Revista do Brasil nº 068

Page 1

ENTREVISTA: SELTON MELLO Ele já cantou no Bolinha e hoje faz filme cabeça, porém popular

nº 68

CRACK E OUTRAS DROGAS No meio do caminho, a pedra da desinformação e da violência

fevereiro/2012 www.redebrasilatual.com.br

NÃO TEM SACOLINHA?

Munidos de demagogia ecológica, supermercados paulistas passam a cobrar pela sacolinha. Mais receita, e desrespeito ao Código do Consumidor



ÍNDICE

EDITORIAL

8. Pinheirinho

Justiça parcial, violência da polícia e sonhos demolidos

12. Capa

A sacolinha cheia de polêmica, hipocrisia e malandragem

18. Saúde

Crack: ações desastradas movidas a oportunismo e desinformação

26. Entrevista

O talento prodígio e polivalente de Selton Mello, 30 anos de estrada DANILO RAMOS

32. Mídia

Redes sociais: previna-se das baixarias e viva a liberdade

36. Memória

Alimentos em caixa de produtos químicos: consumidor em risco e mais lucros

40. Esporte

Ingenuidades e estelionato

Antes de morrer, a censura à brasileira esperneou bastante Marcos: a despedida de um dos últimos “santos” de sua espécie

A

42. Cultura

As caras e ritmos do bumba meu boi, patrimônio cultural do país

FLÁVIO AGUIAR

As paisagens e histórias da terra de Garibaldi

46. Viagem

A paisagem de onde o coração da Itália unificada começou a pulsar

Seções Cartas 4 Destaques do mês

6

Lalo Leal

11

Mauro Santayana

17

Curta essa dica

48

Crônica: Xandra Stefanel

50

s latinhas de alumínio não foram proibidas e seu processo de reciclagem é um sucesso, reverte cerca de 98% da sua produção no Brasil. As embalagens do McDonald´s não foram proibidas, nem seus usuários são punidos por emporcalhar espaços públicos com tantas delas. As sacolas e caixas de papel e papelão também não foram proibidas, mas a reciclagem reversa é quase total, embora o cultivo desordenado do eucalipto seja muito agressivo ao meio ambiente. Então, por que não se dá o mesmo tratamento às sacolas plásticas? Em vez de proibir, deve-se incentivar o processo reverso na própria cadeia produtiva. Do ponto de vista republicano, assuntos espinhosos e tabus devem levar em consideração não só o impacto para todas as partes da produção, mas, antes, aos indivíduos e suas opções. Tabagismo, álcool, drogas ilícitas, aborto, religião, opções políticas, porte de arma, torcidas organizadas... Para quase tudo há debates com objetivo de não aviltar o exercício da opção. Não é o caso das sacolinhas plásticas. Em entrevista a um telejornal nos primeiros dias de veto às sacolinhas no estado de São Paulo, um representante deixou escapar a euforia com “a economia”. A Rádio Eldorado usou o nome do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo, em seu programa Pintou Limpeza, como se este apoiasse a decisão. Ao contrário, a entidade defende tratamentos coerentes com as demais embalagens, a construção de uma cadeia completa de reversão, a adoção de plásticos biodegradáveis ou a reciclagem do próprio material, o que exige investimentos para que no final do processo haja larga escala, de economia e de beneficiários. É louvável a decisão das pessoas que, mostrando consciência ambiental, não apenas carregam as próprias sacolas às compras como também se preocupam, por exemplo, com a separação de materiais recicláveis de seu lixo orgânico. Isso não as remete à ingenuidade de acreditar em bom senso por parte do governo do estado mais rico do país – onde, aliás, são escassas as políticas públicas de coleta seletiva ou mesmo de remuneração e tratamento digno aos catadores de recicláveis, verdadeiros heróis em meio a uma selva de hipocrisia. A imposição, entretanto, não traz ganho algum de consciência. Apenas mais lucros aos gigantes do setor de supermercados, raramente compartilhados com o consumidor. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

3


CARTAS www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo. Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi. Revisão: Márcia Melo Capa Foto da Getty Images Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295-2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Côrrea, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

4

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Educação e esporte Sou professor e considero essa situação muito triste (“Só com amor à camisa”, sobre a precariedade do ensino de educação física, edição 66). Estou pensando em como vai ser a volta às aulas, como vou trabalhar com meus alunos sem ter local nem materiais adequados. Situação interessante é quando ocorrem os Jogos Escolares de Minas Gerais. Os diretores querem que coloquemos nossos alunos para participar, sendo que muitas vezes eles nunca sequer viram um material e local oficial onde os esportes acontecem. Fernando Magela, Gov. Valadares (MG) Guarani-Kaiowá Uma vergonha para o Brasil, em especial para o governo (“Alerta vermelho”, edição 66). De que adianta o progresso se regredimos no que toca à vida humana, em especial das minorias indígenas. Apesar de serem os donos originais das terras brasileiras, eles têm sido vítimas de um genocídio desde o primeiro dia em que o homem branco pôs os pés nelas. Coriolano Correa, Tora (Santarém/Portugal) Santa Cruz No Esporte Esportivo, meu blog sobre futebol, já havia analisado o fenômeno que é a torcida do Santa Cruz. Eu me arrisco a dizer que nenhuma outra torcida no mundo seria capaz de levar 40 mil torcedores por jogo para apoiar seu clube na quarta divisão. Parabéns, guerreiros. Washington Fazolato, Duque de Caxias (RJ)

Marighella Carlos Marighella era um grande terrorista. Tinha escrito e publicado um livro sobre terrorismo. Este tinha sido traduzido para o árabe e era lido em sala de aula para as crianças muçulmanas aprenderem a arte da guerra e da violência através do terror. Por isso não considero Carlos Marighella um herói. Sou pacifista e sigo a cartilha dos hippies: paz e amor. Emanuel Lima, Taguatinga (DF) Falha técnica

Algumas linhas da reportagem “Civilização de riscos”, na seção Ambiente, da edição de janeiro (67), acabaram suprimidas em alguns exemplares, logo abaixo da foto maior da página 21, devido a uma falha técnica. Segue o trecho prejudicado completo: Para Claudia, o problema central é desafiar os limites que a natureza impõe ao desenvolvimento. Desde a colonização da região de Blumenau por europeus existe a ideia de que desmatar é desenvolver. “Nas cartas dos colonizadores no século 19 a mata aparece como inimigo a ser vencido pela civilização”, afirma. Hermann Bruno Otto Blumenau deu início à cidade à beira do Rio Itajaí-Açu para atender à necessidade da colônia de transporte fluvial. Hoje, os municípios que mais crescem e recebem investimentos empresariais são os que não sofrem com alagamentos. “Cidades que alagam têm ritmo de crescimento mais lento”, observa a professora. Em Teresópolis (RJ), Neliane de Paula Borges foi surpreendida na madrugada de 12 de janeiro de 2011. Acordou com o choro da filha pequena e passou a ouvir sons de um barranco próximo desmoronando, vizinhos gritando. Casas de seus familiares foram atingidas em diversas partes da cidade durante dois dias de chuvas. Três parentes morreram. Da antiga casa, até hoje interditada, só restaram documentos. “É uma dor terrível ver desabar o lugar onde você cresceu.” O arquivo PDF da reportagem pode ser obtido no site: www.redebrasilatual.com. br/revistas/67/civilizacao-de-riscos

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


Mídia concentrada, liberdade aprisionada 1. Fortalecimento do sistema público de comunicação

2. Fortalecimento das rádios e TVs comunitárias

3. Impedir a concentração, monopólios e oligopólios

4. Democracia e transparência nas concessões

5. Proibição de concessões para políticos

6. Cotas de conteúdo regional e produção independente

Por um marco regulatório das comunicações que garanta liberdade de expressão para todos

7. Diversidade étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de classes sociais e de crença

8. Responsabilidade por violação de direitos humanos

A liberdade de expressão no Brasil sofre hoje graves restrições. A maior ameaça vem das grandes empresas de comunicação,, que impedem a circulação de pontos de vista com que não concordam e dificultam o exercício do direito à comunicação pelos cidadãos. A atual lei de comunicações é de 1962, e está totalmente defasada. A Constituição de 1988 tem artigos avançados que, contudo, nunca foram regulamentados. O Brasil precisa urgentemente de um novo marco regulatório para o setor. Pensando nisso, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, em conjunto com outras entidades nacionais, construiu uma plataforma com 20 propostas para uma nova lei geral de comunicações. Se você concorda que passou da hora de o Brasil mudar essa situação, conheça a plataforma em www.comunicacaodemocratica.org.br e declare seu apoio. O direito à liberdade de expressão não pode ser privilégio de poucas famílias. Sistematização da Plataforma Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, AMARC Brasil, ARPUB, Campanha pela Ética na TV, Conselho Federal de Psicologia, Fenaj, Intervozes e Ulepicc – Capítulo Brasil

Apoio

9. Proteção às crianças e adolescentes

10. Diversidade e equilíbrio no jornalismo

11. Regulamentação da publicidade 12. Critérios para publicidade oficial 13. Leitura crítica da mídia 14. Acessibilidade para pessoas com deficiência

15. Conselho Nacional de Comunicação 16. Participação social 17. Separação de infraestrutura e conteúdo 18. Redes abertas e neutras 19. Universalização dos serviços 20. Padrões abertos e interoperáveis e tecnologia nacional


www.redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

A Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo teve debates espalhados por dez estados. Ao lembrar o dia 28 de janeiro – aniversário da Chacina de Unaí (MG), quando quatro servidores de uma equipe de fiscalização foram assassinados, em 2004 –, o FST de Porto Alegre coincidiu e o tema foi incluído na discussão. Foi oportunidade para cobrar a aprovação da PEC do Trabalho Escravo, que poderia facilitar a punição dos exploradores. http://bit.ly/fs_trabalho_escravo 6

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Marcha de abertura do Fórum Social Temático em Porto Alegre: foco na Rio+20

Código Florestal

Até por voltar-se a temas ambientais, a proposta de mudança do Código Florestal defendida por ruralistas foi alvo de críticas. As reclamações contra o Congresso e os pedidos ao governo foram muitos em Porto Alegre, mas alguns recados foram enviados diretamente à presidenta Dilma. http://bit.ly/fs_codigo_florestal

Em casa

VALTER CAMPANATO/ABR

Sem escravidão

O primeiro ministro britânico David Cameron em Davos: procurando um novo lema

DARLENE SILVEIRA

De 2001 a 2012, o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, passou por vários lemas. De “Sustentar o crescimento” a “Desenvolver novos modelos”. A milhares de quilômetros dali, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, em janeiro deste ano ativistas e representantes de movimentos sociais dos cinco continentes tentavam manter o mesmo espírito de 11 anos antes, reafirmando que “um outro mundo é possível”. Em vez de um encontro mundial, era o Fórum Social Temático. Os eventos mundiais ocorrem a cada dois anos desde 2005. Em anos pares, fóruns locais e temáticos são responsáveis pela mobilização. Na capital gaúcha, o cerne foi a preparação para a Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Questões ambientais tiveram força, e pautaram até a intervenção da presidenta brasileira, Dilma Rousseff. http://bit.ly/dilma_porto_alegre

ARND WIEGMANN/REUTERS

Fóruns e rumos

Manifestação pede veto de Dilma ao código

O ex-ativista italiano Césare Battisti lançou livro e disse estar bem no Brasil, um ano depois de receber o estatuto de exilado político. http://bit.ly/fs_battisti


Bom momento

O Brasil teve o segundo melhor resultado de emprego com carteira assinada em 2011, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Foram 1.944.560 vagas abertas, resultado que fica atrás apenas de 2010 (2.543.177). O IBGE mostrou ainda o mercado de trabalho mais formal. http://bit.ly/mais_emprego

Em janeiro, a Polícia Militar de S.Paulo deu indicações de que manteria o padrão de conduta que marcou o ano anterior. Depois de agir com excessos na desocupação da reitoria da USP, exibiu sua truculência em São José dos Campos, durante a reintegração de posse de um terreno da massa falida do megainvestidor Naji Nahas. A repórter Lúcia Rodrigues (foto), da Rádio Brasil Atual, foi ameaçada e tornou-se alvo de disparos por um membro da Guarda Civil Municipal. http://bit.ly/choque_pinheirinho

A Operação Sufoco foi iniciada logo no dia 3 de janeiro, na Luz, região central da capital. Estigmatizada como “Cracolândia”, a área é alvo de ambição da especulação imobiliária e de projeto urbanístico da prefeitura de Gilberto Kassab. Polícia Militar e Guarda Civil agiram para dispersar dependentes químicos que perambulavam pela região, presos ao crack. A ação recebeu críticas. Faltaram unidades de saúde para quem precisava de tratamento e integração com o plano federal, previsto para chegar em abril à região. http://bit.ly/choque_crack

Elis e Nara

“A crise é o capitalismo”: grito em Madri

Mau momento

Enquanto isso, a Espanha conhece o nível de desempregados mais alto em termos absolutos: 5,274 milhões. É a primeira vez que se supera a marca de ­ 5 milhões. Diante do cenário, o governo conservador do PP aposta em ajuste fiscal e cortes de direitos, que acabam por reforçar a recessão. http://bit.ly/menos_emprego

Nem bom, nem bonito, nem barato Nara Leão

AG. O GLOBO

Em janeiro de 1982, Elis Regina morreu. Em janeiro de 1942, nasceu Nara Leão. Os 30 anos da morte da “Pimentinha” foram momento de relembrar a atuação de uma das maiores intérpretes da música brasileira. http://bit.ly/30_anos_elis E para celebrar os 70 anos que Nara teria completado, a filha Isabel Diegues lançou um site com fotos e discografia que pode ser ouvida na internet. http://bit.ly/70_anos_nara

GAELX/CREATIVE COMMONS

Tiros contra repórter da RBA

Uma suspeita de estupro no reality show da TV Globo trouxe de volta o debate sobre concessões de rádio e TV. A ausência de limites e a permissividade a emissoras reacendem o debate sobre regulamentação da mídia – parada no Ministério das Comunicações desde 2011. http://bit.ly/bbb_estupro REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

7


WWW.REDEBRASILATUAL.COM.BR ROOSEVELT CASSIO/REUTERS

TRAUMA De uma hora para outra a vida ficou de ponta-cabeça

É uma

ordem superior Durante oito anos, abriram-se ruas e ergueramse lares. Durante quatro meses, a PM arquitetou a operação destruição. Em algumas horas, 6.000 pessoas estavam despejadas

O

uarenta oficiais de Justiça, 2.000 policiais (entre Tropa de Choque, bombeiros e efetivo local), mais de 200 viaturas, 100 cavalos, 40 cachorros e 3 helicópteros. Todo esse aparato foi mobilizado nas primeiras horas de 22 de janeiro, um domingo, para cumprir uma ordem judicial de reintegração de posse no bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, principal cidade do Vale do Paraíba, no interior 8

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

paulista, a menos de 100 quilômetros da capital. Três dias depois, às 19h20 do dia 25, o Tribunal de Justiça de São Paulo declarava que o mandado havia sido integralmente cumprido e o imóvel, “livre de coisas e pessoas”, entregue ao representante legal da massa falida da empresa proprietária. As “pessoas” (em torno de 6.000) foram despejadas e as “coisas”, destruídas, em ação criticada por entidades ligadas aos direitos humanos e pelo Ministério

Público Federal (MPF). Pinheirinho era uma área ocupada desde 2004, com a chegada de famílias vindas de outras áreas da cidade. Agora, elas perderam o espaço para uma empresa em débito com a própria prefeitura, por falta de pagamento de impostos. O terreno pertence à massa falida da Selecta Comércio e Indústria, originalmente ligada ao empresário Naji Nahas, preso em 2008 na mesma operação da Polícia Federal (Satiagraha) que envolveu o empresário Daniel Dantas. Ambos foram acusados de crimes financeiros. “Pinheirinho era quase todo de construções de alvenaria, tinha ruas, calçadas, praça, igrejas, comércio, postes, serviço de água, lixo. Por que não consolidá-lo como bairro, como base no direito humano à moradia?”, questiona o ex-secretário de Direitos Humanos Nilmário Mi-


randa, criticando o prefeito de São José, Eduardo Cury (PSDB). “Essa gente fecha os olhos para a grilagem de terras públicas, inclusive em áreas de proteção, mas é inflexível quando são os pobres os que ocupam para morar.” As denúncias de violências contra os moradores vieram de fontes diversas. A jornalista Lúcia Rodrigues, da Rádio Brasil ­Atual, DRIBLE Resistência desarticulada no dia da desocupação que acompanhava a operação, ficou sob a mira de uma arma, mesmo depois de se identi- Raquel em seu blog. “Para quem promoficar. “Quando vi que o policial ia atirar, veu a reintegração ou a limpeza, o fundacomecei a correr. Eu estava mais à frente, mental é ter o local vazio, e não o destino mas tinha moradores comigo. Assim que de quem estava lá. ‘Resolver’ a questão é saí do raio de tiro, comecei a gravar o que simplesmente fazer desaparecer o ‘proestava acontecendo e um dos moradores blema’ da paisagem.” Em 27 de janeiro, o procurador Ânveio me dizendo: ‘Ele atirou!’ Acabei sabendo por testemunhas que o guarda dis- gelo Augusto Costa, do MPF de São Joparou contra mim duas vezes.” sé, recorreu da sentença que extinguiu A urbanista Raquel Rolnik, relatora es- uma ação pública que pedia a responpecial das Nações Unidas, fez um apelo sabilização do município por omissão. às autoridades para que suspendessem o Na mesma ação, constava o pedido de despejo e se esforçassem para encontrar que União, estado e município fossem uma solução pacífica, incluindo alterna- condenados a garantir direito a morativas de habitação para as pessoas. Por dia aos desalojados no caso de cumprique elas resistiram?, questionou a própria mento da reintegração de posse. Após

MARCELO ALVES/REUTERS

WWW.REDEBRASILATUAL.COM.BR

FORÇA Em São Paulo virou hábito o estado se voltar contra o cidadão

o despejo, ele constatou as “condições precárias do local”. A ação havia sido extinta por juiz federal, por entender que não existia interesse federal no caso. Uma decisão equivocada, segundo o procurador. “Não se está discutindo a questão da competência da ação da reintegração de posse”, afirmou, lembrando que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia reconhecido a Justiça estadual como competente para o caso. Segundo Costa, a ação civil “restringe-se à garantia dos direitos fundamentais das pessoas desalojadas”. Ainda não se sabe ao certo o destino de toda aquela gente, removida por uma ordem superior, como na música Despejo na Favela, de Adoniran Barbosa. Parece ser mais uma vitória da intolerância e da falta de bom senso, da ausência de política para questões sociais e do excesso de polícia, como definiu Raquel Rolnik – colocando na conta do governo paulista as recentes ações de guerra contra os assentados do Pinheirinho, os usuários de crack no centro da capital e os estudantes da USP. Em São José, as polícias do estado e do município garantiram na marra que fosse ao chão, em questão de horas, um assentamento erguido durante oito anos – tempo suficiente para uma solução que considerasse o aspecto humano do caso. Num gesto inusitado, a juíza Márcia Mathey Loureiro, da 6ª Vara de São José dos Campos, foi pessoalmente ao local conferir a execução de sua ordem. E elogiou a ação policial (http://bit.ly/juiza_marcia_ loreiro), calculada, segundo ela, durante quatro meses – o que revela o desinteresse de se arquitetar uma solução pacífica para o caso. E a pergunta feita na canção de Adoniran vale para ela: “Mas essa gente, aí, hein, como é que faz?”

