Revista do Brasil nº 071

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Desigualdade De Norte a Sul, um país de contrastes

Alimento limpo É possível produzir sem perigo à saúde

nº 71

laerte coutinho Do cartum sindical à arte de refazer a vida

maio/2012 www.redebrasilatual.com.br

Apagão no transporte

Ônibus cheio, trem lotado, metrô parado. Sociedade precisa agir e cobrar dos governos


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Você constrói nossa audiência Você pode ajudar na construção dessa plataforma. Discuta na diretoria do seu sindicato, associação e movimentos a participação no projeto e peça uma visita da nossa coordenação. Leve a revista aos locais que frequenta. Coloque nosso link no site da sua entidade e entre seus favoritos. Divulgue nas redes sociais. Mande notícias, sugestões, pautas, comentários e críticas. A consolidação das conquistas deste novo Brasil depende da construção de uma nova mídia e essa luta precisa ser travada por todos, diariamente, em todos os lugares.


Índice

editorial

10. Brasil

CUT propõe debate sobre modelo de desenvolvimento

14. Mundo

Até onde a eleição na França pode influenciar a Europa?

16. Cidades

Política de Mobilidade Urbana expõe desafios das cidades

22. Saúde

ANTÔNIO MILENA/ABR

Agrotóxicos ameaçam alimentação dos brasileiros

26. Ambiente

Vinte anos depois, Rio sedia debate e mostra incertezas

30. Cidadania

Bolivianos em São Paulo revivem velhos preconceitos

A economia cresceu. Os bancos lucram como nunca. Está na hora de dividir melhor o bolo

36. Entrevista

Receita de país desenvolvido

Laerte Coutinho: o cartunista que resolveu se “montar”

U

40. Cultura

Jesus carlos/imagemglobal

Uma nova geração de artistas está reinventando o cordel

46. Viagem

Obra do artista plástico Brennand ultrapassa fronteiras de Recife

Seções Cartas 4 Mauro Santayana

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Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Mouzar Benedito

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m ministro dos tempos da ditadura, Delfim Netto, hoje tido como oráculo, dizia que era preciso esperar crescer o bolo para só então dividi-lo. O país chegou a crescer a níveis de fazer a inveja à China atual, mas o bolo foi comido por poucos. A maioria da população, historicamente, ficou à margem, desprovida de direitos e dignidade. Em período mais recente, as ações do Estado voltaram-se para a parte de baixo da pirâmide. Milhões saíram da pobreza e passaram a integrar o que se convencionou chamar de nova classe média, entrando para o mercado de consumo. O país cresceu, a distribuição de renda começou a se tornar menos injusta. Mas ainda há muito a fazer – mais que consumidores, as pessoas precisam ser cidadãs, conscientes da sociedade em que vivem e preocupadas em tornar melhor a vida de todos. Esta edição fala em ideias que surgem para fazer com que o dia a dia nos grandes centros seja mais humano. Em gente que está em busca de alternativas contra o caos das metrópoles, onde tantas vezes perdemos a humanidade e nos tornamos bestas-feras no trânsito. Ideias que também se espalham no campo, como novas sementes, oferecendo produtos livres de agrotóxicos, para que a alimentação do brasileiro seja mais saudável. Desenvolvimento também pressupõe civilização, que exige a convivência respeitosa com o próximo. Inclusive com quem vem de fora. Nesse sentido, conforme se verá em algumas páginas, a maior cidade do Brasil ainda tem alguma coisa a aprender. E espera-se igualmente alguma civilidade nos juros que ainda estorvam a vida de quem precisa de crédito e vai buscar algum recurso extra nas instituições financeiras tradicionais. Alguma coisa parece começar a mudar, para melhor. Por falar em evolução, a Justiça Eleitoral decidiu multar a Revista do Brasil, que teria cometido infração eleitoral, segundo a magistrada responsável pelo processo. A ação foi movida por um candidato derrotado à Presidência da República – o que não deixa de ser censura. Um país desenvolvido também deveria permitir a livre circulação de ideias. revista do brasil maio 2012

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cartas Olho latino

www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo. Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi. Revisão: Márcia Melo Capa Foto de Danilo Ramos Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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maio 2012 revista do brasil

