AUTOESTIMA EM ALTA Com Cristina, argentinos voltam a crer na política
ONDA MUNDIAL O capitalismo é posto à prova nas ruas
nº 65
ORDEM NA QUADRA Magnano e a nova era do basquete brasileiro
novembro/2011
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AREIA NO ESQUEMA Na teia de relações comandada pelo governo de São Paulo, tudo se aprova e nada se investiga. Com o escândalo das emendas, o Legislativo se insurge
Geraldo Alckmin, governador de São Paulo
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Para ler, assistir, ouvir e navegar. Informação que transforma
Índice
Editorial
10. Capa
O desmando tucano na Assembleia Legislativa de SP é posto em xeque
18. Educação
USP só deixará de ser uma ilha quando for de fato uma universidade pública
20. Trabalho
Terceirização, escravidão, trabalho precário: na moda e fora dos trilhos
24. Mundo
Wall Street, Europa e Anhangabaú. Acampados contra o mundo desigual
28. América Latina
PABLO BUSTI
O triunfo de Cristina Kirchner faz bem à política e à democracia
34. Entrevista
Rubén Magnano devolveu ao nosso basquete a vontade de ganhar
Cristina, vitoriosa: na Argentina, a reconstrução passa pela democratização na mídia
38. Cidadania
A coragem dos hermanos
Efeitos colaterais do preconceito afetam também a saúde dos negros
A
41. Atitude
Os quilombolas marcham por suas terras, sua cultura e sua dignidade
JAILTON GARCIA
Tata: paixão pelo cinema
42. Cultura
O cinema de Tata Amaral, a grande premiada no Festival de Brasília
46. Futebol
É Flamengo? É Corinthians? Não. É Santa Cruz! A torcida mais fiel
Seções Cartas
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Mauro Santayana
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Destaques do mês
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Crônica: Mouzar Benedito
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Argentina entrou quebrada no século 21. Entre a chegada e a partida do governo de Carlos Menem, de 1989 a 1999, o país entregou-se à cartilha econômica escrita em Washington. O Estado foi desmontado, empresas públicas foram privatizadas, o sistema financeiro foi internacionalizado e concentrado, o desemprego subiu. Falido, o país ainda ficou por um triz de sepultar qualquer apreço pela democracia pela qual tanto havia lutado, após dois períodos de ditadura (1966-1973 e 1976-1983). A repressão foi brutal. A redemocratização trouxe porém frustrações políticas e econômicas, com Menem e Fernando de la Rúa. Enquanto viviam a pior crise desde o século 19, os argentinos passaram a ficar desencantados com a democracia. A chegada de Néstor Kirchner, em 2003, iniciou uma ruptura com a onda neoliberal. O êxito na condução econômica foi demonstrado com a eleição de Cristina Kirchner em 2007. E referendado com a reeleição da presidenta agora em outubro. Além da economia novamente na rota do crescimento, avançaram as investigações e punições dos crimes da ditadura. Grandes interesses da elite econômica foram contrariados, inclusive os da velha mídia, lá liderada pelo grupo Clarín. A integração entre os países do Cone Sul foi privilegiada. Ressurgiu interesse das pessoas na política, em intervir nos rumos do país. Enfim, celebrar, novamente, a democracia. O Brasil vive ambiente semelhante. Mostra que é possível crescer, distribuir renda e tocar sua economia sem pedir a bênção aos países ricos. Apresenta-se nos grandes fóruns internacionais e dá um pito nos ricos pela maneira desastrosa como conduzem a crise que eles mesmos criaram, ao elevar o sistema financeiro à condição de divindade. Outras semelhanças com a Argentina, porém, ainda são aguardadas. Os crimes da ditadura continuam impunes. Os interesses das grandes corporações da comunicação, comandadas por meia dúzia de famílias, seguem intocados. Aqui, essa velha mídia se “indigna” com a corrupção denunciada em Brasília, como se esta tivesse sido inventada agora, mas omite os escândalos que orbitam o governo de São Paulo e seus seguidores no Legislativo. Se Geraldo Alckmin fosse um governador petista, como Agnelo Queiroz (DF), teria saído na capa daquela revista semanal com chifrinhos na cabeça, sangue nos olhos e a manchete “O chefe do bando”. Se Bruno Covas, com sua farra nas emendas, fosse ministro da base aliada de Dilma, já teria caído. Mas como é secretário do governo Alckmin, ninguém sabe, ninguém viu. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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Cartas Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Antônio Cruz/ABR Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares www.redebrasilatual.com.br
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Côrrea, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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Educar ou remediar Sou portadora de transtorno do déficit de atenção por hiperatividade (TDAH) e tenho um filho TDAH-desatento, porém superdotado. Fico imensamente triste quando vejo crianças tratadas com a Ritalina de forma vulgarizada (“Quem precisa de remédio?”, ed. 64). O que vejo na prática é que o medicamento está tomando o lugar da disciplina pela conversa e pelo respeito. Mais cômodo socar Ritalina nas crianças do que educá-las e tentar fazer com que se controlem. Mas pior do que minha tristeza é minha indignação com o desperdício desses talentos que são portadores de TDAH. A escola não sabe lidar com eles. A sociedade pouco sabe sobre eles. Infelizmente, até abrirmos os olhos, criaremos mais Fernandinhos Beira-Mar, Marcolas e outros tantos bandidos inteligentíssimos e com traços claros de TDAH do que Einstens, Michael Phelps, Da Vincis... Todos portadores de TDAH. Lívia Miziara Amigo, Parapuã (SP) É lamentável que especialistas e pesquisadores reconhecidos internacionalmente tenhamde ficar comentando um transtornomais do que reconhecido e catalogado pela Organização Mundial da Saúde. Quem postula que não existe TDAH e que pode ser tratado pela medicina antroposófica nunca publicou um artigo, uma única pesquisa sequer que comprove essas bobagens, enquanto existem matérias sobre a natureza neurobiológica do TDAH em milhares de revistas científicas no mundo todo. O que acontecequando meia dú-
zia de médicos e psicólogos que nunca trabalharam com TDAH resolve questionar a comunidade científica internacional e a mídia abre espaço? Sugiro que vejam o currículo Lattes deles na internet e comprovem. Sou médico, tenho um filho com TDAH, trato com medicação adequada e jamais drogaria ou doparia a pessoa que mais amo nesta vida. Quantos filhos tem a dra. pediatra Moysés? Quantas crianças com TDAH atendeu em seu consultório? Sergio Freire, Rio de Janeiro (RJ) Da redação: A reportagem não põe em dúvida a existência de TDAH. O que questiona é o risco de diagnóstico e medicação inadequados encobrirem um problema educacional.
Palácio de Versalhes Excelente texto (“Ensurdecedora ostentação”, ed. 64). Já em pleno final do século 20, sonhei que meus netos viveriam num mundo diferente, onde a opulência fosse substituída pela divisão justa de renda, o preconceito desse lugar à aceitação universal do ser e onde o trabalho fosse ferramenta de libertação, ou melhor, de preservação da liberdade e dignidade. Mas, decepcionada, aproprio-me da frase: “Afinal, viagens não são apenas para encher os olhos, mas para refletir sobre o mundo, olhar a história do outro e refletir sobre a nossa, ver o passado e pensar no futuro, tentar entender o que mudou no mundo nos últimos séculos. Se é que mudou”. Joana Darc Matos P. de Paula, P. Seguro (BA) Venezuela Parabéns pela reportagem “O legado de Chávez” (ed. 64). De forma sintética e ao mesmo tempo abrangente, expõe aspectos socioeconômicos e políticos desse país. Antonio, Camboriú (SC) B. Kucinski Sou professora de literatura. Vou comprar o livro K. por causa da reportagem (“Baseado em dores reais”, ed. 64). Parece ser muito interessante. Terezinha Pereira, Juiz de Fora (MG)
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
MauroSantayana
Volta à barbárie A selvageria da horda que caçou Kadafi e o espancou até a morte fez lembrar os nazistas em sua fúria racista contra os judeus e ciganos e ideológica contra os comunistas as guerras, mundiais ou regionais, a partir de 1914, foram movidas para garantir essa nova fonte de energia, e sempre tendo como centro da cobiça o Oriente Médio – mesmo que se travem fora dessa geografia, como foram as da Coreia e do Vietnã: peças laterais no tabuleiro geopolítico do mundo. Os povos do Afeganistão, do Iraque e da Líbia estão sendo bombardeados, e outros, como o do Irã, ameaçados de sofrer o mesmo, para que os norte-americanos e europeus mantenham o mais alto padrão de conforto da História. A humanidade, tal como os trenós do contra-almirante Parry, avança velozmente, graças à espantosa tecnologia moderna, rumo ao Norte, mas a plataforma moral, em que se desloca, recua de volta à selvageria tribal. É o cumprimento de uma profecia de Giambattista Vico, segundo a qual a técnica nos devolveria à barbárie. Há alguns meses, em maio, os norte-ameriGROTESCO Curiosos em torno do corpo de Motassim, filho de Kadafi canos cometeram crime contra as leis e costumes internacionais, ao invadir o espaço aéreo do Paquistão, sem autorização de seu governo, e matar um morador de Abbottabad, que dizem ter sido Osama bin Laden. Mais assustadora do que as fotos do ataque dos comandos norte-americanos foram as da alta cúpula governamental, reunida na Casa Branca, para acompanhar as cenas do assassinato, e aplaudi-las. A única esperança é que o povo norte-americano avance em sua luta e construa nova elite disposta a respeitar os povos mais débeis, e assim salvar sua nação e o mundo de previsível apocalipse. THAIER AL-SUDANI/REUTERS
E
m um ensaio de juventude, Meditaciones del Quijote, o filósofo espanhol Ortega y Gasset deixa, em dois parágrafos, uma informação instigante, à qual dá o título de Parábola. Ele cita trecho das memórias do explorador inglês William Edward Parry, em uma de suas tentativas de atingir o Polo Norte. O trecho parece fora do contexto ao leitor apressado, mas suscita reflexões em torno da ideia do Ocidente, que é o arco de toda a obra de Miguel de Cervantes. Conta Parry (em seu Diário da Segunda Expedição em Busca de uma Passagem Noroeste) que, ao viajar sobre parte da calota congelada do Oceano Ártico, mediu pela manhã a latitude, enquanto os cães eram atrelados aos trenós. Ele e os poucos companheiros fustigaram os animais, e assim viajaram o dia inteiro, dilatado no verão ártico. Ao entardecer, Parry voltou a medir a latitude, e descobriu que estavam muito mais ao sul do que ao partir naquela manhã. Enquanto os trenós corriam em direção ao polo, a plataforma de gelo, sobre a qual viajavam, deslocara-se rumo ao Equador. As imagens de Kadafi ao ser trucidado e morto, e de seu filho, vivo e depois morto, se somam a outras, destes tempos sombrios. A selvageria da horda que caçou o líder líbio e o espancou até a morte fez lembrar os nazistas em sua fúria racista contra os judeus e ciganos e ideológica contra os comunistas. Acrescente-se que os invasores de Sirte caçaram e mataram, friamente, numerosos negros do Sahel (“corredor” regional que separa a parte central do norte da África) que trabalhavam na cidade e não haviam conseguido fugir a tempo. A essas imagens, podemos juntar outras, como as da prisão e “execução” de Saddam Hussein, em Bagdá, há cinco anos. Houve outros assassinatos, nas últimas semanas, como dos cidadãos norte-americanos Anuar-al-Aulaki e Samir Khan, atingidos no Iêmen por um avião não tripulado, e por ordem direta de Obama. A civilização contemporânea, iniciada com o Iluminismo, sofreu poderoso choque com a descoberta do petróleo na Pensilvânia, em 1859, e com o processo de seu refino, a fim de servir de combustível aos motores a explosão. A partir de então, foi conduzida por dois vetores alucinantes, ambos resultantes da tecnologia, a serviço do lucro: a velocidade e o consumo. O mundo, que dependia do ar e da água, passou a depender também do óleo. E todas
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DORIVAL ELZE/CUT
Juntas, Fiesp, CUT e Força Sindical
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Guerra aos juros Empresários da Fiesp e sindicalistas da CUT e da Força Sindical participaram de ato pela queda da taxa básica de juros, a Selic. A manifestação foi até a sede do Banco Central em São Paulo. Eles lembraram que juro alto é sinônimo de menor crescimento e, consequentemente, menos empregos. No dia seguinte, o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC reduziu a taxa pela segunda vez seguida em meio ponto, para 11,5% ao ano. A expectativa é de que os cortes continuem. http://bit.ly/rba_contra_os_juros
Polícia em fuga
Trabalho para quem precisa
O estado de São Paulo está perdendo a luta contra o crime. E está perdendo até policiais. Apenas 11% do orçamento da Segurança Pública foi liberado pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). Segundo a associação da categoria, a cada 15 dias um delegado busca emprego em outro estado, cansado de esperar estrutura e salários melhores. http://bit.ly/rba_pm_evasao
O Brasil se prepara para a Conferência Nacional do Trabalho Decente, em maio do ano que vem. O coordenador do evento, Mario Barbosa, afirma que esse é um conceito que precisa ser considerado por todos os países na elaboração de políticas de governo. Indicadores sociais, segundo ele, devem ter tanto peso quanto os econômicos. http://bit.ly/rba_trabalho_decente
Barulho só quando interessa
FÁBIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
O ministro Orlando Silva, do Esporte, foi o sexto a cair no governo Dilma – cinco deles depois de alvejados por denúncias reverberadas pela velha mídia. Como das outras vezes, bastou a carta de demissão ser apresentada para as irregularidades desaparecerem do noticiário. Segundo o Departamento Intersindical de Análise Parlamentar (Diap), o fato é recorrente e até uma característica da imprensa no Brasil. http://bit.ly/rba_diap_analise
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Uma das principais frentes do Sistema Único de Saúde (SUS) vai quintuplicar seu tamanho. O número de núcleos de apoio ao Saúde da Família deve passar das atuais 880 para 4.524 unidades em quatro anos. As unidades funcionam como base das equipes multidisciplinares que visitam pacientes em casa. http://bit.ly/rba_saude_familia/
Catadores de materiais recicláveis conquistaram mais um direito no país: participar de planos municipais para lidar com resíduos sólidos. A determinação do Ministério das Cidades é que, sem incluí-los, as cidades não terão recursos federais. http://bit.ly/rba_catadores
Solidariedade x preconceito Quando uma pessoa fica doente, a primeira reação humana costuma ser de preocupação e solidariedade. No caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também foi assim – em parte. As manifestações de apoio foram maioria, mesmo na oposição, inclusive do antecessor Fernando Henrique Cardoso. Mas, na internet, as mensagens de conforto conviveram com o ranço conservador, que não escondeu o preconceito, demonstrando até alegria com o fato ou pedindo que ele fosse se tratar na rede pública, em vez de num hospital particular. Duas conhecidas comentaristas políticas praticamente culparam Lula pela doença e fizeram força para tirá-lo do jogo político a partir de 2012. Outra colunista revelou seu receio de que o ex-presidente usasse o tempo “livre” para pensar, coisa que, segundo ela, não é um dos hábitos de Lula. Para o professor Vladimir Safatle, da USP, há muito de “direita ressentida” em manifestações na internet, que por vezes não serve como fórum de debate, mas “como um caso de injúrias”. Dois dias depois de completar 66 anos, em 27 de outubro, Lula teve diagnosticado um câncer de laringe. O tratamento, iniciado no dia 31, deve ir até fevereiro, com grandes chances de cura, de acordo com os médicos. http://bit.ly/rba_saude_lula
A velha mídia chegou a comemorar a possibilidade de Lula ficar fora da política em 2012
ANTÔNIO CRUZ/ABR
DANILO RAMOS
Mais Saúde da Família
MARCELLO CASAL/ABR
Presença confirmada
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NoRádio De segunda a sexta-feira, das 7h às 8h, na FM 98,9, para toda a Grande São Paulo
Água é vida
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Federação Nacional dos Urbanitários lançou, em Maceió, uma campanha de mobilização nacional contra a privatização e as parcerias público-privadas (PPPs) do setor de abastecimento de água e saneamento. De acordo com o presidente da entidade, Franklin Moreira Gonçalves, a escolha da capital de Alagoas foi simbólica, em razão de o estado adotar o modelo tucano de relacionamento com agentes privados. Com a consultoria da estatal paulista Sabesp, o método consiste em repassar à PPP a responsabilidade de investir em infraestrutura de sistemas de distribuição e saneamento para depois faturar com as contas pagas pela população. Segundo Gonçalves, o “negócio” só interessa ao setor privado se for lucrativo, ou seja, em cidades com maior densidade populacional e potencial de arrecadação. Nos municípios pobres, sobra para o Estado. Essa prática fragiliza as companhias estaduais, já que perdem 8
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ganhos de escala para dar conta de suas atribuições quando deixam de arrecadar desses municípios. “O filé vai para a iniciativa privada e aquele município que precisa de mais recursos fica com a companhia estadual. O ideal é que todos tenham a concessão subordinada à companhia estadual”, defende. Durante a campanha será divulgado o filme A Luta pela Água, que expõe a importância histórica desse bem público
STOCK.XCHNG
A disponibilidade de um bem imprescindível para a existência não pode ser tratada como mercadoria
para as sociedades e relata experiências internacionais de reversão de políticas de privatização. Em localidades da Bolívia, Itália e França, por exemplo, o controle público foi retomado. “Trata-se, inclusive, de um componente essencial para qualquer política de distribuição de renda e de erradicação da miséria”, alerta Gonçalves. Confira a entrevista a Marilu Cabañas, na Rádio Brasil Atual, em http://bit.ly/radio_agua.
Toda sexta uma boa história Uma prosa cheia de curiosidades da vida e da obra de Sérgio Reis, que marcou passagem na Jovem Guarda e acabou no universo sertanejo. Ou um papo rock’n’roll com o ex-Camisa de Vênus Marcelo Nova, que traz de Raul Seixas muito mais do que o sotaque baiano. A voz discreta e cortante de Célia, e seus 40 anos de canções. Ou o sabor inusitado do primeiro disco de Ilana Volkov, ex-integrante do grupo Barbatuques e educadora musical. Os contrastes da selva urbana de Clemente, do Inocentes, ou a contundência regionalista de Zé Geraldo. As sexta-feiras do programa Jornal Brasil Atual são assim. Cada semana tem um convidado especial da cena cultural brasileira. Acompanhe a partir das 7h, ou dê uma busca na estante virtual da Rádio Brasil Atual. http://bit.ly/radio_sexta_musical
PB
NaTV www.tvt.org.br
Eduardo Guimarães
Marcelo Branco
Mídia e política
Nas últimas semanas, o programa Melhor e Mais Justo provocou debates sobre meios de fortalecer a democracia, entre os quais o papel do público em identificar e cobrar a lisura da mídia
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sociedade contemporânea convive com enorme quantidade e variedade de meios de comunicação, que manejam e produzem um sem-número de informações, notícias, opiniões e análises. Mas isso não representa, necessariamente, a democratização da mídia. O programa Melhor e Mais Justo, da TVT, pôs em debate questões polêmicas sobre a mídia em nossa democracia. Participaram Eduardo Guimarães, blogueiro progressista, Marcelo Branco, ativista da internet que coordenou a campanha da candidatura Dilma nas mídias sociais, e Paulo Donizetti de Souza, editor da Re-
vista do Brasil. Na pauta, marco regulatório versus autorregulação, liberdade de expressão, relação entre poder e grupos midiáticos, isenção jornalística, marco civil e neutralidade na internet.
Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br Você pode ver ou rever todos os programas pela internet: www. tvt.org.br
O que se viu na TVT foi um programa que provoca reflexão sobre a importância de uma mídia livre, independente, com transparência e consistência; desvinculada de ambições particulares, econômicas e políticas; e, principalmente, que fiscalize o Estado, contribua com isenção para promover cidadania. O Melhor e Mais Justo também aprofundou a discussão sobre como a sociedade pode ajudar a aprimorar a atuação dos meios de comunicação, identificando e evitando as coberturas tendenciosas, partidárias e alheias à missão de informar e dar base para formação de opinião e senso crítico. O Melhor e Mais Justo vai ao ar todas as quintas-feiras, às 19h30. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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POLÍTICA
MONTAGEM COM FOTOS DE ANTÔNIO CRUZ/ABR E VANDER FORNAZIERI
Lama começa ESQUEMA ANTIGO Vem de longe o controle do governo sobre a Assembleia. Alckmin tropeçou sobre os próprios aliados
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Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) tem 94 deputados, 3.000 funcionários e orçamento anual de R$ 660 milhões. Desfruta da conveniência da imprensa comercial – que costuma se indignar com denúncias de Brasília e blindar o governo paulista. A maioria dos parlamentares submete-se em silêncio ao comando do Palácio dos Bandeirantes, onde, desde 1995, a morada do chefe do Executivo é também um ninho tucano. Em troca de investimentos e apoios aos seus interesses eleitorais, deputados da base aliada mantêm o governador do estado livre de qualquer dor de cabeça. A responsabilidade da Alesp não é pequena. Lá se discute e aprova o Orçamento do estado – R$ 140 bilhões em 2011 – e se deve fiscalizar sua correta aplicação. É onde são tratadas leis importantes para a sociedade, desde uma que poderia proibir a venda de porcarias de alto teor calórico em cantinas de escolas públicas até outras que autorizaram o governo a vender o patrimônio estratégico – como do setor elétrico, do Banespa e da Nossa Caixa, a concessão de estradas e ferrovias. É lá também que a transparência da gestão pública deveria ser garantida, porém é onde o governo sabe que denúncias e pedidos de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) serão varridos para baixo do tapete. O domínio do Executivo na Casa combina as indicações a cargos públicos, o compartilhamento do poder regional e
a administração da liberação de recursos provenientes das emendas parlamentares ao Orçamento do estado. A maioria governista, por sua vez, joga o jogo quase sempre sem ser incomodada pela imprensa, de modo que a agenda da Alesp pouco repercute na opinião pública. Quantas vezes você leu, ouviu ou viu notícias de que os deputados paulistas investigaram uma suspeita de superfaturamento em contratos do Metrô ou de abusos da Polícia Militar – seja na forma violenta como age na USP, seja como persegue pobres na periferia ou reprime movimentos sociais? Falhas no gerenciamento dos partidos da base, porém, levaram alguns parlamentares do PTB – aliado dos tucanos no plano estadual desde sempre – a se incomodar com o governo Geraldo Alckmin. Em consequência do desprestígio e da redução de recursos repassados à Secretaria do Esporte, comandada pelos petebistas, o maior cacique do partido, Campos Machado (PTB), vinha em uma intensa investida contra o governo, cobrando constantemente mais atenção às questões levantadas pelo partido.
o funcionamento do sistema de emendas parlamentares. Afirmou que de 25% a 30% dos deputados “vendem” a cota de emendas a que têm direito todos os anos em troca de abocanhar parte dos recursos liberados. E assegurou, sem revelar nomes, que o governo Alckmin foi alertado sobre o fato. O secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, deputado licenciado Bruno Covas, confirmou a existência do esquema em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, na qual chegou a citar o caso de um prefeito que ofereceu 10% de uma emenda no valor de R$ 50 mil, que garantiu não ter aceitado. Semanas depois, Covas foi convidado a dar explicações sobre o caso ao Conselho de Ética da Alesp. Mas não apareceu. Apenas enviou carta em que afirma que seu relato ao jornal seria uma situação hipotética e didática, usada em palestras, encontros e conversas “para afastar qualquer tentativa de abordagem inadequada”. No Ministério Público do Estado, o
Balaio de repasses
Essas faíscas no relacionamento causaram descontentamento, até que o deputado Roque Barbiere (PTB), em seu sexto mandato, aborreceu-se e chutou o balde. Disse ter ficado “de saco cheio” com tantas irregularidades permeando o submundo da Alesp e, em uma entrevista ao site do jornal Folha da Região,, de Araçatuba, em meados de setembro, criticou
Assembleia Legislativa de São Paulo atua como escritório de despachos de governos tucanos. Por ali passam privatizações, concessões, orçamentos. E investigações são sepultadas. Mas surge na Casa um clima de contestação Por Raoni Scandiuzzi
ERNESTO RODRIGUES/AE
a aparecer DIDÁTICO Bruno Covas confirmou esquema em entrevista REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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POLÍTICA dente da Alesp, deputado Barros Munhoz (PSDB), aparece como campeão de indicações, respondendo pelo empenho de R$ 5,6 milhões somente no ano passado. Segundo o mesmo documento, Bruno Covas tem R$ 2,2 milhões em emendas. No entanto, um breve cruzamento de dados basta para demonstrar que essa lista oficial não é confiável. O próprio site do deputado licenciado informara um montante quase cinco vezes maior. Outro exemplo: tanto sua página eletrônica como a da Prefeitura de Sales divulgam uma emenda no valor de R$ 100 mil para a construção da Praça Floriano Tarsitano na cidade. Na relação distribuída pelo governo o recurso nem aparece. O deputado Major Olímpio (PDT) também atesta falhas no documento oficial. Em 2009, ele propôs uma emenda no valor de R$ 210 mil para a compra de equi-
Datas e personagens de um escândalo
Para explicar os exageros cometidos através das conhecidas emendas, o governo do estado utilizou outra terminologia para classificar a verba. O secretário da Casa Civil, Sidney Beraldo, assegurou que “emenda parlamentar não existe em São Paulo, até agora é indicação”. Ele se mostrou confiante no rigor do estado em não permitir que o limite seja extrapo-
3 de outubro Promotor Carlos Cardoso Instaura inquérito no Ministério Público para apurar paralelamente o escândalo
ALESP
ALESP
Roque Barbiere (PTB) Afirma durante uma entrevista que entre 25% e 30% dos deputados da Alesp vendem suas emendas parlamentares
JAILTON GARCIA
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NOVEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL
Emendas e indicações
O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar é ativado na Alesp para investigar o caso. Tem sete membros governistas: Hélio Nishimoto e Cauê Macris (PSDB), André Soares (DEM), Dilmo dos Santos (PV), Campos Machado (PTB), Alex Manente (PPS) e José Bittencourt (PSD). E dois do PT: Luiz Cláudio Marcolino e Marco Aurélio de Souza
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pamentos para a Santa Casa de Presidente Venceslau. Na última hora, o recurso foi vetado, devolvido ao Tesouro estadual e mais tarde apropriado por indicação do deputado Mauro Bragato (PSDB), destinando a verba para a mesma unidade de saúde, agora a pretexto de pagamento do 13º salário dos funcionários. Na relação do governo, porém, o recurso ainda aparece como aquele indicado por Olímpio.
DORIVAL ELZE/CUT
promotorCarlos Cardosodecidiu abrir inquérito para apurar o escândalo. Para ele, não pareceuser apenas um exemplo didático. No dia em que Bruno Covas deveria ter comparecido ao Conselho de Ética, um levantamento divulgado em seu site indicava que, somente em 2010, ano eleitoral, seu gabinete havia conseguido o repasse de R$ 9,5 milhões em emendas solicitadas para diversos municípios paulistas. O valor excede em quase cinco vezes o limite permitido a cada parlamentar – R$ 2 milhões anuais. Covas, o deputado estadual mais votado em outubro, com 239.150 votos, foi também o relator do Orçamento geral do estado para 2011. Procurado, não falou com a reportagem. Desde a entrevista, não traz explicações sobre o assunto. Por meio de sua assessoria, justificou que o levantamentotrouxe emendas de anos anteriores, pagas somente em 2010, e outras obras eram pedidos do governo, e não dele. E que deseja evitar o uso político do episódio. Em 12 de outubro, o governo se responsabilizou por divulgar todos os recursos oriundos de emendas no site da Secretaria da Fazenda. A relação foi publicada em 4 de novembro. Nela, o presi-
Bruno Covas (PSDB) Disse conhecer o esquema e afirmou ter recebido e negado a proposta de um prefeito, que ofereceu 10% do valor de uma emenda de R$ 50 mil. Mais tarde, afirmou ter sido mal interpretado
MAURICIO GARCIA DE SOUZA/ALESP/DIVULGAÇÃO
REVIRAVOLTA Plenário da Assembleia: escândalo das emendas pode mudar relação de forças
Como funcionam as emendas denúncias, o Executivo resolveu ceder. A partir de 2011, toda emenda indicada para o ano seguinte deve constar previamente no Orçamento, com informações sobre valor, objeto, local de destinação. Após a polêmica, aliás, muitos deputados, da base e da oposição, passaram a defender o fim das emendas parlamentares. Transparência não é o forte da Alesp. A sociedade não tem acesso sequer a dados sobre a gestão da casa, como gastos com pessoal, fornecedores e despesas dos gabinetes, por exemplo. Na contramão do projeto de lei federal recentemente aprovado para assegurar o acesso público a informações, a mesa diretora da Casa, presidida por Barros Munhoz, baixou um dispositivo para manter a caixa-preta fechada, criando empecilhos burocráticos para dificultar, retardar ou inviabilizar o atendimento a solicitações de informação. Afinal, se dá para complicar, para que simplificar?
Rogério Nogueira (PDT) Confirmou a aprovação de R$ 30 milhões em indicações para seu município, mas o recurso não seria proveniente de emendas
Campos Machado (PTB) Apresenta requerimento para enterrar o Conselho de Ética, aprovado por 6 votos a 2
ALESP
20 de outubro
Major Olímpio (PDT) Revelou dona Terezinha como conhecedora do esquema de venda de emendas e afirmou que o deputado Rogério Nogueira havia conseguido R$ 40 milhões em indicações para seu município por ser da base aliada
21 de outubro
ALESP
11 de outubro
1º de novembro 27 de outubro
Ato popular CUT e outros movimentos populares fazem ato em frente à Alesp para pressionar deputados a assinar pedido de CPI para investigar o caso
Dona Terezinha Contou como funciona o esquema, disse que 45% dos parlamentares praticam a venda de emendas e fazem parte também do PSDB, PTB e PDT
REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
RAONI SCANDIUZZI
Cinco vezes o limite Site de Bruno Covas indica que ele teria empenhado R$ 9,5 milhões em emendas. O teto é de R$ 2 milhões
ALESP
Emendas parlamentares, chamadas tecnicamente pelo governo de indicações, são fatias do orçamento geral do estado que podem ser direcionadas para fins apontados pelos deputados. O mecanismo torna legítima a solicitação dessas fatias para, em tese, atender a uma demanda da base eleitoral do parlamentar. Assim, quando o estado elabora sua peça orçamentária, deve levar em conta que parte dela será destinada a essas indicações – que podem somar no máximo R$ 2 milhões anuais por deputado. O problema é que desde que esse mecanismo foi criado no estado, em 2006, os deputados que compõem a oposição cobram um reparo na lei, de modo que todo o processo, a partir da indicação pelo deputado até o uso efetivo da verba na outra ponta, seja transparente. Os governadores sempre vetaram esse procedimento. Devido a pressões, sobretudo após as recentes
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lado. “Essas liberações são feitas com o maior critério, às vezes dá a impressão de que o estado não tem controle de nada, a sociedade não controla. Controla, sim”, defendeu o secretário. Beraldo foi desmentido alguns dias depois pelo líder do governo tucano na Assembleia e colega de partido, deputado Samuel Moreira (PSDB): “Não tinha diferenciação entre emendas e indicações, na verdade realmente se misturavam dentro do governo, porque não eram separadas antecipadamente no Orçamento”, contou. E afirmou, ainda, que o limite nunca deteve os deputados. “As indicações eram feitas lá no governo, às vezes se misturam porque o deputado, no decorrer do mandato, acaba fazendo outras indicações.” Para o líder do PT na Assembleia Legislativa, Enio Tatto, a falta de organização do governo tem motivo. “É ‘bom’ ser desorganizado nesses momentos. Essa confusão de indicação e de emenda, que no fundo são a mesma coisa, é uma mercadoria de barganha para a horade
DORIVAL ELZE/CUT
POLÍTICA
ORDEM DO PATRÃO Campos Machado (PTB) protagonizou a operação abafa chefiada por Alckmin e corroborada pelo presidente do conselho de ética, Hélio Nishimoto (PSDB)
A líder comunitária Tereza Barbosa, de 59 anos, coordena uma instituição que atende crianças no bairro Campo Grande, na zona sul da capital. Ela confirmou a denúncia do deputado Major Olímpio à reportagem e detalhou o esquema. “Entrei em vários gabinetes e eles diziam assim: ‘Olha, eu dou o dinheiro para a senhora, mas a senhora me devolve a metade, para uma entidade minha, que não tem documentação’”. Sem revelar nomes, ela ainda descreveu outra conversa. “Um prefeito me contou uma vez que eles dão a verba para a prefeitura, mas quem contrata as empresas para fazer a obra é o próprio deputado, e a construtora passa os 40% para ele. Por isso que a gente vê toda hora essas obras malfeitas. Uma vez fui reclamar com uma construtora da Cidade Ademar e o dono me falou: ‘Senhora, a gente não pode fazer nada com
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NOVEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL
material de primeira, porque a gente precisa devolver o dinheiro que chega pra gente’.” Dona Terezinha não revela nomes por medo de sofrer represálias. Mas dá pistas. “Existe esquema em vários partidos, quase todos ali, do partido do Alckmin e de aliados, PSDB, PTB, PDT. Eu não cheguei a ir no PT, porque sou uma pessoa que foi sempre apaixonada pelo PSDB”, disse. Por experiência própria, afirma que Roque Barbiere falou a verdade. “Ele não mentiu, não. Só acho que a porcentagem é maior do que ele disse. Eu colocaria que uns 40% a 45% dos deputados vendem emenda.” A líder comunitária confirmou que iria ao Conselho de Ética caso fosse convidada. Como a apuração por meio do conselho já estava sepultada, o promotor Carlos Cardoso quer ouvi-la. “Vou ouvir a dona Terezinha com toda a discrição possível, deixá-la muito à vontade para
RAONI SACANDIUZZI
Líder comunitária tucana descreve o esquema
Terezinha: “Barbiere não mentiu, não. Só acho que a porcentagem é maior do que ele disse”
o que eventualmente tenha de concreto para relatar, e a partir desse relato vou verificar o que podemos fazer”, observou. Sobre o temor dela de identificar nomes, Cardoso contou que trabalhou durante sete anos no programa de proteção a testemunhas e
vítimas ameaçadas e assegurou que saberá como lidar com o caso. “Deus vai fazer aparecer os culpados, e isso vai servir de exemplo para os 50% que não são culpados. Eu estou entregando tudo isso para Deus”, disse Terezinha.
ROBERTO PARIZOTTI/CUT
PROTESTO CUT e movimentos populares pedem CPI para investigar o esquema de emendas
negociar projetos e evitar fiscalizações”, descreveu o líder do PT. Até o início das denúncias, todas as emendas ou indicações de parlamentares eram mantidas em sigilo pelo estado. Após o escândalo, o governo se comprometeu, no dia 12 de outubro, a dar publicidade a todos os recursos empenhados desde 2007. Quase um mês depois a relação foi divulgada, mas traz irregularidadese esconde fatos. A oposição acredita que a demora na divulgação foi para que o governo tivesse tempo de omitir dados para diminuir a exposição de aliados.
‘Siamo tutti buona genti’
O esquema de venda de emendas ativou o Conselho de Ética da Assembleia Legislativa paulista, que passou a se reunir em setembro em torno do escândalo. O assunto, porém, foi sufocado pelos integrantes da base aliada de Alckmin. Dos 18 requerimentos apresentados pelos deputados da oposição, somente três foram aprovados, 11 foram rejeitados e outros quatro nem chegaram a ser votados, graças à manobra do petebista Campos Machado para encerrar precocemente os trabalhos do conselho, no dia 27 de outubro.
Campos Machado protagonizou a operação abafa chefiada por Alckmin, corroborada pelo presidente do conselho, Hélio Nishimoto (PSDB), e executada pelos demais governistas no órgão. Machado propôs que fossem encerradas quaisquer investigações pela Assembleia – inclusive a possível instalação de uma CPI para aprofundar a apuração – e que fosse encaminhado um relatório final ao Ministério Público, para que este conduzisse eventual investigação. O tal relatório, apresentado sete dias depois, não continha informação relevante, pois não houve nenhuma apuração por parte do Conselho de Ética, que não contou sequer com a presença dos convidados a colaborar com o processo. Para o deputado João Paulo Rillo (PT), suplente no conselho, o documento apresentado pelo relator, José Bittencourt (PSD), “sai do nada e caminha cinicamente a lugar nenhum”. Rillo acusou a base de Alckmin de transformar qualquer possibilidade de apuração em pizza. “Para mim e para a população, o resumo do Conselho de Ética seria a seguinte frase, que vou proferir em italiano: siamo tutti buona genti, siamo tutti ladrone. É a dor que cada um tem de ter, pois é como se comporta nesta casa.”
