Revista do Brasil nº 066

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BETH CARVALHO Seu samba está de volta e esbanja energia

RIO DE JANEIRO A Rocinha, entre a tensão e a esperança

EDUCAÇÃO Escolas sem quadras no país da Copa

nº 66 dezembro/2011 www.redebrasilatual.com.br

DILMA, ANO 1

Exemplar de associado. Não pode ser vendido.

Ela manteve o prestígio externo do país, a economia blindada e geriu as crises com prudência. Mas grandes temas nacionais e dos trabalhadores não avançaram

R$ 5,00



Agora o aluno financia o seu curso em uma faculdade particular e só começa a pagar 18 meses depois de formado. Com o Fies, Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, o estudante conta com uma série de vantagens e facilidades para financiar o curso que quiser: mensalidades fixas, prazo mais longo para pagar e juros ainda mais baixos. Em alguns casos, não precisa nem de fiador. E quem faz licenciatura pode pagar o financiamento ensinando na rede pública

Ministério da Educação

após se formar. Inscreva-se em qualquer época doG ano. O V E

R N O

F E D E R A L

Informe-se no portal do MEC – www.mec.gov.br – e faça a sua inscrição.

G O V E R N O

Ministério da Educação

F E D E R A L


Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Ueslei Marcelino/Reuters Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares www.redebrasilatual.com.br

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Jonisete de Oliveira Silva, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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DEZEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL


Índice

Editorial

12. Santayana

Lula foi astuto em sua sucessão e protegeu o país contra retrocesso

14. Brasil

Dilma mostra estilo próprio e um bom primeiro ano, com ressalvas

20. Política

Governo paulista e Assembleia Legislativa: ainda muito a explicar

22. Cidadania

Rocinha comemora o freio no poder paralelo. E aguarda o resto ANTÔNIO CRUZ/ABR

26. Educação

No país da Copa, 70% das escolas não têm uma quadra

30. Saúde

Médicos e especialistas aprovam a espiritualidade nas terapias

Aperfeiçoar a democracia: no Congresso, quem pode mais ainda não representa a maioria

Por um lugar na agenda

34. Entrevista

Beth Carvalho: a energia do samba pode melhorar o mundo

A

38. Memória

Os valores de Mário Lago, Nelson Cavaquinho e Assis Valente

GERARDO LAZZARI

Alan Forte, dançarino e professor de tango

40. Cultura

O tango invade o Brasil, ganhando adeptos na música e na dança

42. Diversidade

Refugiados acolhidos no Brasil promovem a mesa da integração

46. Viagem

Vapor do Vinho, passeio ao sertão da Bahia pelo Velho Chico

Seções Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Mário Lago

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imprensa oposicionista passou o ano tentando separar Dilma de Lula, enaltecendo supostas diferenças. Ele, bom de política e tolerante com as denúncias. Ela, boa gestora e implacável na “faxina”. A intenção é atribuir atos da Presidência à pessoa do chefe do Executivo, e não a um ideário político. Típico de uma oposição sem projeto e sem estofo para batucar outra tecla que não a da espetacularização das denúncias e da política – que, para alguns pauteiros, não é meio de buscar o bem da coletividade, mas de ajeitar a vida de alguns. A presidenta não perdeu a pose nem brigou com a mídia. Ao contrário, afagou-a. Nem por isso deixou-se pautar. E reiterou que um projeto maior, de uma nação prestes a se posicionar entre as mais ricas do mundo, passa pela radicalização do combate à miséria. De Antonio Palocci a Carlos Lupi, Dilma agiu com prudência e deu direito de defesa. Quando o custo do desgaste subia ao insuportável, vinha a queda, independentemente de as denúncias se comprovarem. A maioria, aliás, desaparecia do noticiário – um atestado de interesse exclusivo no desgaste, e não na “moralidade”. Fulminante a presidenta foi com Nelson Jobim, da Defesa, depois de ter sua autoridade desafiada. Na política externa, o Brasil manteve a linha de cobrar dos países ricos soluções para o que as crises causaram ao mundo. Privilegiou o diálogo com os emergentes e parceiros do continente e enalteceu o papel do Estado na redução das desigualdades. Internamente, a economia saiu de um crescimento espetacular em 2010 para um desempenho medíocre este ano. Com inflação controlada, emprego estável e ameaça de redução da atividade, o governo volta a estimular o crescimento. O mesmo êxito não se alcançou no desenrolar da agenda política. A Comissão da Verdade recém-criada não inspira confiança de que possa identificar e punir criminosos da ditadura. Questões caras ao movimento sindical estacionaram, como a reforma tributária. Em parte, esses temas permanecem amarrados porque a correlação de forças no Congresso permanece desigual. E a tão necessária reforma política, capaz de diminuir a influência do poder econômico e do coronelismo nos processos eleitorais, também não andou. Empacou, ainda, o projeto de regulação dos meios de comunicação. Assim, 2011 termina, para os movimentos sociais, com o desafio de qualificar suas ações no próximo ano para disputar um espaço mais efetivo na agenda dos poderes e na definição dos rumos do país. Feliz 2012. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

NACHO DOCE/REUTERS

www.redebrasilatual.com.br

Dentro das quatro linhas Trabalhadores da construção civil de obras da Copa do Mundo querem isonomia salarial e convenção nacional coletiva. O Mundial de futebol de 2014 é uma oportunidade para melhorar as condições do setor. http://bit.ly/rba_obras_copa

Antigatos

Da cana ao crack Aos 30 anos, Lindiana Soares aparenta ter 50. São os efeitos, segundo ela, das andanças e armadilhas da vida, fincada basicamente no trabalho do campo. “A praga da cidade grande pegou na roça”, diz. Migrante de Codó (MA), ela vai muitas vezes para a colheita com o marido. Ele a introduziu no consumo da pedra de crack há seis anos, durante uma safra difícil, com pouca produção. O consumo de drogas mais baratas alastra-se entre os canaviais e nas pequenas cidades do interior paulista, como Guariba (SP), a 338 quilômetros da capital. http://bit.ly/rba_cana_crack

RICKEY ROGERS/REUTERS

O procurador Jonas Ratier Moreno, escolhido para comandar a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério Público do Trabalho – criada em 2002 –, quer priorizar o combate ao aliciamento. Os “gatos”, que prometem bons salários e inserem o operário em uma rotina de trabalho extenuante e sub-humana, são a origem do problema. http://bit.ly/rba_aliciamento

Qual desgaste? O secretário de Meio Ambiente de São Paulo, Bruno Covas, primeiro admitiu ter recebido oferta de propina para uma emenda, e preferido recomendar doação da comissão a uma Santa Casa – nem pensar em denunciar o esquema. Depois, disse ter sido mal interpretado. Pré-candidato à Prefeitura de São Paulo, ele não teme desgaste pelo episódio. Novembro ainda assistiu à consolidação do ministro da Educação, Fernando Haddad, como pré-candidato único do PT. http://bit.ly/rba_bruno_covas

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WILSON DIAS/ABR

Na mira

Suspeitas de fraude na licitação da inspeção veicular obrigatória em São Paulo motivaram o Ministério Público a apresentar pedido de cassação do prefeito Gilberto Kassab (PSD). A Justiça não acatou o afastamento, mas bloqueou bens do prefeito, do secretário do Verde e do Meio Ambiente, Eduardo Jorge (PV), e de empresários. A administração foi alertada diversas vezes durante quatro anos. O prejuízo pode chegar a R$ 1 bilhão. http://bit.ly/rba_kassab

Gilberto Kassab

PB


Reportagem premiada

Os jornalistas João Peres e Virgínia Toledo, da Rede Brasil Atual, receberam menção honrosa na categoria reportagem por “Guerreiro de batina”, no 27º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, promovido pela seccional do Rio Grande do Sul da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS). O prêmio é um reconhecimento da qualidade jornalística da reportagem da edição 63, de setembro deste ano, da Revista do Brasil, mas acima de tudo à figura de dom Paulo. http://bit.ly/rba_premio_oab-rs

Manchada

O vazamento de petróleo não foi o pior do Brasil nem do mundo. Mas fez acender o alerta para a necessidade de punições rigorosas e ações preventivas mais firmes relacionadas a petroleiras. A norte-americana Chevron foi acusada de mentir ao perfurar o poço no Campo do Frade, na Bacia de Campos, próximo ao litoral norte do Rio de Janeiro. A companhia já responde na Justiça do Equador por desastre ambiental naquele país. http://bit.ly/rba_chevron

Da Zara ao McDonald’s

A mancha na imagem da espanhola Zara, do grupo Inditext, é apenas um dos problemas da marca. O Ministério Público do Trabalho negocia Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para assegurar valores e ações de reparação. Outra multinacional veio à berlinda: o McDonald’s tornou-se alvo de denúncias de ex-funcionários por exploração de trabalho escravo. http://bit.ly/rba_mcdonalds

Conselho tutelar Despreparo e uso político da função limitam o trabalho de conselheiros tutelares. A formação dos conselheiros é frágil e põe em risco a efetividade do trabalho, destinado a zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. A utilização da função como trampolim para a vida política também preocupa. http://bit.ly/rba_tutelares

ANTONIO CRUZ/ABR

DANILO VERPA/FOLHAPRESS

Lula (im)paciente

Em tratamento de um tumor na garganta, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz “bastante” política. De novo visual – sem cabelos, sem barbas mas com bigode e chapéu –, ele mantém conversas com visitantes. Articula palanques eleitorais para 2012, nas capitais, não para e não desgruda os olhos da crise. http://bit.ly/rba_lula_careca REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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NoRádio De segunda a sexta-feira, das 7h às 8h, na FM 98,9, para toda a Grande São Paulo

Harrison é lembrado pelos companheiros de banda

O

antropólogo Mauro Wil­liam­­­ Barbosa de Almeida, diretor do Centro de Estudos Rurais da Unicamp, ajudou Chico Mendes a formar o Conselho Nacional de Seringueiros e as reservas extrativistas na região amazônica. Recentemente, fez parte de um grupo de pesquisadores convidados a conhecer a vida dos caiçaras que habitam a área da Jureia, entre Iguape e Peruíbe, litoral sul de São Paulo. “Gente cheia de vida, de entusiasmo, com amor pelo que faz”, descreveu, lamentando a ameaça de expulsão dessas comunidades, em ação do Ministério Público Estadual. “Tem caráter de tragédia, porque significa o destino de uma população inteira. É uma situação desesperadora. Aquilo que deveria ser declarado um patrimônio da nação está sendo escorraçado”, afirma. Integrante da União dos Moradores da Jureia, Arnaldo das Neves lembra 8

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Documentário de Scorsese sobre George Harrison e luta dos caiçaras da Jureia (SP) foram destaques na Rádio Brasil Atual que a região é ocupada desde a época colonial. Ele compara a situação dos moradores à dos seringueiros da Amazônia, anos atrás, e diz que é possível “mostrar que o estado de São Paulo tem povos da floresta e pode fazer o desenvolvimento sustentável”. Ouça as entrevistas de Almeida (http://bit.ly/radio_jureia_1) e Neves (http://bit.ly/radio_jureia_2), concedidas à repórter Marilu Cabañas, na Rádio Brasil Atual.

Harrison arrasava

KIERAN DOHERTY/REUTERS

Beatles e caiçaras

O jornalista Oswaldo Luiz Colibri Vitta comandou programa sobre Geor­ge Harrison, morto em 29 de novembro de 2001. Os convidados foram o jornalista Carlos Silveira Mendes Rosa e o músico Marcos Rampazzo, do grupo Beatles 4Ever, no qual interpreta justamente o autor de Something, Here­ Comes the Sun e While My Guitar Gently Weeps. “Ele não fazia tanta música (na época dos Beatles), mas quando fazia era pra arrasar”, diz Rampazzo­. “Era mestre da melodia. Isso faz o George ser único.” Os três comentaram o documentário George Harrison­: Living in the Material World, do cineasta Martin Scorsese. Com 3h45 de duração, o filme traz depoimentos de Olivia, mulher de George­ (que convidou Scorsese para dirigi-lo), Paul McCartney, Ringo Starr e Eric Clapton, entre outros. Ainda não há previsão de exibição no Brasil. Ouça em: http://bit.ly/radio_harrison.


NaTV www.tvt.org.br

Biblioteca da favela de Paraisópolis Associação Comunitária Monte Azul

Sarau do Binho Bloco de Pedra

Pra você ver... Novo programa que estreia em janeiro vai reunir as melhores séries de reportagens produzidas para o Seu Jornal

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a semana de 21 a 25 de novembro, o telejornal diário da TVT – o Seu Jornal, que vai ao ar de segunda a sexta-feira às 19h – apresentou uma série de cinco reportagens a respeito de atividades artísticas e culturais que têm como marca a grande mobilização de pessoas ao redor de equipamentos populares de cultura postos à disposição das comunidades. A série mostrou como atuam e como funcionam o grupo Bloco de Pedra, no bairro paulistano do Sumarezinho, dedicado à difusão do maracatu; o centro cultural da Associação Comunitária Monte Azul, em Campo Limpo,

frequentado por mais de 2.600 famílias atraídas por suas atividades musicais, teatrais e corporais; o Sarau do Binho, no mesmo bairro, onde toda segunda-feira tem um acontecimento literário; o Pombas Urbanas, uma verdadeira escola de artes plásticas instalada num gal-

Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br

pão que estava abandonado em Cidade Tiradentes; e a megabiblioteca na favela de Paraisópolis, onde o acesso a lan house, brinquedoteca e até aulas de espanhol se tornou uma realidade. Digitando o nome das atrações no sistema de busca da TVT na internet, as reportagens são localizadas com facilidade. Agora, a partir de janeiro, a emissora criará mais uma alternativa de acesso a essas informações raramente vistas nos meios convencionais. Toda sexta-feira, a partir das 20h, o novo programa Pra Você Ver... trará uma compilação dinâmica das séries semanais de reportagens especiais. A primeira edição vai ao ar no dia 6 de janeiro, com apresentação da repórter Márcia Telles, que comentará a cada programa uma série, atualizando as informações e destacando os melhores lances. Essa série da produção cultural ao alcance das comunidades é uma delas. O programa veiculado às sextas, às 20h (www.tvt.org.br), será ainda reprisado na grade da TV Aberta (TV Comunitária de São Paulo, canal 9, a cabo), às 23h das terças-feiras). REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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LaloLeal

Por um Natal sem neve

A

O final de ano na TV é sempre previsível. A propaganda cresce e os programas se repetem. São filmes com muita neve, os mesmos musicais e as infalíveis resenhas jornalísticas

ELZA FIÚZA/ABR

televisão no Brasil não dita apenas hábitos, costumes e valores, mas também o ritmo de vida da maioria da população. Nos dias úteis com seus horários para “donas de casa”, crianças e adultos e nos fins de semana com uma programação diferenciada, supostamente mais adaptada ao lazer. A TV organiza também as comemorações das efemérides ao longo do ano, das quais o ponto alto é o Natal. Com muita antecedência saltam da tela canções da época e muita propaganda, criando clima para o “espírito natalino”. As crianças são o alvo principal. Se já são bom- sedutores. As regras do jogo são essas. Quem mantém as TVs comerciais bardeadas com apelos de compra o ano todo, no são os anunciantes. Apesar disso, as emissoras poderiam ter um pouco Natal a pressão cresce. Apresentadoras joviais e mais de criatividade. Não há Natal na TV brasileira sem a milésima realegres conquistam a confiança dos pequenos te- prise do filme Esqueceram de Mim, com neve em quase todas as cenas, lespectadores com seus dotes artísticos para, em ou sem o indefectível “especial”, sempre com o mesmo cantor. seguida, atraí-los para as compras, no mais das Nem o jornalismo escapa, com colagens em forma de clipes usadas à vezes, desnecessárias. Da classe média para cima exaustão mais para reviver sustos já sofridos pelo telespectador do que é comum ver crianças com brinquedos pouco ou para informar. Em determinado ano, que pode ser qualquer um, o apresentador famoso abria a renada usados, comprados senha na principal rede de apenas como resposta aos TV exclamando: “Um ano apelos­ publicitários. de arrepiar em todo o plaMas a TV não está só na neta. Incêndios, terremotos, casa de quem pode comprar. furacões”. E dá-lhe imagens Hoje ela é um bem universalizado no Brasil, advindo daí espetaculares, que de notícia pouco têm. a sensação de exclusão sofrida por crianças cujas famíPodia ser diferente? Claro lias estão impossibilitadas que sim. Poderíamos ter na de satisfazer seus desejos. TV um Natal mais brasileiro e um final de ano criatiEsse desconforto resulta da vo (com a publicidade mais crença de que o consumo é controlada). Realizadores um valor em si, substituto DESAFIO Realizadores e criatividade não faltam. Faltam não faltam, o que falta são da cidadania. Só é cidadão oportunidades para mostrar seus trabalhos. Precisamos de ousadia para oferecer ao público bens culturais capazes oportunidades para mostrar quem consome. seus trabalhos. Mais de 200 “O que singulariza a gran- de enriquecê-lo espiritualmente de corporação da mídia é deles apresentaram pilotos que ela realiza limpidamente a metamorfose da de programas no Festival Internacional de Televisão, realizado em nomercadoria em ideologia, do mercado em demo- vembro no Rio. Não haveria ali gente capaz de tirar a televisão da roticracia, do consumismo em cidadania”, diz o profes- na desta época? sor Octávio Ianni em “Príncipe eletrônico”, artigo Criatividade também não falta na produção audiovisual brasileira. que se tornou referência para a discussão do papel Precisamos é de ousadia para mostrá-la ao público oferecendo bens culpolítico da comunicação nas sociedade modernas. turais capazes de enriquecê-lo espiritualmente. Ou como dizia um diNo Natal, a metamorfose atinge seu auge e segue retor da BBC, a melhor TV do mundo: “Temos a obrigação de desperaté a virada do ano. As mercadorias ganham vida tar o público para ideias e gostos culturais menos familiares, ampliando na TV e estão à disposição para satisfazer todos mentes e horizontes, e talvez desafiando suposições existentes acerca da os desejos, o mercado oferece democraticamen- vida, da moralidade e da sociedade. A televisão pode, também, elevar a te a todos os mesmos produtos e, ao consumi-los, qualidade de vida do telespectador, em vez de meramente puxá-lo paexerceríamos nossos direitos de cidadãos. São fa- ra o rotineiro”. lácias muito bem embaladas em luz, cores e sons Belo desafio, não? Feliz Natal. 10

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TRABALHO

Juntos por justiça tributária Trabalhadores dos setores bancário, metalúrgico, petroleiro e químico estão em campanha contra a cobrança de imposto de renda sobre a participação nos lucros ou resultados

GERARDO LAZZARI

S

obre lucros e dividendos recebidos por acionistas de empresas não incide imposto de renda. Mas a participação nos lucros ou resultados (PLR) do trabalhador – que a cada ano ganha maior peso nos fechamentos de acordos coletivos – é garfada. Essa contradição, mais uma do sistema tributário brasileiro, levou bancários, metalúrgicos, petroleiros e químicos, que representam mais de 700 mil trabalhadores, a desencadear campanha pela isenção do IR na PLR. “Se um investidor da Bolsa recebe dividendos de R$ 4.000, não paga imposto. Mas se um trabalhador recebe o mesmo valor em PLR, paga R$ 376, uma alíquota efetiva de 9,4%. É uma injustiça que queremos corrigir”, explica a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira. Em 30 de novembro, representantes dessas categorias marcharam ao lado de cerca de 12 mil metalúrgicos pela Via Anchieta. A manifestação chamava a atenção do governo e do Congresso, que no dia 1º de dezembro receberia a reivindicação dos trabalhadores – um abaixo-assinado com mais de 220 mil adesões. O documento foi entregue ao presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS) – na ocasião presidente interino da República. Junto, uma proposta de medida provisória para que a não tributação valha já em 2012. Os sindicalistas reivindicaram ainda agilidade na aprovação de projetos dos deputados Ricardo Berzoini e Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (ambos do PT-SP), já em tramitação na Câmara, que propõem a isenção. Segundo o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, Maia gostou da proposta: “Ele comentou que existe espaço na pauta da Câmara para encaminhar a reivindicação e sinalizou que mais projetos de interesse dos trabalhadores devem ser votados na Casa”.