Bela reportagem! (“Olho latino”, edição 70). Gostei. Como sugestão de pauta, poderiam fazer outras reportagens sobre o tema fotografia, que é “escrita de luz” tão utilizada por amadores e profissionais da área no Brasil. José Aquino

Terceirização

Fortunas

O Estado tem o dever de combater a desigualdade social, não por caridade, mas por necessidade econômica. No entanto, no Brasil a carga tributária pesa mais no bolso dos trabalhadores assalariados do que no dos detentores de grandes fortunas. Assim sendo, prejudica-se aquelese que realmente produzem as riquezas neste país e não podem sequer usufrui-las. Urge uma reforma tributária que corrija essa e outras mazelas, para que este país se torne menos injusto, honrando o verso: “Dos filhos deste solo és mãe gentil” (“Não mata ninguém”, edição 70). Amauri Almeida, São Paulo (SP)

Pinheirinho

Acho absurda, equivocada e inoportuna a denúncia do procurador do estado de São Paulo Márcio Sotello Felippe ao Tribunal Penal Internacional (“Quando o Estado falha”, edição 69). O aparato policial ao que ele se refere foi usado exclusivamente para cumprir decisão judicial e restituir a posse do imóvel ao seu legítimo dono. Mario Roberto Os episódios lamentáveis ocorridos naquela comunidade devem servir de exemplo para que nossas autoridades em São Paulo repensem suas ações na área da política social. João Ferreira, São Paulo (SP)

Aproveito para cumprimentar a revista pela excelente “Falso Brilhante” (edição 69). Grande reportagem. Vitor Benda

Sacolinhas

Os supermercados (“Oportunismo na sacola”, edição 68) têm de fornecer sacolas de fato biodegradáveis gratuitamente aos consumidores, assim como vender sacos de lixo biodegradáveis a preços populares, a fim de banir as sacolas e sacos de lixo fabricados a partir do petróleo. A partir disso, podemos iniciar a compostagem do lixo orgânico doméstico em larga escala e ampliar a separação do lixo não orgânico para reciclagem. Se não for por esse caminho, muito pouca coisa mudará. Luiz Fernando Bittencourt CorreçÕES

Nas páginas 32 e 33 da edição 70 (“Saga nativa”), o crédito correto para a foto acima reproduzida é José Pinto/ Acervo família Villas Bôas. Na matéria “A capital da Escandinávia” (edição 70), o Vasa Musset (http://www. vasamuseet.se/) não é um museu dentro de um barco. É um museu que tem o Vasa, o barco, e conta a história dele.

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


Mauro santayana

Dilma e a política externa soberana Política de governo não significa o jogo retórico de declarações agressivas, mas a exposição clara de uma atitude serena, e firme

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m todos os encontros internacionais, entre eles o de Cartagena de Índias, no mês passado, o Brasil vem reafirmando a independência em suas relações externas – depois da vergonhosa capitulação ocorrida durante o governo dos dois Fernandos, Collor e Cardoso. Política externa soberana não significa o jogo retórico de declarações agressivas, mas a exposição clara de uma atitude serena, e firme. As relações entre os Estados nacionais são semelhantes às que se dão entre os vizinhos. O ideal é a amizade solidária, mas sem perder de vista o direito de cada uma das famílias a viver de acordo com suas ideias, suas regras próprias de conduta, e seus interesses privados. É assim que as visitas são recebidas em espaço próprio, com a família reunida, e a conversa gira em torno dos interesses gerais. Nenhum visitante honrado dirá aos donos da casa como governar a sua família. Nas relações internacionais essa conduta era conhecida, até tempos recentes, como o princípio da autodeterminação dos povos e de não ingerência em seus assuntos internos. O ideal nas relações externas é o da universalidade. Devemos manter o diálogo diplomático com todos os países do mundo, mesmo que a sua política interna nos desagrade. Enquanto eles não prejudicarem os nossos interesses nem ofenderem a dignidade de nosso povo, não há por que cortar os contatos nem impedir os negócios de vantagens recíprocas. Essa universalidade, no entanto, não nos impede de ter laços mais fortes com um ou outro país, de manter alianças políticas e