O deputado Luiz Claudio Marcolino (PT), um dos dois membros da oposição a integrar o Conselho de Ética – completado por outros sete situacionistas –, afirmou que o encerramento precoce dos trabalhos agrava um quadro de falta de transparência. “Se tivesse compromisso com a transparência, o governador Alckmin teria liberado seus secretários para comparecer ao conselho e disponibilizado as informações requeridas para os esclarecimentos.” Marcolino ressaltou que uma CPI permitiria apurar melhor e encaminhar mais informações ao Ministério Público. “Não podemos aceitar que o conselho não cumpra com uma de suas funções, que é dar satisfação à sociedade, uma vez que a denúncia atinge todos os deputados.” Momentos antes de a base de Alckmin sepultar o assunto, afirmações do deputado Major Olímpio mantiveram a lama em evidência e acrescentaram capítulos ao escândalo. O pedetista mencionou seu colega de bancada Rogério Nogueira como um beneficiário do sistema de emendas. E apontou, ainda, uma personagem, presidente do Centro Cultural Educacional Santa Tereza, do bairro paulistano de Campo Grande, que poderia testemunhar vários casos de assédio por parte de parlamentares, com a oferta de recursos para sua ONG, na forma de emendas, em troca de comissões (leia quadro na página 12). No mesmo dia em que o conselho encerrou os trabalhos, cerca de 500 manifestantes foram à Assembleia para pressionar os parlamentares a dar continuidade à investigação. A oposição concentra esforços para alcançar as 32 assinaturas necessárias para instalar uma CPI para investigar o escândalo – até o fechamento desta edição, faltavam duas. “A CPI terá poder de convocar, apurar, detalhar e colocar às claras todas as denúncias”, disse o deputado petista Carlos Grana. Entretanto, o tucano Barros Munhoz não pensa em São Paulo como seus colegas tucanos no Congresso Nacional, sempre ávidos por uma comissão: “Em CPI, no Brasil, mais ninguém acredita. É conversa mole, para enganar”, desdenhou o presidente a Assembleia Legislativa do maior estado da Federação. Colaborou Tatiana Melim REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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POLÍTICA
Autor das denúncias cogita deixar base de Alckmin
EDUARDO ANIZELLI/FOLHAPRESS
Barbiere diz estar sendo tratado como “leproso politicamente” pelos aliados do governador. E reafirma que levará informações ao Ministério Público Por Raoni Scandiuzzi
O
deputado estadual Roque Barbiere (PTB), autor das denúncias sobre o esquema de venda de emendas na Assembleia Legislativa de São Paulo, faz críticas à postura do governo, por tentar desqualificá-lo, apesar do histórico de proximidade. Ele reclamou da forma como foram divulgadas pela administração estadual as informações sobre as emendas liberadas, com dados incompletos e pouca disposição em sanar práticas ilegais. Barbiere lembrou que faz parte da base aliada há 16 anos, mas considera a hipótese de deixá-la. Partiu do petebista a afirmação, em setembro, de que entre 25% e 30% dos parlamentares da Assembleia Legislativa de São Paulo “vendem” suas cotas de emendas ao Orçamento paulista a que têm direito todos os anos. De acordo com o esquema, depois que o recurso é repassado para quitar uma obra ou serviço, alguns deputados embolsam “comissão” (leia entrevista da líder comunitária Tereza Barbosa na página 14). No início de novembro, o governo decidiu divulgar uma relação de emendas empenhadas desde 2007 – informação até então ocultada do público. 16
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Segundo Barbiere, a lista do governo, além de vir tarde, contém distorções. A suspeita de que os dados não são confiáveis foi despertada a partir de casos como o de Bruno Covas (PSDB), atual secretário de Meio Ambiente do estado e deputado licenciado. Enquanto ele divulga, em seu site, ter conseguido liberar R$ 9,4 milhões em 2010, na relação oficial da Secretaria da Fazenda consta terem sido empenhados no ano passado apenas R$ 2,2 milhões. Barbiere ainda reafirmou que as informações de que dispõe serão levadas ao promotor Carlos Cardoso, que acompanha o inquérito no Ministério Público. A investigação corre, porém, em segredo de Justiça, o que deve garantir proteção aos acusados de participação no escândalo. O deputado alega que não convém divulgar nomes dos que participam do esquema para não prejudicar “o todo” da investigação. Segundo ele, até o momento nenhum integrante do governo o chamou para conversar. “Eu virei um leproso politicamente falando, porque no governo ninguém tem nem coragem de chegar perto de mim”, criticou.
Se 0,5% da Assembleia vender emendas, o Parlamento já está sujo. Isso aqui não é casa de anjos. Se entre os 12 apóstolos tinha um traidor, um falso e um incrédulo, imagina uma Assembleia com 94 deputados
O que o senhor achou da lista do governo com as emendas empenhadas desde 2007?
O senhor se arrepende da sua entrevista dizendo que 30% dos deputados vendem emendas?
Vai chegar uma hora que o governo vai colocá-la corretamente. A minha e a dos demais. Para onde foram, qual o valor, se foi pago, se teve aditivo, se a obra foi feita, se está inacabada, se foi entregue.
Depois daquela minha entrevista, tenho certeza que vai sobrar mais recursos para o povo de São Paulo, as pessoas vão pensar dez vezes antes de fazer alguma coisa de errado.
O senhor considera que a lista tem distorções?
A informação de que foram empenhados R$ 3 milhões em emendas apresentadas pelo senhor procede?
Sim, ainda não está 100% (correta).
O senhor se sentiu prejudicado? De acordo com o levantamento, o senhor é o 22º deputado que mais empenhou recursos.
Não, nesse aspecto não.
Em que aspecto se sentiu prejudicado?
Fiquei magoado pela maneira como o presidente da Assembleia (Barros Munhoz, PSDB) e o governo trataram do assunto com relação a mim, tentando me desqualificar, exigindo que eu desse nomes, quando a própria Constituição me ampara. Eles fingiram que não me conheciam. Esse é um governo que apoio há quase 20 anos, e nunca pedi nada desonestamente. O governo me ignorou por completo. Explique melhor isso.
Como se eu tivesse dito a maior mentira do mundo, como se fosse uma surpresa, um absurdo a entrevista que eu dei, como se ninguém tivesse nem cogitado que algo semelhante pudesse ocorrer dentro da Assembleia.
Não sei, preciso ver se bate com a minha relação. Não concordo nem discordo. A base do governo está rachada?
Não quero emitir opinião sobre isso, não sei como está, estou tendo pouco contato por causa dos problemas pessoais. Está descartada a hipótese de o senhor deixar a base?
Não, não está nada descartado. Vou esperar aprovar o Orçamento, cumprir minha obrigação com o povo de São Paulo, depois, no ano que vem, vou me posicionar politicamente. O presidente do PTB em São Paulo, deputado estadual Campos Machado, foi o grande defensor do governo nesse caso. Ele fez o que nenhum outro deputado governista fez. Por quê?
Talvez, talvez, mas a denúncia foi para o bem, não foi para o mal. Paciência, quem não deve não teme.
O Campos Machado é apaixonado pelo governador Geraldo Alckmin, que realmente é uma pessoa cativante. Mas em determinado momento temos de fazer uma separação do governador e do governo. E o Campos Machado não consegue fazer isso. O compromisso dele é apoiar o governo, estando certo ou errado. Ele mostra a cara, ele tem lado.
Alguém do governo estadual chegou a conversar com senhor?
Não seria o momento de o senhor dizer algum nome, para não deixar o assunto esfriar?
O senhor acha que o governo se sentiu atingido por suas denúncias?
Não, ninguém conversou comigo, nem na boa e nem na ruim. Eu virei um leproso politicamente falando, porque, no governo, ninguém tem nem coragem de chegar perto de mim.
Eu não posso, para satisfazer parte, prejudicar o todo. Primeiro vou conversar com o promotor. Depois, se ele seguir o caminho, com a aparelhagem que tem, ele vai chegar aos nomes.
O senhor concorda que nunca houve diferenciação entre emenda e indicação?
Dona Terezinha, presidente da ONG Centro Cultural Educacional Santa Terezinha, disse que 45% dos deputados vendem emendas. O que acha desse número?
Sim, concordo. Mas com a aprovação dessa nova lei vai ter discriminado o que é emenda, indicação e pedido verbal. O que achou de o governo dizer que Bruno Covas gastou apenas R$ 2,2 milhões em 2010?
O Bruno Covas primeiro disse que um prefeito ofereceu propina para ele, depois disse que foi hipoteticamente. Do Covas eu gostava muito era do Mário.
Isso é irrisório, insignificante, se 0,5% da Assembleia vender emendas o Parlamento já está sujo. Isso aqui não é uma casa de anjos. Se com Jesus, que tinha 12 apóstolos, tinha um traidor, um falso e um incrédulo, você imagina uma Assembleia com 94 deputados. Mas volto a dizer que a maioria daqui é gente boa.
O Campos Machado é apaixonado pelo governador Geraldo Alckmin. O compromisso dele é apoiar o governo, estando certo ou errado
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EDUCAÇÃO
USP: autonomia A universidade deixará de ser uma ilha quando realmente for pública, a sociedade puder usufruir seu espaço e o conhecimento lá produzido não atender apenas às demandas do capital privado Por Leonardo Borges Calderoni e Pedro Ferraracio Charbel
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em sido dito pelos que defendem o convênio entre a USP e a PM que não se pode tratar a Cidade Universitária como algo que está fora da cidade de São Paulo. A própria reitoria tem feito discursos nesse sentido. E é verdade: a USP faz parte do território paulistano, paulista e brasileiro, mesmo sendo uma autarquia. Ter autonomia, afinal, não é o mesmo que ter soberania. Agora, se a Cidade Universitária está sujeita a todas as leis municipais, estaduais e nacionais e deve ser tratada como qualquer outra parte do território, por que ela se fecha – material e intelectualmente – ao resto da sociedade? Por que a mesma reitoria que agora afirma a não soberania da USP teve o poder, há alguns anos, de vetar a construção de uma estação de metrô dentro do campus? Por que em uma universidade pública, financiada pela sociedade, esta não pode usufruir de seus espaços livremente sem uma carteirinha? A USP virou uma terra de autonomia seletiva. Na hora em que convém a determinados interesses, há, sim, bastante 18
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autonomia para afastar a “gente diferenciada” que viria de metrô para dentro de seus muros. Mas, na hora em que não interessa, a autonomia some e o “campus é parte da cidade”. O discurso da segurança serve para defender ora o segregacionismo, ora a integração. Aparentemente estamos condenados a ser eternos reféns das “razões de segurança”. Seria realmente desejável que os que defendem a integração nesse caso fizessem-no em tudo o mais. Isso porque a Cidade Universitária não deixará de ser uma “ilha” por causa de um convênio com a PM. Deixará de sê-lo no dia em
que não for hostil aos que “não possuem carteirinha”, quando a comunidade São Remo, ao lado, deixar de ser vista como antro de criminalidade ou fonte de mão de obra para os serviços terceirizados da universidade e passar a ser vista como uma comunidade que detém o direito sobre aquele espaço, tanto quanto qualquer outro cidadão. Afinal, não é a Cidade Universitária um espaço como qualquer outro dentro da capital paulista? Acima de tudo, a USP deixará de ser uma “ilha” quando realmente for uma universidade pública, na qual toda a sociedade possa usufruir seu espaço e o
NELSON ANTOINE/FOLHAPRESS
seletiva
Na hora em que convém a determinados interesses, há, sim, bastante autonomia para afastar a “gente diferenciada” que viria de metrô para dentro de seus muros. Mas, na hora em que não interessa, a autonomia some e o “campus é parte da cidade”
conhecimento lá produzido não atenda apenas às demandas do capital privado – o que é legítimo, mas de modo algum suficiente. O papel da universidade deve superar o ensino e a pesquisa. É necessário que haja extensão, isto é, que se trave um diálogo horizontal entre o conhecimento universitário e o restante da sociedade, em um processo que a traga para dentro da universidade, e vice-versa, tanto física quanto intelectualmente. Mais do que uma questão de espaço e jurisdição, está em debate, portanto, o caráter público da USP. É preciso desvincular as discussões recentes de casos
pontuais e associá-las a algo muito maior. No limite, a principal discussão não deve ser o convênio entre USP e PM em si, mas a maneira como este se deu e como são tomadas todas as decisões relevantes da política universitária, entre as quais o convênio é só mais uma. Este, ao contrário do que afirma a reitoria, não foi decidido por uma “ampla maioria”, simplesmente porque nenhuma decisão importante na USP é tomada de maneira democrática. Novamente reina a autonomia seletiva: a universidade não está acima da lei quando se trata de polícia, mas segue desrespeitanto determinações de leis federais, como a de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no que tange aos seus processos deliberativos. Não à toa, a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital instaurou, neste ano, processo para apurar irregularidades na eleição da reitoria e na disposição dos assentos dos docentes em órgãos colegiados constituintes do colégio eleitoral. Se o convênio USP-PM encontra suas justificativas no factual problema da segurança, a maneira como foi firmado já o invalida por completo. É a mesma pela qual se permite que processos administrativos sejam usados como forma de repressão e controle político. Advêm da mesma estrutura as iniciativas que ilham o ensino e a pesquisa desenvolvidos dentro da USP, na qual os cursos pagos e os convênios com grandes empresas são as únicas formas de diálogo com a sociedade. Recentemente, a Congregação da Faculdade de Direito da USP declarou o reitor João Grandino Rodas persona non grata. Reconhecer os problemas da gestão Rodas é, sem dúvida, um passo importante. É fundamental, todavia, entendermos que o reitor que está sob investigação do Ministério Público encontrou na estrutura da própria universidade as possibilidades para assim atuar. Mais do que uma persona non grata, há na USP toda uma estruturanon grata. E, no caso da Cidade Universitária, além da estrutura decisória, a física precisa ser rearquitetada. Leonardo Borges Calderoni e Pedro Ferraracio Charbel são estudantes de Relações Internacionais da USP. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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TRABALHO
Um trem fora de moda
BIANCA PYL/REPÓRTER BRASIL
FERNANDA FORATO/REPÓRTER BRASIL
BIANCA PYL/REPÓRTER BRASIL
ROUPA BARATA Em oficinas clandestinas e insalubres, imigrantes costuravam sem nenhuma garantia trabalhista
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Quando terceirização, subcontratação e trabalho escravo são flagrados de mãos dadas, as empresas têm algumas opções: mudar sua prática e adequar-se ao século 21 ou, quem sabe, mudar as leis e adaptá-las ao século 19 Por Maurício Hashizume
assegurada. O grupo era ainda submetido a jornadas exaustivas e a condições degradantes, em alojamentos precários que se resumiam a contêineres metálicos, em um quadro insalubre e de desumanidade. As tarefas eram terceirizadas, ou melhor “quarteirizadas”. A ALL contratou para os serviços a Prumo Engenharia, que subcontratou a MS Teixeira, à qual as vítimas eram vinculadas. Seu proprietário, Marcioir Silveira Teixeira, foi preso em flagrante pela Polícia Civil. Tanto a Zara como a ALL foram responsabilizadas pelos ocorridos pela posição de comando das respectivas cadeias
produtiva, e continuará com terceiros a tarefa de produzir as roupas da grife. A ALL, por sua vez, acelerou um processo de contratação direta de trabalhadores que atuavam em terceirizadas. Até julho, 3.100 funcionários da empresa ferroviária foram “primarizados”. Segundo a concessionária, a medida foi motivada pela “busca da valorização dos trabalhadores” que prestam serviço na ferrovia e por “maior controle de qualidade e produtividade”. Para a ALL, a efetivação das contratações diretas foi desdobramento da conclusão de estudos iniciados há dois anos. No entanto, representantes da
FOTOS REPÓRTER BRASIL/DIVULGAÇÃO
A
marca de roupas e acessórios Zara pertence ao espanhol Inditex, considerado o grupo têxtil mais valioso do mundo. Por isso correu o planeta a notícia do envolvimento da grife com a exploração de trabalho escravo no Brasil. Famílias de imigrantes sul-americanos sem registro legal foram encontradas por agentes da fiscalização trabalhista em duas oficinas de costura escondidas, precárias e improvisadas em plena cidade de São Paulo. A operação ocorreu no final de julho. Condições degradantes, jornadas exaustivas diárias de até 16 horas, cerceamento de liberdade e até trabalho infantil compunham o quadro. Proporcional à produção individual, a remuneração não passava de R$ 2 por peça costurada. Após os famigerados descontos, alguns vencimentos mensais não atingiam sequer o salário mínimo, de R$ 545 (muito menos o piso da categoria, de R$ 676), em contraste com os altos preços cobrados por vestimentas à venda nas lojas da Zara espalhadas pelo mundo. Foram registrados ainda fortes indícios de tráfico de pessoas. Apesar do clima de medo, uma das vítimas confirmou que só conseguia sair do superlotado imóvel com a autorização do dono da oficina, boliviano, concedida apenas em casos urgentes, como levar um filho ao médico. Bem menos rumoroso, outro caso de escravidão contemporânea, também flagrado por auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP), maculou outra poderosa: a América Latina Logística (ALL), que se apresenta como “maior empresa independente de serviços de logística do continente”. Um grupo de 51 trabalhadores na conservação da Ferrovia Santos-Mairinque, concedida pelo poder público à ALL, era mantido em condições análogas à escravidão. A inspeção se deu há quase um ano nas cercanias da antiga Estação de Engenheiro Ferraz, no trecho que corta o Parque Estadual da Serra do Mar, em área de difícil acesso. No local, foram encontradas pessoas aliciadas (muitas vindas da Bahia, atraídas por promessas de um “gato”, como são chamados os intermediários), com documentos retidos, sem receber salários, benefícios e sem a liberdade de ir e vir
LOGÍSTICA DO MAL Praticamente escondido no meio da mata, um grupo de 51 trabalhadores na conservação da Ferrovia Santos-Mairinque era mantido em condições análogas à escravidão. Vários vieram da Bahia atrás das promessas de um “gato”
produtivas. E se as duas gigantes em suas atividades expuseram alguma semelhança, no que diz respeito ao envolvimento em situação de trabalho escravo contemporâneo, diferiram nas respostas aos episódios.
