta exatamente a fluidez no trânsito como o grande benefício para quem opta por pedalar. “Consigo ser pontual em todos os meus compromissos e, por tabela, economizo e ganho no aspecto físico e no ambiental, por não estar poluindo a cidade”, lista. Andar de bicicleta pode, ainda, transformar a própria relação da pessoa com o ambiente à sua volta. O jornalista paulistano Thiago Benicchio admite ter sido refém de carro entre os 18 e os 25 anos de idade. Passou a andar a pé, de ônibus e de bicicleta por uma questão de economia, e percebeu que era perfeitamente viável não ser tão dependente do transporte a motor.
“O carro é uma bolha que o isola”, afirma, citando a película escura e o vidro fechado como indicadores dessa antissociabilidade. “Pedalar me trouxe uma conexão mais real com a cidade. As pessoas tendem a deixar de ser cidadãs andando de carro: não conseguem ver os problemas, não interagem mais com os outros. É ótimo você poder perceber e atuar: ‘Essa árvore está podre, preciso ligar para as autoridades e avisar, senão ela vai cair’”, analisa. Thiago também considera a bicicleta oportuna em horários não convencionais. “Não há transporte público de madrugada.” No entanto, as condições para o exercício de pedalar nas cidades brasileiras não são as mais adequadas. A transição do Brasil rural para o urbano, a partir do início do século 20, coincidiu com o boom da indústria automobilística europeia e americana. O país absorveu o fenômeno e priorizou o desenvolvimento de uma cultura viária focada nos veículos. O status de ser proprietário de um automóvel logo se tornou mais importante do que tê-lo como meio de locomoção. Aracaju é uma das raras capitais convidativas para pedalar, com 58 quilômetros de malha cicloviária. O ciclista Waldson Costa observa, entretanto, que muitos aracajuanos pedalam para economizar e, assim que possível, comprar uma moto. “Não têm o desejo de continuar com a bicicleta”, conta, citando que há na capital sergipana uma “febre” das motonetas de 50 cilindradas, que muitos acreditam não exigir habilitação nem emplacamento.
paulo pepe
Coragem A paulistana Laura: “Ter ou não ter vias específicas para ciclistas é, no fundo, o menor dos problemas. O ponto principal é a educação no trânsito” REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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comportamento
Morte em São Paulo: trânsito cruel
danilo ramos
Edu Andrade/CON
Massa Crítica: “Somos mais um meio de transporte”
Tensão e luto no asfalto: cidades e motoristas despreparados Em Porto Alegre, uma turma de ciclistas chamada Massa Crítica foi violentamente atingida pelo automóvel do bancário Ricardo Reis, em fevereiro. Após discussões, o motorista de 47 anos acelerou e atropelou diversos participantes. Guilherme Schröder, que testemunhou tudo, conta que, com a repercussão do caso, a Brigada Militar passou a acompanhar os eventos da Massa Crítica. “Mas no último já não esteve. E nem é do nosso interesse que a Brigada nos acompanhe. Somos mais um meio de transporte andando nas ruas. Não há nada de extraordinário nisso”, diz.
Idealizador da organização não governamental Ciclo Urbano, voltada para questões de mobilidade, Waldson costuma propor algumas intervenções em Aracaju em todo 22 de setembro – Dia Mundial sem Carro –, para instigar na sociedade a percepção sobre o mau uso dos espaços públicos. Na última edição, realizaram a Vaga Viva, em que transformaram duas vagas de estacionamento, alugadas ao longo de um dia inteiro, em espaço de sociabilidade, instalando cadeiras e promovendo atividades recreativas. Waldson reconhece as boas condições cicloviárias de Aracaju, mas diz que falta muito para a cidade desenvolver todo o seu potencial. “Muitas ciclovias levam nada a lugar nenhum. Você termina a ciclovia e não sabe para onde vai, porque não existe sinalização específica.” O carioca José Lobo relativiza essa crítica, muito comum no meio de quem pedala. “As pessoas que moram no trecho da ciclovia vão fazer vários usos: ir à casa de um amigo, à padaria. A ciclovia não necessariamente precisa interligar tudo. Ela sempre vai ser um trecho de maior segurança”, defende. Por intermédio da ONG 36
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Em São Paulo, em 13 de junho, o empresário Antonio Bertolucci, de 68 anos, morreu depois de ser atropelado por um ônibus quando fazia um circuito que era parte de sua rotina há muitos anos, no bairro do Sumarezinho. De acordo com a CET, a capital paulista registrou no ano passado 49 mortes de ciclistas por atropelamento. Os cicloativistas reclamam que, mais importante que a adoção de ciclovias, é fundamental que as cidades intensifiquem as campanhas de educação no trânsito e reforcem as sinalizações.
Transporte Ativo, Lobo presta consultoria sobre demandas cicloviárias à Prefeitura do Rio. E não tem ilusão de que todas as ideias sejam realizáveis. “A gente nunca vai conseguir abranger a cidade inteira.” E também diz não saber se as pessoas têm de contar com uma infraestrutura exclusiva para só então desenvolver o hábito de usar bicicleta. Para a paulistana Laura Sobenes, ter ou não ter vias específicas para ciclistas é, no fundo, o menor dos problemas. “O ponto principal é a educação no trânsito”, observa. Ela cita a própria mãe, de 57 anos, certa vez convencida a experimentar um passeio de bicicleta. Intimidada pelo desrespeito dos carros em manter a distância mínima de segurança, ela desistiu. Laura conclui: “Minha mãe faz parte da massa reprimida que, se pudesse, pedalaria 20 quilômetros por dia. Mas não pedala porque o trânsito é muito agressivo”.
Disputa pelo espaço
Na inexistência de ciclovias, é preciso pedalar nas ruas, e não na calçada, determina o Código de Trânsito Brasileiro. A questão é que o motorista de carro não encara a bicicleta como veículo digno de
preconceito Renata: “O cidadão que se locomove por conta própria sempre foi considerado de segunda categoria”
rodrigo queiroz
fluidez no trânsito O carioca José Lobo: “Consigo ser pontual em todos os meus compromissos e, por tabela, economizo e ganho no aspecto físico e no ambiental”
ocupar o mesmo espaço. “O cidadão que se locomove por conta própria desde sempre foi considerado de segunda categoria”, critica Renata Falzoni. É por isso que muitos ciclistas se organizam nas chamadas Bicicletadas, passeios coletivos que ocorrem em muitas cidades, em geral na última sexta-feira do mês. “Quando você tem um grupo de ciclistas na rua, sai daquele manto de invisibilidade e passa a ser percebido”, explica Renata. Na luta contra a invisibilidade, ciclistas paulistanos fizeram, em março, uma nova etapa da Pedalada Pelada, versão da World Naked Bike Ride, evento do calendário mundial do cicloativismo em que os participantes pedalam com pouquíssima ou nenhuma roupa. “Nesse dia somos bastante vistos. Quem pedala não polui, não congestiona ruas, evita gastos de saúde pública, gera uma série de benefícios para a sociedade. Então, tiro a roupa um dia com o desejo de ser visto pela sociedade nos outros 364 do ano”, justifica Thiago Benicchio, que participou pela segunda vez do evento, assim como a colega Laura Sobenes. “Nu é como a gente se sente no trânsito”, ela completa.
