Revista do Brasil nº 070

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MUNDO QUE FUNCIONA Por que os suecos não chiam com os impostos

IMPOSTO SINDICAL O que é isso, companheiros?

nº 70 abril/2012 www.redebrasilatual.com.br

MANSO COM OS RICOS

O leão ruge para os assalariados e mia para os magnatas. A criação do imposto sobre grandes fortunas poderia levar a um sistema tributário mais justo

XINGU SITIADO Da saga dos Villas Bôas ao cerco do agronegócio



ÍNDICE

EDITORIAL

10. Capa

Imposto sobre fortunas pesa pouco para ricos e pode aliviar os pobres

16. Trabalho

CUT engata campanha contra a contribuição sindical compulsória

20. Política

Passado o inverno, Ocupe Wall Street volta a mobilizar os 99%

24. Mundo

CARLOS MOURA/CB

Medidas contra a crise provocam protestos, greves e emigração

28. Cidadania

Longevidade da população aumenta, mas o Brasil ainda não está pronto

30. Brasil

Em Brasília, grupo mostra a negligência na utilização do dinheiro do IPVA

34. Entrevista

Pesada é a injustiça

Xingu, a saga dos irmãos Villas Bôas numa terra ainda ameaçada Cao Hamburger: a cultura dos povos do Brasil é um tesouro

38. Perfil

MICHAEL NYIKA/CREATIVE COMMONS

O legado de Aziz Ab’Saber para uma ciência mais civilizada

46. Viagem

Estocolmo, na Suécia: beleza e qualidade de vida de cinema

Seções Cartas 4 Mauro Santayana Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Conto: B.Kucinski

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U

ma das expressões mais citadas, quando o assunto é imposto, é que a “carga tributária” brasileira é alta. Como a palavra “carga” dispensa explicações, sempre que ouve o apresentador do telejornal dizer isso o brasileiro já sente o peso no bolso. Um assalariado mortal não sabe quanto de imposto embute o preço de um litro de gasolina, ou de leite. Mas ao encher o tanque do carro, ou a geladeira, terá pago o mesmo volume de impostos que o bilionário Eike Batista. Esse trabalhador conhece bem o imposto retido na fonte que aparece todo mês em seu holerite. Uma segunda injustiça tributária: passou de R$ 1.637, o salário já sente os dentes do leão. E, se ele ganha algum a mais por conta de uma participação nos resultados, vem o leão e nhac! de novo – embora não faça o mesmo com os lucros distribuídos em forma de dividendos aos acionistas da mesma firma. Nem só de salários vive a carga tributária, que corresponde a 35% de todas as riquezas produzidas no país, o PIB. Embora o leão mais famoso seja o da Receita, a “carga” é composta por mais de 60 tipos de imposto, taxa e contribuição recolhidos por estados e municípios, além da União. Dessas dezenas de mordidas, nenhuma incide sobre os detentores de grandes fortunas. O maior problema do sistema tributário não é seu tamanho. O que incomoda é o fato de os impostos não reverterem em serviços públicos de qualidade, fazendo com que a classe média assalariada busque um plano de saúde ou escolas particulares. Mas o mais grave mesmo é a injustiça tributária. Chegam a ser demagógicas as campanhas de órgãos de imprensa para fazer as pessoas odiarem os impostos, que em qualquer país são necessários. Mas precisam ser justos e contribuir para uma melhor distribuição de renda. O crescimento conseguiu tirar da linha de pobreza 45 milhões de pessoas nos últimos dez anos. Por outro lado, tem proporcionado o surgimento de uma legião de milionários. Se não foi preciso inventar impostos para recepcionar os que migraram para a classe média, está mais que na hora de criar uma tributação diferente para os que desfrutam do mundo dos ricaços poderem compartilhar melhor com a cidadania suas elevadas taxas de satisfação. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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CARTAS São Marcos

www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo. Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi. Revisão: Márcia Melo Capa Ilustração de Vicente Mendonça Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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Mídia

Sem liberdade de expressão não há democracia. Serão muito bem-vindas leis que regulamentem um setor tão importante para o país. No entanto, sem mobilização popular para pressionar as oligarquias da mídia, dificilmente a presidenta Dilma conseguirá aprovar qualquer tipo de lei nesse sentido, porque o Congresso é composto, em grande parte, por “donos” de meios de comunicação. Amauurry

Mazzaropi

A Rede Globo nunca foi nem será exemplo de democracia. O boicote é, sempre, a melhor política e na minha casa já começamos a boicotar aquilo que não traz nada de novo! Já o Mazzaropi (“A sabedoria do Jeca”, edição 69) é mesmo inesquecível. Fabuloso comediante e crítico das injustiças e preconceitos. Obrigado, Mazza. Otonício Morais de Souza

Terceirização

Na página 22 da reportagem “Falso brilhante”(edição 69), vocês cometeram um erro na foto do funcionário. O personagem não é do setor elétrico, mas de telefonia. Claro, isso não muda a situação de precarização do setor decorrente da terceirização. Fui funcionário da Eletropaulo e trabalho em empreiteira. Robinson Zamora S.Paulo (SP)

A respeito da reportagem sobre o goleiro Marcos (“Espécie em extinção”, edição 68), sei que sou voz dissonante em meio a tantas homenagens no encerramento da carreira desse grande goleiro. Mas acho estranho como o mundo inteiro esqueceu as atitudes do Marcos nos momentos difíceis do Palmeiras. Sempre transferindo a culpa para seus colegas, ameaçando largar tudo quando era criticado e até relaxando embaixo do gol em momentos bizarros. Definitivamente, não é o tipo de pessoa com quem eu gostaria de trabalhar. Paulo Germano L. Beserra S.Paulo (SP)

Pinheirinho e Marighella

Na edição 68, sugiro mudar a manchete “É uma ordem superior” (sobre a operação de desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos). “É uma ordem inferior”, pois quem dá uma ordem dessa é um insignificante. Trata-se de roedores que detestam tudo que possa favorecer a classe trabalhadora. E, na seção Cartas, o Emanuel Lima, de Taguatinga (DF), tece críticas a um de nossos heróis e afirma ser pacifista, que segue a cartilha hippie. Realmente, acho que segue, e devia estar bem doidão quando escreveu sua crítica. Gothardo Garcez Vilete Cubatão (SP)

Gilberto Kassab

Cumprimento Suzana Vier pelo texto “Infeliz aniversário” (edição 67), a respeito do senhor Gilberto Kassab, prefeito com elevado poder de manipulação no uso da máquina pública. Esse senhor pode ainda render muitas reportagens, por exemplo, sobre a arrecadação com a inspeção veicular, o descaso com o funcionalismo público ou o descompromisso com o setor de habitação. Júlio César Silva S.Paulo (SP)

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MAURO SANTAYANA

O golpe da informação

Historiador a serviço da CIA revela como ideias e recursos dos Estados Unidos seduziram a imprensa brasileira nos anos 1950 e semearam o golpe

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á 48 anos, quando o Brasil vislumbrava reformas constitucionais necessárias a seu desenvolvimento, os Estados Unidos financiaram e orientaram o golpe militar. E interromperam uma vez mais um projeto nacional proposto em 1930 por Vargas. Os acadêmicos podem construir teses sofisticadas sobre a superioridade dos países nórdicos para explicar o desenvolvimento da Europa e dos norte-americanos e as dificuldades dos demais povos em acompanhá-los, mas a razão é outra. Com superioridade bélica, desde sempre, impuseram-se como conquistadores do espaço e saqueadores dos bens alheios, os quais lhes permitiram o grande desenvolvimento científico e militar nos séculos 19 e 20 e sua supremacia sobre o resto do mundo. Podemos ver a origem do golpe de 1964 mais próxima uma década antes. Em 1953, diante da resistência de Getúlio, que quis limitar as remessas de lucros e criou a Petrobras e a Eletrobrás para nos dar autonomia energética, a ação “diplomática” dos Estados Unidos cercou o governo. Com o aliciamento de alguns jornalistas e dinheiro vivo distribuído aos grandes barões da imprensa da época, construiu a crise política interna. Entre a lei que criou a Petrobras e a morte de Getúlio, em 24 de agosto de 1954, o Brasil viveu período conturbado igual aos três anos entre a renúncia de Jânio e 1964. A propósito do projeto de Getúlio, seria importante a tradução no Brasil de um livro no qual essa operação é narrada em detalhes: The Americanization of Brazil – A

Study of US Cold War Diplomacy in The Third World, 1945-1954. Um estudo sobre a diplomacia americana para o Terceiro Mundo em tempos de Guerra Fria. O autor, Gerald K. Haines, é identificado pela editora SR Books como historiador sênior a serviço da CIA, o que lhe confere toda a credibilidade. Haines mostra como os donos dos grandes jornais da época foram “convencidos” a combater o monopólio estatal, até mesmo com textos produzidos na própria embaixada, no Rio. E lembra a visita ao Brasil do secretário de Estado Edward Miller, com a missão de pressionar o governo a abrir a exploração do petróleo às empresas norte-americanas. O presidente da Standard Oil nos Estados Unidos, Eugene Holman, orientou Miller a nos vender a ideia de que só assim o Brasil se desenvolveria. Mas o povo foi às ruas e obrigou o Congresso a impor o monopólio. A domesticação dos meios de informação do Brasil começara ainda no governo Dutra. Os americanos usaram as excelentes relações entre os intelectuais e jornalistas e o embaixador Jefferson Caffery, nos meses em que o Brasil decidira por aliar-se aos Estados Unidos na luta contra o nazifascismo, em benefício de sua expansão neocolonialista. A criação da Petrobras levou os ianques ao paroxismo contra Vargas, e os meios de comunicação acompanhavam a histeria americana. A estatal era vista como empresa feita com o amadorismo irresponsável dos ignorantes. A morte de Vargas não esmoreceu os grupos que tentaram, em 11 de novembro do ano seguinte, impedir a posse de Juscelino. O golpe de Estado foi frustrado pela ação rápida do general Teixeira Lott. Em 1964, a desorganização das forças populares favoreceu a vitória dos norte-americanos, que voltaram a domesticar a imprensa e o Parlamento e manipularam os chefes militares brasileiros. Os êxitos do governo atual e a nova arregimentação antinacional contra a Petrobras – agora com o pré-sal – devem mobilizar os trabalhadores que não estão dispostos a viver o que já conhecemos. Sabem que a situação internacional tende para a direita, e não podemos repetir apenas que o povo esmagará os golpistas. É necessário não só exercer a vigilância, mas agir, de forma organizada e já, para promover a unidade nacional em defesa do desenvolvimento de nosso país. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

ANTONIO SCORZA/AFP PHOTO

Manifestantes protestam no Rio de Janeiro

Dossiê 1964 Quarenta e oito anos após o golpe contra o presidente constitucional João Goulart, a ditadura faz sentir seus efeitos. Enquanto parte da sociedade debate a necessidade de julgar agentes responsáveis por crimes de lesa-humanidade, como sequestros, torturas e assassinatos, o país ainda se ressente de efeitos colaterais dos anos de autoritarismo, decorrentes dos objetivos políticos, econômicos e ideológicos que o moveram.

Caravana da Anistia Enquanto a Comissão da Verdade não vem, as Caravanas da Anistia promovidas pelo Ministério da Justiça seguem analisando pedidos de reparação feitos por perseguidos políticos. Na 55ª edição, sete mulheres foram oficialmente declaradas anistiadas, com o tradicional pedido de desculpas feito pelo Estado brasileiro. Para o presidente da Comissão de Anistia e secretário nacional da Justiça, Paulo Abrão, a presidenta escolherá “no tempo certo” os nomes que integrarão a Comissão da Verdade. http://bit.ly/rba_caravanas_anistia 6

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A ditadura destruiu o sistema educacional público. No setor de saúde, foi o estopim de um processo de privatização. Hoje 47,6 milhões de brasileiros estão presos a algum plano de saúde, setor que movimentou R$ 74,8 bilhões em 2010. Na cultura, projetos populares em literatura, cinema e teatro foram abortados. O Brasil, lenta e gradualmente, ainda tenta debater seu passado: http://bit.ly/rba_golpe_1964

Anistia, mas nem tanto

Denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal pedia abertura de processo contra o coronel da reserva Sebastião Rodrigues, o major Curió, por sequestro de militantes durante a Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970. A argumentação era que o crime não prescreve enquanto as vítimas não forem encontradas – ou seja, não se poderia enquadrá-lo na Lei da Anistia, de 1979. Não foi o entendimento da Justiça Federal do Pará, que rejeitou a denúncia. O MPF recorreu. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil no caso do Araguaia. http://bit.ly/rba_curio


Salário ganha da inflação

Em 2011, apesar do crescimento econômico menos intenso e da inflação mais elevada, os salários voltaram a ganhar da inflação. Segundo o Dieese, 87% de 702 convenções ou acordos coletivos analisados ficaram acima da variação do INPC-IBGE. Foi o terceiro melhor resultado da série histórica, abaixo apenas de 2010 (quando o crescimento do PIB foi o maior dos últimos 26 anos) e 2007. Permanece, porém, o desafio de aumentar a participação da renda do trabalho na riqueza nacional. Os ganhos salariais continuam aquém da variação do PIB. http://bit.ly/rba_salarios_inflacao

Complexo de Justo Veríssimo

Chico Anysio como Justo Veríssimo

outras 40 famílias também terão de deixar o local, apesar de nenhuma ter tido a casa atingida pelo fogo. Ofereceulhes inscrição no programa Parceria Social – um auxílio-aluguel de R$ 300 – e afirma que estuda um projeto habitacional para a comunidade. A reunião com a representante do prefeito Gilberto Kassab (PSD), na subprefeitura de Vila Maria e Vila Guilherme, teve a presença de cerca de 25 moradores. No encontro também estava o chefe do gabinete da subprefeitura, Josué Filemom. Para conferir que não se trata de piada, ouça o áudio da reunião gravado pelo repórter Leandro Melito, da Rede Brasil Atual: http://bit.ly/rba_ favela_coruja

DIVULGAÇÃO/REDE GLOBO

Hora de discutir a relação

MARCELLO CASAL JR

A diretora de Habitação da Prefeitura São Paulo, Maria Cecília Sampaio, não poderia ter escolhido maneira mais infeliz para lembrar Chico Anysio. Ao afirmar numa reunião com moradores da Favela do Coruja que para “ser cidadão na capital paulista é preciso pagar”, praticamente parafraseou o deputado Justo Veríssimo, aquele que vivia a dizer “quero que pobre se exploda!” Ela dirige a Habinorte, uma das regionais da Secretaria de Habitação, e disse o que disse num momento em que os moradores ainda contavam as perdas sofridas num incêndio que atingiu parte daquela comunidade, no bairro de Vila Guilherme, na zona norte. “Pra morar nesta cidade, pra ser cidadão em São Paulo, que é a terceira maior cidade do mundo, tem de trabalhar, tem de ter um custo e tem de ter condição de pagar. É o preço que se paga pra morar numa cidade como esta.” E avisa: “Nesse terreno a gente pretende começar um processo de desapropriação”. Em sua fala, Maria Cecília ainda “aconselha” os pobres que a ouviam a procurar cidades menores “para poder aguentar”. Em fevereiro, um incêndio se propagou pela comunidade e deixou mais de 60 famílias desabrigadas. Aproveitando a tragédia como oportunidade, a prefeitura decidiu que

A presidenta Dilma Rousseff recebeu os líderes das centrais sindicais para discutir uma série de questões, mas para os trabalhadores o mais importante talvez tenha sido a retomada de contato com o governo. A pauta incluiu itens como a desindustrialização e a isenção de imposto de renda sobre o pagamento de prêmios de participação nos lucros ou resultados (PLR). Manifestações na Rodovia Anchieta e na Avenida Paulista, em São Paulo, também serviram para chamar a atenção para as reivindicações dos sindicalistas. http://bit.ly/rba_dilma_centrais

Dilma e Centrais: reencontro

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RÁDIO

Paul Singer, 80 anos

O

economista Paul Singer, secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho desde 2003, completou 80 anos em 24 de março. Sua trajetória como intelectual e ativista de esquerda foi pano de fundo para muitos debates. Na Rádio Brasil Atual, o professor conversou com Marilu Cabañas sobre a fuga da Áustria anexada por Hitler, seus projetos socialistas, Comissão da Verdade, a criação e as mudança do PT, a situação da macroeconomia e da economia solidária. Confira a seguir um aperitivo e ouça a entrevista completa neste atalho: http://bit.ly/rba_paul_singer_80 O senhor é austríaco, não é?

Sim, nasci em Viena. Tive de fugir com a minha família, por sermos judeus. A Áustria tinha sido anexada pela Alemanha de Hitler, que se preparava para apartar e mandar para os campos de concentração os judeus. Lembro exatamente a data em que aportamos em Santos, no dia em que completei 8 anos. Minha família estava tão extasiada por conseguir chegar que o único que se lembrou do meu aniversário fui eu mesmo.

Lembro exatamente a data em que aportamos em Santos, no dia em que completei 8 anos. Minha família estava tão extasiada por conseguir chegar, que o único que se lembrou do meu aniversário fui eu mesmo 8

Como começou sua militância política aqui no Brasil?

Entrei numa organização da Juventude Sionista, socialista, em 1948, quando foi criado o Estado de Israel, e isso foi um frenesi nas comunidades judaicas do mundo todo. Os judeus nunca tinham tido um país e haviam sido vítimas de um genocídio. Todos os meus amigos e familiares entramos no Dror, uma organização que pretendia criar kibutzim, comunidades socialistas, em Israel. Em 1950 os camaradas do Dror viajaram para Israel e fundaram um kibutz, que existe até hoje. Um kibutz brasileiro em Israel. E sua participação na Polop?