Costura por fora
A Zara classificou o ocorrido como caso isolado de “subcontratação não autorizada” e limitou-se a anunciar “acordos” ainda não fechados de cooperação com outras entidades (para aperfeiçoamentos no monitoramento da produção, que ela já alegava ser rigoroso, e no suporte a projetos voltados a trabalhadores imigrantes). Ou seja, não mexeu no formato da cadeia
categoria dos ferroviários veem a medida como resultado de anos de reivindicações por melhores condições de trabalho e das pressões sofridas, que podem abalar a imagem da companhia. As terceirizações nas ferrovias são questionadas desde que o setor passou para a iniciativa privada, na década de 1990, conforme destaca Plínio Baldoni, do Sindicato dos Ferroviários de Bauru, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Em um mesmo local de trabalho, contratados diretos da ALL recebem um tipo de tratamento, com salários em dia e diversos benefícios, enquanto terceirizados não tinham tíquetes de alimentação de REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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VANDER FORNAZIERI
mesmo valor, direito a plano de saúde nem seguro de vida. Só entre as cidades de Bauru (SP) e Corumbá (MS), a concessionária mantinha contratos com pelo menos 30 terceirizadas, o que, segundo os dirigentes sindicais, dificultava o monitoramento. Em outubro de 2010, uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou as argumentações da ALL em defesa da terceirização do serviço de manutenção e conservação das linhas férreas. Determinou que a prática de terceirização fosse “reprimida” e a empresa se abstivesse de celebrar qualquer tipo de contrato de mão de obra para desempenho dessas duasatividades, sob pena de multa diária de R$ 500 por contrato de trabalho irregular. Ariovaldo Bonini, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias Paulistas (Sindpaulista),
MIGUEL VIDAL/REUTERS
TRABALHO
ILHA DA FANTASIA A Inditex, dona da Zara, foi fundada por Amancio Ortega, o homem mais rico da Espanha. Sua fortuna é estimada em US$ 31 bilhões
Precarizados e desidratados Deputados, juízes, empresários e sindicalistas discutem um marco regulatório para o tema, mas acordo parece distante Por Vitor Nuzzi
O Congresso é o atualcenário de combate entre trabalhadores e empresários sobre a terceirização. Mais de 20 projetos relacionados ao tema circulam na Câmara dos Deputados, e o mais adiantado tem oposição frontal da CUT e de outras entidades sindicais. É o PL 4.330/2004, de Sandro Mabel (PR-GO), que ganhou substitutivo de Roberto Santiago (PV-SP), também vice-presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Parlamentares mostram dificuldade de conseguir uma proposta de 22
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consenso em um assunto que provoca reações às vezes apaixonadas, como se viu durante a audiência pública promovida em outubro pelo Tribunal Superior do Trabalho – a primeira da história do TST. A legislação permite a terceirização de tarefas – atividades-meio – que não estejam ligadas à principal produção de determinada empresa – atividade-fim. Por exemplo, um banco pode terceirizar o serviço de limpeza, mas não o de compensação de cheques ou de recolhimento de valores em seus terminais de au-
toatendimento. O projeto de Mabel propõe mais “tolerância” como isso. Na audiência, o deputado disse que seu projeto é “equilibrado” e não causa situações precárias de trabalho. “O que é atividade-fim e atividade-meio? Isso não existe mais”, defendeu, ao mesmo tempo em que anunciava o fim da “picaretagem” no mercado de trabalho. Mas o próprio presidente do TST, ministro João Oreste Dalazen, criticou a proposta. “Não simpatizamos com o projeto do deputado Sandro Mabel. Fazemos restrições seríssimas”, reagiu o juiz, para quem “a terceirização em atividade-fim seria a própria negação do Direito do Trabalho”. O substitutivo de Santiago não deixa dúvidas: “Independentemente da atividade ou do setor que a empresa neces-
sitar ou preferir terceirizar, a contratação de uma empresa especializada passa a ser o limite da terceirização, ficando superada a questão atividade-meio x atividade-fim”, diz o texto. Para o parlamentar e sindicalista, a jurisprudência do TST criou um “controvertido e nebuloso critério”. A súmula do tribunal considera lícitas apenas algumas formas de terceirização, como trabalho temporário e serviços de limpeza e vigilância, desde que especializados e não ligados ao ramo de atividade do tomador do serviço. Autor de outro projeto, o deputado Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (PT-SP), ex-presidente da CUT, diz que o ideal seria acabar com a terceirização. “Mas, como isso não é possível, é preciso regulamentar para garantir
municação da Inditex, Jesus Echevarria, afastou a possibilidade de instalar fábricas próprias no país, com costureiras e costureiros admitidos diretamente, como no município espanhol de Arteixo, onde o grupo nasceu e mantém sua sede. O negócio da companhia está baseado na contratação de “provedores externos”, segundo Jesus. “E não mudaremos isso. É a filosofia retailer (centrada na venda direta ao consumidor).” Quase 5 milhões de peças de roupa do grupo foram confeccionadas em 2010. O número consiste, porém, em menos de 1% do total da produção da Inditex ao redor do mundo. Um dos autores do requerimento que viabilizou a audiência pública, o deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA), ressaltou que a extensão de crimes como o de trabalho escravo pode ser maior do que se imagina justamente pela reprodu-
ção em cascata do recurso das subcontratações, nos mais diversos setores da economia. Na opinião do parlamentar, esse tipo de expediente muitas vezes escapa às normas jurídicas e deve merecer reflexões mais intensas por parte do Poder Legislativo. Não faltará oportunidade para tanto. Tramita no Congresso o polêmico Projeto de Lei (PL) 4.330/2004, de autoria do congressista e empresário Sandro Mabel (PR-GO), que visa regulamentar os contratos de serviços terceirizados com base em princípios que provocam arrepios à bancada mais próxima aos trabalhadores. A comparação das posições da Zara e da ALL revela nuance dos trilhos distintos de responsabilidade que cada empresa de porte pode assumir perante a classe trabalhadora e a sociedade como um todo.
AGÊNCIA CÂMARA
AGÊNCIA CÂMARA
RENATO ARAÚJO/ABR
com sede em Campinas (SP), e Rogério Pinto dos Santos, do Sindicato dos Trabalhadores das Empresas Ferroviárias da Zona Sorocabana (STEFZS), compartilham o entendimento de que a repercussão negativa do trabalho escravo na Serra do Mar contribuiu para sacramentar a “primarização”. Vale lembrar que a companhia abriu seu capital (com ações negociadas na Bolsa de Valores) e passou a ter como um dos acionistas o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), via BNDESPar. Executivos da Zara, ao contrário, descartaram rever o sistema de produção de peças de roupa no Brasil baseado em subcontratações. Depois de participar de audiência pública realizada em meados de setembro na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, em Brasília, o diretor global de co-
Mabel: “Picaretagem”
Dalazen: “Restrições”
Vicentinho: “O ideal é acabar”
Gesner: “Inevitável”
dignidade e direito aos trabalhadores”, afirma Vicentinho, que também critica o projeto de Mabel. “Do jeito que está, tudo pode ser terceirizado.” No final de outubro, CUT e CTB divulgaram declaração conjunta aos deputados na qual manifestaram preocupação com os rumos do debate. “Uma regulamentação da terceirização, qualquer que seja, atingirá mais de 30 milhões de trabalhadores e representa, na prática, uma reforma da legislação trabalhista, com grandes impactos no mercado de trabalho bra-
sileiro, pois tem reflexo sobre diversos regimes de contratação de mão de obra”, alertam as centrais. Segundo o procurador-geral do Trabalho, Luis Antonio Camargo de Melo, o Ministério Público do Trabalho tem nas diversas regionais 14 mil procedimentos apenas em relação a questões ligadas à terceirização. “A omissão do legislador, o vazio legal, tem proporcionado um clima de insegurança jurídica”, criticou, apontando um “crescente desvirtuamento do exercício da terceirização”.
O sociólogo Ricardo Antunes, professor da Universidade de Campinas (Unicamp), vê na terceirização a porta de entrada da “degradação” no mercado de trabalho. “Quem sabe o nome dos terceirizados que limpam nossos escritórios?”, pergunta. E recorre à química para mostrar como visualiza o processo: “As empresas liofilizam e eliminam trabalho vivo”. Liofilização é um processo de desidratação de alimentos. O executivo Gesner Oliveira, que ocupou cargos no Ministério da Fazenda durante
o governo FHC, considera a terceirização inevitável e irreversível. E bate bumbo no discurso da competitividade: “Deixar de usar um fator de competitividade é um crime em termos de oportunidade”. Também professor da Unicamp, Anselmo Luís dos Santos contesta: não há relação entre terceirização e competitividade, se o objetivo é reduzir o custo do trabalho. “O padrão tecnológico não determina a forma de utilização da força de trabalho”, diz o especialista, para quem o debate é, basicamente, ideológico. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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MUNDO
Rebeldes com causas Vovôs e netos, ombro a ombro, contra o capitalismo Por Flávio Aguiar
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NOVEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL
WOLFGANG RATTAY/REUTERS
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e repente eles estão em todo lugar: os jovens “retornaram” à cena política. Estão no Chile, nos Estados Unidos, nas capitais europeias e da Liga Árabe, além de outras cidades. Estavam também em protestos em Tel Aviv e no Japão. De repente, “jovem” voltou a ser um “rótulo” midiático, uma grife política, a marca de um momento. Como se diz em alemão, a palavra “jovem” vai fazer parte do Zeitgeist, do “espírito do tempo” deste começo do século 21, como já fez de outros momentos. Sua participação foi uma das marcas da eleição de um presidente negro nos Estados Unidos, coisa até então inédita. A maioria das revoltas nos países da Liga Árabe, a começar pelas da Tunísia e do Egito, teve nos jovens seu começo e seu esteio. Em Berlim, foram os responsáveis pela surpreendente eleição dos também jovens do Partido Pirata (PP) para o Parlamento da cidade-estado, capital da Alemanha. Segundo as pesquisas, além de roubarem votos de jovens de todos os partidos do espectro político alemão, inclusive os conservadores, os piratas trouxeram para as urnas 21 mil que nunca tinham votado, embora já pudessem fazê-lo. No Chile, até hoje menina dos olhos do saudosismo neoliberal, os jovens defendem a educação pública. Em Atenas e em Londres lutam contra os cortes nos investimentos sociais. Em Madri, por empregos. O mesmo aconteceu na Praça Tahrir, no Cairo, e em Roma, Paris, Lisboa e tantas outras cidades.
ANONYMOUS Grupo inspirado em V de Vingança critica o “fascismo do euro” em Berlim
Além de Berlim, com o PP, o “voto jovem” deixou marcas em vários outros momentos. Certamente foi um dos esteios da histórica reeleição de Cristina Kirchner na Argentina (leia mais na pág. 24). Foi um dos impulsionadores da expressiva votação obtida por Marina Silva no ano passado, que depois convergiu em sua maioria para Dilma Rousseff. Já antes, na Suécia, esse voto elegera, pela primeira
vez na história, um candidato do Partido Pirata para o Parlamento Europeu. Com o movimento Occupy Wall Street, essa “participação” jovem deu um salto de qualidade em matéria de politização. Adquiriu uma coloração anticapitalista, contra o sistema financeiro, para dizer o mínimo. Não adiantou a repressão sobre eles, como também não adiantaram as tentativas de desqualificação, que foram
sado, inclusive em cidades brasileiras, em que se nota o esforço de evitar a partidarização do movimento – ainda incipiente e menos numeroso que em outros países. E também a busca de um foco em bandeiras que os unifiquem, como a oposição ao poder do sistema financeiro, o investimento em educação pública e a ampliação da democracia participativa, já que a representativa não tem dado conta de assegurar poder às maiorias.
RAFAEL MARCHANTE/REUTERS
“PORCOS BILIONÁRIOS” Em Nova York, americanos marcham rumo a Wall Street
ANDREW BURTON/REUTERS
Hiato geracional
DALINO RAMOS
LISBOA Mais direto, impossível
BRASIL Partidos também são questionados
desde a ideia de chamá-los de “desocupados” (afinal, muitos eram mesmo desempregados...), “maconheiros”, “desordeiros”, até a maluca ideia de taxá-los de antissemitas (afinal, em Wall Street há muitos judeus, era a raiz do argumento). O movimento cativou o mundo e por ele se espalhou, provocando a primeira manifestação do gênero neste século em escala mundial, no dia 15 de outubro pas-
Esse fenômeno, o ativismo global, recupera mas vai além das manifestações de Seattle e Gênova, uma década atrás, que coincidiram com a criação do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Occupy Wall Street trouxe relevo a uma questão já presente em várias outras ocasiões. Lá na Praça Zuccoti (rebatizada Praça Liberdade) se acotovelavam ombro a ombro netos e vovôs históricos. Os jovens de 2011 lado a lado com os veteranos jovens de 1968. Não poucos declararam que não iam a algo assim desde as manifestações contra a Guerra do Vietnã. É claro que havia pessoas de todas as idades e todos os quadrantes ideológicos (exceto, certamente, do Tea Party). Mas, ao olhar os grupos ali, fica claro que, predominantemente, há um hiato geracional. A geração que amadureceu ao mesmo tempo em que o Muro de Berlim e os regimes comunistas caíram se faz menos presente. Talvez se possa dizer, provocativamente, que é uma geração entre Margaret Thatcher e Tony Blair, Ronald Reagan e Bill Clinton, João Paulo II e Mikhail Gorbachev. Não marcada por João XXIII e a Teologia da Libertação, os Beatles e Bob Dylan, ou, mais recentemente, pelo Fórum Social Mundial e pelos protestos contra as reuniões do G-8. Aliás, em Rostock, na Alemanha, lugar de concentração anti-G-8 em 2007, tive o primeiro link para esse encontro de gerações distintas, saltando sobre a geração intermediária. Também lá me chamou a atenção o número de muito jovens e de veteranos sessentões. Entrevistei dois deles, avô e neto espanhóis, que lá estavam e iam juntos a essas manifestações (tinham estado no FSM, em Porto Alegre), enquanto os pais de um e filhos do outro ficavam placidamente
(tempos atrás se usava uma palavra menos educada) em casa. Tradicionalmente há uma tendência a atribuir hoje esse impulso jovem ao uso da moderna tecnologia de comunicação: celulares, internet, iPads, iPods, Blackberries, tablets, essas coisas. É claro, são elementos inseparáveis das manifestações atuais, assim como o mimeógrafo (grande inovação!) o foi das de 1968. Sabe-se, por exemplo, que em 2002 o golpe contra Hugo Chávez em Caracas foi sustado graças à gigantesca massa popular em frente ao Palácio Miraflores, chamada por celulares, uma vez que a velha mídia era favorável ao golpe e nada noticiava contra ele. Ferramentas de comunicação sempre foram importantes: em 1954 as grandes manifestações contra os partidos de direita depois do suicídio de Vargas aconteceram devido à repetida leitura de sua carta-testamento no rádio. Em 1961 a Rede da Legalidade, pelo rádio, foi fundamental para sustar o golpe contra a posse de João Goulart. Mas não se deve cair na falácia de tudo atribuir à magia comunicativa, tampouco a mecanismos sociais e econômicos que funcionariam com a certeza de um relógio suíço. Afinal, a vida e a história não são relógios suíços. Existem causas sociais determinadas (o alto desemprego internacional de jovens é uma), assim como econômicas (os cortes de investimentos públicos é outra, a diminuição do poder aquisitivo), e existe uma intensa e cada vez maior formação de redes comunicativas incontroláveis em todos os níveis. Mas o traço comum a toda essa série de manifestações mundo afora é o desejo de recuperar o futuro enquanto futuro, por assim dizer, não enquanto estagnação do presente ou repetição do passado. Recuperar as chaves do próprio destino, e dos próprios sonhos. Nesse sentido, o sonho de uma comunicação cada vez mais livre, sem limites, pode ajudar a neutralizar o pesadelo do universo repressivo de boa parte da mídia, que se concentra em dizer: você não precisa sonhar, nós sonhamos por você, basta comprar o nosso produto. Esse desejo está presente em todas as camadas, segmentos ou grupos sociais. Mas, por sua própria natureza, traz embutido o chamado aos jovens – sejam os de agora, sejam os de 1968. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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FOTOS DANILO RAMOS
MUNDO
Para professores, movimento aprofunda relação entre as pessoas e reinventa a contestação política
Ecos do 15 de outubro “S ó por acontecer em 900 cidadesé ‘surreal’. Ontem estava pensando que nunca poderia imaginar que viria a uma manifestação que tem a ver com os Estados Unidos, com a Espanha, com o Chile”, comemorava Maíra Tavares Mendes, professora de uma rede popular de cursinhos pré-vestibular, no último 15 de outubro, enquanto protestos contra o capitalismo e suas crises correm o mundo. Entre os atos programados em 950 cidades de 82 países, a marcha de São Paulo acabou se transformando no Ocupa Sampa, um eclético acampamento no Vale do Anhangabaú, no centro paulistano, sem data para terminar. “A linha em comum (com os demais países) é ser anticapitalista e contra o sistema antidemocrático”, disse Bárbara Guimarães, uma jovem que fotografavao encontro. “O chamado internacional foi o estopim para nos indignarmos com as questões locais, habitação, saúde e educação, que o Estado brasileiro deixou de servir com qualidade. Há espaço para todos falarem. Não dá mais para continuar mos calados, dormindo, como se nada acontecesse”, endossou Jeff Anderson, 26
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um dos responsáveis pela comunicação do movimento. “Vivemos um contexto diferente no Brasil. Há muitas especificidades. Mas, pelo nível de globalização, estou segura de que o país não está livre desses problemas”, diz a estudante Natalie Drumond. “O sistema capitalista está em um beco sem saída.” Aos poucos, o movimento recebe expressões originais de apoio, inclusive de intelectuais e do meio acadêmico. Rita Alves, do curso de Antropologia da PUC, Igor Fuser, da pós-gradução de Jornalismo na Cásper Líbero, e Vladimir Safatle, da Filosofia da USP, estiveram entre os que ministraram aulas públicas como forma de levar o ambiente acadêmico a interagir com o inovador fenômeno sociocultural. “Eu fiquei instigada e incomodada com essa movimentação mundial, ficaria angustiada por voltar para a sala de aula como se nada tivesse acontecido”, disse Rita Alves, ao defender a apropriação de espaços públicos no mundo contemporâneo como meio de aprofundar a relação entre as pessoas. Vladimir Safatle considerou sua aula aberta uma das experiências mais impressionantes de sua vida. “Sou extrema-
PRESENÇA ACADÊMICA Rita, da PUC-SP: instigada com a movimentação, deu aula aberta aos acampados no Anhangabaú
mente grato por ter tido a oportunidade de conhecer melhor o que estão propondo. Acredito que um movimento dessa natureza é uma tentativa extremamente importante de reinvenção da potencialidade do campo político, e eles têm consciência disso, contrariamente ao que muita gente gosta de fazer, de criar uma caricatura e dizer que são irresponsáveis”, observa. “Eles têm uma consciência muito mais profundado que aqueles que os criticam.” O professor vê nesses movimentos uma visão correta do que está acontecendo com o mundo e discorda dos que dizem que eles não têm proposta. “Falar da transformação da democracia representativa em democracia real também não é uma proposta extremamente concreta?”, pontua. “Quem tem uma boa proposta na mesa? Quero ouvir. O que eles querem é discutir profundamente os problemas. O pensamento, quando age em sua força crítica, abre novos espaços. As pessoas que os criticam têm medo de pensar. Por quê? Porque têm medo de criticar pressupostos que não querem criticar. Esses jovens estão dispostos a isso.” Colaboraram João Peres e Virgínia Toledo
StefhenLerner
Organize e ocupe!