comerciais com determinadas nações ou conjuntos de nações. A política de alianças internacionais é tão antiga quanto as comunidades autônomas. Elas já existiam nas tribos pré-históricas, e sempre se fazem para a defesa ou para a conquista. Entre outras alianças de povos primitivos, que o Brasil conheceu de perto, temos a Confederação dos Tamoios – a tentativa, frustrada, da retomada, pelos índios brasileiros, de sua soberania sobre o território, com a expulsão dos portugueses. O erro político dos Tamoios foi buscar a aliança com os franceses, e não ampliar a confederação com outras nações autóctones – o que significaria apenas a troca de amos. De qualquer forma, os Tamoios – em tupi, os donos antigos do território – tiveram como resultado o abandono posterior da escravidão dos nativos. O Brasil, naturalmente, está se compondo com a China, a Rússia, a Índia e a África do Sul, em aliança conhecida como Brics. Não é uma formação de caráter ideológico nem militar, mas organização de interesse econômico e de defesa da soberania de cada um deles. Como em todas as alianças, nessa incorrem riscos, mesmo porque o peso econômico e militar de seus membros é desigual. Corre-se, entre outros riscos, o de deixarmos em segundo plano a aliança prioritária, com os nossos vizinhos da América do Sul. É preciso romper os tabus, que nos perseguem há mais de um século, e acelerar os entendimentos entre os que vivemos lado a lado e temos origem histórica comum. Mas – e essa tem sido a postura do governo, desde Lula – levamos em conta que o Brasil pode ter inimigos, mas não deseja ser inimigo de ninguém. Daí a correta posição da presidenta da República: defesa da economia nacional é uma coisa, protecionismo é outra. É certo, no entanto, que, em alguns momentos, as duas ideias se justapõem. Entre a acusação de protecionismo e a de entreguismo, é preferível a primeira. Foi com o protecionismo de sua marinha mercante – assumida por Cromwell, em 1651, com o primeiro dos Navigation Acts – que a Inglaterra se tornou a grande potência imperial do século seguinte. Um país das dimensões do Brasil necessita do comércio internacional, mas a sua imensa potencialidade está dentro das próprias fronteiras. Está em seu povo, que deve ser protegido contra qualquer forma de domínio estrangeiro. revista do brasil maio 2012

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Maio terá os primeiros lances da CPI mista que amplia investigações feitas pela Polícia Federal na operação Monte Carlo. Com autorização judicial, a PF grampeou ligações telefônicas do contraventor Carlinhos Cachoeira. O caso atinge inúmeras personalidades da política, entre elas o senador por Goiás Demóstenes Torres, e o tráfico de influência de empresas como a Construtora Delta. Pelos grampos que já vazaram na imprensa, suspeita-se que Cachoeira e Demóstenes sejam sócios ocultos da Delta. Outros diretamente implicados são o governador de Goiás, o tucano Marconi Perillo, mais secretários e assessores do governo distrital de Brasília. Para revelar toda essa rede não seria necessária uma CPI, pois a Polícia Federal já tem dados suficientes para acusar criminalmente os atores. O que fez a CPI se tornar polêmica são os novos tentáculos surgidos na rede. Um dos primeiros a serem chamados para depor será o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, chefe do Ministério Público Federal, para explicar por que esperou três anos para prosseguir com as investigações da operação Vegas, que também envolveu Cachoeira. Petistas

comparam essa demora com a rapidez com que Gurgel denunciou o mensalão, considerado uma armação para atingir o PT e o governo Lula. Nesse episódio, Cachoeira poderia estar ligado às gravações em que Waldomiro Diniz, ex-assessor de José Dirceu, na época chefe da Casa Civil do governo Lula, aparece pedindo propina e ao vídeo do então deputado Roberto Jefferson comentando a existência de um suposto esquema de pagamento a deputados. Suspeita-se agora que essas gravações teriam sido armadas pelos arapongas de Cachoeira. Se a CPI trilhar esse caminho, poderá implodir o julgamento do mensalão. Outro ponto é a investigação das mais de três centenas de ligações telefônicas do contraventor a Policarpo Júnior, chefe da sucursal da revista Veja em Brasília. Ambos ajustavam pautas da revista para desestabilizar adversários e viabilizar negócios. No final de abril, Veja tornou-se campeã de chacotas na blogosfera como praticante de jornalismo delinquente. As investigações da CPI poderão se estender ainda a uma filmagem clandestina de Zé Dirceu feita pela Veja no hotel Naoum, em Brasília. Petistas acreditam que o vídeo ilegal