ROOSEVELT CASSIO/REUTERS

Todos os lances n Leia e ouça as reportagens da Rede Brasil Atual no http://bit.ly/dossie_pinheirinho n Leia também: Site da Secretaria de Segurança Pública de SP defende ação militar contra João Goulart, em 1964, e se refere ao golpe como “revolução”: http://bit.ly/sp_golpe_1964

REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

9


NA TVT

O trabalho

no século 21 Programa Melhor e Mais Justo debate marco regulatório que fortaleça a representatividade e o diálogo como forma de transformar as demandas entre capital e trabalho em acordos perenes e sustentáveis

O

programa Melhor e Mais Justo traz sempre ao debate temas que ajudem a aprimorar a democracia e contribuam para o avanço das conquistas sociais. Uma de suas recentes edições abordou o projeto de lei que propõe o Acordo Coletivo Especial (ACE). Há pouco mais de 30 anos, não havia outro meio, a não ser as greves, de sindicalistas sensibilizarem empresários de cara fechada e discurso conservador a prestar atenção às demandas dos trabalhadores. Foi quando as greves do ABC começaram a mudar a cara das relações entre capital e trabalho no país. Em 1978, a realidade impunha a falta de diálogo, a lei do “quem pode mais chora menos”. Hoje, está bem claro para empresários responsáveis que o trabalhador é um agente indispensável ao processo produtivo. Se não houver cidadãos seguros de seus direitos preservados, com condições adequadas de trabalho, e respeitados em sua dignidade, não haverá sistema produtivo que sobreviva. Lembrando as diferenças entre o Brasil da ditadura e o país que se tem construído nos últimos anos, o Melhor e Mais Justo reuniu em debate o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, o diretor de Relações Trabalhistas da Volkswagen do Brasil, Nilton Júnior, e a desembargadora Jane Granzoto, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo. Eles discutiram a importância de um novo marco regulatório, capaz de modernizar as relações de trabalho, estabelecer normas para a representação sindical no interior das empresas e para uma negociação coletiva permanente, dando

10

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Debate no Melhor e Mais Justo

segurança jurídica a uma prática já comum em alguns setores. Durante o debate foram abordados os caminhos para essa nova realidade dos acordos coletivos, bem como a legitimidade da representação de base no local de trabalho. Para Sérgio Nobre, com o sindicato presente dentro da empresa tudo o que ocorre no dia a dia é objeto de negociação. “É preciso haver liberdade maior de negociação. Todo mundo concorda que o melhor caminho é um acordo entre as partes”, disse. Jane Granzoto argumentou que dificilmente demandas fundamentadas em relações de trabalho maduras vão parar na Justiça do Trabalho. Nilton Júnior, por sua vez, afirmou que o Acordo Coletivo Especial é uma experiência já testada. “É muito mais difícil fazer uma negociação com um sindicato capaz, preparado. Só que os resultados são perenes, sustentáveis. E é isso que nós defendemos”, disse o representante da montadora. O Melhor e Mais Justo vai ao ar todas as quintas-feiras, às 19h30, logo após o Seu Jornal. A íntegra dessa edição do programa e de outras pode ser vista no site da TVT – www.tvt.org.br

Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br


LALO LEAL

O Brasil na TV

O que se vê na TV brasileira está restrito ao Rio e a São Paulo, salvo exceções. Exibem-se nas novelas e nos telejornais paisagens ou problemas dessas metrópoles para todo o país

F

ico a me perguntar o que interessa ao morador de Belém o congestionamento da Marginal do Tietê, exaustivamente mostrado pelas redes nacionais de TV. Não haveria fatos locais muito mais importantes para a vida dos telespectadores do Pará do que as mazelas da capital paulista? No entanto, o conteúdo que vai ao ar não é determinado por interesses ou necessidades do telespectador, e sim pela lógica comercial. Para o empresário de TV local, é mais barato e mais lucrativo reproduzir o que a rede nacional de televisão transmite, inserindo alguns comerciais da região, do que contratar profissionais para produzir programas próprios. Para as grandes redes, trata-se de uma economia de escala: com um custo fixo de produção, seu lucro cresce à medida que os anúncios são veiculados num número crescente de cidades. Como qualquer outra atividade comercial, a lógica do capital é a da concentração, regra da qual a televisão, movida pela propaganda, não escapa. Só que a TV não é, ou não deveria ser, um negócio como outro qualquer. Por transmitir valores, ideias, concepções de mundo e de vida é também um bem cultural. Daí a necessidade de ser regulamentada e ter seus serviços acompanhados de perto pela sociedade. Como concessões públicas, as emissoras têm obrigação de prestar esses serviços de maneira satisfatória, atendendo às necessidades básicas de informação e entretenimento a que todos têm direito. Caso contrário, caberiam reclamações, proces-

sos e punições, como ocorre em quase todas as grandes democracias do mundo. Aqui, além de não existirem órgãos reguladores para receber as demandas do público e dar-lhes encaminhamentos, não t­ emos uma legislação capaz de sustentar esse processo. Vale tudo. E quem perde é a sociedade, empobrecida culturalmente por uma televisão que a trata com desprezo. Diretores de emissoras chegam a dizer, preconceituosamente, que “dão ao povo o que o povo quer”. Um caso emblemático da falta que faz essa legislação é a produção e veiculação de programas regionais. Se o mercado concentra a atividade televisiva no eixo Rio-São Paulo, cabe à lei desconcentrá-lo, como determina o Artigo 221 da Constituição, até hoje não regulamentado. Sua tramitação é seguidamente bloqueada no Congresso por parlamentares que representam os interesses dos donos das emissoras de TV. Em 1991, a então deputada Jandira Feghali apresentou um projeto de lei que propunha percentuais de exibição obrigatórios para produção regional de TV no Brasil. Doze anos depois, em 2003, após várias ajustes feitos para atender aos interesses dos empresários, o texto foi aprovado na Câmara e seguiu para o Senado, onde dorme até hoje. São mais de 20 anos perdidos não apenas para o telespectador, impossibilitado de ver o que ocorre na sua cidade e região. Perdemos também a possibilidade de abrir novos mercados de trabalho para produtores, jornalistas, diretores, atores e tantos outros profissionais obrigados a deixar sua cidade em busca de oportunidades limitadas nos grandes centros. Mas, se os interesses empresariais das emissoras bloqueiam esse florescimento artístico e cultural, as novas tecnologias estão abrindo brechas nessas barreiras. O barateamento e a simplificação dos equipamentos de captação de imagens impulsionaram o vídeo popular e a internet vem sendo um canal excelente de divulgação desses trabalhos. Combinam-se a vontade e a capacidade de fazer televisão fora das emissoras tradicionais com a necessidade do público de acompanhar aquilo que acontece perto de sua casa ou de sua cidade. O que não descarta a necessidade da existência de programação regional nas grandes emissoras, como forma de tornar o Brasil um pouco mais conhecido pelos próprios brasileiros. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

11


CAPA

Oportunism Com apelo ambientalista, acordo entre governo de São Paulo e varejistas retira sacolinhas dos supermercados, atropela direitos do consumidor e não resolve a questão do lixo Por Cida de Oliveira

12

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Em agosto passado, uma pesquisa do Datafolha mostrou que mais de 80% dos consumidores entrevistados não concordam em pagar pelas sacolas; para 81%, o comércio lucraria com a cobrança; 57% acham que o banimento será prejudicial; e 96% desejam a distribuição gratuita das sacolas biodegradáveis. Segundo a Apas, que tem um site para divulgar o acordo (vamostiraroplanetadosufoco.org.br), foi dado o “pontapé inicial para a prática sustentável, os resultados são positivos e as lojas participantes aprovaram a medida”.

A iniciativa começou em 2007, quando o vereador paulistano Claudinho de Souza (PSDB) apresentou projeto para proibir a distribuição gratuita ou a venda de sacolas plásticas a consumidores nos estabelecimentos comerciais da cidade. Aprovada em maio de 2011, a decisão foi suspensa pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesse período, leis semelhantes foram aprovadas em outros municípios e também tiveram sua constitucionalidade questionada por órgãos de defesa

DIRETORIA DE COMUNICAÇÃO - PREFEITURA DE MONTE MOR-SP

N

o hipermercado de uma grande rede, em Guarulhos (SP), muitos consumidores bem que tentam. Permanecem diante dos caixas até que recebam, sem custo adicional, sacolas plásticas para separar, embalar e carregar para casa os produtos que acabaram de comprar. O gerente é chamado. Há bate-boca. Mas não tem jeito. A saída é carregar as compras espalhadas no carrinho até o carro. Ou levar na mão mesmo. Cena semelhante é flagrada no bairro da Lapa, na capital paulista. Um homem entra num ônibus carregando um bolo de aniversário que acabara de comprar num supermercado próximo dali. Episódios como esses têm sido comuns desde 25 de janeiro, quando entrou em vigor um acordo entre a Associação Paulista de Supermercados (Apas), o governo do estado e as prefeituras da capital e de diversos outros municípios paulistas. A maioria desses estabelecimentos deixou de distribuir gratuitamente as sacolinhas – que na verdade já têm seu custo embutido no preço dos produtos. Sem ter sido consultada oficialmente a respeito, a população se vê agora obrigada a tais situações, a menos que leve uma sacola de casa, um carrinho de feira, caixas ou esteja disposta a pagar pelas sacolas de plástico biodegradável que custam por volta de R$ 0,30 a unidade. Ou ainda as chamadas ecobags, bolsas reutilizáveis à venda em toda boca de caixa, com preços variados.

CURIOSO Em Monte Mor, o prefeito Rodrigo Maia (PSDB) e a primeira-dama se deixaram fotografar enchendo uma sacola retornável com saquinhos plásticos. A foto foi feita e distribuída pela assessoria de imprensa da prefeitura


mo na sacola concorda em pagar pelas sacolas, saiu com as compras na mão. “Essa medida nada tem de ecológica. É uma desculpa que eles encontraram para tirar o custo dos mercados com a distribuição das sacolas e aumentar o lucro vendendo outras”, afirma. ESQUECEU A SACOLA Renato, equilibrando as compras, considera o acordo populista e midiático

DANILO RAMOS

do consumidor, indústrias e fornecedores de sacolinhas. Um forte argumento é que, a partir de 2014, a Política de Resíduos Sólidos vai disciplinar o setor. Em janeiro do ano passado, o secretário estadual do Meio Ambiente, Bruno Covas, conheceu uma campanha realizada no ano anterior, em Jundiaí, por seu colega tucano prefeito Miguel Haddad, de retirada das sacolas dos mercados. A medida inspirou Rodrigo Maia Santos (PSDB), prefeito de Monte Mor, vizinha a Campinas, a adotar a campanha. De acordo com João Carlos Galassi, presidente da Apas, a substituição das sacolas foi tranquila. “Todos compreenderam a iniciativa da entidade e se mobilizaram. E as medidas nessas cidades têm mais de 70% de aprovação da população.” A dona de casa Valdelice da Silva Lopes, de Monte Mor, está entre os que reprovam a medida que, segundo ela, foi imposta ali sem aviso prévio. “Da noite para o dia as sacolinhas sumiram dos mercados e quem quisesse tinha de comprar”, afirma. “Compro só o que está em promoção para fazer o dinheiro render. E o que economizo vou gastar em sacola?”, questiona. Na capital paulista, o empresário Renato Tonon até que estava ciente da entrada em vigor do acordo, que para ele é “uma medida populista e midiática”. Porém, esqueceu sua sacola em casa, achou desaforo ter que comprar e preferiu o transtorno de levar tudo espalhado no carrinho. “Fui orientado pela operadora de caixa a procurar caixas de papelão no supermercado, mas era impossível encontrar uma. As pessoas agarravam as suas como se fosse algo muito valioso”, conta. O militar aposentado Antonio Messias, de Guarulhos, participou da manifestação de consumidores em grandes supermercados em 25 de janeiro, quando entrou em vigor o acordo entre a Apas e o governo estadual. Como não

Sem amparo

Para o advogado Reginaldo Araújo Sena, presidente do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (Idecon), o termo desrespeita a Constituição Federal e a do estado de São Paulo e é um crime contra a economia popular. “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão por lei. Esse acordo, que não tem amparo legal, está induzindo a população a crer em proibição das sacolas plásticas comuns e obrigação da compra das biodegradáveis, sendo


que é direito do consumidor ter à disposição embalagem limpa e adequada para transportar suas compras sem nenhum custo adicional.” O Idecon preparou uma ação civil pública contra o acordo e uma lista dos mercados que não aderiram ao acordo para informar à população e está organizando protestos de consumidores, principalmente em Guarulhos. O Procon-SP não vê ilegalidade na venda das sacolas e esclarece que o acordo não prevê o fim da distribuição gratuita de sacolas – e sim a retirada daquelas convencionais, de plástico derivado do petróleo. “O Procon entende como saudáveis medidas em defesa do meio ambiente com a participação de toda a coletividade, incluindo o consumidor. Mas é inadmissível ser ele o único responsável financeiro pela iniciativa. Não somos contra o acordo em si, mas contra a forma que está sendo colocado”, afirma Carlos Coscarelli, diretor-executivo do órgão, vinculado ao governo estadual. Coscarelli observa que a distribuição das sacolas foi incorporada à cultura da população há mais de 30 anos. “Defendemos que toda cultura seja quebrada paulatinamente, com educação, para que a população decida se vai levar sacola de casa ou comprar uma. Assim, aos poucos, vai incorporando novos hábitos.” O diretor diz ainda não haver garantia legal para o fornecimento gratuito das sacolas, porém o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil trazem princípios segundo os quais o serviço prestado pelo supermercado se encerra com a acomodação da compra para o transporte. “A partir do momento em que o cliente fica com a compra na mão, os produtos soltos, está deixando de ser prestado o serviço completo.” É como se de repente uma fornecedora de água encanada passasse a entregar só até a rua e o cliente tivesse de cuidar do resto. “E a cobrança de algo antes gratuito pode ser vista como prática abusiva.” Questionado sobre o lucro que os supermercados terão com a venda das sacolas biodegradáveis, o presidente da Apas desconversa. Segundo estimativas do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo e Região, o ganho não deve ser pequeno. Estão sendo compradas a R$ 0,03 e vendidas por até R$ 0,30. 14

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

FOTOS DANILO RAMOS

CAPA

INSTABILIDADE Sindicato estima que 4.000 empregos – como os desta fábrica na Grande S.Paulo –, poderão sumir

Outra projeção do sindicato é o fechamento de 4.000 postos de trabalho em São Paulo, onde há 6.000 empregos diretos e 28 mil indiretos. Osvaldo Bezerra Pipoka, coordenador político do sindicato, considera a retirada das sacolinhas de circulação um presente do governos do estado e de alguns municípios aos cofres dos empresários. “É um oportunismo econômico, e os órgãos de defesa do consumidor já estão de olho. O fim das sacolinhas representa o fim de milhares de empregos, e isso não admitimos”, alerta o sindicalista. “Além disso, é preciso haver seriedade e disposição do governo estadual em debater com empresários e a sociedade a aplicação da política nacional de resíduos sólidos até 2014, como determina o plano anunciado no ano passado.”

Efetividade ecológica

A efetividade da medida na preservação ambiental também merece atenção. É indiscutível o impacto dos plásticos no meio ambiente. Estima-se que os moles, entre eles as sacolas e embalagens de alimentos, correspondem a 20% do lixo nas grandes cidades. Ao mesmo tempo, porém, são o suporte utilizado pela maior parte da população para acomodar o lixo doméstico.

CRIAR DIFICULDADES PARA VENDER FACILIDADES Antônio Messias: “Essa medida nada tem de ecológica”


CAPA

EDUARDO OLIVEIRA/SIND . DOS QUÍMICOS

CONFUSÃO E IMPROVISO DE RISCO Nos primeiros dias do acordo, os consumidores não sabiam como carregar as compras. Supermercado de Guarulhos distribuiu caixas de papelão onde antes eram guardados produtos químicos

PRESENTE PARA EMPRESÁRIOS Pipoka, do sindicato: “Órgãos de defesa do consumidor já estão de olho”

Com seu banimento, o consumidor terá de comprar sacos plásticos específicos para esse fim. Além desse ônus – há indicação de aumento no preço do produto –, os sacos em nada protegem o meio ambiente. O secretário Bruno Covas argumentou durante um debate no mês passado que esses sacos são mais adequados para acondicionar o lixo e “são degradados mais rapidamente na natureza, por serem feitos com material reciclado”. Mas não é bem assim. “Feitos com plásticos da mesma família usada nas sacolinhas, mesmo sendo reciclados apresentam características semelhantes”, explica o professor Derval dos Santos Rosa, da Universidade Federal do ABC (UFABC). Rosa é doutor em Engenharia Química com experiência em polímeros, classe de substâncias sintéticas na qual estão incluídos os plásticos.

Igualmente agressivos são outros sacos plásticos, como aqueles finos, disponíveis no setor de hortifrúti, que têm tudo para se espalhar ainda mais. Sem as sacolinhas, muita gente tende a usá-los nos passeios com o cachorro, por exemplo. “Geralmente uso sacolas e sacos para recolher a sujeira que a Maggie faz quando a levo para dar uma volta”, diz a professora paulistana Paula de Moraes. Para ela, a medida é inócua porque outros estabelecimentos, como padarias, farmácias, lojas e bancas de jornal, continuarão distribuindo. Outro viés discutível é a utilização das caixas de papelão disponíveis nos mercados para levar as compras e posteriormente acomodar o lixo doméstico. Com a umidade, a caixa se desfaz e espalha tudo o que estiver dentro dela, inviabiliza a reciclagem do papelão e agrava o problemas dos resíduos. Em Monte Mor, segundo a moradora Valdelice da Silva Lopes, já se vê lixo nas ruas por causa das caixas de papelão desmanchadas pela chuva. O comércio, por sua vez, ao se ver livre da logística necessária para o descarte, transfere ao consumidor a responsabilidade pela sua destinação, o que oferece risco à saúde. Um estudo divulgado em 2009 por uma empresa especializada em higiene ambiental mostra que, por serem mantidas em locais sem higienização adequada, as caixas apresentam alto grau de contaminação por coliformes totais, fecais e pela bactéria E. coli (Escherichia coli), que pode causar diarreia e outras doenças. A contaminação, aliás, está presente também em muitas sacolas de tecidos, conforme a pesquisa.

