Revista do Brasil nº 063

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TOP DO MAU GOSTO A liberdade de abusar do consumidor

nº 63

CANÇÕES DA ROÇA Chico e Renato Teixeira: caipiras com orgulho

PUNK Eles sacudiram o rock

setembro/2011 www.redebrasilatual.com.br

Dom Paulo Evaristo Arns, 90 anos. Uma vida dedicada à luta por justiça, paz e solidariedade

Exemplar de associado. Não pode ser vendido.

CARDEAL DO POVO

R$ 5,00




Atitude

Por Anselmo Massad. Foto de Tárlis Schneider

O novo grito das torcidas

L

ançado em profundidade pela internet, com ginga e ironias, avançou pela meia-esquerda, com jornalistas e até jogadores de futebol tocando a bola para a frente. Mas o gol mesmo quem fez foi a turma da arquibancada. Tudo contra o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e do Comitê Organizador Local (COL) da Copa de 2014, Ricardo Teixeira. As pra lá de contestadas torcidas organizadas ensaiaram o coro e fizeram bonito. Na última rodada do primeiro turno do Campeonato Brasileiro, torcedores de clubes de diferentes divisões uniram-se para protestar. Durante clássicos do futebol nacional da monta de Palmeiras x Corinthians, Santos x São Paulo, Inter x Grêmio, Figueirense x Avaí, foram vistos os maiores protestos – embora fossem esperadas manifestações de 20 torcidas. 4

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O nome de Teixeira, no cargo há 22 anos, está envolvido em suspeitas de corrupção e desvios de verbas. Ele já sobreviveu a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e vê movimentações para a criação de outra, no Congresso Nacional. Ainda vem recebendo críticas e menções em casos de denúncias de compra de votos na Federação Internacional de Futebol (Fifa). O foraricardoteixeira.com.br – que jura não ter como objetivo tirar Teixeira do cargo – reúne desde o fim de julho manifestações em redes sociais na internet contra o presidente da CBF. A ação mostrou que a insatisfação anda latente. Foi a deixa para o Conselho da Confederação Nacional das Torcidas Organizadas (Conatorg) articular suas associadas. A promessa é que as ações vão continuar. Quem gosta de futebol fica na torcida para o protesto trazer resultados.


Índice

Editorial

12. Capa

Dom Paulo Evaristo Arns, um homem movido a fé e coragem

18. Cidadania

A graça da maior manifestação de mulheres da América Latina

20. Economia

O Brasil aprendeu: a lição de casa não foi o mercado que ensinou

24. História

Conclat, primeiro grande encontro sindical – ainda sob vigilância

28. Mídia

A criatividade perde espaço para as apelações e as baixarias

32. Saúde

DOUGLAS MANSUR

O Instituto Brånemark reconstitui a autoestima dos pacientes

34. Literatura

A história da imigração árabe ajuda a desconstruir estereótipos

38. Entrevista

Dom Paulo realizava o lava-pés na missa da Quinta-feira Santa com moradores de rua

42. Comportamento

Coragem solidária

Renato Teixeira e seu filho Chico: prosa em ritmo de moda de viola

RONALDO ALVES/ DIVULGAÇÃO

O punk, filho caçula do rock, fica quarentão e segue rebelde

Os contrastes dos Lençóis Maranhenses

46. Viagem

As dunas brancas e as lagoas coloridas do litoral do Maranhão

Seções Cartas 6 Destaques do mês

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Mauro Santayana

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Lalo Leal

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Curta essa dica

48

Crônica: Mouzar Benedito

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A

o destacar Paulo Evaristo Arns, esta edição revisita a importância de sua atuação para a conquista da democracia no Brasil. Na ocasião do aniversário de 90 anos do cardeal, a Revista do Brasil, pautada por uma linha editorial laica e republicana, tem a oportunidade de celebrar um dos momentos mais importantes da história do país, em que as atitudes de lideranças religiosas extrapolaram as paredes de igrejas e templos ao direcionar sua força, sua fé e sua coragem à luta dos trabalhadores por um país livre e justo. Tanto que um dos momentos mais emblemáticos desse episódio foi o culto ecumênico em razão da morte do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975. Conduzido pelo cardeal Arns, apoiado pelo reverendo presbiteriano Jaime Wright e com a adesão do rabino Henry Sobel, o ato foi a primeira grande manifestação coletiva contra a barbárie praticada pelos militares, ao reunir mais de 8.000 pessoas na Sé, em São Paulo. E foi uma contundente contestação à tese do suicídio alegada pelos assassinos de Herzog. Pena que essa parcela socialmente responsável e ativista por justiça social esteja marginalizada e sufocada pelo conservadorismo clerical hoje predominante na Igreja Católica. Se naquele período os gestos de Arns eram valorizados por alguns jornais e revistas que pregavam abertura, atualmente seriam malhados pela velha mídia. Ou, no mínimo, ignorados, dado o compromisso desses veículos com objetivos econômicos e comerciais que não coincidem com os componentes de uma democracia plena. Aquela que serve aos interesses da maioria, e não aos de uma elite arrogante e anacrônica. Que assegura, ao maior número possível de pessoas, acesso às oportunidades e direito à cidadania. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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Cartas Núcleo de planejamento editorial André Luis Rodrigues, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Luciney Martins/CNBB Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares www.redebrasilatual.com.br

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Jonisete de Oliveira Silva, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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Fernando Morais Eu troco todos os livros de Fernando Morais por um só, dele mesmo: Corações Sujos. Só quero saber quando o Brasil vai pagar estas contas: roubo, confisco, perseguição política e religiosa, sequestro, morte, prisão irregular, ilegal, arbitrária, escravidão, agressão física e psíquica, xenofobia e racismo contra os imigrantes japoneses de 1908 até os dias atuais. O Brasil vai pagar um dia pelos crimes do Dops do estado de São Paulo. Eugênio Issamu Kishi, Paulista (PE) Desculpe, Morais, mas em Cuba hoje há banguelas, pessoas com fome e sem emprego. Há também uma concentração de pessoas nas cidades. Os jovens não querem plantar mais, como em toda a América Latina e em todo o mundo. A juventude está, além de fortemente influenciada pelo que vem de Miami, sem perspectivas diante das dificuldades e erros do regime. Eu sou castrista, mas o regime comete erros toscos, como a demora em permitir os pequenos negócios e a redução dos empregos públicos. Os salários em pesos cubanos não bastam para a alimentação dos primeiros dez dias do mês. Muitos idosos estão nas ruas vendendo amendoim porque as aposentadorias seguem a lógica dos salários, e não dão para nada. Como comunista e latino-americanista, fascina-me a altivez com que Cuba prossegue enfrentando o Golias do Norte, mas é preciso acelerar urgentemente as mudanças. Claudio Zani, Rio de Janeiro (RJ)

Crise na Europa Só pra esclarecer, a Democracia Real Já e o movimento 15-M, apesar de próximos, são distintos. A DemocraciaRealYá!­é uma plataforma na internet que convocou a manifestação nas ruas do dia 15 de maio, mas o movimento popular das acampadas nas praças se estruturou de outra maneira, e a isso se convencionou chamar de Movimento 15-M. Importante não confundir as duas coisas porque, na prática, estão seguindo caminhos próprios. João Rafael Diniz, São Paulo (SP) Obstinados ciclistas Eu gostava muito de pedalar. Sempre ia do centro de São Paulo até o Largo 13, em Santo Amaro. Agora tenho medo, pois os motoristas não respeitam a gente nem andando na calçada. Vou sempre pedalar nas praias de Bertioga, onde não tem trânsito. E também já passei dos 60, e todo cuidado é pouco. Puxo minha carroça pelo Centro com muito cuidado e, mesmo assim, já tentaram me atropelar na rua, sem contar as vezes que sou xingado. Não ligo, pois meu santo é forte e preciso vencer sempre. Mesmo tendo de matar dois leões por dia. José Aguiar, São Paulo (SP) Em complemento à reportagem “Obstinados ciclistas” (edição 62), informo que há outras cidades com soluções semelhantes às existentes na Europa – por exemplo, Blumenau, em Santa Catarina, cidade de onde venho. Para obter mais informações visitem: http://ww2.mobilicidade.com.br/sambablumenau/home.asp Fábio Marcelo Depiné, Brasília (DF)

Guimarães Rosa Muito bom. Adorei. Cordisburgo merece tamanho reconhecimento. Estão de parabéns. Abraços de um contador de estórias, Miguilim. Stenyo Felix, Nova Lima (MG)

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


Romaria dos mártires Existem santos que não se encaixam nos altares de uma igreja institucionalizada. Um Pedro Casaldáliga andando de sandálias, sem mitra e sem báculo, pelo Ribeirão da Cascalheira em defesa dos direitos dos injustiçados não faz o perfil traçado pelos donos do poder eclesiástico para as ditas honras do altar. Sua grandeza transcende o reconhecimento de uma igreja que, cada dia mais, afasta-se da simplicidade do Divino Mestre pisando as estradas empoeiradas da Palestina (“Celebração da esperança”, edição 62). Elizio Nilo Caliman, Brasília (DF) Fora do armário Considerei de péssimo gosto a charge da edição de agosto e a nota “Fora do armário” (página 6). Se fôssemos utilizar a desestruturada forma de pensar dos homoafetivos, afirmaria que isso é preconceito contra os heterossexuais. Quero deixar claro que não sou contra nenhum homossexual, mas afirmo que não concordo com a prática. É o meu ponto de vista e tem de ser respeitado. Da mesma forma, respeito o fumante, mas condeno a prática do fumo. A revista deve limitar-se a informar, e ponto. Afirmar que, ao criar o dia do “orgulho hétero” colabora-se para a violência contra os homoafetivos é um desrespeito. O que temos de considerar é que qualquer tipo de violência é condenável e inaceitável. Temos de considerar que a liberdade difere da libertinagem, porque a primeira impõe limites que devem ser respeitados por todos, limites esses que garantem que um grupo não se sobreporá a outro. Peço gentilmente que a revista tenha mais cuidado com esse tipo de posicionamento. Sua história mostra respeito pelos leitores, independentemente de seu posicionamento político, religioso ou social. Essa característica me dá a liberdade de pedir essa atenção. Jonis Dias, Macaé (RJ)

Passivo do fumante Gostei imensamente da reportagem de João Peres “O passivo do fumante”, na edição de julho. A verdade é que o fumo traz consequências desagradáveis. Conheci muitos que morreram por causa do cigarro. Conheço também várias pessoas que estão doentes por causa desse mal terrível. Fumo desde os 20 anos, porém não consigo parar. Vou à igreja, oro e nada. Mando os irmãos orar; todavia, não paro. Gostaria de conhecer uma técnica, um remédio para deixar o vício. É irritante o mau cheiro do cigarro, o mau hálito... Acho que é tempo de parar com essa fabricação, pois bem não faz, só mal, e incomoda quem não fuma, trazendo doenças. Até me estranha saber que essa fabricação rende bilhões. O Ministério da Saúde adverte: fumar não faz bem à saúde. E por que se fabrica? Fumar é um vício difícil de controlar. Jadilson Joaquim do Nascimento, Sorocaba (SP) Faço parte de uma equipe de tratamento na Secretaria de Saúde do DF e diariamente presenciamos pessoas que chegam acometidas por problemas decorrentes do tabagismo, como doenças pulmonares obstrutivas crônicas e cânceres, que muitas vezes levarão à morte. A indústria fumageira não quer saber desses resultados; quer mesmo é saber do lucro desenfreado. Parabéns pela reportagem. Francimery A. Bastos, Salvador (BA)

Quanta bobagem Ao lado de artigos interessantes (edição 61), é triste ver tamanhas bobagens, na entrevista do primeiro-amigo, no ensaio do primeiro levante gaúcho, no artigo de Mauro Santayana, na história de Getúlio e, por fim, na contracapa a figura grotesca de um analfabeto fazendo de conta que sabe ler. Acho que vocês poderiam fazer algo melhor. Alfredo Moacir Scheuer, Brasília (DF)

Memória do canavial Sou aposentada do Banespa, hoje, infelizmente, Santander. Nasci em Guariba, cidade do interior de São Paulo, citada na reportagem “A lida no canavial” (edição 59). Meus pais ficaram surpresos e tristes ao saber que nada mudou desde os anos 1950, quando eles também foram cortadores de cana. Vieram para a capital em fevereiro de 1957, quando eu estava com 4 meses. Muitas vezes presenciei a chegada de trabalhadores do corte de cana e ficava morrendo de pena ao ver aquelas pessoas todas sujas, cheias de roupas sob um calor imenso, mulheres grávidas, irreconhecíveis, com o rosto todo preto da queimada da cana. Chegavam em caminhões abertos sem nenhuma segurança, tomando sol, chuva, vento, trazendo nas mãos seu instrumento de trabalho, o facão e a marmita, e eram chamados de boias-frias. Se meus pais não tivessem vindo para São Paulo, provavelmente eu também seria mais uma a fazer parte desse trabalho escravo. Maria Ap. Paula Roiz, São Paulo (SP)

Um ano de revista por R$ 50,00. Assine e receba em casa.

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Vida enlatada

JAILTON GARCIA

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Sistema penitenciário O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou a divulgação, agora em setembro, dos detalhes sobre um plano de investimentos de R$ 1 bilhão no sistema penitenciário. Faltam cerca de 200 mil vagas, o que provoca problemas como superlotação e violações de direitos humanos. A socióloga Julita Lemgruber vê a medida como “um bom primeiro passo” e defende mudanças no Judiciário para enfrentar a questão. http://bit.ly/rba_penitenciario

MARCELLO CASAL/ABR

São Paulo tem menos metrô que capitais como Buenos Aires, cidade do México e Santiago. Para piorar, o governo paulista não aplica toda a verba disponível para expansão. No ritmo atual, o metrô paulistano levará 30 anos para alcançar a meta de 200 quilômetros de malha. http://bit.ly/rba_vida_enlatada

Êxodo rural de jovens

O sonho dos jovens do campo é mesmo conquistar seu espaço... nas cidades. Por falta de interesse das novas gerações, produtores rurais temem pelo futuro da agricultura familiar. Em dez anos, 835 mil pessoas de 16 a 24 anos foram para ambientes urbanos. A maioria dos que deixam o campo é composta por mulheres. http://bit.ly/rba_exodo_jovem

Contra o crack

Em vigor há três meses no Rio de Janeiro, internação e abrigo compulsórios dividem opiniões de juristas, médicos e defensores dos direitos humanos. A preocupação com o crack­ e outras drogas permeia o debate. O risco é de a ação perder a conotação de saúde e ganhar traços de “limpeza social”. http://bit.ly/rba_crack

JAILTON GARCIA

Em mãos privadas

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Falta de acesso à internet e telefonia móvel em comunidades pelo país revela limites do regime privado de concessão de serviços de telecomunicações. Nas mãos das empresas, efeitos do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) podem ser menores que o esperado. http://bit.ly/rba_teleprivadas


JOSÉ CRUZ/ABR ROBERTO STUCKERT FILGO/PR

Enfim, novidades

Neotucanos? No lançamento do plano Brasil Sem Miséria no Sudeste, a presidenta Dilma Rousseff foi a São Paulo e recebeu elogios de Geraldo Alckmin (PSDB) e FHC. A postura de boa vizinhança com o governo federal e a aproximação com centrais sindicais, como a Força e a UGT, dão sinais de que a cartilha tucana no estado foi

Plano Brasil Maior

reescrita. Os tucanos explicam que a postura mudou porque a conduta do Planalto também é outra. Os petistas acreditam que o PSDB mudou porque não tem outra alternativa – precisa neutralizar Serra e se aproximar mais dos partidos hoje na base aliada­ de Dilma. http://bit.ly/rba_psdb_sp

A nova política industrial brasileira foi anunciada no começo de agosto, com uma preocupação para os trabalhadores. Se os incentivos a setores que sofrem com a concorrência asiática são bem-vistos, a desoneração da folha de pagamentos acionou o alerta. Para quatro setores, o governo propôs mudar a contribuição patronal à Previdência Social. As empresas passariam a calcular sua parte da contribuição à Previdência com base no lucro líquido, e não mais em um percentual sobre a folha de salários. http://bit.ly/rba_brasil_maior

O Congresso do PT chamou a atenção pelas manchetes inovadoras que proporcionou ao noticiário político no início do mês. A sintonia entre Dilma Rousseff e Lula ressaltou o espírito de continuidade­ de um projeto – nada a ver com supostos contrastes entre uma e outro que a leitura dos jornais parece levar a crer. O partido discutiu iniciativas ousadas, como a cota de 50% para mulheres na composição dos diretórios, a partir de 2013, e limitação de mandatos para os cargos de deputado federal (três mandatos) e de senador (dois), a partir de 2014. Mas o que mais incomodou mesmo a velha imprensa foi a decisão do partido de encorpar a defesa da regulação dos meios de comunicação nos moldes do que ocorre nas grandes democracias do mundo. http://bit.ly/rba_congresso_pt

Piso já

Em vigor desde 2008, a lei do piso nacional do magistério precisa ser cumprida. O Supremo Tribunal Federal (STF) publicou a decisão tomada em abril, que considera a legislação constitucional. Para sindicatos de professores, estados e municípios ficaram sem desculpas para pagar menos que os R$ 1.187,08 definidos. http://bit.ly/rba_piso_professor REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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NaTV www.tvt.org.br

A mata em fragmentos

Trechos da Mata Atlântica próximos à capital paulista: belezas, ocupação e desafios para a fiscalização

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esde que foi ao ar pela primeira vez, em 23 de agosto de 2010, o Seu Jornal, da TVT, já apresentou mais de 30 séries de reportagens especiais. Uma delas é sobre a Mata Atlântica, que tem atualmente apenas 8% de sua cobertura vegetal original. O bioma se resume a uma faixa que vai do Espírito Santo a Santa Catarina. O restante está fragmentado em 250 mil peças de um quebra-cabeça, entre elas, o Parque Trianon, localizado na Avenida Paulista. A primeira reportagem mostra as leis específicas para proteger o bioma contra a exploração, bem como a atuação de governos, Ministério Público e ONGs, cujos esforços já apresentam resultados. Entre 2008 e 2010, o desmatamento caiu 55% em comparação com os três anos anteriores. http://bit.ly/tvt_mata_atlantica_1 10