Manifestantes comemoram decisão do STF

maio 2012 revista do brasil

Chapa quente Assunto proibido na mídia tradicional, os laços entre Carlinhos Cachoeira e a revista Veja, da Editora Abril, devem ser investigados pela CPI mista do Congresso. A Polícia Federal registrou mais de 300 ligações telefônicas entre o contraventor e a publicação da família Civita

foi produzido pelos arapongas de Cachoeira para a revista, que deu o assunto em sua capa de 26 de agosto de 2011. É pena que novamente os cidadãos estejam diante de tanta podridão. Mas é possível aprender uma lição: é preciso espírito crítico no consumo das informações veiculadas pela mídia tradicional, em especial a paulista.

Quando não é crime Com oito votos a favor e dois contra, o Supremo JosÉ Cruz/ABr

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Jamil Bittar/REUTERS

Cachoeira, Veja e mensalão

Tribunal Federal (STF) acatou ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) pela descriminalização do aborto em caso de gestação de feto anencéfalo. Como era de esperar, a decisão suscitou polêmica, mesmo entre os ministros do Supremo. Mas prevaleceu a posição de que devem ser levados em conta os direitos da mulher. http://bit.ly/rba_stf


Dilma: nível de spread no Brasil não se justifica

“Com a guerra ao spread bancário, a presidenta Dilma Rousseff dá início ao lance mais audacioso da sua política econômica: o desmonte do aparato econômico introduzido pelo Plano Real e que deixou praticamente todo o setor público à mercê do jogo financeiro”, escreveu o jornalista Luis Nassif. “Esse modelo pernicioso trouxe inúmeros prejuízos ao país. É verdade que criou um sistema financeiro robusto – e que terá papel relevante daqui para a frente, quando as distorções forem corrigidas. Mas impediu o deslanche da atividade econômica, consumiu recursos preciosos para pagamento de juros, atrasou o desenvolvimento do mercado de capitais, devido ao primado da renda fixa.” Em 2011, a despeito dos lucros obtidos, o setor financeiro economizou nos salários. O emprego cresceu 4,88%, com quase 24 mil empregos a mais, mas com uma diferença de 41% a menos no salário dos admitidos. http:bit.ly/rba_juros

Pela primeira vez no país um magistrado reconheceu sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao fundamentar sua decisão sobre um crime cometido durante a ditadura (1964-1985). O juiz Guilherme Madeira Dezem, do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou mudanças no atestado de óbito do militante comunista João Batista Drumond, assassinado em 1976: o local da morte passa de “Avenida 9 de Julho” para “Doi-Codi”, órgão da repressão, e onde se lia “traumatismo craniano” passa a constar “decorrência de torturas físicas”. A ação foi apresentada por Maria Ester Cristelli Drumond, viúva da vítima. Em sua decisão, o juiz cita trecho da sentença da Corte, proferida em 2010, no qual se afirma que o Estado brasileiro falhou na tarefa de garantir que a Lei de Anistia não significasse empecilho para o conhecimento da verdade. Com isso, estava equivocada a visão do Ministério Público Estadual ao dizer que certidão de óbito não é “local” para discutir crime. A decisão da Corte Interamericana também foi lembrada pelo procurador da República Andrey Mendonça em evento dos 40 anos do início da Guerrilha do Araguaia. Para ele, o Brasil deve efetivamente cumprir os tratados internacionais dos quais é signatário. http://bit.ly/rba_anistia