Falta reciclagem

“A produção e distribuição das sacolinhas não é o problema, e sim a forma como o lixo é tratado e raramente reciclado na cidade de São Paulo”, aponta Lourival Batista Pereira, coordenador da Secretaria de Saúde e Meio Ambiente do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo e Região. “Por que não se pensa em leis para coleta de lixo eletrônico, pneus, óleo e outros materiais jogados diretamente no meio ambiente?”, questiona o dirigente. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

15


DANILO RAMOS

CAPA

RECICLAGEM Paula usa as sacolinhas para recolher o cocô de Maggie. O bom-costume deve continuar porque, segundo ela, outros estabelecimentos ainda dão a embalagem

16

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

No entanto, uma pesquisa britânica divulgada recentemente mostra que a matéria-prima utilizada em sua fabricação é 200 vezes mais agressiva que a do plástico comum. O blogueiro considera que a p­ reocupação com o meio ambiente é algo mais sério do que “parecer descolado e andar com o artigo que virou moda”. “Foi criado um mercado. Há pessoas que têm uma para cada situação. E, co-

IVONE PEREZ

O engenheiro Miguel Bahiense, presidente da Plastivida Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos, entidade do setor que promove a utilização ambientalmente correta dos plásticos, entende que o governo impõe uma medida sem investir na educação e conscientização da população para o grave problema da contaminação ambiental pelos plásticos em geral. “Se não houver gestão pública efetiva para a coleta seletiva e para a redução do consumo, vamos continuar a ver o aumento da produção do lixo”, afirma, alertando para o aumento do consumo proporcionado pelo crescimento econômico do Brasil. “É ingênuo acreditar que o problema do plástico reside somente nas sacolinhas de supermercado, quando recebemos sacolas plásticas em quase todo o comércio e temos ainda embalagens, brinquedos, acessórios e vários outros objetos de plástico também descartados incorretamente”, opina o biólogo carioca Breno Alves, que com o colega Luiz Bento edita o blog Discutindo Ecologia. Para ele, a complexa questão da produção de lixo urbano requer conscientização para o uso de alternativas, que não pode se resumir no uso de ecobags. Sacolas de feira antigas, de lona ou outro material resistente, já usadas há décadas, receberam esse nome em função do apelo da proteção do meio ambiente.

mo geralmente esquecem em casa, compram uma diferente toda vez que precisam. Desperdício mais nocivo que o das sacolinhas”, critica. Breno não estranha os políticos escolherem um vilão como panaceia de todos como forma de amenizar sua inoperância. “É como afirmar que a causa da violência no Rio de Janeiro é a favela e, assim, decretar seu fim.” Estanislau Maria, coordenador de conteúdo do Instituto Akatu para o Consumo Consciente, enxerga dois pontos positivos na restrição às sacolinhas: a reflexão sobre o desperdício e o despertar da população para a necessidade de políticas públicas para a gestão do lixo. “A população geralmente se sensibiliza para as questões quando tem de pôr a mão no bolso. Ao pagar pela sacola, vai desperdiçar menos e passar a refletir também sobre o uso de outros descartáveis, mudando assim sua maneira de consumir”, acredita. Além disso, segundo Estanislau, poderão ter início pressões sobre o poder público em prol da reciclagem. Segundo o IBGE, menos de 2% do lixo reciclável gerado nos municípios é reaproveitado. Outro dado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que, se houvesse 100% de reciclagem, o Brasil deixaria de jogar no lixo algo em torno de R$ 8 bilhões anuais.

COMPLEXIDADE Para Luiz e Breno, do blog Discutindo Ecologia, a produção de lixo urbano requer conscientização para alternativas que não se resumem ao uso de ecobags


MAURO SANTAYANA

O capitalismo à espreita O economista Klaus Schwab, organizador do Fórum Econômico Mundial, declarou no encontro de Davos que o capitalismo, tal como é hoje, já não convém à sociedade. Sinal de que algo sério está por vir

É

preciso analisar com cautela as repetidas críticas proferidas pelos grandes beneficiários do jogo. Estamos repetindo, nestes últimos 30 anos, a “febre das tulipas” do século 17, quando os especuladores holandeses fizeram fortunas fantásticas com a venda, aos trouxas, de bulbos da flor. A loucura durou poucos meses, mas deixou milhares de europeus, que trocaram seu patrimônio por simples tubérculos, na miséria. Os espertos, como sempre, se safaram, e é provável que tenham, em seguida, fundado bancos. As tulipas são tangíveis e belas. Os derivativos e subprimes são ratos empesteados. Na voragem da ganância, o capitalismo rompeu todos os limites. Klaus Schwab e outros economistas, muitos dos quais saudaram Reagan e Thatcher, com o endeusamento do mercado e o fim da soberania dos Estados sobre as atividades econômicas, procuram agora encontrar meios de impedir a grande revolução mundial que se espera, se a brutal desigualdade social não for revertida. Os ­Estados Unidos, que chegaram a ser o ­país capitalista menos desigual do mundo, durante os anos Roosevelt, se tornaram um dos mais desiguais em nossos dias. O rendimento do 1% mais rico dos americanos cresceu 300% nos últimos 30 anos; o dos demais, só 40%. Como em 1789, durante a Revolução Francesa, os beneficiados pelo roubo – porque é de roubo que se trata – estão tentando desfazer-se de alguns anéis, e não de todos, a fim de preservar os dedos disponíveis para novos saques, quando a situação voltar a ser favorável. Mas vale lem-

brar que não foram poucos os que alertaram para a loucura do neoliberalismo e da globalização da economia. Não se tratava apenas de denunciar a anunciada exclusão social de milhões de trabalhadores, considerados dispensáveis no novo modelo, mas de mostrar, como tantos fizeram, a insânia de um projeto que reduzia os consumidores – ao reduzir os assalariados – e, entre outros desatinos, fundava o crescimento do mundo nos valores futuros, nos derivativos, ou seja, no jogo especulativo sem regras. Todas as normas éticas do capitalismo – mal ou bem elas existiam – foram violadas, a partir do momento em que o “mercado” decidiu dispensar a interferência reguladora das atividades econômicas e se entregar ao capital financeiro. A remuneração dos executivos financeiros chegou ao desvario. No Brasil, os gênios de FHC, que saíram da administração diretamente para os bancos, receberam dezenas de milhões de dólares pelo trabalho de poucos meses – e se tornaram banqueiros. Schwab, em seu discurso, ao abrir o encontro deste ano em Davos, lembrou que, em 2009, milhões de pessoas foram atingidas pela crise, perderam aposentadoria, casa, emprego. Ficaram aterrorizadas, angustiadas e enfurecidas. Não obstante isso, as lições não foram assimiladas, e a situação hoje se agrava. Os banqueiros, no entanto, se encontram como os fuma­dores de crack, que, a cada tragada, querem mais pedras no cachimbo. Para obrigar as privatizações, o Banco Central Europeu (BCE) está emprestando dinheiro público aos bancos endividados fraudulentamente a 1% ao mês. Esses mesmos bancos cobram dos governos, nos ajustes e na rolagem da dívida, juros que vão de 5,5% ao ano, no caso da Espanha, a 6%, no caso da Itália. O BCE, pelos acordos da União Europeia, está proibido de emprestar diretamente aos Estados. A situação é tão insustentável que especuladores notórios, como George Soros, defendem a taxação extraordinária das grandes fortunas – como a sua própria –, a fim de salvar o sistema. Ainda que o cenário brasileiro seja bem diferente, é preciso manter a vigilância, e agir coletivamente, se for necessário, porque, desde que Fernando Henrique nos meteu na enrascada da globalização, nosso futuro depende do que ocorrer na Europa, na China e nos Estados Unidos. O grande sociólogo saudou o gangsterismo neoliberal como novo Renascimento – e estamos ameaçados por outra idade das trevas. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

17


SAÚDE

Epidemia de desinformação

Antes de combater o crack, o país tem de aprender a lidar com os usuários Por Joana Moncau, Júlio Delmanto e Spensy Pimentel

E

studantes, representantes de movimentos sociais, agentes pastorais e intelectuais comeram embalados por samba e forró ao vivo. Nos bares, dançava-se Racionais MCs. Os discursos eram raros e curtos, nada de comício. O churrasco daquele sábado, 14 de janeiro, apenas marcava a solidaridade à bola da vez na repressão policial em São Paulo, os usuários de drogas da área conhecida como “Cracolândia” – alvo de desastrosa operação da polícia paulista, a Ação Integrada Centro Legal, ou Operação Sufoco. A noite chegava, as pessoas se dispersavam e os usuários de crack e outros moradores de rua não usuários, também alvos da ação policial, se despediam. 18

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

“Agora, vocês vão embora, a madrugada chega, e o jogo começa outra vez”, dizia um deles. “A gente sabe que em mais umas semanas isso termina. Eles já conseguiram o que queriam, saiu na televisão.” A resignação com o absurdo da situação é mais um sintoma da falência do modelo de repressão às drogas. Como já deve ter percebido qualquer pessoa que tem na família ou entre os amigos algum caso de uso problemático dessas substâncias, violência é o que menos resolve. “A operação é voltada para o cuidado com o lugar, e não com as pessoas em estado de vulnerabilidade”, define Daniela Albuquerque, da Defensoria Pública de São Paulo, atuante no caso das operações policiais na Cracolândia.

“Esse interesse em uma ‘solução’ chega movido por politicagem na época da eleição, e nunca por motivos de ordem técnica, humanitária”, critica o psiquiatra Raul Gorayeb, 62 anos. Com mais de três décadas de experiên­cia profissional em saúde mental, Gorayeb assessorou Secretarias de Saúde em níveis municipal e estadual. Hoje, coordena o Centro de Referência da Infância e da Adolescência, no Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo. “Está todo mundo interessado em tirar dividendos políticos. Virou moda, a mídia ajuda. Um pouco antes do crack, era a questão de tirar as crianças de rua das ruas. Mais atrás, era a Febem. Sempre se trata de promover algum barulho”, completa.


MARCELLO CASAL JR./ABR

O LADO VISÍVEL Embora seja comumente associado à miséria, o crack não faz distinção de classe

Por exemplo, a Confederação Nacional dos Municípios divulgou, em 2011, uma pesquisa segundo a qual 98% das cidades analisadas dizem enfrentar problemas com o crack. O estudo foi baseado em questionários enviados às prefeituras, com perguntas como: “Seu município enfrenta problemas relacionados ao consumo de drogas? Caso sim, qual: crack ou outras drogas?” Certamente o método influencia o resultado, considerando-se que a CNM é uma associação que realiza a intermediação entre governo federal e prefeituras, sempre em busca de verbas. O que os números mais confiáveis mostram é que o álcool – droga lícita – continua sendo o que mais problemas causa: foi responsável, em 2007, por 83% das mortes (6.500) e por 69% das internações (95 mil) decorrentes de transtornos mentais e comportamentais pelo uso de drogas. No mesmo período, a incidência do crack sobre esses índices, de tão pequena, não mereceu menção na pesquisa da Senad. “O crack não é a substância psicoativa que mais deveria ser tema de debate no Brasil, e sim o álcool. Mas, como está muito relacionado a um contexto de pobreza extrema, marginalização e ocupação de espaço público, a própria existência do seu consumidor é menos suportável”, afirma o antropólogo Maurício Fiore, integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), formado por pesquisadores da área de ciências humanas.

É certo que têm aparecido dados sobre seu uso em lugares onde a opinião pública nem imagina (leia reportagem à página 22), mas, por enquanto, é preciso precaução. “O consumo de crack se disseminou pelo país e, ao que parece, teve um aumento razoável nos últimos anos. Mas não se trata de epidemia, e sim do fato de seu consumidor, por uma série de fatores, incomodar mais os olhos”, diz Freire.

O plano

Com pressões de todos os lados, o governo anunciou em dezembro o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, com previsão de investimentos de R$ 4 bilhões. São recursos para a prevenção ao uso, tratamento e reinserção social de usuários e enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas. O ponto mais polêmico diz respeito à destinação de recursos para criação de leitos nas chamadas “comunidades terapêuticas” – centros de internação para tratamento de dependentes. Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), esse é um fator de alerta. “O plano se mostrou pouco inovador e, com a inclusão das comunidades terapêuticas como dispositivos do Sistema Único de Saúde, levanta-se a preocupação de que isso possa se constituir no retorno da lógica manicomial, que segrega e isola o indivíduo das suas relações sociais, familiares e do seu território cultural”, aponta o órgão, em nota divulgada recentemente.

Não dá para tirar a razão do psiquiatra e dos usuários ouvidos quando se analisa o que, de fato, justificaria o crack ter se tornado assunto da vez. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, não dispõe de números atualizados para mapear a dimensão real de sua expansão no país. A pesquisa mais recente disponível sobre o tema é o Relatório Brasileiro sobre Drogas de 2009, organizado pela Senad, mas os dados sobre o crack são de 2005. Atualmente, o governo corre contra o tempo para aprimorar seu diagnóstico. Um olhar um pouco mais criterioso sobre o que há disponível tem algo de estranho.

DANILO RAMOS

Números?

OUTRO FOCO Números confiáveis apontam o álcool como principal fator causador de mortes e internações

REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

19


SAÚDE “Muitos jovens que atendi foram moradores de comunidades terapêuticas por um tempo. As atrocidades que me contaram a que eram submetidos lá dentro são de arrepiar”, conta o psiquiatra Gorayeb. Relatório do CFP revela uma série de violações aos direitos humanos em clínicas de tratamento de usuários em todo o país. Movimentos ligados ao debate sobre a descriminalização das drogas também têm se juntado a uma campanha contra o repasse de verbas públicas para essas clínicas, frequentemente ligadas a grupos religiosos e políticos, e de resultados duvidosos. São questionadas ainda outras ações tomadas em nome do combate ao crack. Em especial, a já mencionada Operação Sufoco em São Paulo, cuja premissa expressa pelo coordenador de Políticas sobre Drogas do governo paulista, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, era levar “dor e sofrimento” aos dependentes para que busquem tratamento. E a internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua com alto grau de dependência química, em vigor no Rio de Janeiro. “Internações forçadas só se justificam pontualmente, por um breve período e quando há risco de morte, por exemplo”, diz a defensora Daniela Albuquerque. “Experiências na área da saúde demonstram que a internação contra a vontade do paciente tende a ser ineficaz. A adesão ao tratamento é elemento fundamental.”

Que fazer?

O fato é que o país tem poucas respostas. Embora seja reconhecida como droga violenta e destrutiva, o crack não é um beco sem saída. Vários casos evidenciam que é possível recuperar-se. Mas não há passe de mágica. “O problema das drogas não é médico na sua origem, é social”, afirma Gorayeb. O bombardeio na mídia é tão

forte que, muitas vezes, parece não haver alternativa às internações, o que não é verdade. Há anos, o Sistema Único de Saúde desenvolve tratamentos baseados em atenção multidisciplinar por meio dos Centros de Atendimento Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps-AD), com apoio de hospitais para internação em casos de crise, e estruturas da assistência social. “AGORA, VOCÊS VÃO EMBORA, E O JOGO COMEÇA OUTRA VEZ” Em14 de janeiro, movimentos promoveram churrasco para protestar contra a violência policial na “Cracolândia”

20

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL


REDUÇÃO DE DANOS Trabalho de rua em Recife: para Saint Claer, que superou o vício, a oportunidade de emprego é parte fundamental da recuperação

O problema é o déficit crônico de recursos no SUS, além do fato de que os princípios que devem guiar esse atendimento nem sempre são seguidos. “Governos tomaram os Caps para si e impuseram um funcionamento que distorceu seus princípios, que são ótimos”, diz Gorayeb – que já atuou na implementação de Caps desde sua criação.

Em 2006, no início do governo Gilberto Kassab, as ingerências políticas, segundo ele, levaram a seu afastamento da direção de um Caps Infantil no centro de São Paulo. Ele se negou a seguir a ordem da prefeitura de encaminhar as crianças de rua para internação em hospital psiquiátrico. “Estava perto das eleições e havia uma campanha de que deixariam a cidade limpa, uma clara política de higienização. Durante o tempo em que estive lá não internamos nenhuma criança trazida da rua porque não tinham indicação clínica técnica. Fui afastado do cargo.” Enquanto o setor público sofre com problemas políticos e falta de recursos, as pessoas se viram como podem. O recifense Saint Claer Angeiras, de 27 anos, está sem usar droga há quatro. Apesar de trabalhar e estudar dentro da linha conhecida como redução de danos – que não prima pela abstinência e busca minimizar os efeitos do uso de drogas pelo diálogo com os usuários –, ele diz ter se recuperado da dependência por iniciativa própria. “Passei meses internado, estive preso, me tratei em clínicas e em Caps, passei por todo tipo de estratégia de recuperação e nenhuma funcionou. Coloquei na balança e pesei dois cenários de como minha vida estaria depois de cinco anos: com ou sem drogas”, relata Saint Claer, acrescentando que qualquer que seja o tipo de tratamento oferecido só funcionará com disposição por parte do dependente.

Desde a morte da mãe, quando tinha 8 anos, Saint Claer viveu na rua e só conseguiu deixar o uso abusivo de crack quando optou por se tratar com afinco. Sofreu bastante por meses, mas superou essa fase, com ajuda dos profissionais de um Caps em Recife, onde inclusive passou a trabalhar. A oportunidade de emprego foi parte fundamental da recuperação, propiciando-lhe nova rotina e outras motivações. Ele integra hoje uma equipe de pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz e faz faculdade de Serviço Social. Em São Paulo, o Centro de Convivência É de Lei é referência nacional na atuação com usuários de drogas na região central. De acordo com a psicóloga Camila Alencar, a principal característica do trabalho da organização é a busca de vínculos com o usuá­rio. “Construímos junto com ele alternativas a um possível uso abusivo. Na maioria dos casos a ideia não é só cuidar do uso em si, mas dos muitos aspectos que o permeiam. Se você consegue ressignificar esses aspectos, o uso acaba naturalmente se modificando”, aponta Camila. Por não lidar com as drogas de forma repressiva, a redução de danos costuma ser vista como estratégia complacente, ou até estimulante ao consumo. “Pensar a redução de danos como estímulo a drogas é o mesmo que dizer que a camisinha é um estímulo ao sexo”, refuta a psicóloga. “Não podemos esquecer que é o consumidor o principal atingido por seu uso.”