Manual de sobrevivência na selva urbana n Equipe-se: capacete é indispensável. Se você cai, mesmo devagarzinho, corre o risco de sofrer um traumatismo. Luvas ajudam a proteger a mão. n Ande pela direita e na mão dos carros. Pedestres e motoristas tendem a não olhar para quem vem na contramão. Se você está a 20 km/h e o carro no sentido oposto a 40 km/h, a aproximação acontece a 60 km/h. O tempo de reação é muito menor e, em caso de colisão, o estrago é muito maior. Há muitas razões cientificamente estudadas para não andar na contramão. Confira em http://bit.ly/pedale_ seguro. n Não ande colado na sarjeta. Ande mais ou menos na linha de um terço da pista.
n Seja compreensivo. Ao passar por trecho sem carros parados, dê uma recuada para desafogar a fila atrás de você. Sinalize o que vai fazer. Avise ao motorista que ele pode passar ou, se precisar entrar na frente dele por causa de um carro parado, espere para ver se ele vai parar mesmo. Agradeça. Ciclista educado é bem recebido pelos motoristas. n Evite grandes avenidas. Em São Paulo, por exemplo, as marginais e a 23 de Maio, nem pensar. Outras movimentadas, com trânsito mais controlado, dá pra encarar, mas é melhor optar por ruas paralelas, que os carros usam menos porque têm de parar mais. O que é ruim para os carros muitas vezes é bom para as bicicletas. Ruas menores são mais seguras e mais agradáveis.
n Calçada é para pedestres. Se precisar passar pela calçada ou atravessar na faixa de pedestres, desça e empurre a bicicleta. n Faixa de ônibus é perigosa. Alguns motoristas não são muito pacientes com ciclistas. n Antecipe-se. Onde muitos carros viram à direita, tome cuidado adicional. Sinalize sempre com a mão esquerda (a que os motoristas veem) se você vai seguir reto, ou peça passagem. Sempre se adiante ao que os carros podem fazer. Olhe para trás para checar se não está chegando um maluco voando para entrar na rua que está à sua frente. Veja se o trânsito está parando em uma única faixa, o que faz com que os carros fujam dela irritados.
n Código de trânsito Deixar de dar preferência a pedestre ou veículo não motorizado na faixa a ele destinada ou não esperá-lo concluir a travessia, mesmo que o sinal fique verde para o veículo, é infração gravíssima. Se o carro não respeita o pedestre ou a bicicleta, mesmo que não haja sinalização a eles destinada, a infração é considerada grave. Tirar “fina” (não guardar distância lateral de um 1,5 metro ao passar por bicicleta) é infração média. Se a fina for em alta velocidade, são duas infrações, média e grave. Fonte: Willian Cruz n Outros toques • vadebike.org • bikeanjo.com.br • www.bicicletada.org • massacriticapoa.wordpress.com
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Ausência de políticas
Próximo de ser celebrado, em 22 de setembro, o Dia Mundial Sem Carro é uma data que, invariavelmente, conta com o apoio de autoridades e órgãos públicos. O que não deixa de ser uma hipocrisia, uma vez que políticas que visem a soluções para o trânsito – com prioridade para o transporte coletivo decente e eficiente – escasseiam. O resultado é que a própria sociedade civil, em massa, ignora a data. No ano passado, por exemplo, o 22 de setembro não amenizou o congestionamento de São Paulo. Às 19 horas, a
lentidão era de 112 quilômetros – média idêntica à de um dia comum. Também em 2010, a cidade de Curitiba organizou a Conferência Internacional das Cidades Inovadoras, com o intuito de apresentar alternativas urbanas sustentáveis. Na ocasião, o prefeito Beto Richafoi questionado por um grupo de ciclistas pelo fato de o investimento em ciclovias no orçamento municipal prever R$ 2,27 milhões, enquanto a aplicação real dos recursos foi recalculada para R$ 26 mil. Assim, é natural que iniciativas privadas tentem cobrir lacunas da administração pública. O Plano das Bikes Brancas, inspirado em experiência similar de Amsterdã, consiste em espalhar protótipos de bicicletas pela capital paranaense, permitindo aos interessados, cadastrados por e-mail, o uso gratuito de uma magrela por até uma semana. Em São Paulo existem dezenas de organizações. Uma delas, o projeto Bike Anjo, reúne ciclistas experientes que, voluntariamente, auxiliam pessoas que queiram começar a pedalar na cidade, indicando trajetos e orientando sobre cuidados, direitos e deveres no trânsito.
Exemplo europeu O sistema Bicing, de Barcelona, é referência mundial. O usuário utiliza seu cartão para destravar uma bicicleta em uma estação e tem até 30 minutos para devolvê-la em qualquer outra. A taxa, anual, é de € 30. A capital catalã tem ciclovias e ciclofaixas (“corredores” pintados no chão de ruas e de calçadas).
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paulo donizetti de souza
Mesmo os ciclistas experientes reconhecem essa sensação de permanente vulnerabilidade. Para o gaúcho Guilherme, ter visto o atropelamento dos colegas foi traumático. Mas não o suficiente para esmorecer ou desistir de pedalar. “Acho que o movimento de pessoas usando bicicleta até aumentou”, diz. O incremento de adeptos sobre duas rodas é fundamental para criar uma nova mentalidade, segundo José Lobo. “Quanto mais pessoas pedalando, mais os motoristas se acostumam a cruzar com ciclista no meio do caminho”, projeta.
“Achei a ideia do Bike Anjo superlegal e disse que queria ajudar, porque quero que cada vez mais pessoas pedalem”, afirma a secretária bilíngue Célia Choairyde Moraes, ciclista desde 2007 e voluntária no projeto. Nem a Copa em 2014, nem os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro em 2016 parecem mobilizar autoridades para uma repaginação da infraestrutura viária que deixe legados. Seria um grande desperdício de oportunidade. Barcelona, por exemplo, não inventou seu moderno sistema cicloviário em função da Olimpíada de 1992. Mas a preparação daquela edição dos Jogos serviu para a cidade superar seu problema crônico de trânsito ao modernizar a rede de transporte coletivo. A superação do status de decadente, a retomada da vocação cosmopolita e a intensificação do uso da bicicleta, na década passada, são boas consequências de um planejamento urbano que foi além do evento esportivo.
Anjos de duas rodas Um dia depois da inauguração de uma ciclorrota no Brooklin, na zona sul de São Paulo, a relações-públicas Lis Silva Santos Araripe trocou o carro pela bicicleta para ir trabalhar. Célia Choairy de Moraes, ciclista acostumada com trânsito, acompanhou-a, ajudou a traçar um bom trajeto e deu dicas de segurança. Célia é voluntária do Bike Anjo, projeto presente em 26 cidades que conecta ciclistas experientes com quem precisa de auxílio para começar. Pela internet, o interessado preenche um formulário e pede orientação a um voluntário. Para Lis, a experiência de Célia foi uma ajuda e tanto: “São dicas muito boas. Meu objetivo é ir trabalhar de bicicleta pelo menos duas vezes por semana”. O projeto tem 200 voluntários cadastrados em várias cidades, 150 em São Paulo. Já recebemos 180 pedidos, dos quais 150 foram atendidos”, diz o consultor de negócios João Paulo Amaral, um dos idealizadores do projeto. Em breve, os organizadores pretendem oferecer cursos na área. “A gente dá um empurrãozinho, mostra que não é tão difícil usar a bike como meio de transporte. Tenho sentido que, por causa da pressão da sociedade e dos cicloativistas, está havendo mais respeito do motorista e compreensão de que realmente a bicicleta é um meio de transporte. É um movimento que está crescendo”, comemora.
A arquiteta Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, observa que em algumas cidades-sedes de jogos da Copa – como Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro – o planejamento da infraestrutura voltada para a mobilidade tem bons pro-
jetos de expansão do transporte de massas, como corredores de ônibus e de coletivos leves sobre trilhos (“Tucanaram o bonde”, brinca). E que em outras cidades, como Fortaleza, há também projetos de expansão do sistema viário. Mas vê esses planejamentos com ressalvas.