O
s ativistas do movimento Occupy Wall Street captaram o sentimento do mundo ao apontar os holofotes sobre a desigualdade e sobre o papel dos grandes bancos e corporações nos saques às economias e no sequestro da democracia. Foi fascinante a forma como conseguiram trazer à tona assuntos que nunca havíamos conseguido pautar para a opinião pública de maneira “comportada”. Não fugiram do confronto, das prisões nem da ruptura com meios tradicionais de convencimento da opinião pública. Nem apostaram em bandeiras modestas para parecer “razoáveis”, sem alarde. O Occupy Wall Street tem mais semelhanças com as greves operárias dos anos 1930 do que com os movimentos sindicais e políticos de hoje em dia. Pode parecer um contrassenso comparar os tempos da velha economia industrial com o mundo conectado e on-line, do Twitter e do Youtube, mas tem tudo a ver. Assim como as greves e ocupações dos anos 1930 resistiam até alcançar seus objetivos, os integrantes do Occupy garantem que o movimento continua indefinidamente, que não vai conquistar nada em um dia ou após algumas manifestações, tampouco elegendo políticos que defendam isoladamente a causa. Eles estão num lugar determinado, o Occupy, e, como num piquete, qualquer pessoa pode chegar junto para apoiar e interagir. E espalham energia por toda parte. Passei todo o mês de outubro participando de reuniões, marchas e outras atividades em todo o país. Tenho visto muito mais gente do que imaginava aderindo ao Occupy, e movimentos espontâneos em lugares improváveis, de Bismarck, em Dakota do Norte, a Jackson, no Mississippi. Ao apoiar o movimento, sem querer dirigi-lo, grupos de combate à desigualdade e ao poder do sistema financeiro ajudam a mudar o destino de nosso país, numa relação de fortalecimento mútuo. Durante o verão, enquanto o Occupy era concebido, associações comunitárias, sindicatos e outras organizações planejaram ações em todo o país a partir de setembro, envolvendo desobediência civil pacífica, sempre tendo como objetivo atingir Wall Street, os bancos e o poder das corporações. No estado de Washington, ações simultâneas em Seattle e outras três cidades derrubaram uma reunião da elite empresarial promovida pelo JP Morgan num resort. A onda se espalhou para São Fran-
O que assusta o 1% da população atendido pelo sistema econômico controlado por Wall Street é saber que os outros 99% já percebem a necessidade de mudar cisco, Los Angeles, Boston, Chicago, Nova York, Minneapolis, Denver, Honolulu. Assim que o Occupy Wall Street começou a ocupar a consciência nacional, grupos comunitários e sindicatos locais organizaram o Occupy Boston. Em Chicago, sindicatos e movimentos sociais realizarama “retomada da cidade”. Em Minnesota, ocorreram dezenas de ações em bancos, no conselho escolar e no local onde se instalou o Occupy Minneapolis. Em outra manifestação, mil pessoas sentaram-se em frente ao prédio do banco Wells Fargo, que apoia políticas anti-imigrantes. Em Nova York, a organização Comunidades Nova-Iorquinas pela Mudança convocava clientes a retirar recursos investidos no JP Morgan Chase. A Marcha dos Milionários pela Park Avenue foi acompanhada por vários integrantes do Occupy Wall Street. A cobertura da mídia não conseguia informar quem estava liderando o quê. Esta é a beleza do momento: ainda podemos turbinar o impacto do Occupy se continuarmos apoiando uns aos outros e aprendendo uns com os outros. Em 1937, quando a greve dos trabalhadores da GM em Flint (Michigan) alcançou projeção nacional, as elites tentaram isolá-los, chamando-os de radicais, comunistas e anarquistas, que destruiriam o sistema econômico. Agora, diante do súbito crescimento do Occupy, não nos surpreende que o 1% da população que se beneficia do atual modelo desfira os mesmos ataques. O que realmente os assusta é o fato de que os outros 99% já percebem a necessidade de destruir o sistema manipulado por Wall Street, os grandes bancos e corporações e substituí-lo por um modelo que proporcione oportunidades e justiça social. E que estamos preparados para nos engajar numa ação sustentável, contundente e pacífica para fazer isso acontecer.
Stephen Lerner é assessor da presidência do Sindicato Internacional dos Trabalhadores no Setor de Serviços (Seiu). É idealizador da campanha Justice for Janitors, por emprego decente para os trabalhadores nos serviços de limpeza nos EUA. Artigo do semanário The Nation, de 7/11/2011.
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AMÉRICA LATINA
M
artín D’Alessandro espera sentado. Faltam poucos minutos para o fechamento das urnas que consagrarão uma das maiores vitórias em eleições argentinas. A Rua Moreno, no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, está tomada por jovens a celebrar o triunfo de Cristina Fernández de Kirchner. A enorme diferença para os demais concorrentes permite mandar às favas a cautela, o bumbo toca, e soam coros como os de uma torcida de futebol. “Ôoooo, sou argentino, sou soldado do Pinguim”, cantam, em referência a Néstor Kirchner, morto em 27 de outubro de 2010. Martín é de uma família peronista e andava desiludido com a política tradicional desde o fim do ensino médio, quando corria o governo neoliberal de Carlos Menem. “Néstor e Cristina recuperaram essa vontade de estar aqui”, diz. Aos 37, ele integra o amplo grupo de jovens que apoiam o kirchnerismo. Entre os 15 e os 40, todos jovens – até o vice-presidente eleito, atual ministro da Economia, Amado Boudou. Aos 48, mantém um ar jovial: escuta e toca rock em público, namora uma jovem repórter e dispensa formalidades, como no domingo da vitória, 23 de outubro, quando apareceu, de jaqueta de couro, ao lado de Cristina. Após a morte de Néstor, Martín decidiu ingressar em La Cámpora, organização que reúne jovens apoiadores do kirchnerismo. Referência a Héctor Cámpora, o presidente do governo de 49 dias, em 1973, que possibilitou a volta de Juan Domingo Perón do exílio para seu último e mais breve mandato, quando teve início a repressão estatal, logo seguida da ditadura (1976-1983). La Cámpora, fundada em 2003, é um fator de sustentação do atual governo, inclusive com a ocupação de cargos públicos, em especial em autarquias na área social. É a consagração da ideia peronista de que os jovens podem ser protagonistas da história, casada a uma agenda que destoa do peronismo tradicional em questões morais. “Com o kirchnerismo, mescla-se o componente justicialista histórico com o componente da liberalidade política e social. Não muito forte, mas há um braço progressista importante”, diz 28
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O baile de Cristina O kirchnerismo aprimorou virtudes e diminuiu vícios do peronismo. A vida dos argentinos melhorou e o povo retomou o gosto pela política. Sem projeto, não foi a oposição que perdeu. Foi Cristina quem ganhou, de goleada Por João Peres
PABLO BUSTI
ORGULHO RESGATADO Cristina e o vice, Amado Boudou: componentes históricos com “braço progressista”
PIB (em bilhões de pesos)
Índice de pobreza % sobre a população da Grande Buenos Aires
422 386 359
51,7 278 276 243
279
20,6 8,2
Fim era Menen
30,9
12,6
Fonte: Indec * 1º semestre
235
256
19 95 19 99 20 00 20 01 20 02 20 03 20 04 20 07 20 09 20 10
26,7
19 89 19 95 19 99 20 02 Pós-default 20 03 Néstor 20 05 20 07 Cristina 20 09 20 11 *
24,8
263
Cristina
47,3
Néstor
54,3
Fonte: Indec
Diego Reynoso, professor e cientista político da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Esse braço progressista surge em 2003, quando Néstor revoga os dispositivos que anistiavam os repressores da última ditadura. Até agora, 1.774 colaboradores do regime foram processados e mais de 200, condenados, o que inclui todos os ex-presidentes das juntas das Forças Armadas e os principais cabeças do regime. Um processo que tem dificuldades, mas caminha. “Não me imagino em uma situação como a da Alemanha, que segue investigando os criminosos nazistas”, diz Carolina Varsky, diretora da área de ações judiciais do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels). A equiparação dos direitos entre casais hétero e homoafetivos, a vindoura aprovação de um projeto sobre o aborto e a lei que tenta democratizar o acesso à comunicação são pontos de uma agenda que avançou – uma pesquisa feita pela Universidade de Buenos Aires (UBA) no dia da eleição mostrou que todas essas medidas contam com o respaldo da maioria da população. São linhas de continuidade do mandato de Néstor. Em que pese o machismo implícito na visão de que a presidenta não sabia governar, Cristina respeitou o desejo manifestado pela população nas urnas em 2007, quando venceu a primeira eleição – ou seja, a manutenção das linhas estabelecidas em 2003. Assim alcançou os 11 milhões de votos e um novo mandato.
É a economia, papá
Berta Pinto vive em Pilar, região metropolitana de Buenos Aires. É a mãe de Esmeralda, de 8 anos, que recebe o Benefício Universal por Filho (AUH, na sigla em castelhano). São 220 pesos ao mês (em torno de R$ 90) por criança cujos pais estejam desempregados ou trabalhando no mercado doméstico sem registro. São 4,5 milhões de crianças e adolescentes até 18 anos em todo o país, pouco mais de 10% da população. De acordo com o Centro de Investigação e Formação da República Argentina, ligado à Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), entre 2009, início do programa, e 2010, a taxa de pobreza extrema foi de 6,6% para 3,2% – que significa 1,4 milhão de indigentes a menos. A taxa de pobres caiu de 24,8% para 21,6% da população. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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AMÉRICA LATINA “Sou mãe solteira, conseguir trabalho é superdifícil”, conta Berta. “Às vezes não podia comprar nada. Agora compro o básico.” Não é preciso recorrer a um especialista para entender o ciclo criado pelo benefício. A injeção de quase 1 bilhão de pesos ao mês na economia melhora o consumo, a produção, o nível de empregos, de arrecadação de impostos, e permite ao Estado ampliar investimentos sociais. Em pesquisa divulgada pela UBA na semana seguinte à vitória de Cristina, 53% disseram que a situação econômica pessoal é melhor do que há quatro anos, ante 16% que a veem pior e 32%, igual. Foi de 54,1% a votação conquistada pela presidenta, a maior adesão desde a redemocratização, em 1983, e a maior distância para o segundo colocado, Hermes Binner, governador da província de Santa Fé, que alcançou 16,8%. A vantagem de Cristina para Binner foi de 8.179.394 votos, a maior diferença, em termos absolutos, da história da Argentina. Estabilidade econômica é um bem precioso em uma nação marcada por traumáticos fracassos. “Começou uma tarefa de reconstrução do país desolado pelas políticas neoliberais”, afirma Pablo Echeverry, integrante de um grêmio de trabalhadores que há décadas espera por um governo peronista – Carlos Menem, o presidente da “década infame”, embora pertencesse ao Partido Justicialista, o mesmo de Perón, de Cristina e Néstor, teve atuação catastrófica.
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NOVEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL
PABLO BUSTI
Néstor assumiu uma nação despedaçada. Um ano e meio antes a população exigira a saída do presidente Fernando de la Rúa. Em uma semana, cinco outros se sentaram na cadeira presidencial. Ficou EduardoDuhalde, velho cacique político que se mantinha como o único com alguma chance de calma social. Nas eleições convocadas para 2003, apresentaram-se 21 candidaturas. No primeiro turno, venceu Carlos Menem, que deveria disputar a rodada final com “a marionete de Duhalde”, como insistiam em chamar a Néstor Kirchner. O ex-presidente, ao deparar com uma rejeição superior a 70%, desistiu. Kirchner assumiu a Casa Rosada com respaldo de apenas 22% do eleitorado. Pior, em um momento em que a maioria
ALEX MECKERT
País normal
PARTICIPAÇÃO Martín: “Néstor e Cristina recuperaram essa vontade de estar aqui”
CAMINHO POSITIVO Gabriel: “Há dez anos estávamos no meio do nada, mortos”
via com absoluto descrédito a classe política tradicional – da qual, não nos enganemos, o presidente foi parte. Havia ainda a descrença de que pudesse exercer o governo livre da interferência de Duhalde, e o histórico lhe pesava: havia sido o governador da província de Santa Cruz, no extremo sul do continente, insignificante na política argentina. “Em 2003 votei em Néstor contra Me-
nem”, conta Soledad Allarde, professora do ensino médio, enquanto segura uma grande boneca de Cristina. “Hoje voto em quem quero, e não contra quem não quero.” Soledad passou a militar há cinco anos, quando notou que se sentia representada por uma promessa de campanha assim sintetizada: “Por um país normal”. Pode parecer pouco, mas foi a leitura precisa do momento de uma nação.
PABLO BUSTI
NOVA REALIDADE Maria Rosa: “Lembro no governo Menem que as pessoas esperavam o fim da feira para comer o que sobrava no chão”
qual os filhos possam aspirar a uma vida melhor que a dos pais, à base de esforço, capacidade e trabalho”, afirmava Néstor no discurso da posse, em 25 de maio de 2003. Nada mais “normal” que a ascensão calcada no esforço do trabalho.
PABLO BUSTI
AÇÃO CONSTRUTIVA Soledad: “Hoje voto em quem quero, não contra quem não quero”
PABLO BUSTI
Uns demônios
POLÍTICAS NEOLIBERAIS Pablo: “Começou a tarefa de reconstrução de um país desolado”
O voto na Frente para a Vitória era, enfim, uma manifestação de desejo de não ruptura da democracia representativa, ponto caro a uma sociedade que, em sete anos de ditadura, perdera 30 mil dos seus; e outros tantos em tantos outros episódios, do genocídio de indígenas na Patagônia à repressão policial de dezembro de 2001. “Trata-se, então, de fazer nascer uma Argentina com progresso social, na
O Pinguim prometia ainda fazer as coisas aos poucos, sempre mantendo a par dos fatos a população “sofrida”, vítima maior de uma década de neoliberalismo. Néstor elevava-se aos pré-requisitos peronistas, assumindo-se um gradualista, seguidor da ordem, sem mudanças bruscas. E pragmático: surge o problema, resolva-se, sempre que possível pelo caminho melhor às camadas mais baixas. “A única verdade é a realidade”, afirmava, retomando outra máxima de Perón. Na ocasião, a pobreza atingia 51,7% da população da Grande Buenos Aires, e 25,2% estavam na miséria. No primeiro semestre de 2011 eram, respectivamente, 8,2% e 2,4%. O desemprego, somado à desocupação (itens que na Argentina têm definições diferentes), era de 31,6% em 2002, ante 16,7% neste ano. A dívida externa alcançava 150% do Produto Interno Bruto, hoje corresponde a 37,2%. A dependência em relação ao Fundo Monetário Internacional (FMI) era tamanha que no governo de De la Rúa cogitou-se colocar um representante da instituição dentro do Ministério da Economia. “O Fundo estava contra quase tudo o que fazia o governo, desde aumentar os salários até ampliar a cobertura dos aposentados”, recorda Felisa Miceli, presidenta do Banco da Nação no começo do governo de Néstor e ministra da Eco-
nomia entre 2005 e 2007. “Éramos uns demônios, o que a mim divertia muito.” Para ela, Cristina acertou ao manter a linha de desendividamento e de superávit fiscal, sem entrar em novos créditos internacionais, o que agora vai lhe permitir pensar soluções de longo prazo. Maria Rosa Castillo, moradora da Grande Buenos Aires, descreve diferenças entre estes primeiros anos de século 21 e os últimos do século passado. “Lembro no governo de Menem que as pessoasesperavam o fim da feira, aqui perto, para comer o que sobrava no chão. Os trens iam para a capital vazios. Hoje estão cheios.” Aos 51, Maria Rosa é uma das jovens de La Cámpora. Entrou na organização há um ano, por incentivo da filha, que resolveu ser militante após a inesperada morte de Néstor. O episódio foi aglutinador das forças sociais argentinas, mas alguns o empregaram como forma de desmerecer o voto em Cristina. Antes, Néstor era o malévolo articulador de políticas clientelistas e Cristina uma débil administradora a serviço dos interesses do marido. Ledo engano o de quem viu na morte a pá de cal no kirchnerismo. A presidenta assumiu o papel de fortaleza, reuniu os setores afins a seu governo, tomou o comando do Partido Justicialista e conduziu o processo eleitoral exitoso no qual, diga-se, valeu-se da tragédia pessoal, em discursos e em inserções publicitárias. Em tempos de internet, vale a pena colocar lado a lado os áudios dos discursos de Eva Perón e de Cristina. Embora o conteúdo das falas de Evita seja mais direcionado ao confronto, Cristina não deixa de dar estocadas, e retoma com força o estilo peronista do sofrimento, do governante a quem atrapalham forças maiores, do materno protetor de uma população golpeada por oligarcas. A referência constante ao “povo sofrido” e a transformação do papel simbólico da Praça de Maio, de ponto de repressão em local de encontro e celebração de conquistas, são parte do pacote. “Recordo essa praça em momentos de adversidade, e agora me emociona a juventude que compreendeu que esse é um governo que trabalha pelo presente, e muito mais pelo futuro”, discursou a presidenta a uma praça repleta, após a vitória. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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PABLO BUSTI
AMÉRICA LATINA
KIRCHNERISMO La Cámpora, organização criada em 2003, dá sustentação ao governo, além de atrair jovens antes desiludidos com a política
Atílio Borón, professor do Programa Latino-Americano de Educação a Distância em Ciências Sociais e pensador marxista, considera um fenômeno importante a ser observado, desde a morte do presidente, a emergência da juventude como eixo de sustentação política de Cristina, dividindo espaço com sindicalistas, coluna vertebral do peronismo clássico. “Ela soube capitalizar isso muito bem, facilitada pela burrice fenomenal dos opositores.”
Desorientados
Rosa está perdida em Buenos Aires. Falta pouco para o fechamento das urnas, e ela ainda não se decidiu. “Não encontro alguém que me represente. Voto neles, e o que dão a mim?” Síndica de um prédio, Rosa considera-se afetada pelas políticas do atual governo, em especial o Benefício Universal por Filho, que faz com que “um pobre” sem trabalho e com cinco filhos receba o mesmo que ela. “Preciso trabalhar para ganhar um salário e para pagar os planos sociais dos outros.” Não quer ser fotografada nem dizer o sobrenome. Está atrasada, é melhor deixar que se vá. Em 2009, a derrota nas eleições legislativas colocou o governo contra as cordas. Antes havia tido início a crise com agricultores por conta das taxas cobradas 32
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sobre as exportações do setor, que cresce desde 2003, em meio à alta global dos preços de commodities. A crise levou a desgastes, e Cristina perdeu a maioria. Antes de assumirem os novos deputados e senadores, no entanto, o Congresso aprovou as reestatizações da previdência e da companhia Aerolíneas Argentinas, a reforma política e a Lei de Meios de Comunicação. “Desconcertou a oposição. Entre a vitória eleitoral e a posse, em dezembro, haviam encontrado um panorama completamente mudado, e o poder que supunham ter conquistado nas eleições se desfazia”, diz Reynoso, da Flacso. Na campanha, a falta de projetos da oposição deu a tônica. Acabar o Benefício Universal por Filho? Conceder nova anistia aos repressores? Mexer na Lei de Meios e devolver o poder ao grupo Clarín? Tímidos em se posicionar sobre questões-chave, os opositores dividiram-se entre os que fizeram campanha pensando em 2015 e os que assumiram o papel do caricato. Não por acaso, a poucos dias das eleições 63,5% dos entrevistados não encontravam alternativas na oposição. O governador de Santa Fé, Hermes Binner, salvou-se e tenta projetar-se para o futuro. O estudante universitário Gabriel Piconeviu nele possibilidade de demons-
trar insatisfação com a manutenção, pelo kirchnerismo, de velhas práticas políticas argentinas, como os caciques locais e certos episódios de corrupção, o que não o impede de reconhecer as boas práticas do governo. “Há dez anos estávamos no meio do nada, mortos, e eles de alguma maneira encaminharam o país a uma direção positiva.” “Aprofundar o modelo” foi a máxima repetida durante a campanha vitoriosa, seja lá o que isso signifique. Saúde, educação, violência e habitação são apontados pela sociedade como as principais pendências. Na área econômica, alicerce para dar-lhes suporte, há preocupação com a crise que afeta Estados Unidos e União Europeia – se abalar a China, chegará aqui e respingará lá. Para uma proteção de longo prazo, é fundamental diminuir a dependência em relação à soja, que responde por 23% das exportações e ocupa quase 60% da área total plantada. Os efeitos são complexos: menos produção das culturas tradicionais argentinas, ou seja, alimentos e pecuária, empurrando para cima a inflação, outra grande pendência. Nesse caso, a pressão sobre os preços provém também do aumento da demanda. Com o crescimento econômico e a redução do desemprego, as indústrias estão próximas de operar com 90% da capacidade instalada, mas o investimento em maquinário para aumentar a produção está no mesmo nível de 2005, e abaixo do fim da década de 1990, quando a falsa estabilidade da era Menem levou empresários às compras. “Eles têm muito medo ainda de investir e acabar perdendo, como nos anos 1990, e isso na vida de um empresário não é muito tempo”, analisa Felisa Miceli. O quase-jovem Martín D’Alessandro tem a esperança de que Cristina consiga “aprofundar o modelo”, garantindo a retomada de uma industrialização que, para ele, teve início com “o General”, mas parou com o golpe de 1976. Ele acredita que o segredo é continuar com o projeto atual e, com o tempo, ainda mais gente vai se reconhecer representada pela presidenta. “Conheço casos em que são peronistas e não estão sabendo ainda, mas a maioria da população está se dando conta, e é por isso que ganhamos por larga vantagem.” Martín não é de esperar sentado. E Cristina vai por quatro anos mais.