FOTOS DANILO RAMOS

LEO CALDAS

SAÚDE

REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

21


SAÚDE A caminho da saída

MAURICIO MORAIS

DANILO RAMOS

A conversa final no churrasco do dia 14, na “Cracolândia” paulistana, é com Lúcio Mauro Pereira Mendez, 37, que conta já ter estado “limpo” do crack por 15 anos. Durante esse período, casou duas vezes e teve três filhos. Aos 34, sofreu uma recaída e, a partir de então, vive em um albergue da prefeitura na região da Luz. Há menos de um mês está em abstinência, na luta para parar. “A filosofia de ‘só por um dia’ funciona”, conta ele, que há duas semanas não recorre ao acompanhamento que vinha tendo na “Cristolândia”, misto de igreja e centro comunitário. A experiência de Mauro na busca por uma saída é vasta. Ele já frequentou centros do SUS e pelo menos duas clínicas É DE LEI ONG busca estabelecer vínculos com usuários do centro de São Paulo particulares. Ao lembrar de como parou de usar crack da primeira vez, afirma: “A melhor clínica é a mente. Consegui paLivre e espontânea pressão nos consultórios particulares, mas na rar por vontade própria, mas com muita Assim como Saint Claer, o psicólogo prática o buraco é bem mais embaixo”, ajuda da minha companheira na época”. Maurício Cotrim já teve experiências di- acredita o psicólogo. Sobre a internação compulsória, diz que fíceis com a dependência de crack e, uma Tomando sua própria experiência, e é o mesmo que ir para a cadeia. “Só traz vez superada, passou a trabalhar no aten- a de seus pacientes, como exemplo, ele revolta para o dependente. O que a gendimento a pacientes com o mesmo pro- questiona a distinção normalmente feita te precisa é de afeto, é de alguém que te blema. Com pai alcoólatra e mãe “passiva”, em relação às internações: dê a mão e diga: ‘Por aqui é Cotrim passou a consumir crack com fre- “Falar em paciente voluntámais seguro’.” quência aos 15 anos, chegando a se sentir rio ou involuntário é muiMauro já esteve em contato com o trabalho do É de “como um rato, praticamente desistindo to subjetivo, pois quase neLei. “Eles dão suporte, apoio de viver”. Largou o vício de forma aparen- nhum dependente químico temente pouco usual: após um princípio ou alcoolista chega a um moral, passam coisas boas. de overdose, procurou a polícia, que o tratamento, mesmo que por Você não se sente inferior, encaminhou a uma assistente social. Esta, suas próprias pernas, pormas como alguém da sociedade. O usuário incomoda por sua vez, propôs um tratamento em re- que quer. Chega ‘por livre e gime de internação, e ele aderiu. espontânea pressão’, como a sociedade. Há furtos, deselegância na rua, agressão... Cotrim rechaça o estereótipo que rela- costumo dizer”. Maurício Cotrim ciona o consumo de crack à miséria. “Em É difícil conviver com ele, eu Mesmo quem trabalha em acredita que consultório ou nas clínicas em que atuo clínicas particulares, como sei. Mas somos humanos. nenhum dependente atendo pacientes das mais variadas classes ele, concorda que, ao contráNão posso ser hipócrita, favai a tratamento porque quer zemos parte da sociedade, sociais, níveis culturais e tipos de depen- rio do que apregoa o senso dência: de um morador de rua ou ex-pre- comum, a internação pura e mas estamos embaixo dela.” sidiário ao intelectual com ensino supe- simples não é o melhor caminho para tra- Ele diz que não vê o filho mais novo há rior ou grande empresário, advogado etc.” tar o problema. “Cada caso é um, porque dois anos, talvez por um pouco de orguEle não se alinha ao campo conhecido cada indivíduo é único. Mas, exceto na- lho próprio. “Não quero que ele me veja como redução de danos e diverge de sua queles que representam um risco extremo assim. É triste não poder andar onde vorepulsa às internações, vistas como ne- para o dependente ou para quem convive cê gosta por ter vergonha de si mesmo.” cessárias apenas em casos extremos de com ele, a internação é a última opção.” Atualmente, Mauro vive um novo relarisco de suicídio ou à saúde de terceiros. Cotrim lamenta, porém, o fato de mui- cionamento, acaba de conseguir um em“Entendo as questões ligadas à luta anti- tas vezes ser procurado por pacientes que prego e está esperançoso. “Nós precisamanicomial, e gostaria muito que na re- buscam mas não encontram tratamento mos procurar ficar bem, ter um pouco alidade nenhum paciente necessi­tasse de no sistema público. “A demora em rece- de orgulho próprio. É o que quero para internação, que todos se tratassem ambu- ber alguém para uma simples triagem é mim e para todos, não é fácil olhar e não latorialmente, nos grupos de NA e AA, absurda”, reclama. ser visto.” 22

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL


SAÚDE

A hipocrisia fora da sala

FLÁVIO AGUIAR

Com salas específicas para usuários de droga, alguns países buscam oferecerlhes sobrevivência mais segura, reduzir seus riscos e de seu ambiente social e ampliar suas chances de tratamento Por Flávio Aguiar

FILA Em Berlim, usuários esperam a vez para usar o trailer convertido em narcossala

nome pode variar: narcossalas, salas seguras, safer injecting rooms, ou salas de pico, Drogenkonsumräume. O conceito é quase sempre o mesmo, nos países que as admitem e cujos governos, em diferentes níveis, as patrocinam: possibilitar aos consumidores de drogas que não podem ou não querem abandoná-las condições mais seguras para seu uso e que inibam outras conse­quências, como a proliferação de doenças contagiosas (aids, hepatites) através de seringas compartilhadas. Nessas salas se oferecem instrumentos para a manipulação das drogas (não a própria droga). E também assistência médica e psicossocial a usuários (e famílias), bem como “pontes” para tratamentos, visando à redução controlada do consumo até seu abandono. Assim se procura contornar problemas causados pelas crises de abstinência que atacam o usuário que decide abandonar a droga por conta própria. No mais das vezes, isso produz recaídas que agravam a situação e abrem portas para misturas em coquetéis ameaçadores. A política de adoção dessas salas começou na Europa. O primeiro país a adotá-las oficialmente foi a Holanda, onde as discussões começaram nos anos 1970.

Houve iniciativas paralelas, como a criação de um café, em 1986, em Berna, na Suíça, onde usuários de drogas eram bem-vindos, ao contrário de outros cafés e bares. Em 2009 existiam 92 dessas salas na Europa, em 61 cidades. Elas estão presentes na Espanha, Noruega e Luxemburgo. Também fazem parte de iniciativas do Estado no Canadá e na Austrália. Na França, o tema está em debate. Na Alemanha, as discussões partiram de Hamburgo, onde passou a primeira legislação a respeito, e em Frankfurt, onde a primeira sala foi aberta, em dezembro de 1994. Hoje, 16 cidades do país têm salas. As instalações, mantidas pelo governo federal, estadual (de quem depende a legislação) e municipal e por contribuições privadas, não se limitam a oferecer ambientes para o uso de droga. Há cozinhas, salas de atendimento, leitura e lazer. Conceitualmente, os objetivos dessas instalações são: a sobrevivência mais segura do usuário, reduzindo os riscos; melhorar a saúde e propiciar estabilização psicológica, individual e do grupo social; fazer uma ponte para alternativas de tratamento; impedir a desinte­ gração familiar e social que muitas vezes acompanha o uso de droga; propiciar a familiaridade com o uso controlado,

O

evitando misturas e overdoses; obter a progressiva redução do consumo e da incidência de doenças; e evitar ou diminuir a ocorrência do uso de drogas em locais públicos, como toaletes de rodoviária (muito comum), parques, estacionamentos, ruas ou nas residências, o que aumenta os riscos para a saúde e estimula a degradação pessoal e social. Inicialmente a maior preocupação dessas casas era com as drogas injetáveis. Hoje seu âmbito é maior, abrangendo as inaladas. Estabeleceram-se especializações em algumas delas, dirigidas exclusivamente para mulheres ou para jovens. Já há as que incluem atenção especial a idosos. Por trás dessas iniciativas está o conceito de que o usuário de drogas ilegais, antes de ser um “criminoso”, é um cidadão. Porém nem tudo são flores. Na França, o debate a respeito é vivo. Na Alemanha, em estados movidos por uma ideologia conservadora, houve recusa à adoção de tais salas. Seus defensores, por outro lado, argumentam que pensar numa sociedade contemporânea (aliás, mesmo as antigas) sem o uso de drogas ilegais é algo absolutamente irreal. E que, se os avanços são lentos dentro desse tipo de política, eles oferecem uma ponte para um mundo mais seguro e cidadão. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

23


SAÚDE

Crack para exportação Vício adquirido no corte de cana é disseminado para o interior do país. E, se cidades grandes e ricas estão mal preparadas para enfrentar a questão, imagine as pequenas e pobres Por Letícia Cruz

DA CIDADE PARA O CAMPO Cachimbo feito com peças de PVC: corpo maltratado pelo corte da cana e neurônios queimados pelo crack

24

O

crack está presente no trabalho de canavieiros, sob jornadas e condições extenuantes. E o vício não se esgota no canavial, pois acompanha o usuário no retorno a seu local de origem. Enquanto migrantes cada vez mais jovens de estados como Maranhão, Piauí, Minas Gerais, Pernambuco se deslocam para mergulhar na safra, a droga nas pequenas e médias cidades do interior se dissemina. Um estudo da Confederação Nacional de Municípios identifica problemas com a circulação de entorpecentes em nove entre dez cidades pesquisadas. No final do ano passado, em plena safra da cana, a reportagem visitou Guariba (SP). Os trabalhadores se agrupam em torno das 5h30 para seguir aos canaviais nos ônibus das usinas. O assunto os constrange. Migrante de Codó (MA), Lindiana Soares, de 34

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

DIEGO PADGURSCHI/FOLHAPRESS

anos e aparência de 50, passou a consumir a droga por influência dos colegas e do marido. “A praga da cidade grande pegou na roça”, diz. Ela conta que em tempo chuvoso o cortador ganha menos, somente o valor da diária, proporcional a um salário mínimo por mês. Alguns gastam o dinheiro do dia comprando pedra dos traficantes da área. A situação em Araçuaí (MG), de pouco mais de 36 mil habitantes, ilustra como funciona o ciclo do vício. Seus moradores tentam se adaptar ao aumento da criminalidade e da violência. O município tem sua cracolândia à beira do Rio Jequitinhonha. O ­psicólogo Álbano Silveira Machado conta que o consumo é observado principalmente entre jovens que saem para o trabalho rural com o objetivo de ganhar o próprio dinheiro. “Eles querem coisas como moto, tênis, som, agradar a namorada”, afirma.


SAÚDE As cidades-polo do médio Jequitinhonha, caso de Araçuaí, são visadas também pela proximidade das rodovias. “Quando os migrantes chegam (das lavouras), procuram onde comprar crack e maconha, e acabam inclusive viciando outros jovens que ficam aqui”, diz Machado. Sem opções, as “viúvas de marido vivo” – como são chamadas as mulheres dos trabalhadores rurais – ficam em casa, sozinhas, durante os períodos das safras. Elas temem que os familiares retornem dependentes. Segundo Maria Aparecida Moraes, professora de Sociologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), pesquisadora do tema, mães e parentes criam comunidades para trocar experiências. “Lá no Maranhão, as mães sempre diziam que tinham medo que os filhos voltassem para casa viciados, porque ali na região havia muito disso”, diz.

Falsa sensação

Segundo um estudo divulgado em setembro pela Frente Parlamentar de Enfrentamento ao Crack da Assembleia Legislativa de São Paulo, a droga está presente em 531 das 645 cidades paulistas, e falta tratamento. Familiares dos que adquiriram o vício nas lavouras procuram ajuda em ambulatórios regionais ou universitários. De acordo com a pesquisa, 79% dos municípios paulistas não têm leitos para dependentes no Sistema Único de Saúde (SUS). Clínicas de reabilitação ainda são escassas. A mais próxima de Guariba fica em Pradópolis, na região de Ribeirão Preto. Os custos, porém, são proibitivos. Durante lançamento do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas em dezembro, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, reconheceu as deficiências na rede pública para enfrentar a questão – principalmente nas áreas rurais. O plano, parceria entre os Ministérios da Saúde, da Educação e da Justiça, tem como meta a instalação de 430 unidades de acolhimento até 2014. E depende da ação conjunta dos poderes municipais, estaduais e federal na prevenção e na repressão ao tráfico e no tratamento dos dependentes químicos. No meio rural, o avanço do vício é explicado por especialistas pelo fato de a droga ser vista pelo usuário como “válvula de escape” diante das condições de trabalho. Seria a busca de um suposto estímulo físico para aumentar a capacidade produtiva. “É uma falsa sensação de que vão se tornar super-homens”, diz o padre Antonio Garcia Peres, coordenador da Pastoral do Migrante de Guariba. Segundo ele, que faz visitas regulares aos alojamentos oferecidos pelas usinas, o consumo é aberto, mesmo sob risco de expulsão do usuário flagrado. “O trabalhador não para nem pra comer pra poder aumentar sua produtividade.”

A União da Agroindústria Canavieira (Unica) nega que esses problemas sejam provenientes do vício na colheita e tenham ligação com as condições extenuantes de trabalho. O diretor de comunicação corporativa da entidade, Adhemar Altieri, afirma que “não faz sentido” isolar um setor para discutir os impactos do crack. “É a mesma coisa que você falar do uso de crack entre padeiros, ou ir a uma montadora de automóveis numa mudança de turno e ver se existem pessoas que usam crack”, comparou. “Você provavelmente vai encontrar algum usuário. O que significa isso? Que o crack invadiu a indústria automobilística? Obviamente que não.” A socióloga Arlete Fonseca de Andrade, do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), relaciona o vício entre trabalhadores do campo ao seu histórico sofrido. “A droga entra na equação como um fenômeno para fazer com que eles pertençam a um grupo, mesmo que seja o pior de todos”, avalia. Ela observa que o agronegócio tem forte influência nesse movimento em que as pessoas se deslocam em busca de trabalho e renda por um período em polos de produção agrária, mas depois retornam à localidade de origem. Esse tipo de migração do vício acaba, portanto, sendo uma especificidade do setor. Colaborou Sérgio Vasconcelos, em Araçuaí

Epidemia? Cláudio, 42 anos, e Lucas, 22, partiram para o corte de cana em São Paulo para ganhar dinheiro nas usinas de açúcar e canaviais e voltaram para Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG), viciados. “Conheci o crack há 13 anos, na cana”, conta Cláudio. “Perdi tudo. Separei da mulher e moro de favor com um amigo”, diz o ex-boia-fria, pai de uma jovem de 21 anos. “Em Ituverava, eu buscava a droga para os outros peões. Andava 15 quilômetros até uma boca.” Lucas foi para o corte pela primeira vez há dois anos, em Franca (SP). Conheceu a droga em um dos alojamentos da empresa. Não teve mais vontade de voltar para os canaviais e, para alimentar o vício, foi ao fundo do poço. “Perdi a dignidade, a honestidade, o caráter.” Lucas vive com a mãe na região conhecida como Baixada, em Araçuaí. “Fui parar na cadeia. Estou em regime semiaberto, cumprindo pena por tráfico e roubo. Quero pa-

rar, mas não consigo”, diz o rapaz, que por duas vezes tentou uma clínica na cidade de Montes Claros. Em um barraco desarrumado e escuro, com muito lixo pelos cantos, mau cheiro e vasilhas sujas na pia, eles preparam sobre a mesa a droga para fumar. A pedra foi conseguida ali pertinho. “Aqui tem mais de cinco bocas”, conta Cláudio. Em poucos anos, ele perdeu a família, os dentes e a saúde. “Emagreci e sinto muito cansaço.” Atualmente, para sobreviver, faz bicos. “Se ganho R$ 30, gasto com pedra. Fumo pelo menos R$ 10 por dia.” O sargento Orias Chaves, da Polícia Militar de Araçuaí, constata a força da droga e a fragilidade da sociedade: “O consumo se alastra pelas comunidades rurais e bairros pobres. Já chegou à classe média. Podemos dizer que é uma epidemia”. Sérgio Vasconcelos

REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

25


ENTREVISTA

Minha mãe sempre me levou a programas de calouros, eu cantava Roberto Carlos no Bolinha, no Bozo, no Dárcio Campos. E, como ela atendeu ao meu pedido, a primeira música que cantei foi Lady Laura 26

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL


Selton,

uma criança Homenageado na Mostra de Cinema de Tiradentes, Selton Mello celebra 30 anos de carreira e sua grande paixão, o cinema Por Carlos Minuano

LEO LARA/UNIVERSO PRODUCAO/DIVULGAÇÃO 15ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

S

elton Mello tem fama de quem assobia e chupa cana ao mesmo tempo. Atua, escreve e dirige. Na direção, já foram dois longas-metragens, Feliz Natal e O Palhaço, filme do qual também é protagonista, ao lado de Paulo José. “Era quase esquizofrênico eu me dirigir. Eu fazia a cena e dizia ‘corta’”, conta. Antes de tudo isso, já era um ator muito curioso. “Não ficava no set só esperando a hora de fazer minha cena, queria saber qual lente o diretor e o fotógrafo estavam usando, como aquilo seria montado, sempre fui muito interessado pela parte técnica.” Por isso mesmo, acredita que tenha sido uma transição natural ir para a direção. “Evidente que aquele ator curioso se tornaria diretor um dia”, diz. Selton Mello nasceu em Passos (MG), cresceu e viveu em São Paulo e hoje mora no Rio. Há algum tempo, o ator amargou uma crise, da qual só saiu graças “à mola que existe no fundo do poço”. Com discrição mineira, se esquiva do assunto, e hoje, a salvo e distante do limbo, com apenas 39 anos, comemora mais de três décadas de uma carreira recheada de sucessos. No momento saboreia duas estreias, Reis e Ratos, com direção de Mauro Lima, que entra em cartaz neste fevereiro, e Billi Pig, exibido na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, na qual o ator foi homenageado. Na abertura, um clipe produzido pelo Canal Brasil, de TV por assinatura, mostrou todos os filmes em que atuou, arrancou lágrimas do ator e emocionou o público.

O festival abriu em janeiro o calendário da temporada brasileira de audiovisual. Selton Mello circulou pouco pela pequena cidade histórica mineira, localizada a 180 quilômetros de Belo Horizonte. Evitou como pôde o assédio de fãs e de jornalistas, mas em meio a fotos, autógrafos, filmes e aplausos encontrou um tempo para conversar com a Revista do Brasil. Falou de sua maior paixão, o cinema, e também sobre o ofício de ator, que, segundo ele, é uma forma de “continuar a ser criança”. O que é ser ator?

O ator é um contador de histórias, pode levar um pouco de sonho para quem o está vendo. É continuar a ser criança, talvez essa seja uma boa definição, porque, quando a gente é criança, brinca de ser coisas – a menina pega a boneca e finge que é sua filha –, é um exercício da imaginação. Ser ator é continuar aquela experiência da infância. E o que o levou a esse caminho?