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O projeto Conservador das Águas, da cidade de Extrema, no sul de Minas Gerais, é o destaque da segunda reportagem. O município mineiro é o primeiro no Brasil a remunerar os proprietários de terrenos rurais que cuidam das nascentes e dos rios que encontram-se em suas propriedades. http://bit.ly/tvt_mata_atlantica_2 O terceiro capítulo traz iniciativas de pessoas que transformaram parte de seus pequenos sítios em Reserva Particular do Patrimônio Natural, com o

Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br

apoio do Ibama. É o caso de Eugênio Victor Follmann, de Mairiporã, na Grande São Paulo, que converteu em reserva 5 dos seus 23 hectares, e dá uma lição de como o cidadão pode fazer a sua parte. http://bit.ly/tvt_mata_atlantica_3 A penúltima reportagem retrata a vida de 2.300 famílias moradoras da encosta da Serra do Mar, em Cubatão (SP). É gente que chegou ali – área de proteção de mananciais e exposta a riscos – há mais de 40 anos, durante a construção da Via Anchieta, numa época em que não havia fiscalização e muito menos consciência ecológica. http://bit.ly/tvt_mata_atlantica_4 A série termina destacando uma das maiores florestas urbanas do mundo, na Serra da Cantareira, na zona norte da capital paulista, e os desafios enfrentados pela fiscalização. http://bit.ly/tvt_mata-atlantica_5


NoRádio De segunda a sexta-feira, das 7h às 8h, na FM 98,9, para toda a Grande São Paulo

KEVIN LAMARQUE/REUTERS

CAMPANHA Obama passa pelo entulho em Wayne, Nova Jersey: no meio do caminho tinha um furacão

Os furacões sobre Obama Às voltas com os furacões que atormentam o mandato de seu presidente, os EUA entraram com cautela na crise da Líbia

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comentarista internacional da Rádio Brasil Atual, Flávio Aguiar, foi aos Estados Unidos no mês passado. Durante a viagem, analisou os vários furacões que sacodem o país e, por tabela, a situação do presidente Barack Obama. O primeiro, econômico, é provocado pelo desemprego, que atinge 10% da população e afugenta as pessoas do consumo e do crédito. O desempenho da economia patina e pode pôr em risco a candidatura à reeleição em 2012. O segundo furacão é político. Envolve a disputa no Partido Republicano, que decidirá quem enfrenta Obama no pleito. E a numerosa bancada de deputados republicanos vai fazendo o que pode para inviabilizar o governo do democrata. Por fim, o furacão de verdade, o Irene, varreu a costa leste do país no último

fim de semana, deixou 16 mortes e muitas inundações – mais um traumático componente emocional nos corações e mentes dos americanos, além do prejuízo material a ser reparado. Toda semana, Flávio Aguiar traz uma análise dos acontecimentos do planeta no Jornal Brasil Atual. Ouça o comentário completo sobre “Os vários furacões de Obama” aqui: http://bit.ly/rba_obama_furacoes. O colunista escreve também no Blog do Velho Mundo, no portal da Rede Brasil Atual. No recente post “Obama: senhor da paz ou prisioneiro de guerra?”, constata a relativa cautela com que os Estados Unidos entraram na aventura do bombardeio aéreo sobre a Líbia. Segundo Flávio, o país ainda amarga as consequências das intervenções desastradas no Afeganistão e no Iraque. Na Líbia, estaria endossando uma operação que, por interesses particulares

sobretudo da França e da Inglaterra, poderia avermelhar ainda mais o já negativo saldo internacional do Tio Sam. Acesse o texto completo pelo atalho http://bit.ly/rba_velho_mundo­.

Colunistas de primeira

Todos os dias, o Jornal Brasil Atual traz um convidado especial para abordar temas diversos, com prestação de serviço e defesa da cidadania. A jornalista Thelma Torrecilha, especializada em assuntos da infância, sempre dá dicas interessantes sobre relacionamento, educação e práticas saudáveis em Mundo da criança. Em O outro lado da notícia, Altamiro Borges, do Blog do Miro, analisa as segundas intenções por trás do noticiário da velha mídia. O mundo do trabalho e a defesa dos direitos humanos e da vida sustentável estão em Direitos humanos, com Leonardo Sakamoto. A médica Maria Maeno traz críticas e dicas sobre saúde e condições no ambiente de trabalho em Saúde do trabalhador. E o escritor Mouzar Benedito, em Coisa do Brasil, tem sempre um bom “causo” para contar. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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CAPA A dedicação do cardeal dos trabalhadores transcendeu a Igreja, salvou vidas e mexeu com a história do país no século 20. Dom Paulo, 90, simboliza o valor da resistência e da esperança Por João Peres e Virginia Toledo

Guerreiro de batina

LUCINEY MARTINS/CNBB

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AGOSTO 2011 REVISTA DO BRASIL

e esperança em esperança, Paulo Evaristo Arns completa 90 anos com a mesma certeza que tinha aos 20: a solidariedade e a busca da justiça e da paz como razão de viver. Os arredores da morada de dom Paulo emanam serenidade. A mesma com que enfrentou tiranos d dee plantão no poder e lutou pelas causas dos desfavorecidos. Desde 2007, o franciscano vive numa pequena congregação na região metropolitana de São Paulo. Irmã Devanir de Jesus, amiga de convivência diária, conta que o cardeal optou por descansar com a sensação de dever cumprido. “É uma pessoa iluminada. De fácil cuidado e muito gentil. Eu cresço a cada momento que convivo com ele.” Não há São Pedro que abra as portas da congregação a um repórter. O aposentado cardeal não concede mais entrevistas, não vai a debates nem eventos – o que inclui celebrações de seus 90 anos, completados em 14 de setembro. A imagem de São Francisco de Assis à entrada dá as boas-vindas e parece explicar que a opção de seu mais famoso e fiel devoto é merecida e necessária. “Dom Paulo, como frei franciscano, teve espírito de despojamento, de simplicidade de vida e de uma inteligência privilegiada”, conta o amigo dom Pedro Stringhini, bispo de Franca. A infância em Forquilhinha (SC) forjou o homem que mais tarde se transformaria em pedra no sapato da ditadura. A fé da mãe, Helena, e o espírito conciliador do pai, Gabriel, são vistos pelo cardeal como pilares de sua formação. Quando estava para ingressar no seminário, o menino recebeu do pai o pedido: “Papai é colono, e você, mesmo depois de estudar muito, sempre será filho de colono e de seu povo”. Dom Paulo levou isso na cabeça nos 12 anos de estudos, após a ordenação, em 1945, e na pós-graduação na Universidade de Sorbonne, na França. Na Europa pós-guerra, a desigualdade social se alastrava. Dom Paulo deparou com a realidade dos que lutaram e com as cicatrizes da intolerância nazista. As marcas do conflito arraigaram ainda mais em Paulo Evaristo a conduta humanista que o guiaria pela vida.


LENA VETTORAZZO/ AE

ACERVO SJSP

No retorno ao Brasil, antes da chegada estar perto do povo”, conta um desses bispos, dom Angélico Sândalo Bernardino, a São Paulo, trabalhou em comunidades chamado em 1974. Eram quatro bispos carentes de Petrópolis (RJ) durante dez auxiliares, um para cada região da cidade. anos. Em julho de 1966, se apresentava à metrópole acinzentada, que cresDom Angélico recebeu a incumbência de cia e empurrava para as bordas a massa cuidar da Pastoral Operária, criada quatro anos antes. E se tornaria mais tarde o de migrantes. A Igreja Católica, com o “bispo dos operários”. Concílio Vaticano II, reinseria a realidade das mazelas do mundo na vida cleA amizade com Paulo VI renderia rical. Emergia a Teologia da Libertação, ao Brasil algo mais que recomendações que preconiza uma opção preferencial episcopais: toda vez que algum religioso estivesse em risco, dom Paulo ia ao pelos pobres e a consciência das massas – ensinar a pescar – como meio de Culto ecumênico pelo 7º dia da morte de Vaticano. “Todo mundo municiava dom reagir à opressão. Ao mesmo tempo, a Vladimir Herzog. No centro, Henri Sobel, Paulo com informações sobre o que esdom Paulo e Jaime Wright tava acontecendo porque sabia que ele força das armas produzia as ditaduras era ouvido aqui e fora”, diz o amigo Pauno Cone Sul. lo Cesar Pedrini, da Pastoral Operária. Quando assumiu a Arquidiocese de No fim da década de 1970, bispos ligados à conservadora São Paulo, em 1970, o franciscano de cara deu recados. Vendeu o Palácio Pio XII, residência oficial do arcebispo, para fi- corrente Tradição, Família e Propriedade (TFP) pediram ao nanciar terrenos e construir casas na periferia. Fortaleceu as governo que expulsasse do Brasil dom Pedro Casaldáliga, bisComunidades Eclesiais de Base, que até hoje disseminam pelos po espanhol da Prelazia de São Félix do Araguaia, “acusado” de bairros as discussões sobre política, cidadania e, claro, religião. ser comunista. O cardeal viajou a Roma, e Paulo VI mandou E incentivou as pastorais. “O papa Paulo VI disse a dom Paulo o recado: “Mexer com Pedro é mexer com o papa”, versão da que tivesse uma bela equipe de bispos auxiliares que deveriam história confirmada pelo próprio Casaldáliga.

CAUSAS JUSTAS O cardeal visita o Vale do Ribeira em 1989, uma das regiões mais pobres de São Paulo, e abraça as demandas da população REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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CAPA

Waldemar Rossi lembra quando foi chamado por dom Paulo. Meses após a criação da Pastoral Operária, o franciscano queria saber do metalúrgico: os integrantes eram a favor da luta armada? “Nós temos o direito de nos organizar para defender nossos direitos?”, perguntou-lhe Rossi. “É um dever”, ouviu. “Estamos fazendo. Na hora em que a gente estava ganhando força, vem a ditadura e mata...”, prosseguiu. E o cardeal encerra a conversa: “Aí, vocês têm o direito da legítima defesa”. Rossi passaria a ser um amigo fiel do arcebispo. Três anos mais tarde, foi preso. Sua mulher procurou dom Paulo, o crime foi denunciado nas paróquias de São Paulo e no exterior. “Os militares queriam parecer bonzinhos, então ficavam furiosos quando alguma coisa transpirava para o exterior”, lembra Margarida Genevois. “Essa arma a gente utilizou bastante.” Rossi, um dos fundadores da Pastoral Operária, ficou na sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo. Dom Paulo promovia caminhadas ao redor do Dops, até que, no 25º dia da prisão, entrou no prédio, não tomou conhecimento dos protestos em contrário e foi à sala do delegado. “Vocês torturaram esse homem. Ele não consegue andar direito”, acusou, logo que foi autorizado a ver o prisioneiro, que tinha também o “defeito” de liderar a oposição ao comando do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, há anos submisso a militares e patrões. Não era a primeira vez que ele batia de frente com o inimigo. Não seria a última. “Dom Paulo foi abrindo caminho”, conta dom Angélico, ao lembrar da chegada ao Instituto Médico Legal (IML) em 30 de outubro de 1979. Lá estava o corpo do operário Santo Dias da Silva – cujo desaparecimento só não aconteceu porque sua mulher, Ana Dias, entrou à força no carro dos policiais que o transportaram. Depois de discutir com a PM para que libertasse os militantes presos por organizar uma greve não apoiada pelo sindicato, o metalúrgico foi baleado nas costas diante de uma fábrica na zona sul paulistana. “Dom Paulo saiu de casa com todos os trajes episcopais e chegou dizendo: ‘Abram a porta. É o arcebispo de São Paulo’. Foi aonde estava o

DOUGLAS MANSUR

Abra-se o caminho

SOLIDÁRIO Dom Paulo chegou a passar a noite no Viaduto do Glicério com moradores de rua para chamar atenção do então prefeito Paulo Maluf, que queria fechar um abrigo

corpo e pôs o dedo na bala, indicando o ferimento feito por um policial”, relembra o padre Júlio Lancelotti. Da Rua da Consolação até a Catedral da Sé, milhares de pessoas se reuniram em protesto. “Foi um grito de dor, de denúncia”, lembra Ana, que anos mais tarde soube que o cardeal encomendara um caixão mais resistente para que os companheiros pudessem cumprir o desejo de transportar o corpo de Santo pelas ruas de São Paulo. Como sua família não aceitava sua opção pela militância, Ana contou muito com o auxílio do amigo. “Dom Paulo foi meu pai. Pai de verdade, e não um pai ausente.”

Dom Paulo exibe a cruz que ganhou dos presos políticos do Presídio Tiradentes no Natal de 1971

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SETEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL

FOLHAPRESS

DOUGLAS MANSUR

Compromisso com seu tempo

Em cerimônia defronte ao túmulo de Vladimir Herzog


HÉLVIO ROMERO/AE

Esperança no sangue

Cinco dos 13 filhos do casal Gabriel e Helena seguiram carreira religiosa. Além de Paulo Evaristo, Zilda Arns, nascida em 1934, tornou-se referência com a Pastoral da Criança e sua luta contra a desnutrição infantil e por planejamento familiar. Zilda foi uma das vítimas do terremoto no Haiti, em janeiro de 2010, onde estava em missão humanitária.

O bico do condor

DOUGLAS MANSUR

A Cúria Metropolitana, localizada em um bairro de classe alta de São Paulo, já era uma referência no enfrentamento à repressão. O arcebispo articulara a criação da Comissão Justiça e Paz, que denunciava as prisões ilegais e as torturas, dava suporte aos familiares e pressionava os militares. “Comecei atendendo um dia por semana. Depois, dois, três. No fim, atendia todos os dias, de manhã e de tarde”, conta Margarida Genevois, que integrou a comissão durante 25 anos e chegou a presidi-la. A fama do arcabouço protetor criado na arquidiocese cresceu e já atraía perseguidos da Argentina, do Chile, Paraguai e Uruguai. Os militares reclamavam da intromis-

são da Igreja brasileira, e dom Paulo rebatia: “A solidariedade não tem fronteiras”. Santiago, Chile, 1979. O Clamor, grupo de defesa dos direitos humanos criado em São Paulo com olhos na América Latina, atingia um de seus pontos altos. Sob a proteção do cardeal, a jornalista inglesa Jan Rocha, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh­ e o pastor presbiteriano Jaime Wright arquitetaram a primeira missão de resgate de crianças sequestradas pela ditadura argentina (1976-1983). Anatole e Vicky, cujos pais, uruguaios, foram mortos em Buenos Aires, viviam na capital chilena quando foram localizados pelo grupo. Até hoje, as Avós da Praça de Maio recuperaram o destino de mais de cem netos raptados, história que teve início sob influência e guarida de dom Paulo e do Conselho Mundial de Igrejas. A aproximação entre o cardeal e o CMI, que reúne igrejas protestantes, foi realizada por Wright. O pastor despertou para a luta contra a ditadura após a morte do irmão, Paulo, em 1973, e logo se transformou em grande amigo de Arns. “Sempre brincavam que um parecia um presbiteriano disfarçado de católico e o outro parecia um católico disfarçado de presbiteriano”, lembra Anita Wright, acostumada a ver o pai viajar intensamente e hospedar em casa refugiados que batiam à porta do Clamor. O CMI passou a custear as operações de salvação de pessoas e, mais tarde, seria fundamental para o projeto Brasil Nunca Mais. A ditadura caminhava para o final, e o sinal de alerta acendeu. “Consegui que o Conselho Mundial de Igrejas financiasse o projeto, desde que eu obtivesse o aval de dom Paulo”, conta a advogada Eni Moreira, idealizadora do Brasil Nunca Mais, para que episódios de destruição de arquivos, como vistos em outros períodos autoritários, não se repetissem. Entre 1979 e 1985, um grupo restrito de advogados valeu-se do direito de retirar processos arquivados no Superior Tribunal Militar, em Brasília, e montou um quadro sistemático da repressão promovida nos 15 anos anteriores. “O ‘guarda-chuva’ de dom Paulo nos dava certa tranquilidade”, admite Eni. Seis anos depois, vinha à tona o livro Brasil Nunca Mais, com relatos dos métodos­

Com Jimmy Carter, em 1978

Em visita aos moradores do Jardim Conquista, periferia paulistana

EDUARDO SIMÕES

DOUGLAS MANSUR

MANUEL PIRES/FOLHAPRESS

Com Lula, em 1995, em missa pelos mortos na ditadura

Abrindo caminho para o corpo do operário Santo Dias da Silva, que a ditadura queria esconder, em 1979

REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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CAPA

Discurso cortado

de tortura, as acusações ilegais e os crimes promovidos pelo regime – informação que, saída de seus arquivos, nunca pôde ser contestada pelos repressores. Dom Paulo jamais acreditou na versão de que o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, houvesse cometido suicídio na cela em que estava detido, no DOI-Codi, outro aparelho da ditadura. A missa de sétimo dia da morte de Vlado, em 1975, ato ecumênico que atraiu milhares de pessoas até a Catedral da Sé, transformou-se em um momento simbólico, possivelmente o início do fim dos anos de chumbo. “Lembro do meu pai relatando a agonia de tentar chegar na catedral, porque havia bloqueios policiais nas vias de acesso”, conta Anita sobre a saga de Wright, representante presbiteriano na celebração.

Na noite de 3 de julho de 1980, Waldemar Rossi havia sido encarregado por dom Paulo de ler ao papa João Paulo II uma carta com denúncias de trabalhadores sobre violações a seus direitos. O Exército, responsável pelas credenciais, levantou a ficha do fundador da Pastoral Operária e decretou que “contumaz comunista” não participaria da celebração. Dom Paulo o pôs para dentro e, como chovia e o papa estava atrasado, pediu a Rossi que encurtasse o discurso – lesse apenas o primeiro e o último parágrafo. Ainda assim, foi adiante a denúncia da morte de Santo Dias e de Raimundo Ferreira Lima, o Gringo – trabalhador rural também assassinado pela repressão, dois meses antes, no sul do Pará. Quando 130 mil pessoas bradavam “liberdade!”, o papa precisou da ajuda do cardeal para entender o que se passava. “Foi o momento mais forte do encontro”, lembra Rossi.