PLR SEM IR Manifestação na Via Anchieta: bancários, metalúrgicos, petroleiros e químicos cobram governo federal

No mesmo dia, os sindicalistas levaram a reivindicação ao ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República. A proposta prevê isenção total de imposto para PLR de até R$ 8.000 anuais e alíquotas sucessivamente maiores acima desse valor: 7,5% até R$ 12 mil; 15% de R$ 12 mil a R$ 16,2 mil; 22,5% até R$ 20.250; e a partir desse valor, 27,5%. Carvalho disse que o governo reconhece a importância dessas categorias para ajudar a economia a crescer. Afirmou que considera a proposta adequada às medidas anticrise adotadas pelo governo, no sentido de aumentar o consumo e aquecer a economia. E se comprometeu a entregar a proposta à presidenta Dilma Rousseff e ao ministro da Fazenda, Guido Mantega. De acordo com o Dieese, a isenção representaria economia de R$ 1,6 bilhão para os trabalhadores. “Esse dinheiro poderia ser usado para o trabalhador consumir. Com o comércio em alta, temos mais empregos, maior renda e maior produção”, afirma o presidente do Sindicato dos Químicos do ABC, Paulo Lage. O coordenador-geral de Tributação da Secretaria da Receita Federal, Fernando Mombelli, que também participou da audiência, prometeu dar agilidade à análise do projeto pelo órgão. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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MauroSantayana

Um ano de Dilma e a Lula foi astuto na escolha de sua sucessora e protegeu o país do retrocesso neoliberal. E a presidenta, com sua própria forma de ver e entender o mundo, tem superado desaforos e dificuldades

O

s críticos mais à esquerda podem condenar a atitude de Lula, em sua primeira campanha e na condução dos dois governos, mas os resultados é que contam. Como dizia Marx, o critério da verdade é a prática. As concessões aos neoconservadores deram ao presidente espaço e tempo para trabalhar no seu objetivo maior. Lula trazia, com seu passado, o compromisso quase obsessivo de lutar contra a miséria. Nos primeiros anos, talvez supusesse que isso fosse possível a ferro e fogo. Pouco a pouco, aprendeu o jogo necessário da política: contra a força é necessária a astúcia.

ROBERTO STUCKERT FILHO/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Foi assim que, na busca de seu projeto, fez as alianças indicadas pelas circunstâncias. Como líder sindical, não fazia distinção entre os patrões, fossem nacionais, fossem estrangeiros; como líder de um partido, compreendeu que era preciso moderar o discurso. A isso foi aconselhado pela própria experiência, mas possivelmente também influenciado pela ala mais pragmática de seu grupo. Foi assim que Lula decidiu firmar documento assumindo o compromisso de respeitar todos os acordos assumidos anteriormente em nome do Estado, entre eles o das privatizações. Dilma é senhora de ideias Ao convocar o empróprias e de biografia presário e político José diferente. Herdou um projeto Alencar, além de situcontundente de combate à ar-se bem com os setores pobreza e às desigualdades, industriais, sempre inconmas também um ambiente formados com a voracidade de difícil relação com o do sistema financeiro, teve a saParlamento bedoria de ter um mineiro, com suas qualidades, como companheiro de chapa. Para sossegar os banqueiros, que temiam perder o controle do Banco Central, entregou o órgão a Henrique Meirelles. Trouxe ainda os empresários para o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, no qual puderam, e podem, defender interesses específicos de classe. E reduziu, embora não tenha eliminado, a sua ação conspiratória contra o governo chefiado por um proletário autêntico. O primeiro passo foi retirar os pobres da miséria absoluta e secular, mediante a política direta de ajuda às famílias assoladas pela fome. Não foi difícil a ele chegar à equação singela: mais di-

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PB


a ascensão do Brasil nheiro na mão dos pobres significa mais consumo; mais consumo, mais emprego; mais emprego, mais consumo e mais empregos: enfim, o desenvolvimento geral da economia. O resultado é que todos ganharam, e muitos empresários perceberam que seus lucros crescem à medida que a renda nacional é mais bem distribuída e o mercado interno aumenta. Ao mesmo tempo, Lula usou a plenitude da sabedoria nas viagens ao exterior. Como todos os meninos pobres e inteligentes, teve de negociar desde cedo, com os outros e com as circunstâncias: com irmãos mais velhos, com companheiros de trabalho e chefes, com os patrões. A virtude obtida na adversidade levou-o a quebrar a resistência dos governantes mundiais – ao contrário de Fernando Henrique, que pretendia conquistar os donos do mundo com a subserviência de sua diplomacia. Lula estava poupado, por exemplo, de citar Weber. Comunicava-se com alma. Não tinha por que se curvar. O povo, ao elegê-lo, fizera-o igual a qualquer outro governante do mundo e permitia-lhe até, sem faltar à elegância, substituir os ritos rígidos do protocolo pela afetividade de quem respeita no outro alguém igual a si mesmo.

Reconhecimento

Foi um Brasil novo, menos desigual no plano interno e mais respeitado no plano externo, que Lula entregou a Dilma Rousseff, moça da classe média de Belo Horizonte, já combatente contra a ditadura em um tempo em que Lula, dois anos mais velho, ainda não se interessava pela política. Dilma manteve todos os compromissos de Lula, mas é certo que não se trata de um clone do antecessor. Ela é senhora de ideias próprias e de biografia bem diferente, sobretudo no que se refere à atuação política. Exilada de Minas no Rio Grande do Sul, optou por seguir Leonel Brizola e se inscreveu no PDT, fez carreira na Prefeitura de Porto Alegre antes de participar do governo do estado – e de entrar para o Partido dos Trabalhadores. Na escolha de Dilma, houve outro ato sábio de Lula. Só uma figura nova, de seu núcleo pessoal de confiança, provada como boa administradora e firme no comando, poderia unir, como uniu, o partido. Ao evitar expor a sucessão a riscos de dissidências internas, viabilizou a vitória que não permitiu o retrocesso neoliberal. Dilma herdou de Lula as dificuldades para a ma-

nutenção do apoio parlamentar, necessário aos atos de governo. Sem partidos com programas ideológicos definidos, a verdadeira representação parlamentar é corporativa. As corporações – como a Febraban (federação dos bancos) e as multinacionais, nisso as mais ativas – trabalham primeiro para situar seus delegados na hierarquia dos partidos, na relatoria dos projetos mais importantes e no domínio das comissões do Congresso para, em seguida, fazê-los, mediante os partidos, ministros de Estado. Ao assumir o governo, Dilma procurou manter a equipe de Lula quase integralmente. Foi então que enfrentou a primeira crise, no caso do ministro Antonio Palocci, que a substituíra na chefia da Casa Civil. Não havia como preservá-lo, depois de suas infelizes explicações públicas. A partir de então, intensificaram-se as denúncias contra outros ministros. Ela agiu com prudência, dando aos acusados a oportunidade de se explicar. Com Nelson Jobim, ela atuou rapidamente, porque, não estando acusado de nenhum ato ilícito – embora o Ministério da Defesa não esteja livre de suspeitas a serem investigadas –, o político gaúcho desafiara, com desaforo, a autoridade de seu governo. Essa autoridade da presidenta é reconhecida nos setores lúcidos da oposição. No plano externo ela vem mantendo a nossa independência de julgamento e a aliança com os países que se encontram em situação semelhante à nossa, como China, Rússia, Índia, África do Sul e, mais recentemente, Turquia. É provável que a sua percepção de estratégia econômica seja mais acentuada. Ela já deu sinais nesse sentido, ao propor novo estatuto para a defesa das empresas realmente­nacionais. Na América do Sul, desenvolve o projeto da unificação política do continente, tendo o Mercosul como o instrumento de ação. O Brasil vem enfrentando, com êxito crescente, a crise mundial, que é política, embora se expresse na economia. É preciso registrar que o nosso país, sob Dilma, elevou sua posição, interna e externa, conforme registram os indicadores nacionais e internacionais. As dificuldades que a presidenta venceu este ano a preparam para a reestruturação do governo no início do novo ano, de eleições municipais das quais dependerá o pleito presidencial de 2014. Dilma, ao que os fatos assinalam, irá conduzir o país no mesmo rumo, mas com sua própria forma de ver e entender o mundo, e isso se verá na composição de seu novo ministério. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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BRASIL AGENDA NACIONAL Além do noticiário sobre corrupção, faltou debate sobre temas como a reforma política

Contra o que A ou contra quem? Sanha oposicionista, controle frouxo e apuração capenga formam combinação ideal para atazanar governos – ou determinados governos. Isso é bom para a democracia? Por Vitor Nuzzi 14

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corrupção foi o assunto do ano na política brasileira, porém o debate foi raso. Ministros foram derrubados, mas pouco se falou sobre os mecanismos de controle – que existem – e sobre o combate ao problema feito por algumas instituições públicas criadas com esse fim. Também passou ao largo, por exemplo, a discussão sobre reforma política. Para Renato­Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), houve empobrecimento do debate. “Quase toda a crítica ao governo se concentra na corrupção, real ou imaginária”, escreveu. “Não vejo os tucanos irem além de defender a privatização do pré-sal ou de atacar o Bolsa Família. O Brasil merece mais. Merece pelo menos duas coisas: debates


ANTONIO CRUZ/ABR

sobre políticas para o país e um combate, sem uso partidário, à corrupção.” Mas ele também critica o governo, notando certo “feudalismo” no ministério. “Uma coisa é ter coligação, outra é o partido ser aceito sempre.” Em seu blog, o jornalista Ricardo Kotscho­observa que nada que possa ser feito vai satisfazer a imprensa que hoje abriga o que sobrou da oposição depois das últimas eleições. “Dilma pode demitir todos os ministros e fazer uma faxina geral na máquina do governo que eles ainda vão querer mais, e continuarão ‘convocando o povo’ nas redes sociais. Valentes de internet, não estão habituados a enfrentar o sol e a chuva da vida real”, diz Kotscho. Depois das trocas de ministros ao longo do ano, o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar

(Diap), Antônio Augusto de Queiroz­, acredita que vem aí um tempo de relativa calmaria. “O escândalo tem a importância de revelar as falhas de representação, e a presidenta Dilma tem feito uma ação cirúrgica”, avalia. Além disso, destaca a criação da lei geral de acesso à informação, “um instrumento de transparência da maior importância”. Outra medida relevante está prevista para o início do ano, quando Dilma deverá fazer uma reforma ministerial – devido às eleições municipais – tendo o cuidado de remover alguns possíveis focos de problema. O professor de História Luiz Carlos Soares, da Universidade Federal Fluminense (UFF), critica o fato de as notícias de escândalos pautarem a agenda política. “Muito dessa tentativa de pôr o governo contra a parede vem de interesses contrariados. Estamos com um problema muito sério no Brasil, que é a falta de uma imprensa realmente independente. A política não pode ser pautada por ‘acusacionismo’”, diz. A ombudsman da Folha de S.Paulo, Suzana Singer, notou afobação durante o processo que terminou na queda do ministro Orlando Silva, do Esporte. “No afã de dar o último tiro, atropelou-se várias

vezes o bom jornalismo”, escreveu em sua coluna de 30 de outubro. No final, recomenda: “É preciso cuidado com a cultura do escândalo. Acusação baseada em uma só fonte, sem documentos, é o início do trabalho do repórter, não o seu fim – mesmo no noticiário político, onde, infelizmente, se atira a esmo e se acertam mais corpos do que se esperava”. Um dos signatários de manifesto de apoio a Orlando Silva, assinado por intelectuais e políticos, o professor da UFF avalia que a iniciativa serviu para dar um basta à “rede de ‘denuncismo’” que cercou o caso. “Claro que toda ação de corrupção tem de ser apurada. O governo precisa ter o controle da situação, fazer pente-fino. Mas, por mais complicada que seja a base aliada, o que está em pauta é o desgaste do governo”, diz Luiz Carlos Soares. O cientista político Fabiano Santos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), afirma que as instituições de controle estão muito mais preparadas, mas ainda há questões culturais em jogo. “O tratamento não ortodoxo da coisa pública é uma prática muito arraigada no Brasil, que foi acentuada pelos

Não falem de mim Um bom teste para a liberdade de expressão brasileira está no lançamento do livro Crime de Imprensa, dos jornalistas Mylton Severiano e Palmério Dória, que criticam a cobertura da mídia em vários episódios das eleições de 2010, quase sempre tentando favorecer determinado candidato ou bombardeando determinada candidata. Para o prefácio, recorreram a um texto de Lima Barreto (1881-1922). O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma escreveu que “nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno”. Além da dificuldade de conseguir uma editora (o livrou saiu pela Plena Editorial), não se viu nem ouviu nada a respeito do lançamento, diferentemente do que ocorre com publicações laudatórias sobre donos de meios de comunicação. E o lançamento não ocorreu em nenhuma livraria, mas em uma banca de jornal. A discussão sobre a mídia também passou em branco em 2011, com exceção

de alguns debates pontuais, igualmente ignorados na maior parte do tempo. E se trata de uma discussão urgente, afirma o ex-ministro da Comunicação Social Franklin Martins. “É necessário criar um novo ambiente. O que vivemos hoje é de inexistência de marco regulatório, em um processo de convergência de mídias”, diz. Ele ressalta que o anteprojeto de regulação que deixou pronto não configura nenhum risco à liberdade de imprensa. “A imprensa publica o que quer, opina sobre o que quer, diz o que bem entende.” A regulação é necessária para, entre outras coisas, evitar o risco de uma concentração maior no país. “Se deixarem como está, as telecomunicações vão jantar a radiodifusão”, afirma, ao lembrar que o faturamento anual da primeira foi de R$ 180 bilhões e o da segunda, R$ 13 bilhões. “Vamos aproveitar a entrada da convergência de mídia para fazer uma nova pactuação no país, para que a sociedade tenha seu espaço.”

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ROOSEWELT PINHEIRO/ABR

BRASIL

ALIMENTO DA MÍDIA Oposicionistas no Congresso: discurso em vez de propostas

governos militares.” Para ele, o fato de os episódios estarem vindo a público com maior frequência mostra que os órgãos de controle ganharam força. As denúncias e quedas de ministros

não resultaram em instabilidade, nem no Congresso, nem na composição partidária, nem nas políticas de governo. “Do ponto de vista político, é uma semana de manchete; depois, acaba”, disse Fabiano­

Santos ao jornal Valor Econômico. Segundo ele, Dilma talvez esteja experimentando uma situação mais aguda do que seus antecessores Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Renato Rabelo, presidente nacional do PCdoB, bombardeado pela crise no Esporte, diz que isso já vinha ocorrendo no ministério. Oito meses atrás já havia sido tomada a decisão de suspender convênios com ONGs até uma redefinição de critérios. Mas, para ele, a origem da atual crise é outra. “A lógica dessa grande mídia é a oposição ao governo. Tem sido assim desde Lula. E essa oposição não apresenta alternativas de governo, não tem bandeira, nem resolveu qual é a sua liderança”, afirma. Em relação à queda de Orlando Silva, o presidente do partido vê má-fé para “desmoralizar a esquerda e, em última instância, desestabilizar o governo”. “Estamos trabalhando para que a denúncia seja arquivada, porque nem indício tem. E a mídia, que fez todas essas denúncias, não vai dizer nada.”

Os escândalos e a política

Por que alguns governantes parecem mais expostos aos escândalos e outros menos? Em alguns casos, a popularidade é atingida severamente e em outros não é sequer arranhada. A corrupção é um fenômeno relativamente estrutural, e portanto existem atos de corrupção (em maior ou menor medida) em todos os governos e administrações. Em meu estudo sobre escândalos de corrupção na Argentina, Chile e Brasil, o que encontro é que o nível de escândalos depende da composição política da coalizão governante. Coalizões ou partidos com maior conflito interno têm maiores níveis de escândalos de corrupção. Isso ocorre bastante no caso brasi-

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leiro, em que as coalizões são complexas, diversas e ideologicamente heterogêneas. Agora, isso não exclui outros fatores. A simpatia que diversos meios de comunicação podem ter ou não ter pelo governo ou por suas políticas levam a níveis maiores ou menores de exposição de escândalos de corrupção. Na Argentina, até não tanto tempo atrás, o jornal Clarín raramente publicava escândalos de governo. Hoje é um veículo claramente opositor, e não deixa passar oportunidade para criticar. E em relação à popularidade? É difícil determinar. Dilma tomou o caminho de remover os ministros que se veem envolvidos em escândalos. Nestor Kir-

REPRODUÇÃO

Para o pesquisador argentino Manuel Balán, da Universidade McGill, do Canadá, coalizão governista é fator determinante

Balán: escândalo vende jornal

chner, na Argentina, desconsiderou as denúncias que atingiam figuras-chave de seu gabinete e as manteve no poder. E se deu bem. Creio que em muitos casos a capacidade de sobreviver aos escândalos também depende do contexto econômico. Se as coisas vão bem, passam sem maior pena nem glória. Se não vão, podem ter consequências difíceis de consertar. O senhor diz que os veículos de comunicação não são

inocentes. Nesse caso, eles também refletem interesses próprios ou uma tentativa de minar um governo? Pergunto porque às vezes, após a queda de um ministro, por exemplo, o escândalo sai do noticiário e deixa de ser investigado. Os escândalos de corrupção são notícias atraentes para a audiência, “vendem”, o que faz com que os veículos, em alguns casos, deem ao fato dimensão maior do que merece. Isso pode se dar por inimizade ou antipatia do veículo para com o governo. Ou simplesmente para atrair maior audiência. Em muitos casos, um pouco de ambas as coisas. Por fim, creio que é até lógico que os veículos deixem de prestar atenção a um escândalo uma vez removido o ator considerado responsável – um ministro, por exemplo. Essa resposta política de algum modo “mata” a notícia, e faz com que audiência – e os meios – perca o interesse.


FÁBIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

FÔLEGO Na reta final do ano, o governo voltou a reduzir o IPI para estimular o consumo

Vitória magra Brasil tem desempenho razoável em 2011, considerando a quebradeira externa. Embora indústria e Europa preocupem, o país põe em prática medidas anticrise que vêm dando certo há três anos Por Vitor Nuzzi

D

os extremamente otimistas aos pessimistas de plantão, parece mais apropriado dizer que 2011 foi um ano mediano e que 2012 carrega um pacote de incertezas, vindas sobretudo da Europa. É verdade que o país crescerá menos que em 2010, mas isso não chega a ser uma novidade. Diante de uma ameaça inflacionária, o governou puxou o freio de mão na economia e apertou o cinto, começando com o contingenciamento de R$ 50 bilhões anunciado logo no início da gestão de Dilma Rousseff (e amenizado posteriormente) e passando por um período de elevação da taxa básica de juros, a Selic. A partir do segundo semestre, notou-se que o aperto começou a machucar a economia. Na divulgação do Cadastro Geral de Empregados e Desemprega-

dos (Caged) de outubro, por exemplo, as trombetas soaram catástrofe ao anunciar queda de 40% em relação ao saldo do mês anterior. De fato, o resultado final do ano ficará abaixo do que esperava o governo. Mesmo assim, aproximadamente 2 milhões de empregos com carteira assinada não pode ser considerado um número ruim em um ano a meia-marcha. De todo modo, o governo tratou de aliviar o aperto, para que 2012 comece já sob efeito das “medidas macroprudenciais” semelhantes às que evitaram por aqui maior impacto da crise global de 2008. A taxa Selic voltou a cair e atingiu em dezembro seu nível mais baixo de 2011. O país chega ao final do ano com a inflação mais controlada, saldo comercial três vezes maior que o previsto, perto dos US$ 30 bilhões, e mercado de trabalho estável. E com o governo anunciando­ REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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BRASIL

Relaxamento

Enquanto teve colunista de jornal anunciando o país “à beira da recessão”, o bloco do otimismo é liderado, como se poderia supor, pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega. “Em termos relativos, somos um dos países que mais criam empregos no mundo, o que é fundamental para aumentar a massa salarial e o consumo.” Crescer menos este ano já estava previsto. “O avanço do PIB recuou em 2011 porque era preciso, já que 2010 estava muito aquecido. Mas voltamos a acelerar, uma vez que o mercado de trabalho formal continua muito forte e agora há um relaxamento do aperto no crédito ao consumo”, diz Mantega. Ele acredita em crescimento de 4,5% a 5% no ano que vem. Para o economista do Dieese, 2012 carrega tamanho grau de incerteza que não seria ilógico prever o melhor dos mundos nem a estagnação, pois, ao mesmo tempo em que há bons fatores internos que induzem ao crescimento, há a preocupação com o cenário internacional. “Não é absurdo dizer que pode dar zero ou pode dar quatro”, afirma. O presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, em discurso na Federação Brasileira de Bancos (Febraban), destacou a “resposta abrangente” do governo 18

DEZEMBRO 2011 REVISTA DO BRASIL

Taxa de juros

11% 01/12 a 18/01

11,5%

12,5% 21/07 a 31/08

20/10 a 30/11

12,25% 09/06 a 20/07

12%

12% 21/04 a 08/06

2010

01/09 a 19/10

11,75%

10,75% 09/12 a 19/01

03/03 a 20/04

10,75% 21/10 a 08/12

11,25%

10,75% 02/09 a 20/10

20/01 a 02/03

10,75% 22/07 a 01/09

10,25% 10/06 a 21/07

9,5%

8,75% 18/03 a 28/04

29/04 a 09/06

8,75%

Percentuais definidos pelo Comitê de Política Monetária (Copom)

28/01 a 17/03

medidas de estímulo ao crédito e ao consumo. Com isso, mais o incremento do 13º e do reajuste do salário mínimo para R$ 625 a partir de janeiro, estão dados os sinais para aumentar o giro da economia como proteção a qualquer vento ruim que possa soprar da Europa. De todo modo, é avaliação corrente que o país está mais seguro hoje do que há três anos. O mercado de trabalho não deixou de abrir vagas formais e as taxas de desemprego ficaram estáveis ao longo do ano, sempre abaixo dos respectivos meses de 2010. O economista Sérgio Mendonça, do Dieese, acredita que a estabilidade é resultado de uma fase mais prolongada de crescimento do emprego, que reduziu a busca por vagas e, com isso, diminuiu a pressão no mercado de trabalho. “Possivelmente se acumulou um período positivo para as famílias. Claro que isso não é sustentável em um período mais longo.”

2011

Fonte: Banco Central

Evolução do PIB

Balança comercial

Produto Interno Bruto (a soma de tudo o que é produzido no país)

Em US$ bilhões 2009

2009

25,275

-0,3% 7,5%

2010 2011*

3%

* Previsão. Fonte: IBGE

2010 2011*

20,278 25,971

* Até novembro. Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior

Trabalho: agenda travada Do ponto de vista econômico, o governo acertou a mão. Diante da situação internacional de crise, absolutamente grave e com perspectiva de não ser curta, o Brasil está se saindo muito bem. Na Europa, as medidas de cortes dos gastos sociais para atender às dívidas com os bancos só tendem a aumentar a crise, como já foi demonstrado no Brasil na época de Fernando Henrique Cardoso. A avaliação é do presidente nacional da CUT, Artur Henrique. Ele analisa que o fato de o nível de emprego ter continuado em alta favorece mudar de fase: “O que se discute não é mais o emprego, mas a qualidade do emprego”. O sindicalista critica, porém, o travamento de uma agenda estrutural importante para o mundo do trabalho. “A pauta de reivindicações dos trabalhadores acabou deixada em segundo plano, pelo governo e pelo Congresso, que deu prioridade a ques-

tões do setor empresarial. A redução da jornada não foi votada, o fim do fator previdenciário também não. A Convenção 151 da OIT ainda aguarda Artur: pauta dos trabalhadores regulamentação“, diz ficou em o presidente da CUT, segundo plano lembrando que deveria ter sido mais bem aproveitada a conjuntura de economia estável para discutir temas como esses. Artur observa ainda que a Comissão de Trabalho da Câmara vem apresentando propostas prejudiciais aos trabalhadores, como na questão da terceirização. “Foi um ano em que prevaleceu a pauta da desoneração da folha de pagamentos, mas não se falou uma única linha sobre progressividade dos impostos.”


Desemprego Taxa deste ano será a menor da série histórica 12,5

11,7 10 10,1

9,5 8 8,2 6,2

20 03 20 04 20 05 20 06 20 07 20 08 20 09 20 10 20 11 *

6,7

* Até outubro. Fonte: Pesquisa Mensal de Emprego/IBGE

Inflação Taxa acumulada em 12 meses recua Agosto

7,23%

Setembro

7,31%

Outubro

6,97%

Fonte: IPCA/BGE

aos riscos da conjuntura econômica. “Em suma, o conjunto dessa política contribuiu e contribuirá para mitigar os efeitos do cenário econômico e financeiro internacional, que deve continuar apresentando um grau de incerteza acima do usual”, disse. O Brasil fez um “ajuste muito bom” à crise, na avaliação do professor Ricardo Carneiro, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estendendo o universo a 2008, quando começaram os problemas nos Estados Unidos. O país não cresceu em 2009 (-0,3%), mas recuperou-se rapidamente no ano seguinte (7,5%) e tem margem de manobra. “A desaceleração era necessária, mas é preciso evitar que se aprofunde”, observa. Parece que é o que vem ocorrendo nos últimos meses, com a desvalorização do real e a adoção de medidas de defesa contra as importações, a redução dos juros e a manutenção dos investimentos públicos. “Proteção absoluta não existe”, lembra Carneiro. Mas o país tem vantagens como um grande mercado interno e um bom volume de reservas internacionais, que podem funcionar como um “colchão” protetor. “Os bancos públicos são aliados cruciais, especialmente se houver contração

do crédito e financiamento privados. Os investimentos públicos também têm papel relevante para estimular a atividade”, reforça o professor Antônio Corrêa de Lacerda, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Mas ele também cobra redução urgente da taxa básica de juros. “Há muito espaço para isso, e precisa ser acelerado para servir de política anticíclica”, afirma. Nas três últimas reuniões, o Comitê de Política Monetária (Copom) cortou 1,5 ponto, levando a taxa a 11% ao ano e quase retornando ao nível do final de 2010 (10,75%). No final de novembro, a presidenta Dilma Rousseff repetiu apelo feito por Luiz Inácio Lula da Silva, para que a população continue consumindo. Deu certo daquela vez, pode dar certo de novo, apesar de toda a insegurança que ronda o antigo Primeiro Mundo. O Brasil, do antigo Terceiro Mundo, parece mais preparado para aguentar o tranco.

Mais sensível às oscilações da economia, a indústria é o setor que mais preocupa os observadores. O professor Ricardo Carneiro, por exemplo, acredita que pode ser o momento de pensar em uma proteção comercial “mais generalizada”, citando a redução do IPI adotada pelo governo em alguns setores. “Talvez seja o caso de pedir a extensão a outros setores”, afirma. Ele lembra que o plano Brasil Maior, lançado este ano, deve ter efeitos mais a longo prazo. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a produção caiu em outubro pelo segundo mês e a utilização da capacidade instalada ficou no menor nível em mais de dois anos. Em São Paulo, de acordo com a Federação das Indústrias do Estado (Fiesp), outubro teve o pior resultado para o mês desde 2006, com o fechamento de 18 mil postos de trabalho,

14 mil no setor de cana-de-açúcar. O saldo no ano ainda é positivo, com 82 mil vagas, que no entanto deverão ser fechadas até o fim de dezembro. O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) faz diferenciação entre a crise de 2008 e a atual. Na primeira, as decisões de política econômica se concentraram no crédito, além da ampliação do investimento em infraestrutura e da manutenção de programas de transferência de renda. Em relatório divulgado em 1º de dezembro, dia em que o governo anunciou medidas para estimular o consumo de produtos da chamada linha branca, diz a entidade: “As medidas de hoje complementam as ações para dinamizar o consumo e de quebra reduzem os impostos sobre os investimentos estrangeiros, procurando também incentivar as

FOTOS EDUARDO ARAÚJO/ABR

Olho na indústria

Para especialista, redução do IPI deveria ser estendida a outros setores

inversões privadas e o financiamento de longo prazo da economia”. A nova redução de juros, promovida pelo Copom no final de novembro, mostra para o Iedi que “a política econômica está atenta aos acontecimentos”. No consumo, existe expectativa de reativação, uma vez que foram “afrouxadas“ as medidas de contenção do crédito para as famílias.

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POLÍTICA

Muito a explicar DANIEL MARENCO/FOLHAPRESS

Emendas indicadas por deputados estaduais paulistas seguem nada transparentes. E faltam agilidade e disposição para investigar Por Anselmo Massad

A

ALESP/DIVULGAÇÃO

caixa-preta revelada com a acordo firmado em 2006 entre Executivo denúncia de que parte dos e Legislativo estaduais. Por ter caráter indeputados estaduais de São formal, não houve regulamentação sobre Paulo vende a cota de emen- o funcionamento da cota de R$ 2 milhões das ao Orçamento estadual anuais para cada um dos 94 deputados suesconde mais problemas. As pontas sol- gerir destinação – para quadras de esporte, tas no emaranhado criado pelo governo reforma em unidades de saúde etc. tucano e sua base aliada na Sem lei, o cenário seria mesmo favorável à proliferação de Assembleia Legislativa seguem aparecendo em ritmo práticas ilícitas, como a cobrança de propina de 40% do mais acelerado do que a disposição de investigar o caso. valor das emendas de empreiteiras, prefeituras e ONGs beAinda em outubro, a Secretaria da Casa Civil se comneficiadas pelo recurso liberaprometeu a publicar uma lista do. Mas, além das denúncias com o intuito de clarear dútrazidas pelo deputado Roque vidas. De 2007 a meados de Barbiere (PTB) sobre o esquema de venda das emendas, no2011, todas as emendas liberadas, organizadas por autor, vas práticas questionáveis ficaram conhecidas. destino e valor, seriam divulgadas. Quando o documento Pelo menos dois secretários Quem veio à tona, as inconsistências de Geraldo Alckmin, Sidney fizeram com que até os parla- apoia o Beraldo (Casa Civil) e Paumentares da situação descon- governo não lo Alexandre Barbosa (Defiassem – e o desacreditassem. tem R$ 2 senvolvimento Econômico), As indicações, como as milhões, tem ambos do PSDB, mantiveram emendas são chamadas pe- R$ 4 milhões cotas de indicações ao Orçalo governo, são fruto de um Roque Barbiere mento mesmo em períodos­ 20

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ESQUEMA TUCANO Os secretários de estado Paulo Alexandre Barbosa e Sidney Beraldo (abaixo, à direita): mordida dupla no Orçamento

nos quais estavam licenciados dos mandatos. A conta começa a não fechar diante do fato de que os suplentes que substituí­ ram os secretários na Assembleia também exerceram a cota de R$ 2 milhões, sem sequer precisar dividir com os titulares afastados. O deputado estadual Hélio Nishimoto (PSDB), presidente do engavetado Conselho de Ética da Assembleia, foi suplente de Beraldo em 2010. Ele assegura que a manutenção do direito a indicações é mesmo incomum. “Não é o normal. Aconteceu no passado, quando emenda não era colocada diretamente no Orçamento. Eu acredito que agora o deputado licenciado não terá mais (direito a) emendas, ou ele vai dividir (sua cota) com o deputado que assumiu no lugar dele”, explica o parlamentar. Nishimoto garante desconhecer que, à época, Beraldo também indicava emendas. Barbiere trouxe mais dados para mostrar que a aritmética tucana anda diferente­.


Insatisfeito com os dados divulgados pelo governo, ele vaticina: “Quem apoia o governo não tem R$ 2 milhões, tem R$ 4 milhões”. O acordo de 2006 previa R$ 188 milhões com destino negociado com parlamentares, mas falta explicar de onde saía o fermento que permitia fatias maiores desse bolo a alguns e pedaços extras até para quem estava licenciado.

JAILTON GARCIA

ÁGUAS TURVAS Olímpio e Nishimoto estão na lista de entrevistados de Carlos Cardoso

nitária de uma ONG citada pelo deputado estadual Major Olímpio (PDT) em seu depoimento ao Conselho de Ética da Casa. Ela, igualmente, não apresentou nomes, mas relatou ter recebido propostas para “comprar” emendas de dez parlamentares. “Dona Terezinha solicitou a

CASA CIVIL-SP/DIVULGAÇÃO

A revelação de Barbiere foi levada, em depoimento do petebista, ao promotor Carlos Cardoso, encarregado no Ministério Público Estadual de ouvir os envolvidos. Nenhum nome foi apresentado pelo deputado, porque não houve garantia de proteção nem sigilo para uma testemunha disposta a contar o que sabe sobre a venda de emendas. Ele diz tratar-se de uma ex-funcionária da Assembleia que assessorava deputados de um “grupinho” que operava o esquema. Quem também prestou depoimento a Cardoso foi Tereza Barbosa, líder comu-

ALESP/DIVULGAÇÃO

Promotor

muitos deputados estaduais que patrocinassem emendas para financiar as atividades da entidade que preside”, revela o promotor. “Alguns não atenderam ao pedido porque ela não tinha nenhum vínculo de natureza eleitoral com eles; outros, por volta de dez deputados, condicionaram o apoio a uma eventual transferência de parte desses recursos para ONGs que eles indicariam”, diz Cardoso. Dona Terezinha sustenta ter recusado a operação e recebido dos “vendedores” de emenda apenas respostas evasivas, sugerindo que lhe faltavam documentos exigidos para convênios. O procurador também sofre com a falta de transparência da gestão. “Não dá para fazer um balanço geral da investigação enquanto não vier toda a documentação que pedi à Secretaria da Fazenda”, afirma. Foram demandados apenas dados referentes às emendas. Além de dona Terezinha e Barbiere, Major Olímpio completa o grupo dos ouvidos. Se a investigação segue lenta pela via do Judiciário, na Assembleia reina o banho-maria. A oposição persegue assinaturas para alcançar as 32 necessárias ao pedido de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com objetivo de ouvir os envolvidos nas acusações apresentadas em setembro pelo deputado Roque Barbiere. O pivô do escândalo mantém-se no partido aliado ao governador, apesar de ter sido isolado pelos membros do governo. Com reportagens de Raoni Scandiuzzi para o portal Rede Brasil Atual REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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CIDADANIA

FOTOS MARINO AZEVEDO/GOV. ESTADO DO RIO

SURPRESA Nenhum tiro foi disparado na ocupação

Esperança D na Rocinha Ressabiados com ocupações que não resultaram em nada além da presença da polícia e cientes de que a luta pela cidadania ainda é longa, moradores da favela experimentam uma sensação de otimismo Por Cleber Araújo. Fotos: Robson Melo 22

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ificilmente se podia assistir a um telejornal ou ler um periódico no mês que passou sem o destaque à favela da Rocinha. Desde o anúncio oficial de que seria a próxima a ser ocupada, a comunidade virou estrela midiática. A notícia da operação surpreen­ deu. Os moradores não a esperavam, nesta reta final do ano. As expectativas de que a Rocinha viria a ser o novo palco para os meios de comunicação que vivem de espetáculo aguçaram os moradores – medo e esperança de dias melhores disputavam espaço. Às vésperas da ação, a comunidade em peso saiu às compras como num ritual pré-guerra. Quem deixou para a “última­hora” teve dificuldade de encontrar mantimentos. Na tarde do sábado 12


de novembro­, estoques de mercados e sacolões estavam esvaziados. Na plateia, o incômodo silêncio veio com o anoitecer. Agora, era só aguardar o show – com a lembrança ainda viva do feito de um ano antes, no Complexo do Alemão. A ocupação da Rocinha, porém, aconteceu sem um único disparo, para alívio dos moradores. E até os que se preocupavam com os relatos de abusos autoritários e de saques – cometidos por policiais em outras comunidades que passaram por processo de pacificação – ficaram surpresos com a abordagem. “Interessante nessa ocupação foi que a polícia funcionou como republicana. Pediu licença para entrar na minha residência, olhou nos meus olhos e não me tratou como bandido”, disse Aurélio Mesquita, diretor da Cia. de Teatro Roça CaçaCultura. Destituído o poder paralelo e fixada a autoridade do poder público, representado por policiais circulando pela comunidade, a população tenta retomar a rotina, ciente de que é preciso um tempo de adaptação a essa nova relação entre polícia e cidadãos. A presença do Estado alimenta um sentimento de esperança em uma nova realidade – que não se limite à permanência policial ostensiva, mas traga um conjunto de políticas públicas em todas as áreas sociais necessárias para uma comunidade.