Comecei bem cedo, gostava muito de televisão, era bem viciado, via todos os programas de humor. Tenho um carinho grande pelos humoristas da velha guarda, por isso procuro trabalhar com eles. Chamei o Moacir Franco em O Palhaço, o Lúcio Mauro em Feliz Natal, gostava muito de assistir aos programas do Chico Anísio, do Jô Soares. Um dia eu disse pra minha mãe: “Quero ir lá dentro da maquininha”, e pedi pra ir cantar na televisão. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

27


ENTREVISTA Ela me levou a programas de calouros, eu cantava Roberto Carlos nos programas do Bolinha, Bozo, Dárcio Campos. E, como minha mãe atendeu ao meu pedido e me levou, a primeira música que cantei foi Lady Laura (risos). E o cinema, quando surgiu na sua vida?

Sempre pensei: “Será que é possível fazer um filme que seja popular e autoral? Que se comunique bem e leve à reflexão e seja silencioso, e que seja cinema, portanto?” Essa foi minha tentativa, com O Palhaço, e deu certo

28

Minha primeira experiência com cinema foi num filme dos Trapalhões e da Angélica, Uma Escola Atrapalhada, na década de 1990. Depois comecei a fazer umas pequenas participações – em Lamarca (1994), Guerra de Canudos (1997) e O Que É isso, Companheiro? (1997). Eu até brincava, porque sempre morria no início do filme. Nessa época, então, meu grande sonho era viver até o fim de um filme. Aí veio o ano que eu chamo de definitivo na minha vida, 1998, quando fiz o Auto da Compadecida, inspirado na peça de Ariano Suassuna, e Lavoura Arcaica, baseado na obra de Raduan Nassar. Foi um choque, eu tinha 25 anos, foi a hora em que percebi o que queria pra minha vida, que é fazer cinema, foi quando me encontrei, que decidi me dedicar a isso, e a partir de então foi o que eu fiz, sou focado. E a direção, como aconteceu?

Foi naturalmente. Codirigi uma peça em 2001, depois dirigi uns clipes do Ira!, antes de a banda acabar, sou amigo deles. Depois que se separaram fiz outros do Nasi. Foi uma época em que o Canal Brasil estava passando por uma transição e me convidaram para fazer alguma coisa lá. Criei o programa Tarja Preta, que eu dirigia e apresentava, e lá conheci o Jorge Loredo (o Zé Bonitinho). Fiquei encantado e dirigi um curta-metragem com ele (Quando o Tempo Cair), e quando vi estava dirigindo meu primeiro longa. Você pensa em carreira internacional?

Tenho vontade, sim. O mais perto que cheguei disso foi no Jean Charles (de Henrique Goldman, 2009), que foi rodado em Londres, e já tive algumas sondagens de trabalho lá fora, mas nenhuma engatou, como o convite para atuar no novo Star Trek, de J.J. Abrams. Eu pensei: “Caramba, pô, maneiro, filme nos EUA, J.J. Abrams... Mas o que vou fazer dentro daquela nave?” E ninguém sabia me responder, porque é assim que eles trabalham: queriam primeiro um o.k. meu, e aí, sim, iam escrever sabe-se lá o quê. Era provável que eu colocasse aquela roupa da nave e ficasse muito deprimido. E sou muito grato pelo que conquistei aqui, é um p­ aís enorme, rico culturalmente, e consegui levar minha arte para muita gente. Então, não me encanta a ideia de parar tudo aqui e começar em um outro país, numa outra língua. Quero continuar fazendo aqui, em português.

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Se surgir algo interessante, se alguém assistir ao meu trabalho em português e disser “gostei desse cara”, ótimo, mas não vou parar tudo para ir até lá e começar de novo. O seu segundo longa, O Palhaço, fez sucesso aqui no Brasil. Você acredita que ele pode tocar tanto também outros países?

Eu acho que sim, porque trata de uma questão muito humana, falar de identidade, vocação, o que você escolheu para fazer da sua vida, ou para o que foi escolhido. É um filme que enquadra todo mundo, acredito que possa ter uma trajetória bonita fora do país. Fico feliz porque em O Palhaço tentei uma coisa que poderia não dar certo. Temos um cinema autoral muito bom, a que pouca gente tem acesso, e o de característica bem comercial, que não leva a nenhuma forma de reflexão. E sempre pensei: será que não é possível juntar as duas coisas? Será que é possível fazer um filme que seja popular e autoral? Um filme que se comunique muito bem, mas leve à reflexão e seja silencioso, e que seja cinema, portanto? Essa foi minha tentativa, e deu certo. Talvez eu tenha encontrado agora uma veia, uma forma de fazer. O filme foi uma realização pessoal gigante, importante também para o cenário brasileiro, por mostrar que o público é sensível e quer coisas que enriqueçam o espírito e a alma. Você vê diferenças, no trabalho de direção, entre O Palhaço e o primeiro filme, Feliz Natal?

Foram experiências muito distintas. O primeiro tem aquela ansiedade da estreia, você fica querendo mostrar que sabe fazer e ao mesmo tempo muito preocupado se vai dar conta de tudo aquilo. No segundo tem uma calma maior porque você já estreou, mas no meu caso entrou um novo dado, o fato de atuar também. Era quase esquizofrênico eu me dirigir. Eu fazia a cena e dizia “corta”. Era um negócio meio maluco, para quem estava de fora era até bastante engraçado. Mas correu tudo bem, deu tudo certo. E como foi a homenagem na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes?

Foi emocionante, fiquei muito contente. Tenho 39 anos de idade, porém trabalho há mais de 30. Desde criança sou ator. Apesar de novo, já tenho quilometragem. Receber homenagem é um incentivo e tanto para seguir adiante criando e produzindo. Uma das principais características da Mostra de Tiradentes é celebrar novos talentos, as novas cabeças pensantes do cinema, e nós temos muitos talentos. É um grande diferencial desse festival, e fico feliz em ser homenageado em uma mostra que celebra os jovens. Vim aqui há dez anos, com o Lavoura Arcaica, e agora fiquei impressionado com a estrutura, cresceu muito.


ENTREVISTA

Acredito que a principal diferença está na falta de tempo para você aprofundar um trabalho. Tenho uma grande admiração pelo Tony Ramos, acho um ator extraordinário, justamente porque ele consegue um negócio que acho um feito: faz cinema, faz teatro, mas gosta mesmo é de novela, e faz muitas. Fico muito impressionado porque ele consegue manter um nível alto em seu trabalho, as novelas que faz são sempre grandes trabalhos, e coisas distintas: faz um indiano, um grego, um coronel do mato, um camarada urbano. E na televisão não há tempo para preparação, para se aprofundar em um personagem. É tudo muito ligeiro, são 30 cenas por dia. No cinema o tempo é outro, você faz duas, três cenas por dia, pode elaborar melhor tudo. Por outro lado, minha escola foi a TV. Não sou formado em nada, cresci fazendo as coisas, foi na televisão que aprendi, trabalhando com grandes atores, observando como eles faziam. Esse é o lado bom da rapidez da TV, porque dá uma agilidade de raciocínio enorme. Para fazer 30 cenas todos os dias é preciso tirar muito coelho da cartola, tem de ser criativo. Isso dá uma bagagem muito boa. Hoje, fazendo cinema, com mais calma, percebo isso. Trinta anos de carreira e muitas transições, o que falta fazer?

Não sei o que falta, quero continuar a fazer o que gosto. Estou curtindo muito dirigir, na verdade estou gostando mais que de atuar, mas em resumo é isto: continuar trabalhando, exercitando a imaginação. No momento estou saboreando duas estreias, uma em fevereiro, Reis e Ratos, com direção de Mauro Lima, e outra em março, Billi Pig, comédia de José Eduardo Belmonte. Ainda não sei qual será meu próximo trabalho, estou tateando algumas coisas. Acho que vou viver uma coisa curiosa: geralmente um diretor sofre uma pressão do primeiro para o segundo filme, é bastante comum isso. Comigo vai ser diferente, vai ser do segundo para o terceiro. O Feliz Natal foi tão radical, sombrio, autoral e pouco visto que não tive o menor pudor em ir para o segundo. Não tive aquele momento “ai, meu Deus, o segundo, e agora?”, quando vi já estava fazendo. Mas para o terceiro talvez eu tenha. Agora vai rolar uma cobrança porque O Palhaço fez sucesso, deu certo, abriu um novo caminho no cinema brasileiro, apontou uma nova possibilidade, de fazer algo popular e autoral, conseguiu juntar essas duas coisas, que até então ninguém estava fazendo, ou era muito comercial, ou muito autoral. Então agora acredito que tenha uma expectativa, porque eu vou seguir nessa onda.

Você disse que aprendeu fazendo, mas considera importante ter o suporte de um aprendizado acadêmico?

A importância do estudo tradicional é enorme, mas o que acho na verdade é que vivemos um período de transição tão grande na comunicação que a gente não consegue nem se dar conta ainda, de tão veloz que é tudo, essa coisa da internet. Sou muito ligado nisso, e ando pensando em fazer algo nesse segmento. Mas acho que tudo ainda é embrionário, os valores vão mudar muito. A Kodak faliu, pediu concordata, já é uma coisa muito rara filmar em película, e vai acabar totalmente, a exibição vai passar a ser totalmente digital, muita coisa vai mudar. Isso tudo pra dizer que hoje em dia a moçada que se forma tem uma vantagem. Antigamente, para começo de conversa, não havia uma indústria cinematográfica, não era nada animador. Segundo, não tinha internet. Hoje, depois da faculdade, ou mesmo durante os estudos, se o cara quiser se expressar basta pegar uma câmera, às vezes nem tão potente. Ele vai, faz o filme dele, põe no Youtube, e em pouco tempo está todo mundo vendo, espalhando. Ele não fica dependendo de entrar num festival ou em uma TV, aberta ou fechada, já foi dali para o mundo. Fico muito impressionado com a força da internet. Estou a fim de vasculhar esse negócio. Qual sua opinião sobre o atual momento do cinema brasileiro, e o que falta para ele se projetar mundialmente?

Já vai muito bem internacionalmente. Aliás, a Mostra de Tiradentes é pródiga disso, os jovens que passaram ou que passam por aqui já estão a todo o vapor, Cannes, Roterdã. Esses filmes mais autorais, de uma linguagem mais inventiva, viajam muito bem. Por outro lado, é importante conquistar o público brasileiro, o que também já vem acontecendo. O ano retrasado teve o fenômeno do Tropa de Elite 2, de José Padilha, com mais de 11 milhões de espectadores. Ano passado também foi muito bem, mas um pouco mais pulverizado, o que ao meu ver é mais saudável. Não tivemos nenhum Tropa com 11 milhões, mas teve sete filmes com grandes bilheterias. O Palhaço é um deles, com 1,5 milhão de espectadores, outro fez 800 mil, 400 mil, 3 milhões. Isso é bom, é importante o público brasileiro se ver na tela. O cinema é uma espécie de espelho do que a gente representa. Quando eu digo que essa geração de atores, da qual faço parte, é muito importante porque personificamos os mitos e os heróis brasileiros. Não somos o Brad Pitt, o Johnny Depp. Somos o Wagner Moura, o Lázaro Ramos, falamos português, e temos essa responsabilidade de dar cara ao nosso cinema e falar a língua de quem está ali nos vendo.

FOTOS LEO LARA/UNIVERSO PRODUÇÃO/DIVULGAÇÃO

O tema desta edição da mostra foi o ator. Qual a diferença entre atuar no cinema e na TV?

Hoje o cara vai, faz o filme, põe no Youtube, e em pouco tempo todo mundo vê. Não depende de festival, ou de uma TV. Já foi dali para o mundo. A força da internet impressiona. Estou a fim de vasculhar esse negócio

REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

29


CIDADANIA

TV com identidade Estudantes e professores do ensino médio no Distrito Federal usam projeto comunitário de televisão como ferramenta de aprendizado para decifrar e intervir em sua realidade Por Virginia Toledo

“S

aber que os alunos não se interessavam muito pelas minhas aulas me angustiava. Estavam sempre conectado às redes. Era eu que precisava entrar no mundo deles.” O desconsolo de um educador, cansado da tradicional metodologia aplicada nas escolas, foi o ponto de partida para mudar a vida de muitos dos seus alunos. A ideia do professor de História Wagner Júnior surgiu quando notou que o conteúdo de suas aulas pareciam ser mais relevantes para si mesmo que para os alunos. Mas o “professor amigo” achou melhor não se impor contra aquilo que tanto tirava a atenção de meninos e meninas: decidiu unir-se às redes e mídias digitais e idealizou um programa de TV “de jovens para jovens”. Em 2007, no Centro Educacional (CED) do Vale do Amanhecer, bairro da cidade-satélite de Planaltina, no Distrito Federal, nascia o Projeto Reação, produzido e dirigido por alunos, e tendo alunos como público-alvo. A ideia começou como contraponto ao lugar-comum das emissoras convencionais, em que “o mundo é um sonho eterno e quem nasceu na periferia só poderia ser representado pela empregada negra ou pelo bandido pobre”, critica o professor. Seu objetivo era estimular os jovens a vasculhar sua identidade, a se interessar mais pela realidade ao seu redor – até para questionar mais o professor, desde a matéria lecionada por ele até os assuntos cotidianos da vida de um jovem em formação. O Reação começou com Wagner e mais sete de seus alunos, que, com inúmeras ideias e nenhum recurso, puseram em prática a realização de um sonho: um programa de TV. Mas a história do Reação não se limita a um processo de ensino 30

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

estático e imutável. Wagner viveu na pele a rotina, às vezes sofrida, de professores da rede pública de ensino submetidos à troca de salas e escolas. E não desistiu. Levou adiante sua filosofia de ensino: falar a linguagem dos jovens a quantas escolas forem necessárias. Janaína Cândido, participante da primeira turma do Reação, lembra que os alunos se envolveram por causa da diferença entre a política de dentro da sala aula e a aplicada no novo projeto, no qual criatividade e liberdade andam juntas, segundo a estudante. “Foi criada uma autonomia. A iniciativa passou a nos oferecer uma nova identidade, outra visão de mundo, seja para atuar em comunicação ou em qualquer outra profissão”, conta Janaína. Ela entrou na Faculdade de História na Universidade de Brasília e continua no projeto, repassando o que aprendeu a novos alunos. No início, como lembra Janaína, tudo era feito no pátio da escola. Quem tinha maior habilidade com a câmera imediatamente virava o cinegrafista, o trabalho de confeccionar os painéis ficava a cargo de quem tinha habilidade manual. E assim o projeto foi sendo aperfeiçoado e tomando formas, à medida que os alunos viravam praticamente profissionais de TV, cada vez mais envolvidos e dedicados ao projeto. A troca de escola se consumou em outro braço do Reação. A ideia do professor Wagner chegava a Sobradinho, outra cidade-satélite. O Programa Parabólica, inicialmente, era uma peça de teatro com abordagens sobre o universo das drogas. A partir dele, Wagner Júnior propôs um programa de televisão para tratar de vários temas, incluindo o inicial. “Lá ninguém é obrigado a fazer nada. Você é provocado a fazer alguma coisa, e isso te dá

maior responsabilidade”, conta Daniele Paiva, aluna da escola do Centro de Ensino Médio 01, de Sobradinho. Em parceria com a TV Cidade Livre, de Brasília, alguns programas são transmitidos ao vivo do estúdio da própria emissora. Depois, seus arquivos vão para a internet, para que sejam divulgados e debatidos. Fora dali, a iniciativa é movida a improviso. Dos equipamentos de audio-


visual ao cenário, tudo é emprestado, doado ou conquistado, mas quem vê a dedicação e o empenho dos jovens sente-se num ambiente de profissionais de jornalismo e de grandes emissoras. Com o objetivo de construir uma mídia mais democrática e sintonizada com a realidade, os programas de TV são realizados e mantidos pelos próprios alunos e por pessoas da comunidade que acabam se tornando parceiras do projeto. Um empresta uma câmera daqui, outro faz um

aluno a aluno: “A escola é lugar de fazer amigos”. Ele conta que antes de se formar em História já via o ofício de educador como uma possibilidade de conhecer mais pessoas e passar adiante o que aprendeu. Mas sempre se questionou sobre a responsabilidade de lecionar. “Eu não posso falar para uma pessoa que tudo o que ela precisa saber é o que eu sei, é o que eu estou passando pra ela”, lembra. Foi então que o professor começou a mudar a metodologia, tanto na sala de aula como na gravação dos programas. Quando um aluno entende que há um processo de construção de identidade e de conhecimento a partir de questionamentos como “de onde vim, quem sou e para onde vou”, ele consegue buscar respostas além do conteúdo ensinado. “Hoje, quando esses meninos vão para a sala de aula já conhecem o mundo. Não existe educação sem conflito e, para existir conflito, tem de existir diálogo.” Daniele Paiva afirma que seu amadurecimento e sua responsabilidade são resultado, em grande parte, do envolvimento com o projeto. “Mudou a minha vida.”

painel dali, e assim os programas assumem caras e cores. Apesar de o Parabólica atual­mente ser tocado em apenas uma escola, o espaço é livre a todos que quiserem participar. As pautas e os temas são definidos em reuniões ou mesmo no dia a dia dos próprios alunos e colaboradores – expectativas para a universidade, educação, drogas, religião, sistema de cotas, saúde e sexo, assuntos não faltam. Nos programas de TV, não são só professores que orientam os alunos no conte-

AUGUSTO COELHO

O futuro

ESPÍRITO LIVRE Turma do Programa Parabólica com o professor Wagner: todos os assuntos dão pauta

údo e na produção. Janaína, por exemplo, ensinou Daniele a construir roteiro e a produzir. E Daniele pretende fazer o mesmo. Ela acabou o ensino médio e garante: mesmo quando já estiver na universidade pretende continuar envolvida no projeto, levando a novos alunos o que aprendeu. Wagner gosta de citar o educador Paulo Freire para explicar de onde vem a metodologia que carrega consigo dia a dia, de

A visibilidade do projeto, já na escola de Planaltina, tomou uma proporção inesperada para os alunos e professores envolvidos, mas muito bem-vinda. Com a divulgação dos programas pelo Youtube, outras escolas puderam ter acesso ao conteúdo e às discussões, despertando, assim, a disseminação do interesse para outros cantos de Brasília, inclusive de professores que no início eram reticentes quanto ao teor dos debates e ao entusiasmo dos alunos. Mas, sim, eles têm uma pretensão: a construção de uma emissora com conteúdo feito por jovens e para jovens. “Quanto mais a gente discute televisão e faz a nossa, menos se dá espaço a grandes empresas que utilizam esse espaço público como um mecanismo ideológico e comercial”, ressalta Wagner. “Tenho muito a agradecer a esse projeto, por isso não largo, não abandono. Fico feliz porque a gente está ganhando uma visibilidade legal, com pessoas apoiando, acreditando na iniciativa. Isso é gratificante, porque é uma luta que já faz quatro anos. Demorou, mas estamos conseguindo”, comemora Janaína. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

31


MÍDIA Enquanto as redes sociais não desenvolvem mecanismos para coibir crimes contra a imagem, a honra ou a privacidade, é melhor o usuário agir preventivamente do que dar margem para o controle e a censura Por Andrea Dip

Não dê sopa à

baixaria

SEM CONTROLE Marília foi caluniada durante uma disputa eleitoral na faculdade

32

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

GERARDO LAZZARI

O

s projetos de lei americanos identificados pela sigla Sopa (Stop Online Piracy Act, ou Lei de Combate à Pirataria On-Line) e Pipa (Protect IP Act, ou Ato para Proteção da Propriedade Intelectual) foram assunto no mundo todo nos últimos meses e reacenderam a discussão sobre limites e liberdade na internet. O Sopa sugeria penas de até cinco anos de prisão para quem compartilhasse conteúdo pirata por dez ou mais vezes ao longo de seis meses. Sites como Facebook, Google e Yahoo, por exemplo, poderiam ser punidos por permitir ou facilitar a pirataria, com risco de ter seus serviços encerrados. Páginas estrangeiras hospedadas em provedores americanos também estariam sujeitos a punições, bloqueios e banimentos. Como demonstração do que poderia acontecer, alguns grandes provedores e redes sociais tiraram suas páginas do ar em protesto e, diante da repercussão, os projetos foram engavetados por tempo indeterminado. Mas a todo momento pipocam ideias dirigidas a controlar e colocar limites na web; o Brasil também tem a sua. Apelidado de AI-5 Digital, o Projeto de Lei 84/99, de autoria do então


senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), hoje deputado, está há 12 anos em tramitação no Congresso e foi ressuscitado no meio do ano passado após uma onda de ataques de hackers a sites oficiais. Entre outros pontos, o texto prevê punição de até seis anos de prisão mais multa para crimes como: acesso não autorizado a sistema informatizado restrito; inserção ou difusão de código malicioso ou vírus em sistema informatizado; estelionato eletrônico; e falsificação de dados eletrônicos ou documento público ou particular, entre outros. Se o projeto for aprovado como está, o internauta precisará se identificar a cada acesso à internet e os provedores guardarão dados dos usuários por três anos. Sua votação vem sendo sucessivamente adiada. Para o professor e sociólogo Sérgio Amadeu, leis como essas promovem na verdade um vigilantismo para tentar controlar e tomar de volta o poder que, na web, é de todos. “No Brasil, quando alguém quer aprovar uma lei repressiva, argumenta que é para combater a pedofilia. Nos Estados Unidos isso acontece com o terrorismo”, afirma Amadeu. “Esses jargões querem criar um momento em que as pessoas abram mão de direitos em função da segurança. Existem exageros? Claro que sim. Mas nas ruas acontece de tudo: crimes, acidentes de carro e o que a gente tem de fazer? Melhorar nossa capacidade de sinalizar, colocar policiamento, e não impedir que as pessoas andem livremente, façam manifestações. No cyberespaço é o mesmo fenômeno”, defende.