Debaixo do viaduto

Padre Júlio, da Pastoral do Povo da Rua, relembra um episódio em que um grupo de moradores de rua estava na iminência de passar mais uma noite fria do inverno paulistano debaixo de um viaduto. A Prefeitura de São Paulo, então administrada por Paulo Maluf, havia fechado um abrigo e, naquela noite, dom Paulo disse que dormiria no local enquanto não fosse reaberto. “Eu o convidei e ele foi até o Viaduto do Glicério, no centro de São Paulo, onde os moradores de rua estavam. E aí foi um esparramo. Imagine só, o arcebispo embaixo de um viaduto.” Depois de 28 anos à frente da Arquidiocese de São Paulo, dom Paulo renunciou por questão de idade em 1998, aos 77. Recebeu da Igreja o título de arcebispo emérito e, dos operários, o de cardeal dos trabalhadores. Após alguns anos vivendo no Jaçanã, zona norte, retirou-se para a congregação em Taboão da Serra. Hoje, ao acordar, lê jornais e em seguida faz uma celebração diária aos moradores da comunidade religiosa onde vive. Com

DOUGLAS MANSUR

ARQUIVO PESSOAL PAULO CESAR PEDRINI

apoio de uma bengala, faz uma leve caminhada pelo jardim e segue para o almoço. Nos últimos anos, optou por não assistir à televisão, mas dizem as boas línguas que a carne é fraca para uma única paixão: dar uma espiadela de nada na TV quando joga o Corinthians. Obviamente, não assume e atribui o “vacilo” às freiras – corintianas por obra e graça do próprio. No começo deste ano, quando esteve internado, dom Paulo convocou ao hospital dom Angélico: queria que o amigo rezasse a missa. Ao final da celebração, na cama da Unidade de Terapia Intensiva, aproveitou a hora do abraço para sussurrar: “Confiança. Vamos avante. De esperança em esperança. Na esperança sempre”. Para o cardeal dos trabalhadores, pode-se desanimar, sofrer, esmorecer, mas desistir jamais. “A esperança não é o ópio do povo, mas o motor que modifica o mundo.”

A CARNE É FRACA Não esconde sua paixão pelo Corinthians

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SETEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL

DESPEDIDA DA ARQUIDIOCESE Com Pedrini e Waldemar Rossi


MauroSantayana

Memórias da resistência

F

oram dias inquietos os de agosto de 1961. Carlos Lacerda, governador da Guanabara, sob influência norte-americana, lançava ataques contra o presidente. Mas não se esperava a renúncia do chefe de Estado. Há momentos em que a cidadania reage com agudo senso político. Em lugar de gente nas ruas, a fim de lhe prestar solidariedade, houve certo alívio por parte de alguns e preocupação entre os mais bem informados. O povo intuiu a manobra que a renúncia escondia. O segundo, e mais sério ato de resistência, se deu contra o oportunismo dos militares, ao aproveitarem o vácuo e vetarem a posse de Jango. Nesse momento, Brizola, governador do Rio Grande do Sul, levantou-se em defesa da Constituição e mobilizou sua força militar, antes mesmo de contar com o apoio do general Machado Lopes, que comandava o III Exército, o de maior poder de fogo no país. A nação inteira acompanhava a Cadeia da Legalidade, ouvindo, ininterruptamente, os líderes da resistência, sobretudo Brizola. Os governadores Mauro Borges, de Goiás, e Ney Braga, do Paraná, aderiram à campanha desde as primeiras horas, e se prepararam para a luta armada, caso fosse necessária. Diante dessa manifestação de bravura e da mobilização da opinião pública, apoiadas em recursos bélicos ponderáveis, os militares aceitaram a sugestão de alguns congressistas, sob a liderança de Tancredo Neves, da instituição da emenda parlamentarista. Tenho a memória pessoal daquelas horas, partir de Belo Horizonte, segui todos os fatos. Imediatamente, nos principais centros políticos do país, articulou-se a resistência civil, conduzida pelas entidades sindicais, pelos líderes políticos de esquerda e de centro-esquerda e por alguns conservadores, lúcidos naquele momento, como Milton Campos; ao contrário de Magalhães Pinto, que, sem se atrever a defender publicamente o golpe, colocou seus policiais contra o povo. Em declarações que me fez, Milton Campos exigiu o cumprimento da Constituição e a posse imediata de Jango, com todos os seus poderes. Também foram ativos muitos membros da Igreja, renovada com o Concílio do Vaticano, como o padre Francisco Lage Pessoa, de Belo Horizonte. Representando os jornalistas, entre outros companheiros – e me lembro de José Maria Rabelo, Célius Aulicus Jardim, Guy de Almeida, Rober-

Em 1961, depois de impedir o golpe embutido na renúncia de Jânio, cometemos o erro de desmobilizar a resistência e subestimamos o poder dos inimigos. Essa é uma lição que não podemos esquecer to Drummond, Vitor Hugo de Almeida, Wander Moreira, Délio Rocha – no comitê de resistência em Minas, redigimos, minha mulher e eu, vários jornais de campanha, impressos em gráficas clandestinas e em mimeógrafos. Foram horas tensas, em que praticamente não dormimos, noticiando os fatos e mobilizando os trabalhadores para a luta direta, se o golpe se perpetrasse. Minha mulher foi presa. Assim como ocorreu em Minas, ocorreu em todo o Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, onde foi necessário enfrentar o golpista Carlos Lacerda. Embora em estradas distintas, Tancredo e Brizola atuaram em favor da paz. Brizola, ao mobilizar-se para o conflito armado, dissuadiu os militares radicais, temerosos da superioridade bélica e política da nação mobilizada. Getúlio advertia que o Brasil não podia perder uma guerra, sob pena de fragmentação do território nacional. No caso do conflito interno, naquele momento, os norte-americanos interviriam, tornando-o “externo”, e correríamos o risco de nos transformar em nova Coreia, com o país dividido entre o Norte e o Sul. Isso motivou Tancredo em sua ação conciliadora. Os 13 dias foram intensos, como relatam os jornais. Ao tomarem posse, no dia 7 de setembro, como presidente e primeiro-ministro, Jango e Tancredo postergaram o golpe, que seria desfechado menos de três anos depois. Cometemos o erro de subestimar o poder dos inimigos do povo. Essa é uma lição que nós, os trabalhadores brasileiros, não podemos esquecer. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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TATIANA MELIM

CIDADANIA

Elisabeths e margaridas As histórias e desejos das trabalhadoras rurais cuja luta por justiça e paz no campo ganhou o nome de uma flor, guerreira incansável como elas Por Luiz Carvalho e Tatiana Melim

S

ob o sol escaldante, a cabeça protegida por chapéu de palha com uma fita lilás e uma margarida, Maria Delfino e a amiga Elisafrania sorriam e erguiam cartazes que pediam mais recursos para a agricultura familiar. Ambas haviam saído­ do Maranhão e se somavam a outras 100 mil. Vindas de norte a sul do país, do campo e da floresta, faziam da quarta edição da Marcha das Margaridas, em Brasília, a maior manifestação de mulheres do continente. “Somos de um assentamento humilde e passamos dificuldades. É muito 18

AGOSTO 2011 REVISTA DO BRASIL

difícil ter a terra para plantar, é muito caro. Mais difícil ainda é não ter estrutura para trabalhar. Vamos ver o que a Dilma pode fazer pela gente”, desabafou Maria Delfino, rumo à Esplanada dos Ministérios. No dia da marcha, antes de o sol subir, elas já estavam de pé. Não foi fácil chegar ao Parque da Cidade, simbolicamente renomeado de Cidade das Margaridas durante os dois dias de agosto em que recebeu as manifestantes. Ansiosas, muitas levantaram às 3 horas do chão de terra batida, forrado com lonas pretas, para arrumar as fileiras de colchonetes e cobertores

MARCELO CASAL/ABR

Elizabeth Teixeira foi homenageada na Marcha das Margaridas deste ano

em que dormiram. As tendas brancas, que abrigavam todas elas, ajudaram a proteger do frio da madrugada. De dia, o sol era forte e o tempo, seco. Na hora da refeição, a fila era grande. Chegar ao arroz, feijão e carne, vermelha ou de frango, podia levar perto de duas­ horas. Mas a espera era essencial para muitas, como Maria do Nascimento, de 58 anos. Ela passou dois dias e meio no ônibus do Rio Grande do Norte à Cidade das Margaridas e não tinha dinheiro para gastar na capital federal. “Não foi fácil chegar aqui. Estou na marcha porque sou uma margarida também. Sei que ela, a Margarida Alves, lutou muito, e quero continuar essa luta”, explicou. O rosto marcado pelo sol e o corpo cansado não a fizeram desanimar. Foram meses de preparação. “Precisei juntar uns trocadinhos para poder ir no ônibus. As mulheres lá ajudaram em tudo, juntaram tudo o que a gente tinha, e deu. Mas aqui não tenho dinheiro, não, ainda bem que a comida da marmita não é pouca, né?”


camponeses as unia – filhos passando fome, analfabetos e sem direito a uma escola. Quando sua organização em sindicatos e sua causa começavam a ganhar corpo na Paraíba, a resposta dos grandes proprietários, também donos da política e do dinheiro, vinha em forma de repressão e morte. O golpe de 1964 e a ditadura que o sucedeu sufocaram essa e outras lutas sociais por mais de duas décadas. Retomada a democracia, os perigos persistem. A lista de lideranças rurais visadas por matadores, elaborada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), voltou a crescer. E segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a presença de mulheres na lista passou de 7% para 20%. Portanto, os motivos de Margarida e de Elizabeth continuam fortes. “Na época que mataram João Pedro, a perseguição no campo era demais. Quando ele morreu e assumi o sindicato, quase todos os dias eu era presa. Mas não desisti”, diz Elizabeth.

A também paraibana Elizabeth Teixeira, de 86 anos, é exemplo vivo da perseguição sofrida. Viúva do fundador das Ligas Camponesas, João Pedro Teixeira, assassinado em abril de 1962, criou sozinha 11 filhos no meio rural e foi homenageada na abertura oficial do evento. O movimento das Ligas Camponesas surgiu em Pernambuco e se espalhou no Nordeste ainda na década de 1950. João Pedro ajudou a organizar os camponeses do município de Sapé (PB), por volta de 1958. Com sua morte, encomendada por um latifundiário numa emboscada, Elizabeth assumiu a presidência da organização para dar continuidade à luta do marido – ela conhecia os riscos, diz, mas tinha convicção de que a reforma agrária aconteceria depois de tantas denúncias e com os trabalhadores mais organizados. “Dei continuidade à luta de João Pedro por amor a ele e também por acreditar que a luta vale a pena. Faz 49 anos que João morreu e a reforma agrária ainda não aconteceu.” Elizabeth conta que o casal morava próximo aos engenhos Melancia e Sapucaia. A realidade comum a outras famílias de

Leia muitas histórias da Marcha http://bit.ly/rba_margaridas JOSÉ CRUZ/ABR

Para essa potiguar, valeu a pena. “Esse sol aí eu já estou acostumada e o cansaço a gente esquece cantando. Quando eu voltar para casa, sei que a vida ainda não vai ser fácil, mas eu vim aqui para ver se um dia ela melhora”, disse sorrindo, ao terminar o refrão de uma das músicas entoadas na marcha: Olha, Brasília está florida. Estão chegando as decididas. Olha, Brasília está florida. É o querer, é o querer das Margaridas... A quilombola e agricultora Severina Luiza da Costa, de 43 anos, de apelido Cida, desperta a atenção. Seu crachá informa que vem de Alagoa Grande (PB), justamente onde Margarida Alves construiu sua trajetória como presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, até ser assassinada, em 1983, fato que inspirou a criação da marcha. Cida é vice-secretária da organização e, compareceu ao Distrito Federal com uma questão prática: cobrar do governo a titulação do quilombo, aguardada há 11 anos. Da mesma forma, cada mulher ali trazia a experiência de Margarida Alves. Todas se sentiam parte do sonho sonhado pelas que batalharam e sofreram com repressão e violência.

Por que a marcha Margarida Maria Alves rompeu com padrões de gênero de sua época ao ocupar durante 12 anos a presidência do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alagoa Grande (PB). Fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural e teve sua trajetória marcada pela luta contra a exploração e o analfabetismo e pela reforma agrária. Aos 50 anos, em 1983, foi assassinada. O pistoleiro a serviço de usineiros disparou um tiro de escopeta em seu rosto, e o crime é mais um que ficou impune. A luta das mulheres prosseguiu. A marcha que leva seu nome, e já ocupou Brasília em 2000, 2003 e 2007, é a maior manifestação de mulheres da América Latina. Este ano, com o lema Desenvolvimento Sustentável com Justiça, Autonomia, Igualdade e Liberdade, o ato teve a presença da presidenta da República, Dilma Rousseff.

DINO SANTOS/CUT REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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ECONOMIA

Temos a receita O Brasil suportou a turbulência de 2008 com mercado interno forte e crescimento. Para que essa vacina continue eficaz contra efeitos da crise na Europa e nos EUA, proteger empregos e salários é fundamental Por Vitor Nuzzi 20

AGOSTO 2011 REVISTA DO BRASIL

B

ancários, metalúrgicos, petroleiros e químicos, categorias que reúnem mais de 2 milhões de trabalhadores e são consideradas referências nas negociações, abriram as campanhas salariais em um ambiente econômico desconfiado da situação internacional. Mas o cenário interno, apesar da desaceleração da economia, e os resultados obtidos recentemente pelas empresas animam os dirigentes sindicais a continuar reivindicando ganhos acima da inflação. A expectativa é superar, no segundo semestre, o ritmo das campanhas do primeiro. De janeiro a junho, de um total de 353 acordos coletivos de trabalho estudados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), 93% foram celebrados com reajustes que não perderam para a inflação e a maioria deles com aumentos reais.

INVESTIMENTO CONTRA A CRISE O plano de negócios da Petrobras para o período 2011-2015 vai a US$ 224,7 bilhões. Em um ano, o valor de mercado da companhia cresceu 28%, para R$ 328,4 bilhões


Para ele, um dos desafios para o futuro das negociações coletivas é justamente debater o crescimento dos salários em harmonia com a melhora da produtividade. Ou seja, o trabalhador tem motivos concretos para pleitear o aumento da renda sem que precise para isso acumular funções e tempo de trabalho. “É uma batalha que os sindicatos têm de travar”, adverte.

De vento em popa

Ainda que não seja possível calcular o tamanho, para o Brasil, de um impacto da crise nos Estados Unidos e na Europa, na avaliação do diretor do Dieese o país está “bem”. Mantidos os padrões outrora usados para o enfrentamento de crises, segundo ele, a instabilidade deixaria muitos desempregados. “Alguém imaginaria nos anos anteriores (referindo-se ao governo Fernando Henrique Cardoso), em plena crise, a gente estar por aqui em negociação salarial?”, argumenta. No país em que se conquistou recorde de estoque de empregos com carteira assinada no último ano, ele defende a disputa pelo aumento real como estratégia de crescimento. “E mais empregos e mais salários são a base para sustentar o mercado interno.” Mesmo com a previsão de um PIB menor para este ano, o fato é que os bons resultados continuam acontecendo em quase todos os setores da economia. A Petrobras, por exemplo, anunciou lucro líquido de R$ 21,9 bilhões no primei-

NACHO DOCE/REUTERS

AGÊNCIA PETROBRAS

Esse desempenho duradouro das campanhas salariais na última década e a política de valorização do salário mínimo têm algo em comum: contribuem para proteger o poder de compra dos consumidores. E, por extensão, o mercado interno, sem com isso ter representado qualquer ameaça ao controle da inflação. Para os setores da imprensa e do mercado que costumam praguejar contra a renda sob a alegação de ser uma ameaça à estabilidade de preços – uma conversa do século passado –, o professor Claudio Dedecca, do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), rebate.

Afirma que, a não ser para algumas pessoas “mal intencionadas”, não há nenhum sinal de que o crescimento do consumo esteja na raiz do processo inflacionário. O ambiente, aliás, favorece as batalhas por percentuais de reajuste acima da inflação. O coordenador de Relações Sindicais do Dieese, José Silvestre Prado de Oliveira, observa que, embora nos acordos salariais tenham superado a inflação, os ganhos reais conquistados estão abaixo dos ganhos de produção, das vendas e dos resultados alcançados pelas empresas. Em 2010, por exemplo, o aumento real médio dos assalariados foi de 1,7%, enquanto o PIB do país alcançou 7,5%. Para Dedecca, o aumento real de salário deve ser visto não apenas como fator de justiça social, mas instrumento para garantir o desenvolvimento econômico – considerando que a economia brasileira vem se sustentando via mercado interno. “Os aumentos reais no segundo semestre podem ser um fator importante na busca pela manutenção do crescimento de 4%”, afirma. O governo agora trabalha internamente com uma previsão de 3,7%. O diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, afirma que o atual momento é favorável a que se busque bem mais do que o “empate” com a inflação. “Se estivéssemos no início dos anos 2000, diria que no quesito de negociação salarial estaríamos na série C do campeonato com a perspectiva de empatar em alguns jogos”, compara.

RECORDES SUCESSIVOS No ano passado as montadoras venderam 3,5 milhões de veículos REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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NACHO DOCE/REUTERS

ECONOMIA

MÁQUINA LUCRATIVA Os ganhos dos principais bancos do país cresceram entre 11,4% (Itaú Unibanco) e 36% (Caixa Federal)

ro semestre, crescimento de 37% sobre igual período de 2010. Seu plano de negócios para o período 2011-2015 vai a US$ 224,7 bilhões, e em um ano o valor de mercado da companhia cresceu 28%, para R$ 328,4 bilhões. Em julho, o Conselho de Administração da empresa aprovou a segunda parcela de distribuição antecipada de juros sobre o capital próprio aos acionistas, no valor de R$ 2,609 bilhões. “Com relação à atual conjuntura econômica, o cenário mundial apresenta instabilidade, porém ainda sem impacto em nossos negócios em função da concentração de nossas atividades no Brasil, onde o mercado se encontra em expansão, o que vem nos propiciando uma robusta geração de caixa necessária ao desenvolvimento de nossos negócios”, assinala o presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, na apresentação dos resultados. Com isso, os petroleiros preparam-se para uma negociação que é considerada 22

SETEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL

chave, por seus reflexos na administração pública. A pauta de reivindicações aprovada em congresso da Federação Única dos Petroleiros (FUP) inclui reposição da inflação e 10% de aumento real. De acordo com a entidade, os bons resultados da empresa poderiam indicar uma negociação menos complicada, mas o problema é que até pessoas importantes do governo já manifestaram uma visão conservadora, relacionando aumento real a inflação. Uma sinalização das prováveis dificuldades veio do setor elétrico – o acordo fechado com a Eletrobrás prevê ganho real de apenas 1%. Em São Paulo, o sindicato estadual dos trabalhadores do setor energético (Sinergia-CUT) já fechou acordos maiores com a Cesp (8,1%), a CPFL Energia (7,8%) e a CPFL Jaguariúna (7,04%). As montadoras também vivem ciclo positivo desde 2005, com recordes sucessivos. No ano passado, venderam 3,5 milhões de veículos, e a meta é atingir 6 milhões até 2020. Por enquanto, o rit-

mo está mantido. De acordo com a Anfavea, a associação das montadoras, 3,7 milhões foram comercializados nos últimos 12 meses. E há 13 projetos em construção ou análise para expandir a capacidade – atualmente o país tem 19 montadoras e 24 fábricas. As negociações com o setor automobilístico começaram em meados de agosto e, no segmento das montadoras, já assegurou índice de 5% acima da inflação. O acordo foi inovador para os padrões brasileiros, ao estabelecer o critério de reajuste e o patamar de ganho real­ por dois anos. Isso abre mais espaço para negociações de cláusulas sociais, com adesão das empresas à licença-maternidade de 180 dias. O setor financeiro, por sua vez, continua acumulando ganhos bilionários. O Bradesco teve lucro líquido de R$ 5,6 bilhões no primeiro semestre, crescimento de 21% sobre igual período de 2010. Suas ações preferenciais saltaram 28% em 12 meses, ante 2% do Ibovespa. O lucro


do Itaú Unibanco atingiu R$ 7,1 bilhões nos primeiros seis meses deste ano, 11,4% sobre o primeiro semestre de 2010. Os bancos públicos não ficam atrás. O Banco do Brasil anunciou lucro líquido de R$ 6,3 bilhões de janeiro a junho, 23% de aumento, com distribuição de R$ 2,5 bilhões aos acionistas; e a Caixa, R$ 2,3 bilhões, alta de 36%, na comparação dos semestres.