GERAÇÃO FUTURA Aurélio: mudança de vida das crianças e adolescentes

situa­ções que eram assimiladas como algo normal em seu cotidiano”. O diretor de teatro acredita numa profunda mudança na vida das crianças e dos adolescentes se o governo não faltar com os investimentos necessários. “Há possibilidade de melhorias principalmente para jovens e adolescentes, se houver política voltada para formar cidadãos, investindo em educação, esporte e cultura. Claro que a mudança não vai acontecer da noite para o dia. É um processo lento, que pode apresentar resultados daqui a oito ou dez anos.” Aurélio reconhece ainda o papel dos educadores e agentes culturais nessa nova fase da comunidade, pois são referência e, agora, têm a oportunidade de atuar com liberdade entre as crianças, sem o risco de entrar em conflito com facção criminosa.

Pacificação ou ocupação

ARMA CONTRA ARMA Frei Dito: paz intermediada pela força armada

Para Aurélio, o primeiro efeito positivo dessa ocupação recai sobre as crianças, que fazem dos becos e travessas uma área de lazer: “O grande barato dessa ocupação é, possivelmente, elas não terem mais de conviver com a presença de bandidos fortemente armados nem com o comércio escancarado de drogas,

CONVIVÊNCIA Moradores e força de ocupação participam do hasteamento da bandeira

O franciscano Benedito Gonçalves, da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, questiona alguns pontos que considera contraditórios na proposta de ocupação, denominada pelas autoridades governamentais como pacificação de favelas. Para frei Dito, como é conhecido, a intervenção do Estado na vida da comunidade é extremamente necessária, mas ele adverte que é preciso questionar essa paz intermediada pela força armada. “A proposta de pacificação tem dois lados. Primeiro, garantir a oficialidade; é uma verdadeira aberração comunidades viverem sem a presença do Estado, numa realidade paralela à sociedade. Mas, para garantir a paz, a substituição de um grupo armado por outro não basta”, diz o franciscano. “A verdadeira pacificação só será possível com a construção de uma cultura de paz”, observa, lembrando que outras comunidades já pacificadas ainda não apresentaram resultados mais concretos além da presença militar. Em meio às ressalvas – necessárias para que a comunidade permaneça atenta inclusive para cobrar do Estado os demais investimentos no acesso à cidadania –, o fato é que a promessa de pacificação da Rocinha promove uma sensação de otimismo na favela. Para Aurélio, a esperança é um bom começo, mas não pode ser confundida com ilusão. “Não sabemos se esse acontecimento é um novo caminho que nos levará ao céu ou ao inferno.” REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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CIDADANIA

ACIMA DA LEI Além do assassinato de Nísio, foram levadas três crianças, que continuam desaparecidas

Alerta vermelho

O assassinato de um cacique dos GuaraniKaiowá, maior grupo indígena do país, é só um prenúncio de tragédias maiores, caso o Estado brasileiro não tome providências urgentes Por Spensy Pimentel 24

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ra uma tarde de domingo, e a comitiva seguia pela estrada vicinal, em Iguatemi (MS). À frente, os carros da Fundação Nacional do Índio (Funai). Em seguida, convidados da sociedade civil. Mais atrás, dois ônibus com quase cem lideranças indígenas. Os homens nas caminhonetes portavam câmeras e fotografavam tudo e todos, alucinadamente. E, segundo relatos dos indígenas, gritavam: “Vamos queimar esses ônibus com índios! Índios vagabundos! Ficam invadindo fazendas”. “Ninguém pode com a gente! Nós mandamos aqui. Vai acontecer do jeito que nós queremos, nunca vamos deixar os índios nem a Funai invadir fazendas!”

No cruzamento da estrada vicinal com a rodovia, a equipe da Força Nacional de Segurança Pública que acompanhava a comitiva abordou os homens, identificou-os e revistou as caminhonetes. Eles seguiram arrogantes. Um deles falava de dedo em riste com uma pessoa da comitiva. Isso até descobrir de quem se tratava. Era o secretário de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, Paulo Maldos. Depois de saber, os homens se contiveram. A cena aconteceu em 27 de novembro, quando Maldos visitou o acampamento indígena de Pyelito Kue-Mbarakay. Desde agosto, os Guarani-Kaiowá do grupo resistem à beira de uma estrada vicinal,


pernas fraturados, desapareceu um adolescente do grupo. Maldos chegou a dizer aos fazendeiros que eles poderiam ser responsabilizados caso ocorresse novamente qualquer problema com os indígenas. Mas a presença de um representante do mais alto órgão do Estado brasileiro não bastou para frear as agressões.

MARIA PENA

Fazendeiro é a lei

perto de onde suas famílias foram expulsas décadas atrás. Hoje, esses tekoha (em guarani, algo como “o lugar onde se pode viver do nosso jeito”) são fazendas que pertencem a gente como os homens das caminhonetes – entre os quais estavam, segundo os membros da comitiva, o prefeito, José Roberto Arcoverde (PSDB), e o presidente do sindicato rural da cidade, Márcio Margatto. Os indígenas do acampamento têm sido alvo de constantes ataques de homens armados com carabinas calibre 12, com balas de borracha. Idosos e crianças já saíram feridos. No mesmo local, em tentativa anterior de retomada, em 2009, além de várias pessoas terem ficado com braços e

Um dia depois da visita, chegava às lideranças da Aty Guasu, o movimento político guarani-kaiowá, a denúncia de que homens de motocicleta tinham voltado ao local, disparando tiros e ameaçando-os. “Os fazendeiros são a lei nessa região. O Estado brasileiro não é soberano nesse território”, diz o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto. Ele não usa meias palavras para descrever a situação no sul do estado: “Esses senhores controlam forças paramilitares, passam por cima do Estado de Direito”. O método de repressão contra o grupo em Iguatemi é o mesmo que vem sendo aplicado em toda a região dos Guarani-Kaiowá. Em 18 de novembro, na área conhecida como Guaiviry, em Aral Moreira, foi morto o líder político e religioso Nísio Gomes. Também foram levadas três crianças, que seguem desaparecidas. Segundo a comunidade, o ataque foi feito nos mesmos moldes: dezenas de homens em caminhonetes usando armas pesadas e balas de borracha (além de projéteis comuns). “O método deles lembra o da Ku Klux Klan”, compara um profissional que atua em ações indigenistas na região, mas prefere não se identificar. O caso de Guaiviry, no entanto, é apenas um entre dezenas. Só a ponta de algo muito maior. Quase metade do 1 mi-

Terra manchada Entre 2003 e 2010, foram assassinados mais indígenas em Mato Grosso do Sul do que em todo o resto do país: 250, contra 202. Em outras mazelas, essa desproporção se repete e às vezes se amplia: 190 tentativas de assassinato (111 no resto do Brasil), 49 atropelamentos (ante 50), 176 suicídios (30). Os dados são de uma recente pesquisa do Cimi.

lhão de indígenas brasileiros está fora da Amazônia, espremidos em pequenas porções de terra no Nordeste, Sul e Centro-Oeste, que somam pouco mais de 2 milhões de hectares. Entre esses povos, os Guarani-Kaiowá são os que vivem, hoje, a situação mais desesperadora. Não que seus problemas sejam muito diferentes dos enfrentados pelos demais povos, mas sim pela escala. A presença de Maldos na região se devia ao anúncio da criação de um comitê interministerial que vai coordenar as políticas públicas aplicadas aos Guarani-Kaiowá, cuja situação é reconhecida pelo governo como um dos mais graves casos de violação de direitos humanos no país. O grupo hoje chega a 45 mil pessoas, confinadas em somente 42 mil hectares de terra. As demarcações estão atrasadas em função da resistência dos fazendeiros. O próprio governo brasileiro incentivou a ida de colonos não indígenas para a região, sobretudo entre os anos 1940 e 1970, de modo que boa parte dos atuais ocupantes alega ter documentos de suas terras. A situação é tão enrolada que uma comissão do Conselho Nacional de Justiça estuda uma saída para possibilitar a indenização dos fazendeiros pela terra, e não somente pelas benfeitorias, como é praxe. A Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul também está discutindo a criação de um fundo para possibilitar esse tipo de pagamento. Para que não se repitam tragédias como a de Nísio, espera-se celeridade em todas essas discussões. Por enquanto, o público segue com a impressão de estar vendo mais uma reprise do longa-metragem Terra Vermelha (2008), seguindo um roteiro que já completou 28 anos, com a morte de Marçal de Souza, em 1983. Já em Guaiviry, a família de Nísio é mais uma que luta para encontrar ao menos o corpo. “O que sempre chamou a atenção em Nísio e Odúlia (sua mulher, morta há cerca de três anos) foi a persistência deles”, conta o antropólogo Rubem Thomaz Almeida, que conhecia Nísio desde 1976. Já é a terceira vez que a família deles tenta retornar para aquele local. Quando o corpo aparecer, a tendência é que, como tem acontecido em vários casos recentes, os Kaiowá peçam para enterrar Nísio ali mesmo, no local pelo qual ele deu a vida. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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EDUCAÇÃO

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Só com amo No país onde haverá Copa e Olimpíada, 70% das escolas não possuem quadra, professores suam para conseguir equipamentos e a Educação Física não tem espaço na formação de crianças e adolescentes Por Cida de Oliveira

MAURICIO MORAIS

uma das mais belas ilhas do litoral brasileiro, a de Itaparica, na Bahia, eles treinam arremesso de coco. “O movimento e a postura corporal são idênticos aos do lançamento de pelota”, explica o educador físico Virgílio Leiro, referindo-se a uma modalidade para a qual seus alunos com deficiência treinam. Muitos deles já ganharam medalhas em paraolimpíadas escolares e, entusiasmado, Virgílio não mede esforços para ir toda semana de Salvador ao município de Vera Cruz, na ilha, onde a natureza é sua parceira para vencer a falta de espaço e de materiais adequados na escola. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia, que representa professores estaduais e das prefeituras, a situação é pior nos estabelecimentos mantidos pelos municípios. A maioria dessas escolas não tem espaço apropriado, aulas são dadas em terrenos, ruas e praças, e muitas vezes por professores sem formação na área. Histórias de amor à camisa como a dos professores baianos são muito comuns em todo o país. Segundo o Censo Escolar 2010, do Ministério da Educação, 72% das escolas de 1ª a 4ª série e 44% das que atendem da 5ª em diante não têm local para aulas de Educação Física. O quadro, que inclui as particulares, é agravado pela carência de cobertura, piso adequado, marcações, bolas, redes, cordas, bastões, traves, colchonetes e demais equipamentos essenciais para as aulas. “Quando falta dinheiro na construção da escola, a primeira coisa que se corta é a quadra”, aponta Ricardo Catunda, presidente da Comissão de Educação Física Escolar do Conselho Federal de Educação Física (Confef). “Mesmo vista como desnecessária, a disciplina é fundamental na formação do indivíduo, dos valores, da ética, da qualidade de vida. O ser humano tem de ter o pleno domínio de seu corpo. Como não tem, vivemos hoje distúrbios de toda ordem, a questão da imagem corporal na adolescência, do padrão estético. A escola não deveria tratar isso? Ou bastam Matemática e Língua Portuguesa para formar o indivíduo?” Conforme o Censo, a situação é pior no Norte e Nordeste. No Acre, há qua-

ESPREMIDA Na periferia paulistana, a escola novinha foi erguida sem quadra


ALTINO MACHADO

A VERBA QUE NUNCA CHEGA Em Rio Branco (AC), as crianças usam a “quadra” descalças

GILDO LIMA

mor à camisa

INUSITADO Em Itaparica, Virgílio treina seus alunos na praia, com cocos em vez de bola

dras em 5% das escolas estaduais de 1ª a 4ª série e em 20% daquelas que atendem a partir da 5ª. Nas municipais, a situação também é ruim. “É preciso abusar da criatividade, senão os alunos ficam sem jogos e brincadeiras”, afirma Luciano Santos de Farias, diretor da Escola Municipal Mestre Irineu Serra, que fica entre a zona urbana e rural de Rio Branco. “Algumas atividades são dadas dentro da sala de aula mesmo.” O terreno até tem espaço para abrigar uma quadra e um parquinho. Os recursos é que não chegaram. “Estamos na fila de espera da Secretaria de Educação, cuja política muda conforme a nova administração municipal”, diz Farias, cujo consolo é saber que a situação de sua escola não é a pior. Em Pernambuco, professores e alunos reformam redes velhas, inclusive de pesca, para cestas de basquete, traves de futebol e jogos de vôlei. “É comum usarmos bolas de meia, professores fazerem vaquinha para comprar material ou, até, trazerem emprestado de escolas particulares onde também lecionam”, relata a professora Ana Virgínia Lima Henriques, do sindicato dos professores no estado, o Sintepe. No Maranhão, menos de 3% das escolas municipais de 1ª a 4ª e de 23% das estaduais contam com quadra. Diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Maranhão, o professor Alexandre Muniz contesta o Censo. “Em 90% dos estabelecimentos mantidos pelo Estado não tem nem o cimentadão. E, quando há, faltam cobertura e o resto”, afirma. “É impossível dar aula sob o sol quente. Sofrem o professor e o aluno, sobretudo o mais pobre, mal alimentado, que precisa caminhar demais para ir à escola.” Nas competições escolares, conforme Muniz, oito em cada dez dos que se destacam são da rede particular. “Como a Educação Física geralmente é dada em horário complementar, o professor tem de fazer malabarismos para atrair o aluno. Uma pena, já que além de tudo é uma alternativa para tirar o jovem da violência para uma vida melhor.” Em sua opinião, a ausência de um projeto para a disciplina explica os minguados recursos para compra de materiais. “O jeito é levar a bola de casa, fazer bastões com cabo de vassoura, improvisar bambolês”, diz. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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EDUCAÇÃO

Precário e perigoso

Nos estados mais ricos, a situação também não é boa. Embora haja quadra em praticamente todas as escolas mantidas pelo maior município do país, o Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo informa que nem sempre têm cobertura, piso em boas condições, marcações, traves, cestos de basquete, equipamentos para vôlei e outros materiais. Em Minas Gerais, Fernando Magela, professor há sete anos da Escola Estadual Yolanda Jovino Vaz, no município de Arcos, diz ter usado apenas os materiais que ele próprio comprou em nome da escola. “E o que temos é um pátio descoberto, esburacado, onde muitas crianças já caíram e se machucaram.” O quadro é semelhante em outras escolas estaduais em que trabalha. “Na Vila Boa Vista, por exemplo, os alunos vão a um campo distante para ter aula de Educação Física. Mas todo o tempo é gasto só para ir e voltar.” A Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais reconhece o problema. O subsecretário de administração do sistema educacional, Leonardo Petrus, argumenta que muitas escolas são antigas, construídas em terrenos acidentados, mas o estado tem investido para equipá-las. “Para evitar prejuízos aos alunos, são feitos convênios com prefeituras para uso de espaços nas imediações”, afirma. 28

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Em São Paulo, 20% das unidades estaduais que atendem as quatro séries iniciais não têm infraestrutura adequada. “A escola não é ruim, não falta professor. Pena não ter espaço para as crianças”, afirma a dona de casa Juraci de Jesus dos Santos, com três netos matriculados na Escola Estadual Parque Novo Santo Amaro II, no Jardim Ângela, na zona sul. Como ela conta, há au-

RODRIGO QUEIROZ

Ricos e omissos

FOTOS DANIELA ARAÚJO/PHOTO E ARTE

Em Minas, 96% das escolas estaduais de 1ª a 4ª e 51% das de 5ª em diante não dispõem de espaço adequado para Educação Física. No município de Arcos, as crianças brincam em local esburacado. Equipamentos são comprados pelo próprio professor

Centros construídos no Rio, com dinheiro público, para os Jogos Pan-Americanos são subutilizados. O conjunto aquático Maria Lenk, em Jacarepaguá, está fechado aos alunos de comunidades pobres onde falta tudo Roberto Simões

las de Educação Física porque em alguns dias eles têm de ir com roupa apropriada. “Mas não sei como a professora faz num lugar tão apertado.” Para os moradores, que enfrentam também a escassez de vagas para todas as séries nas imediações, a solução seria construir quadras em terrenos da prefeitura ao lado dos estabelecimentos. Temerosos da política de retaliações do governo estadual, muitos professores só aceitam dar entrevista sem se identificar – inclusive aqueles ligados a entidades sindicais. Um deles conta que há escolas em que os alunos têm de atravessar vielas para a aula de Educação Física. Em outras, é comum professor comprar materiais com dinheiro do próprio bolso. E há aquelas em que salas de aulas improvisadas são construídas sobre as quadras. “Quando eu lecionava numa escola estadual, em 2006, praticamente não tínhamos material”, lembra Lia Polegatto Castelan, pesquisadora da Faculdade de Educação Física da Unicamp. “Quando sobrava alguma bola de um programa de esporte e lazer no fim de semana, a diretora deixava usar.” Para o governo de São Paulo, no entanto, a questão não parece ser relevante. “Os professores não precisam necessariamente estar no ambiente de uma quadra poliesportiva para que o conteúdo de Educação Física seja contemplado. Além das aulas teóricas ministradas em sala de


aula, o professor pode levar o aluno a praticar diversas atividades físicas e perceptivas ao redor da escola”, argumenta­em nota divulgada pela assessoria. Segundo o texto, o governo está investindo R$ 217,6 milhões na construção de quadras de esportes em 101 escolas e na reforma de 700.