LaloLeal
O direito de ver
Q
uem viveu a ditadura militar no Brasil sabe o que é censura. Jornais publicavam poemas e receitas de bolo no lugar dos textos cortados pelos censores. Nas redações, temas proibidos estavam nos murais para nenhum jornalista tocar naqueles assuntos. Felizmente isso acabou, e o Estado agora é responsável pela garantia da liberdade de expressão. Mas, se a censura oficial deixou de existir, a empresarial cresceu de forma assustadora. Hoje quem impede o brasileiro de saber muito do que ocorre no país e no mundo são os grandes grupos de comunicação. Mostram um recorte da realidade produzido segundo seus interesses e escondem o que não lhes convém. Como são poucos, com orientações editoriais semelhantes, a diversidade de notícias e de interpretações da realidade desaparece. Em política e economia, a prática é diária. Basta ver o alinhamento do noticiário com os partidos conservadores e a exaltação da eficiência do mercado. Na televisão, a censura vai mais longe e chega até ao esporte. De disputas esportivas, quase todas as competições foram transformadas em programas de televisão, subordinados aos interesses comerciais das emissoras. Tornaram-se produtos vendidos por clubes e federações às TVs que, em muitos casos, compram e não transmitem os eventos, só para evitar que os concorrentes o façam. Há um caso exemplar ocorrido em Pernambuco. Enquanto a Rede Globo transmitia para o estado jogos de clubes do Rio ou de São Paulo, a TV Universitária local colocava no ar as partidas do campeonato estadual. Claro que estas despertavam maior interesse, elevando a audiência da emissora. A Globo, sentindo-se incomodada, comprou os direitos de transmissão do campeonato para não transmiti-lo, retirando do torcedor local o direito de ver seu time jogar. Quando passamos do plano regional para o internacional a disputa fica ainda mais acirrada, como vimos com o recente duelo travado entre Globo e Record em torno dos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara. Salvo em raros momentos, a emissora da família Marinho nunca deixou de ditar a pauta esportiva nacional. Além das transmissões de eventos, seus noticiários foram sempre contaminados por exaustivas coberturas das competições. Quantas vezes o Jornal Nacional dedicou
O Pan do México ficará na história da TV como o momento de ruptura do monopólio das transmissões esportivas no país. Mas o direito do telespectador à informação ainda é usurpado mais tempo à seleção de futebol ou a uma corrida de carros do que a assuntos de relevante interesse político ou social? Com a ascensão da Record, o quadro mudou. E o Pan do México ficará na história da televisão brasileira como o momento de ruptura do monopólio das transmissões esportivas no país. Se há o lado positivo da entrada de um novo ator em cena, há a constatação de que o direito de ver segue sendo usurpado do telespectador. No caso da Globo, seus decantados “princípios editoriais”, como “tudo aquilo que for de interesse público deve ser publicado, analisado, discutido”, foram, outra vez, ignorados. Nos primeiros dias de disputa o Pan não existiu para a Globo e, depois, ficou restrito a míseros segundos no ar. Na concepção da emissora, por ser transmitido pela concorrente, deixou de ser de “interesse público”. Por outro lado, a Record não fez por menos. De olho na audiência, em muitos momentos não transmitiu os jogos – e só ela podia fazer isso – para manter no ar sua programação normal. Frustrou inúmeros telespectadores que, num domingo, foram em busca do Pan e se viram diante do Gugu. A aplicação das leis de mercado, sem controle, ao mundo da TV é a causa desse desconforto. Não há como mudar a situação sem a interferência do Estado, colocando algumas regras para proteger o telespectador. No caso específico do futebol, o governo argentino resolveu o problema: comprou os direitos de transmissão dos jogos do campeonato nacional, passando a transmiti-los em sinal aberto pelo Canal 7, a emissora pública do país. Não é uma boa ideia para começar? REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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ENTREVISTA
O melhor ataque O argentino Rubén Magnano ensinou nosso basquete masculino a defender e vencer. Para ele, o esporte tem de ser um agente da educação Por Paulo Donizetti de Souza e Vitor Nuzzi
S
ão 15h10 e o técnico da seleção brasileira de basquete, Rubén Magnano, se desculpa com a reportagem. Eram 13h30 quando calculou que poderia “pagar umas contas” numa agência bancária ali perto e voltar às 14h, como combinado. Com a simplicidade de um “caipira”, como se define, não quis mandar um portador fazer o serviço, tampouco pleitear atendimento VIP. Não imaginava que ir a um banco fosse tarefa mais árdua do que devolver o basquete masculino do Brasil à Olimpíada, algo que o país não conseguia desde 1996. Natural da província de Córdoba, na Argentina, Magnano desistiu de ser um jogador medíocre, segundo ele mesmo, para tentar ser professor. Acabou virando técnico, e dos bons. Dirigiu por várias temporadas o time do Atenas de Córdoba e o Boca Juniors, comandou equipes da Itália e da Espanha, o país mais competitivo depois da NBA. Em 2002, à frente da seleção de seu país, conseguiu um trunfo inédito sobre o dream team norte-americano e terminou o Mundial com a prata. Dois anos depois, alcançou o ouro nos Jogos de Atenas. E desde janeiro de 2010 é o técnico da seleção masculina do Brasil. Sob seu comando, o time carimbou o passaporte para Londres 2012 – e até lá, afirma, nenhum jogador está garantido nem vetado. Ou seja, as portas para as estrelas Leandrinho e Nenê, que não quiseram jogar o Pré-Olímpico, não serão fechadas por antecipação. Na hora certa, vai chamar quem julgar melhor para o time. A vaga foi conquistada em setembro, em Mar del Plata, e 40 dias depois, com apenas parte do grupo, Magnano embarcou para o Pan-Americano de Guadalajara, onde o Brasil jogou quatro partidas em quatro dias e terminou em quinto. Um dia antes de viajar, concedeu esta entrevista. Fala de sua paixão pelo Belgrano, time de Córdoba que mandou o tradicional River Plate para a segunda divisão do futebol argentino, de seu desejo de recuperar o prestígio do basquete brasileiro entre os jovens e sobre a importância de o país, mais que preparar sua estrutura física para a Copa de 2014 e os Jogos de 2016, aproveitar essas oportunidades para deixar um legado humano, que faça do esporte um agente da educação. 34
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Você já se sente completamente adaptado ao jeito brasileiro de jogar?
Não tive tanta dificuldade na preparação do time para jogar, e isso se deve ao fato de que muitos jogadores atuam foram do país, com filosofia diferente, política diferente, muito mais próxima do que gosto no basquete, principalmente o europeu. A força na defesa nunca foi o forte do basquete do Brasil. É preocupação sua criar a mentalidade de que é preciso marcar, não só atacar?
Eu tenho 100% de preocupação: 50% no aspecto defensivo e 50% no ofensivo (risos). Meu foco está muito mais no aspecto defensivo. Isso dá uma personalidade ao time, uma solidariedade, um companheirismo que depois se transmite à parte ofensiva. Não podemos esquecer esse aspecto do jogo. Principalmente na base. Porque existe uma lei de oposição. Quanto maior oposição você sofre, maior crescimento ofensivo você vai ter de aprender, e quanto maior é o poder ofensivo mais você tem de melhorar sua defesa para poder melhorar seu poder ofensivo. E assim, constantemente, vamos crescendo: ante uma maior oposição, melhor será sua qualidade competitiva. É uma equação lógica. E uma boa defesa desequilibra o adversário...
Sem dúvida, a ideia é não deixá-lo jogar como ele gosta, é retirar-lhe o timing do jogo. Em vez de pegá-lo a seis metros, pegá-lo a nove metros da cesta; em vez de ter 180 graus para jogar, fique só com 90 graus. Isso vai diminuir sua quantidade de passes e a qualidade ofensiva. Quando você foi convidado para dirigir a seleção brasileira, tinha noção de como o basquete estava desorganizado, politicamente e tecnicamente?
Eu tinha outra avaliação. Fiquei bastante surpreso quando percebi que ia precisar andar, viajar pelos estaduais, para a liga, para as olimpíadas escolares. Fiquei um pouco assustado, acho que o Brasil tem de trabalhar muito sua estrutura para melhorar o esporte.
defesa Nenhum jogador ou treinador está acima da seleção. Ninguém tem vaga garantida em Londres nem há vetos por antecipação. Vai quem for melhor para o time. Vou me apegar a essa decisão
DIVULGAÇÃO/CBB
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ENTREVISTA E espero que essa vaga olímpica desperte maior vontade pela seleção. E não falo somente dos meninos. Acho importante que os dirigentes, que são os que abrem as portas dos clubes, deixem fluir o basquete. Isso vai proporcionar maior quantidade de meninos, de garotos jogando basquete, e nessa base podemos encontrar mais gente de qualidade. É matemática. Agora, devemos aproveitar, e não ficar acomodados. Devagarzinho se pode continuar olhando para a frente, com muito comprometimento de todos os departamentos do basquete. Você é detalhista, se preocupa com números desde o primeiro segundo até o final do jogo? É obcecado em tirar o máximo de cada um?
Eu me considero muito detalhista. Acho que não obcecado, porque a obsessão tira a criatividade. DeEu me vemos caminhar pelo limite, na linha que separa o considero perfeccionista do obcecado. Você entende quando muito digo isso? O jogador tem de usar a inteligência padetalhista. ra administrar esse tipo de coisa. O basquete é um Acho que não esporte em que nos detalhes, nas coisas benfeitas, obcecado, você encontra as vitórias. Estou cobrando sempre porque a muita, muita concentração, muita atenção. Eu fico obsessão tira bravo quando tenho de repetir duas vezes uma coia criatividade. sa, porque, se você está concentrado, motivado e tem comprometimento, só preciso falar uma vez. Agora, Devemos eu não tenho nenhum problema em repetir se um caminhar jogador me diz: “Eu não entendi, Rubén”. Não tem pelo limite, problema explicar várias vezes. Mas preciso saber na linha que que ele não entendeu. Não gosto que digam que sim separa o perfeccionista se não entenderam, porque depois vão errar no jogo. Essa sinceridade, essa confiança é o que eu busdo obcecado co transmitir, para poderem falar quando devem, e serem corajosos em tomar decisões sem ter medo de errar. Errar é parte da aprendizagem. Você formou um grupo disposto, dedicado e concentrado. Tem receio de tirar alguém para encaixar o Nenê, o Leandrinho? Mexer no grupopode desestruturá-lo?
Primeiro: acho que é muito importante ter um grupo. Para mim, o grupo tem a ver com os gostos, com as pessoas se darem bem umas com as outras, saírem junto. Mas isso não quer dizer que atuem como uma grande equipe. Já houve grandes grupos que não atuaram como grandes equipes e grandes equipes que não atuaram como grupos. Ótimo seria ter um grupo que dê certo dentro de uma equipe... Você me falou de nomes específicos. Nenhum jogador e nenhum treinador estão acima da seleção brasileira. Eu, como treinador, os dirigentes, como dirigentes, vamos fazer o melhor possível para a seleção do Brasil. Ninguém tem vaga garantida nos Jogos. Quem entra é porque é o melhor para o time. Eu vou me apegar a essa decisão. E não estou falando de nomes. 36
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Ninguém está garantido nem vetado em 2012?
Isso. É certo que estamos em outubro, eu não me pus a pensar nem na próxima convocação. Já vivi com outras seleções casos em que um cara teve de ficar pelo caminho para que outro ingressasse. Infelizmente, um treinador não pode lidar com sentimentalismo. Tem de ser objetivo, tomar decisões e arcar com as consequências dessas decisões. Senão, não pode ser treinador. Há muita polêmica antecipada. Horas depois de termos conseguido a vaga para Londres já se estava polemizando em relação a jogadores que haviam pedido dispensa, em vez de nos concentrarmos na conquista da vaga. Não acreditava que estavam me perguntando aquilo. Num momento especial, em que você vê que a semente está germinando bem, em vez de dar atenção a essa germinação, se dá a outra coisa. Se tem de ir um cara, vai; algum irá e outro não. E ponto. Nenhum sul-americano jamais chegou à posição em que a Argentina se encontra na Federação Internacional de Basquete, terceira no ranking. O que levou o país a esse patamar?
Foram muitas variáveis. Na estrutura argentina, é enorme o número de clubes que jogam basquete. Existem milhares, de infantil a adulto. Então se constitui uma plataforma de quantidade de meninos e jovens que jogam basquete, de onde saíram Scola, Ginóbili, Oberto, Sánchez... Tantos talentos. Outra variável importante foi a criação da liga nacional, há mais de 27 anos (a liga no Brasil tem menos de três), que desde o início foi muito federal, equipes do norte, do sul, do leste, do oeste, criando um bom espelho para toda a garotada. E um último passo sem o qual, provavelmente, a Argentina não teria se tornado o que se tornou foi o passaporte comunitário, jogadores migraram para as melhores ligas do mundo. Então, jogavam semanalmente – e eu falei antes sobre a lei da oposição, da competitividade – contra os melhores jogadores da Fiba (Federação Internacional de Basquete). O Brasil quer aproveitar a Copa e a Olimpíada para deixar um legado físico para as cidades. E quanto ao legado humano? Você vê algo sendo feito para estimular futuras gerações a praticar esporte?
Não tenho isso claro. Você pode fazer um estádio, uma quadra, um albergue, mas a verdadeiramatéria-prima de todas as sociedades são as pessoas. E falo de crianças e adultos que fazem esporte. Oxalá essas estruturas se encham de meninos que joguem diferentes modalidades. Assim como o arquiteto vai planejar um estádio, que os especialistas em educação, em esporte, planejem como levar essa gente a ocupar os espaços. E não falo só de esporte profissional. Falo do esporte como agente da educação. Oxalá tenhamos habilidade para ter praças esportivas cheias de meninos.
O futebol é outro universo, está em todas as partes, não tem concorrência. É um universo à parte de outras questões – sociais, psicológicas, financeiras –, do qual a gente vive, necessita. Mas, se formos inteligentes, podemos aproveitar o futebol dentro do eixo formador também, porque é um esporte belíssimo. Você gosta?
Gosto. Belgrano de Córdoba! Esse é o meu time.
É muito popular em Córdoba...
Em Córdoba, não, no país (risos).
Pelé ou Maradona?
Não vi muito o Pelé jogar. Acho que é diferente do Maradona, mas gostei muito do Pelé naquela grande equipe do Brasil no México em 1970. Acho que são tempos diferentes, jogadores diferentes. Eu vi a grande passagem de Maradona pelo Nápoli, quando vivi na Itália, e fiquei surpreso. Dizer que um é melhor que o outro é complicado. E hoje é o Messi?
Messi é um jogador diferente, assim como, convenhamos, o Neymar é diferente. E temos de aproveitar que são do nosso tempo e ter o prazer de vê-los jogar. No basquete brasileiro você vê surgindo também jogadores diferenciados? Vê uma fábrica de jogadores no Brasil?
Não gosto de falar de fábrica, é muito material. Digamos escola. Acho que o Brasil está enviando jogadores para diversas partes do mundo, Raulzinho, 19 anos, Rafa Luz, 19, Augusto Lima, 20. Alguns deles jogam na liga espanhola, a segunda mais importante do mundo, depois da NBA. Temos muitos nos Estados Unidos, alguns jogando em grandes universidades. Há jogadores, mas teríamos de ter muito mais. Você vê a estrutura do basquete brasileiro sendo trabalhada para isso, os clubes estão caminhando para um sistema mais organizado ou ainda está uma bagunça?
Acho que estamos tentando ir devagar e em frente. Ainda falta. Precisa, primeiro, de uma estrutura que dê ao jogador uma qualidade de formação – que está devagar, mas está sendo boa –, e depois uma quantidade de competições por ano, para que ele possa evoluir. Estão tentando fazer alguma coisa, mas precisa mais. É preciso haver mais clubes praticando basquete. Você consegue identificar se a paixão do jogador é pelo esporte ou pelo sucesso?
Isso é muito difícil, muito difícil, mas o caráter da pessoa se manifesta claramente pelas suas atitudes, ainda mais num jogo. Então você observa pelas atitudes quem tem na sua frente. Não que faça diferença se ele quer virar jogador profissional, ou se quer jogar na NBA, mas a atitude mostra, às vezes, qual é a intenção do jogador. Isso não tem nada que ver com a seleção nacional, mas esse fator também se inclui, querer bem ao seu país, respeitar a sua camisa, a sua bandeira. Quando batem à porta do menino para chamá-lo a servir a seleção, faz parte que ele vá feliz, com comprometimento, orgulhoso por ter sido convocado.
FOTOS GERARDO LAZZARI
Na Argentina, os outros esportes também sofrem com a concorrência com o futebol?
Você queria ser um jogador de basquete...
Você conjugou muito bem o verbo (risos). Eu quis ser, mas não consegui. Era muito apaixonado por jogar, mas era apenas regular. Tem uma anedota pessoal, muito engraçada. Eu era jogador, o número 11 ou 12, e sabem para onde vão os 11 e 12? Para a ponta do banco. Num jogo, o treinador não gosta de um jogador em quadra, troca. O que está ao seu lado no banco entra, e o que sai vai para o fundo (fim da fila). Sai um, e todo mundo se desloca para o lado. Dali a pouco outro, e todos se movem um lugar de novo. No começo do segundo tempo, chegou a vez do Magnano ao lado do treinador. Ele vira para mim, bate a mão aqui na minha perna e diz: “E agora? Quem ponho na quadra?” (risos) Era como se tivessem atirado em mim. E pensei: isso não pode continuar assim... Ou ele não acreditava em mim, como jogador, ou pensava que o meu futuro era virar treinador e já estava me consultando. Eu creio que era a primeira coisa... Mas você provou que a segunda estava certa.
Isso foi importante, porque não deixei de lutar, outra coisa fundamental no basquete. Minha ideia não era ser treinador. Parei aos 27 anos para ser professor. Depois acabei pegando um clube, depois outro... Ah, tem outra anedota muito curiosa. Num treinamento de arremesso, o técnico pede para cada um arremessar mais ou menos da posição em que joga, e um cara senta-se no banco, pega a bola e “chuta” sentado. Perguntam: “O que está fazendo?” E ele: “Eu não jogo nunca mesmo, sempre estou sentado...” (risos) Meu começo foi assim. Mas tive bastante tranquilidade para tomar decisões em situações importantes da vida. No Pré-Olímpico, muitos argentinos torceram para o Brasil, porque torciam por mim. É incrível essa sensação.