gerardo lazzari
A novata Lis, ao fundo, segue as dicas da bike anjo Célia
“No geral, a infraestrutura viária visando 2014 está sendo pensada em função dos deslocamentos entre aeroportos e hotéis e os locais dos jogos, mas não especificamente em função de deixar um legado compatível com as necessidades e prioridades da população posteriores aos eventos”, diz Raquel. De acordo com a urbanista, não houve nos últimos anos – nem há num horizonte próximo – um planejamento capaz de reverter a matriz do transporte urbano. As cidades, segundo ela, priorizam o transporte individual em detrimento do coletivo, e o deslocamento motorizado em detrimento da mobilidade de pedestres e ciclistas. “E já está absolutamente comprovado que, dessa forma, não há solução. A ampliação da mobilidade passa pela adoção de um sistemas integrado, de massa, multimodal, articulando corredores de alta capacidade e de baixa capacidade (como as vans). Estamos subordinados a uma visão segundo a qual preocupacão com transporte é coisa de pobre”, critica. Em São Paulo, segundo o vereador e ex-presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego Chico Macena, a prefeitura tem pelo menos 522 quilômetros de ciclovias planejadas para 2012. “Mas isso é fruto mais de reivindicações de ciclistas do que filosofia de gestão”, observa. Em 2007, trajetos feitos pela integração de bicicleta e metrô foram permitidos pelo Sistema Cicloviário do Município, com a criação de bicicletários e vagões especiais. Mas esses sistemas atendem mais a uma demanda pelo uso de bicicleta como lazer do que como opção de locomoção alternativa ao carro. A vulnerabilidade dos ciclistas fica mais exposta quando termina em acidentes como o atropelamento em série em Porto Alegre ou tragédias como a que vitimou o empresário Antonio Bertolucci, atingido por um ônibus. De acordo com o publicitário Tito Bertolucci, o pai já havia se acidentado outras vezes. “Ele tinha uma condição legal, podia pegar um motorista que o levasse com a bicicleta para pedalar na Cidade Universitária. Mas não gostava de circuitos fechados. Gostava de ver o que estava acontecendo no cotidiano da cidade.” Colaborou Xandra Stefanel REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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cinema
Não envelhece Reza a lenda que François Truffaut teria batido o recorde de elogios ao assistir a Cidadão Kane: “Maravilhoso! Inteligente! Atemporal! Surpreendente! Transgressor! Poético!” Por Tom Cardoso Direção e atuação: Orson Welles, então com 25 anos, interpretou Charles Foster Kane da juventude até a morte solitária
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ois é, o clássico dirigido por Orson Welles completa 70 anos com o frescor e as qualidades apontadas pelo cineasta francês François Truffaut. Nenhum outro filme da história influenciou diretores tão distintos e importantes, de Federico Fellini a Stanley Kubrick. E olha que Orson Welles poderia até se dar ao luxo de viver intensamente como Janis Joplin, Jimi Hendrix e Amy Winehouse e encarar sem medo a maldição dos 27 anos. Afinal, tinha apenas 25 quando terminou de filmar Cidadão Kane, considerado até hoje o maior longa-metragem de todos os tempos. Era a primeira vez na história da indústria do cinema que um jovem diretor, com apenas alguns curtas-metragens na bagagem, ganhava carta branca para dominar a produção de um filme do começo ao fim. Welles, porém, estava longe de ser um aventureiro. Já mostrara talento no teatro e, principalmente, como radialista, ao provocar pânico na população dos Estados Unidos, em 30 de outubro de 1938, com a simulação de uma invasão extraterrestre. Era apenas uma genial adaptação radiofônica do livro de ficção A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. Os americanos não viram nada de ficção naquilo – alguns até se suicidaram –, mas Wellesse divertiu um bocado. A partir dali, passou a pensar num filme que revolucionasse a técnica de fazer cinema usando a linguagem radiofônica, que ele dominava como poucos. Começava a nascer o filme que é considerado o pai do cinema moderno. O jornalista e crítico de cinema Sérgio Augusto tinha apenas 16 anos quando viu pela primeira vez Cidadão Kane, durante uma mostra de cinema americano na sala Cinemateca, no Rio de Janeiro, em 1958. Cinéfilo desde o início da adolescência, Sérgio ouvira falar maravilhas do filme, de suas
tesco, mas não tem nenhuma importância diante da grandeza do filme”, afirma o jornalista. Muito se especulou sobre qual seria o verdadeiro significado de “Rosebud” (botão de rosa). Alguns críticos americanos juram que a palavra era uma alusão à parte íntima da anatomia da amante do magnata das comunicações William Randolph Hearst, que serviu de inspiração para a criação do personagem Charles Foster Kane. Hearts, aliás, ficou furioso com o filme de Welles e tentou a todo custo proibir sua exibição. Proprietário na época de 28 jornais e 18 revistas, além de várias cadeias de rádio e de uma grande produtora de cinema, o milionário era tão poderoso que o chefão da MGM, Louis B. Mayer, desesperado com suas ameaças, ofereceu US$ 800 mil à produtora RKO para que esta queimasse o negativo do filme. O resto é história. Pouco palatável para a classe média americana, o clássico de Welles não chegou a ser um sucesso comercial (das nove categorias indicadas para o Oscar, ganhou apenas uma – melhor roteiro, do próprio Welles e de Herman J. Mankiewicz), mas atravessou sete décadas cultuado por uma legião de cinéfilos e de jovens diretores. É o caso de Marcus Baldini, diretor de Bruna Surfistinha, uma das maiores bilheterias do cinema brasileiro em 2011. Baldini viu o filme pela primeira vez na faculdade de Cinema. O que
Culto à pessoa: o magnata é um poderoso homem da mídia. A transformação do ator é impressionante
inovações na estrutura narrativa e nos enquadramentos. Mas, mesmo com tantas referências, não esperava assistir a algo tão moderno. “Eu enlouqueci. Sabia que aquele filme tinha mudado a história do cinema, mas não imaginava que provocaria aquele impacto em mim”, diz Sérgio. “A partir dali, em todo filme que eu gostava enxergava um pouco da influência de Cidadão Kane, de Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, a Oito e Meio, de Fellini. Sérgio Augusto viu tantas vezes Cidadão Kane que passou a achar alguns erros de filmagem. Alguns graves. A palavra “Rosebud”, dita pelo protagonista Charles Foster Kane antes de sua morte – o sentido da expressão é o grande segredo do filme –, não poderia, segundo Sérgio Augusto, ser ouvida por ninguém. “Charles está sozinho no quarto naquele momento – a enfermeira só entra depois que ele já está morto. É um erro aparentemente gro-
Pioneiro: cada cena foi meticulosamente calculada
Simbolismo: o trenó do menino Kane vai para a fogueira junto com todas as vaidades
era uma obrigação curricular virou um enorme prazer. “Achei que assistiria a mais um filme datado, considerado ‘genial’ pelos críticos e pouco prazeroso de ver”, lembra Baldini. “Mas não é nada disso. O filme mantém o frescor. Não parece feito há 70 anos. Sempre que revejo acho algo novo – é para ser visto apreciando cada detalhe.” Recentemente, a Warner realizou um grande trabalho de restauro, quadro a quadro, do clássico. A edição especial, Citizen Kane: 70th Anniversary Ultimate Collector’s Edition, pode ser adquirida no site da Amazon por US$ 45. É mais uma oportunidade de conferir por que um filme completa 70 anos de idade com corpinho de 20. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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viagem
Onde vive o Pequena cidade mineira, Cordisburgo preserva o universo de Guimarães Rosa entre o real e o imaginário Por Vitor Nuzzi
sertão
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Cantos e contos durante caminhada
fotos ronaldo alves
rasinha tentou de todo jeito convencer Stamar a transformar seu elefante em boi ou cavalo – tinha mais a ver com aquela terra de vaqueiros. Até ouvir o argumento definitivo. O sertão não está em todo lugar? Pode estar na Índia também. Então, o elefante que Stamar escolheu por ser “grandão, bonito” está lá na entrada da cidade. E descendo a rua logo se percebe que o lugar pertence mesmo a um universo – literário e real – diferente, em uma cidade pequena do interior de Minas Gerais onde, quando em vez, um trem de carga apita ao longe, mas parece bem perto. O mestre de obras Stamar de Azevedo Júnior, 52 anos, desde os 14 na cidade, é o dono do elefante. Seria sua casa, mas deve virar pousada. A obra já dura dois anos e meio. Brasinha é José Osvaldo dos Santos: não parava quieto no banco escolar e um colega disse que parecia ter “uma brasa queimando a bunda”. Com o tempo, virou Brasinha, e continua irrequieto, a pesquisar personagens, histórias, lugares. “Não sou um acadêmico, sou só um sertanejo, como diria o Riobaldo.” E o lugar é Cordisburgo (que significa cidade de coração), fundada em 1864 e emancipada em 1938. Nove mil habitantes, duas ruas mais movimentadas, quatro escolas, um hospital municipal, uma agência bancária e duas lan houses. Em julho, o muito calor do dia não basta para afastar o muito frio da noite.