“Criaram várias comunidades no Orkut, na época, me chamando de vaca, prostituta, biscate. Eu sabia que eram eles porque também me agrediram no jornal da faculdade” conta. Marília diz que passou a ver gente apontando o dedo para ela na faculdade e não sabia como se defender: “Cheguei a falar com um advogado, mas fui desencorajada a processar. Aí denunciei aos gestores do site, que tiraram do ar depois de bastante tempo. Mas não sei se ainda existe alguma comunidade porque quando uma baixaria era apagada nascia outra”. A produtora Raquel também enfrentou maus bocados em redes sociais. Ela conta que começou a ser perseguida em um blog de fotos que mantinha: “Lá qualquer pessoa podia comentar e vez ou outra apareciam ofensas anônimas do tipo ‘como você é gorda’ e ‘te odeio’. Eu deletava, mas ficava muito brava, chorava, tinha medo, não fazia ideia de quem poderia ser e só me perguntava por que aquilo acontecia comigo”. Raquel lembra que, quando passou a participar de uma rede social, a pessoa fez um perfil falso para continuar com as agressões, agora direcionadas não só a ela, mas também ao namorado.

A internauta diz que só depois de muito tempo se acostumou com os comentários e parou de ter medo da pessoa por trás das ofensas. “Não tomei nenhuma atitude, porque achei que iria me estressar muito se entrasse com algum pedido de encontrar essa pessoa. Mentiria se dissesse que não tenho curiosidade de saber quem é, não sei se ainda me persegue, mas queria saber qual é o problema comigo.” Embora a maioria dos internautas agredidos não cobre a conta na Justiça, o advogado Marco Aurélio Florêncio Filho, vice-presidente da Comissão de Alta Tecnologia da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, explica que o Código Penal, criado em 1940, prevê esses crimes. “Os crimes praticados no mundo virtual são os mesmos do mundo real. Muda apenas a ferramenta. Calúnia, injúria, difamação e outros delitos como ameaças, constrangimentos, estelionatos ou furtos qualificados estão previstos no Código – 95% dos crimes cometidos na rede já estão tipificados”, afirma. De acordo com Florêncio Filho, muitas pessoas têm procurado a Justiça, prova disso é o grande número de escritórios se especializando em direito digital.

Mas não dá para negar: acontecem abusos nas “ruas virtuais”. Diariamente pessoas sofrem calúnias, difamações, têm fotos pessoais divulgadas e a vida exposta por terceiros, por diversos motivos. O agravante é que, uma vez na rede, não há mais controle sobre isso. A jornalista Marília conhece muito bem essa história. Quando ainda era estudante em uma universidade conceituada de São Paulo, montou uma chapa política para concorrer ao Diretório Central de Estudantes (DCE). A chapa rival, formada por um grupo que estava no poder havia dez anos, resolveu partir para ofensas na internet.

DANIELLE PEREIRA/CREATIVE COMMONS

Código penal

NÃO ABRIR MÃO DA LIBERDADE Sérgio Amadeu: “Nas ruas acontece de tudo: crimes, acidentes de carro. O que a gente tem de fazer é melhorar nossa capacidade de sinalizar, e não impedir que as pessoas andem livremente. No cyberespaço é o mesmo fenômeno”

REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

33


MÍDIA “O crime de calúnia, aliás, é mais fácil de provar quando cometido pela internet. Basta você ir atrás da pessoa por meio do IP. No caso da calúnia falada, ao vivo, é preciso de testemunhas para provar que foi feita.”

Estragos maiores

O advogado é crítico do projeto de ­ zeredo, principalmente pela proporA cionalidade das penas e por criminalizar mais o meio (internet) do que o fim. “Não existe anonimato na rede porque isso é inconstitucional. Nossa Constituição veda o anonimato, mas garante a privacidade. São duas coisas diferentes. A privacidade é assegurada até o ponto em que você não pratique ilícitos. Ninguém vai entrar na sua casa sem um mandado. Na internet, você tem a garantia de que ninguém vai entrar no seu IP para identificar um crime sem um mandado”, explica. Ainda assim, ele admite que, quando praticadas na rede, calúnia e difamação provocam estragos maiores. “Deveria haver um apêndice na lei de calúnia e difamação, porque feitas na internet têm potencial muito mais lesivo, já que a rede não dá direito ao esquecimento.” Um árbitro de futebol ofendido pelo jogador Neymar não esqueceu. Recentemente, o atacante do Santos foi conde­nado a indenizar Sandro Meira Ricci em ­­­­­­­­­­­R$ 15 mil por declarações difundidas contra o juiz no Twitter, em 2010, durante a partida Santos x Vitória pelo Brasileirão. Neymar estava fora do jogo e, irritado com a marcação de um pênalti contra sua equipe, escreveu no microblog: “Juiz ladrão, vai sair de camburão”. A frase teria voado com o vento se ele apenas a tivesse gritado no momento de raiva, mas ficou em seu DNA digital quando apertou o “publicar”. O jornalista Miguel Arcanjo, editor de Famosos e TV do portal R7, acompanha esses barracos. Para ele, celebridades também esquecem que redes sociais são lugares importantes da comunicação atual. “Não é uma mesa de bar ou uma reunião de amigos em casa. O que se diz ali fica gravado. Então, é preciso ter cuidado antes de dar uma opinião ou ofender alguém. Temos exemplos clássicos, como o da atriz Luana Piovani, que expõe toda a sua vida no Twitter e ainda o usa para falar mal de desafetos”, observa o editor. 34

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Eu deletava, mas ficava muito brava, chorava, tinha medo, não fazia ideia de quem poderia ser e só me perguntava por que aquilo acontecia comigo Raquel recebia ofensas pessoais em seu próprio blog

Como se proteger? Há várias formas de se proteger de assédios, crimes, calúnia e difamação na rede. Nem sempre funcionam, assim como no “mundo real”. Mas vale a pena saber o que fazer para não se tornar uma vítima e, quando for, o que fazer para resolver a situação. A primeira dica, do especialista em tecnologia da informação Marcello Morettoni, é: “Privacidade. Não coloque tudo sobre você nas redes sociais. Há quem coloque onde está, onde estuda, onde trabalha, onde mora, fotos dos filhos. Tudo isso gera elementos para criminosos e pessoas mal intencionadas em geral”.

Ele diz que é preciso estar atento a e-mails suspeitos que podem instalar vírus e trojans no computador, verdadeiras “portas de entrada” para senhas e cartões de crédito, por exemplo. “Na dúvida, não abra arquivos suspeitos. Se você conhece o remetente, peça para confirmar o envio.” Para denunciar crimes de pedofilia, racismo, xenofobia, maus tratos a animais, homofobia, dentre outros, há alguns sites na rede. Um dos mais conhecidos é o da Safernet, entidade referência no enfrentamento a crimes e violações aos direitos humanos na internet: ­www.safernet.org.br.

As denúncias são encaminhadas a instituições pertinentes a cada caso. A Safernet também tem uma porção de cartilhas e vídeos explicativos sobre prevenção na rede. Se você for vítima de crime digital, a primeira coisa a fazer é imprimir a página do site. O segundo passo é entrar em contato com uma Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática – existem várias espalhadas pelo país. Também já existem advogados especializados no assunto. O conselho da vovó ainda vale: “Melhor prevenir do que remediar”. Por isso, pense duas vezes antes de apertar o “enter”.


GERARDO LAZZARI

MÍDIA

“Por outro lado, com a comunicação instantânea permitida pelas redes sociais, os famosos conseguem atingir seus seguidores e a imprensa especializada, que repercutem o que dizem e também apostam na audiência da web. Ficar mais famoso ainda e se manter na mídia, ajuda nos contratos publicitários e convites de trabalho.”

Muitos setores se beneficiam da falta de privacidade (veja quadro), como observa o consultor de tecnologia da informação Marcello Morettoni: “As redes sociais são a realização dos sonhos de qualquer marqueteiro. As pessoas falam sobre elas mesmas, seus gostos, suas preferências, objetos de desejo, consumo, tudo!”

No Facebook, lembra o consultor, a publicidade é direcionada. “O objetivo é seduzir o usuário a clicar no anúncio que aparece na lateral da sua página, colocado ali porque tem a ver com você.” Morettoni admite que não há privacidade na web e afirma que cabe a cada um prestar atenção ao que expõe, ao que escreve e ao que lê: “Antigamente as pessoas não acreditavam em coisas que liam na internet. Hoje acreditam em tudo: que aquela notícia é verdadeira, que é realmente o Jô Soares falando com elas via Twitter… Não filtram mais as informações. Parece que ficamos todos bobos!” Mas o consultor engrossa o coro dos que lutam para que a web continue livre: “Regulamentar conteúdo na internet é o mesmo que não poder mais falar ao telefone! A rede não tem dono, é um meio de comunicação, uma ferramenta. Não cabe a nós barrar o fluxo da tecnologia, e sim nos adequarmos”. Sérgio Amadeu observa que quando alguém comete um crime, um ataque, a internet é responsabilizada. “A gente esquece a pessoa ou o grupo e acaba atacando a própria rede, pensando em meios de contê-la. É preciso que se preserve a liberdade, se respeitem os direitos humanos e não se esqueça de que existe exagero hoje como existia antes! É claro que hoje ele se dissemina muito mais rápido, por outro lado você consegue reagir mais rápido”, afirma Amadeu. “Há de se penalizar quem comete crimes e ofensas pela web. O que não podemos deixar é que leis transformem a internet em uma grande rede de TV a cabo.”

Você está sendo vigiado Com a superexposição das redes sociais como Facebook e Orkut, ficou fácil catalogar consumidores por perfis superespecíficos, interferir nos desejos e até monitorar o pós-consumo. Empresas especializadas, passam para seus clientes relatórios de resultados de campanhas e a impressão das pessoas sobre determi-

nado produto em tempo real. Alessandro Barbosa Lima, executivo de uma empresa que oferece esse tipo de serviço a grandes marcas, explica que o trabalho consiste de pesquisar o comportamento do público-alvo nas redes, entender o que busca, o que fala com amigos e parentes. Isso alimenta várias áreas de uma empresa. “Nas redes sociais,

o consumidor se tornou totalmente transparente”, define. “A gente consegue saber quando alguém está decidindo comprar um produto, definir estratégias para influenciar esse processo e acompanhar suas impressões depois da compra.”Assustador? Talvez. Mas isso aumenta a responsabilidade de cada usuário em relação ao modo como

lida com a internet, ou com pessoas que lidam com ela. Como alerta o consultor de tecnologia da informação Marcello Morettoni: é melhor o internauta agir com cautela em relação aos riscos de estar exposto a aspectos negativos da web do que admitir mecanismos de controle que tenham impacto sobre seus aspectos positivos. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

35


MEMÓRIA

Na última fase da ditadura, a restrição à liberdade de criação começou a perder força. Mas, antes de morrer, a censura esperneou um bocado. Perturbou até subversivos como Chacrinha e Odair José Por Vitor Nuzzi

A tesoura da Solange

36

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

teatro, mas enfrentou resistência dentro e 1978. O mais famoso dos atos, o AI-5, fora do governo. Refletiu o clima da épo- deixaria de valer após 31 de dezembro. ca, de pressões a favor e contra a redemo- “A ordem era liberar”, diz o ex-presidente cratização. do CSC. “Ele (Petrônio Portella) tinha ótimo relacionaNogueira trabalhava no mento com o presidente. Já gabinete do senador Petrônio Portella, responsável era uma coisa toda ultrapassada. A censura morreu mecomo ministro da Justiça lancolicamente.” pelo Decreto 83.973, de setembro de 1979, que criou Mas antes de morrer – se o conselho. Para ele, o CSC é que morreu mesmo – esperneou um bocado. Para o foi uma consequência natural do processo de abertura produtor musical e pesquisador Ricardo Cravo Albin, política em curso no BraDona Solange sil. Um mês antes, o presio CSC foi “a grande sacada” personificou a dente-general João Baptisde Petrônio Portella. “Ele censura brasileira. Se aposentou como ta Figueiredo sancionara a deixou dentro da ditadura delegada da PF Lei 6.683, a famosa Lei da uma bomba de efeito retardado”, afirma, acrescentanAnistia. “Os atos institucionais já haviam sido do que o próprio governo se incomodarevogados”, diz o ex-presidente do CSC, va com um conselho por vezes tão liberal. “Os censores proibiam na Divisão de citando a Emenda Constitucional 11, de FOLHAPRESS

“J

á há um ano, a Censura de São Paulo vem tratando os meus dois programas de TV, Buzina e Discoteca do Chacrinha, com arbitrariedades censórias para as quais não encontro explicações razoáveis. Essas arbitrariedades começaram de certa feita, quando um censor paulista ligou para os estúdios reclamando das roupas das chacretes e de algumas tomadas de detalhes anatômicos.” A carta, de 1980, era assinada por José Abelardo Barbosa de Medeiros, mais conhecido como Chacrinha, talvez o mais famoso apresentador da TV brasileira. O destinatário da mensagem era o presidente do Conselho Superior de Censura (CSC), Octaciano Nogueira. Criado na última fase da ditadura, em 1979 (apesar de previsto desde 1968), esse conselho foi incumbido de dar fim às proibições de filmes, músicas e peças de


DIVULGAÇÃO

DETALHES ANATÔMICOS Chacrinha queixava-se das “arbitrariedades censórias” com as roupas de suas chacretes

Censura e Diversões Públicas (DCDP, órgão do Ministério da Justiça) e nós liberávamos no CSC”, diz Cravo Albin, que representava a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert), sindicatos de compositores e entidades de arrecadação. O Conselho Superior de Censura era a chamada instância recursal – se o filme, livro, peça ou música era proibido, os prejudicados apelavam a ela. Acontece que Petrônio Portella morreu em janeiro de 1980 e foi substituído no Ministério da Justiça pelo linha-dura Ibrahim Abi-Ackel. No final de 1981, os mais conservadores ganharam ainda um reforço, com a substituição de José Vieira Madeira por Solange Hernandes,

na DCDP. Dona Solange, como ficou conhecida, comandou o órgão durante três anos, de 1981 a 1984, mas catalisou as lembranças do país quando o assunto é censura. Ganhou até música, Solange, de Léo Jaime. Aposentada como delegada da Polícia Federal, ela foi localizada pelo jornal Correio Braziliense em 2010, no interior de São Paulo. Conversou rapidamente, pediu para não ser mais importunada e avisou: “Estou anacrônica, meu caro repórter”.

Sala especial

Os censores tinham aliados na sociedade. Uma carta de 1978 da União Cívica Feminina de Santos, por exemplo, pedia à DCDP “providências urgentes em relação à moralidade das novelas de televisão”. Outra correspondência, esta de um cidadão de Juiz de Fora (MG) – que protestava contra a propagação do “sexo

de forma negativa e do adultério” –, começava afirmando que o movimento de 1964 foi “o anjo da guarda que nos salvou da iminente ditadura comunista”. Segundo Pedro Paulo Wandeck de Leo­ni Ramos, representante do Ministério das Comunicações no CSC, em 1979 o conteúdo político já não era tão predominante. “A única coisa que provocava discussões era o problema da televisão”, conta, observando que naquela época ainda não existiam canais pagos. “Lembro de o Chacrinha ter ido ao conselho para reivindicar maior tolerância na exibição das chacretes, que algumas pessoas consideravam agressiva.” A partir daí, segundo ele, houve maior “flexibilização” quanto ao conteúdo do programa. A exemplo de Nogueira, Leoni Ramos também considera a criação do CSC uma consequência do processo conhecido como distensão política. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

37


MEMÓRIA “Lutamos muito contra as senhoras de Santana (grupo católico que atuava na zona norte de São Paulo), absolutamente a favor da censura”, recorda Ricardo Cravo Albin. “A nossa bancada liberal tinha um código de honra: não havia como conjugar e fazer acordo com a censura.” Os filmes tidos como pornográficos davam trabalho. O debate se travava entre os conceitos de pornografia e sensualidade. Por causa disso, Último Tango em Paris (1972) foi liberado de imediato, porque as cenas de sexo teriam sido consideradas mais “ternas”. Outra alternativa surgida na época foi a criação de salas especiais de cinema, para determinadas categorias de filme. A liberação de O Império dos Sentidos

TROPEÇO Se aproximava o fim de 1985, Último Tango em Paris e O Império dos Sentidos eram coisa do passado e a censura voltou para atender à Igreja Católica e proibir Je Vous Salue, Marie

(1976), em 1980, foi precedida de um episódio que perturbou o governo, já que Paulo Abi-Ackel, filho adolescente do então ministro da Justiça, pôde assistir ao filme em uma sessão especial para jornalistas. Ver filmes proibidos à população chegou a ser rotina em Brasília. Octaciano Nogueira lembra das exibições no auditório da Imprensa Nacional – quem estava lá podia ver à vontade. “Era só saber a hora que ia passar.” Durante evento com artistas e intelectuais em 1985, o então ministro da Justiça, Fernando Lyra, anunciou a extinção da censura no Brasil. O CSC passou a se chamar Conselho Superior de Defesa da Liberdade de Expressão.