Novo cenário

“A crise, na fase atual, parece ser a crise do ‘medo de 2008’, e não algo sistêmico”, declarou ao jornal O Globo, em meados de agosto, o economista-chefe do Bradesco, Octavio de Barros, que apesar disso se alinha aos que consideram não ser ainda o momento de cortar juros. As projeções para a taxa básica (Selic) também entraram na gangorra. Até pouquíssimo tempo atrás, o mercado – sempre ele – previa (e desejava) pelo menos uma ou duas altas ainda neste ano. Depois, a expectativa passou a ser de manutenção dos juros no alto nível de 12,5% ao ano. Até que começaram os movimentos

Distribuição de riqueza Como foram os reajustes no primeiro semestre* Acima da inflação

Igual à inflação

Abaixo da inflação

2008

77,30%

10,80%

11,90%

2009

74,80%

17,00%

8,20%

2010

86,70%

9,60%

3,70%

2011

84,40%

8,80%

6,80%

* Considera o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), do IBGE. Os números referemse a 353 campanhas salariais. Fonte: Dieese

dentro do próprio governo para que, dada a desaceleração inflacionária e diante do ritmo de crescimento, os juros passem a cair. “Não acredito que o presidente do BC queira ser responsável por um crescimento de 2% ou 3%”, diz Claudio Dedecca, da Unicamp. E acertou. Com a decisão do governo de se comprometer a ser ainda mais mão-fechada com os gastos públicos, visando criar um clima mais favorável à queda dos juros,

não coube outra opção ao Comitê de Política Monetária: em sua mais recente reunião, no final de agosto, tirou 0,5 ponto percentual da Selic, baixando-a para 12%. “Note-se que o ‘descontrole’ da inflação saiu da agenda. A situação atual, de atenção à crise, deve ser vista como oportunidade. Abre-se espaço para redução dos juros”, afirma o professor do Instituto de Economia da UnicampAndré Biancareli. Segundo ele, as fórmulas macroeconômicas mastigadas pelo mercado podem ser superadas e o Brasil não deve permitir que a agenda conjuntural, de prevenção a eventuais efeitos da crise, se sobreponha aos seus desafios estruturais. “Temos objetivos permanentes, como preservar o crescimento e os empregos; manter os investimentos em infraestrutura, saúde, educação; defender a indústria, cada vez mais apreensiva diante da concorrência chinesa; promover a integração produtiva, comercial e de cooperação financeira com a América do Sul”, defende Biancareli. Colaborou Letícia Cruz

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Sempre defendemos que um país só pode ser grande e forte e ter influência no mundo na medida em que tem o mercado interno forte. Isso com bom padrão de rendimento dos trabalhadores, para que possam consumir o que é produzido pela economia nacional. Foi assim que o Brasil superou a crise causada pela quebra do banco Lehman Brothers em 2008. João Antonio Moraes, coordenador-geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP)

Vivemos em um país de muita desigualdade social e grande concentração de renda. Temos de corrigir isso. O aumento real, além de fortalecer o mercado e nossa economia, distribui renda. Nosso setor tem um ganho de produtividade altíssimo e uma rentabilidade em torno de 25%, fora do comum. Esse resultado precisa ser partilhado com os trabalhadores e a sociedade. Juvandia Moreira, presidenta do Sindicato dos Bancários de S.Paulo

Economia em alta, previsão de 4% de crescimento do PIB. Nunca se ganhou neste país como as empresas ganham vendendo energia elétrica. O consumo aumentou muito e as empresas pagam uma capela pelo processo de privatização. O importante é dar sequência à retomada do crescimento. O argumento da crise não se sustenta. Jesus Garcia, presidente do Sindicato dos Energéticos de SP

Nosso setor tem superávit de 12 mil postos de trabalho entre contratações e demissões. Então, está visivelmente em muito bom momento. Pelas pesquisas que temos feito com o Dieese, o setor químico cresceu, nos últimos anos, de 7% a 15%. Então, cenário de crise não prospera na mesa de negociação. E é a questão do aumento real que vamos discutir. Raimundo Lima, da Federação dos Químicos (FetquimCUT/SP)

Acordo de longo prazo permite ao trabalhador prever investimentos ou gastos futuros. Ganho real proporciona poder de consumo e de poupança, mais produção e mais empregos. O aumento da ajuda o crescimento. Na crise de 2008, países como Alemanha ou Brasil, que sustentaram empregos e políticas públicas, saíram da situação com maior facilidade. Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC

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HISTÓRIA

Autênticos, moderados e arapongas Primeiro grande encontro sindical do período da abertura política ainda foi feito sob vigilância Por Vitor Nuzzi

E

m agosto de 1981, o Brasil estava com um pé na democracia. Foi nesse clima que, pela primeira e última vez, todas as correntes do movimento sindical se reuniram para discutir a formação de uma central sindical. Autênticos, comunistas, conservadores, moderados, pelegos, radicais, revolucionários – como se classificavam –, 5.036 delegados de 1.091 entidades sindicais estavam na Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, a 1ª Conclat, na Praia Grande, litoral paulista. Mas como ainda se vivia sob a sombra de donos do poder que não queriam largar o osso, a conferência foi acompanhada em detalhes pelos órgãos de inteligência. Documentos disponíveis no Arquivo Público do Estado de São Paulo mostram, por exemplo, que agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Santos demonstravam apreensão. “A ocorrência da 1ª Conclat preocupa sobremaneira, em face do considerável aglomerado ou concentração de sindicalistas, provavelmente infiltrados por membros de facções de esquerda (...), mormente quando se sabe que a meta prioritária de toda a esquerda seria a reorganização do CGT sob a denominação CUT”, diz relatório de 11 de agosto, dez dias antes do início da conferência. O Comando Geral dos Trabalhadores era formado por confederações, sob influência de PTB e PCB, atuante no governo João Goulart. 24

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Mas grande parte dos delegados presentes à Conclat queria justamente romper com o modelo que se baseava no sistema confederativo, ou seja, com predomínio de confederações e federações e pouca participação das bases. “Nos anos 1980, havia uma semente disseminada nas oposições sindicais: democratização no sindicato, organização de baixo para cima”, lembra Olívio Dutra, na época dirigente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, reconquistado após um período de intervenção – prática comum adotada pelo governo militar em represália às greves que já se espalhavam no país. Para Edson Barbeiro dos Campos, representante do Sindicato dos Bancários de São Paulo e um dos coordenadores da conferência, a Conclat foi importante inclusive para inibir ações autoritárias do governo. “Acho que a quantidade de pessoas, a mobilização, foi fundamental para que o governo repensasse o processo de intervenção generalizada nos sindicatos. Se o movimento sindical tivesse se dividido para fazer duas conferências, teria sido muito mais fácil para a ditadura tomar providências”, acrescenta Campos, hoje assessor da presidência da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. “Foi uma enorme demonstração de força. Abriu-se caminho para a criação de centrais e para ter um outro grau de relacionamento com os empresários e, de certa forma, com os governos estaduais.”

Conteúdo subversivo

Outro relatório do Dops, posterior ao evento, define-o como “um verdadeiro congresso de cúpula socialista-comunista, onde farto material de literatura de esquerda foi distribuído e vendido”. E destacava o conteúdo, “subversivo”, dos debates. “Predominaram as violentas críticas ao regime vigente, ao desemprego, à estrutura sindical brasileira, às multinacionais, às autoridades constituídas, ao presidente da República, ao governador do Estado de São Paulo, ao ministro Delfim Netto, ao Pacote da Previdência e à situação do trabalhador rural brasileiro.” Na época da Conclat, já havia sido aprovada a Lei da Anistia (1979), tema polêmico até hoje. Mas o país ainda convivia com ameaças de retrocesso por parte de um segmento mais linha-dura entre os militares. Essas ameaças se expressavam por atentados, como à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1980, e tentativas, como no Riocentro, em 1981, que pretendiam tumultuar um show de 1º de Maio.


JESUS CARLOS/IMAGEMLATINA

Jorge Bittar Hugo Perez

Lula

CLIMA DE DECISÃO A Conclat foi a arena para o novo sindicalismo moldar sua cara e apontar seu rumo

Joaquinzão

JESUS CARLOS/IMAGEMLATINA

Olívio Dutra

CEDOC SINDICATO DOS BANCÁRIOS DE SÃO PAULO

Ivan Pinheiro

Nesse ambiente de rearticulação política entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, foi realizado o Encontro Nacional dos Trabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical (Entoes). Surgiu a Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindical (Anampos), juntando setores da igreja, universidades, trabalhadores, intelectuais, sob influência do recém-criado Partido dos Trabalhadores. Em outro polo, agia a Unidade Sindical, reunindo dirigentes tradicionais ligados, principalmente, ao PCB. “O Brasil estava todo em uma efervescência, em consequência dos movimentos sociais e organizativos”, lembra Avelino Ganzer, então dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA), que em 1983 se tornaria o primeiro vice-presidente da CUT. “O novo sindicalismo trazia princípios de base, classistas, de autonomia e independência perante os partidos e o Estado, uma questão que deve ser muito avaliada hoje.”

Agente FOX-06

Na política, com o fim do bipartidarismo imposto desde 1964, era tempo de recomposição. O PT havia sido criado em 1980. A sigla PTB era motivo de disputa entre Leonel Brizola e Ivete Vargas. O veterano político criou, então, o PDT. Os partidos comunistas saíam da clandestinidade. Nas eleições quase gerais que se realizariam em 1982 (só não elegeria o presidente da República), o PMDB iria se afirmar como principal partido da oposição. O movimento sindical já incomodava o poder de plantão. Surgia uma geração que depois seria associada com o “novo sindicalismo”, propondo mudanças estruturais e modernização nas relações do trabalho. Essa geração, identificada por Lula e outros, iria se chocar com dirigentes apegados à estrutura oficial, resistentes a mudanças. O agente FOX-06, do Dops paulista, fazia sua análise da Conclat. A formação da CUT, segundo ele, dividia “interesses políticos do PCB, PCdoB e MR-8, por outro lado o PT e os representantes da Igreja”. Zeloso, destacou a presença do líder comunista Luiz Carlos Prestes no plenário, junto com personalidades como dom Cláudio Hummes (então bispo da Diocese de Santo André), Ulysses Guimarães (liderança mais expressiva do PMDB) e REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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HISTÓRIA Teotônio Vilela (que rompera com a Arena, o partido do regime militar, para se tornar figura emblemática da redemocratização). Em seu relatório, de 11 páginas, o agente anotou até chapas de carros estacionados ali perto, inclusive oficiais. Para Clara Ant, na época diretora do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, havia uma situação de “empate técnico” no encontro. “Era um equilíbrio delicadíssimo, a rigor, entre quem queria e quem não queria formar a CUT. A minha convicção é que, se a CUT não fosse criada, não ia ter nenhuma central”, afirma Clara, hoje assessora do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Instituto Lula, novo nome do antigo Instituto Cidadania. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (atual ABC) de 1975 a 1981 e um dos criadores do PT, em 1980, Lula era o mais destacado representante dos, à época, chamados “autênticos” da Conclat.

Aplausos para Glauber

De certa forma, a história daquela conferência tem início em 1977, segundo relato de Hugo Perez, então presidente da Federação dos Urbanitários de São Paulo e atualmente assessor político da Força Sindical. Naquele ano, os empresários ha-

viam realizado o Congresso Nacional das Classes Produtoras (Conclap), atiçando o movimento sindical, que já se organizava em campanhas salariais, turbinadas pela revelação de que houvera manipulação de dados oficiais da inflação de 1973. Convocado para ser orador da turma de um curso do Ministério do Trabalho perante o presidente Ernesto Geisel, o sindicalista falou sobre a necessidade de os trabalhadores também realizarem seu congresso. “Ele (Geisel) não disse uma palavra”, lembra Hugo, “e a palavra ‘congresso’ rolou por meses.” A partir daí, começaram as conversas e reuniões. O senador Paulo Paim (PT-RS), então dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas, considera a Conclat uma “revolução pela via democrática” no país. “Todos estávamos juntos, por um sindicalismo autêntico, rebelde, combativo, corajoso.” Entre debates e enfrentamentos políticos, sobrou um momento para a abstração. Clara Ant ainda se emociona ao lembrar a reação à notícia, durante o encontro, da morte do cineasta Glauber Rocha. O plenário fazia um minuto de silêncio quando alguém gritou: “Os artistas precisam de aplauso!” Os murmúrios deram vez às palmas.

BERÇO CUT elege sua primeira direção

Da abertura política ao reconhecimento O ano da Conclat

1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, em agosto, aprova formação da Comissão Nacional Pró-CUT

CUT elege direção

Em agosto, a CUT realiza seu primeiro congresso nacional (Concut) e elege Jair Meneguelli presidente, Avelino Ganzer vice e Paulo Paim secretário-geral

A vez da CGT

Em março, a Conclat de Joaquinzão realiza congresso e cria a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), com ele na presidência. O secretário de Relações Internacionais era Antônio Rogério Magri (Sindicato dos Eletricitários de São Paulo). Os dois romperiam em 1989

1983 1981 Movimento se divide; nasce a CUT

■ Agosto: congresso no Pavilhão Vera Cruz, em São Bernardo, com mais de 5 mil delegados, cria a Central Única dos Trabalhadores (CUT) ■ Novembro: outro congresso na Praia Grande, liderado por Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, dos metalúrgicos de São Paulo, cria a Coordenação Nacional das Classes Trabalhadoras, mantendo a sigla Conclat

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1989 1984 CGT se divide

1986

Em abril, em tumultuado segundo congresso da CGT, Magri assume o comando da entidade e fala em “expurgo” de “partidos” na confederação, referindo-se ao MR-8 e aos comunistas do PCB e do PCdoB (este já havia saído, em 1988, e formado a Corrente Sindical Classista). Joaquinzão se recusa a fazer parte da chapa única e defende realização de novo congresso. É eleito presidente em setembro. A CGT se divide em “confederação” (Magri) e “central” (Joaquinzão). Posteriormente, a central acrescentaria uma letra e se tornaria a CGTB


E o imposto sindical...

Jair Meneguelli

A. Ganzer

JESUS CARLOS/IMAGEMLATINA

Paulo Paim

Mais uma central

A Força Sindical é fundada em março, sob a liderança de Luiz Antônio de Medeiros, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo

1995

No final do ano, é criada a Central Autônoma dos Trabalhadores, tendo Laerte Teixeira da Costa na presidência

Mais histórias da 1º Conclat em http://bit.ly/rba_conclat

Surgem UGT e CTB

■ Em junho, é criada a União Geral dos Trabalhadores (UGT), com base em uma dissidência na Força Sindical e com a inclusão da CGT, da SDS e da CAT. Une, por exemplo, Alemão (SDS) e Laerte (CAT). ■ Fundada, em dezembro, a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), com predominância de sindicalistas ligados ao PCdoB, desde 1989 reunidos na CUT sob a Corrente Sindical Classista

1997

2008

2005 2007

1991 CAT vira central

Entre as resoluções da Conclat, algumas são conhecidas até hoje, como a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. Mas a principal decisão foi a criação da Comissão Nacional Pró-CUT – responsável por organizar um congresso no ano seguinte para fundar a central. A comissão eleita tinha 56 integrantes, 32 de sindicatos urbanos e 24 de rurais. Chegar a essa composição, porém, exigiu horas de reuniões, depois que o plenário se dividiu entre duas chapas. A votação foi apertada. Como não era possível dizer quem tinha ganhado, os líderes do encontro partiram para outra reunião e quebraram a cabeça para formar chapa única. Os nomes de Waldemar Rossi, líder da oposição metalúrgica de São Paulo, de um lado, e de Joaquinzão, do outro, não passaram. “Temiam a possibilidade de Lula obter a hegemonia do movimento sindical”, lembra Jair Meneguelli, primeiro presidente da CUT e hoje à frente do Conselho Nacional do Sesi. O congresso previsto só saiu dois anos depois. Começavam a se consolidar as diferenças entre os sindicalistas. Se foi difícil montar uma central, hoje existem seis formalmente legalizadas. A Central Sindical e Popular Conlutas, criada em 2010, ainda não foi reconhecida. Certos temas continuam sendo polêmicos. “Magoa ainda não ter acabado o imposto sindical”, diz Clara Ant.