Você pode fazer um estádio, uma quadra, um albergue, mas a verdadeira matéria-prima em todas as sociedades são as pessoas. Oxalá essas estruturas se encham de meninos que queiram fazer esporte
A imprensa brasileira alimenta a rivalidade Brasil x Argentina. Você lida bem com isso?
Mas isso faz parte, desde o futebol, contanto que manejemos com tranquilidade, isso dá cores às coisas... Bem, se me dão licença, agora, como bom caipira que sou, vou fazer uma sesta, porque eu sem a sesta não posso viver.
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CIDADANIA SUPERAÇÃO Rosilei: “Vida de preto não é fácil”
Males do racismo A discriminação é o principal motivo pelo qual os negros adoecem mais e morrem mais cedo que as outras parcelas da população brasileira Por Cida de Oliveira
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diabetes, a pressão alta, o excesso de peso e os cinco comprimidos que toma várias vezes ao dia para controlar a circulação e o açúcar no sangue não desanimam Rosilei Conceição de Melo. Aos 41 anos, ela não para. Trabalha diariamente na Prefeitura de São Paulo como auxiliar de enfermagem, é professora voluntária na rede de cursos pré-vestibulares Educafro, faz especialização em História da África e do Negro no Brasil e ainda um curso sobre a descolonização do continente africano. “Vida de preto não é fácil”, diz. Tanta atividade é uma compensação para recuperar os 25 anos que passou longe da sala de aula para ajudar no sustento da família. Sem contar o tempo para enfrentar
o ceratocone, uma alteração na córnea, que exigiu transplante. Com bolsa parcial do ProUni, formou-se em História aos 40 anos. O mestrado e doutorado estão nos planos. “Meu objetivo é contribuir para a conscientização do negro quanto à injustiça social da qual é vítima há tanto tempo”, explica Rosilei. Para ela, o caminho é seu trabalho voluntário e as aulas que pleiteia na escola pública, na periferia, onde acredita ser mais necessária. Rosilei sente na pele o tratamento diferenciado até mesmo nos postos de saúde, que devem acolher com a equidade pressuposta pelo Sistema Único de Saúde. Tal discriminação reflete o racismo institucional praticado nas estruturas públicas e privadas e nos meios de co-
Por que os negros adoecem Causas
Doenças
Geneticamente determinadas têm origem hereditária ou étnica, que tornam os negros mais suscetíveis
Anemia falciforme, pressão alta, diabetes e uma forma de deficiência de enzima hepática, a glicose-6-fosfato desidrogenase. Incidentes sobre outros grupos étnicos/ raciais também são mais graves ou de tratamento mais difícil quando acometem negros e pardos.
Adquiridas ou derivadas de condições socioeconômicas desfavoráveis
Alcoolismo, toxicomania, desnutrição, mortalidade infantil, abortos, anemia ferropriva, DST/Aids, doenças do trabalho e transtornos mentais.
Evolução agravada pela dificuldade de tratamento
Comuns em toda a população, são mais graves entre os negros devido às carências econômicas, sociais e culturais: doença coronariana, insuficiência renal crônica, cânceres e miomas.
Condições fisiológicas agravadas pelo contexto socioeconômico
Problemas no crescimento, gravidez, parto e envelhecimento. Esses quatro fatores biológicos, quando afetados pelas condições desfavoráveis, constituem situações de risco para o aparecimento de doenças.
GERARDO LAZZARI
Fonte: Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra
municação brasileiros. Depois de pressões do movimento negro, em 2006 o Ministério da Saúde reconheceu a existência da desigualdade étnico-racial na rede pública, ponto de partida para a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Aprovada no mesmo ano pelo Conselho Nacional de Saúde, foi convertida em lei pelo Estatuto da Igualdade Racial em 2010, que entre outros direitos visa a ampliar o acesso dessa população aos serviços de saúde e incluir o tema na formação e educação permanente dos profissionais da área. É o racismo institucional que explica, por exemplo, por que a taxa de mortalidade materna é duas vezes maior entre as afrodescendentes. Ou por que a contami-
nação pelo HIV é também maior entre elas do que entre as brancas. “Os negros, quase 70% dos usuários do SUS, têm menor acesso e pior qualidade no atendimento. Os melhores equipamentos de saúde estão longe dos locais onde eles são maioria. E o racismo ainda dificulta a relação médico-paciente e compromete o tratamento”, aponta Mônica de Oliveira, gerente de projetos da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da Presidência da República. Segundo Mônica, pesquisas mostram isso na prática. “No parto, só metade das negras recebe anestesia. Os profissionais de saúde têm a ideia equivocada de que elas são mais resistentes a dor. O pré-natal, dificultado pela frequente falta de recursos para o transporte, é feito de maneira superficial porque muitos médicos têm nojo do corpo negro, o que desestimula muitas a continuar o acompanhamento”, relata, destacando ainda inúmeros casos de eclâmpsia nessa população, devido a uma suscetibilidade maior a pressão alta. Um dos resultados, como ela lembra, é o alto índice de mortalidade de mulheres na gravidez, no parto ou logo após. A redução das taxas de mortalidade materna, aliás, é o
único dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas, que o Brasil não conseguirá atingir até 2015.
Tratamento desigual
Uma pesquisa nacional sobre discriminação racial e preconceito, feita em 2003 pela Fundação Perseu Abramo, revelou que 3% da população brasileira já se senDESIGUALDADE Michely: razões biopsicossociais
CIDADANIA
Por que os negros morrem mais e mais cedo A população afrodescendente é a que mais morre por causas que pressupõem falta de assistência médica. Um relatório da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sugere que o preceito constitucional da Seguridade Social, de que a saúde é um direito de todos, não existe na prática. Entenda por quê: ■ Doenças circulatórias (pressão alta, problemas do coração e cerebrovasculares) Entre 2000 e 2005, a mortalidade por esses males aumentou mais entre os negros. ■ Doenças negligenciadas (típicas da pobreza) Em 2005, os negros e pardos foram os que mais morreram por malária, hanseníase, tuberculose, leishmaniose, esquistossomose e difteria. O número de óbitos por tétano, doença de Chagas e dengue também foi maior entre os homens negros. ■ Anemia falciforme A população negra compõe os 62,3% dos mortos pela doença de 1999 a 2005. Os óbitos por essa causa cresceram 46,1% no período, aumentando 119,4% entre os negros e 46,4% entre os brancos. ■ HIV/Aids Entre 1999 e 2005, a mortalidade cresceu intensamente entre os pretos e pardos. Hoje, a Aids é de seis a 10 vezes mais prevalente entre mulheres negras da periferia das grandes cidades. Em 2005, elas foram 72,4% mais afetadas do que as brancas. Em 2000, essa taxa era de 43,2%, o que mostra que as diferenças se acentuaram no período. ■ Causas não naturais (acidentes de transporte, de trabalho, suicídio e homicídios) Homicídios Entre 1999 e 2005, o total de homicídios no país subiu de 40,8 mil para 45,7 mil. O número de homicídios de negros e pardos cresceu 46,3%, passando de 18,8 mil para cerca de 27,5 mil. No período foram assassinados 3,3 negros por hora e menos de 2,3 brancos. Homicídios entre os jovens Em 2005, de cada 100 mil jovens assassinados, 134,2 eram negros e 66,8, brancos. De 2003 a 2005, caiu o número dessas mortes, mas a queda foi menor entre os negros. Acidentes por transportes Acidentes no transporte também matam mais os negros. Enquanto os brancos morrem na condição de motorista e carona, os negros são atropelados. Suicídio Em 2005, a taxa de suicídio entre os negros aumentou duas vezes mais que entre os brancos. Overdose de drogas Entre 1999 e 2005, quase 500 pessoas morreram por overdose, das quais 47,6% eram negras e pardas e 38,4%, brancas. Fonte: Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil/ Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Laeser/UFRJ)
tiu discriminada nos serviços de saúde. Entre as pessoas negras, 68% o foram no hospital, 26% nos postos de saúde e 6% em outros serviços. Em sua maioria, o agente discriminador foi o médico. E outro estudo, de 2004, ouviu usuários do serviço público de saúde no município do Rio de Janeiro. Os negros entrevistados relataram com maior frequência o trata40
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mento desigual por parte do médico, de recepcionistas e de enfermeiros. Por causa do preconceito e da desinformação, muitos creem que os negros são mais fortes, têm a pele mais resistente a rugas e a flacidez e os dentes perfeitos, que dispensam maiores cuidados. Na verdade, eles adoecem muito mais e morrem mais cedo. “As razões são
biopsicossociais. O racismo leva a outras consequências, à violência psicológica, transtornos mentais, alcoolismo, doenças sexualmente transmissíveis, Aids, doenças relacionadas ao trabalho”, enumera a psicóloga Michely Ribeiro da Silva, articuladora da Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra em Curitiba. Liderada pela Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra, em parceria com outras entidades do setor, a mobilização visa a despertar a sociedade para reconhecer e enfrentar o racismo, a discriminação e as desigualdades raciais que restringem o exercício do direito humano à saúde. A agenda deste ano, que segue até 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, tem como slogan “Saúde da população negra é direito, é lei: racismo e discriminação fazem mal à saúde”. Em todo o país, gestores, profissionais de saúde e lideranças comunitárias estão debatendo ações para combater o racismo institucional no SUS e implantar a PNSIPN nos estados e municípios. No último 27 de outubro, a Seppir e o Ministério da Saúde assinaram um protocolo de intenções para começar a tirar do papel a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. A luta é grande. “Enquanto há leis para reduzir acidentes de trânsito, que vitimam mais os jovens brancos, quase nada é feito para diminuir homicídios, principal causa de morte entre jovens negros. O que existe ainda está no papel”, afirma Michely. Bandeira antiga do movimento negro, a saúde começou a avançar em 1996, quando, devido a pressões do setor, o quesito raça/cor foi incluído nos formulários de Declaração de Nascidos Vivos e de Declaração de Óbitos. A partir de então, foi possível quantificar e qualificar a mortalidade por grupos populacionais. “Esses dados são fundamentais para orientar ações específicas de autoridades de saúde na criação de políticas públicas e de laboratórios, na produção e testes de medicamentos que atendam às necessidades dessa população”, aponta o sociólogo Luís Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde (IS), ligado à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. “Estamos apenas no começo de uma série de desafios que temos pela frente.”
PB
Atitude Por Marina de Souza. Foto de José Cruz/ABr
A terra e a cultura
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rasília foi palco de mais uma marcha nacional no dia 7 de novembro, Dia de Luta pela Regularização do Movimento Quilombola. Essas comunidades tradicionais vivem em diversas localidades do Brasil originariamente povoadas por remanescentes do período da escravidão. E hoje lutam pela titulação da posse de suas terras e por políticas públicas que lhes proporcionem condições dignas de vida e de preservação de sua cultura. Nos últimos anos, conseguiram avanços, mas não o bastante. Entre cerca de 2.000 presentes estava Laura de Jesus Braga, que viajou quase 20 horas desde Ubatuba, no litoral norte paulista, caminhou pela Praça dos Três Poderes, acompanhou audiências com gente do governo e do Senado. Reivindica a escritura da terra, direito a saúde, educação, estrada... A comunidade de Laura, Fazenda Picinguaba, conseguiu a certificação da terra, mas sofre por estar no Parque Estadual da Serra do Mar, área de preservação onde o quilombo está enraizado. “Não podemos pescar, construir, ter acesso à praia. Estamos perdendo nossa cultura, as famílias, os jovens estão indo embora”, contou.
Questões como essa foram levadas a integrantes da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Incra, Fundação Palmares e Conselho Nacional de Educação. Em algumas regiões, o descaso inclui perseguição e violência. A história do Quilombo Rio dos Macacos, em Simões Filho (BA), é marcada por ameaças. “Há 50 anos a Marinha veio para a comunidade, que tem 200 anos. Chegaram invadindo casas, batendo, matando. Hoje ainda impedem o acesso a saúde, a construção de casas e de escola”, contou a moradora Rosemeire dos Santos Silva, em audiência na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa no Senado. Os quilombolas defendem o Decreto nº 4.887, de 2003, que garante a titulação de suas terras. Uma ação do DEM no Supremo Tribunal tenta derrubá-lo. Existem 1.712 comunidades certificadas, e apenas 100 com papel passado. “A titulação potencializa as transformações. Começa pela segurança”, diz Ronaldo dos Santos, da coordenação nacional do movimento. Um grupo foi recebido pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, e entregou as reivindicações. “Esperamos que as coisas saiam do papel”, afirmou Laura. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
CULTURA
Luzes no passado A
Tata Amaral, grande premiada do Festival de Cinema de Brasília, não estudou Jornalismo nem História porque passou no vestibular sem ter ensino médio. O cinema brasileiro agradece Por Guilherme Bryan 42
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paixão pela arte cinematográfica, do Brasil e do mundo, fica clara diante dos quadros espalhados pelas paredes da produtora Tangerina Entretenimento, sociedade mantida pela cineasta paulistana Márcia Lellis de Souza Amaral, ou melhor, Tata Amaral, com a filha Caru Alves de Souza. Em um apartamento de dois cômodos de um pequeno prédio na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo, veem-se cartazes de vários de seus filmes com os de obras de autores como o mineiro Humberto Mauro. Basta conversar alguns minutos com a diretora para confirmar que somente tanto amor por um ofício justifica
esperar nove anos para concretizar um novo longa-metragem, mesmo já tendo outros três no currículo e sendo uma profissional reconhecida e elogiada. Esse foi o tempo consumido na produção de Hoje, melhor filme no Festival de Brasília em outubro e com estreia nos cinemas prevista para o primeiro semestre do ano que vem. Além do prêmio principal, Hoje venceu os de direção (Tata Amaral), roteiro (Jean-ClaudeBernardet, Rubens Rewald e Felipe Sholl), direção de arte (Vera Hamburguer), fotografia (Jacob Solitrenick) e atriz (DeniseFraga). E por que tanto tempo? “Há um problema muito difícil de administrar no finan-
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TALENTO RECONHECIDO Tata e a equipe de Hoje comemoram a premiação no festival de Brasília
ciamento de filmes no Brasil, atualmente, que tortura. Em todas as cadeias se tortuque são as parcelas. Eu ganho um edital ra. Todas as polícias e todos os bandidos e capto dinheiro em outros lugares, num torturam até hoje. Isso acontece na nossa sociedade e, assim como pinga-pinga que leva anos. a corrupção, para que seja Filmei com metade do meu erradicada no país, tem de orçamento porque chegou ser punida e, para isso, ser uma hora em que achei identificada.” que teria de ser desse modo”, explica Tata. “E tudo isso porque pressupõem que Coerência Essa defesa é condizente você vai levar o dinheiro e, com o perfil da jovem esa qualquer momento, pode não cumprir o comprotudante do Colégio Equimisso de entregar o filme. pe, fundado nos anos 1970 O fato de eu ter vários filpor professores de um curmes, um deles vendido para sinho pré-vestibular orgaUm Céu de nizado pelo Grêmio da Fia televisão, que rendeu uma Estrelas é losofia, Ciências e Letras da série, não tornou mais fácil Universidade de São Paulo captar do que no primeiro.” apontado (USP). A escola foi durante Hoje conta a história de como um dos muito tempo espaço de reuma ex-militante políti- melhores filmes ca que compra um aparta- brasileiros da sistência democrática nos mento com o dinheiro da década de 1990 anos do regime militar. Tata indenização recebida do foi contemporânea dos meEstado pelo desaparecimento do mari- ninos do Titãs e frequentava as festas ordo durante a ditadura. Antes de tocar a ganizadas pelo animador do centro acavida adiante, porém, ela precisa revisi- dêmico, Serginho Groisman. tar o passado. “O filme toma partido a Ali começou a fazer sua militânfavor da justiça e da verdade. Expressa cia política e integrou a organização de uma visão que a gente tem do Brasil, em esquerdaLiberdade e Luta, a Libelu – de que as pessoas querem esconder o passa- tendência trotskista. Também participou do porque não aguentam olhar para ele”, da reconstrução da União Nacional dos afirma a cineasta. “Nós nunca punimos Estudantes (UNE) e da União Brasileira nossos torturadores. Mas se a gente não dos Estudantes Secundaristas (Ubes). “O trata da tortura, não identifica e não dá trotskismo tinha uma militância em prol uma sentença para as pessoas que tortu- da igualdade e uma visão da arte como raram, é conivente com uma sociedade espaço de liberdade de experimentação.
DIFÍCIL RECOMEÇO César Troncoso e Denise Fraga, em Hoje: passado e impunidade REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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CULTURA E isso tinha muito a ver com o que eu acreditava. Literatura e Revolução foi um livro de cabeceira durante anos, pois é onde Trotski expõe a tese de que a arte não pode estar a serviço de uma mentalidade, um partido ou do Estado.” O primeiro contato mais efetivo de Tata Amaral com a arte foi no curso de Cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), do qual participou como ouvinte. Na época, 1982, fazia o supletivo para concluir o ensino médio – já que por falta desse diploma não pôde desfrutar da aprovação precoce nos vestibulares para Jornalismo e História, ambos na USP. “Em um ano e meio que fiquei lá na ECA, tinha muita greve e professor que não podia dar aula, outros que não eram muito bons na parte executiva e mais alguns que apareciam pouco porque estavam filmando. Mas estar lá e ter projetos me fez aprender uma profissão”, lembra. Na ECA, Tata Amaral conheceu o futuro romancista Fernando Bonassi, com quem estabeleceu longa parceria, iniciada em Um Céu de Estrelas, adaptação pa-
ra o cinema do segundo livro dele, Prova Contrária. Lançado em 1997, o filme foi premiado nos festivais de Brasília, Boston (Estados Unidos), Trieste (Itália), Créteil (França) e Havana (Cuba). “Sempre admirei muito o Bonassi pela narrativa forte e por trabalhar com uma situação única elevada ao máximo. Uma mulher rompe com o namorado porque quer viajar, e ele entra na casa dela para sequestrá-la. É o que o cineasta Carlos Reichenbach chama de ‘fiapo de história’.” Apontado muitas vezes como um dos melhores filmes brasileiros daquela década, Um Céu de Estrelas apresenta a narrativa reflexiva, o som como elemento narrativo e o espaço fechado, que a diretora retoma em Hoje. Antes de estrear com longa-metragem, Tata Amaral foi produtora e assistente de produção da cineasta Ana Muylaert e realizou três curtas-metragens com o então marido dela, Francisco César Filho: Queremos as Ondas do Ar, Poema: Cidade e Mude Seu Dial. Juntos, eles também tiveram a produtora Anhangabaú. “Para mim, os curtas foram importantes porque essa era a única forma de financiamento de
JAILTON GARCIA
Nós nunca punimos nossos torturadores. Mas se a gente não trata da tortura, não identifica e não dá uma sentença para as pessoas que torturaram, é conivente com uma sociedade que tortura
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ideias cinematográficas na primeira metade dos anos 1980. Naquela época, cinema não era nem profissão. Mulher dizer que queria ser cineasta era igual a dizer que queria ser marciana. Então foi incrível fazê-los, e eu os faço até hoje”, brinca.