38

ARQUIVO PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS R.F.FARIAS

Um dos grandes testes para a censura em tempos de abertura foi o filme Pra Frente, Brasil (1982), dirigido por Roberto Farias. A obra aborda a tortura no país durante o período militar, embora informe, no final, tratar-se de uma “ficção”. E causou estragos, incluindo um escândalo de desaparecimento de pareceres e a demissão do presidente da Embrafilme (empresa extinta em 1990), Celso Amorim, atual ministro da Defesa. A estatal financiou o filme, irritando os militares. Pra Frente, Brasil foi liberado, mas vetado pela diretora da DCDP, Solange Hernandes. Roberto Farias recorreu ao Conselho Superior de Censura, e o órgão pediu à DCDP os pareceres sobre o filme. A chefe da censura alegou extravio de documentos, o que não havia acontecido – os pareceres foram mandados ao conselho pelo técnico Coriolano Fagundes. Em 1986, já como sucessor de Solange, Coriolano contou em entrevista à Folha de S.Paulo que algumas de suas iniciativas tiveram conse­ quências: “Liberei Dona Flor e Seus Dois Maridos e ganhei como castigo seis meses de

ARQUIVO FERNANDO PIMENTA

Pra frente, Brasil

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

A proibição de Pra Frente Brasil, de Roberto Farias (ao lado, com Natália do Valle), foi teste para a censura em tempo de abertura “lenta, gradual e segura”

isolamento na Academia Nacional de Polícia. Alguns anos mais tarde liderei o grupo que liberou Pra Frente, Brasil e recebi outro exílio, quando quase fui parar em Sergipe”. Em 1978, pouco antes de se formar o CSC, a censura seria motivo de anedota, ao liberar parcialmente o filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick. Por parcialmente, entenda-se o uso de bolinhas pretas que corriam a tela na tentativa, às vezes fracassada, de ocultar as partes “impróprias” das cenas.

Volência, sexo, crítica a costumes: os censores encontravam critérios variados para justificar proibições, integrais ou parciais


Apesar da proclamação oficial, o país ainda tropeçaria na primeira esquina com novo episódio: cedendo a pressões da Igreja, o governo proibiu Je Vous Salue, Marie (1985), de Jean-Luc Godard. “Tentamos todos os recursos para liberar o filme”, lembra Cravo Albin. Como os tempos eram outros, algumas sessões “clandestinas” foram organizadas – em 1986, a Polícia Federal chegou a invadir a Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo para apreender a fita. A cópia em VHS, padrão usado na época, sumiu na multidão. Embora menos violento, o episódio chegou a lembrar a invasão da universidade pela Polícia Militar em setembro de 1977. Em entrevista dada em 1986, o então chefe da Divisão de Censura, Coriolano Fagundes, disse que o ministro não foi “utópico” ao anunciar o fim da censura no Brasil – ele teria conseguido uma “suspensão”, não a extinção, porque isso dependeria de uma reforma da estrutura legal. Normas para a prá-

ARQUIVO/AG. O GLOBO

MEMÓRIA

“ENGANEI O GENERAL” Odair José, ídolo popular dos anos de chumbo, deu um olé em Golbery do Couto e Silva, um dos ministros-generais mais poderosos da ditadura

tica da censura existiram desde o início da República. Mas, como observou a pesquisadora Beatriz Kushnir – hoje à frente do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro – em estudo referência sobre o tema, “o ato de censurar também é fruto da aprovação de certas camadas sociais”. Antes de chegar ao Estado, a proibição nasce na cabeça das pessoas. O próprio Chacrinha, que reclamou com a censura, também criticou imagens que ele considerou impróprias em disco, como de Gal Costa, e até o rebolado de Ney Matogrosso no conjunto Secos&Molhados. No caso da música A Primeira Noite de um Homem, de 1974, Odair José ouviu do então todo-poderoso ministro Golbery do Couto e Silva que não só a obra, mas a “ideia” estava proibida. Como contou ao pesquisador Paulo Cesar de Araújo no livro Eu Não Sou Cachorro, Não, alterou parte da letra, mudou o título e reapresentou à censura. Passou. “Enganei o general”, vangloriou-se.

Salva pela etimologia Rita e Roberto: sacanagem não pode

conhecida composição de Genival Lacerda, Severina Xique Xique, recebeu reclamações de “famílias cearenses” por causa do duplo sentido da palavra “boutique”.

BOIB WOLFENSON/DIVULGAÇÃO EMI

O Conselho Superior de Censura enfrentou batalhas também no campo musical. Ricardo Cravo Albin lembra com tristeza da proibição de um LP de Taiguara. “Era um critério que não tinha critério. Todo o LP Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara foi proibido, acusado de altamente subversivo.” Em outro episódio, ele teve de recorrer à etimologia para salvar da censura a canção Moleque Sacana, de Rita Lee e Roberto de Carvalho. O objetivo era “mostrar etimologicamente que a palavra não era pornográfica”. “Portanto, a palavra ‘sacana’ é perfeitamente inserida na linguagem coloquial do brasileiro e se realiza de modo insuperável quando colocada em contexto apropriado”, defendeu Cravo Albin em seu parecer, no qual ele destaca a “discriminação” de algumas palavras, que passaram a ser consideradas chulas. Pelo menos na hora de pas-

Taiguara: “Altamente subversivo”

sar pela censura, não havia discriminação social. Desde os cults da MPB, como Chico Buarque, até os chamados bregas, como Odair José, sofreram com músicas proibidas. A lista é grande – os critérios para vetar uma música eram tanto políticos como de costumes. Assim, numa música de Belchior (Caso Comum de Trânsito), por exemplo, o técnico chama a atenção para a “crítica velada ao presente estado de coisas” – por supor que havia referências ao desaparecimento de pessoas. Uma REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

39


ESPORTE

PIERVI FONSECA/AGIF/FOLHAPRESS

ÍDOLO Marcos entra para a pequena galeria das unanimidades do futebol

Espécie em extinção O espírito esportivo e o respeito ao próprio time, aos seus torcedores e aos adversários renderam ao goleiro Marcos homenagens até dos rivais. Mas os tempos são outros Por Vitor Nuzzi

40

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

M

ais de 21 mil estavam no Palestra Itália – o Parque Antártica, atualmente em obras – para ver o líder absoluto do campeonato paulista de 1996 atropelar mais um adversário. Era 19 de maio, e a vítima do dia foi o Botafogo de Ribeirão Preto. Quando o placar de 4 a 0 já estava construído, o time do interior teve a chance de diminuir, mas o goleiro defendeu o pênalti, o primeiro de 33 ao longo da carreira. Marcos tinha 22 anos, era reserva de Velloso, e fazia seu primeiro jogo completo pelo Palmeiras. Agora em janeiro, quase 16 anos depois, anunciou sua aposentadoria, já devidamente alçado à condição de mito – ou “santo”, com direito a procissão.

Apesar de fechar o gol em jogos importantes decididos nos pênaltis – como a antológica defesa do chute de Marcelinho Carioca na semifinal da Taça Libertadores de 2000 contra o Corinthians–, o apelido surgiu com a bola rolando, na primeira partida das quartas de final do torneio continental, um ano antes. Marcos parou o arquirrival e seu time venceu por 2 a 0. Numa era em que atletas passam mais tempo vinculados a uma marca de chuteira do que a um clube, Marcos tornou-se espécie rara de jogador dedicado tanto tempo a uma só equipe. Há nove anos, quando o rebaixado Palmeiras se preparava para disputar a segunda divisão do Campeonato Brasileiro, teve a chance de se transferir para o Arsenal, da Inglaterra.


gente nunca está no álbum de família de ninguém”, esta sobre a rotina de concentrações e partidas que costuma afastar o atleta profissional da convivência com esposa e filhos. Quando o pai morreu, em 2008, ele estava concentrado para um jogo contra o Santos. Mas é também uma atividade bem remunerada, pelo menos para parte dos chamados boleiros – o que permite, para Marcos, buscar “as melhores condições para que os filhos possam ser felizes no futuro”.

Para Simoninha, o ex-goleiro faz parte de um grupo seleto de jogadores com identificação com um time, mas com admiração de torcedores de outras equipes, como Sócrates (Corinthians), Serginho Chulapa (São Paulo e Santos), Roberto Dinamite (Vasco) e Zico (Flamengo). “O Marcos é dessa galeria”, diz o músico, que “nasceu flamenguista”, por influência do pai, mas virou palmeirense depois de morar num hotel onde se concentrava o time paulista, nos anos 1970.

CESAR GRECO/FOTOARENA

Preferiu ficar. “Nunca vou me arrepender. Sem querer, foi uma das melhores coisas que eu fiz na minha vida”, afirma. Vindo de Oriente, cidade de 6.000 habitantes a 500 quilômetros de São Paulo, Marcos Roberto Silveira Reis começou a carreira no time principal em um dos últimos grandes anos do Palmeiras, vencedor do Paulistão de 1996 com 27 vitórias e 102 gols em 30 jogos, recordes difíceis de serem superados. O ápice daquela década seria a conquista da Libertadores de 1999. Com 531 jogos pelo Palmeiras, Marcos é o sétimo jogador com mais atuações pelo clube – o recordista é Ademir da Guia (901). Entre os goleiros, perde apenas para Leão, hoje treinador, que fez 617 partidas. Há uma certa dinastia nessa posição: o “patriarca” Oberdan Cattani jogou por 14 anos, entre as décadas de 1940 e 1950, saindo contrariado para encerrar a carreira no tradicional porém modesto Juventus da Mooca. Aos 92 anos, Oberdan lamentou a aposentadoria de Marcos – “um verdadeiro atleta” –, mas disse confiar na tradição do Palmeiras de formar goleiros. Aos 38 anos, o agora ex-goleiro diz ter parado na hora certa. “Não consigo mais entrar em forma”, lembrou, na despedida. Sobre a convivência no futebol, disse ter sido sempre mais emoção do que razão, “um torcedor representando as cores do clube”. Isso o levou a, vez ou outra, dar declarações intempestivas – o que rendia broncas e crises internas. “Falei muita besteira. Muitas vezes eu deveria ter ficado quieto. Mas sempre fui o Marcos.” No futebol cada vez mais business, Marcos representa um dos últimos atletas a passar toda a vida em um só time. No Brasil, o outro espécime é Rogério Ceni, do São Paulo, que completou 39 anos em janeiro e também pode parar no final deste ano. “É difícil ficar tanto tempo num clube e ser simplesmente profissional”, diz o ex-goleiro do Palmeiras, que apesar de toda a identificação com seu time recebeu homenagens inclusive dos rivais. Façanha que ele acredita ter conquistado “respeitando os adversários”. Em poucas frases, o atleta mostra objetividade quanto à profissão. “Fiz ­ muita defesa boa, tomei um monte de frango, dei muita entrevista boa para vocês (jornalistas) e ruim para mim” ou “a

CARINHO Procissão em homenagem a “São Marcos” mobilizou a torcida em 14 de janeiro

Honesto

O compositor e produtor Wilson Simoninha conta que está “trabalhando arduamente” para que os gêmeos Tom e Gabriel, de 5 anos, sejam palmeirenses como ele. “Não é fácil hoje em dia fazer o filho virar palmeirense”, brinca. No final do ano passado, por exemplo, Gabriel pediu para cortar o cabelo ao estilo do santista Neymar. Mas os meninos estiveram com ele no último jogo no Parque Antártica antes do fechamento para a reforma, há um ano e meio. Simoninha lembra de um episódio que mostra o quanto Marcos é especial, por sua simplicidade. A mãe do músico passou a torcer pelo Palmeiras por causa dele (“virou uma torcedora meio fanática, vai na janela, grita, xinga, é engraçado”) e ia várias vezes à concentração do time. Era quase sempre barrada, mas proseou e teve alguns cafezinhos pagos pelo goleiro – que não sabia quem era seu filho.

Fã de futebol, o escritor uruguaio Eduardo Galeano disse que os goleiros serão perseguidos até o fim dos dias por uma maldição: qualquer falha fará com que todas as façanhas sejam esquecidas. Marcos parece ter escapado. O cientista Miguel Nicolelis considera Marcos “lembrança de um período glorioso” para o futebol brasileiro, além de símbolo de um time “que saiu um pouco dos trilhos”. Ele destaca o relacionamento do goleiro com o Palmeiras, os torcedores e o futebol em geral “de maneira muito sincera e honesta, o que é raro hoje em dia”. Uma unanimidade, como define. “Hoje, o futebol é um negócio pouco transparente”, lamenta. O que pode ter se refletido dentro de campo. “Quando eu era pequeno, dizia-se que tudo dava errado no país, menos no futebol. Agora parece que é o contrário.” Para ele, times como o Palmeiras de 1974 e o Flamengo de 1981 eram “tão bons ou melhores” que o Barcelona atual. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

41


CULTURA

Boi na linha

No momento em que São Luís do Maranhão ruma para os 400 anos, o reconhecimento do bumba meu boi como patrimônio cultural pode ser um reforço contra o uso comercial ou político dessa expressão popular Por Guilherme Bryan

42

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

A

cidade de São Luís completa 400 anos em setembro e um dos pontos altos da comemoração acontecerá entre os meses de junho e julho, quando as ruas históricas do centro da capital do Maranhão e da Praia Grande serão tomadas por uma mistura de teatro, música e dança. As apresentações de bumba meu boi têm como destaque a noite de São João, de 23 para 24 de junho, mas o ciclo se inicia a partir do Sábado de Aleluia – que neste ano cai em 7 de abril – e pode ir até novembro. A cidade tem mais de 200 grupos e alguns, como o Boi Madre Deus e o Boi Maracanã, chegam a reunir cerca de mil pessoas. Há grupos em 70 dos 210 municípios do estado. “O bumba meu boi é considerado a principal manifes-


EDGAR ROCHA

Viemos brincar

Os festejos podem ser divididos em quatro etapas. A primeira, o ensaio, vai do Sábado de Aleluia até a primeira quinzena de junho. A segunda, o batismo do boi, é realizado por rezadeiras na véspera do dia de São João e acompanhado pelos participantes na sede dos grupos, nas igrejas católicas e em casas de culto afro-brasileiro. A terceira etapa são as apresentações em arraiais entre o fim de junho e o dia de Sant’Ana, em 26 de julho. É quando ocorrem a alvorada na Capela de São Pedro, em 29 de junho, e o desfile da Avenida São Marçal, dia 30. A última etapa é a morte do boi, que pode durar de dois a sete dias, com encenação, toadas e ornamentos.

“Há quem acredite que o bumba meu boi é uma religião. Esse sentimento está retratado não apenas nas promessas feitas a São João e São Pedro, mas também nas representações verificadas em terreiros de Tambor de Mina, culto de matriz africana corrente no Maranhão em que as entidades descem em terreiros para brincar bumba meu boi e pedem que bois sejam feitos para elas. É frequente a presença de pessoas com seus encantos incorporados dançando boi”, conta a antropóloga Izaurina Nunes, técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Maranhão. CATHERINE KRULIK/OLHAR IMAGEM

tação da cultura popular maranhense. É a mais difundida em quase todas as regiões do estado e possui diversos tipos de sotaque ou formas de manifestação musical, de fantasias, instrumentos, danças etc. Sendo assim, também é um elemento central da cultura popular maranhense, relacionado com as r­ eli­giões afro-maranhenses, as artes, a poesia, a literatura”, avalia Sérgio Figueiredo Ferretti, presidente da Comissão Maranhense de Folclore e professor de Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

EDGAR ROCHA

LARGA ESCALA Um em cada três municípios maranhenses tem grupo de bumba meu boi. Alguns chegam a reunir mil integrantes

O auto do bumba meu boi gira em torno do peão Pai Francisco, que mata o boi mais bonito da fazenda onde trabalha para atender ao desejo da esposa, Catirina, grávida e ávida por comer a língua do animal da mais alta estima do fazendeiro. Este fica furioso e convoca um grupo de índios para fazer rituais de pajelança e ressuscitar o novilho. Cada fase da história é pontuada por toadas tocadas em pandeirões, matracas, maracás e tambores-onça. Nas regiões marcadas pelo cultivo da cana-de-açúcar, é tocada a zabumba, com músicas mais longas e lentas. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

43


CULTURA

44

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Para Ferretti, a expressão maranhense possui muitos elementos do negro, do índio e do branco. “Certas roupas lembram a do toureiro. Outras, as de danças africanas, como dos egunguns. Algumas danças remetem às realizadas em roda de nossos ameríndios. Há instrumentos de sopro de origem europeia – talvez trazidos por americanos na época da Segunda Guerra”, descreve. O professor da UFMA lista ainda pandeirões semelhantes aos árabes, diversos tipos de tambor africano e máscaras como as de cazumba, de madeira ou de pano, que podem ter origens tanto nas caretas da Península Ibérica do norte de Portugal, nas fronteiras com a Espanha, como em diferentes tipos de máscara africana, como as gueledés, do Benin e da Nigéria.

Por aí afora

O folclore em torno do boi é representado em muitas regiões do Brasil, com nomenclaturas e traços diferentes. No Rio Grande do Sul, por exemplo, há o boizinho. Em Santa Catarina, o boi de mamão. No Centro-Oeste, o boi à serra. Em vários estados do Nordeste, há o boi de reis. No Ceará, também o boi calemba. E, no Amazonas, o boi-bumbá. Este é fruto do boi levado para a região amazônica por migrantes maranhenses do século 19, interessados nos lucros do ciclo da borracha. Tem influências indígenas e andinas, principalmente da toada amazônica.