Fundamos a Polop em 1959. Eu era do Partido Socialista, que estava nas mãos dos janistas. Nós, que não estávamos satisfeitos, criamos uma organização marxista, revolucionária etc. Polop vem de Política Operária, era o nome de um agrupamento político da Alemanha antes do Hitler. Mas eu não fiquei. Em 1960, o PS apoiou o marechal Lott, junto com a parte mais progressista da política brasileira, que havia evitado o golpe militar contra a posse do JK. Os

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apoiadores do Jânio saíram e nós retornamos e dirigimos o partido, até o golpe militar fechá-lo. O que senhor espera da Comissão da Verdade?

Se não me engano, a primeira Comissão da Verdade foi formada na África do Sul, quando caiu o apartheid e o Nelson Mandela foi eleito. Foi criada com a condição de que tudo fosse esclarecido, quem matou, quem torturou, onde estavam enterradas pessoas assassinadas. Haveria anistia, mas a condição era a verdade vir à tona. E parece que funcionou bem. Uma Comissão da Verdade tem essa virtude, revela a verdade, mas não pune. E a partir daí a convivência pacífica no mesmo espaço democrático torna-se mais fácil. Se houver alguma hipótese de punição, tem de ser pelos tribunais regulares. E a trajetória do PT?

Tenho deslumbramentos e decepções. O PT foi criado por uma vasta área da população brasileira. Não nasceu pequeno, não. Mas não tinha reconhecimento eleitoral. A partir de 1988, começa a ganhar várias cidades. Em 1989, Lula foi pela primeira vez candidato a presidente e perdeu por um triz. Chegamos ao poder democraticamente pelas eleições, governamos algumas das maiores cidades brasileiras, estados. Depois fomos aceitando alianças com outros partidos, mas ainda na faixa progressista. Agora, estamos no poder federal desde 2003 com uma vasta coligação, coisa que o PT antes não admitia. Eu não quero dizer que tínhamos de ficar naquela posição isolacionista. O PT disputava sozinho e não conseguia ganhar eleição. Mas houve uma mudança bastante ampla, levou o partido mais para o centro. E a economia do Brasil, que cresceu apenas 2,7% no ano passado, o que a está emperrando?

O que está emperrando é o livre câmbio. Se tivessem me perguntado eu teria aconselhado que não, mas hoje somos membros da Organização Mundial do Comércio, estamos comprometidos a abrir o mercado interno aos produtos importados. Ora, tem uma porção de países que são muito competentes do ponto de vista industrial mas não têm as mesmas leis, sobretudo sociais, de modo que seus produtos são mais baratos que os nossos. O governo tem de defender a existência da indústria brasileira – e está fazendo isso agora.


VICTOR SOARES/ABR

RÁDIO

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TVT

Um dia sem teto

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arço. Fim do verão de 2012. O sol a pino esquenta a moleira e derrete os plásticos das barracas de mais de mil famílias acampadas no Novo Pinheirinho, na cidade de Santo André, ABC. Ali está um ponto de resistência contra a desesperança de aproximadamente 4 mil pessoas: crianças, idosos, homens e mulheres ocupam um terreno de 50 mil metros quadrados para sensibilizar o poder público sobre o direito de moradia digna para todos. O programa da TVT ABCD em Revista passou 16 horas no acampamento acompanhando o cotidiano desse batalhão de gente. Quem, em sã consciência, se dispõe a viver nesse perrengue se não estiver mesmo necessitado? Ali faltam água, luz, roupa, comida. Mas não faltam organização, solidariedade, carinho. Nem humor. A equipe da TVT, quando chegou logo cedo à ocupação, foi direto para o barraco onde funcionam a cozinha e a coordenação do acampamento. Edna, a cozinheira, gaba-se do tempero e da habilidade da multiplicação da linguiça: os 6 quilos que foram doados tinham de dar para a mistura do almoço dos acampados. Estão lá cerca de 1.300 pessoas. O Novo Pinheirinho começa a funcionar com o grito “Olha o café da Edna!”, às 8h, e só termina por volta das 22h, depois da assembleia com todos os acampados. 10

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Durante esse dia, 9 de março, as câmeras registraram todos os afazeres do cotidiano da comunidade. O sentimento está nas entrevistas e nas imagens: ali ninguém se nega a trabalhar, a ajudar, a dividir. Ali se aprende a importância de uma sociedade organizada para reivindicar seus direitos. E no meio dessas pessoas sofridas fica claro que a dignidade é mais do que uma roupa de marca cheirando a bolor nos armários dos desavisados. O programa é uma revista eletrônica que dá voz ao movimento social. Produz grandes reportagens em uma linguagem documental, com ajuda da população. Além dos meios de acesso na tevê e na web (abaixo), o ABCD em Revista da TVT pode ser visto também na TV Aberta (canal 9 da NET), às terças, 23h, e sextas-feiras, às 21h30.

Sintonize a TVT Canal 48 UHF (19h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br


LALO LEAL

O desmanche da TV Cultura

Profissionais capazes de diferenciar sua missão, voltada para a cidadania, são desprezados pelos gestores. E a sociedade é privada de uma qualidade rara construída com seus recursos

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televisão no Brasil é tratada como empreendimento comercial desde as suas origens, quando herdou do rádio artistas e patrocinadores. Durante muito tempo os anúncios estavam no próprio nome dos programas: Repórter Esso, Gincana Kibon, Circo Bombril. Até hoje muita gente acredita que as emissoras de TV são propriedades particulares das famílias Marinho e Saad ou de empresários como Silvio Santos ou Edir Macedo. Poucos sabem que eles são apenas concessionários de canais públicos, cujo controle deveria estar nas mãos da sociedade. Para piorar as coisas, não tivemos aqui o contraponto da TV pública, como ocorre na Europa. As emissoras não comerciais só começaram a surgir no Brasil ao final dos anos 1960, quando o predomínio das comerciais já era total, impedindo a construção de uma alternativa capaz de se confrontar, em igualdade de condições, com o modelo dominante. O presidente Getúlio Vargas até que tentou em seu segundo governo criar a TV Nacional, outorgando um canal para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. O suicídio interrompeu o plano, retomado mais tarde por Juscelino Kubitschek – impossibilitado, no entanto, de levá-lo à frente diante das ameaças de derrubá-lo feitas por Assis Chateaubriand, dono dos Diários e Emissoras Associados. O canal 4 do Rio, que era para ser da Nacional, acabou ficando com a Globo. Terminou também aí o sonho de uma televisão pública nacional, capaz de cobrir todo o país, como já fazia com competência a Rádio Nacional.

Em seu lugar surgiram as TVs educativas, voltadas para suprir deficiências do ensino formal, a maioria dotada de poucos recursos e instrumentadas pelos governos. Programações mal definidas, tecnicamente pobres e na maioria das vezes enfadonhas caracterizavam quase todas as TVs públicas, contrastando com a luminosidade cada vez mais grandiosa das comerciais. Quando, por alguma circunstância especial, uma TV pública conseguia romper essas amarras os resultados eram surpreendentes. Foi o caso da TV Cultura de São Paulo, no início dos anos 1990. Sua grade de programação infantil era de tão alta qualidade que incomodou as concorrentes. Mas durou pouco. A instabilidade administrativa, determinada por ingerências políticas, interrompeu aquele bom momento. Mais uma vez o telespectador ficou sem alternativa. Não foi a primeira nem a última crise. Vivemos agora a mais recente, com a privatização de parte de sua programação ocupada inicialmente pelo jornal Folha de S.Paulo e as demissões em massa. Se os espaços para um modelo de TV não comercial já eram estreitos desde seu surgimento, agora diminuíram. A TV Cultura, ao invés de ampliar os olhares jornalísticos com programas próprios, apresentando ao telespectador perspectivas independentes do mercado, reduz o número de visões oferecidas ao público. Não se trata de um fato isolado. Faz parte de uma ação adotada em todo o Brasil pelos governos do PSDB, calcada na política do “Estado mínimo”, em que rádio e televisão pública não têm vez. Um processo que, além de privar o telespectador de programas novos e criativos, é acompanhado da demissão de centenas de trabalhadores competentes, formados na emissora e voltados para a radiodifusão pública, algo pouco ensinado nas escolas. São profissionais capazes de perceber a diferença entre seu trabalho, baseado na cidadania, e aquele restrito ao mercado. Na medida que estão livres de imposições comerciais, tendem a ser mais ousados e criativos. Para formá-los são necessários anos, talvez décadas. Nada disso é levado em consideração pelos atuais gestores da TV Cultura e cada demissão, além da tragédia pessoal de quem a sofre, transforma-se numa tragédia social, uma vez que os recursos usados na formação de cada um são jogados fora e o público fica privado do trabalho inovador que poderiam oferecer. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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ECONOMIA

Não

mata ninguém Uma minúscula tributação sobre as grandes fortunas em nada incomodaria o sono dos mais ricos e poderia ser um grande reforço para a saúde pública e o combate à miséria Por Maurício Thuswohl

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B

andeira histórica dos partidos de esquerda no Brasil, a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) está prevista na Constituição Federal de 1988, mas, subordinado à aprovação de uma lei complementar para entrar em vigor, até hoje não se tornou realidade. O debate sobre a taxação das grandes fortunas no país, no entanto, voltou à tona no segundo semestre de 2011, com a mobilização do Congresso Nacional em torno da regulamentação da Emenda 29, que fixou os percentuais mínimos que União, estados e municípios devem investir no setor de saúde. Defensores e críticos dessa modalidade de tributação, praticada em outros países, voltaram a tornar públicos argumentos de uma discussão que deve ganhar corpo. Em 1989, o Senado aprovou um projeto de lei complementar (PLC), de auto-

ria do então senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), que determinava a imediata entrada em vigor do IGF, mas continha imperfeições aos olhos da esquerda. Por exemplo, permitir que os valores pagos fossem deduzidos do imposto de renda. Na Câmara, o projeto acabou substituído por outro, elaborado por deputados do PSOL, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em junho de 2010 e pronto para ir a voto em plenário. No entanto, dorme em alguma gaveta da Mesa Diretora à espera de uma decisão política que destrave a discussão. Paralelamente, no âmbito do debate sobre a Emenda 29, a ideia de tributar grandes fortunas como forma de garantir recursos à saúde se materializou em 2011 em outro PLC, nº 48, do deputado Dr. Aluizio (PV-RJ), que cria a Contribuição Social das Grandes Fortunas (­ CSGF). Relatora do projeto na Comissão de Se-


ECONOMIA

as comissões antes de ir a votação em plenário, em um trâmite que provavelmente se estenderá pelo primeiro semestre de 2012. O objetivo dos parlamentares defensores da proposta é evitar que se repita a situação do outro PLC, aquele a hibernar na gaveta da Mesa Diretora.

FOTOMONTAGEM COM ORIGINAL DE ANNE RIPPY/GETTY IMAGES

Cinco mil famílias

guridade Social e Família da Câmara, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou emenda para que toda a arrecadação proveniente da CSGF seja direcionada exclusivamente a ações e serviços relacionados à saúde e os valores recolhidos encaminhados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) para financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a deputada, a CSGF atingiria cerca de 56 mil contribuintes com patrimônio superior a R$ 4 milhões. O relatório de Jandira prevê nove alíquotas para a CSGF, a serem pagas anualmente: 0,4% (entre R$ 4 milhões e R$ 7 milhões); 0,5% (acima de R$ 7 milhões a R$ 12 milhões); 0,6% (de R$ 12 milhões a R$ 20 milhões); 0,8% (de R$ 20 milhões a R$ 30 milhões); 1% (de R$ 30 milhões a R$ 50 milhões); 1,2% (de R$ 50 milhões a R$ 75 milhões); 1,5% (de R$ 75 milhões a R$ 120 milhões); 1,8%

(de R$ 120 milhões a R$ 150 milhões); e 2,1% para aqueles com patrimônio acima de R$ 150 milhões. A deputada ressalta que as alíquotas podem produzir um efeito considerável sobre a arrecadação e de baixíssimo impacto para os contribuintes atingidos face à evolução patrimonial: “A Receita Federal informa que ao longo de 2009 – ano de crise – o patrimônio das pessoas que superava a casa dos R$ 100 milhões elevou-se de R$ 418 bilhões para R$ 542 bilhões – 30% de crescimento em um único ano. Nesse contexto, uma tributação adicional de 2% representa muito pouco para esse diminuto segmento social, mas representará um significativo aporte de recursos para a saúde pública, que atende 190 milhões de brasileiros”, diz Jandira. Se for aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família, o projeto da ­CSGF ainda terá de passar por outras du-

Elaborado pelos deputados do PSOL Chico Alencar (RJ), Ivan Valente (SP) e Luciana Genro (RS, atualmente sem mandato), o projeto do IGF busca regulamentar o inciso VII do artigo 153 da Constituição Federal e determina que o imposto incida sobre todo patrimônio superior a R$ 2 milhões. Para os contribuintes com patrimônio entre R$ 2 milhões e R$ 5 milhões, a taxação prevista é de 1%, progredindo para 2% (entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões), 3% (de R$ 10 milhões e R$ 20 milhões), 4% (de R$ 20 milhões e R$ 50 milhões) e 5% para fortunas acima de R$ 50 milhões. Na elaboração dos projetos da CSGF e do IGF, os parlamentares utilizaram como base para seus cálculos os dados da Receita Federal de 2008. Segundo o órgão, o universo das grandes fortunas no Brasil estaria assim distribuído: são 26.206 contribuintes com patrimônio entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões; 10.168 (entre R$ 10 milhões e R$ 20 milhões); 5.047 (entre R$ 20 milhões e R$ 50 milhões); 1.327 (entre R$ 50 milhões e R$ 100 milhões) e 997 com patrimônio superior a R$ 100 milhões. Um documento frequentemente usado como base para as discussões sobre a taxação de grandes fortunas no país é o estudo Atlas da Exclusão Social: os Ricos no Brasil, organizado por Marcio Pochmann, André Campos, Alexandre Barbosa, Ricardo Amorim e Ronnie Aldrin, de 2005. Segundo os pesquisadores, que analisaram o período de 1980 a 2000, apenas 5 mil famílias brasileiras possuem um estoque de riqueza equivalente a dois quintos de todo o fluxo de renda produzido pelo país ao longo de um ano. Essas famílias, de acordo com o Atlas, detêm um patrimônio equivalente a 42% do PIB brasileiro e dispõem cada uma, em média, de R$ 138 milhões. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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ECONOMIA

Professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Bruno Macedo Curi recorre ao que classifica como “raiz ideológica da tributação das grandes fortunas” para lembrar que entre os objetivos da República explicitados na Constituição estão a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais: “O combate à pobreza, portanto, é algo caríssimo ao constituinte, a um ponto tal que se buscou um instrumento tributário próprio para tal fim. Por isso, toda a receita decorrente da arrecadação do IGF está previamente vinculada, também por norma constitucional, à constituição do Fundo de Combate à Pobreza”. Em relação às iniciativas em trâmite na Câmara dos Deputados, Curi diz que são dois tributos sobre o mesmo fato gerador: “A Constituição não proíbe a identificação de fatos geradores entre imposto e contribuição, o que tecnicamente resolveria o problema. Mas, se já há resistência política por parte do Congresso Nacional para a instituição de um gravame sobre as grandes fortunas, problema maior ainda teremos ao se tratar de dois gravames distintos. O especialista afirma que o ideal seria que o IGF prevalecesse sobre a CSGF: “Pela importância dada ao combate à pobreza, a prioridade é a instituição do imposto sobre grandes fortunas, em vez da contribuição. Até porque há correntes que entendem que a Previdência não existe para ser superavitária, sendo mesmo um ônus estatal. Já o combate à pobreza é unânime como um dever estatal e estabelecido pela Carta Magna como um objetivo a ser perseguido pela República”. Segundo Curi, não representaria uma dupla tributação sobre o imposto de renda. “Ele não tributa a renda, mas sim o capital. Não há, portanto, duas incidências sobre o mesmo bem. São conceitos próximos, mas distintos: enquanto renda é a disponibilidade de acréscimo de patrimônio (tributável pelo IR), a grande fortuna é o patrimônio em si. Desse modo, se uma pessoa detentora de grandes fortunas não tiver acréscimo de patrimônio ao longo de um ano-calendário, não 14

ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

pagará imposto de renda, mas pagará o IGF. O tributo, portanto, atua diretamente sobre o patrimônio daquelas pouquíssimas pessoas físicas que, por concentrarem grande parte da renda nacional, dificultam a redução das desigualdades. Por isso é tão assustador”, diz. E ser assustador para os detentores de grandes fortunas, segundo ele, revela o calcanhar de aquiles do IGF: a possibilidade de provocar fuga patrimonial do país. “Esse é um ponto crucial. O imposto não possui autorização constitucional para incidir sobre o patrimônio localizado fora do país, ao contrário do imposto de renda, que tem previsão constitucional para isso. Assim, é preciso haver uma emenda constitucional destinada a evitar a previsível evasão de divisas. Até porque, quanto maior o patrimônio do cidadão, tanto maior será sua mobilidade”, diz o professor, para quem uma alternativa possível, mas não ideal, seria a União aumentar o IOF sobre certas remessas de dinheiro para o exterior. “Mas isso, infelizmente, não é à prova de fraudes e demandaria maior esforço de fiscalização.”