João Batista, assassinado pela ditadura em 1976

revista do brasil maio 2012

CDM/Grabois

A guerra ao spread, que andava adormecida, ganhou força em abril e mostrou resultados. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal anunciaram redução de suas taxas. Dias depois, deuse um tiroteio verbal entre o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e a Febraban, a federação dos bancos, que foi a Brasília apresentar reivindicações para, aí então, reduzir juros. Mantega reclamou da cobrança. “Se os bancos são tão lucrativos, têm margem para reduzir as taxas e aumentar o volume de crédito”, reagiu. A presidenta Dilma Rousseff também disse que não via justificativa técnica para o nível do spread, que é a diferença entre o juro pago pelo banco para captar recursos e o percentual cobrado do cliente para emprestar dinheiro. Os sindicatos e a CUT, por sua vez, se organizaram para pressionar pela redução das taxas, não apenas da Selic – que o Comitê de Política Monetária (Copom), em 18 de abril, reduziu pela sexta vez seguida, agora para 9% ao ano.

Wilson Dias/ABr

Voz firme contra os juros

Ainda que tardia

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Rádio

Futebol-arte, política-imagem Cineasta lança documentário sobre os 100 anos do Santos, de Pelé, Robinho e Neymar. E jornalista escreve livro com dicas para os políticos

Marcelo Machado de Melo/Fotoarena

Festa do centenário, na Vila Belmiro

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ada qual tem seu time, mas é forçoso admitir que o Santos possui um apelo especial. A mítica nascida nos anos 1960, com Pelé e companhia, parece se perpetuar com nomes como Robinho e, agora, Neymar. A cineasta Lina Chamie, santista fanática e filha de santista, o poeta Mário Chamie – que morreu durante as filmagens –, teve a incumbência de fazer o documentário Santos, 100 Anos de Futebol Arte. O filme tem 90 minutos, o tempo de uma partida de futebol. “Futebol é paternidade, no sentido mais particular e mais amplo”, afirma a cineasta. Ela ressalta que muitos depoimentos coincidem quando o entrevistado conta ter sido levado ao estádio, pela primeira vez, pelo pai. Aconteceu com a própria Lina. “Meu pai dizia: ‘Quando vi o Santos jogar, me santifiquei’”, relembrou em entrevista à Rádio Brasil Atual. Para a cineasta, rever os jogos aos quais ela assistia foi revisitar a história. O documentário é assumidamente passional. Além do desafio de dar conta de vários fatos, havia a preocupação, segundo Lina, de buscar “o viés emocional de ligação tanto do jogador como do torcedor”. E não há narrador no filme: “A história é toda contada por quem estava lá”. A primeira imagem em movimento é de 1927. Estão lá, claro, cenas dos mundiais conquistados pelo Santos e da nova geração, liderada pelo jovem topetudo de 20 anos, já considerado um dos melhores jogadores do mundo. http://bit.ly/rba_santos e http://bit.ly/rba_santos1

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Etiqueta A poucos meses das eleições municipais, a jornalista Luci Molina, com longa passagem pela Rádio Bandeirantes e exassessora de Mário Covas, lança o livro Guia de Estilo para Candidatos ao Poder – e para quem já chegou lá, feito em parceria com a consultora Milla Mathias e o também jornalista Sergio Kobayashi. Foram ouvidos 19 especialistas, incluindo professor de oratória, cerimonialista e até um expert em perfumes. Um caso famoso, usado no livro para ilustrar a importância da imagem, é o debate entre John Kennedy e Richard Nixon, candidatos à presidência dos Estados Unidos em 1960. Um produzido, tranquilo, e o outro malvestido, sem

maquiagem, tenso, suando. “Grandes especialistas dizem que Nixon começou a perder ali”, afirma Luci. Mas, é claro, qualquer candidato precisa ser o mais natural possível – além de, especialmente, ter conteúdo. http://bit.ly/rba_etiqueta


lalo leal

Vale a pena pagar para ver TV?