ESPETÁCULO O boi-bumbá amazonense ganhou contornos de competição, como entre as escolas de samba cariocas

MARCELLO LOURENÇO/TYBA

EDGAR ROCHA

Izaurina Nunes foi uma muito. Antes eram dez bois. das maiores defensoras da Hoje tem cem. Então virou proposta apresentada em como o Carnaval no Rio 2008 de transformar o Comde Janeiro. Quando chega a plexo Cultural do Bumbaépoca de São João, tudo gi-Meu-Boi do Maranhão em ra em torno do bumba meu patrimônio cultural brasiboi ”, observa Zelinda. Com leiro, aprovada em agosto 85 anos, ela prepara o livro O pelo Conselho Consultivo Bumba meu Boi Como o Codo Patrimônio Cultural do nheci e é considerada a mais Iphan. A partir de agora, o antiga integrante do folclore A pesquisadora Zelinda de Castro instituto vai sugerir algumas local. Em 2011, teve o retraLima critica a medidas de salvaguarda, coto desenhado no bolo, junto mercantilização e a mo o incentivo a documencom o da governadora Roseperda da tradição tação, conhecimento e diana Sarney e o da presidenta vulgação, o fortalecimento Dilma Rousseff, evidências e apoio à sustentabilidade de grupos e a de que não é apenas a mercantilização o valorização das expressões tradicionais único boi na linha. dessa manifestação. De acordo com o antropólogo e folclo“O título de Patrimônio Cultural do rista alagoano Arthur Ramos de Araújo Brasil acrescenta valor àquele bem cul- Pereira, o bumba meu boi tem origem tural. Ser patrimônio de todos os brasi- africana, a partir do costume bantu de leiros projeta o bumba nacionalmente e realizar festas totêmicas, e foram invenalimenta a autoestima dos participantes tadas por escravos dessa etnia traficados e apreciadores”, diz Izaurina. para a colônia portuguesa. A Comissão Maranhense de Folclore Essas heranças africanas podem ter sifoi uma das primeiras entidades a de- do misturadas, no século 18, com a toufender a proposta. “O bumba meu boi é rada espanhola, as tourinhas portuguesas um elemento cultural de grande vitali- e o boeuf gras francês. A professora de dade em diversas regiões do país, espe- Antropologia Cultural da Universidade cialmente no Nordeste. E, no Maranhão, Federal do Rio de Janeiro Maria Laura é significativamente mais diversificado, Viveiros de Castro Cavalcanti localiza o rico e valorizado popularmente. O gran- primeiro registro que menciona a brincade pesquisador Mário de Andrade, desde deira local do bumba meu boi no jornal as décadas de 1920 e 1930, já destacava a Farol Maranhense de 7 de julho de 1829. importância desse auto dramático”, justifica Ferretti. Ele lamenta, porém, o fato de algumas religiões desvalorizarem essa manifestação da cultura popular. Zelinda Machado de Castro Lima, pesquisadora do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, ligado ao governo do Maranhão, lastima que, ao longo dos anos, tenha havido um grande processo de mercantilização. A historiadora também percebe a perda da tradição, já que, se antes o saiote ia até o tornozelo e a saia até o joelho, hoje é usado fio-dental com saia de pena por cima. “A Secretaria de Cultura começou dando material para grupos carentes. Era uma roupa pobre, de chita, mas agora já fazem de veludo e bordado, assim como as joias e os chapéus dos vaqueiros. Com a chegada dos jornais e da televisão, cresceu


GRUPO CUPUAÇU/DIVULGAÇÃO

CULTURA

VICTOR HEREGE

SOTAQUE PAULISTA O bumba meu boi do Morro do Querosene, mantido por Tião Carvalho (abaixo), tem influência da comunidade maranhense em São Paulo

A competição profissional entre os bois Caprichoso (de cor azul) e Garantido (de cor vermelha) começou em 1966 e, ao longo do tempo, foi se popularizando e se aproximando muito do estilo competitivo dos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro. O evento ocorre anualmente, entre 28 e 30 de junho, em Parintins. Mas é em São Paulo que está, desde 1990, uma das festas de rua mais tradicionais de bumba meu boi. Comandada por Tião Carvalho e pelo Grupo Cupuaçu, com cerca de 40 integrantes, a festa do Morro do Querosene, bairro próximo ao Instituto Butantan, na zona oeste, tem a influência da comunidade maranhense na capital paulista. São três eventos por ano, que reúnem cerca de 3.000 pessoas cada um – no Sábado de Aleluia, quando é comemorado o nascimento do boi, no mês de em junho, quando ocorre o batizado, e no final do ano, próximo ao do Dia de Finados, quando acontece a morte do animal.

“O folguedo é realizado a partir de constante aprendizado que tem como fonte de inspiração continuado estudo e troca de informação com o Maranhão, traduzido na pessoa do diretor Tião Carvalho, com o apoio de suas irmãs Ana Maria e Isabel, além de outros maranhenses, paulistas, mineiros, baianos, pernambucanos, alemães, americanos, coreanos, japoneses”, conta José Marcos Pires Bueno, um dos fundadores do evento, produtor cultural e poeta. “A peculiaridade é que nosso bumba meu boi utiliza dois sotaques, matraca e ilha, isto é, canta suas toadas com dois tipos de andamento rítmico, enquanto no Maranhão cada boi se atém a seu sotaque – matraca, ilha, costa de mão, zabumba, ou de orquestra.” Se as festas de bumba meu boi sofreram interferências e se mercantilizaram, a expectativa dos mais tradicionais cultuadores dessa expressão é que a transformação em patrimônio cultural brasileiro a preserve como algo de grande importância na composição da identidade nacional. Nada mais apropriado, portanto, para a comemoração dos 400 anos da capital maranhense. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

45


VIAGEM

Casa do herói de dois

mundos Costa da Sardenha

Ir à Itália e não ir a Caprera é pior do que ir a Roma e não ver o papa. Por quê? Porque se perde o coração da Itália Por Flávio Aguiar, texto e fotos

A

Itália, “país jovem” em relação ao Brasil, comemorou 150 anos de sua unificação no ano recém-passado. Em toda parte, havia bandeiras, cartazes, concertos e outras comemorações. E, em todas elas, a presença do “herói de dois mundos” – Giuseppe Garibaldi – era constante. Garibaldi nasceu em Nice (em italiano, Nizza), hoje parte da França, em 4 de julho de 1807. Nice

integrava o Reino do Piemonte/Sardenha, sob a mão forte da Casa de Savoia – como era chamada a família real. Jovem ainda, tomou parte nas conspirações da “Giovine Itália”, fundada por Giuseppe Mazzini, que já vivia no exílio. Acusado de conspirar para assassinar o rei Carlos Alberto e condenado à morte, Garibaldi se exilou, primeiro na França, depois na América. Chegou ao Brasil em 1835. Entrou em contato com os exilados italianos que lá viviam, e aderiu à causa da República Rio-Grandense (hoje mais conhecida como República de Piratini). No Sul, organizou uma pequena frota, que seria a Marinha de Guerra da jovem e efêmera república gaúcha. Com essa frota – ou parte dela, já que um dos navios nau-

Garibaldi morreu na casa ao lado, pensando em sua Anita

46

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL


fragou – tomou Laguna, em Santa Catarina, onde conheceu a grande paixão de sua vida – Ana de Jesus Ribeiro –, então com 18 anos, que se tornaria Anita Garibaldi. Garibaldi lutou algum tempo pela república gaúcha, e ainda pela independência do Uruguai, em Montevidéu. Em 1848 ele, Anita e três filhos do casal retornaram à Itália, para lutar pela unificação do país, contra nada mais, nada menos que os austríacos, o papa, os franceses e o rei de Nápoles, ligado aos espanhóis. Anita morreu nessa luta trágica e épica; Garibaldi partiu para novo exílio, voltando para a Itália em meados da década de 1850. A partir daí, liderou uma luta de sucesso pela unificação (conhecida como Risorgimiento), até 1861, quando o reino da Itália afinal se concretizou, em 14 de março, com o reconhecimento de ­Vittorio Emanuelle II, do Piemonte/Sardenha, como rei do país. Alguns anos antes Garibaldi havia comprado metade da Ilha de Caprera, no norte da Sardenha,

Caprera

para construir ali uma casa e uma fazenda. Depois da unificação, teve ainda uma agitada participação na política italiana e europeia, mas acabou na “sua” ilha, num semiexílio, embora venerado como herói da pátria afinal fundada.

O olhar para Anita

Para visitar sua casa, onde morreu em 2 de junho de 1882, o melhor é começar por Cagliari, a maior cidade da vizinha Sardenha. Dali, pode-se cruzar a ilha de carro, numa sucessão de paisagens deslumbrantes, e chegar até a Ilha de Madalena, navegando num ferryboat. De Madalena a Caprera, vai-se de carro mesmo, atravessando uma ponte e um molhe. Caprera é uma ilha de paisagens também deslumbrantes, embora conte, como infraestrutura, com pouco mais do que aquilo que Deus lhe deu na criação do mundo. No meio da ilha está a casa de Garibaldi, hoje um museu pertencente ao patrimônio histórico nacional.

Castelo de Malaspina (século 12), em Bosa

Infelizmente não se pode fotografar seu interior, onde além da lembrança do herói há a presença marcante de Anita. A terceira esposa de Garibaldi (entre Anita e ela houve outra, de quem ele se divorciou) impediu que a brasileira fosse enterrada no pequeno cemitério familiar, atrás da casa. Não importa. Nas paredes, o visitante depara com quadros de Anita, mais mechas de seus cabelos enquadrados numa redoma de vidro... E há o fato indelével de que Garibaldi morreu olhando, da janela de seu quarto, para a ilha da Córsega. Esse gesto romântico do herói italiano, brasileiro, uruguaio e mundial, reinventa o sentido daquela casa. Ao norte da Córsega, no continente europeu, estava Nice. Nesta cidade, quando da morte do herói (1882), estavam enterradas sua mãe e sua Anita. Se o ciúme póstumo da terceira esposa de Garibaldi impediu que seu corpo fosse para Caprera, o último olhar do herói a repatriou.

Igreja românica na praia de Nora, sul da Sardenha

Cagliari

REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

47


CURTA ESSA DICA

Por Xandra Stefanel

xandra@revistadobrasil.net

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Grand nu allongé, retrato de Céline Howard (1818)

Jeune femme (1917)

Intimidade de Modigliani Uma coleção com 12 pinturas, cinco esculturas, documentos, fotos, desenhos e manuscritos de Amadeo Modigliani e outros importantes artistas de sua época está exposta pela primeira vez no Brasil. Modigliani: Imagens de uma Vida, em cartaz no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, apresenta 230 peças e faz com que o visitante mergulhe na intimidade do artista italiano. O roteiro começa com os estu-

dos de Modigliani na Itália, passa pelo apogeu da carreira em Paris, apresenta correspondências entre ele e Picasso, André Derain e Max Jacob, anotações do diário de sua mãe, fotos e vídeo. De terça a sexta-feira das 10h às 18h e sábados, domingos e feriados das 12h às 17h. Na Avenida Rio Branco, 199, Cinelândia. R$ 8 e R$ 4. A mostra fica no Rio até 15 de abril e na sequência deve ir para o Masp, em São Paulo.

Vivam os violados Já se passaram mais de 40 anos desde outubro de 1971, quando o Quinteto Violado subiu pela primeira vez ao palco, em Nova Jerusalém, no agreste pernambucano. Para celebrar a data, eles promovem entre janeiro e abril uma série de shows, exposição, concertos-aula e lançamento de livro. A programação começou no Rio de Janeiro e inclui Curitiba, Brasília, Belo Horizonte e São Paulo. A exposição Quinteto Violado: um Imaginário Nordestino traz fotos, audiovisuais, entrevistas e testemunhos que relembram a trajetória do grupo. A mostra e a série de quatro concertos apresentada em cada cidade podem ser conferidas gratuitamente. O livro Lá Vêm os Violados (Ed. Bagaço) também será lançado nas cidades que participam do projeto. Confira a programação completa em umimaginarionordestino.com.br/blog. 48

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

O Quinteto em foto de 1978


Cena de Capitães da Areia: jovens livres

IMAGEM FILMES/DIVULGAÇÃO

Capitães de Amado

Saídos das páginas do livro imortal de Jorge Amado, Pedro Bala, Professor, Gato, Sem-Pernas, Boa Vida e Dora foram parar nas telas do cinema em Capitães da Areia e chegam agora às locadoras. A história é a mesma do romance homônimo: jovens abandonados pelas famílias lutam para sobreviver nas ruas de Salvador, rodeados de pobreza,

violência, preconceitos, mas também de amizade. Feito por atores não profissionais selecionados em ONGs da capital baiana, o longa-metragem expõe também a passagem da infância para a adolescência. A fotografia de Guy Gonçalves e a trilha sonora de Carlinhos Brown dão brilho extra ao primeiro filme de Cecília Amado, neta do escritor.

Tragédia circense Quatro meses depois de Jânio Quadros renunciar à Presidência, o Brasil voltou às manchetes internacionais. Dessa vez com a maior tragédia circense da história. Era 17 de dezembro de 1961 e a sessão do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói (RJ), estava lotada quando a trapezista Antonietta Stevanovich gritou “fogo”. Em menos de 10 minutos as labaredas tomaram tudo. De acordo com a Prefeitura de Niterói, morreram 503 pessoas, mas o número real nunca foi conhecido, assim como não foram esclarecidas as causas do incêndio. O jornalista Mauro Ventura ouviu 150 pessoas e reconstituiu a cena no livro-reportagem O Espetáculo Mais Triste da Terra – O Incêndio do Gran Circo Norte-Americano (Cia. das Letras, 352 pág.). R$ 46.

Rock-sambaião Baia no Circo é o primeiro álbum solo de Mauricio Baia. Este baiano radicado no Rio de Janeiro faz um som arretado, rock’n’roll bemhumorado, cheio de sarcasmo, amor, política, balanço e outros temperos. O DVD faz uma revisão da sua obra, com música dos álbuns Na Fé, Overdose de Lucidez, Entrada de Emergência (gravados com a banda Rockboys) e o solo Habeas Corpus. A trilha tem quatro canções inéditas, entre elas Tá Tudo Mudando, com participação especial de Zé Ramalho. À venda em www.mauriciobaia. com.br por R$ 29 (DVD) e R$ 19 (CD). REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2012

49


XANDRA STEFANEL

Jogo

O recato e a indecência eram características que, juntas, faziam estrago na cabeça dos homens. Era o charme que ela começava a assumir depois da terceira ou quarta cerveja

A

voz quase não saiu. Contou até dez. Inspirou e soltou o ar bem devagar. No fundo sabia que nada adiantaria. Sempre ficava assim nessas situações. Olhou para o lado para ter certeza que ninguém observava a cena, que achava ridícula e infantil. Quase 30 anos e não conseguia perder aquela vergonha que a fazia corar quando alguém flertava com ela de maneira mais incisiva. Seus pés sob a mesa estavam inquietos, apoiados no chão apenas com as pontas. Suas mãos suadas sobre as coxas denunciavam nervosismo. Quando sentiu que a conversa estava chegando ao ápice, percebeu que sua bexiga não aguentaria mais um minuto. Odiava levantar da mesa. Todos pensariam “de novo!”, e ririam das pernas a se esbarrarem uma na outra pelo caminho. Quis brincar com a própria timidez. “Depois que a gente vai pela primeira vez...”, disse. Riso sem graça e aflito. Virou as costas e sentiu que ele olhava para sua bunda e para o lado, como a insinuar aos outros observadores que aquele seria seu troféu. Olhou para trás antes de entrar no banheiro e comprovou sua teoria. “Não disse? Esse sorrisinho não me engana”, pensou. Aquela carinha de bom moço escondia um conquistador barato que faz lista de mulher que já pegou. Baixou o zíper, abriu o botão e desceu a calça até os joelhos. Encostou a mão esquerda na parede de trás do vaso e equilibrou-se. Esboçou um quase sorriso de alívio. Quando 50

FEVEREIRO 2012 REVISTA DO BRASIL

olhou para sua calcinha viu que não havia possibilidade de mostrar aquela peça de museu nem para o espelho, quanto mais a um homem. Essa mania de sair com calcinhas de usar em casa ainda a mataria de vergonha. “Ah, mas por que não?” Deu uma risada baixa, a cerveja já estava fazendo efeito. Lavou as mãos enquanto fazia careta na frente do espelho, molhou os lábios com a língua e em seguida passou-a nos dentes. Sentiu-se objeto e poderosa ao mesmo tempo, e gosta de perceber a contradição. O recato e a indecência eram características que, juntas, faziam estrago na cabeça dos homens. Era o charme que começava a assumir depois da terceira ou quarta cerveja. Quando abriu a porta e olhou para toda aquela gente do bar, fincou as unhas na palma da mão. Respirou e andou até sua cadeira. Encheu seu copo de novo e bebeu metade. “Calor, né?” Continuou ouvindo aquele papo furado sobre o tempo, mulheres que demoravam no banheiro, histórias sobre as “amigas” e tantas outras coisas que a faziam rir cada vez mais por menos motivo, a cada novo copo. Sabia que amanhã seria dia de ressaca moral e física, mas era tarde demais. Depois de algumas insinuações, indiretas, mão na coxa, pernas semiabertas e muitos copos, o celular tocou. Ela fez uma careta, pediu desculpas sem soltar som algum dos lábios e se levantou já falando alto com a pessoa do outro lado da linha. Quando percebeu o volume da sua voz e do riso, ali em pé, bem no meio do bar, resolveu ir até o banheiro para terminar a conversa. “A conversa estava boa, hein?”, teve de ouvir, quase num tom de inquisição. “Pois é, era uma amiga me chamando para uma festa.” “Hoje?” “Daqui a pouco. Preciso ir.” Ele passou a mão nervosa na boca e pediu que ela não o deixasse ali sozinho. “Desculpe, sei que você vai entender.” Claro que não entendia. Ele balançou a cabeça e, como se estivesse se conformando, tirou a carteira do bolso para pedir a conta. “Hoje eu pago”, disse ela. “Além de você não conseguir o que quer, vai ter prejuízo?”, riu alto. Já em pé, abraçando-o pelas costas, colocou uma nota de 50 no bolso da camisa dele e piscou como se dissesse “fique com o troco”. Deu-lhe um beijo bem no canto da boca e saiu rebolando muito mais do que quando entrou.



ANTES DE PEDIR PARA O MOTOBOY UMA ENTREGA URGENTE, URGENTÍSSIMA, LEMBRE-SE DE QUE, NO TEMPO DE CADA ENTREGA FEITA POR ELE, OUTRO MOTOCICLISTA MORRE NO TRÂNSITO NO BRASIL.

MOTO. É PRECISO SABER USAR. É PRECISO RESPEITAR. A segurança de milhares de motociclistas depende também de atitudes conscientes fora do trânsito. Inclusive as suas. Por isso, se for solicitar os serviços de um motoboy, lembre-se de: • não pedir para que o trajeto seja feito em um tempo de difícil execução; • verificar e cobrar do motociclista a utilização dos equipamentos de segurança; • exigir a habilitação para condução da moto. Com a participação de todos, podemos reduzir o número de acidentes e salvar muitas vidas. Denatran

Denatran

Ministério das Cidades

Ministério das Cidades


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.