Afortunados O universo das grandes fortunas no Brasil (nº de contribuintes/patrimônio)

997

superior a R$ 100 milhões

26.206

entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões

1.327

entre R$ 50 milhões e R$ 100 milhões

5.047

entre R$ 20 milhões e R$ 50 milhões

Experiências internacionais

A prática de tributar grandes fortunas já existe ou existiu em outras partes do mundo. As experiências mais marcantes são as de Alemanha e França, países que, coincidentemente, estão na linha de frente

10.168

entre R$ 10 milhões R$ 20 milhões

Como seria a CSGF Contribuição Social das Grandes Fortunas, proposta da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados (valores em R$ milhões) Fonte: Receita Federal

Combate à pobreza

0,4% 0,5% entre 4e7

entre 7 e 12

0,6% 0,8% 1% entre 12 e 20

entre 20 e 30

entre 30 e 50

1,2% 1,5% 1,8%

2,1%

entre entre entre acima 50 e 75 75 e 120 120 e 150 de 120


da tentativa europeia de salvar sua moeda única. Centralizadas pelo governo federal a partir de 1922, as tributações na Alemanha tinham como base as declarações de patrimônio global dos contribuintes, válidas por três anos, com alíquotas entre 0,7% e 1%: “Na Alemanha, o tributo sobre o patrimônio atinge contribuintes que dispõem não apenas de bastante dinheiro, mas também de poder econômico e político. Sua compreensão original era de um complemento do imposto de renda, incluindo posteriormente as pessoas jurídicas”, afirma o advogado e pesquisador Ueren Domingues de Souza no estudo Imposto sobre Grandes Fortunas. Apesar de suas virtudes, esse tipo de imposto foi considerado “confiscatório” na Alemanha e declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em 1995. De lá para cá, o órgão aguarda o processo de regulamentação de novas regras, por parte do governo, para que volte a ser cobrado. Na França, o sistema ainda em vigor, conhecido como Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna, tem alíquotas progressivas de 0,5% a 1,5% e incide sobre o patrimônio líquido de pessoas físicas, residentes ou não no país. Nesse modelo, que existe em sua forma atual desde que foi recriado pelo então presidente François Mitterrand em 1988, o próprio contribuinte declara seus bens para que o imposto seja cobrado.

Outro gigante da União Europeia que tributa as grandes fortunas é a Espanha. Seu modelo, no entanto, é considerado peculiar por suas características subjetivas, já que possui natureza analítica (incide apenas sobre bens considerados “luxuosos”), está sujeito a um teto de 77% da renda tributável e tem uma extensa lista de isenções. Outros países europeus que adotam algum tipo de tributação sobre fortunas são Áustria, Suécia, Finlândia, Islândia, Luxemburgo, Noruega e Suíça. Países como Holanda (2001) e Dinamarca (1996) o aboliram em um passado recente e, há mais tempo, Itália (1947) e Irlanda (1978) o deixaram de lado.

Projeto de IGF O Imposto Sobre Grandes Fortunas regulamentaria um dos artigos da Constituição Federal (valores em R$ milhões)

1%

entre 2e5

2%

entre 5 e 10

3%

entre 10 e 20

4%

entre 20 e 50

5%

acima de 50

Nos países anglo-saxões, de tendência mais liberal, a taxação sobre grandes fortunas nunca pegou. Na Inglaterra, as discussões sobre a criação se estenderam no Parlamento de 1960 a 1974, quando foi formada uma comissão especial para decidir sobre o tema: “A comissão constatou que a instituição de um imposto sobre grandes fortunas viria a substituir imposto sobre patrimônio já existente, o que impediu sua adoção”, afirma Domingues de Souza. Nos Estados Unidos e no Canadá, esse tipo de debate foi abandonado na primeira metade do século 20, mas ambos possuem sistemas próprios de impostos (conhecidos como property tax) que incidem a propriedade e não sobre o patrimônio global dos contribuintes. Entre os principais países emergentes, a África do Sul e a China não contam com tributação de grandes fortunas. Na Índia, existe desde 1957 um imposto anual sobre o patrimônio líquido com alíquotas que variam entre 1% e 5% sobre os bens das pessoas físicas e jurídicas que excedam um limite estabelecido pelo governo. O modelo indiano, no entanto, isenta da cobrança do imposto propriedades agrícolas, obras de arte, bens de uso pessoal e até um imóvel do contribuinte, desde que comprovadamente habitado por ele. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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TRABALHO

Bola

dividida CUT retoma debate sobre o fim do imposto sindical e é questionada pelas outras centrais. Propostas e projetos não faltam. Polêmica vale R$ 2,5 bilhões

negociação coletiva, com fixação de um teto. “Estamos ousando no sentido de ouvir os próprios trabalhadores. Dos dirigentes nós já sabemos a resposta”, comenta. Para ele, entidades realmente representativas e atuantes não devem recear o fim desse imposto. O dirigente diz que passou da hora de os sindicatos se prepararem para viver sem o imposto, convencendo o trabalhador de que vale a pena manter sua representação. “Falamos disso há 30 anos”, diz. “Mas também não queremos sindicato sem dinheiro. Esse é o sonho dos empresários.” Simultaneamente, a legislação deve mudar para coibir as chamadas práticas antissindicais, como a perseguição, pelas empresas, a trabalhadores que decidam se associar ao sindicato de sua categoria.

Por Vitor Nuzzi

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ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

RODRIGO ZANOTTO

N

os últimos 25 anos, o fim da contribuição (ou imposto) sindical já foi anunciado algumas vezes. Era aposta firme na Constituição de 1988. Foi dado como certo inclusive no governo Fernando Collor. Esteve na berlinda durante o Fórum Nacional do Trabalho, no início do governo Lula. Agora, por iniciativa de uma campanha da CUT, o tema volta à discussão. A ideia da central é conseguir apoio nas ruas, por meio de um plebiscito durante este mês de abril, e chegar em 2013 a um projeto de lei que ratifique a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre liberdade e autonomia sindical. Compulsório, o desconto equivale a um dia de trabalho de todo assalariado com carteira assinada, no holerite de março. As empresas também têm de recolher, todo mês de janeiro, uma alíquota baseada em seu capital social. Criada em 1943, a contribuição sindical é distribuída da seguinte forma: 60% para os sindicatos, de trabalhadores e patronais; 15% para federações sindicais às quais esses sindicatos são associados; 5% para confederações; 10% para as centrais: e 10% vão para um fundo do Ministério do Trabalho e Emprego. Em 2011, movimentou perto de R$ 2,5 bilhões. Por isso, tem também muitos defensores, o que sinaliza uma batalha difícil no Congresso Nacional. Para o presidente da CUT, Artur Henrique, os sindicatos devem basear suas receitas em apenas duas fontes, ambas com valores aprovados por assembleias: a mensalidade dos sócios e em uma contribuição, a ser criada, sobre

OPÇÃO Em Campinas, trabalhadora da Elektro participa do plebiscito promovido pela CUT


TRABALHO

“Hoje no Brasil você tem empresário que monta sindicato de trabalhadores para negociar com ele mesmo. Somos contra o imposto porque essa taxa enche os caixas de todo e qualquer sindicato, mesmo daqueles que nada fazem pelo trabalhador e em cujas estruturas alguns dirigentes se perpetuam”, sustenta Artur. “Como o trabalhador paga sem muitas vezes nem saber qual o sindicato que diz o representá-lo, esses sindicatos nunca ouvem suas bases e jamais debatem os rumos de sua atuação com aqueles que os sustentam.” A substituição gradual do imposto sindical pela chamada taxa negocial foi praticamente acertada durante o Fórum Nacional do Trabalho (FNT), mas emperrou no Parlamento, como outras propostas relacionadas à reforma sindical e trabalhista. “Infelizmente, estávamos no auge da crise política”, recorda Artur Henrique. “Naquele momento se iniciou uma reforma sindical fatiada.” Começaram, então, as negociações para o reconhecimento das centrais, que culminaram na sanção da Lei nº 11.648, em 2008. Essas entidades ingressaram formalmente na estrutura sindical brasileira e passaram a ter direito a 10% do imposto. Mas, pelo artigo 7º da lei, isso deverá acontecer apenas até a criação legal da contribuição negocial, “vinculada ao exercício efetivo da negociação coletiva e à aprovação em assembleia geral da categoria”. O Congresso tem vários projetos sobre o tema. O próprio FNT resultou em uma proposta de Emenda à Constituição, a PEC 369, de 2005, que tratava de temas como o fim da unicidade sindical e a substituição do imposto sindical pela contribuição negocial. A tramitação parou em 2008, até que no ano passado a PEC voltou para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Em agosto, o deputado Moreira Mendes (PPS-RO) foi designado relator. Ele chegou a emitir parecer pela admissibilidade da proposta, mas pouco tempo depois a matéria saiu da pauta e foi devolvida ao relator, para reexame. Agora em março, um grupo de trabalho discutia uma proposta de substitutivo ao projeto. Procurado, o deputado não deu retorno.

PAULO DONIZETTI DE SOUZA

Fatias

REPRESENTATIVIDADE Artur: “Somos contra o imposto porque enche o caixa de qualquer sindicato, mesmo daqueles que nada fazem pelo trabalhador”

Duas taxas a menos A proposta defendida pela CUT prevê que o máximo de cobranças para o trabalhador caia de quatro para duas: uma contribuição chamada negocial e a mensalidade do associado. Hoje, além da mensalidade, há três meios de arrecadação. Nem todas as entidades usam os quatro, mas o abuso é uma possibilidade presente

Como é hoje

Como ficaria

Imposto sindical Compulsório, está previsto nos artigos 578 a 610 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). No caso dos empregados, pertencentes a uma categoria econômica ou profissional, corresponde a um dia do trabalho – e não é necessário ser sindicalizado para ser cobrado.

Contribuição negocial Aprovada em assembleia, com teto fixado por lei

Contribuição confederativa Prevista pelo artigo 8º da Constituição, e por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), só pode ser cobrada dos sócios.

Mensalidade do sócio

Contribuição assistencial Cobrada desde que votada em assembleia e incluída em acordo coletivo Mensalidade Paga apenas pelos sócios do sindicato. O valor varia conforme a entidade Nos dois últimos casos, o trabalhador pode exercer o chamado direito de oposição, para não ser descontado.

REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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TRABALHO

Para Queiroz, caso o STF acate a ação do DEM, a proposta de substituição das taxas voltaria a ganhar corpo no Congresso, porque haveria necessidade de buscar uma nova receita. Por enquanto, com boa parte do movimento sindical e as confederações patronais contra, “a presidenta não vai entrar numa bola dividida”, observa o analista. Os deputados federais Daniel Almeida (BA) e Flávio Dino (MA), ambos do PCdoB, fizeram uma “PEC resposta” à ação do DEM, para garantir o repasse às centrais. Apresentada em dezembro de 2010, a PEC 531 aguarda relator na CCJ da Câmara.

JAILTON GARCIA

O cientista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), só vê uma chance de a discussão prosperar, e isso dependeria da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) apresentada em 2009 pelo DEM, questionando o repasse de 10% do imposto às centrais, que receberam R$ 115 milhões em 2011, pouco mais da metade para as duas maiores, a CUT e a Força Sindical. O julgamento da Adin 4.067 está empatado em três a três, e faltam quatro votos. Um dos ministros, José Antonio Dias Toffoli, se declarou impedido por ter se posicionado contra a ação quando era advogado-geral da União. Mas a votação está parada desde março de 2010, por um pedido de vista do então presidente do Supremo, Carlos Ayres Britto.

Insegurança

O presidente da CTB, Wagner Gomes, vê o risco de um ambiente de insegurança jurídica caso a contribuição sindical deixe de ser garantida pela Constituição.

TRANSPARÊNCIA Juvandia: “O imposto sindical possibilita a acomodação das direções sindicais. Com a taxa negocial, você está prestando contas para a categoria”

Dá para viver sem?

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ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

sua parte (60%) do imposto sindical. Ao mesmo tempo, alterou a cobrança das mensalidades, para que se tornassem a principal fonte de receita. “Mudamos de um valor fixo para um valor proporcional ao salário (1,3%). Com essa mensalidade, dá para sobreviver. Antes, o sindicato sobrevivia praticamente da receita do imposto sindical.” Foi preciso também estimular a sindicalização, para que a mensalidade garantisse a sustentação do sindicato. Já faz alguns anos que 90% dos trabalhadores da base são sócios do Sinergia. “Ele (o o trabalhador) trabalhador fica sócio desde que se sinta representado”, diz Gentil. “E isso exige serviço.” De 1991 a 2007, as liminares foram concedidas pela Justiça Cível. Desde que a ação passou para a Justiça do Trabalho, o sindicato não havia mais conseguido suspender a taxa e até chegou a ser multado pela tentativa. Desta vez, conseguiu

uma vitória mais ampla – o juiz Carlos Eduardo Oliveira Dias chegou a criticar, na decisão, “um padrão de organização sindical completamente dependente do Estado”. O presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), João Oreste Dalazen, tem feito críticas constantes ao modelo, que considera “ultrapassado e arcaico”, em boa parte por causa da contribuição sindical obrigatória. No caso do Sindicato dos Bancários de São Paulo, a receita vem, basicamente, das mensalidades e da gráfica. Os valores referentes à

contribuição assistencial são devolvidos àqueles que manifestarem sua oposição ao desconto. No caso do imposto sindical, a entidade manteve por mais de uma década liminar que isentava os trabalhadores da cobrança, mas a medida foi cassada pela Justiça em 2005, e os bancários voltaram a sofrer o desconto. A partir do ano seguinte, o sindicato passou a devolver sua parte (60%) aos trabalhadores cadastrados. Este ano, a devolução deve ser feita a partir de julho. CONFIANTE Gentil: “O trabalhador fica sócio desde que se sinta representado. E isso exige serviço”

RODRIGO ZANOTTO

São poucos os exemplos de entidades que tomaram a decisão de abrir mão do imposto e se manter financeiramente com base nas contribuições dos sócios. Os casos mais notórios são os dos sindicatos dos Bancários de São Paulo, dos Metalúrgicos do ABC e dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo (Sinergia-CUT). Este ano, o Sinergia conseguiu não apenas barrar o recolhimento de sua parte, como a liminar obtida no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região, em Campinas, aciona ainda as demais partes interessadas – federação, confederação, central e ministério – para se posicionar quanto à cobrança. Pela decisão do TRT, provisória, 20 mil trabalhadores de 69 empresas no interior paulista deixam de recolher a contribuição. O presidente do Sinergia, Gentil de Freitas, lembra que desde 1991 o sindicato obteve liminares para impedir o desconto de


DIVULGAÇÃO

WILSON DIAS/ABR

TRABALHO

SOBREVIVÊNCIA Wagner, da CTB: “O imposto é que mantém minimamente grande parte dos sindicatos. É importante para que os sindicatos sobrevivam”

GARANTIAS Paulinho, da Força Sindical acredita que, sem uma nova lei, o fim do imposto pode “quebrar a espinha do movimento sindical”

“O imposto é que mantém minimamente grande parte dos sindicatos. É importante para que os sindicatos sobrevivam e para ter uma garantia jurídica mínima. Se você tirar isso da Constituição, há o risco de o Ministério Público do Trabalho suspender inclusive o repasse da contribuição que for criada”, argumenta. Gomes também manifesta receio do resultado das negociações com os parlamentares. “Temos um Congresso que não é absolutamente favorável aos trabalhadores. Você sabe o jeito que entra, mas não sabe o jeito que sai.” O dirigente acredita que o imposto garante a sustentação das entidades sem pressões externas. “Ou o trabalhador sustenta o sindicato, ou alguém vai sustentar, patrão, governo, e não com a melhor das intenções”, diz. O debate sobre questões como imposto e unicidade sindical esfriou a relação entre a CUT e as outras centrais, que em

2010 participaram juntas de uma conferência, a 2ª Conclat, para entregar uma pauta de reivindicações aos candidatos à Presidência da República. Para Wagner Gomes, a divergência sobre o imposto nunca foi motivo para impedir a unidade. “Acho que a CUT não participa porque tem no DNA o exclusivismo”, critica. “Isso (a campanha anti-imposto), neste momento, só serve para desviar das questões principais do país.” Para o presidente da Força Sindical, o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho (PDT-SP), não haveria problema em acabar com o imposto sindical, desde que houvesse outra contribuição legal garantida, como a negocial. Em relação à campanha da CUT, ele avalia que o mais correto seria defender a criação dessa nova contribuição, para depois discutir o fim do imposto oficial. Acabar com essa taxa, antes disso, equivaleria a “que-

Contribuição somou R$ 2,5 bilhões em 2011 Veja como ficou a divisão da arrecadação

R$ 116 milhões para as CENTRAIS SINDICAIS

R$ 819 milhões para 4.412 ENTIDADES PATRONAIS

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)

R$ 1,611 bilhão para 9.876 ENTIDADES DE TRABALHADORES

brar a espinha do movimento sindical e, consequentemente, prejudicar os trabalhadores”. Ele diz que houve, de fato, um acordo entre as centrais sobre a criação da contribuição negocial, mas a discussão não foi adiante.

E o deles?