Espaço interior
Depois de Um Céu de Estrelas, Tata Amaral filmou Através da Janela, de 2000. O filme conta a história de uma enfermeira aposentada, interpretada por Laura Cardoso, e seu filho de 24 anos, com quem mora, que passa a manifestar mudanças de comportamento. Mais uma vez, a importância dos espaços internos na composição da história aparece. “Eu lido com o espaço
INTERIORES Laura Cardoso é uma enfermeira que mora com o filho em Através da Janela
dramaturgicamente, como se fosse um personagem. Tenho sempre a preocupação de apresentá-lo pouco a pouco, criando histórias e códigos para ele”, explica a diretora. “Em Antônia, por exemplo, além de trazer a Brasilândia – bairro da zona norte paulistana – para a tela do cinema, havia a intenção de romper com o paradigma
de que sempre que se entra na periferia é para mostrar um lugar ameaçador. Ali é a casa das meninas, onde elas tiram o sapato e começam a conversar informalmente”, diz Tata, para quem a música também tem função na dramaturgia no filme, uma vez que os raps criados pelas protagonistas narram a história.
FOTOS DIVULGAÇÃO
NA TELINHA O longa Antônia rendeu minissérie de TV com produção independente
Realizado pela produtora Coração da Selva, que Tata Amaral manteve com Roberto Moreira e Geórgia Costa Araújo, Antônia envolve a trajetória de quatro garotas – Preta, Barbarah, Mayah e Lena, interpretadas respectivamente por Negra Li, Leila Moreno, Quelynah e Cindy – de um conjunto musical batizado de Antônia. Empresariadas pelo personagem interpretado por Thaíde, passam a cantar rap, soul, MPB e pop em bares e festas de classe média. O filme rendeu uma série de dez capítulos exibidos pela TV Globo, entre 2006 e 2007, realizada pela produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles. “Eu acho que urge a gente se dedicar à produção independente para televisão no Brasil. É um instrumento poderoso de divulgação de ideias e conceitos. Foi muito importante Antônia ter ido para a TV, pois, entre outras coisas, dois conceitos me nortearam para fazer o filme: a mulher negra não ser valorizada como tal e os personagens PPPs (preto pobre da periferia), depositários de tudo o que há de ruim no mundo”, analisa. Em 2007, o seriado foi indicado, nos Estados Unidos, ao prêmio Emmy, considerado o mais importante da televisão. “Eu via filas de meninas brancas de classe média se vestindo como a Negra Li, com flor no cabelo. Ali, a beleza da mulher negra serviu de modelo para as meninas jovens, e muitas Antônias nasceram naquele ano.” Já durante o longo processo de realização de Hoje, Tata Amaral fez o documentário O Rei do Carimã, que surge durante o enterro da mãe da diretora, em 2007, a partir de um relato feito por um tio. Segundo ele, o pai dela tinha muito dinheiro, mas precisou fugir ao ser responsabilizado injustamente por algo. E Tata também se dedicou à minissérie Trago Comigo, para a TV Cultura e SescTV, que concorreu a quatro prêmios Qualidade Brasil 2009. Nela, o protagonista, um diretor de teatro interpretado por Carlos Alberto Riccelli, não se lembra do passado e une vários jovens que improvisam a partir de pequenas histórias contadas por ele. “Esses três projetos se configuram como trabalhos que têm a mesma estrutura – personagens que tentam iluminar o passado individual ou familiar.” REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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FUTEBOL
A mais fiel do Brasil
Visite Recife e conheça a torcida do Santa Cruz, que mesmo disputando a quarta divisão do futebol brasileiro levou em média 40 mil pessoas por jogo às arquibancadas
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e a maior torcida no Brasil não está em Pernambuco, é lá que está a mais presente. Nos dois últimos anos, nenhum time do país levou mais fãs aos estádios do que o Santa Cruz. Detalhe: o time do Recife só disputou a primeira divisão nacional em duas oportunidades neste século, em 2001 e 2006, quando iniciou um inédito trirrebaixamento – indo parar na Série D, criada em 2009. Depois de amargar as três últimas temporadas na quarta divisão, no ano que vem o Santinha estará de volta à Série C. Mas, mesmo sem saber o que é subir um degrau nas divisões de acesso do futebol durante tanto tempo, foi em 2010 e 2011 o campeão brasileiro de público, com médias de 40 mil torcedores por partida. Assim, o Tricolor do Recife, se não tem a maior torcida do Brasil, ninguém pode negar: tem a mais apaixonada. E se mostrou fiel mesmo vivendo um verdadeiro inferno. Compareceu, empurrou o time, enfrentou a gozação dos rivais Sport e Náutico e começou a dar a volta por cima. Já no primeiro semestre, venceu o estadualem cima do Sport. Agora vitorioso da Série D, matematicamente o clube começará 2012 podendo sonhar com o retorno à elite em 2014, ano de seu centenário. A cada queda, o Santa Cruz colocou mais torcedores nas arquibancadas. Em 2006, quando a equipe estava na primeira divisão, a média de público era de 10.578 46
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pessoas por partida. Este ano, registrou 40.514. No jogo em que asseguraria o acesso, por exemplo, 60 mil tricolores foram ao Estádio Arruda ver Santa Cruz x Treze da Paraíba, em 16 de outubro. “Foi um dos dias mais felizes da minha vida”, decreta o vigilante João Inácio da Silva, de 52 anos. E já sonha alto: “Mas o Santinha ainda não está no lugar dele, que é a primeira divisão. Meu time é grande, o mais querido de Pernambuco e um dos maiores do Brasil. O acesso aliviou um pouco a nossa tortura, mas ainda temos de voltar à Série A”. João conta que nunca mais quer passar pela tristeza que viveu nos últimos anos. Três quedas consecutivas é algo para lá de dramático. “É como perder um ente querido.” Mas o primeiro passo foi dado. “Agora é trabalhar com seriedade, dentro e fora de campo, para voltarmos à elite do futebol brasileiro”, discursa João, desde sempre vigilante. A jornalista Fabiana Coelho, quando pequena, era levada ao Arruda pelo pai, um tricolor aficionado que sonhava em ter um filho. Como a vida lhe deu três meninas, levava-as para assistir a todos os jogos mesmo assim. Hoje, aos 37 anos, Fabiana leva ao estádio o marido e os filhos, Anaís, de 9 anos, e João Pedro, 5. “Fui a vida inteira ao campo. Quando o João Pedro nasceu, os enfeites na maternidade eram todos do Santa Cruz: ‘Nasceu um tricolor’. A primeira foto é com a roupa do time. As crianças vão com a gente ao campo desde pequenas”, conta
RODRIGO LOBO/FOLHAPRESS
Por Fábio Jammal
BOBBY FABISAK/FOLHAPRESS
O mais querido
ANTONIO CARNEIRO/LANCEPRESS
CORAÇÃO A MIL No jogo em que asseguraria o acesso, 60 mil tricolores foram ao Estádio Arruda ver Santa Cruz x Treze da Paraíba
Fabiana, para quem a torcida do Santa Cruz é uma extensão da família. Fanático pelo Tricolor, o técnico em informática Antônio Carlos Freire, o Cajá, só começou a frequentar o estádio depois que se apaixonou por Fabiana, e não parou mais. “É ela quem me leva. Afinal, é ela quem dirige lá em casa”, diz, sem cerimônias. “Sempre vou ao Arruda e viajo muito para acompanhar o Santa Cruz fora de casa. Assim, também reforçamos os números de outros clubes quando jogamos no campo adversário. Na partida contra o Alecrim pela Série D deste ano,
por exemplo, colocamos 16 mil torcedores no estádio deles, em Natal (RN). A renda deu para quitar duas folhas de pagamentos da equipe adversária”, ressalta, com orgulho. Orgulho, aliás, é o que não falta aos torcedores do Santa Cruz. Afinal de contas, ser campeão de público entre os 100 times que disputam as quatro divisões do Campeonato Brasileiro não é para qualquer clube. “A torcida fez com que o time sobrevivesse. Tenho certeza que nem o Sport nem o Náutico resistiriam se vivessem o que o Santa enfrentou”, afirma Cajá. E, se ele considera “inexplicável” o sentimento que move tanta gente, Fabiana arrisca uma explicação: “Quando a equipe começou a cair, o torcedor passou a ir mais ao estádio e despertou a atenção da imprensa. A cada notícia que era publicada, a torcida queria encher mais e mais o estádio. Além disso, a internet e as redes sociais ajudaram na convocação: sempre tem alguém lançando um desafio para colocarmos mais gente no estádio, e a torcida corresponde”.
Os shows da torcida do Santinha fizeram até os rivais se renderem, segundo pesquisa publicada em 2 de novembro por uma faculdade do Recife (Fafire). Para 49,17% dos rubro-negros do Sport, o Tricolor tem a torcida mais querida. Já os alvirrubros do Náutico foram ainda mais firmes: 65,82% admitiram os tricolores como os mais apaixonados do estado. Os torcedores do Santinha já sabiam disso, quando apelidaram o time de “O Mais Querido”. E, sem falsa modéstia, 90,61% deles votaram em si. Mas o leonino Marcos Paulo Lima, de 25 anos, enumera razões “científicas” para contestar a pesquisa. “A torcida do Sport é maior e mais apaixonada. Mas o Santa Cruz vende ingressos mais baratos e no seu estádio cabe mais gente. Senão, o Sport colocaria mais torcedores no campo. Temos muito mais sócios, que ajudam de verdade no dia a dia do clube. E tem outra coisa: o time está na quarta e última divisão, ou seja, seus jogos não passam em nenhuma TV. Se o torcedor quiser ver, tem de ir ao estádio”, justifica Marcos Paulo, que se autointitula o típico torcedor chato do Sport. O jovem diz que “arretou” muito a torcida do Santa Cruz nesse período difícil. “Fiquei muito triste com o acesso do time à série C. Para mim, quanto pior, melhor”, tripudia. Chato, Marcos Paulo garante que já perdeu amigos, mas nunca as piadas, nem a compostura. “Já perdi amizades por causa das brincadeiras. Mas nunca fui de violência.” Mais polido, o bancário Adeílton Rego Filho, 49, também é o típico torcedor do seu time, o Náutico. O clube tem maior rivalidade com o Sport, o que pode ter aliviado a tortura dos tricolores com uma certa solidariedade alvirrubra. “A torcida do Santa já sofreu o que tinha de sofrer. Eu torço pro Náutico, mas torço para Pernambuco, e gostaria que os três times estivessem na primeira divisão”, afirma. Ele reconhece que a torcida do Náutico é menor que as do Sport e Santa Cruz, mas diz que em termos de paixão todas são iguais. “Todo mundo ama seu time com todo o coração. Agora, a tradição dos tricolores de comparecer ao estádio sempre foi maior. O Santa é considerado um time de massa e sua torcida é mais concentrada no Recife, o que ajuda a encher o estádio”, avalia. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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CurtaessaDica Por Xandra Stefanel
xandra@revistadobrasil.net
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Cena de O Garoto de Liverpool
História de um beatle O sonho de John Lennon era ser rei como seu ídolo Elvis Presley. O Garoto de Liverpool evidencia os dilemas do músico muito antes de ele se tornar um beatle. Criado pela controladora tia Mimi (Kristin Scott Thomas), Lennon, interpretado por Aaron Johnson, se desentende com as regras da escola e da
tia, com quem vive, e reencontra sua mãe, Julia (Anne-Marie Duff), que o apresenta ao rock’n’roll. O filme de Sam Taylor Wood conta a história real do mito e, como não podia deixar de ser, é regado com música boa. Em DVD.
Crônicas de uma década Os artigos que a psicanalista Maria Rita Kehl publicou em diversos veículos na última década podem ser conferidos no recém-lançado 18 Crônicas e Mais Algumas (Boitempo Editorial, 160 pág.). Um dos textos é o famoso “Dois pesos”, publicado por O Estado de S. Paulo um dia antes da eleição presidencial no ano passado, sobre a desqualificação dos votos dos pobres – e motivo de sua demissão pelo jornal. Crônicas e artigos do livro deixam claro o caminho que Maria Rita Kehl fez e faz para desvendar os sintomas sociais, mesmo aqueles ainda pouco compreendidos. R$ 30.
Diversidade indiana Um país com 1,21 bilhão de habitantes, 200 etnias e mais de 20 línguas oficiais está em exposição no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro. A mostra com quase 400 peças retrata a grandiosidade e a diversidade da Índia. Já na entrada, o visitante esbarra na imagem do deus Ganesha ao lado de uma enorme escultura contemporânea de Ravinder Reddy, artista indiano que une o hinduísmo ao pop. Dividida em quatro grandes temas – homens, reis, deuses e contemporaneidade –, Índia traz à tona o passado e o cotidiano, a tradição e a modernidade. Rua 1º de Março, 66. De terça a domingo, das 9h às 21h. Grátis. Até 29 de janeiro. 48
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Elenco de Léo e Bia
Sonhos juvenis Chegou às locadoras em outubro o primeiro trabalho de Oswaldo Montenegro como diretor de cinema (confira a entrevista com o músico na edição 46 da RdB). A releitura de Léo e Bia, musical de sucesso na década de 1980 montado pela Oficina dos Menestréis, de Montenegro, foi filmada em um único cenário – a sala onde se reúne o grupo de teatro. E nisso está a dualidade dessa história que se passa em 1973, em plena ditadura militar: o local dá uma sensação tanto de refúgio como de claustrofobia. Com Paloma Duarte, Françoise Forton, Fernanda Nobre e Emilio Dantas, o filme é uma homenagem musical à amizade e aos sonhos.
Dentro de Chernobyl Os registros feitos in loco pelo artista e jornalista brasileiro Renato Negrão na Ucrânia resultaram na exposição Chernobyl/Pripyat: Vestígios de Existência, em cartaz até 18 de dezembro no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Textos, fotos, infográficos e mapas contam a história do acidente nuclear ocorrido em
Degustação de música
O jornalista Gustavo Schiezaro, de Campinas, fez seu primeiro programa de música ainda na faculdade. Era um especial sobre Gilberto Gil. Na época nem existiam os podcasts, arquivos digitais de áudio que podem ser baixados ou ouvidos na internet. Hoje, com tanta tecnologia barata e disponível, Gustavo grava – na cozinha de sua casa – o saboroso Sintonia de Gusta, um programa trimestral de música contemporânea. As canções são escolhidas de acordo com o tema da edição. Mas nem a periodicidade nem as regras são assim tão rígidas: “Sempre procuro trazer coisas novas dos quatro cantos do país, mas não é uma regra. Já fiz um programa com releituras de Beatles, feitas por gente como Ella Fitzgerald, Aretha Franklin, João Donato. Brinquei com versões japonesas, albanesas... Enfim, coisas interessantes com as quais as pessoas geralmente se surpreendem”, explica o produtor, que lançou em outubro a 10ª edição, com o tema Deleite. A próxima deve sair em dezembro. Essa e outras degustações estão em http://sintoniadegusta.podomatic.com.
1986, quando a Ucrânia ainda pertencia à extinta URSS. O ensaio fotográfico na cidade de Pripyat, planejada para os funcionários da usina, mostra o vazio e o abandono causados pelo desastre. Na Rua Pelotas, 141, Vila Mariana, de terça a sexta, das 7h às 21h, fins de semana e feriados, das 9h às 18h30. Grátis. REVISTA DO BRASIL NOVEMBRO 2011
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MouzarBenedito
Viva Noel Nutels! Tenho visto excomunistas tão anticomunistas que fico lembrando deles quando babavam de ódio de quem dissesse que a União Soviética não era o paraíso da classe operária
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ma parte da esquerda criticava o “socialismo de Estado” praticado na União Soviética, mas achava que o regime e o sistema evoluiriam rumo a um socialismo democrático, mais para um socialismo de verdade, e não que recuassem para um capitalismo selvagem. Diante de qualquer crítica, certos caras babavam de ódio, considerando-nos uns pervertidos a serviço da direita. Só que o discurso atual deles procura dar a impressão de que sempre foram críticos daquele tipo de socialismo e nós, que continuamos de esquerda, é que éramos os fanáticos defensores do regime. É muita cara de pau. Lembro que nem sequer se podia contar a eles qualquer piada sobre a União Soviética. Sempre citei para eles dois exemplos de comunistas bem-humorados, gozadores, divertidos e, nem por isso, menos de esquerda, que foram o glorioso Barão de Itararé e o médico Noel Nutels. Há uma piada daquele tempo que era motivo de briga – nem tem graça hoje, valia naquele contexto, mas eu ri quando ouvi. Um português resolveu abrir uma padaria em Moscou. Chegou lá num sábado. No domingo, foi passear pela cidade, viu uma fila enorme para entrar no Mausoléu de Lenin. Resolveu conhecer o tal mausoléu e ficou impressionado com o que imaginava que haviam gastado para construí-lo. Comentou com um sujeito ao seu lado: — Que desperdício de dinheiro! Com o que gastaram nessa porcaria eu abria uma rede de padarias em Moscou. O sujeito ao lado era da KGB, a polícia secreta soviética, e o destino do Manuel foi a prisão. Passou um ano na Sibéria, para “reeducação”. Lá, nos intervalos entre os trabalhos forçados, estudou a Revolução Russa. 50
NOVEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL
Quando voltou a Moscou, abriu a padaria e, para não ter mais problemas com a KGB, colocou na parede grandes fotos dos três maiores líderes da revolução: Lenin, Trotski e Stalin. Logo nos primeiros dias de funcionamento da padaria, apareceu lá um outro agente da KGB. Olhou as fotos e estremeceu quando viu a de Trotski. Virou-se para o Manuel e disse: — Tire a foto daquele porco da parede! Ingenuamente, Manuel perguntou: — Qual dos três? Mais dois anos na Sibéria. Aí o Manuel voltou, reabriu a padaria e procurou entender melhor como as coisas funcionavam na União Soviética. Para eliminar de vez qualquer risco, entrou para o Partido Comunista e cumpria tudo o que era esperado de um filiado. Até que faltou a uma reunião. Passados uns dias, entrou um membro do partido na padaria e perguntou: — Manuel, por que você não foi à última reunião do Partido? O Manuel não vacilou: — Baein... Se eu soubesse que era a última... Mais um monte de anos na Sibéria. Noel Nutels (1913-1973) nasceu na Ucrânia, que fazia parte da antiga União Soviética, veio para cá e tornouse um grande brasileiro, totalmente dedicado a resolver problemas de saúde da população, especialmente dos índios. Viveu mais entre eles do que na “civilização”, e muita gente pensava que ele era antropólogo. Certa vez, numa festa no Rio de Janeiro, uma daquelas mulheres da dita alta sociedade, emperiquitada e cheia de joias, foi conversar com ele: — Noel, você não tem medo de ser comido por aqueles antropófagos? Noel Nutels sorriu e respondeu: — Minha senhora, faz tempo que, no Brasil, ninguém come ninguém por via oral.
Nutels! Viva Noel PB