Surge a SDS

Enílson Simões de Moura, o Alemão, ex-companheiro de Lula no ABC, lidera a formação da Social Democracia Sindical (SDS)

Vem a NCST

Junho: surge a Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST). Seu presidente é José Calixto, da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI)

Centrais reconhecidas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sanciona em 31 de março a Lei nº 11.648, que reconhece formalmente as centrais sindicais. O texto define a central como “a entidade associativa de direito privado composta por organizações sindicais de trabalhadores” e estabelece requisitos para seu funcionamento

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MÍDIA

Quem aprova É

só começar uma propaganda de sabonete bactericida na televisão para o empresário Flávio Donadio se remexer no sofá. Sua mulher, Gabriela Vilela, sabe que lá vêm reclamações costumeiras e ri da indignação do marido. “Os anúncios são até engraçados, mostram imagens alegres, têm músicas, mas acho horrível quando o locutor começa a dizer coisas como ‘seus filhos podem estar expostos a bactérias que podem causar doenças!’ ou que é preciso lavar as mãos com aquela marca de sabonete depois de tossir ou espirrar”, explica Donadio. “Alimentar uma paranoia para promover a venda de um produto é, no mínimo, palhaçada. Sem falar nas propagandas de xampus e condicionadores que aumentam em até 37% o brilho de seus cabelos, deixando-os até 42% mais lisos”, brinca. Um pouco mais graves são as agruras da professora paulistana Judith Arantes: “As propagandas de cerveja são extremamente machistas por mostrar mulheres com rostos e corpos perfeitos, modificados por computador, com roupas curtíssimas, mudas, como se fossem um brinde que vem com a bebida. Quando começa um anúncio desses, passo raiva!” Segundo o presidente do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar), Gilberto C. Leifert, cerca de um terço das representações abertas em 2010 pelo órgão no Ministério Público partiu de consumidores. “As motivações são as mais diversas, mas é notável a preocupação com a veracidade na apresentação dos anúncios, principalmente em relação a disponibilidade de estoques, prazos de entrega e condições de preço. Consumidores também são sensíveis quanto à respeitabilidade e segurança de crianças e adolescentes”, afirma. No caso das propagandas de cerveja, porém, Leifert acredita que tudo está resolvido: “As regras éticas para a publici28

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dade de bebidas alcoólicas em geral foram revisadas de forma radical em 2003, com veto do uso de qualquer apelo de natureza sensual. Em 2008, tirando proveito da larga experiência acumulada pelo Conselho de Ética no julgamento de casos envolvendo publicidade de cerveja e outras bebidas, novos aperfeiçoamentos foram incorporados às normas. Nesse intervalo de tempo, o Conar julgou algumas centenas de casos. Houve dezenas de reprovações”.

Produtos e valores

Quando alguém se sente ofendido, discriminado ou enganado por um anúncio, pode denunciar ao Conar e pedir sua retirada dos meios de comunicação. Mas e

quando a propaganda é simplesmente horrível, cafona, de mau gosto? Márcio Oliveira, vice-presidente de operações da agência Lew’Lara\TBWA, uma das maiores do Brasil, não tem medo de dizer: “A propaganda hoje está muito chata. Ou é varejo, gritaria, ou parece que passou por um checklist­na sala de reunião da agência: tem isso, tem aquilo”. Para Oliveira, o segredo de uma boa propaganda é emocionar ou fazer rir, tirar sarro. Sua agência é responsável pela praga dos “pôneis malditos”, propaganda de um carro que tem tantos cavalos­de potência “que o resto é pônei”.


REPRODUÇÕES GERARDO LAZZARI

isso?

Graças à mesma ausência de regulação que acomoda a mídia eletrônica, o baixo nível na propaganda ainda briga com a criatividade Por Andrea Dip

com o consumidor principalmente através das redes sociais e canais de vídeo na internet. A liberdade e a eficiência das redes sociais são de fato um outro filão que está sendo explorado. A cadeia de fast-food Burger King, por exemplo, fez uma peça “passável” para exibir nos comerciais da TV e uma versão proibida da peça, ainda mais apelativa, repleta de palavrões, que acabou caindo no Youtube. O advogado Antonio Paraguassu Lopes, autor do livro Ética na Propaganda, lembra com saudosismo a época em que publicidade era arte. Para ele, criatividade, ética e valores foram por água abaixo há uns dez anos, quando algumas leis a respeito da remuneração das agências publicitárias sofreram mudanças no início dos anos 2000. Segundo ele, a qualidade caiu porque os profissionais passaram a ser mal remunerados. “Agências se descapitalizaram, não contratam profissionais, pagam freelances. O governo perde porque não há recolhimento, os profis-

sionais perdem porque não há emprego e a sociedade perde porque não há qualidade. Além disso, começaram as apelações, vale tudo para ganhar uma concorrência: de mulher pelada vendendo trator a lutador de boxe vendendo sutiã”. Mas há quem acredite que a propaganda deve ser pensada mais a fundo, e não apenas classificada como boa ou ruim. Em um artigo escrito para o site Casa do Galo, o publicitário Nauro Rezende Jr. coloca a propaganda como uma perigosa fábrica de preconceitos e até de comportamentos escusos que perduram se não houver cuidado, como a famosa lei de Gérson, que legitimou o tirar vantagem de qualquer situação de maneira egoísta e antiética. A expressão nasceu de uma propaganda de cigarros na qual o meia-armador Gérson, da seleção brasileira tricampeã em 1970, dizia: “Por que pagar mais caro se o (cigarro) Vila me dá tudo que eu quero? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.

“Liberdade de expressão” comercial

No anúncio, um homem que dirige um carro da marca concorrente abre o capô e depara com pôneis coloridos que cantam um jingle chiclete. A versão para a internet lança uma maldição no final do filme: se o espectador não repassá-lo para dez pessoas, a musiquinha irritante dos pôneis vai ficar na sua cabeça. A gracinha foi vista por mais de 10 milhões de pessoas, repercutindo numa ação que o publicitário chama de “ousadia necessária para a nova propaganda” – aquela que dialoga

Na Comunidade Europeia, nos Estados Unidos e no Canadá, os espaços de telecomunicações que são objeto de concessão pública, como rádio e TV, são objeto de sistemas de regulação de conteúdo. O objetivo é proteger as produções nacionais e coibir a veiculação de conteúdos com potencial de agressão a direitos humanos, como discriminação por gênero, raça, etnia, opção sexual ou religiosa. A proteção à infância e à saúde também deve ser levada em conta nas programações. Em vários países, até a produ-

ção de publicidade de alimentos pouco nutritivos e de outros produtos nocivos à saúde é regulada. “Embora esteja prevista na Constituição brasileira, a regulamentação e criação de meios legais para proteger os cidadãos do efeito nocivo dessa publicidade, enfrenta uma resistência feroz dos fabricantes”, diz o sociólogo Venício Artur de Lima, autor do livro Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia. Para Venício, o Brasil é o único país em que foi

inventado o que empresários do setor chamam de “liberdade de expressão comercial”, conceito que se apropria da ideia de liberdade, como se mídia, anunciantes e agências de publicidade fossem os legítimos representantes do direito individual e coletivo contra a “censura” por parte do Estado. Desse modo, o consumidor fica desavisado de que certos alimentos, devorados sem moderação, trazem riscos à saúde – obesidade, diabete, hipertensão, acidentes vasculares cerebrais e infarto – comparáveis aos danos causados pelo cigarro.

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GERARDO LAZZARI

MÍDIA

SEM DÓ Pensando na educação das filhas, Juliana cortou a TV a cabo e agora pode passar mais tempo com Helena e Isadora

Rezende Jr. diz ainda que paródia com violência doméstica, consumismo exagerado, ridicularização de minorias eram, e continuam a ser, lugar-comum nos roteiros de comerciais do Brasil e de outras searas­. “A mensagem publicitária tem grande peso na cultura popular, pois se utiliza de todos os artifícios para convencer o receptor e, ao convencê-lo sobre o produto, acaba por convencê-lo também dos demais elementos da mensagem.”

Obesidade no Brasil? Imagina

“Cheeeeega!”, bradou a jornalista Juliana Vilas diante dos pedidos insistentes das filhas Helena, 5 anos, e Isadora, 4, na frente da televisão. “Eu tinha TV por assinatura e elas começaram a se interessar pelo canal Discovery Kids. Mal sabiam falar e passaram a me pedir para comprar brinquedos. Se elas pouco vão ao shopping e ao supermercado, como sabiam, com menos de 3 anos, o que significa comprar?”, questionou a mamãe em surto. 30

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Quando as pequenas começaram a pedir brinquedos e sapatos pela marca, a jornalista resolveu cortar o mal pela raiz: “Se há tanta publicidade, por que cobrar assinatura? Se eu pago mensalidade/assinatura, não quero ver publicidade. Cortei o serviço, sem dó, antes que fosse tarde. Hoje brincamos, pintamos e elas assistem a DVDs”. De acordo com estudo do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, que analisa o consumismo infantil, bastam 30 segundos para fixar uma marca na cabeça de uma criança. “E os publicitários sabem disso”, diz uma das coordenadoras do projeto, Gabriela Vuolo: “Anunciar para criança é um negócio lucrativo, ninguém quer perder esse filão. Uma pesquisa de 2003 revela que as crianças influenciam cerca de 80% dos processos de decisão de compra dentro de uma casa”, observa Gabriela. “Mesmo produtos que não são infantis anunciam com elementos infantis. E por isso também não conseguimos até hoje

aprovar sequer uma lei que regulamente a questão no país”, lamenta. Enquanto isso, outra Juliana, empresária, trava uma batalha ao lado do marido, Paulo Carvalho, advogado, pela alimentação saudável de Maria Eduarda, 4 anos, e Maria Nina, 2. “Restaurantes fast-food exercem um poder incrível sobre elas. Há pouco tempo lançaram uns brindes dos Smurfs, dos quais elas nunca tinham ouvido falar – porque são da nossa época! Agora, querem comer no restaurante mil vezes para ganhar os bonecos. Tivemos de comprar DVD com os desenhos antigos e levá-las para ver o filme no cinema… Uma loucura”, relata Juliana. Gabriela Vuolo diz que esse também tem sido motivo de preocupação para o projeto, que inclusive travou uma batalha com o Conar por causa do veredito para o pedido de suspensão de um comercial de uma rede de restaurantes. “Denunciamos o comercial ao Conar e recebemos um parecer chocante. Chamaram o Instituto Alana de ‘bruxa alana’, dizendo que


Propagandas de cerveja mostram mulheres com rostos e corpos perfeitos, com roupas curtíssimas, mudas, como se fossem um brinde que vem com a bebida

a gente­odiava as criancinhas. Disseram que no Brasil não era preciso se preo­ cupar com obesidade infantil porque os nossos ‘menininhos moreninhos’ sofrem de desnutrição e que o problema de obesidade acontece apenas com os menininhos loirinhos da Dinamarca. O parecer está em nosso site para quem quiser ver.”

Terra sem lei

PAULO PEPE

GERARDO LAZZARI

Judith Arantes

ALÉM DA ÉTICA Juliana, Maria Eduarda e Maria Nina: fast-foods com cinema e brindes

Na terra dos “branquinhos com problemas de obesidade infantil”, também conhecida como Estados Unidos, a brasileira Kelly Santiago sente o peso dos apelos das propagandas sobre a filha Isabella, de 8 anos. A pequena aponta os brinquedos “do canal tal” e nem muda na hora da propaganda, só para ver as novidades. “Há também a questão de que aqui é tudo muito barato, uma boneca custa cerca de US$ 4, então, se você não se policiar, compra mesmo. O Brasil ainda é menos rigoroso com a publicidade infantil do que os Estados Unidos, que ao menos têm leis a regular a questão. Aqui, artigos como o 4o do Código de Defesa do Consumidor, que deveriam proteger o consumidor vulnerável, são convenientemente esquecidos, abrindo brechas para propagandas como a do Caveirão do Bope. Já retirado do ar pelo Conar após pedido do Alana – mas disponível no Youtube –, o comercial mostra meninos vestidos de preto, com quepe e botas, arrebentando portas ao som de sirenes, pedindo reforço ao “esquema tático blindado”. No final, um caminhão preto de plástico é apresentado, com bonecos de soldados armados. O brinquedo continua sendo vendido. “Propaganda para crianças é um verdadeiro absurdo”, admite o advogado Antonio Paraguassu. “A lei que rege a propaganda é de 1960, mas é boa, se adapta. O brasileiro é que não vai atrás dos direitos, prefere deixar tudo como está”, lamenta. Gabriela Vuolo engrossa o coro: “Pais, professores, tios que virem uma propaganda abusiva, enganosa, que desrespeite a infância, denunciem ao Instituto Alana, liguem para a emissora, o fabricante, botem a boca no trombone! A gente sabe que é uma luta dura, contra uma indústria bilionária, mas não vale ficar calado, deixando os pequenos absorverem todas essas mensagens”. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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SAÚDE

A face de uma nova vida As próteses de áreas do rosto esculpidas pelas mãos de especialistas do Instituto Brånemark, a maioria gratuitamente, representam a esperança de uma nova vida para centenas de pacientes Por Suzana Vier

O

rosto de José Salve Serra, de 78 anos, renasce ano após ano pelas mãos do coordenador da Reabilitação Protética Craniofacial do Instituto Brånemark, Marcelo Ferraz de Oliveira. Protesista bucomaxilofacial – um misto de artesão e cirurgião-dentista –, Oliveira dá forma à face de José, que luta contra os efeitos de um câncer de pele descoberto em 1962. O instituto, em Bauru, a 330 quilômetros da capital paulista, atende pacientes de todo o Brasil em busca de tratamentos de reabilitação facial, a maioria gratuitamente. Orelhas, olhos, nariz e palato (céu da boca) são esculpidos pela equipe de protesistas da instituição, fundada pelo sueco Per-Ingvar Brånemark (lê-se Bronemark). “Grande parte dos nossos pacientes são oncológicos, pessoas que tiveram tumor cuja remoção cirúrgica acaba comprometendo uma área na face que precisa ser restaurada. Também há casos de má-formação congênita. E ainda em decorrência de acidentes”, descreve a coordenadora do instituto, Ingrida Ginters. Pacientes como José Salve ganham qualidade de vida e recobram a autoestima com implantes osseointegrados de titânio e próteses faciais. Morador de Cambé (PR), José teve de retirar o 32

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olho esquerdo e o nariz e já sofreu algumas recaídas. Há quatro anos foi submetido à operação que retirou um tumor e usa prótese há três. Quando criança, ele se expunha em demasia ao sol, no trabalho na roça, sem protetor solar, como quase todos de sua geração. “Pessoas de pele branca que passam ou passaram por grande exposição ao sol, sem proteção, podem ter o problema, diz Oliveira. “A doença é cumulativa. Você toma sol durante 20, 30 anos, depois começa a aparecer.” Graças à prótese, hoje José trabalha 12 horas por dia em sua loja de conserto de eletrônicos e eletromésticos e leva a vida com naturalidade. Antes do tratamento, para ele se sentir melhor ao sair de casa, usava um tapa-olho, que também cobria o nariz, feito pela sobrinha. Na década de 1960, Brånemark descobriu que o osso pode se integrar a componentes de titânio. Suas pesquisas revolucionaram a medicina e a odontologia. Próteses de dedos, mãos, braços, pés e pernas podem ser implantados no corpo humano graças ao método do médico e pesquisador. Todo o processo de osseointegração e criação das próteses ocorre no próprio instituto, que é coirmão de entidade similar em Gotemburgo, na Suécia, ambos coordenados pelo pesquisador de 82 anos, um declarado


apaixonado pelo Brasil. Os médicos fazem os implantes de titânio e esculpem partes do rosto a partir de gesso, silicone e tintas, entre outros materiais.

NASCER DE NOVO José Salve Serra recebe novo rosto

FOTOS OLICIO PELOSI

Conviver com os olhares

Revolução Per-Ingvar Brånemark revolucionou a área médica e odontológica quando, na década de 1960, descobriu a osseointegração – o que teria ocorrido por acaso, em pesquisas sobre a microcirculação sanguínea em tíbias de coelhos – ao notar que o osso do animal e o titânio da câmara de observação se integravam. Não havia rejeição. Na odontologia, o processo deu novo direcionamento à confecção de dentaduras e pode até auxiliar na criação do homem biônico, vaticina Oliveira: “Muitos membros já são passíveis de substituição”. Antigamente, o tipo de prótese disponível, no caso de pacientes desdentados com grande reabsorção óssea, era a dentadura, que hoje pode ser substituída por implantes de titânio. Aos 82 anos, Brånemark vive e trabalha na Suécia. Em maio deste ano, recebeu o Prêmio Inventor Europeu pelo conjunto de suas pesquisas. Além dos dois centros de referência mundial, o de Bauru e o de Gotemburgo, ambos sustentados por doações da Suécia, há nove centros de osseointegração particulares, em todo o mundo, que levam a chancela do médico. No Brasil, há um em São Paulo (SP) e um em Goiânia (GO). “Cabe nos dedos das mãos quem atende essa área”, calcula a diretora do Oncocentro, Maria Cláudia de Alencar Faria. Saiba onde encontrar atendimento gratuito de reabilitação facial no site da Rede Brasil Atual.