Paulinho também considera necessário discutir mais a contribuição sindical patronal. Nesse item, há concordância entre Força e CUT. “Muitos empresários falam muito em reduzir imposto. Por que não começam reduzindo o próprio imposto?”, provoca Artur Henrique. Federações e confederações empresariais também recolhem imposto sindical. Em 2011, pelos dados do Ministério do Trabalho, enquanto as entidades de trabalhadores ficaram com R$ 1,6 bilhão, as empresariais receberam R$ 819 milhões. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) defende a manutenção do imposto como pressuposto “para que as entidades sindicais desempenhem as prerrogativas constantes da CLT”. E sustenta que, sem a taxa, as representações tanto de empregadores como de trabalhadores não conseguiriam exercer as atividades previstas pela Constituição. Para a CNC, a contribuição é uma importante fonte de recursos, incluindo as filiadas, “indispensável para o custeio de suas atividades”. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) não se manifestou. A receita da presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira, inclui planejamento e transparência. “O sindicato tem de prestar contas, e você precisa de receita para manter a luta sindical”, observa. “Essa forma (imposto sindical) possibilita a acomodação das direções sindicais. Com a taxa negocial, você está prestando contas para a categoria.” Assim, o que está em questão é o conceito de sustentação dos sindicatos. E de como o trabalhador vê o resultado da atividade. “Tem de haver um planejamento para isso. E você tem de discutir com a categoria outras formas de sustentação. Isso ajuda a formar um sindicato mais aberto, mais democrático”, diz Juvandia. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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POLÍTICA

Elegemos Obama e fomos

Ativista do Ocupe Wall Street admite que os progressistas americanos se acomodaram, enquanto a direita se organizou. “Temos de nos conscientizar de que é preciso marchar sempre.” Movimento prepara sua primavera Por Paulo Donizetti de Souza

S

tephen Lerner, 54 anos, é ativista norte-americano de movimentos sociais há mais de três décadas. Começou a atuar na organização de trabalhadores da agricultura, depois entre os setores de vestuário, tecnologia e comunicação, financeiro e de serviços. Integrante da direção do Sindicato Internacional dos Trabalhadores do Setor de Serviços (Seiu), no final da década de 1990 foi dos formuladores de uma bem-sucedida campanha por melhores condições de trabalho para as empregadas da limpeza em edifícios – o movimento Justice for Janitors acabou inspirando o filme Pão e Rosas (Bread and Roses, 2000), do diretor britânico Ken Loach. No ano passado, junto com várias categorias de trabalhadores, lideranças comunitárias e estudantis, Lerner foi um 20

ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

dos mentores do movimento Ocupe Wall Street. A exemplo das manifestações que desencadearam a Primavera Árabe, a partir do Egito, e dos acampados em importantes praças europeias, o movimento eclodido em setembro é caracterizado pela ausência de lideranças políticas tradicionais e por ter a internet e as redes sociais como principal fonte de propagação. E, principalmente, por questionar o poder excessivo do sistema financeiro, responsabilizado por ditar os rumos da economia, pelo agravamento da concentração de renda e pelas crises que desde 2008 assolam os Estados Unidos, a Europa e põem em xeque o modelo capitalista. O Ocupe Wall Street arregimentou milhares de ativistas em várias regiões dos Estados Unidos. Conhecido pelo mote “99% contra 1%”, traduziu o imaginário do país em relação ao momento em que, como

SHANNON STAPLETON/REUTERS

MAURICIO MORAIS

DORMIR lembra ele, os bancos receberam ajuda de US$ 17 trilhões, enquanto a renda dos trabalhadores despencou 60%. De passagem pelo Brasil no final de março, Lerner visitou a redação da Rede Brasil Atual, interessado na experiência que une dezenas de entidades sindicais num empreendimento de comunicação independente livre da mídia comercial. Em palestra no Sindicato dos Bancários de São Paulo, transmitida pelo programa de web TV da entidade, falou sobre a experiência inovadora de mobilização que está vivendo.


Em entrevista coletiva, o sindicalista americano avaliou os resultados alcançados pelo movimento. Assinalou que nem a forte repressão sofrida em várias regiões dos Estados Unidos, com agressões policiais e muitas prisões, nem o rigoroso inverno do hemisfério norte, encerrado no mês passado, desmobilizaram o Ocupe. Com a chegada da primavera, novas atividades estão sendo gestadas para florescer neste mês de abril. Confira nas páginas seguintes os principais assuntos abordados.

EDUARDO MUNOZ/REUTERS

POLÍTICA

“EU SOU OS 99%. ESCUTE-ME RUGIR!” Para os padrões conservadores americanos, o movimento Ocupe Wall Street é uma revolução na atitude política da nação. Lerner já foi classificado como “terrorista econômico” por comentaristas da mídia REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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POLÍTICA

Nas ruas e nas redes

Numa mobilização feita por meio dos blogs e mídias sociais, pela primeira vez em todo o país percebe-se um elevado nível de consciência das pessoas sobre o papel do capital financeiro, de Wall Street, dos bancos na dominação da vida econômica e também na vida política do país. É a primeira vez em muito tempo que a classe média americana está desafiando a desigualdade crescente e a concentração de riqueza. Em função da crise e da ausência de liberdade, o movimento sindical americano nunca esteve tão frágil. Só 7% dos trabalhadores são sindicalizados, e a destruição dos sindicatos do setor privado abriu as portas para que a direita americana atacasse também os empregados do setor público. Quando estourou a crise de 2008, Wall Street e os bancos receberam US$ 17 trilhões de ajuda do governo, enquanto nas comunidades negras e de imigrantes os trabalhadores perderam 60% de sua renda. A crise bancária se tornou uma desculpa para agravar a concentração de renda. A direita, Wall Street, a Fox News usaram a crise que eles mesmos criaram para consolidar ainda mais seu poder. Nos últimos anos, os setores progressistas ficaram acuados e os conservadores partiram para a ofensiva. Estamos no sexto mês do Ocupe Wall Street, e a mensagem de que somos 99% e os super-ricos 1% capturou o imaginário popular. As palavras não bastavam para expressar a sensação de que uma gama tão pequena de pessoas tenha tanta riqueza e tanto poder. Com a ocupação, dia após dia, semana após semana, houve muitas prisões, muita gente apanhou. E todo o risco enfrentado por esses ativistas acabou valorizando ainda mais sua atitude desafiadora e inspirando outras pessoas ao redor do país, que também passaram a se expressar e a agir. No final do ano passado, quando a polícia desmontou a maior parte dos Ocupes, muitos achavam que o movimento acabaria minguando. Mas, com a chegada da primavera, as atividades do Ocupe estão florescendo novamente. 22

ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

BANDEIRAS UNIVERSAIS Plano de saúde, trabalho digno; educação pública de qualidade; meio ambiente saudável. Para todos, não só para o 1%

Abril em três atos

Vou dar três exemplos dessa retomada. O primeiro é o movimento “Ocupar nossas casas”. A vizinhança se mobiliza, fica em torno de casas que estão sendo alvo de processos e não permite que a polícia promova as ações de despejo por parte dos bancos contra os endividados. Além disso, famílias que perderam casas que acabaram continuando vazias estão ocupando-as de volta. Argumentam que os bancos não têm legitimidade para tomá-las e é um crime permanecerem vazias enquanto elas não têm onde morar. O segundo ato é o dos estudantes, que acumulam dívidas altíssimas para pagar suas faculdades. Os bancos ganharam muito com o socorro do governo e o

perdão de dívidas, e ganham novamente com os juros desses empréstimos. Então, no dia 25 de abril, quando esse endividamento atinge a soma de US$ 1 trilhão, estudantes e recém-formados começam a articular uma greve dos endividados e um movimento pela renegociação, com boicote aos pagamentos. E para o terceiro, entre 9 e 14 de abril, promovemos um esforço de treinamento de 100 mil pessoas para atuar em protestos não violentos de ação direta. Isso não está sendo organizado de forma tradicional, e sim através das mídias sociais. Por exemplo, há uma mapa on-line, as pessoas se conectam, manifestam seu interesse em participar, apontam onde querem que o treinamento seja feito e se cadastram.


POLÍTICA

REPRODUÇÃO

Partidos e Obama

BRENDAN MCDERMID/REUTERS

CASA PRÓPRIA O vídeo no Youtube mostra uma ousada investida do Ocupe. Militantes entram com móveis numa agência do Bank of America: “Vocês tomaram nossa casa, então pensamos em morar aqui”

Cerca de 50 mil pessoas farão de forma presencial e outras 50 mil receberão instruções virtualmente. Será uma experiência de conexão entre o ativismo on-line e off-line num mesmo movimento. É o que estamos procurando agora: entender como os diferentes universos de ocupação dos espaços – as mídias sociais, os sindicatos e ONGs tradicionais – podem encontrar meios de atuar juntos, construir um movimento gigante para desafiar o poder de Wall Street.

Conexão Seattle-Ocupe

Há muitas conexões entre os movimentos antiglobalização do final dos anos 1990 e o atual. Muitos ativistas que participaram e aprenderam a se organizar com as manifestações de Seattle estão agora atuando na Ocupe. Mas vejo uma diferença conceitual. Aquele mo-

vimento lutava para que o governo mudasse a sua política. O Ocupe Wall Street tenta mudar também o comportamento das corporações. Não é ocupar o Senado, por exemplo. Trata-se de ocupar as ruas e questionar o poder do capital financeiro. Isso tem mais a ver com a vida das pessoas comuns, porque elas podem ver que perdem salário, emprego e até casa por causa de Wall Street. Agora temos uma oportunidade de engajar muito mais gente nesse movimento, que não necessariamente se engajaria no movimento antiglobalização – até porque mais gente foi afetada pela crise econômica. O Ocupe Wall Street não está em um lugar só. Está em vários. E não há um líder convencional. Você não consegue ligar para o movimento e dizer “eu quero falar como o líder”. Mas nos últimos dois meses há determinados grupos de trabalho para cada ação. Um grupo adotou o “Ocupar minha casa”, por exemplo, e faz conferências nacionais a distância para coordenar essa atividade. Durante o inverno muitos grupos de trabalho começaram a se conectar com outras pessoas para fazer com que o movimento seja mais amplo agora. Atualmente há muitos sites, blogs, vídeos difundindo ações. Acabei de receber aqui notícias de um grupo de pessoas que estão levando seus móveis para prédios do Bank of America. “Vocês nos expulsaram de nossas casas, então viemos morar aqui”, cantavam. Mais de 100 mil pessoas viram no Youtube nos últimos dois dias. Isso vai ser a semente para que mais ações desse tipo aconteçam.

Muitas pessoas começam a questionar hoje coisas que antes não questionavam. A maioria das pessoas já apoia a criação de impostos maiores para os mais ricos. A maioria já acredita que Wall Street não produz riqueza. Esse debate não aconteceu no país durante muitos anos. E parte do desafio é justamente fazer com que essa discussão ganhe o coração dos americanos, deixando de acreditar que o capitalismo é capaz de produzir riquezas inesgotáveis. O movimento Ocupe abriu portas e os grandes bancos estão tentando fechá-las novamente. No atual processo eleitoral, a primeira surpresa vem dos republicanos. Um grupo de direita questiona a riqueza do principal candidato do partido, Mitt Romney. E muitas surpresas estão por vir. De nossa parte, vamos continuar insistindo no tema da desigualdade versus o poder de Wall Street. O modo como funciona o sistema partidário dos Estados Unidos torna muito difícil o espaço para uma terceira via, em âmbito nacional. Mas houve experiências estaduais e municipais interessantes. Por exemplo, em Nova York, um grupo chamado Partido das Famílias que Trabalham luta pela criação de um partido de trabalhadores. Num longo prazo, todos sentirão a frustração de esses dois partidos, Republicano e Democrata, terem sido cooptados pelos super-ricos. Quando Obama venceu as eleições em 2008, houve uma grande euforia entre os sindicatos e as forças progressistas – “todos os nossos problemas vão ser resolvidos” –, e fomos dormir enquanto a direita se organizava. Não criamos nenhuma forma de pressão para reagir a esse ataque. Então, não é tão simples assim dizer que Obama não quis fazer certas coisas. Uma das coisas que precisamos fazer é ter a capacidade de produzir essas pressões, e não somente em temporadas de eleições. Em 2008, a direita estava em marcha e não parou. Se o Ocupe tivesse começado em 2008, e não em 2011, nosso país estaria muito diferente. Uma das mudanças mais importantes que temos de promover nos Estados Unidos é a tomada de consciência de que devemos marchar sempre. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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MUNDO

Pela primeira vez em 20 anos entrou mais gente no Brasil do que saiu. Classe média portuguesa, desencantada porém qualificada, vê na antiga colônia esperança de oportunidades Por Maurício Hashizume

LUSO Tormento

sonho tropical

É

raro encontrar entre jovens de Portugal alguém que não tenha algum parente ou ao menos uma pessoa conhecida com planos de tentar a sorte em outros países. E o Brasil vem se apresentando como um dos destinos mais procurados. Levantamento da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, ligada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) do governo luso, estima entre 100 mil e 120 mil o número de pessoas que deixaram o país no ano passado. Segundo o órgão, aumentou o fluxo em direção ao Brasil, Angola, França e Suíça. Para Pedro Rodrigues, de 31 anos, o Brasil é “paixão antiga”. Funcionário há oito anos na área administrativa da Escola de Estudos Avançados da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Feuc), ele já pensou muitas vezes em se aventurar, mas admite que a intensificação da crise na Europa tornou o projeto mais premente. “Tenho a sensação de que posso ir e nunca mais voltar”, diz. O que mais atrai Pedro, que já fez uma série de cursos técnicos na área de tecnologia da informação e vendas, é a expectativa de crescimento seguro da economia brasileira. A onda de interesse inspira uma equipe da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo brasileiro a elaborar proposta de uma nova política nacional de imigração. A ideia é reduzir trâ24

ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

mites burocráticos para tentar atrair pessoas com formação avançada, ao mesmo tempo em que deixa em segundo plano os contingentes de escolaridade mais baixa. Esse aceno de privilégios para uma “elite” suscita críticas. Tanto daqueles que defendem a ampla garantia de direitos e oportunidades aos que escolhem o Brasil para viver (independentemente de sua formação, nas mesmas bases da anistia concedida em 2009 a estrangeiros não portadores de documentos regulares) como dos que condenam a falta de investimento interno contínuo e efetivo na educação.

FUTURO INCERTO Crise instalou-se nos últimos anos, com queda de até 30% no poder de compra. Acordo para “consertação social” teve apoio da central UGT, que representa 30% dos trabalhadores, mas levou a CGTP, a maior central, a convocar greves


MUNDO

Mesmo sem haver ainda uma nova política, o número de trabalhadores imigrantes em território nacional vem subindo. De acordo com o Ministério da Justiça, o salto de 2010 para 2011 foi de 57%, chegando a um contingente de 1,5 milhão. A balança migratória foi invertida: pela primeira vez nos últimos 20 anos entrou mais gente do que saiu. Em 2011 foram ainda expedidos 32% mais vistos de trabalho. Para portugueses, a quantidade dobrou. No primeiro semestre do ano passado, 52 mil vistos foram concedidos a portugueses que vivem no Brasil.

HUGO CORREIA /REUTERS

RAFAEL MARCHANTE/REUTERS

Há tempos

O primeiro sinal concreto de crise sentido pelo português Pedro Rodrigues, já em 2008, foi o corte do trabalho aos sábados, que engordava o salário. A partir de então, convive com dificuldades permanentes e responsabilidades acumuladas. No ano passado, ele e mais seis pessoas estavam no final de um contrato temporário de três anos com a Universidade de Coimbra. Foi o único que permaneceu e, dadas as sucessivas medidas de austeridade dominante, crê que “mais portas se fecharão”. A taxa média de desemprego em Portugal em 2011 foi de quase 13%, uma das mais elevadas entre países da União Europeia. A gravidade da crise é maior para a juventude. Na avaliação do sociólogo Elísio Estanque, professor da Feuc e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da universidade, a emigração desse segmento evidencia um “erro duplo”. Primeiro, o desperdício dos investimentos feitos na formação desses jovens qualificados; segundo, a perda dessa força de trabalho, cujo conhecimento deveria impulsionar a reestruturação do país. Em seu livro A Classe Média: Ascensão e Declínio, Elísio traça um panorama histórico-social. Para tratar do presente, cita o legado controlador e conservador cristalizado durante as décadas de ditadura – encerrada apenas em abril de 1974 – e aponta uma combinação de fatores, como o incipiente processo de industrialização e certa noção de dependência crônica do Estado na cultura da classe média. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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Tal processo só veio a se consolidar no ambiente democrático na passagem para a década de 1980, com a aglomeração urbana e o alargamento da base de serviços públicos, como saúde e educação, e do funcionalismo a ele associado. “A classe média surgiu em Portugal quando já dava sinais de fadiga em países mais centrais do norte da Europa”, comenta Elísio. E passou a se “iludir” com uma série de “ficções” de dentro e de fora de Portugal. Nesse período, a principal “promessa” era que, com as obras financiadas pelos fundos estruturais e o poder de compra para consumo (financeirização da economia e profusão de empréstimos, dos quais a classe média não tinha como escapar e, na realidade, atenderam a interesses privados), Portugal estaria se aproximando dos países mais ricos. Setores estratégicos – como a agricultura e a pesca – foram rifados nos dez anos (1985-1995) em que o então primeiro-ministro era o atual presidente Aníbal Cavaco e Silva, do Partido Social Democrata (PSD). O aporte educacional, técnico e na produção científica e tecnológica não se traduziu em projetos econômicos concretos. E o que restou dos poucos setores industriais – como o têxtil e o calçadista – foi abalado pela ascensão dos asiáticos. “De certo modo, a crise cá estava antes mesmo de chegar”, adiciona o pesquisador, que pensa, ele próprio, em passar um tempo no Brasil para desenvolver pesquisas com universidades sobre a classe média.