Como desenvolver atletas

Em setembro, o Ministério da Educação lançou um programa de repasse de recursos para a construção de 6.116 quadras esportivas e cobertura de 5.000 já existentes, até 2014. Em 2011, foi aprovada a construção de 750 quadras em escolas municipais de todo o Brasil. Foram selecionadas unidades com mais de 500 alunos matriculados na educação básica que declararam no Censo Escolar 2010 não possuir tais espaços. Como o país tem 28.356 escolas municipais, a questão está longe de ser resolvida. A falta de infraestrutura não é o único problema da Educação Física escolar. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, inclui a disciplina entre os componentes curriculares obrigatórios do ensino básico. Como tal, deve permanecer na grade de aulas e acessível a todos os alunos. Em muitas localidades, porém, ainda é dada em horário alternativo, como se fosse uma atividade complementar.

Assim, atrai poucos alunos, prejudica os que trabalham e os mais pobres, que não têm condições de se deslocar fora do horário regular das aulas. “É atribuição da escola democratizar o acesso ao esporte e às demais práticas corporais de forma inclusiva e crítica”, ressalta Lia Castelan. Outro aspecto, segundo ela, é que os professores da disciplina, em geral, seguem o modelo excludente de um treino de alto rendimento. “Os mais habilidosos são mais bem acolhidos na aula. Os tidos como menos habilidosos são por vezes humilhados. Justamente o que não se espera de um ambiente de aprendizagem de uma linguagem corporal.” Ela aponta ainda, com base na própria experiência escolar, um equívoco que se tornou comum na disciplina: trabalhar apenas o conteúdo esporte, e de forma descontextualizada, tratando-o como uma sequência de fundamentos motores e de regras imutáveis, desprezando os outros conhecimentos da área. Embora a formação de atletas não deva ser o propósito da Educação Física escolar, a disciplina tem papel importante no seu desenvolvimento. É a partir dos 12 anos, princípio da adolescência, que o corpo está pleno para os movimentos estruturados exigidos pelas modalidades esportivas. Mas isso depende de uma preparação prévia. “Por meio de atividades lúdicas, praze-

rosas, harmoniosas, que nada têm a ver com a rotina de treinamento, a Educação Física contribui para alicerçar uma cultura do esporte”, explica Ricardo Catunda­, do Conselho Federal de Educação Física. Para ele, isso se torna muito difícil numa escola decadente, desestruturada, sem programa de governo, com pouquíssimas aulas semanais. “Como desenvolver atletas se na infância a criança não teve contato com as modalidades esportivas, não aprendeu a lidar com seu corpo, a ganhar e a perder?”, questiona Ricardo. “Não é possível conviver com uma situação em que atletas como Daiane dos Santos sejam descobertas por acaso, brincando na praça. Imagine quantos campeões estamos desperdiçando com nossa população multirracial, com biótipo para vencer em qualquer modalidade.” O professor Roberto Simões, da rede estadual e municipal do Rio, vai além. “Centros construídos no Rio, com dinheiro público, para os Jogos Pan-Americanos são subutilizados. O conjunto aquático Maria Lenk, em Jacarepaguá, na zona oeste, está fechado aos alunos de comunidades pobres onde falta tudo”, aponta. Para ele, pouco adianta o propalado legado de infraestrutura que os grandes eventos prometem. O que importa é a construção de um legado socioeducativo, do qual toda a sociedade se aproprie, e não apenas os atletas. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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SAÚDE

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uma época em que o contato com doentes e soldados era inadmissível para damas da corte, a inglesa Florence Nigthingale (1820-1910) foi para a Guerra da Crimeia, na Turquia, em 1854, e levou junto 38 enfermeiras voluntárias. Superou a hierarquia dos hospitais militares, que proibia mulheres e a assistência a soldados rasos, e introduziu métodos de higiene. Mais que referência para a enfermagem, Florence tornou-se 30

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conhecida por percorrer os leitos dos feridos, para os quais sempre tinha palavras de conforto e mensagens de fé, e por reduzir notavelmente a mortalidade. Daquela era de desafios aos costumes até os dias de hoje, a medicina evoluiu muito, e a dimensão espiritual dos cuidados aos enfermos também. Esta, antes atrelada à religião, está hoje inserida numa perspectiva de atendimento voltada para a compreensão da relação entre saúde e espiritualidade. Tal elo, aliás, é cada vez mais

investigado pela ciência. E há pouco mais de duas décadas a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o aspecto espiritual ao conceito de saúde, que já englobava a dimensão psíquica e a social. “De fato, a fé é um dos milagres da natureza humana”, afirma o médico geriatra Giancarlo Lucchetti, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Pesquisador da espiritualidade na prática clínica, Lucchetti­conta que há diversos estudos nessa direção, concluídos e em


Fé faz bem

andamento. Num banco de dados mantido pelos institutos de saúde do governo norte-americano, com pesquisas de várias partes do mundo, há mais de 41 mil referências ao termo espiritualidade na saúde – número equivalente às encontradas para atividade física. Segundo o pesquisador, a maioria dos trabalhos aponta menor incidência de depressão, ansiedade e suicídio e melhor qualidade de vida e bem-estar geral entre aqueles que, de alguma maneira, adicionam ao receituário­ de suas terapias o sentimento de fé. “Alguns pesquisadores encontraram menos casos de pressão alta e de mortes por causas cardiovasculares entre aqueles que praticam sua fé”, afirma Lucchetti. A explicação seria a redução do estresse mental, que atua no sistema cardiovascular, imunológico e endocrinológico, ativando as proteínas produzidas por células do sistema de defesa do organismo e substâncias envolvidas no processo inflamatório. Ou seja, as preces e meditações em busca do sagrado e da força interior diminuiriam o estresse e aumentariam o controle dos sintomas. Um estudo do Programa de Reabilitação Cardíaca da Faculdade de Medicina de South Western, na Carolina do Norte (EUA), entre outros, constatou que pessoas­ mais espiritualizadas estariam menos sujeitas a inflamação e doença coronariana. E outros semelhantes concluíram que a fé estaria relacionada a um sistema imunológico mais alerta contra o câncer de mama. Entre os pacientes de cirurgia cardíaca­, os pesquisadores identificaram menor estresse e melhor saúde mental. As pesquisas sinalizam ainda o desejo das pessoas, sobretudo as hospitalizadas, de uma abordagem espiritual associada ao tratamento médico. Uma delas,

Pesquisas revelam que a espiritualidade estaria relacionada à melhor recuperação e que as pessoas desejam uma abordagem espiritualista durante uma doença. No entanto, ainda não há preparo para esse atendimento no Brasil Por Cida de Oliveira. Fotos de Regina de Grammont

do Centro de Espiritualidade, Teologia e Saúde da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, revela que, dos 230 pacientes com câncer avançado entrevistados, 88% afirmaram que a religião foi, pelo menos de alguma forma, importante em sua vida. “Os pacientes hospitalares têm necessidades espirituais. Assim como tratamos a dor física, temos de tratar a espiritual”, defende o geriatra Franklin Santana Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, há trabalhos que mostram que cerca de 80% dos pacientes declaram se sentir mais confiantes se o médico fizer uma prece com eles, por exemplo. “Poucos profissionais de saúde abordam o paciente pelo viés da espiritualidade por falta de capacitação”, diz.

Perguntas sem resposta

O que ainda não se sabe ao certo é o momento considerado ideal para questionar, com naturalidade, o histórico espiritual do doente. Há ainda desconforto com relação ao tema, receio de impor pontos de vista religiosos e suposição de que o conhecimento sobre fé é irrelevante ao tratamento, e por isso não é papel do médico. Essas barreiras, segundo o geriatra, são quebradas assim que o médico se aprofunda no tema e se desvencilha dos próprios preconceitos. “No caso de pacientes não religiosos, em vez de direcionar o foco para a espiritualidade, o médico pode perguntar como convivem com a doença, o que lhes dá significado e propósito à vida e sondar quais crenças culturais podem ter impacto no tratamento”, afirma Santana Santos. Enquanto no Brasil apenas 6% dos cerca de 150 cursos de Medicina têm a disciplina Espiritualidade na grade curricular, nos Estados Unidos o número é crescente. De menos de cinco escolas médicas em 1993, saltou para mais de 100 nos últimos 15 anos. A disciplina é vinculada inclusive aos programas de residência médica. Em algumas, como na Universidade de Massachusetts­, é compulsória. Por meio de aulas teóricas e práticas, o residente aprende, entre outras coisas, princípios básicos das religiões e a participar de atendimentos com líderes da pastoral local. Seguindo a tendência, 59% das faculdades de Medicina britânicas já oferecem disciplinas relacionadas­. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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SAÚDE Autor de livros sobre cuidados paliativos, Santana Santos é de opinião que os profissionais, em especial da enfermagem, devem ajudar também a aliviar o sofrimento espiritual de pessoas com doença incurável e em estado terminal. “Aqui não estamos mais falando de doenças, e sim da morte. É preciso repensar os cuidados paliativos sob a ótica da espiritualidade”, afirma, lembrando que há males que não causam dor, como o Alzheimer, mas trazem sofrimento psicológico e espiritual. “É como se isso não tivesse importância nenhuma”, aponta. Entretanto, nem sempre a saúde é beneficiada pela fé. A professora Érika de Cássia Lopes Chaves, da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas (MG), argumenta que a religiosidade – e não a espiritualidade – pode ter efeitos adversos quando usada para justificar comportamentos negativos. “É o caso do paciente que é levado a crer que sua doença é uma possessão demoníaca ou castigo divino; de práticas religiosas usadas para substituir cuidados médicos tradicionais ou para induzir a culpa, vergonha, medo ou para justificar raiva e agressão”, explica. “Ou quando é excessivamente restritiva e limitante, causando o afastamento daqueles cujo comportamento conflita com os padrões religiosos seguidos.” Apesar dos avanços no estudo da relação entre espiritualidade e saúde, há ainda muitas perguntas sem resposta. Falta, por exemplo, explicar em detalhes os mecanismos biológicos que envolvem o fenômeno e, sobretudo, mensurar seu efeito­ terapêutico.

RECUPERAÇÃO MAIS RÁPIDA Para a fisioterapeuta Jaqueline Diniz, os pacientes que têm acompanhamento espiritual respondem melhor ao tratamento

Por meio da amizade que desenvolvemos, trabalhamos para ajudar o paciente a se recompor e para conscientizá-l­ o­ de que ele é agente de seu tratamento Padre João Inácio Mildner

De leito em leito

Uma vez por semana, a paulistana Edna­Maria Molnar, 54 anos, passa o dia no Hospital São Paulo, na capital paulista. Percorre quartos, enfermarias, corredores, berçários, emergências e unidades de terapia intensiva. Voluntária há 15 anos da capelania evangélica que atua no hospital, Edna leva aos doentes e acompanhantes palavras de confiança e consolo, um abraço, um toque, ou faz preces com quem lhe pede. “Convivi com pacientes que se recuperaram de comas e também com aqueles que não sobreviveram, mas viveram seus últimos dias de maneira serena”, conta Edna. 32

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PLURAL O pastor Antonino Ribeiro afirma que o acompanhamento espiritual sempre respeita a individualidade, sem distinção de credo, raça, sexo ou classe social


SERENIDADE Edna é voluntária evangélica no Hospital São Paulo, onde leva palavras de conforto aos pacientes de várias áreas

O pastor batista Antonino Pinho Ribeiro, autor do livro Há Graça no Sofrimento?, coordena a Capelania Evangélica do Hospital São Paulo desde sua criação, há 21 anos. O serviço atua em conjunto com a direção médica da instituição, prestando assistência espiritual, emocional e social a pacientes, familiares e funcionários, respeitando a individualidade de cada um, sem distinção de credo, raça, sexo ou classe­ social. “Os voluntários são treinados e não podem ter posição religiosa extremada, que possa comprometer o trabalho”, destaca o capelão. “Graças ao acompanhamento e atenção dos voluntários, muitos pacientes ficam mais tranquilos e respondem melhor ao tratamento”, atesta a fisioterapeuta Jaqueline Spoldari Diniz. No Instituto de Infectologia Emílio Ribas, de São Paulo, as capelanias católica, evangélica e espírita conduzem atendimento semelhante. Diariamente os voluntários visitam pacientes nos leitos e dão apoio a familiares. Morador de Boituva (SP), o aposentado Sílvio Ribas Sobrinho integra o grupo há 21 anos. “Quem não tem espírito de família, de cuidar do outro, não permanece no serviço, em que mais de 70% das pessoas internadas são portadoras de HIV, condição ainda carregada de estigma e preconceito”, conta. Coordenador dos três serviços de assistência religiosa oferecidos no Emílio Ribas, que inclui participação nos comitês de ética em pesquisa, humanização e cuidados paliativos, o padre João Inácio Mildner explica que a missão é dar força ao doente para enfrentar seu problema de saúde. “Por meio da amizade que desenvolvemos, trabalhamos para ajudá-lo a se recompor e para conscientizá-lo de que é agente de seu tratamento”, ressalta o religioso, que admite muitas vezes sentar-se ao lado dos voluntários para chorar a perda dos amigos que fizeram ao longo da jornada no hospital. A assistência religiosa é assegurada pela Constituição e pela Lei 9.982/2000, que garantem aos religiosos o acesso aos hospitais públicos e privados. Suas atividades devem obedecer a normas internas de cada instituição. A capelania hospitalar no Brasil começou em 1858, com os católicos, para atendimento a feridos de guerra. Estima-se que o serviço seja mantido em apenas 30 hospitais brasileiros. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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ENTREVISTA Beth Carvalho valoriza o choro, mas diz que a força da percussão do samba é fundamental. Venera Nelson Cavaquinho e Cartola e bota pilha nas novas gerações. Acredita no socialismo e sente saudade do velho Brizola e seus Cieps Por Beto Almeida

A energia da sambista

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reportagem da Revista Brasil foi encontrar Beth Carvalho em um seminário no Rio de Janeiro promovido por quatro fundações voltadas à pesquisa – ligadas ao PT, PCdoB, PDT e PSB. Ali se discutiam desdobramentos da crise do capitalismo. Isso, por si só, já diz muito da artista. Nesta entrevista, ela mesma diz mais. Passar algumas horas ao seu lado é tomar um banho de carioquismo e brasileirismo. É uma mulher perspicaz, crítica, de posições francas. Ao mesmo tempo, dona de alegria e energia contagiantes. No estacionamento, nos restaurantes ou no próprio ambiente do seminário, é assediada e estimulada: “Continue firme, guerreira” é o que mais ouve. Vai a todo lugar do Rio, na zona sul ou na zona norte, dirigindo seu carro e sem medo das madrugadas. “O povo me protege”, diz. Após um longo período de recuperação de delicada cirurgia, Beth sacode a poeira e dá a volta por cima. Dá uma atenção aguda às coisas da política, hoje especialmente à instalação das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas cariocas. Lamenta muito que os programas sociais dos governos de Leonel Brizola (1983-1987 e 1991-1995) tenham sido interrompidos e crê que seu Rio de Janeiro seria muito diferente hoje se tivessem continuado. Do samba e do povo brasileiro, “trabalhador e talentoso”, fala apaixonadamente. Seu novo disco traz 15 canções inéditas de compositores da nova geração e também Nelson Cavaquinho e Chico Buarque. “Nelson e Cartola são geniais, mas tem gente renovando o samba”, avisa. O CD Nosso Samba Tá na Rua é dedicado a dona Ivone Lara, que aos 94 anos continua compondo e cantando, lembrando que ela cantou nos corais de Villa-Lobos, criados na era Vargas. O álbum tem o sabor da mistura. E irradia a felicidade que Beth vive agora, ao voltar aos palcos e às ruas. “Todos os meus discos são um discurso pelo samba”, proclama.

WASHINGTON POSSATO/DIVULGAÇÃO

Quando Beth Carvalho olha pra trás, qual é a primeira lembrança de ter botado o pé na carreira musical?

O ambiente em casa sempre foi muito musical. Minha vó tocava violão e bandolim. Meu pai adorava cantar, era um homem moderno, me deu discos de João Gilberto e Dorival Caymmi. Minha mãe adorava ópera e cantava músicas do Orlando Silva. Minha irmã Vânia Carvalho também canta muito bem, até gravou um disco de samba. Eu cheguei a estudar piano, dava aulas de violão, frequentei as rodas da turma da bossa nova. Tanto a música como a política vêm do berço. Meu pai era de esquerda, foi perseguido pela ditadura, era varguista, brizolista, janguista e também admirava muito o (Luiz Carlos) Prestes. Minha mãe sempre estava do lado dos pobres. Esse era o ambiente em casa, boa música e política de esquerda.

Quando você desponta com Andança no 3º Festival Internacional da Canção, em 1968, abriu-se uma cortina na sua vida?

Ficamos em terceiro lugar com Andança. Mas ficar atrás do Tom (Jobim) e do Chico (Buarque), com Sabiá, e do (Geraldo) Vandré, com Caminhando, era como vencer. Éramos novatos, só ficamos atrás de monstros sagrados, e portanto radiantes. Andança colou no coração do povo. Uma toada moderna, mas é uma toada. O novo disco Nosso Samba Tá na Rua traz um leque de compositores, de Nelson Cavaquinho a uma novíssima geração de sambistas. Como é sua relação com esses compositores?

É total. Acyr Marques, autor de Coisa de Pele, poeta genial, era motorista de ônibus. Zeca Pagodinho era feirante e foi apontador do bicho. Almir Guineto era lixeiro da Comlurb. Marquinhos PQD, paraquedista. Essa gente está criando brilhantemente, tudo gente do povo, tem o proletariado na veia, sua visão do mundo. Minha relação com os compositores é profunda, não sei me relacionar superficialmente com ninguém. Talvez eu seja a intérprete que mais teve relações profundas com os compositores. E eles me amam também porque me consideram a intérprete deles. Quanto eu interpreto, interpreto o compositor, sou fidelíssima ao que ele faz. Claro que tem o meu eu, em algumas músicas me identifico com aquela história. Outras não têm a ver comigo, mas eu interpreto o autor. Eles ficam muito felizes porque se sentem representados, eu não deturpo o que fazem. O samba está se renovando, tem uma nova geração surgindo?