Assinantes queixam-se das repetições, do tempo dos anúncios, dos canais que não lhes interessam e do pay-per-view

H

ouve tempo em que identificávamos os canais de TV pelos números. “O programa passou no 4 ou no 7? Ou será que foi no 2?” Não era assim? Os canais iam do 2 ao 13, que, com os intervalos entre um e outro, somavam sete nas grandes cidades. Ninguém, àquela altura, poderia imaginar que existiriam um dia canais 127 ou 519. Ainda por cima pagos. Pagar para ver TV não é mais novidade. Até fevereiro deste ano mais de 13 milhões de brasileiros já faziam isso, número que deve dobrar em cinco anos. Melhor distribuição de renda e uma possível, mas ainda não confirmada, redução no preço dos pacotes oferecidos, podem explicar esse crescimento. Hoje quem paga para ver TV no Brasil paga caro. Pesquisa realizada pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) constatou que os brasileiros desembolsam muito mais pelo serviço de TV por assinatura do que os consumidores de outros seis países latinos: Portugal, Espanha, Chile, Argentina, Peru e Equador. O preço máximo de um canal de TV paga no Brasil era R$ 3,74 no final de fevereiro, 200% mais caro do que o valor máximo cobrado na Espanha (R$ 1,83). O preço mínimo de um canal no Brasil é de R$ 1,74. No Peru, de R$ 0,56. Na Argentina, o pacote da DirecTV, com 97 canais, custa R$ 83,52 mensais, enquanto o da Tvfuego, com 74 canais, vale R$ 65,10. No começo de março, a Net cobrava no Rio de Janeiro R$ 69,90 por um pacote de 30 canais e a Sky, R$ 74,90, por 40 canais. Mas não é só isso que os brasileiros pagam. O serviço é cobrado duas vezes, já

que além do pagamento mensal os assinantes são obrigados a ver muita propaganda, paga pelo telespectador e embutida nos preços dos produtos ou serviços anunciados. Durante anos, o mercado da TV por assinatura no Brasil foi ocupado por um duopólio: a Net no cabo e a Sky via satélite. Dividiram um bolo publicitário em expansão que, segundo a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA)cresceu 20% nos dois últimos anos, passando de R$ 1 bilhão em 2010 para R$ 1,2 bilhão em 2011. A essa receita, juntam-se, além da assinatura paga pelo telespectador, os valores cobrados de canais religiosos e de vendas para serem incluídos nos pacotes das operadoras. Tanto dinheiro não corresponde à qualidade do serviço oferecido. Assinantes queixam-se da repetição dos filmes, do tempo destinado aos anúncios, dos canais incluídos nos pacotes que não lhes interessam, para não falar da cobrança extra (o pay-per-view) exigida pela exibição de determinados jogos de futebol. Pesquisas confirmam essa insatisfação. Até o ano passado, as emissoras com maior audiência na TV paga eram as de sinal aberto: Globo, vista por 37% dos assinantes, Record (11%), SBT (6,4%) e Bandeirantes (3,7%). Só no quinto lugar aparecia uma TV fechada, a Discovery Kids, com 3,1%. Como se vê, não são as programações exclusivas da TV paga que levam muita gente a ter televisão por assinatura. A razão está na qualidade do sinal oferecido, livre de chuviscos e interferências comuns em regiões montanhosas e nos grandes centros urbanos. Para grande parte do público, a TV por assinatura serve apenas para substituir a antena convencional. Com a nova lei da TV paga, o conteúdo tende a melhorar um pouco, já que os canais deverão reservar um espaço, ainda que pequeno, para produções nacionais. Elas substituirão parte dos velhos e repetidos enlatados impostos pelas operadoras. Por outro lado, consolidará uma da práticas mais criticadas pelos assinantes: a veiculação de publicidade, estabelecida agora em um limite de até 25% do total da programação. Com isso, o pagamento duplo torna-se lei. Distorção a ser corrigida por um novo marco regulatório para a comunicação, há tanto tempo esperado no Brasil, capaz de garantir também ao consumidor o direito de montar o pacote de canais que lhe interessa, livrando-o das programações impostas arbitrariamente pelas operadoras. revista do brasil maio 2012