Pacotes de maldades

Estima-se que o poder de compra da população tenha caído de 25% a 30% nos últimos anos. Os processos de cidadãos acolhidos pelo Gabinete de Apoio ao Sobreendividamento da Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor saltaram de 152, em 2000, para 4.288, em 2011. Em função do programa de assistência econômica e financeira comandado pela famigerada “troika” – Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu –, o governo português cortou abonos de final de ano e de férias de servidores públicos e aprovou meia hora diária a mais de trabalho sem aumento de salário para o setor privado. 26

ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

JAILTON GARCIA

MUNDO

Pé no chão A advogada Ana Contreiras é apaixonada pelo Brasil. Chegou em 2007 e conta que primeiro foi preciso “namorar” o país e “testar o mercado” para, depois, estabelecer-se. Natural de Faro, região do Algarve, sul de Portugal, Ana morou um ano na Inglaterra e conheceu brasileiros. Ao terminar a especialização em Direito Internacional, decidiu mudar-se. “O país recebe extremamente bem as pessoas, o povo é acolhedor. Vim conhecer e quis ficar por cá.” A facilidade com o idioma e a proximidade das culturas foram importantes. A oportunidade profissional também. Ana chegou para trabalhar num escritório e hoje é sócia um, prestando assessoria jurídica a luso-brasileiros e empresas em relação à imigração. Considera o povo e o clima maravilhosos, mas a burocracia, segundo Ana herdada dos patrícios portugueses, é um entrave. Ela calcula que um terço dos clientes portugueses que vêm ao Brasil

atendidos por seu escritório acaba retornando, pela dificuldade para se legalizar ou conseguir uma colocação. A crise lá e o bom momento cá deixaram os “portugueses entusiasmados” com o Brasil. Mas ela alerta para o fato de que viver no Brasil não é bem como se pensa em Portugal. “As pessoas não têm ideia dos valores de aluguel e alimentação. O custo de vida em São Paulo é mais alto do que em Londres. Quem tem um pequeno negócio em Portugal vive melhor do que quem está na mesma situação aqui. Um cliente comparou outro dia que gasta mais em uma hora em São Paulo do que em uma semana em Lisboa”, diz. Embora haja espaço para profissionais qualificados, a especialista lembra que o mercado brasileiro é disputado. “O sonho de um eldorado não existe”, diz. Aos conterrâneos, aconselha munirem-se de informações antes de efetivar uma mudança. “O Brasil é maravilhoso, mas não é fácil”, afirma.


MUNDO

O que já parece ruim ainda pode piorar. Uma plataforma de reformas trabalhistas no âmbito da “concertação social” foi firmada em janeiro e enviada à Assembleia da República. O acordo envolveu governo, entidades patronais e a União Geral de Trabalhadores (UGT), que representa aproximadamente 30% das entidades sindicais e tem ligação com o Partido Socialista (PS). O termo reduz férias, facilita demissões, diminui o adicional de horas extras e suprime feriados. A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN), maior central do país, com cerca de 60% das agremiações de representação dos trabalhadores, deixou as negociações e não ratificou o acordo. Guadalupe Simões, do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, considerou as medidas inaceitáveis. “Querem acabar com o Estado Social”, protesta. Segundo a sindicalista, a proposta da “concertação social” estende ainda flexibilizações do setor privado ao setor público e abre margem para que empregadores desloquem funcionários de uma região para outra sem compensações, assim como permite jornadas semanais de até 60 horas. Em reação, a CGTP-IN tem convocado greves gerais para condenar a situação de desemprego e precariedade das condições de trabalho, em contraposição a um “protecionismo a instituições e grupos financeiros”, levada a cabo pelo governo de direita formado pela coalizão PSD e Centro Democrático Social (CDS), sob o comando do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho.

PAIXÃO ANTIGA Pedro: expectativa de crescimento seguro da economia brasileira

JUVENTUDE PERDIDA Elísio: o país vai exportar força de trabalho qualificada

“No contato com as pessoas, notamos que a insatisfação é cada vez maior. Mas também cresce a necessidade de obter recursos básicos para a sobrevivência. O risco de desconto na remuneração equivalente a um dia de paralisação (no caso de participação nas manifestações) ameaça o orçamento de muitas famílias. Isso contribui para a desmobilização”, constata Guadalupe. Mesmo sem nunca ter estado no Brasil, Pedro Rodrigues considera ter uma boa noção do país pela diversidade de cidadãos brasileiros que já conheceu em Coimbra. “Sei que cada região tem características próprias, mas uma coisa comum em todos os relatos que ouço é o ritmo econômico acelerado”, diz. O anseio de conhecer os trópicos ficou maior quando um de seus amigos se mudou para São Paulo para trabalhar como barman na noite da maior cidade do país. Conseguiu arrumar um bom emprego em uma casa frequenta-

da por endinheirados de generosas gorjetas e se instalou em um espaçoso apartamento na metrópole. Pedro só tem medo de ser abordado na rua, o que nunca lhe aconteceu com em Portugal. “Mas é um risco que vale a pena correr.” Se pudesse escolher, iria para Florianópolis, mas não se faria de rogado para oportunidades em São Paulo ou Rio de Janeiro. Alguns meses atrás, foi sondado por uma empresa de construção civil em expansão no Brasil. Como fala bem o inglês, atuaria como uma espécie de relações-públicas. Ainda não chegou a ser efetivamente convidado. Mas permanece aberto, mesmo com contrato assinado pelos próximos dois anos em Coimbra. Uma pequena xícara pintada com a bandeira verde, amarela, azul e branca que esconde em pleno local de trabalho, em sua gaveta, já revela um pouquinho do Brasil na sua vida. Colaborou Suzana Vier

Mais que um oceano a separá-los No primeiro semestre de 2011, 52 mil portugueses solicitaram a regularização de sua situação como residentes no Brasil. A emigração lusa ficou em torno de 110 mil cidadãos no ano passado. Além do Brasil, aparecem em destaque destinos como Angola, Suíça e França

Área População

8.514.876,6 km²

92.090 km²

192,4 milhões

10,5 milhões

2,28 trilhões

222,8 bilhões

PIB (em US$) Dívida/PIB (2011) Desemprego (média, 2011)

37%

110%

6%

12,7%

Fontes: IBGE, Banco Central e Ministério da Justiça (Brasil) / INE, Eurostat e Ministério dos Negócios Estrangeiros (Portugal) REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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CIDADANIA

Como

viver em 2030?

Quando esse ano chegar, quase um terço dos brasileiros terá 60 anos e grandes chances de viver outros 60. A julgar pelas más condições de vida do idoso de hoje, o desafio pela frente é imenso Por Cida de Oliveira

“P

osto de saúde! Boa tarde!”, anuncia no portão a agente Patrícia Ferreira Martins, da Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Canhema, em Diadema (SP). Acompanhada pela enfermeira Danila Barbieri Jiunta, ela visita a dona de casa Ana Cesárea Tiago, de 76 anos, que esteve internada devido à erisipela, infecção da pele muito comum em diabéticos, obesos e em quem tem má circulação sanguínea nas pernas. As duas conversam com dona Ana e recomendam a seu marido, Aníbal Barreto, 78 anos, e à filha do casal, Ana Maria, que a leve de volta ao hospital porque o inchaço ainda é grande e requer cuidados. É a segunda vez na semana que Patrícia vai àquela casa. Normalmente, ela visita as famílias a cada dois meses. E, a cada mês, aquelas em que há portadores de pressão alta e diabetes. Os relatórios do quadro de saúde são enviados à equipe médica da UBS responsável pelas intervenções necessárias. Elogiada pelos usuários e por especialistas, a atuação dos agentes do Programa da Saúde da Família (PSF), que em Diadema cobre 100% do município, beneficia sobretudo a pessoa idosa. “Embora muito básico, esse tipo de atendimento ainda não existe em muitos lugares”, afirma Bernadete de Olivei28

ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

ra, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e da organização não governamental Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe). “Na zona rural de municípios da Grande São Paulo, que tem população idosa maior do que pensávamos, a situação é pior. Há muitas pessoas doentes, acamadas, muitas vezes isoladas em quartinhos insalubres, sem janela nem banheiro. Estão marginalizadas, esquecidas”, diz Bernadete. O problema chega a ser mais grave que na periferia das cidades, onde a grande concentração populacional contrasta com a oferta insuficiente de todo tipo de assistência. A pesquisadora participa do estudo inédito “Quem cuidará de nós em 2030?”, encomendado pelo Ministério da Saúde à PUC paulista, à Universidade de Brasília (UnB), à Universidade de São Paulo (USP) e à Universidade Católica de Brasília (UCB). O objetivo é mapear os serviços atualmente disponíveis à população idosa e as demandas nos municípios das regiões metropolitanas de São Paulo e do Distrito Federal, que podem ser consideradas amostras do que acontece no resto do país. Outra meta é listar o que gestores e integrantes de conselhos de saúde e do idoso entendem como essencial para um atendi-


CIDADANIA

DANILO RAMOS

SAÚDE DA FAMÍLIA A agente Patrícia e a enfermeira Danila recomendam que dona Ana retorne ao hospital porque o inchaço nas pernas requer cuidados

mento global de qualidade a esse segmento décadas adiante. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 30% dos brasileiros terão 60 anos ou mais em 2030. O envelhecimento da população brasileira enseja muitas questões relacionadas a assistência à saúde, educação permanente e cuidados. Afinal, as famílias, as instituições sociais, os gestores públicos, médicos geriatras e outros especialistas precisam ser preparados e apoiados para que a longevidade caminhe ao lado da qualidade de vida – bem diferente do que acontece hoje em dia. Por “envelhecimento” entenda-se o aumento da proporção de pessoas acima de 60 anos em relação à de jovens no contingente populacional, bem como o aumento da expectativa de vida. Em 1980, a esperança de vida do brasileiro ao nascer era de, em média, 62 anos. Atualmente, é de pouco mais de 73. Em 2030, estará próxima de 80 anos. Os dados coletados no segundo semestre de 2011, já em análise, indicam também a carência de centros de referência em todos os municípios pesquisados, inclusive nos mais ricos. Para complicar, a oferta desses centros nem sempre é suficiente para a qualidade de vida de quem os frequenta. Faltam especialistas de diversas áreas que atuem de maneira integrada para propor-

cionar saúde, educação permanente, artes, lazer, cultura e novas perspectivas de qualidade de vida para quem chegou à maturidade e ainda terá muitos e muitos anos pela frente. “As pessoas levam 60 anos para envelhecer e, num futuro próximo, terão tudo para viver outros 60. Esses anos a mais devem ser vividos de maneira independente, ativa e saudável”, afirma Bernadete. “É inaceitável que numa fase da vida que pode se prolongar por tantas décadas a rotina de uma pessoa se limite a consultas e tratamento médico. Mais do que saúde, que é básica, o idoso tem direito a uma vida plena que inclui conforto espiritual, felicidade, harmonia com a família. Temos de pensar políticas para isso.” Promulgado em 2003, o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741) determina que é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Em novembro passado, durante a 3ª Conferência Nacional dos Direitos do Idoso, foram aprovadas 26 prioridades para uma política nacional voltada a essa parcela da sociedade. Entre outras, a efetivação e universalização dos direitos, a ampliação da rede de proteção e defesa contra violência, a criação da Secretaria Nacional do Idoso, a inclusão dessa população na política nacional de educação, sua participação efetiva no planejamento das políticas e a definição de fontes de financiamento para custeio de programas, projetos e ações. “Tirar tudo isso do papel é um desafio, mas acredito que até 2030 vamos conseguir”, diz Bernadete.

Alcance limitado Uma portaria dos Ministérios da Saúde e da Previdência Social, de abril de 1999, instituiu o Programa Nacional de Cuidadores de Idosos. Mas só em 2008 foi lançado um programa de formação conduzido pela Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (RET-SUS). A iniciativa pouco avançou por falta de regulamentação da profissão de cuidador. Um projeto de lei de autoria de Waldemir Moka (PMDB-MS) tramita no Senado. A atividade, além de capacitação, sofre de falta de oferta pelo poder público, já que a maioria dos gestores não encontra espaço no orçamento para custeá-la. O que há são esforços do Programa de Saúde da Família. Capazes de prevenir muitas doenças e tratar até 80% delas, as equipes formadas por agentes comunitários de saúde, auxiliares ou técnicos em enfermagem, enfermeiros, médicos e, em alguns casos, dentistas e auxiliares atuam nas Unidades Básicas de Saúde, prevenindo, diagnosticando e reabilitando. Segundo o Ministério da Saúde, que coordena as ações, existem hoje 32.498 equipes em 5.288 municípios, o equivalente a 95% do território nacional. Como a execução da estratégia é compartilhada por estados e municípios, a cobertura do programa pode ser total ou parcial, dependendo da política de saúde da região.

REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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BRASIL

Enquanto o filme Xingu relembra ao país a história dos irmãos Villas Bôas, o parque indígena que eles ajudaram a criar está sitiado pelo agronegócio Por Joana Moncau

Saga

nativa 30

ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

BEATRIZ LEFÈVRE

A

os 56 anos, Pirakumã Yawalapiti lembra a primeira vez em que saiu da aldeia para conhecer a cidade grande. Tinha 7 quando chegou a São Paulo na companhia de Orlando Villas Bôas, que o chamava de neto. “Eu fui criado por ele. Meu pai, Kanato, foi filho adotivo dele”, explica. Com Orlando, aprendeu o português, e dele ouviu conselhos certeiros e histórias que ficaram na memória. “Ele dizia: ‘Pirakumã, não pense que essa floresta vai ficar a vida toda assim, amanhã a cidade vai chegar na sua porta’. Não pensava que a cidade chegaria tão perto, mas hoje ela está em volta de todo o Parque do Xingu.” Quando esteve em Manaus para a pré-estreia de Xingu, com lançamento na-

CHEGADA Orlando (Felipe Camargo), Cláudio (João Miguel) encontram os donos da terra


BRASIL

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PEDRO BIONDI/ABR

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Mato Grosso

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RENATO SOARES

A CIDADE BATE À PORTA No Alto Xingu, a fronteira agrícola deixa a floresta do Parque acuada

GILBERTO RIBEIRO DOS SANTOS/FOLHAPRESS

TUTELA Cláudio e Orlando também tinham a função de evitar contatos indiscriminados entre índios e brancos

cional previsto para este mês de abril, Pirakumã estava assistindo, de alguma forma, à sua própria história. Dirigido por Cao Hamburger (O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, Castelo Rá-Tim-Bum), o longa conta a saga dos irmãos Orlando (interpretado por Felipe Camargo), Cláudio (João Miguel) e Leonardo Villas Bôas (Caio Blat). A narrativa tem início no ano de 1944, quando partem para desbravar o sertão brasileiro na Expedição Roncador-Xingu. A partir daí, a aventura desses sertanistas apresenta um Brasil ainda hoje pouco conhecido: o indígena. O filme faz homenagem a esses três heróis nacionais, sem poupá-los das contradições das quais eles, mais que ninguém, eram conscientes. “Nós somos o antídoto e o veneno”, diz, a certa altura da trama, o narrador Cláudio Villas Bôas, referindo-se às mazelas que o contato com a civilização branca acarretava aos indígenas. Com essa lucidez, após mais de dez anos de luta, os Villas Bôas conseguiram concretizar a criação do atual Parque Indígena do Xingu (PIX), em 1961, clímax do filme. Pirakumã, que havia hospedado parte do elenco em sua aldeia, afirma satisfeito: “Agradeço muito aos que fizeram o filme, é isto que estamos procurando: algo para mostrar para o mundo dos brancos”. A leitura da liderança Yawalapiti é termômetro de que a intenção do diretor de considerar o ponto de vista indígena na construção do roteiro, bem como difundir a cultura indígena, foi bem-sucedida. São dois os fios condutores, de acordo com Cao. “Resgatar a história e a obra dos Villas Bôas e, através disso, mostrar e discutir o que a civilização branca tem feito”, diz (leia entrevista na página 34). REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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BRASIL

O parque, aos 51 anos

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ABRIL 2012 REVISTA DO BRASIL

nos limites do parque oito novos municípios, além de uma grande quantidade de fazendas e estradas. Segundo dados do ISA, o desmatamento na área da bacia do Xingu em Mato Grosso que não é terra indígena ou área de conservação chegou a 5,8 milhões de hectares, ou 47% do total, em 2009. “O desmatamento é um fator preocupante em relação à sustentabilidade. Diminuiu, mas a região é ainda muito valorizada com a soja e o agronegócio”, alerta o indigenista do ISA. Na região há, atualmente, de acordo com a ONG, 6,5 milhões de cabeças de gado e mais de 30% das lavouras de soja de Mato Grosso. “O fogo é hoje em dia a principal ameaça à região toda, tanto dentro como fora do parque. É uma consequência do desmatamento, que trouxe mudanças climáticas: diminuiu a umidade relativa, as matas ficaram mais secas.” Outro problema sério que os indígenas

Crianças da etnia Kamayurá

MARCELLO CASAL JR./ABR

Os Villas Bôas, sem dúvida, enxergavam à frente de seu tempo, no que se refere tanto à valorização dos povos e culturas indígenas como à nociva depredação de que a civilização branca seria precussora. Perfeita mostra disso é a criação do Parque Indígena do Xingu, primeira grande reserva demarcada no Brasil (28 mil quilômetros quadrados), quase o equivalente à área da Bélgica. Ali vivem 6 mil pessoas, de 16 etnias. “Os indígenas nunca tiveram fronteira, mas agora fronteira era a melhor coisa que poderiam ter”, conclui Cláudio Villas Bôas, enquanto elabora o projeto do parque a ser pleiteado. A ideia inovadora colocava em discussão um dos paradigmas indigenistas mais fortes à época, o integracionismo, que previa a assimilação do índio pela sociedade nacional. O costume antigo era demarcar pequenas áreas ao lado das cidades para que, pouco a pouco, os indígenas fossem se dissolvendo como comunidade, com a adoção natural da língua portuguesa e dos hábitos dos brancos, até se tornarem indistinguíveis dos demais brasileiros. “O bastidor do debate sobre a criação do parque era se esses povos deveriam ter seus territórios e daí ter condições de se perpetuar enquanto povos”, conta André Villas-Bôas, indigenista e coordenador do Programa Xingu da ONG Instituto Socioambiental (ISA). “Essa discussão teve reflexo na legislação até a Constituição de 1988, que muda o paradigma integracionista de uma vez por todas, na medida em que garante aos índios suas manifestações e políticas diferenciadas com o objetivo de respeitar e garantir a diversidade cultural.” Mesmo com esse direito à diferença assegurado pela Constituição do país, o desafio apontado pelos irmãos Villas Bôas continua, em essência, o mesmo: a especulação, sobretudo, segue assolando o Xingu. Hoje, a própria fronteira do PIX é visível a olho nu. Em meio a um mar de soja e pastagens, o parque se tornou uma “ilha verde”. Como Orlando Villas Bôas já previra a Pirakumã, a cidade bateu na porta da floresta: desde a década de 1980, surgiram