Está se renovando completamente. Eu defendo à beça essa gente nova, porque há uma turma que só dá valor a Nelson Cavaquinho e Cartola, que são geniais, e fica aí. E assim como Cartola, que era pedreiro, e o Nelson, que era soldado da PM, esses mais novos têm origem proletária. Precisamos valorizar também os que estão aí criando, renovando o samba. Você é carioca, da Gamboa (bairro da região central), e aqui nasceram dois estilos que dialogam muito entre si, o samba e o choro.

O choro é uma grande escola, deu Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, uma desbravadora, revolucionária, que enfrentou preconceitos da elite e o próprio marido para fazer música e vincular-se aos músicos negros e de origem humilde. Só que eu acho que alguns têm preconceito em relação à percussão. Fico chateada, pois ela é a alma do negócio, no samba, no forró, no baião. E olhe que eu sou de harmonia, toco violão e cavaquinho, dou o maior valor à harmonia, mas a percussão, principalmente no samba, é o que enriquece profundamente. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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ENTREVISTA Esse clima de felicidade do novo CD expressa a superação de um momento difícil, de problemas de saúde? O Zeca Pagodinho até lhe deu um rosário verde e rosa...

Em casa o ambiente sempre foi muito musical. Minha avó tocava violão e bandolim. Meu pai adorava cantar e era um homem moderno e de esquerda. Minha mãe curtia ópera e cantava Orlando Silva

Também, e principalmente. Mas eu já tenho esse espírito naturalmente. Sou uma pessoa pra cima, não tenho tendência a ficar deprimida, não é meu temperamento. Realmente, o que passei foi bastante doloroso, muito sério, mas tive tanto amor das pessoas por mim, dos meus amigos, meus parentes, dos compositores, do meio artístico... Durante esses dois anos que passei de cama, não fiquei um dia sequer sem receber visita! Quando saí dali tava de alma lavada, o resultado da operação deu certo, pois existia o risco de eu não mais voltar a andar. Havia essa possibilidade. Então, botei o bloco na rua mesmo, Nosso Samba Tá na Rua! E gravei um samba lindíssimo, que acho que é o meu estado de espírito agora, chamado Tô Feliz Demais, do Edinho do Samba, compositor da nova geração, que tem uma frase que acho fantástica: “Desta vez a felicidade exagerou comigo”. Qual é a marca principal do novo CD?

É a valorização do povo brasileiro, sempre. O compositor de samba é, em sua maioria, seu representante legítimo, com raras exceções. E eu sempre valorizei muito as qualidades do povo brasileiro. Trabalhador, talentoso, criativo. Uma capacidade de improvisação enorme, um talento enorme. Veja o repente nordestino, é uma maravilha! Uma vez ouvi uma frase tão bonita: “O povo não decora a sua casa, enfeita”. Lindo! Desde criança eu tenho essa coisa com os mais pobres, os menos favorecidos. Não sei se foi a criação que recebi em casa, minha família sempre favoreceu os pobres, sem demagogia. Esse CD é mais uma vez uma homenagem e uma declaração de amor pelo povo, por meio do samba. Como pintou esse nome?

É como se fosse uma passeata que estou fazendo com o samba, colocando o samba na rua com vários temas. O CD tem o tema da negritude, tem sambas carnavalescos, de bloco, os clássicos como Nelson Cavaquinho e Chico Buarque, tem o tema feminino e a presença da Mangueira, que é a minha escola. E é uma passeata. Alegre, com energia, com a marca do povo. Cada disco que faço é um discurso pelo samba. A música Nosso Samba Tá na Rua é uma obra-prima. Genial quando diz “vem de Deus esse som que a gente faz, nosso samba tá na rua” ou “de presente o moleque pede ao pai um cavaco, um pandeiro e ele sai, nosso samba tá na rua”. Então, é um discurso pelo samba. E com vários estilos, samba de bloco, partido-alto, samba-canção. Além disso, eu sempre procuro abordar vários temas, e isso depende muito do compositor, mas nesse disco a gente conseguiu. 36

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Uma música começa com o coral cantando “Mandela”. Qual o significado da escolha?

É minha enorme admiração pelo (Nelson) Mandela, uma exaltação à negritude. E descreve de uma maneira muito original as coisas da cultura africana, da cultura negra, da culinária etc., fala de camarão com chuchu. Fala também “olha que negro é lua africana, é o sol que vem de Havana, é o fim da minha dor” (cantarola). Quando eu gravo essas coisas é também pra bater de frente com o racismo que existe. Como você analisa a política de cultura?

No geral, percebo que há um esforço bem-intencionado. Mas a herança é tão pesada que precisamos fortalecer e apoiar muito mais a cultura brasileira, os criadores, a arte popular. Há um esmagamento do nosso cinema, os filmes norte-americanos controlam mais de 90% da exibição. Nosso povo não se vê nas telas. Há uma reação, mas falta muito. Há poucas bibliotecas, são mal equipadas, nossa taxa de leitura é baixíssima. Nosso povo, que é praticamente proibido da leitura de jornal. Faz falta um jornal popular, nacional e democrático no Brasil, como foi o Última Hora, criado pelo Vargas, que também nacionalizou a Rádio Nacional, criou a Rádio Mauá, que tinha, inclusive, a participação dos sindicatos de trabalhadores. Também foi o Vargas quem criou o Instituto Nacional de Cinema Educativo, sob a direção de Roquete Pinto e Humberto Mauro, e o Instituto Nacional de Música, chamando o Villa-Lobos para dirigir. Aliás, a dona Ivone Lara, a quem dedico o novo CD, cantou nos corais do Villa-Lobos. Ela é dona dos “laraiás” mais bonitos do Brasil... Seu pai era varguista. O que achou de Lula ter retificado sua opinião sobre Vargas, elogiando-o como um grande presidente?

Uma questão de justiça. É por isso que eu gosto do Lula. Afinal, eu gravei um disco inteiro, com o João Nogueira, com músicas da era Vargas, que tentaram destruir (O Grande Presidente, de 1989, durante a campanha do Brizola). Em boa medida, muita coisa está sendo retomada, como a indústria naval, que já foi a segunda do mundo com o Vargas e agora está criando empregos, soberania. Foi ou não na era Vargas que nasceram a Petrobras, a Vale do Rio Doce, a Siderúrgica de Volta Redonda, os direitos trabalhistas, o direito de voto para a mulher, a licença-maternidade, o Teatro Experimental do Negro, quando os negros entraram pela primeira vez no Teatro Municipal do Rio? Acho que o Lula está corretíssimo. Eu fico triste porque percebo que estão tentando acabar com a Voz do Brasil, que leva informação aos brasileiros que não podem ler jornal e que vivem nos grotões. Isso também foi o Vargas quem criou.


Lamento demais, até hoje, a perda do Brizola. É como se fosse um pai para mim. É como a perda de Getúlio Vargas. Eu tinha 10 anos quando o Vargas morreu e eu chorava copiosamente. Meu pai até me chamou: “Minha filha, peraí...” Eu sentia a dor do povo. E a perda do Brizola foi mais dura, porque convivi com ele. A nação perdeu um grande líder. Um homem preocupado com o povo brasileiro, amava o povo, honesto, preocupado com as crianças, com a educação, que é o caminho mais importante do país – sem educação a gente não vai para lugar algum. Se tivessem continuado os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública, com jornada integral e diversidade de atividades, ideia de Darcy Ribeiro introduzida nas gestões de Brizola, no Rio), não teríamos hoje uma geração de crack, teríamos uma geração de Cieps. É muito difícil surgir outro Brizola. Você se relacionou e se relaciona com homens como Fidel, Chávez, Brizola, Lula e na música com Nelson Cavaquinho, Cartola, Tom Jobim, e destaca que homens assim só nascem um a cada século. Qual é sua reflexão sobre isso?

Há os gigantes na política e na cultura, lutadores de toda uma época, que transformam a realidade do seu povo, como o Fidel, o Chávez, o Vargas, o Brizola, o Lula. Mas líderes como esses são uma raridade. Na música também. Um Tom não nasce a qualquer momento. Veja a qualidade musical do Nelson Cavaquinho. E era pobre. Cantava, às vezes, por um prato de comida. E quando tinha dinheiro dividia com amigos necessitados. Durante a Jovem Guarda, Nelson passou muita privação. Cartola também, um gênio daquele trabalhando como pedreiro, lavador de carro, servindo cafezinho. E doando ao povo pedras preciosas musicais. É por isso que eu valorizo muito projetos como o Ciep. O menino pobre, que morava na favela, ia para o Ciep e era tratado com dignidade. Tinha educação, dentista, música, esporte, capoeira, piscina, tomava banho, comia decentemente. Em casa tem de comer em pé ou sentado no chão. Lugar para estudar também não tem, são obrigados a viver amontoados, num cômodo só. O Brizola enxergou isso porque amava o povo. A continuidade desse projeto faria nascer uma nova consciência, favoreceria o nascimento de novos líderes. Considero um crime o que fizeram contra os Cieps. Qual é a ideia que fica quando se percebe que o imperialismo continua fazendo ameaças aos povos, inclusive uma cobiça recente sobre as riquezas do Brasil, o pré-sal?

Eu fico muito assustada porque sei que eles são capazes de tudo. Até de uma intervenção militar. São capazes disso. Fizeram isso com outros países, por que não fariam com o nosso? Eu admiro profundamente esses líderes porque são homens que lutam pelo seu país, defendem seu povo com unhas e dentes, são patriotas. É uma luta muito difícil porque o imperialismo não é brincadeira, não. A direita milita 24 horas por dia. Acho engraçado quando eles falam da militância da esquerda. A militância da direita é 24 horas por dia. Mas eu tenho esperança no futuro, no socialismo.

FOTOS RODRIGO QUEIROZ

Você teve uma profunda amizade política com Leonel Brizola (1922-2004), que faria 90 anos em janeiro. Como você avalia a política sem sua presença?

Como você avalia a nova América Latina e o projeto de integração do continente?

Beleza! A integração, porém, não deve se limitar ao lado econômico e comercial. É preciso avançar também no campo cultural. Acho a missão da Telesur importantíssima, pois a mídia imperial sempre tenta nos separar, trabalha para dificultar a comunicação entre os povos, leva ao desconhecimento de nossa história comum. Já a Telesur promove o conhecimento de nossos heróis, de Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Abreu e Lima a José Martí, Bolívar, Pancho Villa, com saci-pererê, com negrinho do pastoreio. Estou trabalhando num projeto para gravar as canções revolucionárias de cada país, em forma de samba. Carioca, sambista e brizolista, qual é sua análise sobre as UPPs nas favelas do Rio?

Creio que é necessário levar o poder público a todo o país, ao contrário da linha do neoliberalismo, que reduziu a presença do Estado, dos serviços públicos. O resultado nós conhecemos. Mas não basta a intervenção militar, muito menos se não for sistemática, agir eventualmente não adianta. Tem de levar escola, saúde, criar trabalho, melhorar a urbanização, o abastecimento de água, a coleta de lixo, as moradias, e também fazer a titulação dos lotes. Acho ainda que o movimento estudantil tinha de estar lá no morro junto do povo, desenvolvendo programas, levando a universidade para perto do povo, servindo ao povo. O Brizola foi injustamente criticado. Ele fez os Cieps, instalou os elevadores em vários morros. Agora o Lula e a Dilma instalaram os teleféricos no Morro do Alemão. Isso é positivo, é um sinal de respeito. O poder público tem de estar permanentemente lá. Se os estudantes subissem com programas, numa aliança com o povo, ajudaria.

Menino pobre ia para o Ciep e era tratado com dignidade. Tinha educação, dentista, música, esporte, piscina, tomava banho, comia bem. Considero um crime o que fizeram contra os Cieps

Beto Almeida é diretor da Telesur – www.telesur.net –, correspondente da Rádio de Las Madres Plaza de Mayo de Buenos Aires, presidente da TV Cidade Livre de Brasília e âncora da TV Senado REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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MEMÓRIA

300 anos de gran S Nelson era um boê­mio inveterado, capaz de passar semanas rodando de bar em bar, com o violão a tiracolo. Valente não entrou para a história da música popular apenas pelos seus clássicos, mas também pela maneira conflituosa com que combateu a hipocrisia da sociedade 38

e vivos fossem, os três continuariam desafiando o coro dos contentes e subvertendo a linha evolutiva da MPB. Boêmios, controversos e geniais, Nelson Cavaquinho, Assis Valente e Mário Lago estariam completando 100 anos neste final de 2011. A reportagem da Revista do Brasil ouviu especialistas para entender a real importância do trio para a cultura nacional e o quanto ele continua influenciando o imaginário artístico brasileiro. Há quem diga que se Cartola é o “Pelé do samba”, pelas harmonias e letras irretocáveis e pelo imenso apelo popular, Nelson Cavaquinho só pode ser comparado a Garrincha. Sim, Nelson adorava uma boa birita, mas não é por aí. A comparação se dá pela naturalidade com que o sambista transgredia. Assim como as pernas tortas e o drible de Mané, o violão tocado por Nelson nada tinha de previsível. Enquanto as rosas de Cartola exalavam o perfume da mulher amada, Cavaquinho destilava toda a sua mágoa em A Flor e o Espinho: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor”. Genial. Produtor musical, criador do programa Ensaio, da TV Cultura, Fernando Faro conviveu de perto com Nelson Cavaquinho. Faro conta que Nelson era o sujeito mais imprevisível que ele conheceu, um boê­mio inveterado, capaz de passar semanas rodando de bar em bar, com o violão a tiracolo, sem dia para voltar. Não tinha compromisso com nada e tampouco noção de sua genialidade (Garrincha puro). E passou boa parte da vida vendendo composições de sua autoria em troca de “dois mil réis”. “Um dia o encontrei e comecei a cantarolar uma música que havia sido gravada pela Isaurinha Garcia. Ele parou, arregalou os olhos e disse: ‘Nossa, que música bonitinha, de quem é?’ ‘Do Nelson Antônio da Silva’, respondi. E ele: ‘Mas o Nelson Antônio da Silva sou eu’.” Para Faro, em cada samba composto, em cada lágrima rolada, há um pouco de Nelson Cavaquinho. “É impossível calcular sua influência no samba de hoje.”

Valente

Assis Valente também não era dado a convenções. O compositor baiano – que foi novo para o Rio – não entrou para a história da música popular apenas pelos seus clássicos, todos imortais (Brasil Pandeiro, Camisa Listrada, Boas Festas), mas também pela maneira conflituosa com que combateu a hipocrisia da socie-

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dade. Negro, pobre e homossexual, o sambista lutou a vida inteira para ser reconhecido como o grande compositor que era, livre de preconceitos. Nem sempre conseguiu. Suas letras, alegres e festivas (“Brasil, esquentai vossos pandeiros/ iluminai os terreiros, que nós queremos sambar”), não combinavam com a forma trágica como viveu. Tentou suicídio por quatro vezes. Na primeira, atirou-se do alto do Corcovado, sob a bênção do Cristo Redentor – acabou salvo pelos bombeiros, quebrando apenas algumas costelas. Só conseguiu tirar a própria vida em 1958, ao ingerir guaraná com formicida. Faria 47 anos. O jornalista e escritor Gonçalo Júnior acaba de assinar contrato com a editora Record para lançar a biografia definitiva do compositor. Com o livro Quem Samba Tem Alegria – A Vida e a Música de Assis Valente, espera que sua obra seja reconhecida à altura de sua importância e muitas lendas em torno de sua figura sejam enterradas. “Ele foi um compositor dos mais sofisticados e refinados, que deu à música popular brasileira uma densidade temática pioneira”, diz o escritor. Para Gonçalo, a questão da homossexualidade nunca foi muito bem resolvida por Assis. “Só porque ele cantava, em primeira pessoa, o drama de muitas mulheres? Se for assim, Chico Buarque também é gay.” Duas canções de Assis Valente, ambas autobiográficas, são espelho fiel de sua personalidade, na opinião de Gonçalo: Cai, Cai, Balão e Alegria. “Elas contrapõem a alegria do samba e do Carnaval às tristezas e mazelas do dia a dia.” Em Alegria, por exemplo, o sambista resume sua melancolia no verso: “Vou cantando, fingindo alegria/ para a humanidade não me ver chorar”.

Mário Lago, em papo e prosa

Mário não morreu amargurado, muito menos esquecido. Era um homem muito bem resolvido, ciente de seus talentos e de suas poucas limitações. Fazia de tudo com imensa classe. Compositor invejável, poeta vigoroso, ator versátil, era dessas unanimidades incontestáveis. Não que não tenha tido suas desilusões. Sobretudo políticas. “Ele era um socialista de formação e passou a vida insatisfeito com os rumos do país­”, diz o jornalista e crítico musical Jairo Severiano. Filiado ao antigo PCB, o artista sempre foi um militante engajado, mas sua posição ideológica não era refletida nas letras. Não fez canções de protesto, mas em


andeza

As histórias centenárias de Assis Valente, Nelson Cavaquinho e Mário Lago não se misturam. Somam-se Por Tom Cardoso

Nelson, Lago e Valente foram gênios de sua época

compensação entrou para a história como autor de letras comportamentais, como Ai, Que Saudades da Amélia (em parceria com Ataulfo Alves), muitas vezes contestada como exacerbação do politicamente incorreto, mas sempre defendida pelo compositor como uma singela crônica de confrontação da consumista fútil com a mulher parceira, cúmplice, solidária. Em entrevista, chegou a dizer que a abordagem não é de gênero, pois também existe o “amélio”, para explicar que o tema é um estado de amor, não de submissão. Severiano e ele foram amigos viscerais. Querido pelos colegas e parceiros, Mário Lago só se tornava “desleal” quando uma conquista amorosa estava em jogo, como lembra o jornalista, em referência ao

“roubo”, pelo sambista, de uma das maiores paixões da vida de Noel Rosa, a dançarina Ceci. Noel ainda tentou dar o troco, reconquistar a amante (ele era casado e Lago, solteiro), mas a tuberculose o consumiu. Quando o coração de uma mulher estava em jogo, Lago “não era solidário nem no câncer”. Severiano conta que ele não poupou nem mesmo o amigo Custódio Mesquita (seu parceiro em clássicos como Enquanto Houver Saudade e Nada Além), famoso pela boa-pinta e pelo jeitão sedutor. Mas não era páreo para Lago, que ganhou todas as disputas com o parceiro e não tinha nenhuma dificuldade moral ou remorso em fazer o papel de “ladrão amoroso”. Ai, meu Deus, que saudade de Mário Lago.