Ingrida conta que há pacientes que passaram até 20 anos sem uma prótese. “Imagine sair na rua todo esse tempo com uma gaze ou um curativo. Você vai a um restaurante e muita gente olha, até que chega alguém e pergunta o que aconteceu com seu rosto. Algumas pessoas enfrentam, outras entram em depressão profunda e acabam não saindo mais de casa.” A gerente Maria Cláudia de Alencar Faria, da Diretoria Adjunta de Reabilitação da Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp), na capital paulista, ressalta que toda lesão no rosto é mais do que um problema médico: “É difícil porque, quando o problema é no rosto, a pessoa perde a identidade”. A prótese facial devolveu a José Salve a alegria da convivência. “Vixe, nossa senhora! É outra etapa agora. Outra vida”, comemora. Ele ainda guarda o tampão antigo e mostra como vivia antes. “É chato, né?” Sua única dificuldade é jogar futebol. “Eu gostava de uma bola, mas não posso mais, por causa do sol”, brinca o atleta quase octogenário. A consulta médica parece encontro de velhos amigos. “O doutor é meu irmão, meu pai, meu amigo”, afirma. Marcelo Oliveira, por sua vez, revela que cada paciente é um “amigo” pelo resto da vida. O especialista chama a atenção para o charme do paciente. “Lá em Cambé, o senhor começou a causar, eu sei”, ri o cirurgião. José responde filosofando sobre o casamento de 55 anos e a arte da paciência para a vida a dois. Falam de futebol e riem com os “baixos salários” dos jogadores. “Eles ganham pouco, por isso anda mal a seleção”, ironiza José. Durante a consulta, Oliveira percebe uma recidiva e pede ao paciente que retorne ao dermatologista, para analisar o problema. No dia seguinte, José já sai do consultório com sua nova prótese. O especialista explica que a peça dura por volta de um ano, pois perde a cor no dia a dia pela exposição ao sol, e cada vez que surge um tumor o protesista recomeça o processo. Faz um novo molde do rosto, que dá forma à prótese substituta. Ademar Walter Cobianchi, de 63 anos, teve adenocarcinoma de glândula lacrimal (câncer no fundo do olho) há 16 anos. Depois da operação de retirada do olho direito, o problema foi erradicado e ele passou a usar prótese. Mas, até conseguir uma, o aposentado de Ribeirão Preto (SP) conviveu por 13 anos com curativos: “Sem a prótese era desagradável, você anda na rua e todo mundo fica olhando”. A vida, atualmente, segue “normal”. Após o atendimento odontológico, o cirurgião Oliveira passa a tarde preparando a nova prótese e, no dia seguinte, Ademar sai com o rosto bem cuidado. Para o aposentado José Maria de Matos, de 61 anos, a prótese do nariz o move a viajar 650 quilômetros, de Carmo do Paranaíba­ (MG) a Bauru. Ele também sofreu com câncer de pele pela exposição ao sol sem proteção. Quando descobriu o tumor, em 2003, José Maria parou de trabalhar e de sair de casa. “A retirada do nariz complicou muito a vida social”, conta. A retomada do cotidiano veio com o tratamento. O paciente recebeu uma nova prótese do instituto, mas o molde ainda é antigo. Na próxima consulta vai “posar” para um novo. REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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CULTURA

Cidadãos do mundo História da imigração árabe no Brasil e produção literária inspirada em sua diversidade cultural desconstroem visões superficiais e estereotipadas de uma população criativa e transformadora Por Christina Stephano de Queiroz

D

ez anos após os atentados de 11 de setembro, uma nova imagem da sociedade árabe se impõe sobre o horizonte de frases feitas e estereótipos como o terrorista islâmico ou a mulher submissa. Os árabes passam a ser vistos com outro olhar – principalmente depois dos recentes levantes ocorridos em países do Oriente Médio. A emigração árabe para o Brasil, embora não costume estampar manchetes do noticiário como as revoluções no Egito ou na Tunísia, permite resgatar imagens que fogem aos modelos superficiais. A mescla de povos com diferentes identidades abriu espaço para a construção de figuras complexas e culturas múltiplas. O escritor Salim Miguel, que veio do Líbano com 3 anos, em 1927, conta que o destino da família era os Estados Unidos, onde sua mãe tinha parentes. “Por conta do acaso, maktub, acabamos no Brasil. Meus pais abandonaram o projeto original e nunca mais saíram daqui”, lembra, usando uma expressão que significa que o destino está escrito e é imutável. Segundo ele, os libaneses possuem capacidade de integração e logo se sentem parte da terra que os acolhe. “Afirmo isso com base em minha vivência e no livro de memórias Minha Vida, que meu pai deixou manuscrito em árabe e do qual fizemos uma edição em português, no centenário de seu nascimento.” No Brasil, a migração é dividida em duas etapas. A primeira vai de 1880 até 1945. Alguns migrantes eram a elite cultural e política no próprio país, diferentemente do que ocorria com outros fluxos migratórios. Italianos e espanhóis, por exemplo, em geral eram mais pobres e vinham para o Brasil amparados pelo governo. Os árabes chegavam de forma totalmente independente, tendo como principal atividade a venda de mercadorias – que eram guardadas em uma caixa. Assim, passaram a ser conhecidos como os homens da caixa ou mascates. 34

AGOSTO 2011 REVISTA DO BRASIL


FOTOS ARQUIVO PESSOAL

Claude Fahd

A aceitação do outro também passa pela rejeição Salim Miguel

EDUARDO ZAPIA

DESPEDIDA A mãe de Claude Fahd, Laurice, deixa o Líbano com a irmã e os filhos para se encontrar com o pai Yourghaki, asilado no Brasil

“Exercendo atividade comercial, o mascate e o varejista se relacionavam com todas as camadas da sociedade brasileira. Eram chamados de turco de prestação, armarinho, caixeiro ou matraqueiro”, lembra Miguel. Segundo o octogenário autor, a instalação de uma comunidade nova em uma terra provoca medos, desconfiança e preconceito. “Porém, a aceitação do outro também passa pela rejeição”, afirma. A maioria dos árabes até 1920 pretendia voltar ao país de origem, desde que este se libertasse da dominação otomana e da presença europeia. Essa ideia muda depois da Segunda Guerra Mundial, devido aos problemas causados com a criação do Estado de Israel e às expectativas frustradas com a independência do Líbano, em 1943. Assim, a nova ter-

ra passa a ser vista como lar definitivo. “Nesse momento, o forasteiro perde sua identidade local, mas ganha a ótica de cidadão do mundo. É uma fase de transição, a pessoa relativiza suas origens”, diz a psicóloga Claude Fahd Hajjar, conselheira para as Américas da Federação das Entidades Árabes Brasileiras do Estado de São Paulo. Autor de Identidades Assassinas, o escritor e jornalista libanês radicado na França Amin Maalouf diz em seu livro que identidade é um conceito dinâmico, plural, em constante construção, determinado e relativizado pelo contexto. “E todo estereótipo se alimenta da falta de esclarecimento”, lembra a professora Luciana Wrege Rassier, do Departamento de Língua e Literatura Estrangeira da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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CULTURA

Esse desejo por renovar a identidade e reconstruir a rotina em uma sociedade totalmente nova faz com que os imigrados criem grupos literários por toda a América. Um dos mais célebres, fundado por Gibran Khalil Gibran (1883-1931), em 1920, em Nova York, influencia a criação de outros. Composta por cerca de 30 poetas, a chamada Liga Andaluz, estabelecida em São Paulo em 1933, tinha como objetivos inovar o discurso e a forma dos textos, a partir de um repertório em que a mulher, o amor e a natureza eram idealizados. Segundo Karim Hauser, diretor do programa Arábia Americana, da Casa Árabe de Madri, esses grupos fazem parte da chamada literatura mahjar. “A literatura mahjar é considerada uma espécie de renascimento, uma vez que reivindica reviver o passado glorioso de Al-Andalus”, diz, citando o nome da Península Ibérica sob a ocupação árabe independente do Império Otomano, na Idade Média. “Já o grupo de Gibran rompe com modelos estabelecidos, ao dar início à chamada poesia sussurrada, à prosa poética e ao verso livre.” No Brasil, a Liga Andalus seguia modelos poéticos tradicionais e adaptava-se ao contexto do novo mundo. “Os poemas dessa fase estão impregnados de nostalgia, mas também são existenciais, como nos textos de Fawzi Maaluf ”, diz Hauser. Essas bifurcações da literatura árabe em solo americano são testemunhas da ponte construída entre duas culturas, algo que contraria as supostas “incompatibilidades de identidade” defendidas por alguns meios de comunicação. “O sucesso das civilizações árabes mestiças deve ficar registrado e ser reconhecido”, afirma. Ele recorda, no entanto, ser anterior à emigração do século 19 a influência árabe no imaginário latino-americano, que recebeu elementos da Espanha e da época de Al-Andalus, a partir de autores e obras clássicas espanholas, como La Celestina, e até mais recentemente de escritores como Federico García Lorca e Juan Goytisolo. Néstor Suleiman, presidente da Federação de Entidades Argentino-Árabes de Santa Fé, na Argentina, concorda. “As organizações políticas, sociais, religiosas, 36

SETEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL

DIVULGAÇÃO

Anseios literários

FATORES EM MUTAÇÃO Amin Maalouf: identidade é um conceito dinâmico, plural, em constante construção, determinado e relativizado pelo contexto

culturais e esportivas que se desprendem das comunidades árabes arraigadas na América Latina são exemplos que permitem distanciar-nos de imagens estereotipadas”, avalia. “Muitos jovens que deixaram a própria terra de forma violenta abriram espaço para a construção de uma literatura comprometida, orientada por ideias transformadoras e revolucionárias.”

Experiências na pele

Com 30 livros publicados, Salim Miguel é exemplo vivo dessa fecundidade. O autor conta que, quando criança, o idioma do lar era o árabe e o da rua, o alemão – a família se radicou em Santa Catarina. Somente aos 8 anos passou a estudar português na escola. “Querendo ou não, sou o produto da influência dessas duas culturas e agora elas convivem em mim em harmonia.” Seus pais aprenderam o português rapidamente, mas preferiam falar o árabe. “Não demoraram para se adaptar aos novos hábitos e costumes. Permanecia viva, porém, a visão de mundo trazida do Líbano. A distração do meu pai era o jogo de gamão com os filhos e os brimos, aquecido com um gole de arak”, lembra. “No meu processo de amadurecimento, tanto pessoal como literário, concluí que a herança libanesa, que na adolescência eu relutava em aceitar, só me enriquecia.”

O imaginário árabe transcendeu as barreiras da origem e acabou por influenciar autores bem brasileiros. Alberto Sismondini, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, observa que autores como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade são exemplos dessa mistura. “Um dos personagens clássicos de Guimarães Rosa, o jagunço Riobaldo, declara sua xenofilia, frequentando a casa de Seu Assis Wababa, para curtir um ambiente hospitaleiro, saborear iguarias orientais, e também amando Rosa Warda, que é um nome belíssimo por sua síntese intercultural”, diz. No poema “Os Turcos”, Drummond representa todos os estereótipos relacionados ao medo da alteridade. No final, porém, revela uma atitude plenamente inclusiva. Sismondini destaca, por fim, que a partir da segunda metade do século 20 a geração dos filhos ou netos de migrantes, entre eles Mário Chamie e Waly Salomão, participou da construção das vanguardas brasileiras, enquanto escritores como Raduan Nassar e Milton Hatoum tornaram-se cânones da literatura local. “Parafraseando Mário de Andrade, são autores que atualizaram a inteligência artística brasileira”, diz.

Guia de leitura Universos literários que jogam com o imaginário árabe Alberto Mussa – O Enigma de Qaf e Elegbara Alcy Cheuíche – Jabal Lubnan, As Aventuras de um Mascate Libanês Ana Miranda – Amrik Jorge Amado – A Descoberta da América pelos Turcos Marco Lucchesi – Diwan Michel Sleiman – Ínula Niúla Milton Hatoum – Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cidade Ilhada Raduan Nassar – Lavoura Arcaica, Um Copo de Cólera e Menina a Caminho Salim Miguel – Nur na Escuridão, Mare Nostrum, Reinvenção da Infância e Onze de Biguaçu Mais Um Waly Salomão – Tarifa de Embarque

PB


LaloLeal

Internet assusta poderosos

N

uma noite de sábado o Jornal Nacional surpreendeu os telespectadores. Depois de um intervalo comercial, os apresentadores titulares do programa (que geralmente não trabalham aos sábados) passaram a ler os princípios editoriais das Organizações Globo. Muita gente ficou intrigada. Por que aquilo, naquela hora? Não havia mais nenhuma notícia importante no mundo a ser dada? E por que só agora, depois de 86 anos de existência, a empresa resolveu divulgar na TV suas normas de trabalho? Milhões de telespectadores em todo o Brasil ficaram sem resposta. Só quem tem acesso à internet soube do que se tratava. A explicação para o inusitado texto lido no Jornal Nacional estava no blog O Escrevinhador, de Rodrigo Vianna. Nele eram reproduzidas informações de um jornalista da Globo sobre como a emissora pretendia cobrir a indicação do embaixador Celso Amorim para o Ministério da Defesa. Durante os oito anos do governo Lula em que esteve à frente do Ministério das Relações Exteriores, Amorim sempre foi visto com desagrado pelas Organizações Globo. A empresa não engolia suas posições em defesa da soberania nacional, principalmente quando não coincidiam com os interesses dos Estados Unidos. A volta de Amorim ao primeiro escalão do governo foi uma afronta para a Globo. Segundo o jornalista mencionado no blog, a orientação da empresa era clara: “Os pauteiros devem buscar entrevistados para o Jornal Nacional, Jornal da Globo e Bom Dia Brasil que comprovem a tese de que a escolha de Celso Amorim vai gerar ‘turbulência’ no meio militar. Os repórteres já recebem a pauta assim, direcionada. O texto final das reportagens deve seguir essa linha. Não há escolha”. Pena que só internautas atentos ficaram sabendo disso. Jornais e revistas não repercutiram o assunto e muita gente acabou achando que, finalmente, a Globo havia tomado a iniciativa magnânima de expor à sociedade seus princípios editoriais partindo de vontade própria. Mas, mesmo atingindo um público relativamente menor que o da televisão, a internet prestou um bom serviço à sociedade. Inibiu um pouco a ação nefas-

Quando o Blog do Mello postou uma gravação que desmentia uma notícia do Jornal Nacional, demonstrou que a Globo violara seus princípios editoriais, na própria edição em que começou a divulgá-los ta armada contra o novo ministro e mostrou que a poderosa organização não consegue mais fingir que denúncias e críticas não a atingem. A Globo sentiu o golpe e tentou responder recorrendo a princípios por ela violados várias vezes ao longo de sua história. Esperava-se uma mudança de conduta a partir daquele momento. Não foi o que ocorreu. Na mesma edição a apresentadora do Jornal Nacional disse o seguinte: “Está foragida a merendeira que pôs veneno de rato na comida de crianças e professores numa escola pública de Porto Alegre”, mostrando uma foto da moça de 23 anos. Poderia até ser verdade, mas o Jornal Nacional baseava-se apenas numa versão da polícia, negada pela acusada. Seu advogado havia divulgado a palavra dela, através da Rádio Guaíba, oito horas antes de o JN ir ao ar. Mas para não perder uma notícia espetacular – envenenamento de crianças – nada disso foi levado em conta. Nem os tais princípios editoriais. Se não fosse outra vez a internet, fatos como esse não estariam sendo contados aqui, em detalhes. Foi o Blog do Mello que fez o registro, acompanhado da gravação do desmentido da merendeira através do rádio, da violação dos princípios editorais da Globo na mesma edição em que eles foram divulgados. Dessa forma vão sendo levantados os véus de interesses que recobrem o noticiário divulgado por grandes meios de comunicação, não só no Brasil, mas em várias outras partes do mundo. Parece ser um caminho sem volta. À medida que um número maior de pessoas vai tendo acesso à internet, fica cada vez mais difícil para os meios tradicionais de comunicação realizar desvios desse tipo. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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ENTREVISTA

Mais que dois viajantes Renato Teixeira e seu filho Chico falam da música em seu DNA e contam histórias com sabor de roça Por Aloisio Milani e Xandra Stefanel

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Quando o Chico começou a tocar, ele foi na fazenda do Almir Sater. Foi passar 15 dias e ficou dois meses. Quando acabou o colégio, disse: “Pai, meu negócio é música, não vou pra faculdade”. E eu: “Tá bom”. Faculdade de Música, jamais! 38

s dois acordam ao som dos passarinhos. Para chegar aonde vivem pai e filho, é preciso subir a Serra da Cantareira, contornar as curvas da Estrada da Roseira e vencer um emaranhado de ladeiras. A casa de Chico Teixeira tem uma varanda ampla, com vista para um quintal gramado e um lago. Na porta da cozinha, o pai e vizinho, Renato, acende um cigarrinho de palha. O clima de roça entra e instala-se no sofá. Ao violão, cantarolam Pai e Filho, versão do hit de Cat Stevens que está no disco recém-lançado de Chico Teixeira, Mais Que o Viajante. Renato inicia suavemente a letra que aconselha o filho a ficar em casa. A resposta de Chico vem em voz grave. A música é um diálogo sobre o filho indo embora. “Isso toca as pessoas porque são valores folk, são coisas do povo”, diz Renato, que é pai de quatro filhos e avô de seis netos. Ele nasceu em Santos e passou a infância em Taubaté. Tornou-se compositor e frequentou festivais da Record cantado por Gal Costa, Roberto Carlos e Elis Regina. Identificou-se com a música caipira. Também compôs – e ainda compõe – jingles inesquecíveis. Gosta de lembrar a estética inovadora criada com o parceiro Sérgio Mineiro no Grupo Água. O arranjo para a música Romaria, por exemplo, surpreendeu Elis Regina, que decidiu-gravá-la com as mesmas nuances­. “O conceito era pegar o que o povo diz e transformar em música.” Chico, 31 anos, enxerga o pai, de 66, como inspiração cotidiana. Conviveu desde menino com seus muitos parceiros, entre eles Zé Geraldo, Pena Branca, Zé Gomes. Em seu segundo disco, Chico gravou composições próprias e desenterrou a saborosa Saudade Danada, de Elpídio dos Santos, compositor das trilhas dos filmes de Mazzaropi. O álbum conta ainda com Dominguinhos, Gabriel Sater e o próprio filho de 5 anos, Antonio. Nesta entrevista, pai e filho falam sobre música, inspirações, jingles, pirataria e os novos projetos.

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Vocês estão juntos em diferentes turnês. Shows­do DVD Amizade Sincera, apresentação solo do Renato e o disco do Chico. Como conciliar tantos trabalhos e conquistar o público?

Renato Teixeira – Nosso público não está necessariamente na capital. Está no interior. A atividade cultural de São Paulo é fortíssima, mas é muito concentrada em determinados tipos de público. Chico Teixeira–Tem vários guetos musicais em São Paulo. O rock underground, por exemplo, tem uma cena forte, que funciona. Mas é diferente quando falamos da música que vem do interior e emociona... Renato – Até 1970, a música brasileira era bem dividida. Bossa nova, samba, nordestina, boleros. E a música caipira estava encerrando um ciclo genial. Nesse momento, o Sérgio Reis, a dupla Léo Canhoto e Robertinho e eu começamos a mexer com essa música. Minha influência do caipira vem de Monteiro Lobato, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Guimarães Rosa. E Léo Canhoto e Robertinho mostraram que a dupla não precisava ser só aquele modelo tradicional, que podia ser o que vemos e ouvimos hoje com Chitãozinho e Xororó. Aí o terreno ficou fértil. Foi quando passou a vir o lastro para esse nosso lado: Inezita (Barroso), Rolando Boldrin, Pena Branca e Xavantinho... Isso depois de Elis gravar Romaria, em 1977?

Renato – Foi. Isso é uma conquista, não é da noite para o dia, demora anos. Eu já tinha Romaria; Tocando em Frente; Amanheceu, Peguei a Viola; Frete – enfim, todos os meus sucessos. Mas quando ia tocar só havia dez pessoas na plateia. Em 1992, aquele disco histórico com Pena Branca e Xavantinho ao vivo, em Tatuí, fez muito sucesso.

Renato – E foi tudo na raça, na intuição, sem apoio. Chico –Meu pai cantando Rapaz Caipira naquele disco é a resposta para aquele momento.