RENATO SOARES

APENAS 51 ANOS DEPOIS Pirakumã: “Não pensava que a cidade chegaria tão perto, mas hoje ela está em volta de todo o Parque do Xingu”

TRÊS HOMENS E UM DESTINO Orlando, Leonardo e Cláudio concretizaram a criação do Parque Indígena do Xingu e salvaram da extinção várias etnias e sua cultura, além da floresta ao seu redor. Abaixo, os atores Felipe Camargo, Caio Blat e João Miguel reproduzem no filme de Cao Hamburger a clássica foto dos irmãos

BEATRIZ LEFÈVRE

JESCO VON PUTTKAMER /ARQUIVO DA FAMÍLIA VILLAS BÔAS

Preparação para o Kuarup

MARCELLO CASAL JR./ABR

BRASIL

do parque enfrentam é a contaminação das águas. “As cabeceiras dos rios ficaram todas fora do limite do PIX e o Rio Xingu, que corre dentro do parque, funciona como uma espécie de ralo regional, onde deságuam os resíduos do plantio de soja mecanizada com agrotóxico”, diz André. Efeito das mudanças nas águas são os sintomas de envenenamento, sobretudo nos períodos chuvosos, com diarreias e dores de cabeça, especialmente em crianças. As pescarias também são cada vez mais custosas e magras, e os episódios de mortandade em massa de peixes, por causa da contaminação da água, se repetem. Obras de infraestrutura, como estradas, ferrovias e rodovias, continuam comprometendo o parque. “As terras indígenas vão cada vez mais se tornando ilhas, com grau de risco de vulnerabilidade maior”, lamenta o indigenista. As Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) são algumas dessas obras levadas a cabo na

região. Atualmente já existem cinco em operação nos rios formadores do Xingu. “As PCHs são uma ameaça aos povos indígenas, pois a pesca é uma fonte de proteína fundamental de subsistência. Com os rios barrados, a ecologia pesqueira muda totalmente. Se continuarem sendo feitas, em breve os índios vão ter várias restrições ao peixe”, alerta. Txonto Ikpeng, 25 anos, é um “xinguano legítimo”, como ele próprio diz. Mesmo jovem, observou transformações no ambiente: “As coisas mudaram totalmente. As águas não são mais transparentes, os rios são todos barrentos. Não é mais normal como era antes, é muito mais difícil”. Ainda assim, dá mostras de que a construção do parque rendeu bons frutos: “Cresci na aldeia, estudei na aldeia, me formei na aldeia, falo minha língua, minha cultura ainda é forte”. Há pouco tempo na administração da Associação Terra Indígena Xingu (Atix) – organização fundada pelas lideranças do Alto, Médio e baixo Xingu, em 1995, para vigiar e proteger as fronteiras do parque –, o jovem tem clareza: “Temos essa vontade de trabalhar na nossa própria organização para poder ter autonomia, ser protagonistas do nosso pensamento”. Para as novas gerações, que não acompanharam pela revista O Cruzeiro (1928-1975, primeira publicação semanal do país a valorizar o recurso da fotografia) a saga dos Villas Bôas, o filme Xingu é uma lembrança de que nem tudo na história do Brasil, no que se refere aos povos indígenas, são massacres e barbárie. Orlando foi o último dos três irmãos a morrer, em 2002. Assim como Cláudio (1916-1998), pôde observar muitas das mudanças que previam para a região do Xingu – Leonardo (1918-1961) não viu o parque se estabelecer. “Quando eles morreram, todos os povos xinguanos sentiram e choraram bastante”, conta Pirakumã, que, junto com seu povo, realizou para Orlando o Kuarup – ritual funerário feito em honra dos chefes e grandes aliados. A festa foi uma das maiores que o parque já viu. Colaborou Spensy Pimentel REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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ENTREVISTA

O veneno eo

antídoto Cao Hamburger exalta obra dos sertanistas que ajudaram a criar o Parque do Xingu e a salvar milhares de vidas, mas nunca negaram a ambiguidade de sua ação Por Joana Moncau

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ENTREVISTA

Durante um bom tempo, sua carreira esteve associada ao universo infantil. Como foi a transição para o público adulto?

Não vejo muita diferença em trabalhar para o público infantil ou adulto. Os processos de criação e desenvolvimento são muito parecidos. No momento estou produzindo, e não dirigindo, uma série para crianças e adolescentes para o canal Futura e outra juvenil para a TV Cultura. A questão indígena é um tema bastante desvalorizado no Brasil. O que o levou a aceitar o desafio de abordá-la?

Aceitei o desafio quando vi a chance de quebrar esse tabu e fazer as pessoas entenderem os povos indígenas por meio da história dos irmãos Villas Bôas. Eles são personagens com os quais é fácil se identificar, são muito humanos, e a gente fez questão de tratá-los como homens: com suas contradições, fraquezas e, nesse caso, com um heroísmo que nem é preciso ficar dourando a pílula deles.

Depois do Parque do Xingu começaram a existir as grandes reservas indígenas. Não teve na Segunda Guerra, no Holocausto, alguém como os Villas Bôas. Schindler salvou quantas vidas? Pouco mais de mil? Eles salvaram milhares REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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BEATRIZ LEFÈVRE

N

ascido em São Paulo à beira do golpe militar, em 1962, Carlos Império Hamburger teve desde criança o incentivo de seus pais para as artes. Antes de chegar ao cinema, ainda na escola, tentou ser músico e até formou, com Nando Reis, a banda Os Camarões. Mas não dava para a coisa, diria. A porta de entrada para o mundo do cinema estava na animação: seu curta Frankenstein Punk foi premiado no Festival de Gramado, em 1987. A fama veio com o programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, sucesso da década de 1990 na TV Cultura. A série rendeu-lhe o primeiro longa-metragem, homônimo, em 1999. Em 2006, Cao conquistou espaço também no universo adulto: criou e dirigiu a série Filhos do Carnaval, exibida no canal a cabo HBO, e lançou seu segundo longa, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006). Ambientado na ditadura, é um filme para adultos narrado sob a perspectiva de um garoto de 12 anos que acompanha a Copa do Mundo de 1970 e cujos pais estão fugindo da repressão. Além de indicado ao Urso de Ouro no Festival de Berlim, em 2007, foi candidato brasileiro a uma vaga no Oscar 2008. Seu terceiro longa, Xingu, narra a saga do irmãos Villas Bôas e tem lançamento nacional neste mês de abril. Com ele, Cao esteve pela segunda vez na Berlinale, o festival internacional de cinema de Berlim, integrando a seção Panorama. Em entrevista exclusiva à Revista do Brasil, o diretor fala sobre o país do século 21, a experiência de gravar um filme em meio às intempéries e o que aprendeu da nossa história com essa obra. Deixa também um convite irresistível para o público: “É um filme muito gostoso de ver. Quem gosta de filme de aventura vai gostar, quem gosta de filme que emociona vai gostar. Podem ir que não vai ter decepção, não é programa de índio”.


ENTREVISTA

Esse também é seu primeiro filme baseado em vidas reais. Como foi essa experiência?

Foi superdifícil. Primeiro, pela responsabilidade, porque você está tratando de vidas que existiram. Depois porque, para o filme ficar legal, você tem de ir mexendo na realidade, na História, com agá maiúsculo. Fizemos uma pesquisa muito grande com a família dos Villas Bôas e as pessoas que trabalharam com eles. E com os índios – a gente queria também o ponto de vista deles. Quando percebi que é impossível mostrar em um filme 40 anos da vida de três pessoas, relaxei um pouco. O grande objetivo foi pegar a essência dos irmãos, do meu ponto de vista. Enfim, é uma adaptação livremente baseada na vida deles.

A cultura dos povos do Brasil é um tesouro que a gente simplesmente joga fora, não presta atenção, não quer nem saber. Somos totalmente analfabetos, selvagens, ignorantes e cegos em relação à cultura deles

E por que a opção de contar a história dos Villas Bôas como “saga”?

Trouxemos um ponto de vista que eu considero mais uma fábula do que um filme épico, histórico. Porque através da história dos irmãos Villas Bôas a gente trata do contato da civilização branca com os indígenas. O mais importante atualmente talvez seja isto: percebemos que estávamos tratando de uma história de 50 anos atrás, mas muito atual e urgente. Esse assunto da agressividade, da onipotência e do poder destruidor da civilização branca é o que há de mais atual. O irmão que ficou mais conhecido para o público em geral foi Orlando Villas Bôas, mas você optou por destacar o Cláudio, tomando-o como narrador do filme. Por quê?

O Cláudio era um mistério. Na nossa pesquisa e na nossa composição, é o cara que está enfiado lá no mato, enquanto o Orlando fazia a retaguarda, a imprensa, a política toda. Quando descobrimos o Cláudio, foi realmente uma paixão, uma vontade de entender esse cara tão complexo. Foi irresistível desvendar aquele sujeito que era o menos conhecido, tão culto, aparentemente tão frágil, de óculos, pequeno, e ao mesmo tempo tão forte e corajoso, um pensador sagaz, um cara do mato (ele era o que melhor andava no mato), que levava mochilas de livros, enfim, um cara muito interessante. O Orlando também era um cara incrível, com o poder da comunicação e da articulação, não só com os brancos, mas com os índios também. E o Leonardo?

O Leonardo morreu muito cedo, em 1961, ano em que foi inaugurado o Parque Indígena do Xingu. O que a gente sabe dele a gente pôs no filme, mas não é um cara de quem tenhamos muitos depoimentos. (A família teve ainda o caçula Álvaro Villas Bôas, 192636

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1995, envolvido na questão indígena. Álvaro chegou a presidir a Funai por um curto período, em 1985.) Por que vocês optaram por gravar a maior parte do filme fora do Parque Indígena do Xingu?

A aproximação com os povos do Xingu começou três anos antes da filmagem, com a pesquisa para saber a versão deles da história. Nessas idas, fomos entendendo o funcionamento daquele lugar. Conhecendo muito bem como uma equipe de cinema se comporta – não por falta de educação, mas pela própria natureza da atividade –, a gente achou que seria muito invasivo uma equipe de 200 pessoas ficar dez semanas lá dentro. Optamos por filmar a maior parte em um lugar muito parecido, que fica no estado do Tocantins. As cenas nas aldeias, nos interiores das ocas e algumas em volta das aldeias, além das aéreas, foram feitas no Xingu. Com isso, conseguimos ter o Xingu no filme sem invadir e atrapalhar a vida dos xinguanos. Filmar na mata e no cerrado os aproximou da história dos Villas Bôas e do mundo indígena?

Acho que sim, mas ainda somos muito ignorantes, a gente estaria no primeiro dia de aula do pré-primário dessa visão de mundo. Antes de fazer minha primeira viagem ao Xingu, visitei dona Marina Villas Bôas para “pedir” a bênção dela. Estávamos conversando e comentando mais ou menos como tínhamos armado a viagem, e ela disse: “Fiquem tranquilos, no Xingu nada é por acaso”. Essa frase nos acompanhou por toda a pesquisa, no roteiro e durante a viagem. É realmente um novo jeito de encarar a filmagem: se você tentar controlar, fica estressado e acha que o mundo está contra você, fica dando murro em ponta de faca. (Marina foi para o parque trabalhar como enfermeira por uma semana. Casou-se com Orlando em 1969 e por lá ficou até 1975.) Como foi essa experiência de não poder controlar o ambiente de filmagem?

Precisa ter muito jogo de cintura durante a filmagem. Tivemos muitos contratempos com os carros, os equipamentos, as locações. Várias vezes chegamos para filmar em um lugar que tínhamos escolhido e tudo estava mudado, ou queimado, ou a água tinha subido, e tínhamos de procurar outro lugar. Se você não estiver com o espírito aberto, pode se dar mal. Fomos nos adaptando e sendo levados. O roteiro teve também algumas mudanças e adaptações durante as filmagens, o que costuma ser muito perigoso, porque, se você não estiver muito atento, pode se perder. Mas a gente conseguiu chegar até o final sem se perder no caminho (risos).


ENTREVISTA

Eles compraram a ideia de fazer o filme quando confiaram que o ponto de vista deles estaria lá. No momento em que eles acreditaram nisso, a gente sentiu sua determinação em fazer o melhor possível. Muitas vezes, durante todo o processo de pesquisa, e até nas filmagens, adaptamos cenas, porque uma pessoa lembrava de uma história nova, ou um detalhe que o pai contou sobre determinado episódio. Eles têm um poder de concentração grande e entenderam muito bem o jogo de encenação da câmera. Acho que a força deles veio da ideia de que estavam contando uma história que queriam contar. Em um trecho do filme, Cláudio Villas Bôas diz que eles eram “o veneno e o antídoto” e afirma não saber o que seria pior. Como você lidou com essa ambiguidade?

Essa contradição foi uma das coisas que mais nos encantaram como cineastas e roteiristas: essa ambiguidade, para a dramaturgia, é muito boa. Os Villas Bôas passaram a vida inteira como veneno e antídoto. Nas entrevistas que dão ao final da vida, seguem dizendo que toda a vida deles foi para retardar um processo inevitável, mas, ao mesmo tempo em que chegavam, estavam trazendo o mal que tinham de combater. Acabaram se colocando em um lugar muito difícil, sempre na fronteira de uma guerra. No fim das contas, estavam satisfeitos com a obra que construíram, mas é muito angustiante porque não tem muita saída, é uma luta meio inglória. Como você avalia essa contradição 50 anos depois da formação do parque?

Pode haver críticas atualmente, mas, sem dúvida, foi uma obra que salvou milhares de vidas e mudou o paradigma da política indigenista do Brasil. Antes deles, antes do Parque Indígena do Xingu, a política encabeçada por Rondon (com toda a boa intenção) era fazer reservas pequenas e transformar o índio em mão de obra. Você imaginar e fazer um parque daquele tamanho, naquela época que não tinha essa ideia, é muito visionário. Depois do Parque do Xingu é que começaram a existir as grandes reservas indígenas como as que existem atualmente. Nesse sentido, foi uma obra definidora, que salvou milhares de vidas. Acho que não teve na Segunda Guerra, no Holocausto, alguém como os Villas Bôas. Schindler (Oskar, empresário alemão) salvou quantas vidas? Pouco mais de mil? Eles salvaram milhares. E a relação com a cultura indígena?

O que mais me chamou a atenção é como a gente menospreza e desperdiça a cultura indígena. A cultura dos povos do Brasil é um tesouro que a gente simplesmente joga fora, não presta atenção, não quer nem saber. Somos totalmente analfabetos, selvagens, ignorantes e cegos em relação à cultura deles. O grande desafio do Brasil de hoje é transformar essa sabedoria, essa cultura e filosofia indígenas em alguma coisa que o branco consiga entender e seja útil para a gente. Isso seria o pulo do gato, o Brasil entraria no século 21 com uma vantagem e um tesouro para dividir com o mundo. É quase como se pudéssemos ter a fórmula para salvar o mundo. No entanto, chegamos ao século 21 com um sem-número de situações de preconceito e agressão contra os povos indígenas...

O problema é que o Brasil de hoje é um país que pensa no progresso com a mentalidade do século 19: criar indústria, produção, ter operários, cam­ poneses, exportação. Os Villas Bôas são sujeitos do século 20 com a cabeça no século 21. Nós estamos no século 21 com a cabeça no 19, então realmente é desanimador. Por outro lado, tem muita gente pensando e há uma urgência: tem de acontecer alguma coisa, porque o negócio está sério. E qual é seu próximo projeto?

É o filme “Isolados”, uma ficção em que os índios que ainda vivem isolados são um elemento, mas não é sobre eles. Eu queria tentar entender, primeiro, e tentar fazer com que o público entendesse um pouco essa visão de mundo dos índios. Foi Xingu que o sensibilizou para a temática indígena?

Eu me sensibilizei a partir do Xingu, totalmente. Será meu segundo filme na selva, quem sabe seja suficiente para eu aprender alguma coisa.

FOTOS BEATRIZ LEFÈVRE

E a relação com os atores indígenas, como foi vê-los interpretar histórias tão próximas às que tinham vivido?

Transformar a sabedoria indígena em algo que o branco entenda seria o pulo do gato. O Brasil entraria no século 21 com uma vantagem e um tesouro para dividir com o mundo. É como se pudesse ter a fórmula para salvar o mundo

Seus filmes têm tido destaque em festivais e premiações mundo afora. Como você percebe que o cinema nacional está sendo visto fora do país?

O cinema brasileiro é respeitado fora e desperta grande interesse no público e no mercado. À medida que vamos equilibrando novamente a produção nacional, o interesse só aumenta.