Mário Lago era um homem muito bem resolvido, ciente de seus talentos e de suas poucas limitações. Fazia de tudo com imensa classe

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CULTURA

O tango reconquista o Brasil Um dos principais símbolos da cultura argentina, o tango se renova e ganha adeptos. Há até quem garanta que ele nasceu por aqui Por Guilherme Bryan

M

ais do que a presidenta reeleita, Cristina Kirchner, e o jogador Lionel Messi, o tango ainda é o principal ícone argentino no Brasil. O ritmo lota casas de espetáculos e está cada vez mais presente nas academias de dança. “A comunidade do tango é pequena em relação à população brasileira, mas está em expansão. É dedicada, apaixonada e responsável, formada por gente experimentada na vida e que sabe o que quer”, garante o dançarino Alan Forte, professor de uma academia em São Paulo. Natural de Buenos Aires, ele está na capital paulista desde 2010, e sempre viaja pelo mundo com o objetivo de ensinar a dança. Em 2011, esteve na França, Itália e Espanha. Segundo estimativa do empresário e pesquisador Ney Homero da Silva Rocha, também dançarino, há atualmente cerca de 300 praticantes no Rio de Janeiro, número próximo do de São Paulo. Também existem dezenas deles em cidades como Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza e Uberaba. “Há 25 anos, quando comecei, não havia espaços especializados por aqui. E os praticantes contavam-se nos dedos”, observa o autor do livro Tango, uma Paixão Portenha no Brasil e responsável pelo site Bardetango. Alan Forte considera a dança muito funcional e um meio fraterno de fazer 40

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amigos. “Também permite o relacionamento entre homem e mulher, com um jogo preestabelecido, que é abraçar e dançar. Ajuda muitas pessoas a voltar a cuidar da própria imagem e a se sentir melhor”, acredita. E acrescenta que já existem escolas e orquestras especializadas para o estudo do tango, musicalmente rico na melodia e no ritmo. Mesmo para quem considera não ter habilidade para dançar, ou interesse, o prazer de assistir a uma apresentação é incontestável. É mais comum ver brasileiros lotar as casas de shows na capital argentina do que encontrar hermanos nos nossos sambódromos. O espetáculo Uma Noite em Buenos Aires é apresentado há mais de 30 anos e praticamente em todos tem uma temporada no Brasil, com direção do maestro Carlos Buono e produção de Manoel Poladian, um dos maiores empresários de shows do país. Além de professores, dançarinos profissionais e aspirantes, existem no Brasil vários grupos dedicados à prática da música propriamente dita. O LiberTango surgiu em 1996, com a intenção de homenagear um dos maiores nomes da história – o compositor argentino Astor Piazzolla, nascido em Mar del Plata (1921-1992).

PASIÓN Ney Homero e sua mulher, Maria Christina: cerca de 300 cariocas praticam tango atualmente

“Minha mãe, pianista argentina, se juntou a meu irmão Alexandre Caldi (sax e flauta) e a Marcelo Rodolfo (voz) com a livre e espontânea vontade de explorar a obra de Piazzolla, da qual é profunda conhecedora. Eles formaram o Astor Piazzolla Trio, que se apresentou pela primeira vez há 15 anos, no Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Em 2000, entrei no grupo com o meu acordeom, e assim nasceu o LiberTango”, conta Marcelo Caldi, que toca acordeom. “Música boa, seja tango, seja qualquer outra, é a mesma em todo lugar do mundo. O público só aplaude aquilo de que realmente gosta. Mas ainda não há muito diálogo musical entre Brasil e Argentina, o que é um pecado. Lá eles conhecem a gente, admiram nosso país. Aqui pouco se conhece dos músicos de lá. O Brasil não se relaciona culturalmente com os países latinos de uma maneira geral. Nosso olhar está voltado para fora do continente”, lamenta Marcelo.


FOTOS LUCIANA WHITAKER

PECADO Marcelo é o acordeom do LiberTango: “Não há muito diálogo musical entre Brasil e Argentina. Nosso olhar está voltado para fora do continente”

Será?

A partir dali, é espalhado pelo mundo.” Alan Forte tem outra tese: “Foi uma criação cultural coletiva, com origem em todos os continentes. Por uma necessidade de expressão, as pessoas começaram a dançar tango em Buenos Aires. Não existem certezas quanto ao ano, mas acredita-se que entre 1850 e 1880”. A denominada época de ouro do tango aconteceu por volta da década de 1940, com nomes como Osvaldo Fresedo, Juan D’Arienzo e Francisco Canaro, que gravou com a cantora brasileira Dalva de Oliveira sucessos como Tristeza Marina, Madreselva e Uno. Logo em seguida, porém, Astor Piazzolla retorna dos Estados Unidos, onde passou a infância, muito influenciado pelo jazz, e tenta modernizar aquela música tão tradicional, o que é alvo de grande resistência. “Piazzolla representou uma ruptura na estrutura tradicional do tango, introduzindo elementos do jazz e da música

FOTOS AFP

De acordo com Ney Homero, o tango não nasceu na Argentina. “Nasceu no Brasil, e foi resultado da mistura de muitos gêneros e ritmos europeus com o batuque dos negros, no candomblé, entre 1850 e 1895. No início, era semelhante ao chorinho. Por aqui, porém, ganhou um andamento mais ligeiro, visando ao samba. Na Argentina, trocou os instrumentos de percussão pelo piano e, em 1910, pelo bandoneón, instrumento surgido na Alemanha parecido com o acordeom, da mesma família da concertina. Já a música recebeu influência do canto lírico italiano e passou a enfatizar os tempos fortes, criando uma característica regional”, destaca. Segundo ele, a fama mundial do tango argentino se deve ao fato de ter sido apresentado na França, em 1910. “Levado a Paris, lá se consagra e é aceito como gênero musical típico da Argentina.

ELEMENTAR Gardel revelou Piazzolla. O dois são as principais referências do tango

clássica. Gosto de comparar ao que aconteceu no Brasil com Tom Jobim, através da bossa nova. Inicialmente, houve resistência, mas depois o gênio foi merecidamente reconhecido”, avalia Marcelo Caldi. Uma curiosidade é que, aos 13 anos, Piazzolla foi convidado por Carlos Gardel, um dos nomes mais tradicionais do tango, a excursionar com ele e a interpretar um garoto no filme El Día Que Me Quieras, de 1935. Outra renovação marcante no tango ocorreu em 1999, quando surgiu o grupo Gotan Project, formado pelo francês Philippe Cohen Solal, o argentino Eduardo Makaroff e o suíço Christoph H. Müller, que mistura o ritmo portenho a elementos da música eletrônica. Em 2001, os rapazes lançaram um álbum, com o título provocativo La Revancha del Tango. Na mesma linha, há o Bajofondo, composto por músicos argentinos e uruguaios, conhecido no Brasil pela Pa’ Bailar, tema de abertura da telenovela A Favorita. “Esse novo tango abriu as portas para jovens dançarem tango. Só que, quando começam, eles se envolvem mesmo é com as velhas canções”, diz Alan Forte. Nos últimos anos, ganhou destaque mundial o Café de los Maestros, mais tradicional. Trata-se de iniciativa semelhante à do grupo cubano Buena Vista Social Club, formado por antigos músicos que se reuniram ao ser descobertos pelo guitarrista e compositor norte-americano Ry Cooder e pelo cineasta alemão Wim Wenders, que dedicaram a eles um documentário em 1999. “É uma dessas tentativas de manter vivo o tango na cabeça das pessoas, resgatando os maestros que fizeram parte da história musical da Argentina. Mas acredito também que eles sejam apenas parte de todo um movimento que vem acontecendo de revitalização do tango, a partir de alguns músicos da nova geração preocupados em preservar esse patrimônio cultural”, observa Marcelo Caldi. Curiosamente, por trás do Café de los Maestros e do Bajofondo está a influência do músico e compositor argentino Gustavo Santaolalla, vencedor de dois Oscars pelas trilhas dos filmes O Segredo de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee, e Babel (2006), de Alejandro Iñarritu. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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DIVERSIDADE OUTROS PALADARES Os colombianos prepararam uma sopa que chamam de ajiaco. Os sérvios, um chucrute que leva carne (à esquerda)

Volta ao mundo em sete sabores Pessoas que encontraram refúgio no Brasil trocam receitas de pratos tradicionais de seu país de origem e celebram sua acolhida compartilhando sua cultura Por Xandra Stefanel

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FOTOS ANDRE FORTES/DIVULGAÇÃO

C

arlos Ernesto Durand Llanos lembra-se nitidamente das sensações que o invadiram quando saboreou pela primeira vez um prato brasileiro, em um restaurante no Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo. Era 1989, e o prato, um tutu à mineira. “Eu sempre me lembro desse prato. Muy rico, um sabor que representa o Brasil”, diz o peruano de sotaque carregado. Para ele, a gastronomia é uma poderosa arma para unir as pessoas, independentemente de classe social, gênero, raça ou país­ de origem. E foi a comida que reuniu­, de


JAILTON GARCIA

TUTU À MINEIRA O peruano Carlos: a gastronomia é uma linguagem universal, que facilita o entendimento e faz lembrar de “histórias bonitas e emocionantes”

agosto a outubro, 50 refugiados no projeto Encontro de Sabores, organizado pelo Sesc São Paulo, com apoio da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) e da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo. Peruanos, colombianos, iraquianos, sérvios, congoleses, angolanos e nepaleses revisitaram em quatro oficinas receitas tradicionais de seu país de origem, além de histórias, aspectos sociais e culturais de cada grupo. Está previsto para o início de 2012 o lançamento de um livro com as receitas e informações sobre proteção a refugiados. Maria Cristina Morelli, coordenadora do Centro de Acolhida para Refugiados da Cáritas São Paulo, acredita que esses encontros promovem a desmistificação do refúgio e a integração dos que chegam. “A palavra refugiado causa estranheza e até medo nas pessoas, pois está relacionada a alguém que está fugindo e, na compreensão delas, se fugiu é porque deve – o que em nada corresponde à verdade. Os encontros de gastronomia aproximam a população em geral da cultura de outros países.”

Lembranças à mesa

Na oficina sobre a culinária peruana, Carlos preparou o tradicional ají de

gallina – um frango apimentado –, prato saboreado no Peru, geralmente, em ocasiões especiais. “Foi uma forma de oferecer aos outros refugiados um presente do meu país, para que a gente se entenda nessa linguagem universal que é a gastronomia.” O ají de gallina ainda faz parte da vida de Carlos mesmo depois de 22 anos no Brasil. Das memórias mais remotas das festas de família no Peru às reuniões em seu apartamento no bairro da Saúde, zona sul da capital paulista. “Aqui no Brasil sempre o fazemos, para comer e conversar, lembrar das coisas que aconteceram na minha terra. Penso que a gastronomia facilita contar histórias bonitas e emocionantes.”

Acolhidos no Brasil

1.579

pessoas já com o status de refugiadas

788

solicitantes de refúgio A maioria são homens vindos da África (República Democrática do Congo, Angola, Nigéria, entre outros países) Fonte: Cáritas Arquidiocesana. Setembro/2011

É certo que violência não é assunto que caia bem durante a refeição, mas era isso que o peruano e os outros refugiados tinham em comum nos encontros gastronômicos: todos passaram por situações tão ameaçadoras no próprio país que foram obrigados a procurar fora de casa um porto mais seguro para viver. Carlos morava e trabalhava no distrito de Capiri, na província de Satipo. Era chefe de produção de uma multinacional fumageira e vivia bem com sua mulher e quatro filhas, até que um grupo terrorista passou a ameaçar, matar e esquartejar moradores da região. Deixaram tudo e vieram para o Brasil. “Há 15 anos, eu não poderia falar disso porque as minhas experiências ruins estavam muito vivas. Eu trabalhava numa empresa grande, ganhava muito bem no Peru, minha família estava bem, só que a violência me tirou de lá. Mas agora posso ver o lado positivo. Hoje, eu e a minha família temos uma vida maravilhosa aqui”, diz o professor de espanhol. Sua única reclamação é não encontrar no Brasil os temperos típicos de seu país. Na receita do ají, por exemplo, a pimenta amarela e o leite evaporado tiveram de ser substituídos por páprica e leite comum. “Aqui não tem os condimentos peruanos. Gostaria que vocês conhecessem minha terra pela gastronomia, que fossem vendidos produtos num lugar público, de forma não elitizada. O que vocês sabem do Peru? Que tem narcotráfico e muita violência? É preciso quebrar esses estereótipos, e foi isso que nós, refugiados, fizemos nas oficinas.” E com muita cor e sabor. Os iraquianos prepararam o quibe de arroz (kibe halab); os angolanos, feijão com óleo de palma; os sérvios, chucrute recheado (sarma); os nepaleses, frango ao curry (morg korma); os refugiados da República Democrática do Congo, bacalhau frito com folha de mandioca (pondu); e os colombianos, uma sopa que chamam de ajiaco. Depois dos encontros, Carlos afirma que se aproximou mais dos africanos e colombianos. “Fomos unidos pelas receitas. Um prato de comida é um caminho para aprender. Antigamente era costume se reunir em torno da mesa, e isso está se acabando. A comida pode fazer esse link entre as pessoas, para que se unam e façam coisas maiores.” REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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PERFIL

Os poderes da Mãe Stella Ela lê romances, polemiza no jornal, aprecia vinho e vai a bailes de Carnaval. E entre uma transgressãozinha e outra, sem abrir mão das tradições, tornou-se a mãe de santo mais influente da Bahia Por Tom Cardoso

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ERIK SALLES

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aria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de Oxóssi, ialorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, é uma ialorixá diferente. Ela gosta de romances policiais, vinho tinto chileno, escreve semanalmente artigos, sobre qualquer assunto, para o jornal A Tarde, recebe padres para almoçar e não perde um jogo do Vitória (“Olha só para a minha cara, meu filho, e eu lá tenho cara de torcedora do Bahia?”). Aos 86 anos, Mãe Stella já provocou polêmica ao assumir, relativamente cedo, aos 49, o posto de ialorixá do Opô Afonjá. A escolha causou desconfiança até mesmo em sua irmã, dona Milta, que foi pedir ajuda a Mãe Menininha do Gantois (1894-1986), na época a mais poderosa – e midiática – mãe de santo da Bahia, que tratou logo de tranquilizá-la: “Isso não é comigo, isso é com os orixás. Eles sabem que Stella tem força, eles a conhecem”. E


ela tem. A aparente fragilidade ao descer as escadas para conversar com a Revista do Brasil foi dissipada assim que ela olhou nos olhos do repórter e disse o que costuma repetir a todos que ousam olhá-la com compaixão. “Eu sou de Oxóssi. Enquanto os outros andam a pé, eu vou a cavalo.” Mãe Menininha partiu e Mãe Stella, apesar de pertencer a outro terreiro, assumiu, em termos de prestígio, o trono de mãe de santo mais poderosa da Bahia. Os estilos são diferentes. “Mãe Menininha era uma doçura de pessoa. Eu já sou pouco acessível, não tenho muita paciência”, confessa. Mãe Stella exerce com prazer e devoção o trabalho de ialorixá, mas isso não quer dizer que aceite ser mãe de santo 24 horas por dia. Quando vai a um restaurante, uma fila já se forma de frente à sua mesa. Outro dia, uma mulher bateu à porta do Opô Afonjá. Queria saber se o filho passaria no vestibular. “As pessoas confundem muito as coisas. E acho que é culpa dos tempos atuais. Outro dia vi na TV, ou no jornal, não lembro, que uma mãe de santo aceitava consultas pagas em cartão de crédito. Não pode, né? Os templos de candomblé parecem hoje com anfiteatros modernos.” O Opô Afonjá tem a marca de Mãe Stella. O chão é de terra. Ela se recusou a asfaltá-lo. Também não aceitou que os filhos de santo comprassem modernas máquinas de cortar quiabo e de depenar galinhas. Ela se considera uma mãe de santo moderna, mas conserva antigas tradições. Bate forte nos blocos carnavalescos que costumam usar imagens de orixás em seus figurinos. E não poupou nem o governo quando este autorizou que os postes da cidade fossem decorados com orixás durante a festa. “O Carnaval é uma festa profana. Quer brincar, pular, cantar, tudo bem, mas não misture as coisas”, diz. A própria Mãe Stella sentiu na pele o peso da tradição, que no candomblé paira acima da passagem do tempo, das transformações sociais e comportamentais. Quando assumiu o terreiro, prestes a completar 50 anos, ela não deixou de frequentar os bailes e clubes. Foi criticada, mas continuou. “Como ialorixá não podia mais me expor como antes, mas nem por isso deixei de viver a minha vida”, diz. Ela já tinha transgredido anos antes, ao decidir trabalhar como enfermeira, numa época em que moças de família eram recomendadas a ficar em casa cuidando do marido e dos filhos. Divorciada, não teve filhos nem aceitou viver como uma amélia. Primeira mãe de santo a assinar uma coluna em um grande jornal, Mãe Stella escreve à mão os artigos semanais e depois os dita à filha de santo Graziela, que os digita e envia ao jornal A Tarde. A aversão a máquinas de quiabo se estende, claro, a computador, internet etc. Jamais lerá os livros de Erico Verissimo, seu escritor predileto, em um iPad. “Gosto de me

atualizar, de conversar com os adolescentes. Mas me deixe longe de qualquer tipo de maquinário.” Ela se informa lendo jornais. Opina sobre qualquer assunto e não deixa de polemizar. Já atacou diretamente a gestão do prefeito de Salvador, João Henrique, evangélico, que costuma não mostrar muita tolerância com terreiros de candomblé. Hoje a relação com o prefeito é razoável, já com os evangélicos... Recentemente, um grupo tentou invadir o Opô Afonjá e foi posto a correr. “São os fanáticos de sempre, que não entendem que vivemos num país laico.” Aliás, dentro do terreiro funciona uma escola da rede pública, em convênio com a prefeitura. Uma das primeiras providências de Mãe Stella foi vetar o ensino de qualquer religião. “Eu poderia aproveitar que a escola fica dentro do terreiro para pedir que ensinassem o candomblé. Mas religião não se impõe.” Mãe Stella também provocou polêmica ao se declarar radicalmente contra o sincretismo, marca registrada da Bahia. Ela almoça com líder da Igreja Católica, dialoga com o prefeito evangélico, mas não mistura as religiões. “O sincretismo não leva a nada. Enfraquece os dois lados. Não vejo vantagem nenhuma em misturar São Jorge com Oxóssi.” Uma das 12 cadeiras do ministério de Xangô, o mais alto posto civil do Opô Afonjá, criado em 1937 por Mãe Aninha, é ocupada por Gilberto Gil, que substituiu o escritor Jorge Amado, uma das personalidades baianas mais próximas de Mãe Stella. Paparicada por políticos baianos, que costumam visitá-la em períodos eleitorais, ela nunca se deixou levar por oportunistas. “O político que chega aqui mal-intencionado, à procura de promoção, ou de voto, nem passa da porta”, diz Stella, que mantinha uma relação distante com Antônio Carlos Magalhães. “Era uma relação cordial, e não de paixão, como muitas mães de santo mantinham por ACM. Aliás, não sou apaixonada por ninguém”, diz, do alto de sua independência.