JAILTON GARCIA

O trabalho dessa meninada, do Chico, do Gabriel, filho do Almir, da Nô Stopa, filha do Zé Geraldo, vai fazer o galo cantar

REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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ENTREVISTA Você estava lá, Chico? Nos bastidores?

Peguei a música de Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Tião Carreiro e Pardinho, Cascatinha e Inhana, os cults. Esses caras entravam no estúdio, ligavam um microfone pra cada um e gravavam um LP em duas horas

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Chico –Eu tinha uns 11 anos. Acompanhava a movimentação toda com Pena Branca e Xavantinho em casa. Nesse show eu não estava, mas vi os ensaios. A gente morava na casa da Elis Regina e lembro uma época em que eles iam quase todo dia lá. Acompanhei desse jeito. Depois fui tocar com o Pena Branca, já com 20 e poucos anos. Em seguida, com meu pai. Em 2003 entrei pra tocar no show inteiro. Éramos eu e ele. Nos primeiros discos do meu pai, na fase mais folk, sempre havia grandes violeiros: Natan Marques, Carlão de Souza. Pensei: “Pô, vou seguir esses caras”. Renato – Ele começou viajando junto, passou a ajudar numa coisinha aqui, outra ali, depois tirou carteira e ajudava a guiar. Às vezes eu o convidava para entrar e cantar uma música. Quando precisou, estava pronto. Conhecia todo o processo. O violão de 12 (cordas) é um instrumento fundamental pra esse tipo de som. Conheceu o Carlão. Depois, o Natan. Chico –Também convivi com o Zé Gomes, um cara superconceitual, tocava rabeca. Renato – Pois é, estamos falando de músicos que estão entre os melhores do mundo. Quando o Chico começou a tocar, quando começou a sair som, ele foi na fazenda do Almir Sater. O violeiro precisa de uma base pra poder solar, e ele ficou acompanhando o Almir. Chico –Fui passar 15 dias lá e fiquei dois meses. Foi mágico vivenciar aquilo, o som da viola caipira. Então você sabia que trabalharia com música?

Chico –Saber, não sabia, mas nunca passou pela minha cabeça fazer outra coisa. Renato – Nem na minha. Desde que nasci a minha casa sempre foi assim, cheia de violão (mostra os violões de Chico expostos na sala). E o Chico reproduziu isso. Eu falava que queria ser arquiteto, mas por quê? Porque música é arquitetura. Eu ia muito lá na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), assistia a aulas. Chico –Ele até fez uma casa em Ubatuba (risos). Renato – Eu nunca cheguei no Chico e disse: “Você vai ser músico”. Ele vai ser o que quiser! Chico –Tem o lance do DNA, tem até um estudo, um livro que fala sobre a cabeça do músico... Meu pai ficou fazendo música em casa, no começo dos anos 1980, que era (a época) da baixa, a Elis tinha acabado de morrer também. Foi um tempo meio frio em que ele foi fazer publicidade, nos anos 1970, comecinho dos 1980. Renato – Eu comecei a fazer publicidade para “calibrar­”. Chico –Ele trabalhava muito em casa, fazia trocentos jingles numa levada. E eu sempre perto. Tem fotos dele compondo e eu lá, puxando o cadarço dele. E ele casou com a minha mãe, que era apresentadora de telejornal e pianista clássica desde a infância.

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Renato – Uma coisa superengraçada tanto na música dele como na dos meus filhos (todos). Quando eles estavam brincando, a Sandra tocava a tarde toda. Pianista clássico estuda muito. Chico –Enlouquecedor (risos). Renato – Eles jogavam bola ouvindo aquele piano tocar estudos. Impressionante como essa prática acabou influenciando a música deles. Chico – Com certeza. Renato – Tanto que, quando o Chico se formou no colégio, ele chegou pra mim e disse: “Pai, meu negócio é música, eu não vou pra faculdade”. E eu disse: “Tá bom”. Faculdade de Música, jamais! Chico –Ah, é. Teve um período em que eu até pensei, mas o Zé Gomes, nesses jogos de xadrez, dizia: “Ô, rapaz, não vai fazer aula! Você vai sair padronizado. Vai demorar mais um pouco, mas você chega lá”. O Yamandu Costa ficava estudando direto com o Zé Gomes, o Almir também... Quantos filhos você tem, Renato?

Chico –Quatro. A Isabel, Bel Teixeira, que é uma grande atriz, ganhou Prêmio Shell... Renato – A Antonia, que é música também, mas mexe com vídeo. É uma grande editora de vídeo. Chico –Eu e o João. Acho que é isso, né, paizão? Poderíamos comparar o trabalho independente do Renato, no Grupo Água, e o seu, Chico, agora?

Renato – Aí tem uma sequência interessante. Eu peguei a música caipira das duplas, Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Tião Carreiro e Pardinho, Cascatinha e Inhana, as duplas que eu gostava, os cults – porque já tinha os apeladores também. Esses caras entravam no estúdio, ligavam um microfone pra cada um, violão, e gravavam LP em duas horas. E, quando o ciclo se cumpriu, como é que a gente releu isso? Montamos o Água, que hoje considero uma das bandas mais importantes da história da música brasileira. Viemos com um acústico pesado, que acabou jogando a gente pro conceito folk – que na verdade é o princípio da música popular. Até em 1700, a música era medieval, aquela coisa renascentista, com cravos e alaúdes... Aí um desses músicos um dia saiu para passear no campo e viu os caras capinando e cantando aqueles cantos de trabalho. Viu as lavadeiras lavando roupa e cantando. Ele ficou prestando atenção, decorou e botou os instrumentos em cima. Aí o cara disse: “Isso é folk, essa é a música do povo, harmonizada por músicos”. Você pega o que o povo diz e pensa e transforma em música. Romaria, por exemplo. Baden e Vinicius são absolutamente folk. O samba é totalmente folk. Noel Rosa! Chico –Você pega Tocando em Frente, é uma música que pode mudar sua vida.


Renato – A gente não tinha essa consciência. Chico –Eu vejo nitidamente que a sonoridade do Almir vem daí. Renato – O Almir estava estudando Direito no Rio e viu o Água. Chico –Aí mudou a vida do cara. Renato – Ele viu um cara tocar viola, se interessou e comprou a viola. “É isso o que eu quero”, disse. Uma coisa foi puxando a outra. Acho que o trabalho dessa meninada, do Chico, do Gabriel, filho do Almir, da Nô Stopa, filha do Zé Geraldo – que é folk total –, vai fazer o galo cantar. Os filhos também são amigos, não?

Chico –Sim. E o Zé Geraldo também, direto a gente faz comida, janta, eu vou na casa dele... Essa Cantareira está ocupada!

Renato – Tem músico pra todo e qualquer lado. Chico –Você toca o sino e junta uma banda.

Uma coisa do disco novo remete aos dois: o Elpídio dos Santos. Essa música de Taubaté e São Luiz do Paraitinga, ali perto de onde o Renato passou a infância.

Renato – O Elpídio frequentava a casa da nossa família em Ubatuba. Ele e o Adolfinho são músicos muito parecidos, todos semiclássicos. Chico – Eu fui descobrir o Elpídio na minha adolescência, indo para Ubatuba. Tinha uma parada que era tradicional em São Luiz. Quando comecei a viajar sozinho com os amigos, eu ia lá. Acabei encontrando os filhos do Elpídio, o Negão, grande amigo meu. Fui conhecendo coisas belíssimas! Ele era um músico absoluto, de ouvido absoluto, que escrevia tudo e frequentava a casa dos parentes em Ubatuba. Rolava esse intercâmbio. Eu me aproximei do Negão e, no centenário do Elpídio, no ano passado, fizeram um projeto superbonito em comemoração e me convidaram pra cantar Saudade Danada. Fiquei meio surpreso, mas a música caiu no meu colo. Eu gravei e coloquei no show do Renatão. Renato – Mas nosso grande momento no palco é a música do Cat Stevens Pai e Filho. Ouço desde que foi lançada. E o Chico começou a tocar e disse: “Pai, vamos fazer a versão?” É legal porque é um filho se despedindo do pai para ir tocar a vida. É aí que está o combustível da sedução: conseguir tocar as pessoas. Um filho indo embora de casa toca as pessoas. Chico –Tem dia que a gente fica preocupado. “Olha o tanto de gente chorando!” Impressiona. Renato – E na música tem uma coisa em que acredito: a única moeda forte no planeta hoje, o único dinheiro que vai sobrar chama-se emoção. Se você consegue emocionar uma pessoa, não tem preço.

E dá para fazer isso até com jingle...

Renato – Principalmente. Se você fizer um jinglezinho meia-boca, passa batido. Agora, se pegar o cara pelo coração, vai vender. Emoção serve pra tudo. Chico –Para cada jingle, ele fazia cinco músicas, tá? (risos) Na gravação de Ouça Menino, a participação do seu filho foi natural ou ensaiada?

Chico –Foi natural. Eu o levei pro estúdio porque não tinha com quem deixá-lo. Fiz essa música pra ele. Mas não foi só. Ele gravou mais coisa porque o deixei brincar. Ele fez uns improvisos bem legais. Imagine, pra uma criança, entrar num estúdio, botar o fone, o microfone, aquele som lindo, ficar falando e a música tocando... Eu não fico cutucando muito porque acho que a coisa tem de ser natural, como foi pra mim. Tanto é que está cheio de violão aqui e de vez em quando ele vai e dá uma arranhadinha. Ele tem o maior respeito por violão, nunca deixou cair nem nada. Eu confio. Meu pai, graças a Deus, sempre presenteou a gente com instrumentos top, e eu confio. Renato – Cada vez que vinham pedir instrumento, nunca dei um meia-boca, para irem se acostumando com os bons. Essa geração nova tem muito mais recursos para trabalhar com música. Tanto que nós estamos fazendo aqui em casa um estúdio. Em geral, o artista, quando começa a investir, compra fazenda. Aqui, a gente só compra coisas que tenham a ver com música. O estúdio é caro, mas vamos gravar nossos discos aí. E os netos vão gravar os deles também. Como vocês veem o compartilhamento de músicas? A pirataria faz com que vocês deixem de ganhar?

Renato – Por enquanto, até sair um jeito de ganharmos. Para o Chico, é uma dádiva dos céus. Pra mim, é uma vingança contra as gravadoras (risos). A gente não precisa mais delas, e isso é muito bom.

FOTOS JAILTON GARCIA

Naquela época o Água já se considerava folk?

Meu pai ficou fazendo música em casa, no começo dos anos 1980, época da baixa. Fazia trocentos jingles de publicidade numa levada. E eu sempre perto. Tem fotos dele compondo e eu lá, puxando o cadarço dele

Qual é o próximo projeto?

Renato – Estou com um projeto tão lindo neste ano! Não ficou pronto ainda, mas vou fazer um disco com a minha neta de 10 anos, vou compor junto com ela. Enquanto eu estiver por aqui, com cada neto que estiver na fase dos 10 anos quero fazer um disco junto. São seis netos. Chico –Antes ele fazia música para nós. Cada filho dele tem uma música. Renato, você se vê mais novo no Chico?

Renato – É igualzinho. E com eles atuando, eu me modernizo. Estou vinculado a eles agora. Eu me desprendi daquelas minhas influências de Noel Rosa, de Ary Barroso, e acabei me prendendo a eles. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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COMPORTAMENTO

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Faça você mesmo

ouca gente se dá conta, mas está quase quarentão um dos “filhos” caçulas do rock. O movimento punk acrescentou a essa revolucionária história musical sua pegada mais bruta – e junto com ela, como em outros momentos do rock, trouxe ao cotidiano urbano um de seus mais diferentes e duradouros legados de comportamento social e postura política. Em termos musicais, pode-se dizer que as raízes do rock e alguns de seus frutos – do canto mais doído das comunidades negras americanas que levariam ao blues e ao jazz e depois ao rock’n’roll, ao progressivo, ao heavy metal e ao punk – compõem um acervo criativo que escapa ao modismo, a ser sorvido por toda a eternidade. Mas, quando se pensa nos aspectos físicos do rock, a cenografia, o figurino, e sobretudo na postura política perante o mundo, nada é tão longevo quanto o lema “do it yourself “ (faça você mesmo) e todo o componente anárquico que ele carrega. “Se não fosse esse lema, não teríamos ido adiante, até porque há a ideia errada­ das bandas de aguardar alguém que as promova. E no punk havia também a atitude política do anarquismo, de botar a mão na massa”, acredita o músico Clemente, dos Inocentes, uma das mais importantes bandas brasileiras do gênero, criada em 1981. Aos 18 anos e 30 mais jovem que o baixista, o estudante Bruno Cavalcante vê na cultura punk a ideia de subverter a ordem e contestar tudo que considera errado. “Um menino entra no movimento, muitas vezes sem nunca ter escrito um texto por vontade. Daí ele conhece os fanzines e cria uma forma de pôr no papel as 42

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Quatro décadas após seu surgimento, o punk ainda influencia novas gerações. E até para muita gente das antigas a vida é classificada entre antes e depois do “do it yourself” Por Guilherme Bryan

e de ações sociais, o punk no Brasil começou ligado a brigas de gangues e hoje se tornou mais politizado. Peter Shelley, fundador, vocalista e guitarrista da banda punk Buzzcocks, surgida em Manchester, na Inglaterra, hoje com 56 anos e já avô, tem opinião parecida quando reflete que o grande papel do movimento foi romper com o establishment de modo mais radical do que haviam feito Beatles e Rolling Stones, na década de 1960. Para o músico, a maior herança do punk está na internet. “Ela tornou possível que as pessoas estejam muito mais em contato com a música hoje em dia e que os músicos, por sua vez, dependam cada vez menos das grandes gravadoras e distribuidoras”, aponta.

Arte e movimento

Never Mind the Bollocks, de 1977, primeiro disco do Sex Pistols: quem ainda tinha dúvidas se virava punk, se converteu

indignações e, com o tempo, se ele acha que o texto é pouco, cria uma banda para divulgar suas ideias ou procura outras formas de protesto”, define Bruno. Para ele, que acredita contribuir para o movimento participando de protestos de rua

Essa maneira de produção cultural influenciou outras artes, caso da literatura de ficção científica. O jornalista Romeu Martins é especialista na área e autor de contos publicados em 2009 na coletânea Steampunk – Histórias de um Passado Extraordinário, que acaba de ganhar edição em inglês. “Tudo começou no cyberpunk, na segunda metade dos anos 1980. O movimento liderado por William Gibson e Bruce Sterling levou a ideologia punk ao mundo da ficção científica, ajudando a dar maior relevância aos verdadeiros produtores do gênero – os escritores – e incluindo uma temática muito mais politizada e não conformista”, explica Romeu. “Quando o escritor K.W. Jeter escreveu uma carta em 1987 para a revista Locus batizando o steampunk, ele apenas fazia uma analogia com o cyberpunk, mas o sentido original, de vagabundo, marginal, começava a se perder”, relata.


Eu era de uma turma de colecionadores de discos na Vila Carolina que era revoltada com o rock que se fazia na época e ouvia o pré-punk de bandas como The Stooges, MC-5 e New York Dolls. Aí veio o punk, e a identificação foi imediata

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GERARDO LAZZARI

Clemente

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COMPORTAMENTO “O modo punk de ver o mundo deu maior relevância aos verdadeiros produtores culturais, em todas as vertentes em que se manifestou. Acredito que, mesmo antes da música, já se podia ver isso nos quadrinhos, a partir do momento em que Robert Crumb passou a editar ele mesmo suas revistas e a vendê-las em um carrinho de bebê nas esquinas de São Francisco, na metade dos anos 1960. Esse foi o espírito do jornalista Legs McNeil ao resgatar aquela palavra, que já aparecia nas peças de William Shakespeare, há quase meio milênio, e batizar um fanzine com ela, fazendo com que o termo punk entrasse definitivamente para o vocabulário da contracultura”, acrescenta. Muitos estudiosos afirmam que o punk rock surgiu em meados da década de 1970, nos Estados Unidos, com bandas como Television e Ramones. Ninguém tem dúvidas, porém, de que o ápice aconteceu na Inglaterra, em 1977, com o lançamento do primeiro álbum da banda The Clash e o emblemático Never Mind the Bollocks, do Sex Pistols. Esse ícone do movimento foi um dos principais responsáveis pela criação de um novo visual, marcado por correntes, casacos de couro e coturnos, e bastante divulgado pelo empresário Malcolm McLaren, que em 1971 havia aberto a loja Sex, com a estilista Vivienne Westwood.