Xingu em Berlim

O correspondente da Rede Brasil Atual Flavio Aguiar assistiu ao filme na Berlinale, conversou com o ator João Miguel, que vive Cláudio Villas Bôas, e com o diretor Cao Hamburger. Assista à reportagem e a cenas do filme em http://bit.ly/xingu_na_tvt REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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PERFIL

Entre outras coisas ele diz que sonha com o dia em que os administradores públicos se sentarão à mesa com cientistas de todas as áreas para tentar, antes de executar determinada obra ou projeto, entender seus impactos amanhã, daqui a cinco, cem, milhares de anos Por Paulo Donizetti de Souza

Descobridor de

BRASIS M Texto publicado em 2002 na Revista Fórum

uito curioso, o menino chamado Brasil quer tanto aprender sobre a vida e sobre si mesmo que resolve engatar conversa com o professor Aziz Nacib Ab’Saber, de quem muito já ouvira falar. Afinal, o mestre, filho do libanês Nacib e da brasileira Juventina, está para completar, no próximo 24 de outubro (de 2002), 78 anos de uma rica história de vida. Uma vida estudando o guri de nome Brasil. Para se ter uma ideia, só de universidade Aziz já tem mais de 50 anos e publicou uns 320 trabalhos – entre estudos, documentos, teses, análises, projetos, livros. 38

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REVOLUCIONÁRIO Aziz e sua turma de geologia fazem estudo do meio numa excursão a Sorocaba em 1965

NELSON CUSTÓDIO DA SILVEIRA FILHO/GRUPO FIGUEIRA DA GLETE


PERFIL

ANDRIANO LESSA/AE

Um dia achou um mestre, de nome Hilton Federici, cujos meios de dividir conhecimento batiam com o seu. Ao terminar o ciclo (naquele tempo eram cinco anos de ginasial que se mesclavam com o colegial), Aziz ficou curioso em saber como entraria na faculdade que havia formado Hilton, o professor que o despertara para a dualidade entre a história e o espaço físico e ecológico em que ela transcorre com uma aula que marcou sua vida – uma excursão de campo, com destino a Itu, Salto, Campinas, Jundiaí e São Paulo. Depois de verificar a trajetória de Hilton Federici, e de desembarcar na USP, Aziz logo descobriria que se daria bem numa disciplina então híbrida – Geografia e História. Estava dado o passo que transformaria o pequeno curioso nascido em São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba, numa das figuras mais emblemáticas não apenas da USP, nas palavras de Octávio Ianni, mas de toda a universidade brasileira, por integrar uma estirpe de intelectuais, contemporânea a Antonio Candido e Florestan Fernandes, que se celebrizaria pela primazia do pensamento humanista em qualquer área de conhecimento do mundo acadêmico.

É membro da Academia Brasileira de Ciên­cias, foi diretor do Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), tornou-se professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde já foi reconhecido como o geógrafo de maior relevância nacional. Frequenta como se fosse sua segunda casa o Instituto de Estudos Avançados da USP e continua ganhando prêmios, como um da Unesco, por sua contribuição à ciência e ao meio ambiente, e uma condecoração do presidente Fernando Henrique, de quem é crítico, por entender que ele não cuida bem do menino Brasil.

O menino pergunta ao mestre o que vai ser quando crescer. “Que nada”, desfaz o professor, “quando se é jovem não se sabe direito no que as escolhas vão dar.” E confessa, colocando a mão sobre os olhos, meio que os protegendo da luz, meio que se esforçando para puxar algo da memória, que nunca imaginou ser geógrafo. Escolheu História e Geografia, ainda nos tempos de ginásio, em Taubaté. E traz à conversa uma excursão organizada por seu pai a Ubatuba, quando, aos 6 anos, conheceu o mar. Memorizou os efeitos paisagísticos da viagem que contrastaria anos mais tarde com sua chegada a São Paulo, instigando a sua percepção das diferenças climáticas.

Florestan Fernandes Tímido, Aziz dava-se melhor nas aulas de História que de Geografia. Falava pouco com colegas de outras áreas. Acabou estreitando mais o diálogo com os professores Plínio Airosa e o francês Pierre Mombeg. Antonio Candido de Mello e Souza se tornaria uma referência. “Eu o encontrava em grandes conversas com o professor Lourival Gomes Machado, mas não tinha coragem de falar com colegas em estágio mais avançado que eu”, recorda. “Entrei em 1940 e alguns deles já estavam saindo.” Mas o filho do seu Nacib acabou encontrando um grande parceiro para dividir a velha carteira de duplo assento: Florestan Fernandes. Nas aulas de Antropologia de Emílio Willems – um dos precursores dos estudos de contatos étnicos e culturais da Região Sul –, Aziz boiava um pouco, enquanto Florestan acompanhava com facilidade. “Esse colega extraordinário me influenciou mais que muitos professores. Além de morarmos no mesREVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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mo bairro e dividirmos a mesma carteira, tomávamos juntos o bonde, da Praça da Sé até a Quarta Parada.” Com os olhos cerrados, olhando para dentro da memória, o mestre Aziz busca o nome de Haroldo de Azevedo, sua capacidade didática e “como ele reparou em mim”, incentivando no modo de descobrir as coisas. E, já que não quer ser injusto na conversa com o menino, o sábio aproveita a memória “aquecida” para recuperar alguns outros nomes importantes em sua busca incessante do conhecimento. Os franceses Pierre Gourou (geógrafo tropicalista, “suas considerações sobre o mundo tropical aguçaram meu espírito crítico quanto à visão europeia a respeito dos trópicos”); Roger Dion (“um erudito, andava de bonde pela cidade toda e fazia observações fundamentais para expandir meu interesse pela várzea do Tietê e pela metrópole que então surgia”); Louis Papy (“trouxe a influência da humildade à pesquisa geográfica, cuidadoso, escreveu À Margem do Império do Café, sobre o litoral e, meu Deus!, ia muito mais longe que eu nas incursões de campo”); Fernand Brodell (“o maior, intelectual da geografia que deixou suas marcas na história, na antropologia, nas ciências sociais”); e o geó­grafo paleontólogo da Universidade de Cincinatti, Kenneth Caster (“que estudava e ensinava geologia histórica desde que o planeta surgiu da rebentação de uma galáxia, alguns bilhões de anos atrás, com suas aulas dando sempre uma ideia de sequência, que eu admirava muito, sempre conjugando as coisas do mundo físico, incluindo aí o mundo dos vivos”). O professor olha de novo para o menino e, depois dessa volta toda, observa que, se tivesse de dizer o que mais o marcou em sua formação cultural, diria que foi o fato de ter entrado muito precocemente no mundo da pesquisa (teria sido numa excursão de São Luiz do Paraitinga a Ubatuba, aos 6 anos?). Volta a fechar os olhos e relembra o primeiro trabalho que concluiu, ainda nos anos 40, com repercussão internacional: Regiões de Circundesnudação Pós-Etácica no Planalto Brasileiro. Como parte dos professores achava que o jovem Aziz “viajava” muito (“eles não viam que eu era um estudioso!”), o aluno não 40

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apresentou esse trabalho como conclusão do curso. Publicou-o no número 1 da revista Boletim Geográfico e, segundo lhe relatou o professor Haroldo, acabou encontrando admiradores no México. Mas o professor não esquece de dizer ao menino que vida de cientista não é só estudar, aprender e ensinar. De vez em quando, uma pontinha de indignação faz parte. “Recebi recentemente um atlas da arenização do Rio Grande do Sul, e o único trabalho que não recebe crédito é o meu, que havia feito quatro anos antes, A Revolta dos Ventos, que explica o quanto as areias das campanhas gaúchas têm a ver com o mau uso do solo. Ou uma pontinha de mágoa. “No primeiro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, participei de eventos a convite de uma ONG internacional; no segundo, ninguém da organização me chamou de novo.” O cientista faz questão de mostrar ao menino que o aproveitamento da imagem, que começa a lhe faltar aos olhos, foi sempre peça-chave de suas pesquisas, de seus trabalhos, de suas aulas. Não

há região que tenha estudado ou visitado que não tenha sido fotografada por ele mesmo. Quando possível, recorre às fotos feitas por satélite. Uma história inteira de suas pesquisas pelo Brasil adentro esteve exposta na Bienal do Livro, em São Paulo. Não se sabia se era exposição fotográfica ou aula de geografia histórica. Seu trabalho mais recente, aliás, tem como base as fotos que contam tudo que é possível saber a respeito dos 8 mil quilômetros de litoral brasileiro. Ou melhor, não são bem as fotos. Litoral Brasileiro/ Brazilian Coast traz, é verdade, 193 fotografias de 48 fotógrafos renomados e outras 60 imagens captadas por satélite a 850 quilômetros de altitude. Mas antes de lhe entregarem as fotos, que atrasaram quatro meses, o autor já havia escrito tudo sobre a geoecologia da costa brasileira, suas praias, mangues, encostas, ilhas, bocas de rios, restingas, enseadas, fauna e flora, e como se formaram ao longo dos últimos milhares de anos. A impaciência com a demora só não foi maior porque o trabalho permitiu em


PERFIL

ADI LEITE/FOLHAPRESS

SUGESTÃO DE AZIZ No interior de Pernambuco, Lula estuda geografia humana in loco durante a primeira Caravana da Cidadania, de 1993. As caravanas seguiriam pelo país até 1996

parte o custeio da permanência do filho Alexandre em Washington, para uma especialização no Centro de Patologia Pulmonar da capital norte-americana.

Lula, visite Garanhuns

Também não faltou paciência a Aziz Nacib Ab’Saber quando disse a Luiz Inácio Lula da Silva, ainda antes da eleição de 1989, que o principal líder da esquerda do país­precisava visitar Garanhuns. “Lula, você precisa passear na sua terra, ver como ela é, como está sua gente”, ensinou. O petista, temendo ser rotulado por praticar algo parecido com demagogia, adiou a sugestão. Seis meses depois, tocou o telefone da casa do professor: “Vou a Garanhuns na semana que vem e quero que o senhor venha comigo”. O mestre desmarcou todos os compromissos – assistência a alunos, palestras, conferências, as coisas que mais gosta, até hoje, de fazer na vida – e o acompanhou. Foi apenas a primeira de uma série de viagens, verdadeiro doutorado em geografia humanista, que se tornariam as Caravanas da Cidadania.

Ali, o mestre Aziz já sabia que a ciência básica sem a ciência aplicada não é nada. Que as questões ambientais não são muito mais sérias que o mundo físico, ecológico e cultural. Que estudar e encontrar soluções para o social – como vivem as pessoas, inclusive as que não têm trabalho nem comida para dar aos filhos, nem lazer, nem água para o banho, nem esperança – é nada mais do que defender o pleno equilíbrio ambiental.

Aziz sonha hoje encontrar alguém que abrace a ideia dos Clubes Comunitários, que podem melhorar esse equilíbrio nas periferias miseráveis de São Paulo, às quais visita sistematicamente já sem as matérias de Geografia na cabeça, apenas o saber humanista. Sonha com o dia em que os administradores públicos se sentarão à mesa com cientistas de todas as áreas para tentar, antes de executar determinada obra ou projeto, ou de se omitir, entender os impactos ambientais (em todos os sentidos) de seus atos amanhã, daqui a cinco, vinte, cem, milhares de anos. O mestre se irrita ao se lembrar de um debate sobre Amazônia, anos atrás. “Um preposto” do governo federal o tirou do sério ao afirmar que investir em projetos de autossustentabilidade envolvendo as populações locais demandaria muito trabalho e dinheiro para pouco retorno – o que revelava o caráter desumano do pensamento dos detentores do poder. “Talvez fosse mesmo pouco retorno para quem pensa com a cabeça de burocrata, mas é questão de sobrevivência para quem está em sua terra.” A tensão do debate agravou-lhe o distúrbio ocular que hoje lhe restringe quase metade da visão e o torna dependente do amparo de familiares e amigos para ler e locomover-se em suas peripécias de conhecimento. Quase metade da visão... O mestre continua a cerrar os olhos, a protegê-los com a mão direita, enquanto o menino chamado Brasil imagina: “Como ele encasquetou comigo! Haverá alguém que me enxergue melhor do que o professor Aziz Nacib Ab’Saber?”

Obra compartilhada Aziz Ab’Saber era assíduo no Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi lá que recebeu o repórter para a conversa de três horas que deu origem a este texto, feito para a revista Fórum de julho de 2002, com o título “Conversa de Aziz Ab’Saber com o menino chamado Brasil”. Aziz era presidente emérito da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, para a qual cedera, um dia antes de morrer, em DVD, sua obra consolidada entre 1946 e 2010.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua mulher, Marisa Letícia, divulgaram nota em homenagem ao cientista, morto em 16 de março. “Convivemos intensamente no Instituto Cidadania, no Governo Paralelo e, sobretudo, nas Caravanas da Cidadania. A presença do professor Aziz, com sua inteligência e sabedoria, transformou essa experiência em algo extraordinário”, diz a nota. “Ajudou a construir muitas das políticas públicas brasileiras.” REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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HISTÓRIA

U

ma investigação ambiciosa, com ares detetivescos, reuniu um grupo de fotógrafos e pesquisadores em torno de uma complexa tarefa: encontrar os melhores livros de fotografia da América Latina. Durante quatro anos, a busca coordenada pelo historiador e crítico espanhol Horacio Fernández revirou uma grande quantidade de acervos pessoais de artistas, editores e fotógrafos, além de um bom número de bibliotecas e sebos. O resultado está em Fotolivros Latino-Americanos, lançado pela Cosac Naify (255 págs.) em coedição com a editora mexicana RM, a americana Aperture e a francesa Images en Manœuvre. A empreitada fascinante teve a colaboração de um time de alto calibre. Participaram da pesquisa o curador argentino Marcelo Brodsky, o fotógrafo e produtor cultural Iatã Cannabrava, a editora norte-americana Lesley Martin, o fotógrafo inglês Martin Parr e o editor espanhol Ramón Reverté, além de outros fotógrafos, designers e editores de 11 países sul-americanos. “O Horacio ficou hospedado três meses em minha casa vasculhando meus livros”, lembrou Iatã Cannabrava, que participou em março, ao lado de Fernández, de um debate sobre o livro no Instituto Cervantes, em São Paulo. “Descobri que tinha pérolas.” O tesouro garimpado pelo grupo traz 150 títulos da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Peru e Venezuela. São fotolivros (trabalho conjunto entre fotógrafo, designer e editor) publicados desde a década de 1920 até os dias atuais. “Talvez uma varredura maior encontre algo nas regiões não representadas, mas essa foi a pesquisa possível”, argumenta Cannabrava, ao explicar a ausência de imagens de Uruguai, Paraguai e Costa Rica. O esmero do grupo de pesquisadores em contemplar o maior número de publicações não foi o bastante para evitar outras lacunas lamentáveis, como Xingu, Território Tribal, de Maureen Bisilliat, e Outras Américas, de Sebastião Salgado. A pujança da produção brasileira de fotolivros é uma das descobertas do estudo. Um destaque indiscutível na opinião de 42

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Olho

latino Pesquisa reúne em livro a fragmentada história da fotografia na América Latina Por Carlos Minuano

Noturnos São Paulo (2002), de Cássio Vasconcelos, convida a um passeio visual pela capital paulista


HISTÓRIA

Cannabrava é O Mergulhador (Atelier da Arte, 1968, 108 págs.), coletânea de poesias de Vinicius de Moraes com fotografias do filho Pedro. Outro clássico que ressurge em Fotolivros Latino-Americanos é o Paranoia, um retrato delirante da São Paulo de 1960, escrito por Roberto Piva (19372010), com fotos de Wesley Duke Lee. A obra foi reeditada recentemente pelo Instituto Moreira Salles. Mais uma curiosidade que o recorte brasileiro revela é que, em sua maior parte, são obras das décadas de 1970 e 1980, invariavelmente feitas na raça, com parcos recursos. As exceções, destacadas por Cannabrava, são trabalhos de Claudia Jaguaribe, Cássio Vasconcelos e Pedro Martinelli. Todos já do século 21 e com um traço em comum, o estilo autoral. Mas, na opinião dos autores, o cenário árido, no Brasil e no mundo, está mudando graças ao advento das novas tecnologias. “Nunca se produziu tanto”, comemora Horacio Fernández. “A possibilidade de fazer um bom fotolivro está hoje ao alcance de qualquer pessoa”, concorda Cannabrava.

História, mazelas e bordoadas

El rectangulo en la mano (1963), de Sergio Larrain. De meninos pobres a europeus galantes, registros nas ruas de Santiago, enquadrados pelo olhar sensível do chileno Sergio Larrain

Retromundo (1986), de Paolo Gasparini

A pesquisa cristalizada em Fotolivros Latino-Americanos debruçou-se sobre nove eixos temáticos: O Livro do Século 20; Palavra e Imagem; A Cidade e os Livros; Os Esquecidos; Fotolivros de Artista; A Imagem é o Texto; Tempos Difíceis; Cor; e Os Contemporâneos. O leque amplo proporciona um mergulho em um século de histórias e imagens. Ao desenterrar títulos esquecidos, perdidos, estranhos, proibidos, secretos, busca quebrar um círculo vicioso de esquecimento, inacessibilidade e desconhecimento, responsável por remeter a um limbo distante a maior parte dos fotolivros produzidos na América Latina. Como peças de um quebra-cabeça até então separadas, Fotolivros monta um amplo retrato estético, social e cultural. Estão lá imagens da revolução mexicana, publicadas em fascículos no inacabado Álbum Histórico Gráfico, de Augustin Victor Casasola, que circulou na década de 1920. Mesma força pode ser conferida na obra Cusco Histórico, de 1934, que revela um período indígena glorioso. A cidade andina também aparece em AltuREVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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HISTÓRIA

Sartre visita a Cuba (1960), de Alberto Korda, Ernesto Fernández e texto de Jean-Paul Sartre. Durante viagem a Cuba, Sartre e Simone de Beauvoir se encontram com os líderes da revolução cubana. O Che, de Korda, é mais majestoso que suas visitas

Frente a las agresiones imperialistas un solo grito en América: ¡Venceremos! ¡Cuba es la que acusa! (1961). Havana, Imprensa Nacional de Cuba

Neruda, entierro y testamento (1973), da fotógrafa venezuelana Fina Torres

ras de Macchu Picchu, do poeta chileno Pablo Neruda. Feliz encontro entre literatura e fotografia, de 1950. Os fotolivros já foram, por exemplo, ferramenta de propaganda, com tintas revolucionárias nos casos de Despertar Lagunero, do jornalista mexicano Henrique Gutmann, de 1937, mas principalmente em Sartre Visita Cuba, de 1960, em que Alberto Korda registra um Che Guevara majestoso e imponente, na época em que ocupava o cargo de diretor do Banco Nacional. “Korda estruturou tudo perfeitamente para agigantar o revolucionário”, diz Fernández. Muitas dessas publicações ajudaram a elevar o nível das reportagens. Candomblé, de José Medeiros (1957), mostra um tempo de glória das revistas brasileiras, em que a imagem valia mais que o texto. O livro publicado pela revista semanal O Cruzeiro retrata uma cerimônia de inicia-

le, o chileno Paz Errázuriz aborda relações afetivas de enfermos. “É um ensaio experimental sobre a loucura ou o amor louco”, diz o autor. Também do Chile, Neruda: Entierro y Testamento (1973), com texto do jornalista Alavaro Sarniento e fotos de Fina Torres, mostra o cortejo fúnebre do poeta, morto 12 dias após o golpe que derrubou Salvador Allende. As imagens vislumbram ainda o enterro das aspirações socialistas conquistadas nas urnas. Apesar do toque de curador latente na obra, Horacio Fernández ressalta tratar-se de um projeto coletivo. “É um trabalho de história cultural e política”, afirma. “São temas importantes para o tempo que vivemos.” Amazônia, de Andujar (1978), “fala de antropologia, de ecologia, de cultura, de problemas sociais, de questões políticas, e tudo isso sem texto algum”, comenta.