Caminhando e cantando com Guimarães Rosa
Joãozito estreiou na literatura em 1946, com Sagarana
Não sou um acadêmico, sou só um sertanejo, como diria o Riobaldo Brasinha
Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press
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A concentração começa às 7 horas, a caminhada só se inicia depois das 9, em uma fazenda a cinco quilômetros da cidade. Contadores e um violeiro lideram o grupo, formado por mais de 100 pessoas, que vão andar três quilômetros enquanto ouvem canções e o conto “Conversa de Bois”, do livro Sagarana. Nele, Manuel Timborna diz que pode contar uma história, e o narrador replica a história. Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco... Os contadores, do grupo Caminhos do Sertão, fazem várias paradas e vão narrando trechos. O violeiro toca. A área integra o Monumento Natural Estadual Peter Lund, dinamarquês que durante anos, a partir de 1834, pesquisou a Gruta do Maquiné, ponto final da jornada. Trecho de cerrado, cerradão, mata seca, mata atlântica – a cultura do eucalipto aumenta na região e ameaça o cerrado e o sertão de Rosa. Mas há muita riqueza de flora e fauna – animais como onça, paca, capivara, raposa, veado, quati e seriema ainda circulam por ali. É ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor – tudo, pensado, é pior... Fábio Barbosa é um dos contadores. Vira gente, vira boi. Ex-Miguilim, tem 31 anos. “Você sempre descobre uma forma nova de dizer uma frase. Decorar é o de menos”, conta. Ele teve dificuldade para passar a outros autores. “Demorei a me desprender de Guimarães Rosa.” Gosta dos clássicos: Machado de Assis, Erico Verissimo, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade. “E recentemente descobri o Tchecov.” E escreve também? “Prefiro dizer que não”, responde, dando risada. O cantador é Di Souza. O cordisburguense Elvis Carlos de Souza, 31 anos, acha que falta espaço para a música de raiz. “Acredito que é mais em função da mídia. Tudo começou com a música caipira. Aí veio a música sertaneja, depois o sertanejo romântico, pop, universitário. Daqui a pouco vem o funk sertanejo”, ironiza. Na beira do Maquiné, após duras horas de canto e prosa, termina a caminhada. Brasinha agradece à tropa: “O sertão é muito duro, mas nos ensina toda hora”.
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viagem Ali, a um tirinho da estação de trem, ainda de passageiros, um menino via passar os bois, ouvia casos, acompanhava o movimento, os loucos que eram levados para Barbacena. Menino diferente, o Joãozito. Estudava escondido em vez de fugir para brincar. O pai dele, Florduardo, seu Fulô, convocou um garoto da vizinhança, o Juca, para ver se o filho largava os livros. Tropeiros, vaqueiros enriqueciam-me a imaginação. Hoje com 59 anos, o jovem Brasinha conheceu um já idoso Juca Bananeira, que tinha uma barraca em frente à estação (morreu em 1998, aos 104). “Era um meninão, um velho que fazia gaiolas, brincava com as crianças”, lembra, encantado quando Juca disse: “Eu tô dentro de Sagarana”. Era personagem do conto “Burrinho Pedrês”. Brasinha foi vendo dentro daquela ficção muita coisa real. “Ele fez uma leitura da alma do sertão. Eu falo que ele escreveu o que a gente pensa, mas não dá conta de falar”, acrescenta o dono de um empório com tudo o que se possa imaginar – e, no meio disso tudo, um exemplar do conto “A Hora e Vez de Augusto Matraga” em holandês: “Het Uur em Ogenblik van Augusto Matraga”.
Morar em Cordisburgo já é inspirador Stênyo
Lançado em 1946, Sagarana foi o livro de estreia de Joãozito, ou João Guimarães Rosa, então com 38 anos – o livro de poe mas Magma é de 1936, mas foi publicado apenas em 1997. Seu único romance, Grande Sertão: Veredas, é de 1956, mas nasceu quatro anos antes, quando o escritor, médico e diplomata viajou com um grupo de vaqueiros conduzindo bois ao longo de 240 quilômetros, durante dez dias. Um dos boiadeiros, João Henrique Ribeiro, o Zito, disse a ele: “Essas bobajadas que você está anotando, se você resolver escrever um dia, vai ficar bom”. Ele disse também que “esse homem (Rosa) tem algum encantamento”, por fascinar tanta gente durante tanto tempo. Todos os anos um bando de fascinados vai a Cordisburgo para rosear. Durante uma semana, participam de palestras, serestas, exposições, shows, oficinas, caminhadas – a chamada Semana Roseana, que teve sua 23ª edição em julho. “É uma semana dedicada ao estudo e à conserva-
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“Bobajadas”
Adolescência saudável Eliza é uma das diretoras do Grupo Miguilim
ção da obra do imortal Guimarães Rosa, para amarmos cada vez mais essa obra formidável”, define o presidente da Academia Cordisburguense de Letras, Raimundo Alves, advogado, professor na vizinha Araçaí e cronista. “Eu queria ser poeta, mas não dei conta”, brinca. Boa parte dos roseanos é de São Paulo. Há sete anos, uma confraria se reúne todas as semanas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), na USP, para ler textos de Rosa. Sem pretensões acadêmicas, apenas um encontro de amigos para ler e trocar ideias. Além, claro, de tomar cachaça e comer biscoito de polvilho.
A casa onde ficava a vendinha de secos e molhados de seu Fulô e Joãozito é desde 1974 o Museu Casa Guimarães Rosa, pertencente ao governo mineiro. Há quase 20 anos começou a ser formada a Associação dos Amigos do Museu. “A comunidade começa a se apropriar do espaço”, diz Ronaldo Alves de Oliveira, diretor da casa, que começou a ler Rosa no ginásio e recomenda Sagarana aos iniciantes. Durante a Semana Roseana, Ronaldo anunciou um plano de revitalização do museu visando a uma nova exposição, de longa duração, o projeto Memória Viva do Sertão, e um inventário de toda a área descrita por Guimarães Rosa, até o extremo norte de Minas Gerais. Um “museu de território”, diz. Em 2010, o local foi visitado por 23 mil pessoas, e a expectativa é de que o número aumente este ano. Para Ronaldo, a virada definitiva veio com a criação, em 1995, do Grupo Miguilim, com jovens contadores de histórias – ideia de Calina Guimarães, prima do escritor. “Ela dizia que o grande objetivo do projeto é passar a adolescência de forma saudável”, lembra Eliza Almeida,
Preciosidade No Museu Casa Guimarães Rosa está a Remington do escritor
que dirige os Miguilins junto com Dôra Guimarães. Incansáveis, as duas foram assumindo o projeto à medida que Calina se afastava, por motivos de saúde. “Esses meninos são os arautos do Guimarães Rosa, são os anjos dele”, diz Brasinha.
Gerações de Miguilins
Os Miguilins estão na sétima geração. Eles começam entre os 9 e 10 anos e só podem ir até os 18. Levam pelo menos dois anos para narrar histórias. Acompanham visitantes pelo museu, onde fazem estágio. Um pedaço desse trabalho pode ser visto por meio da recém-criada visita virtual (www.eravirtual.org/rosa_br/). O advogado e acadêmico José Maria Gonçalves, o Nenzito, é da primeira geração. Agora, está no grupo Caminhos do Sertão, que organiza as caminhadas ecoliterárias. “Decorar é a última coisa. Tem
de viajar no sentimento”, conta Nenzito, que declamava poesia na escola. Seu patrono na academia é Manuel Bandeira. Stênyo Félix de Azevedo Silva, 16 anos, está no Miguilim desde os 11, mas passou a se apresentar há apenas dois. Só tem mais dois pela frente. Vai à escola de manhã e faz curso técnico à noite, em Sete Lagoas, principal município da região. Sua explicação para virar Miguilim é singela: “Morar em Cordisburgo já é inspirador”, diz o garoto que gosta de pescar, de ir à lan house, de futebol e música. Ele possivelmente seguirá o caminho de tantos outros meninos e meninas, se quiser continuar os estudos e arrumar trabalho. A economia de Cordisburgo baseia-se, principalmente, na pecuária leiteira e no serviço público. De indústria, restaram as chaminés de uma antiga cerâmica, perto do zoológico de pedra, com esculturas de animais pré-históricos feitas por Stamar – aquele do elefante. A renovação tem de ser constante. Dos quatro “veteranos” da turma de Eliza, por exemplo, dois estão de saída. Uma Miguilim vai cursar Engenharia Civil e outra arrumou emprego em Sete Lagoas. Também se busca uma aproximação entre o mundo acadêmico e o universo descrito por Guimarães Rosa. A cantora popular Maria Clara da Silva, a Clarinha, personagem da cidade, brinca: “Ele não gostava muito de academia, ciência, essas coisas. Usava nós, os capiau”.