O sincretismo não leva a nada. Enfraquece os dois lados. Não vejo vantagem nenhuma em misturar São Jorge com Oxóssi

Nada contra as máquinas Mãe Stella foi a primeira mãe de santo a escrever livros sobre religião. Tem quatro: E daí Aconteceu o Encanto, 1988; Meu Tempo É Agora, 1993; Oxóssi – O Caçador de Alegrias, 2006; e Provérbios, 2007. Também fala fluentemente quatro línguas (inclusive iorubá) e é doutora honoris causa da Universidade Federal da Bahia. Um estofo cultural (ela, de família católica, estudou em colégios particulares) pouco comum a mães de santo. Mesmo assim, confessa: “Nunca estive totalmente segura como ialorixá”. As cobranças não são poucas, segundo ela. Aos 86 anos, já começa a pensar na sucessão. A sexta ialorixá do Opô Afonjá não será escolhida por ela, e sim por um colegiado. Mas espera que a próxima mãe de santo continue seu legado. Que tenha os olhos apontados para o futuro, sem, jamais, abrir mão das tradições. Ela vai poder usar máquina de cortar quiabo? Mãe Stella abre um sorriso, o primeiro da entrevista, e diz baixinho: “E quem sou eu para lutar contra as máquinas?”

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VIAGEM

Onde o Velho Chico virou mar

No antigo Salto do Sobradinho, eternizado por Sá & Guarabira antes de virar barragem, um barco sobe e desce os mais de 30 metros de eclusa e visita vinícola e fazenda Por José Paulo Borges. Fotos de José Augusto Cíndio

Os turistas conhecem a produção e podem degustar os vinhos

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uando as cortinas de aço da eclusa da barragem de Sobradinho se abrem, é impossível não se impressionar com o que acontece em seguida. No meio da caatinga, em pleno Rio São Francisco, no interior da Bahia, sob um sol de mais de 30 graus, o espetáculo é deslumbrante. São 4.214 quilômetros quadrados e capacidade para 37,5 bilhões de metros cúbicos de água do segundo maior lago artificial do mundo. O céu sertanejo de um azul-cobalto e os morros ao fundo compõem, com as marolas de meio metro de altura, ou mais, a paisagem onde o Velho Chico vira mar. Com 120 metros de comprimento e 17 de largura, a eclusa permite às embarcações vencer o desnível de 32 metros criado pela barragem construída pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), no período de 1973 a 1979. O Vapor do Vinho, referência às primeiras embarcações que navegavam pelo São Francisco, impulsionadas a vapor, leva até 50 turistas à eclusa e à Barragem de Sobradinho, à Fazenda Fortaleza, produtora de frutas, e à Vinícola Terranova, ambas no município baiano de Casa Nova. O passeio dura cerca de oito horas. Cobre um trecho do São Francisco situado a 40 quilômetros das cidades de Petrolina (PE), Juazeiro e Sobradinho (BA). O ônibus – grande, novo e confortável – parte cedo da orla de Petrolina e, após cerca de 50 minutos de viagem, para na vinícola. Os visitantes são conduzidos por guias da Terranova para conhecer o processo produtivo. Ao final, podem degustar, ou comprar, vinhos, espumantes e brandy num elegante salão. A etapa seguinte, uma incursão à Fazenda Fortaleza, produtora de uvas e mangas para exporta-


ção, termina igualmente em degustações. Já por volta do meio-dia, o grupo é conduzido à barca para o retorno a Petrolina. No meio do caminho, a passagem pela eclusa é um espetáculo fascinante. O trajeto que leva a embarcação, para baixo ou para cima, é uma experiência de encher os olhos. Inaugurada em 1978, a eclusa é um reservatório em forma de câmara que possibilita, pelo enchimento e pelo esvaziamento, que uma embarcação transponha a diferença de nível. O desnível de pouco mais de 32 metros da represa está entre os quatro maiores no mundo. No retorno, durante as cerca de quatro horas finais da viagem, os visitantes recebem no rosto a brisa do Velho Chico e são brindados com a paisagem das margens baiana e pernambucana do rio. De quebra, desfrutam a excelente comida regional de bordo – com direito a bode cozido e peixes do São Francisco –, incluindo petiscos e bebidas variadas. A hospitalidade e a diversão prosseguem. Pouca gente resiste à tentação de mexer os quadris, embalada pelos ritmos de uma banda regional. A eclusa permite às embarcações vencer o desnível de 32 metros entre o rio e o lago

A represa de Sobradinho formou o segundo maior lago artificial do mundo

Serviço

Roteiro: 8h30, saída da orla portuária de Juazeiro (BA)-Petrolina (PE), via rodoviária, até o porto de Chico Periquito, em Sobradinho (BA); 10h, embarque no Vapor do Vinho em direção à eclusa; 13h, chegada à Fazenda Fortaleza; 14h, chegada à Vinícola Terranova; 17h, chegada prevista às orlas de Juazeiro e Petrolina. Informações: (74) 8805-1809, (74) 9147-9991. vapordovinhovrf@hotmail.com. Preço: R$ 90, por pessoa (não inclui alimentação). Imagens: digite “conheça o vapor do vinho” no YouTube.

O passeio dura cerca de oito horas

Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado... Sertão baiano, 1978. Com a subida de nível das águas do Rio São Francisco, o lago formado para a construção da represa de Sobradinho atingiu sua capacidade máxima, afogando as cidades de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado, 26 povoados e uma imensa extensão de terras agricultáveis. Mais de 70 mil pessoas foram desalojadas. A imagem daquele dilúvio repentino e as promessas de fartura e

oportunidades em outros assentamentos, distantes, acenadas pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), responsável pela barragem, convenceram os ribeirinhos a deixar suas terras. Os “beraderos“ ou “barranqueiros” tinham forte relação de sobrevivência com o rio. Cerca de 6.000 famílias foram transferidas para o Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho, em Bom

Jesus da Lapa, a 700 quilômetros de onde viviam. Receberam glebas de 25 hectares, sem irrigação. Passados alguns anos, muitos não se adaptaram, transferiram sua terra para terceiros e tentaram voltar, inchando as periferias do Vale do São Francisco. A hidrelétrica de Sobradinho foi orçada em US$ 870 milhões (valores de dezembro de 1979). Os custos sociais e ambientais são incalculáveis.

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CurtaessaDica Por Xandra Stefanel

xandra@revistadobrasil.net

Vários movimentos em um

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

As diversas vertentes do Movimento Modernista são o tema da exposição Modernismos no Brasil, em cartaz até 29 de janeiro no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP), com 150 peças nacionais e internacionais. Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Paul Klee, Pablo Picasso, Wassily Kandinsky, Henri Matisse, Iberê Camargo, Tomie Otake, Flávio de Carvalho, Victor Brecheret, Alfredo Volpi e Mark Chagal são alguns dos que têm peças na mostra. Terças e quintas, das 10h às 20h; quartas, sextas, sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. Rua da Praça do Relógio, 160, Cidade Universitária. Grátis.

A Negra (1923), de Tarsila do Amaral

Retrato de José Lins do Rego (1948), de Flávio de Carvalho

Mais modernismo

A Chinesa (1921-22) e Nu Cubista (1917), de Anita Malfatti

Em Curitiba, a trajetória de Anita Malfatti pode ser revisitada no Museu Oscar Niemeyer também até 29 de janeiro. Entre as 100 obras da mostra homônima, estão as mais importantes e significativas da carreira da artista que, em 1917, abalou as estruturas artísticas brasileiras ao expor 53 trabalhos bastante ousados para a época – tanto que Monteiro Lobato chegou a dizer que “pareciam desenhos de internos de manicômio”. De terça a domingo, das 10h às 18h, na Rua Marechal Hermes, 999, Centro Cívico. R$ 2 e R$ 4.

Mistura sexy O DVD Sexo MPB – O Show (EMI Music) apresenta uma mistura musical pra lá de improvável que acabou dando certo. Angela Ro Ro cantando Ai, Que Saudades da Amélia, as Frenéticas com As Cantoras do Rádio, Fernanda Abreu e um pout-pourri de Rita Lee, Cláudia fazendo samba-jazz e Perla explodindo com Os Amantes, sucesso antigo de Luiz Ayrão, estão entre as preciosidades arquitetadas pelo pesquisador e produtor Rodrigo Faour. A segunda edição do Troféu Sexo MPB, criado em 2009 por ele, foi gravada em outubro no palco do Centro Cultural Carioca com a intenção de reunir diferentes gerações movidas pelo talento e tesão pela música. R$ 35, em média. 48

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História fiel

Já se passaram 35 anos do dia em que cerca de 70 mil torcedores se deslocaram de São Paulo até o Rio de Janeiro para apoiar o Corinthians, que amargava duas décadas de fila. É essa história que os jornalistas Igor Ojeda e Tatiana Merlino contam com profundidade e leveza no livro A Invasão Corinthiana: o Dia em Que a Fiel Tomou o Rio de Janeiro para Ver Seu Time Jogar no Maior Estádio do Mundo, da LF Editorial. Juca Kfouri, que assina a quarta capa, resume: “Os autores remontam os altos e baixos da trajetória corintiana para que tudo faça sentido ou para que nada faça sentido – seja apenas sentido”. R$ 49.


Martina Gusman vive Julia no longa argentino

Maternidade atrás das grades Estreou nos cinemas no final de novembro Leite e Ferro, primeiro documentário de Cláudia Priscila, que mostra a maternidade no Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa (Cahmp). Quem conduz a narrativa é Daluana, que passava pela segunda vez pelo centro para amamentar. Traficante desde os 10 anos e na época da filmagem (em 2007) com 40, a personagem tinha acabado de ter um filho do traficante conhecido como Da Lua. É evidente a contradição de sentimentos daquelas mulheres: a grandiosidade da maternidade fica limitada às grades e ao tempo que a criança fica com a mãe antes de ir para alguém da família, orfanatos ou adoção – às vezes ilegal. O tema cruel foi retratado com delicadeza pela equipe, que passou um mês no local, onde estavam 70 mulheres e 70 bebês. O Cahmp já não existe, foi fechado há dois anos, e as mães presas agora são levadas a centros hospitalares. Como ainda não há previsão para Leite e Ferro chegar às locadoras, se você não conseguir ver nos cinemas, pode se preparar para o tema difícil com o longa-metragem de ficção argentino Leonera, de Pablo Trapero. Nele, Julia (Martina Gusman),

Daluana e o filho: futuro incerto

acusada de assassinato, é enviada a uma penitenciária especial para mães e grávidas sentenciadas. O filho Tomás torna-se sua única razão de viver e é por ele que ela vai da tranquilidade à fúria naquela jaula de leoas. Rodrigo Santoro é um dos poucos homens do filme. Em DVD.

À amizade A história triste de Germain – contada por meio de flashbacks – poderia até resultar em um filme dramático, triste e pesado. Mas o que se vê em Minhas Tardes com Margueritte, dirigido por Jean Becker, está longe disso. Interpretado por Gérard Depardieu, Germain é um bonachão simpático e embrutecido que conhece Margueritte (Gisele Casadesus), uma senhora de 95 anos, moradora de um asilo. O encontro se dá na praça a que ela vai todos os dias para ler para os pombos. E é do encantamento pela literatura que nasce a história de uma amizade emocionante e intensa. Em DVD. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2011

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MárioLago

da questão

AGLIBERTO LIMA/AE

O

N

As pri­mei­ras ví­ti­mas da fú­ria de Nino fo­ram Xi­me­na, a pro­fes­so­ra, seu ir­mão Ale­xan­dre e o Xa­vier da far­má­cia

o qua­dro-ne­gro es­ta­va es­cri­to que as pa­la­vras com acen­tua­ção tô­ni­ca na úl­ti­ma sí­la­ba são oxí­to­nas e Nino quis sa­ber como se pro­nun­cia­va aque­le x. — Como se fos­se cs. O ano le­ti­vo es­ta­va no fim e Nino per­gun­tou quan­do se­riam os ec­sa­mes. — Não é ec­sa­mes, Nino. — A tia dis­se que x se diz cs. — Na pa­la­vra oxí­to­na. Em exa­me soa como z. Nino ti­nha 15 anos e ain­da no 1° grau. Seu pai pro­me­teu fé­rias na Dis­ney­lân­dia se pas­sas­se. Inú­ til. Re­pro­va­do. — Tia, dei ve­za­me. — Não é ve­za­me. — A tia fa­lou: x vale z. — Em exa­me. Em ve­xa­me é como se o x fos­se ch. O me­ni­no des­cen­dia de ita­lia­nos, sua apro­va­

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ção en­vol­via hon­ra pá­tria. Três ex­pli­ca­do­res. Nota 9 na re­cu­pe­ra­ção. — Mui­to bem, Nino. — Tia, eu sou o má­chi­mo. — Não é má­chi­mo, me­ni­no. — X não é igual a ch? — Em ve­xa­me. Em má­xi­mo, o x soa como c. Mas você pas­sou. Ótimo. — Eram tec­tos fá­ceis. — Na pa­la­vra tex­tos, o x se pro­nun­cia como s. As pri­mei­ras ví­ti­mas da fú­ria de Nino fo­ram Xi­ me­na, a pro­fes­so­ra, seu ir­mão Ale­xan­dre e o Xa­ vier da far­má­cia. No Ma­ni­cô­mio Ju­di­ciá­rio, onde está há 20 anos, já ma­tou Xis­to, en­fer­mei­ro-che­fe, e um chi­nês, por­que acha que a pa­la­vra se es­cre­ ve com x. Crônica extraída do livro 16 Linhas Cravadas, de Mário Lago (1911-2002), Editora Publisher Brasil, 1998


Região Norte VENCEDORA

Banco Comunitário Muiraquitã

Inclusão Digital da Amazônia - INDIA

Santarém

PA

Redes de Produção Agroecológica e Solidária

Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes - APACC

Cametá

PA

Tarumã Vida: Do Carvão às Tecnologias Sociais

Associação Agrícola do Ramal do Pau Rosa - ASSAGRIR

Manaus

AM

Centro de Educação Popular e Formação Social - CEPFS

Teixeira

PB

Jovem Empreendedor: Ideias Renascendo em Negócios

Acreditar

Glória do Goitá

PE

Rede Cearense de Turismo Comunitário - Tucum

Instituto Terramar de Pesquisa e Assessoria à Pesca Artesanal

Fortaleza

CE

Região Nordeste VENCEDORA

Bancos de Sementes Comunitários

Região Centro-Oeste VENCEDORA

Construção de Habitação em Assentamentos

Associação Estadual de Cooperação Agrícola - AESCA

Campo Grande

MS

Fique de Olho, Pode Ser Câncer Infanto-juvenil

Associação dos Amigos das Crianças com Câncer - AACC/MS

Campo Grande

MS

“Tampando Buraco”: Recuperando Voçorocas

Embrapa Arroz e Feijão

Santo Antônio de Goiás

GO

Região Sudeste VENCEDORA

Agroecologia Urbana e Segurança Alimentar

Sociedade Ecológica Amigos de Embu - SEAE

Embu da Artes

SP

Ecos do Bem: Educação Ambiental no Território do Bem

Associação Ateliê de Ideias

Vitória

ES

Modelos de Acesso ao Crédito para o Terceiro Setor

SITAWI

Rio de Janeiro

RJ

Oficinas de Artesanato e Construção de Identidade

Fundação Parque Tecnológico Itaipu

Foz do Iguaçu

PR

Tribos nas Trilhas da Cidadania

ONG Parceiros Voluntários

Porto Alegre

RS

Visão de Liberdade

Conselho Comunitário de Segurança de Maringá

Maringá

PR

Região Sul

VENCEDORA

Tecnologia Social na Construção de Políticas Públicas para Erradicação da Pobreza VENCEDORA

Fossas Sépticas Econômicas

Prefeitura Municipal de Caratinga

Caratinga

MG

Horta Comunitária - Inclusão Social e Produtiva

Prefeitura Municipal de Maringá

Maringá

PR

Orçamento Participativo Jovem de Rio das Ostras

Prefeitura Municipal de Rio das Ostras

Rio das Ostras

RJ

Participação de Mulheres na Gestão de Tecnologias Sociais VENCEDORA

Investimento Social em Mulheres e Meninas

Fundo Ângela Borba de Recursos para Mulheres/ELAS - Fundo de Investimento Social

Rio de Janeiro

RJ

Mulheres da Amazônia

Associação de Mulheres Cantinho da Amazônia

Juruena

MT

Rede de Produtoras da Bahia

Cooperativa Rede de Produtoras da Bahia

Feira de Santana

BA

Direitos da Criança e do Adolescente e Protagonismo Juvenil VENCEDORA

Fazendo Minha História

Associação Fazendo História

São Paulo

SP

Formação de Jovens Empreendedores Rurais

Casa Familiar Rural de Igrapiúna

Igrapiúna

BA

ViraVida

Serviço Social da Indústria - Conselho Nacional

Brasília

DF

Gestão de Recursos Hídricos VENCEDORA

Água Sustentável: Gestão Doméstica de Recursos Hídricos

Instituto de Permacultura: Organização, Ecovilas e Meio Ambiente - IPOEMA

Brasília

DF

Cisternas nas Escolas

Cisternas nas Escolas

Irecê

BA

Sombra e Água Viva

Cooperativa Agropecuária Regional de Palmeira dos Índios Ltda - CARPIL

Palmeira dos Índios

AL

Ministério da Ciência, T Tecnologia e Inovação



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