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ção – até então praticamente secreta – em um terreiro na Bahia. Marcadas a ferro, fogo, mazelas de todos os tipos e bordoadas em geral, as injustiças sociais não poderiam deixar de figurar. Em texto que acompanha o capítulo Os Esquecidos, o pesquisador espanhol comenta: “Não é por acaso que os livros com maior ambição continental abordem esse tema”. América, un Viaje a través de la Injusticia, de Henrique Bostelmann (1970) e Para Verte Mejor, América Latina (1972) são expedições fotográficas que mostram o continente sem retoques. Denunciam, por exemplo, a secular exploração e exclusão de povos indígenas. O tema é tratado com outra perspectiva em Yanomami (1978), no qual Cláudia Andujar escancara o drama desencadeado pela invasão do garimpo. Já Infarto del Alma (1999) desnuda outro duro tipo de exclusão, o dos internados em hospitais psiquiátricos. Ne-


HISTÓRIA

A cidade da Bahia (1984), de Mário Cravo Neto, um registro da cultura afro-brasileira

Candomblé (1957), de José Medeiros, revela uma cerimônia de iniciação de três jovens filhas de santo num terreiro da Bahia. As fotografias foram publicadas originalmente na revista O Cruzeiro, em 1951. A capa é de autoria do arquiteto Anísio Teixeira, irmão do fotógrafo

Nicarágua – La guerra de liberación (1982). Registros de um pós-guerra que derrubou o ditador Somoza, pelas lentes do fotógrafo e antropólogo Richard Cross

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VIAGEM

A capital da

Por Adriana Cardoso

P

ergunto a um rapaz num ponto de ônibus se ele conhece o endereço que procuro. Ele saca do iPhone, amplia o mapa e indica: “Você vira à esquerda na próxima esquina, anda um pouco e pronto”. Num país que transpira segurança, a confiança é mútua. Em Estocolmo, a capital sueca, todo mundo é nivelado por cima. O país tem o melhor padrão de vida da Europa, movido a altos impostos e Estado de bem-estar social. 46

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Os suecos veem para onde vai a grana dos impostos que pagam. A cidade, de cerca de 800 mil habitantes, é limpa, organizada, segura, civilizada. Está aí, talvez, uma das explicações para ver tantos suecos fazendo o trabalho que na maioria das metrópoles europeias fica para os imigrantes – em restaurantes, nos ônibus, nas lojas, nos cafés. Vive-se bem, mas é preciso trabalhar, tudo é muito caro. O preço de tanta beleza e eficiência é visto no recibo do restaurante: 25% do valor total são impostos. Transporte público: 6%. Salgado? Sim. Mas quando se caminha pelas ruas ou se utiliza o coletivo você nem acha ruim. Se o painel no ponto informa que tal ônibus vai passar 11h06, vai passar. E se o ônibus atrasa cinco minutos, o povo já começa a reclamar. Estocolmo tem excelentes museus. O Vasa Museet fica dentro de um barco resgatado em 1961 depois de naufragar há 333 anos. Outro, o Skansen, a céu aberto, mostra como se vivia no século 19 em várias regiões do país. Há um zoo com espécies da Escandinávia (agora eu sei diferenciar rena de alce) e casas da época.

OLIVIER BRUCHEZ/CREATIVE COMMONS

Estocolmo é de cinema. Seu povo é bem-nascido, instruído e – com serviços que funcionam – reclama mais dos dias cinzas que dos impostos

JEENA PARADIES/CREATIVE COMMONS

Escandinávia

A autêntica rena do Papai Noel no Zoo de Estocolmo


Durante o passeio de barco pelo arquipélago, Christopher, o guia conta a história de cada lugar e o privilégio de viver em Estocolmo. Reconhece que os suecos ainda vivem “num sonho” por conta de seus programas sociais, mas diz que a vida era mais simples na época em que a social-democracia comandava. O país é uma monarquia parlamentarista. O chefe de Estado é o rei Carlos Gustavo XVI. O de governo é o primeiro-ministro conservador Fredrik Heinfeldt, desde 2006. “O melhor eram as moradias sociais. Hoje tudo é caro.” Um imóvel médio não sai por menos de € 300 mil. Aluguéis em apartamentos “kinder ovo” cus­tam ­€ 1.500. Christopher também critica dois orgulhos nacionais, o design e a arquitetura. “Hoje, muda-se a casa toda a todo momento para seguir as tendências. Ah, esse capitalismo!” O barco segue pelos canais gelados do Mar Báltico. Christopher diz que o mar das redondezas só não é mais limpo por-

nha Vida de Cachorro, de Lasse Halström (1985), marcaram gerações. Não encontrei na rua nenhuma Ingrid Bergman ou Greta Garbo (a maioria está mais para as mocinhas, agora vozinhas, do ABBA, ou a vocalista do Roxette), mas pode-se dizer que é um povo com cara de bem-nascido e bem-criado. Mas não viveria em Estocolmo mesmo achando que o Brasil nunca atingirá tais padrões de vida e civilidade. O sol do inverno não me apareceu em nenhum dos quatro dias em que fiquei lá. Começava a deixar o dia escuro às 15h e só ia clarear às 8h30. Muitos atribuem aos dias de pouco calor e pouca luz a origem de uma certa dose de tristeza e da elevada média anual de 11 suicídios por 100 mil habitantes. Como disse a rainha Silvia, filha de brasileira e alemão que passou boa parte da sua infância e juventude no Brasil, a disciplina dos suecos é admirável, mas a alegria, a descontração e o clima brasileiros têm lá o seu sabor.

que os países vizinhos não contam com o mesmo sistema de tratamento de água sueco. No hotel, um aviso informa que, para conter energia, a geladeira do quarto fica desligada, nas ruas não se vê papel no chão, há um obelisco na praia que informa a (falta de) poluição do ar e da água. Dois rapazes me perguntam de onde sou, enquanto pago por um muffin e um sanduíche. Quando digo que sou brasileira, arregalam os olhos: “Puxa, eu quero tanto ir ao Rio para a Copa do Mundo! É perigoso?” No meio da conversa, me dizem que são do povo assírio, os cristãos do norte do atual Iraque. “Somos um povo sem terra. Nosso pai é do Iraque, mas nascemos aqui.” O calor humano dos suecos não é dos melhores, mas eles transpiram civilidade. São politizados, prestativos e reservados. E criativos. Destacam-se na ciência, na arquitetura, no design, sem falar no cinema. Clássicos como Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman (1957), e Mi-

Vikings?

BLOEMCHE J. STEMPER/CREATIVE COMMONS

Museu Vasa

Museu Skansen MATT WATSON/ CREATIVE COMMONS

FOTOS EGUIDETRAVEL.COM/ WWW.FLICKR.COM/EGUIDETRAVEL/

VIAGEM

LAURENTE/ WWW.FLICKR.COM/LOLOIEG

A Suécia tem 9,5 milhões de habitantes, 18% com mais de 65 anos e 16% menos de 15. A expectativa de vida ao nascer é de 81,5 anos. O país flexibiliza sua política de imigração, com objetivo de facilitar o ingresso de força jovem de trabalho. O PIB foi de US$ 366 bilhões em 2010 e a renda per capita, US$ 39.100 por ano. O índice de Gini, usado para medir o nível de concentração de renda e de desigualdade social, é de 0,23 (no Brasil é de 0,57). O índice vai de 0 a 1. Quanto mais próximo de 0, melhor é a distribuição de renda. Os gastos públicos com políticas sociais são de 27% do PIB. A carga tributária representa 53%. A escala de tributação vai até 58% dos rendimentos da pessoa física (no Brasil, até 27,5%). A taxa média de desemprego está em 8,5%. A jornada anual de trabalho da população é de 1.624 horas (31,15 horas semanais). Na Alemanha, o desemprego está em 7% e a jornada anual, em 1.425 horas. Fonte: Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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CURTA ESSA DICA

Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Pelo subúrbio Giulietta Masina, mulher de Fellini, em cena de A Estrada, de 1954

Tempo de Fellini O Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro recebe até 17 de junho a exposição Tutto Fellini, com cerca de 400 itens descritivos do universo do cineasta italiano. São fotos, desenhos de cenas, cartazes, entrevistas, documentos inéditos e trechos de filmes. Dividida em quatro núcleos (Cultura Popular, Fellini em Ação, A Cidade das Mulheres e A Invenção Biográfica), a mostra favorece o diálogo entre as imagens estáticas e em movimento e percorre os passos de uma das personalidades emblemáticas do século 20. De terça a sexta, das 13h às 20h. Fins de semana e feriados, das 11h às 20h. Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea. Em julho, a exposição vai para o Sesc Pinheiros, em São Paulo.

Federico Fellini em 1955

Cartaz de A Doce Vida, de 1960

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Clara dos Anjos, livro póstumo de Lima Barreto, está de volta em forma de quadrinhos. Apoiado em fotografias e gravuras, o quadrinista e ilustrador Marcelo Lelis conta a história da mulata pobre encantada pelo malandro Cassi Jones. O encontro fadado à tragédia evidencia as tensões de classe, os preconceitos e o cotidiano vibrante e triste do subúrbio carioca. Com adaptação de Wander Antunes, o livro, com 112 páginas, tem o selo Quadrinho da Cia., da Companhia das Letras. R$ 42.

Para ler e ouvir Antes de lançar seu primeiro disco, em 1967, Leonard Cohen já havia publicado seis livros. Seu primeiro romance, A Brincadeira Favorita, de 1963, saiu em março no Brasil pela Editora Cosac Naify (248 pág., R$ 40). A obra do compositor e escritor canadense conta a trajetória de Lawrence Breayman, da adolescência em Montreal, no final da década de 1940, até suas aventuras literárias e afetivas em Nova York anos depois. A morte do pai, a loucura da mãe, as descobertas sexuais chegam ao leitor com elegância e ironia. Pouco tempo antes, em janeiro, Cohen lançou o disco Old Ideas (Sony/BMG, R$ 25, em média).


Saias rodadas

Senhoras de 42 a 91 anos, moradoras da periferia de Belo Horizonte, deram um novo sentido à vida com a música. Essas são as Meninas de Sinhá, que lançaram o segundo CD, Na Roda da Vida, no final de março, em São Paulo. Zabumbas, xequerês e a voz de 32 mulheres fortes entoam antigas cirandas, cantigas de roda e brincadeiras infantis do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (MG). Tem também samba, samba-canção, lundu, rancho, calango, afoxé, baião, marujo, vilão, congo, contradança, folia, bolero e carimbó. Nos shows, encantam as vozes, a força das canções e o movimento das saias rodadas coloridas. No CD, elas são acompanhadas por Tatá Sympa, Carlinhos Ferreira e Rogério Delayon, com participação especial de Carlinhos Brown na faixa Rainha do Morro. Assista a vídeos do grupo em www.youtube.com/meninasdesinha.

Fantasmas da guerra

A fotógrafa sérvia Gordana Manic, radicada desde 1999 em São Paulo, traz na exposição Réquiem resquícios da guerra em seu país. Fotografados durante a noite em longos períodos de exposição, seus personagens são fantasmagóricos, ora sedutores, ora sombrios. As imagens foram selecionadas no projeto Nova Fotografia 2012,

promovido pelo Museu da Imagem e do Som para dar espaço a novos e promissores fotógrafos. Réquiem fica em cartaz até 22 de abril. Outros seis projetos fotográficos devem ser expostos neste ano. De terça a sábado, das 12h às 22h. Domingos e feriados, das 11h às 21h. Espaço Nicho do MIS. Avenida Europa, 158, Jardim Europa, São Paulo. Grátis. REVISTA DO BRASIL ABRIL 2012

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B.KUCINSKI

O pau de arara

S

ubiu os degraus um a um, lenta, pensando na volta, quando teria de descer, e então sentiria a dor no joelho. Dez anos tinham se passado desde que a penduraram no pau de arara. O tique nervoso na sobrancelha esquerda, reflexo condicionado das cacetadas na testa, sumiu com dois anos de divã, mas a lesão no tendão ficou para sempre. Ela não teria vindo, se a tal prima não insistisse. A mulher apresentara-se ao telefone como filha do irmão do seu pai, prima direta. Filha única. Um absurdo não se conhecerem, insistira. Fazia questão de se encontrarem. Ao saber que ela também ficara viúva e tinham quase a mesma idade, acedeu. Seria bom trocar ideias. E saber mais da família do pai. Ele nunca mencionara essa sua sobrinha, embora falasse vez ou outra do irmão. Marcou para o dia seguinte. Era distante, no Jardim Tremembé. Dirigiu direto da Pinacoteca, assim que terminou de montar a exposição da qual era curadora. Deixou-se conduzir pelo GPS. Surpreendeu-se ao chegar. O endereço era de um palacete, erguido na parte elevada de uma rua de chácaras. Estava circundado por um muro tão alto que mais parecia uma fortaleza. Ao toque da campainha, o portão abriu-se automaticamente, expondo essa longa escada em diagonal. Foi recebida no topo com um abraço efusivo. Então você é a Nair? Por que será que nossos pais nunca se encontravam? Deve ser briga de irmãos, mas nós não te50

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mos nada com isso, não é mesmo? Se não fosse a pesquisa genealógica eu nem ia saber de você. Venha, vou mostrar a casa, depois a gente conversa, com calma. Parecia se orgulhar do casarão. – Quando o Oswaldo morreu ficou tudo tão grande, tão vazio, o Oswaldo é meu falecido marido, que Deus o tenha. Falava e ao mesmo tempo empurrava nossa personagem casa dentro. A sala tinha móveis em excesso e pesados. Por todas as superfícies disponíveis espalhavam-se bibelôs de vidro e cerâmica, bonequinhas de plástico e jarras decorativas. Também havia muitas fotos de casamento em molduras brilhantes multicoloridas. Nossa personagem nunca tinha visto tanto kitsch. Nouveaux riches, pensou. O canto era tomado por um pomposo bar de pseudo-jacarandá, com balcão de plastificado marmóreo leitoso e prateleiras repletas de taças de vidro, em diversos tamanhos, imitando cristal. Na passagem para a copa, pratos decorativos de louça pintados de ouro falso e carmesim pendiam de uma parede. Os fundos abriam para um gramado seguido de um pomar. Viam-se abacateiros, uma mangueira gigante e bananeiras, muitas bananeiras. A cozinha era ampla. No seu centro, um fogão a lenha fora de uso, de alvenaria e cimentado vermelho, servia de suporte a uma montagem inusitada, que nossa personagem achou muito bonita e original. Parecia uma instalação de arte antropofágica. Finalmente uma obra de bom gosto, ela pensou. A peça era composta de cachos de banana carnudos e abundantes envolvendo um longo vergalhão de madeira envelhecida, erguido como um totem. Os bagos de banana iam do verde profundo ao dourado voluptuoso, passando pelo amarelo ouro, o laranja, o marrom, um completo arco-íris tropicalista. Curiosa, ela perguntou: – E essa coisa tão bonita o que é? – São as pencas de banana que eu deixo aí para madurar. – E aquela haste no meio? – É lembrança do meu marido, é o pau de arara que o Oswaldo ganhou dos colegas quando se aposentou da polícia. Ela sentiu um frio subindo pela barriga, e logo o beliscar pesado dos tiques na sobrancelha esquerda.


Água para

o sertão Desde 2008 foram construídas 215 cisternas com o apoio do Comitê Betinho.

Ajude a salvar mais vidas, contribua! Ajude o Comitê Betinho a ajudar mais pessoas: associe-se e indique um amigo! Você pode contribuir com débito em conta ou depositar qualquer valor: BANCO DO BRASIL Ag.: 0018-3 Conta Poupança: 85.406-9 Variação: 01 BANCO BRADESCO Ag.: 3003-1 Conta Poupança: 100.8818-6 BANCO SANTANDER Ag.: 0001 Conta Corrente: 13 - 027407-9 CAIXA ECONÔMICA FEDERAL Ag.: 1004 Conta Poupança: 13 - 000977707-8

www.comitebetinho.org.br Mais Informações

(11) 3249-8113/(11) 3249-8114 comitebetinho@uol.com.br



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