A partir da vivência de gari, ela criou uma usina de reciclagem de lixo. Durante a Semana Roseana, apresentou-se na posse de um novo membro da academia – entrou dançando e cantando uma música da dupla João Mineiro e Marciano: Meu pai aprendeu seguindo/ Meu avô pelos sertões/ E hoje eu sigo os mesmos passos / Porque sou pedaço de três gerações. A prima Enny Guimarães de Paula conta, em livro, que o escritor dizia ter pressa para trabalhar e queria se dedicar “ao melhoramento da nossa língua”. O “pouco tempo” se devia ao fato de quatro parentes terem morrido aos 58 anos, o que atormentava Rosa. “É preciso criar palavras novas, inventar palavras que tenham força significativa, que expressem bem as ideias”, afirmou. Por algum pressentimento, ele adiou por quatro anos a posse na Academia Brasileira de Letras. Morreu aos 59. Logo depois de tomar posse. E do coração, o que remete ao nome da cidade. Nos últimos tempos, já não podia comer o tutu com linguiça que tanto apreciava. “Penso que essa obsessão, essa cisma de morrer aos 58, foi que o matou aos 59”, escreveu a prima Enny. Em 1968, um ano depois da morte de Joãozito, a mãe dele, dona Francisca, Chiquinha, lembrava do filho “amoroso” e oferecia uma explicação. “Sabe? Às vezes eu penso que por isso ele morreu tão moço. Era comoção demais em tudo.”
“Nessa travessia, Joãozito foi anotando a fala dos peões e toda a essência do que ouvia e via, em sua inseparável cadernetinha com lápis apontados dos dois lados, que trazia dependurados no pescoço.” Assim Enny Guimarães de Paula, prima do escritor, descreveu a viagem de Guimarães Rosa pelo sertão mineiro, de 19 a 28 de maio de 1952. Foram 240 quilômetros conduzindo uma boiada. Nos primeiros dias, devido à dificuldade maior em controlar os bichos, havia 18 boiadeiros, que depois passaram para oito. A todos, ele perguntava tudo o tempo todo, cada detalhe. O que renderia um resmungo do mais conhecido dos boiadeiros do universo roseano, Manuel Nardi, o Manuelzão, que morreu em 1997 (também em maio), aos 92 anos – e ele também tem um evento próprio, a Festa do Manuelzão, em Andrequicé. Conta Brasinha, que conheceu Manuelzão: a certa altura, Guimarães Rosa perguntou sobre determinada fruta. Manuelzão disse o que era. Aí o escritor replicou se aquilo se comia, o boiadeiro disse que não. Muitos anos depois, ele disse a Brasinha: “Devia falar que come, assim ele morre e para de me perguntar as coisas”. Falou da boca pra fora, conforme se vê nos versos de Zito: Manoezão tá contente/ Co a viajem que fazia/ Todo que passava/ Dotor João Zito escrevia.
EugÊnio Silva/O Cruzeiro/EM/D.A Press
Dez dias, 240 km e um clássico
Guimarães, entre os peões: perguntas e anotações
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CurtaessaDica Por Xandra Stefanel
xandra@revistadobrasil.net
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
James Franco interpreta Aron Ralston
Real O filme 127 Horas, dirigido por Danny Boyle (Quem Quer Ser um Milionário), é baseado na história do montanhista Aron Ralston, que sofreu um acidente no Grand Canyon e ficou mais de 127 horas com o braço preso por uma rocha que se desprendeu e o derrubou numa fenda. Aron, interpretado por James Franco, tenta de tudo para se salvar e, quando já não há esperança, apela para soluções desesperadas. A situação é intercalada por flashbacks, sonhos e pela produção de uma espécie de talk show, filmado pelo personagem. Em DVD. 46
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Ana Paula Arósio, como Júlia
À flor da pele Júlia (Ana Paula Arósio) é uma professora de literatura inglesa que tenta se recuperar do término de um intenso e duradouro relacionamento com Antônia. Sem nunca disfarçar sua dor, a protagonista encontra outras pessoas que também estão vivendo situações de perda. Como Esquecer, dirigido por Malu de Martino, traz histórias universais pelas quais todos passam, mais cedo ou mais tarde. Um filme sobre amor e como amar pode ser difícil, independentemente da orientação sexual. Com Murilo Rosa, Natália Lage e Arieta Corrêa. Em DVD.
Força feminina Em seu novo álbum, Mundos, Marcia Cherubin mistura ritmos brasileiros com letras que tratam sobre seus caminhos e os de sua gente, com quem cruza “pelas esquinas do mundo”. Com voz marcante, ela canta chorinho, samba, xote, bossa e cantigas que evocam suas raízes, a força da mulher, a paz, a simplicidade da vida, crenças e fé. A compra do CD (R$ 15, mais taxa postal) pode ser feita pelo site, que também tem a agenda da cantora. http:// marciacherubin.com.br.
Bastidor animado
A história de Blu, a arara vermelha do filme Rio, é recontada na exposição Rio: a Arte da Animação, em cartaz até 4 de setembro no Museu Nacional de Belas Artes/ Ibram, na Cidade Maravilhosa. O visitante vai conhecer os bastidores do desenho animado, desde as primeiras páginas
Futebol no escuro Imagine jogar uma partida de futebol com os olhos vendados. Esse é um dos desafios propostos pela exposição Olhar com Outro Olhar, no Museu do Futebol. Assim que chega, o visitante é convidado a vendar os olhos e, se topar, passa a usar apenas o tato e a audição para explorar as obras, sempre com a orientação de guias ou audioguias. A mostra interativa apresenta quadros em alto-relevo e instalações como o Futebol de Cinco, uma caixa preta que serve de estádio, onde se joga por meio de pontos de emissão de áudio, como os atletas com pouca ou nenhuma visão. Até 18 de setembro, de terça a domingo, das 9h às 18h, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. R$ 6 e R$ 3.
do roteiro até o resultado final, com apresentação de cenários, storyboards, desenhos feitos a mão e as modernas tecnologias de edição. Dos mesmos produtores americanos de A Era do Gelo, o filme é dirigido pelo brasileiro Carlos Saldanha. De terça a sexta, das 10h às 18h, e aos fins de semana, das 12h às 17h. Na Avenida Rio Branco, 199. R$ 5, R$ 2 e grátis aos domingos.
Laço materno Depois dos livros-reportagem Coluna Prestes – O Avesso da Lenda, O Olho da Rua e A vida Que Ninguém Vê, a jornalista gaúcha Eliane Brum lança sua primeira ficção. Em Uma Duas (Ed. Leya, 176 pág.), Eliane relata o relacionamento entre mãe e filha, um retrato assustadoramente humano sobre os laços que unem essas duas mulheres e a influência que uma exerce sobre a outra. R$ 34,90.