Para muitos punks, o visual é tão importante quanto a música. “A gente usava suspensórios, botas e coturnos, cabelos espetados e toda aquela parafernália. Tínhamos de fazer muita coisa em casa mesmo – pegar correntes de portão e improvisar com cadeados. Os coturnos eram botas industriais, os famosos bicos de aço dos operários das indústrias. A camiseta nós pintávamos com o símbolo de alguma banda e a calça jeans era velha e rasgada. Tudo no improviso”, lembra Frank Bozic Júnior, que conheceu o punk por meio de fitas K7 emprestadas por amigos em Santo André (SP) e hoje é gerente de uma companhia multinacional de seguros. Dois lugares em que punks como ele se reuniam com maior frequência eram o Largo São Bento e o edifício Grandes Galerias (ou Galeria do Rock), ambos no centro de São Paulo. “Eu era de uma turma de colecionadores de discos na Vila Carolina que era revoltada com o rock que se fazia na época e ouvia o pré-punk de bandas como The Stooges, MC-5 e New York Dolls. Aí veio o punk, e a identificação foi imediata. No início, tocávamos por necessidade e pura urgência, sem pretensão de fazer sucesso e gravar disco”, lembra Clemente. Outro frequentador do local era o empresário Walter Thiago, que reconhece a importância da galeria por reunir as pessoas e divulgar discos e camisetas. Ele abriu ali, em 1986, a importadora de discos London Calling, que se tornou também, com o passar dos anos, uma das principais realizadoras de shows dos grandes nomes mundiais do punk em São

GUINADA Frank frequentou o Largo São Bento e a Galeria do Rock. Hoje é gerente de uma multinacional

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Grandes galerias

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“I DID IT MYSELF” Walter, da London Calling: 25 anos de atividade, apesar da família

Paulo. É o estabelecimento mais antigo do tipo em atividade – e, para a passagem de seus 25 anos neste 16 de setembro, programou a comemoração com Inocentes e a banda norte-americana Dicks. “Com meu irmão, eu ouvia Black Sabbath, mas fiquei fascinado com o punk e fui atrás dos poucos discos que estavam saindo, vendidos principalmente na Punk Rock Discos, loja pioneira que abriu em 1978, mas deixou de existir antes de a minha abrir”, relata. Ele, que era DJ das casas noturnas Madame Satã e Ácido Plástico, credita ao lema “do it yourself ” a decisão de abrir a loja, mesmo indo contra a pressão familiar. Em comum, Walter e Clemente garantem que mantêm muito do estilo. O segundo, porém, é mais reconhecido como um dos principais representantes do movimento no Brasil – para ele, um ró-


DIVULGAÇÃO GERARDO LAZZARI

MÃE DA INTERNET Para Peter Shelley (dir.), da banda Buzzcocks, a maior herança do punk está na internet

tulo difícil de ser tirado –, mesmo que os Inocentes tenham partido para outros estilos musicais. Clemente também exerce outras atividades: toca com a banda brasiliense Plebe Rude, tem projeto musical com a Sandra, das Mercenárias, atua como DJ, apresenta um programa no portal Showlivre.com e realiza cursos no Sesc. Mesmo com tanta produção, brinca que é um “pobrestar, e não um popstar”, acredita que guarda do movimento punk justamente o fato de produzir os próprios shows e financiar os álbuns, o que também encontra na cena alternativa atual. Inocentes foi uma das bandas presentes no festival O Começo do Fim do Mundo, realizado em novembro de 1982, no Sesc Pompéia, em São Paulo, e até hoje considerado um dos principais marcos do punk no Brasil. “Ali foi o ápice e o começo do fim (risos), porque depois as brigas voltaram. Nós tínhamos consegui-

GERARDO LAZZARI

Outras causas

SUBVERSÃO Bruno acredita que hoje, no Brasil, o punk está mais politizado

do apaziguar várias gangues, pois havia grande racha entre punks de São Paulo e do ABC, para o festival poder acontecer – era a chance de fazer uma grande mostra das bandas da época. Mas ali teve uma briga forte que fez com que voltasse tudo e as bandas parassem ou seguissem outro caminho”, lembra Clemente. Hoje o movimento punk resiste, talvez, com força renovada, reunindo vários jovens interessados em contestar o sistema e produzir arte por conta própria. O estudante de design gráfico e vocalista da banda Dischaos, Gustavo Shit, de 24 anos, ressalta: “Punk é uma postura, um movimento. É contracultura de rua. É um grito da periferia. Hoje tem grupos dentro do punk que são altamente organizados e politizados, e também se aliam a outros movimentos, como o dos sem-terra, do passe livre, dos sem-teto, entre outros.” Frank Bozic Júnior garante que o lema punk mudou a vida dele. “Naquele tempo, representava muita liberdade de expressão. Embaixo de greves gerais e repressão, o pessoal do ABC precisava ter uma válvula de escape. O ‘faça você mesmo’ era exatamente fazer do jeito que queríamos, como anarquistas e sem regras. Mas era um sentimento que explode na adolescência. Hoje apenas o desafiar o estabelecido em prol de uma boa causa ainda é uma forma inteligente de conduzir a vida”, defende. Para ele, o punk é um modo de vida que traz uma riqueza de valores muito maior do que o estereó­tipo de “baderna” praticada por jovens violentos a que alguns órgãos de comunicação insistem em reduzi-lo. Colaborou Jéssica Santos de Souza REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2011

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VIAGEM Lagoa Bonita

Lençóis azuis-esverdeados

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Águas das chuvas do ‘inverno’ formam milhares de lagoas coloridas em quilômetros de brancas dunas no litoral do Maranhão Por Paulo Salvador

pique com cobertura de sapé por alvenaria e telhas. No acostamento da rodovia podem ser vistas crianças caminhando ao lado de mães ou professoras. Venâncio lembra que ir à escola é requisito para receberem o Bolsa Família. Barreirinhas é a imagem do novo “velho oeste”: ruas enlameadas, poças d’água, areia das dunas, trânsito caótico com motos e quadriciclos pilotados por Vista aérea: paisagem extraterrestre

JAMIL BITTAR/REUTERS

eixe São Luís para trás, os tambores, bois-bumbás, azu­ lejos e a colorida chita da capital maranhense. Vá ver os Lençóis. O deserto a ocupar boa parte do litoral do estado é formado pela sedimentação de areias. Descarregadas pelos rios amazonenses, são devolvidas ao continente pela força das marés do Atlântico, e o vento se encarrega de espalhá-las. As chuvas da invernada, entre maio e julho, formam cerca de 20 mil lagoas em tons de azul-celeste a esmeralda, num espetáculo que inaugura um “verão” que resiste até setembro. São muitas as opções de vans, ônibus e carros que fazem a conexão até Barreirinhas, uma das cidades-base para visitar os Lençóis. Hotéis e pousadas de São Luís e Barreirinhas indicam as empresas, que têm preços em torno de R$ 50 por pessoa. De saída, a BR-135 é uma pista ruim, perigosa, com muitos caminhões e fiscalização zero. Depois, para alívio, a rodovia estadual MA-402 está um tapete. O motorista Venâncio Ribeiro aponta a rede elétrica, as centenas de casas de alvenaria em construção ao longo da rodovia, e brinca: “É obra do tio Lula”. Ali, assentamento significa trocar o barraco de pau a

crianças, em boa parte sem placa, com várias pessoas, mais as carroças, mulas, jegues, em meio a picapes 4x4 expelindo fumaça de óleo diesel. Foi só em julho de 2011 que o município recebeu suas primeiras placas de trânsito e seus dois semáforos. Uma duna lapidada no centro da cidade pelo Rio Preguiças é uma pequena amostra dos Lençóis, 20 quilômetros adiante.


Espetáculo

O rio merece atenção. É caudaloso, soberano. Começa a quase duas centenas de quilômetros no interior do estado e deságua no Atlântico, competindo em beleza com o Delta do Parnaíba, no litoral do vizinho Piauí. Barreirinhas é porto, atracadouro, calçadão e feira. À beira-rio, e de um enorme deque, ficam as agências de turismo e uma dezena de restaurantes com cardápios que servem bem a duas ou três pessoas por R$ 60. O Maranhão é terra da transição entre a Amazônia e o Nordeste e sua cultura carrega essa mistura. O cardápio mistura mais ainda, com açaí, peixes e carne de sol concorrendo com pizzas. São duas as opções de visita aos Lençóis, com transporte e guia incluídos, a R$ 50 por pessoa. Ambas de caminhonete 4x4, a partir das 14 horas até o pôr do sol. Uma delas vai às lagoas Preguiça,

Esmeralda e Azul. A primeira é uma gozação dos guias com os turistas, que ao chegarem ficam com preguiça de prosseguir para as demais. Os olhos correm o infinito, mesmo com o sol; a areia é fria e firme. O conjunto de caminhantes, dunas, lagoas e o infinito assumem dimensões oníricas. Um espetáculo para fotos. A segunda opção é por Lagoa Bonita – e por que não Linda? Sobe-se uma rampa de 50 metros, ladeando uma duna. Do alto, avistam-se boa parte do deserto e novas lagoas. O conjunto de formas, rampas e lagoas esverdeadas torna-se mágico com o sol avermelhado do fim do dia ao fundo. Voltando ao Rio Preguiças, outra opção de passeio é descê-lo até o oceano, em botes que levam cerca de vinte pessoas, com paradas em Vassouras e no Farol. Na praia, há pousadas e restaurantes rústicos. Imperdível: visitar uma fábrica de

Lagoa Azul

farinha, o que pode ser feito numa manhã, e apreciar o modo de vida dos ribeirinhos. Guias locais mostram o processo de fabricar a farinha desde o plantio da mandioca até a torração, em processos vindos de muitos anos, herdados dos índios e caboclos. Quem conhece esse trabalho, ou simplesmente experimenta o tucupi tirado da mandioca-brava, sai dali apoiando a ideia de incluir a farinha à merenda escolar. Todas essas opções são para turistas de três ou quatro dias, que têm pressa de conhecer tudo e continuar a viagem. Quem pode ou, de repente, resolve ficar mais vai conhecer Atins, ao lado da foz do Preguiça, desligar, passar noites de lua, comer peixe com farinha e rememorar grandes momentos já vividos quem sabe em Trancoso, Canoa Quebrada, Jericoacoara – antes da chegada da luz elétrica e do turismo predatório.

Farol à margem da Lagoa do Peixe

FOTOS DIVULGAÇÃO/SECRET. EST. DE TURISMO DO MARANHÃO

Na terra de Ribas Ribamar – Há uma profusão de Josés e Marias de Ribamar, em razão de lendas, milagres e devoção a São José Ribamar, uma das quatro cidades que formam a ilha de São Luís. Outro Riba – Antes de mudar para José Sarney, o nome de registro do presidente do Senado era José Ribamar Ferreira de Araújo Costa. Uma parte do eleitorado maranhense simpatiza com o PT; outra parte é Sarney roxa, não importa em que partido ele esteja nem que seja eleito pelo Amapá. Críticas sulistas lá ainda não pegam.

Jesus – É nome do guaraná campeão de vendas local. A marca é do farmacêutico que em 1920 criou o xarope tentando fazer um remédio: uma água gaseificada doce e cor-de-rosa. foi adquirido pela Coca-Cola, que só permite sua distribuição naquele estado. Gonçalves Dias – Foi na foz do Rio Preguiça que morreu o poeta de “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, no naufrágio onde todos se salvaram, menos ele, que estava acamado e foi deixado para trás. REVISTA DO BRASIL AGOSTO 2011

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CurtaessaDica Por Xandra Stefanel

xandra@revistadobrasil.net

Javier Barden, como Uxbal

Punks no Rio Sid Vicious

Tom bom Suingue ora mansinho, ora pesado, groove e levadas de jazz. O som da banda Tono é muito cool. Formado por cinco jovens (um deles Bem, filho de Gilberto Gil), o grupo lançou Tono no final de 2010, pela Oi Música (www.oimusica.com. br/tono). Os vocais são de Ana Cláudia Lomelino e Rafael Rocha, a guitarra de Bem Gil não passa despercebida, Bruno di Lullo comanda o baixo, e Leandro Floresta, o sinth e a flauta. Apenas uma canção foi regravada: Nega Música, de Itamar Assumpção. Tono Auge, de 2009, e o álbum atual podem ser ouvidos em www.tono.mus.br.

DENNIS MORRIS/DIVULGAÇÃO

Depois de Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, Alejandro González Iñárritu se superou com o angustiante Biutiful. Javier Barden interpreta Uxbal, “coordenador” de vários negócios ilícitos numa Barcelona bem distante daquela dos cartões-postais. A doçura do personagem – que tem o pesado dom de falar com os mortos – contrasta com seu papel de intermediador das explorações a que são submetidos imigrantes, principalmente asiáticos e africanos. Mas é preciso sobreviver, mesmo com culpa, à opressão e ao câncer recém-descoberto. Intenso e chocante, poético e contundente, o filme, lançado recentemente em DVD, mostra a pior face do sistema cruel que leva um miserável a explorar seus iguais.

As fases do movimento punk, desde que estourou na década de 1970 até a chegada ao Brasil no início dos 1980, são apresentadas em I am a Clichê – Ecos da Estética Punk, exposição no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Entre as 150 obras – instalações, fotografias, fotocolagens e banners –, estão peças de Andy Warhol, Artsitein, Bruce Conner, David Lamelas, Destroy All Monsters e Robert Mapplethorpe. De terça a domingo, das 9h às 21h. Rua Primeiro de Março, 66. Grátis.

Thays Martinez

Conquista Assim que voltou dos Estados Unidos, em 2000, a advogada Thays Martinez foi impedida de embarcar no metrô paulistano com seu cão-guia, Boris, sob a alegação de que não era permitida a entrada de animais nas estações. O livro Minha Vida com Boris – A Comovente História do Cão Que Mudou a Vida de Sua Dona e do Brasil (Editora Globo Livros, 144 páginas) descreve a relação de profunda confiança entre Thays e o labrador, o dia a dia de pessoas com deficiência e como essa história de luta da dupla influenciou a criação de leis que garantem a circulação de cães-guia em espaços públicos e privados. R$ 25. 48

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MARCOS MAGALDI/DIVULGAÇÃO

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Exploração e morte

PB


FOTOS DIVULGAÇÃO ARTE FORA DO MUSEU

Retratos Coletivos, Raul Zito, Magrela, Sola e Sinhá (Marginal Tietê)

A cidade é um museu Quem anda preocupado, atrasado ou distraído pelas ruas da capital paulista não percebe a existência de obras de arte expostas a céu aberto. Por isso os jornalistas André Deak e Felipe Lavignatti se juntaram para fazer um mapeamento – ou georreferenciamento, como chamam – dessas peças pela cidade. Inscreveram a ideia em um edital da Fundação Nacional de Arte, o Bolsa Funarte de Reflexão Crítica e Produção Cultural para a Internet, levaram o primeiro lugar e receberam R$ 30 mil para produzir, em seis meses, esse roteiro artístico nos espaços públicos. O site Arte Fora do Museu entrou no ar em julho com o mapeamento de 100 obras, entre pinturas, esculturas, construções arquitetônicas e grafites, muitas vezes camuflados pela paisagem urbana. Nessa primeira etapa, os organizadores do projeto selecionaram as obras de acordo com a relevância apontada por especialistas da área e pela localização, necessariamente próximas do centro expandido e com acesso fácil e gratuito a pedestres. O endereço eletrônico funciona como uma visita guiada nesse gigantesco museu, já que cada obra vem acompanhada de foto e vídeo com sinopse e comentários de especialistas. E o melhor: pode ser acionado pelo celular. Segundo André Deak, o site capta a localização da pessoa e apresenta as obras mais próximas. O aplicativo para iPhone será lançado agora em setembro e também há perspectiva de desenvolvimento em plataforma Android (que depende de incentivo ou patrocínio). Deak afirma que, apesar de recente, o projeto já mostra resultados. “Percebemos um movimento de pessoas que passaram a prestar mais atenção na cidade, que não viam o quanto ela é bonita.” Em contrapartida, segundo ele, notaram que muitas obras estão degradadas. “Por isso, já estamos pensado em desdobrar a ideia para ser um projeto também de preservação e educação. Por que não fazer visitas guiadas com escolas públicas? Por que pensar apenas em museus se a cidade em si já é um museu?”, sugere. Visitas gratuitas a qualquer hora do dia em www.arteforadomuseu.com.br.

O Estrangeiro, osgemeos (Vale do Anhangabaú)

Epopeia Paulista, Maria Bossomi (Estação da Luz)

Galeria do Rock, Alfredo Matias

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MouzarBenedito

Divagações ociosas

“Trabalho não é vergonha. É só uma maldição.” Se eu fosse ter uma frase de cabeceira, acho que seria essa, de Guimarães Rosa

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rabalhei pra burro, não por gosto, mas por necessidade mesmo. Agora, aposentado pelo INSS, não desfruto o velho conceito italiano de aposentadoria, “ócio com dignidade”. Aposentado ocioso dança feio. Quando jovem, tive chances de dar o famoso golpe do baú, mas refuguei. Houve pelo menos três oportunidades de adquirir a profissão de genro, casar com filha de rico e virar empregado dele em alto cargo. Aliás, rejeitar isso não tem nada de mais. Todos os genros sustentados por sogros ricos que conheci eram humilhados por eles. Até a minha adolescência, uma ótima profissão no interior era a de marido de professora. Muitos maridos de professora não trabalhavam, pois a mulher tinha uma boa renda. Mas essa foi uma profissão que dançou, junto com as agruras progressivas do professorado. Apesar de a educação ser “prioridade” de tudo quanto é político, os salários dessa gente tão importante foram achatados, as condições de trabalho estão precárias e hoje marido de professora tem de ter renda pra sustentar a mulher, que trabalha pra chuchu. Por falar nisso, lembro que no estado de São Paulo a derrocada da profissão começou no tempo da ditadura, quando o governador Maluf disse que “não existe professora mal paga, existe professora mal casada”, ou algo parecido. E num ano com inflação alta não corrigiu os salários. Os governadores que vieram depois, em vez de recuperar o perdido na era Maluf, pioraram ainda mais a profissão. Mas meu interesse é pelos folgados. Na minha infância tinha um que não era folgado, era aposentado (raridade na época). Ficava o dia inteiro andando na calçada de sua casa, de braços dados com a mulher, indo e voltando. Chamava-se José Rezende. Mas virou motivo de brincadei50

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ra. Quando perguntavam a algum desempregado ou folgado o que ele fazia, respondia: “Estou trabalhando pro Zé Rezende”. Outro era folgado mesmo. Filho único de família rica, e com vários tios sem filhos, quando se casou recebeu do pai uma fazenda para sustentar a família. Mas vendeu a fazenda e esbanjou até o último centavo. Aí, o pai morreu. Ele herdou metade da fortuna (o resto ficou com sua mãe). Foi gastando, gastando, fazendo festas e mais festas. Quando acabou a grana, parou de fazer festas, sobreviveu comprando fiado, de comerciantes sabedores que mais cedo ou mais tarde ele herdaria alguma boa grana e pagaria. Morreu a mãe, herdou o resto, pagou as dívidas e voltou à vida de festas. Depois, a cada tio que morria, herdava, pagava as contas, voltava às festas, gastava tudo, ia se endividando até a herança seguinte, e repetia tudo. Assim foi, até a última herança. Aí, gastou até o fim e ficou a zero, sem perspectivas de heranças futuras. A saída foi morrer. Morreu sem trabalhar. Por fim, lembro-me do meu amigo Salgado. Varava a noite nas serestas e nas gandaias, chegava em casa para dormir com o sol já meio alto. O pai fazia de tudo para convencê-lo a enfrentar o batente. Uma vez propôs: “Eu levo os camaradas pra capinar a roça, de manhã, e você vai buscar, à tarde. O Salgado topou. Mas quem é que o acordava para ir buscar os camaradas que terminavam o trabalho às 5 da tarde? O pai não desistiu. Propôs ao filho que plantasse em suas terras dez alqueires de café. Quer dizer, que o filho plantasse, não: que contratasse trabalhadores e cuidasse de tudo. Todo o lucro seria dele. O Salgado coçou a orelha e respondeu: – Ô, pai, vamos fazer o seguinte: o senhor me dá aqueles dez alqueires que já estão produzindo e planta os outros dez pro senhor.


agenciamostrese.com.br | Foto: Marcos Alberti | Adriana Birolli é embaixadora Sou Fã de Criança.

A Adriana Birolli é fã de criança. E você?

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apoio:

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