Escondido com Anne Em O Anexo (Cia. das Letras, 288 pág.), a autora Sharon Dogar faz com que o garoto Peter, de 15 anos, dê “oportunidade” para que Anne Frank conte sobre os dois anos em que viveu escondida com outras sete pessoas no anexo de um armazém em Amsterdã, durante a Segunda Guerra. Além do romance que Sharon imagina ter acontecido entre os adolescentes, a ficção narra a chegada dos nazistas, a viagem até o campo de concentração e a luta pela sobrevivência. R$ 34. REVISTA DO BRASIL agosto 2011
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FUNDAÇÃO PROJETO TRAVESSIA C.N.P.J.(MF) nº 01.044.756/0001-03 Balanço patrimonial dos exercícios findos em 31 de dezembro (em reais) A
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CIRCULANTE CIRCULANTE Caixa e Bancos 16.602,20 15.713,93 Fornecedores 7.128,08 13.539,56 Aplicação Financeira 378.245,58 361.044,67 Obrigações Fiscais. Tributárias 3.868,07 3.768,57 Outros Créditos 23.253,83 27.663,28 Obrigações Sociais 8.244,29 8.454,38 TOTAL DO CIRCULANTE 418.101,61 404.421,88 Obrigações Terceiros 1.220,00 1.220,00 Provisão Para Férias e Encargos 61.326,73 70.192,45 NÃO CIRCULANTE Realizável a Longo Prazo TOTAL DO CIRCULANTE 81.787,17 97.174,96 Crédito de Instituidores 1.180.000,00 1.180.000,00 1.180.000,00 1.180.000,00 NÃO CIRCULANTE PERMANENTE Outras Obrigações 3.497.291,96 3.355.350,21 Edificios 278.538,81 278.538,81 Máquinas e Equipamentos 79.937,30 79.937,30 TOTAL DO NÃO CIRCULANTE 3.497.291,96 3.355.350,21 Móveis. Utensílios e Instalações 168.763,60 167.168,60 PATRIMÔNIO LÍQUIDO Veículos 33.900,00 25.023,00 Fundo Patrimônio Social 296.685,78 296.685,78 Computadores e Periférico 172.105,67 171.976,67 Doações 292.352,00 292.352,00 Marcas e Direitos 11.780,73 11.780,73 Deficit Acumulado -2.102.646,63 -1.551.738,40 (-) Depreciação Acumulada -419.752,42 -379.930,67 Deficit do Exercício -142.094,98 -550.908,23 TOTAL DO PERMANENTE 325.273,69 354.494,44 TOTAL DO NÃO CIRCULANTE 1.505.273,69 1.534.494,44 TOTAL DO PATRIMÔNIO LÍQUIDO -1.655.703,83 -1.513.608,85 TOTAL DO ATIVO 1.923.375,30 1.938.916,32 TOTAL DO PASSIVO 1.923.375,30 1.938.916,32
Demonstração de resultados dos exercícios findos em 31 de dezembro (em reais)
Demonstração do Fluxo de Caixa para os exercícios findos em 31 de dezembro (em reais)
2010 2009 ATIVIDADES OPERACIONAIS Superávit (Déficit) do período -142.094,98 -550.908,23 924.000 ,00 Aumento (diminuição) dos itens que não afetam o caixa: 249.744 ,40 Depreciação e amortização 46.077,20 49.120,88 181.446 ,31 Perdas (ganhos) na alienação sobre o ativo investimentos 0,00 0,00 -1.558 ,56 Perdas (ganhos) na alienação sobre o ativo imobilizado 18.767,55 0,00 0 ,00 6.572 ,63 Redução (aumento) do ativo -6.618 ,65 Contas a receber 0,00 0,00 Outros Créditos 4.409,45 -7.054,19 1.353.586 ,13 Aumento (redução) do passivo CUSTO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Fornecedores -6.411,48 12.654,56 Custo Com Pessoal -578.593 ,93 -705.943 ,77 Obrigações sociais e fiscais -110,59 -563,01 Encargos e Contribuições Sociais -223.331 ,67 -312.312 ,98 Provisão de férias -8.865,72 -55.375,11 Benefícios Com Pessoal -201.159 ,77 -260.010 ,23 Outras obrigações 0,00 1.220,00 Depreciação -46.077 ,20 -49.120 ,88 Impostos. Taxas e Contribuições -8.551 ,11 -7.764 ,85 Geração (utilização) de caixa das atividades operacionais -88.228,57 -550.905,10 Serviços Profissionais Externo -56.460 ,74 -344.981 ,29 Atendimento e Atividade Social -214.582 ,57 -308.852 ,50 ATIVIDADES DE INVESTIMENTOS Manutenção. Conservação e Reparos -6.648 ,35 -11.136 ,92 Aquisições de ativo imobilizado -35.624,00 -32.677,39 Aquisições de ativo intangível 0,00 0,00 TOTAL DO CUSTO PROJETO SOCIAL -1.335.405 ,34 -2.000.123 ,42 Geração (utilização) de caixa das atividades de investimentos -35.624,00 -32.677,39 RESULTADO FINANCEIRO Receitas Financeiras 21.347 ,69 51.011 ,54 ATIVIDADES DE FINANCIAMENTOS (-) Despesas Financeiras -3.219 ,76 -3.998 ,58 Recebimento de empréstimos e financiamentos 141.941,75 162.769,19 Pagamentos de empréstimos e financiamentos 0,00 0,00 TOTAL DO RESULTADO FINANCEIRO 18.127 ,93 47.012 ,96 Recebimentos e doações integradas ao PL 0,00 0,00 OUTRAS ARRECADAÇÕES SOCIAIS LÍQUIDA 11.501 ,65 48.616 ,10 Geração (utilização) de caixa das atividades de financiamentos 141.941,75 162.769,19 DÉFICIT DO EXERCÍCIO -142.094 ,98 -550.908 ,23 Aumento (diminuição) no caixa e equivalentes 18.089,18 -420.813,30 Caixa e equivalentes no início do período 376.758,60 797.571,90 Caixa e equivalentes no fim do período 394.847,78 376.758,60 Aumento (diminuição) no caixa e equivalentes 18.089,18 -420.813,30 DESCRIÇÃO PATRIMÔNIO DOAÇÕES E SUPERÁVIT/ TOTAL SOCIAL SUBVENÇÕES DÉFICIT ACUMULADO Nota 01 - CONTEXTO OPERACIONAL DA INSTITUIÇÃO. A “FUNDAÇÃO PROJETO TRAVESSIA” é uma associação civil de direito privado, sem fins lucrativos e de DE 2008 296.685,78 292.352,00 -1.551.738,40 -962.700,62 natureza filantrópica, fundada em 1995, com os seus atos constitutivos registrados no “3º Registro Civil das Pessoas Jurídicas de São Paulo” em janeiro de 1996, conforme microfilme nº. 258.727. AUMENTO DO PATRIMÔNIO Conforme preceitua o artigo 5º, do Capítulo III, do Estatuto Social, a “FUNDAÇÃO PROJETO TRAVESSIA” tem Tranferência Superávit 0,00 0,00 0,00 0,00 por objetivo: “I) eleger as crianças e os adolescentes, especialmente aqueles que estiverem em condições sociais e econômicas desfavoráveis, como segmento prioritário de sua ação; II) fazer respeitar os direitos DÉFICIT ACUMULADO assegurados à criança e ao adolescente referentes a: i) ensino obrigatório; ii) atendimento educacional espeDéficit do Exercício 0,00 0,00 -550.908,23 -550.908,23 D E S C R I Ç Ã O 2010 ARRECADAÇÃO ATIVIDADE FIM Contribuições, Doações, Convênios e Eventos De Mantenedores 877.000 ,00 Parceria Órgãos Privados 374.616 ,60 Convênio Órgãos Públicos 0 ,00 (-) Devolução Convênios não Aplicado -105.307 ,52 Contribuições e Doações Eventual 5.000 ,00 Promoções e Eventos Institucionais 12.813 ,50 (-) Custo Eventos Promocionais -441 ,80 TOTAL ARRECADAÇÃO ATIVIDADE FIM 1.163.680 ,78
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Demonstração das mutações patrimoniais dos exercícios findos em 31 de dezembro (em reais)
cializado aos portadores de deficiência; iii) atendimento em creches e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos de
idade; iv) ensino noturno regular adequado às condições do educando; v) programas suplementares de oferta DE 2009 296.685,78 292.352,00 -2.102.646,63 -1.513.608,85 de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando de ensino fundamental; vi) serviço de assistência social visando a proteção à família, à maternidade e à adolescência, bem como o amparo às AUMENTO DO PATRIMÔNIO crianças e adolescentes que deles necessitem; vii) acesso às ações e serviços de saúde, tudo conforme prevê Tranferência Superávit 0,00 0,00 0,00 0,00 a Lei 8.069 de 13.07.1990”. De acordo com o Estatuto Social da Entidade, todo benefício e promoção de seus assistidos, “crianças, adoDÉFICIT ACUMULADO lescentes e seus familiares”, é inteiramente gratuito. A origem da arrecadação financeira da Entidade está Déficit do Exercício 0,00 0,00 -142.094,98 -142.094,98 DE 2010
296.685,78
292.352,00
-2.244.741,61
-1.655.703,83
fundada em doações de pessoas físicas e jurídicas, e de parcerias com o setor público e privado que comungam com os objetivos sociais, assistenciais, da promoção da pessoa humana e filantrópicos da Entidade.
informe publicitário
A Fundação, através de sua administração, vem conduzindo uma série de medidas e iniciativas no sentido de equacionar a sua situação financeira, a manutenção e o desenvolvimento de suas atividades em níveis compatíveis com seu plano operacional. As principais iniciativas são: – Busca de participação de novos mantenedores, alguns deles já confirmados; – Renovação de convênios e ampliação com novas parcerias junto ao setor público nas esferas municipal, estadual e federal; – Aumento no valor de doações junto aos mantenedores atuais.
Nota 02 - PRINCIPAIS PRÁTICAS CONTÁBEIS. As práticas contábeis mais significativas adotadas na elaboração das demonstrações financeiras são: a). As Demonstrações Contábeis foram elaboradas de acordo com as práticas contábeis adotadas no Brasil, determinações legais e fiscais, adequando-se às necessidades específicas das instituições sociais privadas sem fins lucrativos e de natureza filantrópica; b). As doações e contribuições eventuais de terceiros são reconhecidas como receitas quando efetivamente recebidas. As demais receitas e despesas são reconhecidas pelo regime de competência. As receitas são apuradas através dos comprovantes de recebimento, entre eles, avisos bancários, recibos e outros. As despesas são apuradas através de notas fiscais e recibos, em conformidade com as exigências fiscais e legais; c). As doações e contribuições destinadas ao custeio da Entidade, foram contabilizadas em contas de receitas; d). Ativos e passivos circulantes – os ativos são demonstrados pelos valores de realização, incluindo, quando aplicável, os rendimentos e as variações monetárias auferidos; os passivos registrados, são demonstrados por valores conhecidos ou calculáveis, incluindo, quando aplicável, os correspondentes encargos e a variação monetária incorrida; e). O Ativo Permanente se apresenta pelo custo de aquisição ou valor original, visto que a entidade não procedeu à Correção Monetária de Balanços em exercícios anteriores. A Depreciação do Imobilizado é calculada pelo método linear; f). A Provisão de Férias e Encargos foi calculada com base nos direitos adquiridos pelos empregados até a data do balanço, incluindo os encargos sociais correspondentes. g). Em razão de sua finalidade social, assistencial, filantrópica e sem fins lucrativos, a Instituição não está sujeita ao recolhimento de impostos calculados sobre o superávit do exercício, e nem distribui qualquer parcela de seus resultados a associados, parceiros, dirigentes, conselheiros ou mantenedores. 2010
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80.648,72 37.038,69 0,00 13.069,67 197.788,48 39.078,60 0,00 176.651,99 99.808,38 27.336,26 0,00 33.536,13 0,00 34.333,33 378.245,58 361.044,67
Nota 04 – OUTROS CRÉDITOS. Histórico / Conta – Em reais – Cheques em Cobrança – Adiantamento de Férias – INSS a Recuperar Total
2010 2009 255,00 255,00 2.163,07 7.054,19 20.835,76 20.354,09 23.253,83 27.663,28
Nota 05 – IMOBILIZADO. Histórico / Conta Custo Depreciação Líquido Taxa acumulada anual de depr. Em reais 2010 2009 2010 2009 2010 2009 – % Edifícios 278.538,81 278.538,81 (80.487,31) (69.345,67) 198.051,50 209.193,14 4 Móveis e utensílios 146.925,73 146.925,73 (104.076,93) (90.894,82) 42.848,80 56.030,91 10 Direitos de uso 11.780,73 11.780,73 (1.813,00) (1.813,00) 9.967,73 9.967,73 20 Máquinas e 79.937,30 79.937,30 (47.765,41) (41.729,41) 32.171,89 38.207,89 10 equipamentos Veículos 33.900,00 25.023,00 (4.520,00) (3.753,45) 29.380,00 21.269,55 20 Computadores 172.105,67 171.976,67 (166.421,39) (159.377,46) 5.684,28 12.599,21 20 Instalações 21.837,87 20.242,87 (14.668,38) (13.016,86) 7.169,49 7.226,01 10 Totais 745.026,11 734.425,11 (419.752,42) (379.930,67) 325.273,69 354.494,44
Nota 06 – DOAÇÕES, CONTRIBUIÇÕES E PARCERIAS COM ÓRGÃOS PRIVADOS E PÚBLICOS. a) CONTRIBUIÇÕES DE ÓRGÃOS PRIVADOS A Entidade recebe doações e contribuições de pessoas físicas e jurídicas. Nos exercícios de 2010 e 2009, as doações e parcerias com órgãos privados estão assim representadas: Histórico / Conta – Em reais 2010 2009 MANTENEDORES – Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos 740.000,00 840.000,00 Bancários de São Paulo – Banco Fibra S/A 60.000,00 60.000,00 – APEOESP – Sindicato dos Professores do Ensino 6.000,00 6.000,00 Oficial do Estado de São Paulo – FETEC Federação dos Trabalhadores em Empresas 50.000,00 0,00 de Crédito de São Paulo – AFUBESP Associação dos Funcionários do Grupo 21.000,00 18.000,00 Santander/Banespa, Banesprev e Cabesp Total mantenedores 877.000,00 924.000,00
Juvandia Moreira Leite Diretora Presidente
374.616,60 374.616,60
249.744,40 249.744,40
2010 0,00 0,00 0,00
2009 120.065,80 61.380,51 181.446,31
b). CONVÊNIO COM ÓRGÃOS PÚBLICOS Histórico / Conta – Em reais – PMSP – FUMCAD – Prefeitura Municipal de Santo André Total convênio órgãos públicos
No exercício de 2010 a Entidade não manteve convênio com órgãos públicos no desenvolvimento de Programas Sociais: c). CONVÊNIO COM ÓRGÃOS PRIVADOS PROGRAMA DE EDUCAÇÃO NA RUA – Parceria firmada com a Petrobrás, visando a reintegração familiar, escolar e comunitária de crianças e adolescentes que habitam e sobrevivem nas ruas do Centro da Capital de São Paulo. PROJETO ABC INTEGRADO – Convênio firmado com a Fundação Telefônica, visando a contagem e o mapeamento de crianças e adolescentes em situação de rua e de trabalho infantil na região do grande ABC, compreendendo 7 municípios.
Nota 07 – EXIGÍVEL E REALIZÁVEL A LONGO PRAZO A administração da entidade avalia a natureza dos casos, as ações existentes e as possibilidades de êxito ajustando a provisão para passivos contingentes conforme requerido. Em 31 de dezembro de 2010 as contingências estavam relacionadas à ação judicial de ordem previdenciária, relativa à questão com o INSS sobre a imunidade da cota patronal, sendo que o valor máximo da causa estimado pela administração monta em cerca de R$ 3.800.000,00. A opinião dos assessores jurídicos é que o risco de perda é remoto, sendo que a administração da entidade, em uma postura conservadora, mantém registrada em 31 de dezembro de 2010 provisão no montante de R$ 3.497.291,96 (31 de dezembro de 2009 – R$ 3.355,350,21) considerado suficiente para fazer face às contingências.
Nota 08 – APLICAÇÃO DOS RECURSOS Os recursos da entidade foram aplicados em suas finalidades institucionais, de conformidade com seu Estatuto Social, demonstrados pelas suas Despesas e Investimentos Patrimoniais.
Nota 03 – TÍTULOS E VALORES MOBILIÁRIOS. Histórico / Conta – Em reais Certificados de Depósito Bancário – Banco Bradesco S.A – CDB Fácil – Banco Bradesco S.A – FICFI – Banco Bradesco S.A – POUPANÇA – Banco do Brasil – CDI – Banco do Brasil – CP DI – Banco do Brasil – RF LP – Banco do Brasil – RENDA FIXA Totais
PARCERIAS ÓRGÃOS PRIVADOS – Petrobrás Total parceria órgãos privados
Nota 09 – DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO Neste exercício de 2010, a Entidade desenvolveu seu trabalho de assistência social nas seguintes áreas: DEFESA E PROMOÇÃO DE DIREITOS 1. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO NA RUA – objetiva a reintegração familiar, escolar e comunitária de crianças e adolescentes que fazem das ruas do Centro da Capital de São Paulo seu espaço de moradia e sobrevivência. São realizadas atividades pedagógicas no próprio espaço das ruas visando a reflexão sobre a situação em que se encontram e a construção de novas e concretas possibilidades e, posteriormente, firmadas parcerias nas comunidades de origem e com serviços da rede pública a fim de garantir a permanência daquela criança ou adolescente no local e o seu desenvolvimento satisfatório. Em 2010 foi realizado um trabalho na zona Norte da cidade, visando evitar a saída das crianças e adolescentes para as ruas. O número de atendimentos varia de acordo com fatores como composição da equipe e público. 2. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO E ACESSO AO DIREITO – objetiva garantir e promover os direitos das crianças e adolescentes atendidos pelos demais programas e projetos da Fundação Projeto Travessia que têm seus direitos cotidianamente violados por aqueles que deveriam assegurá-los (família, sociedade e Estado) através do atendimento direto ao público-alvo e da instrumentalização dos demais profissionais da Fundação vinculados ao programa de educação na rua, aos serviços conveniados e às parcerias privadas para que possam defender os direitos das crianças e adolescentes que atendem de forma ampla, a partir de uma prática educativa que atribua significado ao texto da lei, contribuindo para o exercício pleno da cidadania e a inclusão social, a partir dos preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente e da atuação multidisciplinar. 3. PROJETO ABC INTEGRADO – tem como objetivo, traçar diagnóstico de crianças e adolescentes em situação de rua, nos sete municípios que compõe a macrorregião do ABCDMRR. Na primeira etapa, são previstas 3 fases distintas, ou seja: 1ª. Fase – levantamento, identificação e confirmação a campo dos pontos de concentração de crianças e adolescentes em cada município individualmente. 2ª. Fase – contagem amostral de crianças e adolescentes encontradas nos pontos de concentração identificados na fase anterior. 3ª. Fase – caracterização de crianças e adolescentes identificadas em contagem amostral nos pontos de concentração. Findado esse processo, o objetivo é que ele sirva de base para elaboração de política pública regional. 4. PROJETO PROTAGONISMO NA COMUNIDADE – tem como objetivo o fortalecimento dos vínculos afetivos familiares e comunitários dos adolescentes moradores de aglomerados de habitações improvisadas em terreno de ocupação irregular, denominadas “Bueiru” e “Pé-Sujo” na região do Cangaíba, na Penha, através do resgate de sua história e cultura, da valorização de suas origens, de seus talentos e habilidades para melhor integração com suas famílias e entre as famílias daquelas comunidades e a rede social local, visando preservar o direito à convivência familiar e a comunitária e minimizar/interromper o processo de saída desses adolescentes para as ruas da Capital.
Nota 10 – ASSISTÊNCIA SOCIAL E GRATUIDADE No atendimento ao disposto no Inciso VI, do Artigo 3º. do Decreto nº. 2.536/98, no exercício de 2010, a entidade concedeu as seguintes gratuidades: Histórico / Conta – Em reais 2010 2009 – Arrecadação Total (excluído convênios) 1.301.837,64 1.273.326,02 – Custo Assistência Social Aplicada (excluído convênios) 1.335.405,34 1.818.677,11 – Limite da Assistência Social a Aplicar 260.367,53 254.665,20 – Assistência Social Aplicada a Maior 1.075.037,81 1.564.011,91 As GRATUIDADES CONCEDIDAS pela Entidade, através de seus Projetos Assistenciais, totalizaram um montante de R$ 1.335.405,34 no exercício de 2010, e R$ 1.818.677,11 no exercício de 2009, excluído convênio com órgãos público.
Nota 11 – SERVIÇOS DE TERCEIROS Refere-se, principalmente, a serviços prestados por consultores e oficineiros contratados para desenvolver os programas e atividades da fundação.
Cleuza Rosa da Silva Diretora Financeira
Francisco Fernandes C. Silva CRC-SP 1CE003489/T-5
B.Kucinski
Nas minas de Potosí
Os índios eram atraídos pelos “gatos” da época. Começavam aos 20 anos, aos 35 já estavam atacados de silicose e levavam um pé na bunda
V
iemos a Pulacayo para ver a mais famosa mina de prata do mundo, hoje abandonada: Huanchaca. Antes, atravessamos 800 quilômetros do árido altiplano boliviano, num Toyota 4x4, até as saleiras de Uyuni, uma vasta planície coberta eternamente de sal e gelo. Somos um grupo de cinco brasileiros. Das saleiras até a mina são mais 20 quilômetros. Um ex-funcionário da mina, hoje guia turístico, nos leva pelas ruelas desertas de Huanchaca, ladeadas de oficinas e casas abandonadas, enquanto nos conta a história espantosa desse lugar, onde milhares e milhares de índios, e depois camponeses também, morreram no decorrer de quase dois séculos para fazer a fortuna de um punhado de aventureiros espanhóis e capitalistas ingleses. José Hernandez é atarracado e de ombros largos como são os bolivianos, mas de feições mais mestiças do que indígenas. Expressa-se muito bem, com vocabulário rico e preciso. Ele foi professor de História nos bons tempos de Huanchaca. Numa folha de papel vai listando – vício de professor – datas e fases de sua narrativa. Conta que a mina foi fundada em 1833. No seu apogeu, em 1890, viviam aqui mais de 20 mil pessoas. Havia escolas, grêmios operários, times de futebol, bordéis e o clube de críquete dos engenheiros ingleses. Hoje, na cidade fantasma, restam apenas umas cem famílias. Daqui, ainda segundo nosso guia, saiu em 1873 a primeira estrada de ferro da Bolívia. A mina tinha fundição e metalurgia. Os índios eram atraídos das comunidades pelos “gatos” da época. Começavam aos 20 anos, aos 35 já estavam atacados de silicose e levavam um pé na bunda. Então vinham outros, famílias inteiras. Assim se iniciou o impressionante esvaziamento das comunas indígenas, hoje quase 50
agosto 2011 REVISTA DO BRASIL
completo. Era tanta gente que, para dar ocupação às mulheres, montaram aqui a primeira tecelagem de alpaca da Bolívia. A mina tornou-se um centro natural de organização operária. Com orgulho, marcando e sublinhando duas vezes a data em sua folha de papel, Hernandez enfatiza que aqui se reuniu, em 1946, o primeiro congresso da federação dos trabalhadores mineiros, que aprovou as Tesis de Pulacayo. Nenhum de nós sabia o que era isso, embora nos julgássemos politizados. O documento, que depois fui ler na internet, é uma penetrante análise do sistema de exploração social na Bolívia, de sua estrutura de classes e do lugar do país na divisão mundial de trabalho. É apresentado como o mais importante documento da história da luta operária latino-americana. Tudo o que aconteceu na Bolívia a partir daí, até a revolução que levou Evo Morales e os povos nativos ao poder, foi antevisto pelas Tesis de Pulacayo: a revolução operário-camponesa de 1952, a nacionalização das minas e a reforma agrária, o voto universal, o desmantelamento da oligarquia e do poder militar, o governo nacionalista com participação trotskista e depois comunista. Foi tudo conduzido pelo movimento mineiro organizado em aliança com os camponeses, exatamente como prognosticavam as Tesis de Pulacayo. Fim do tour. Hernandez encerra seu relato direto e preciso: “Em 1952 as minas foram nacionalizadas e Pulacayo virou um foco de agitação e formação política; em 1958 veio a Guerra Fria e os americanos mandaram fechar Pulacayo, achando que assim acabavam com os comunistas, mas os comunistas simplesmente se espalharam pelas outras minas. Até que nos anos 1980 acabaram os comunistas”.
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