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brasil

Maior , mas ainda desigual

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economista Celso Furtado dizia que o Brasil, antes de mais nada, deveria priorizar o problema social, e não o econômico. O país já havia adquirido certo peso em termos mundiais, mas ainda tinha uma capacidade muito limitada de criar o próprio destino. Ele insistia na receita: era preciso criar empregos e ampliar o mercado interno. Reflexões ainda válidas, à medida que o Brasil teve crescimento visível nos últimos anos, mas continua devendo em termos de desenvolvimento – leia-se melhores condições para quem vive aqui. “Embora no geral o país esteja se saindo bem em relação ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, as desigualdades regionais e locais existentes são um grande desafio que precisa ser enfrentado”, diz Rogério Borges de Oliveira, economista do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para o Relatório de Desenvolvimento Humano Brasileiro. Esses objetivos incluem metas referentes ao combate à pobreza e melhorias em educação e saúde, entre outros itens. “Até 2015, é indispensável que estados e municípios também dediquem suas políticas sociais e mobilizem a sociedade civil e o setor privado para conseguir completar as lacunas existentes”, afirma Oliveira, destacando a necessidade de “soluções de alto

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impacto” no caminho de uma educação de qualidade, um sistema de saúde eficiente, criação de empregos, melhor distribuição de renda e proteção ao meio ambiente. O desenvolvimento regional foi o tema das atividades do 1º de Maio deste ano promovidas pela CUT em São Paulo – a central reuniu autoridades e técnicos do Brasil e de fora para debater o assunto. “Queremos fazer um retrato do modelo de desenvolvimento, voltado para o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A vida das pessoas melhorou com o crescimento econômico e com os investimentos feitos regionalmente?”, questiona o presidente da central no estado, Adi dos Santos Lima. O IDH é uma medida usada para avaliar avanços em três itens considerados básicos: saúde (vida longa e saudável), educação (conhecimento) e renda (padrão digno de vida). Quanto mais próximo de 1, maior é o desenvolvimento. Em 84º lugar em 2011, entre 187 países, o Brasil está entre as 25 nações consideradas de desenvolvimento alto. Desde 1980, cresceu 31%, de 0,549 para 0,718. Nesse período, a expectativa de vida aumentou 11 anos (de 62,5 para 73,5), a média de escolaridade passou de 2,6 para 7,2 anos e a renda nacional bruta per capita cresceu quase 40%, para US$ 10.162. Mas um olhar sobre os dados estaduais – nesse caso, relativos a 2000, último

Paulo Santos/REUTERS

Que o país cresceu nos últimos anos, ninguém duvida. A questão é como distribuir a riqueza de forma mais justa. A CUT propôs esse debate no 1º de Maio Por Vitor Nuzzi


Contrastes Favela da Terra Firme, um dos locais mais pobres de Belém, no Pará

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dado disponível – revelam a desigualdade: as 16 últimas colocações são de estados das regiões Norte e Nordeste.

Sem fórmula

O economista do Pnud destaca a implementação de políticas públicas no Brasil – citando o programa Bolsa Família e, agora, o Brasil sem Miséria – como fatores de melhoria do desenvolvimento humano. Segundo ele, o país também tem mostrado avanços em iniciativas setoriais e regionais. “Não há uma fórmula única. Cada região, cada município, cada comunidade deve definir suas prioridades e encontrar os próprios meios.” “Temos acompanhado nesses últimos anos um modelo de desenvolvimento por meio da inclusão e de projetos sociais”, diz Adi. “Há regiões que crescem acima da média nacional. Estados do Nordeste crescem a taxas chinesas, sem o devido reflexo na qualidade de vida das pessoas.” O sindicalista lembra que o 1º de Maio também procurou discutir o Brasil em relação aos demais países que compõem os chamados Brics (África do Sul, China, Índia e Rússia). Para o diretor adjunto de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Miguel Matteo, a política social precisa ser parte primordial da política econômica. O Brasil teve no período mais recente uma redução “extremamente tímida” da desigualdade, mas

PIB per capita Norte R$ 10.625,79 Nordeste R$ 8.167,75 Centro-Oeste R$ 22.364,63 Brasil R$ 16.917,66

Sudeste R$ 22.147,22 Sul R$ 19.324,64

Fonte: IBGE/2009 revista do brasil Maio 2012

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de grande impacto no mercado consumidor – com participação fundamental do aumento do salário mínimo. “Nos anos 1990, desenvolvimento regional era palavrão. O desmonte foi terrível no que se refere à mão de obra qualificada para pensar nessa questão. Nos anos 2000, começa-se a pensar de novo”, diz Matteo. Mas os desequilíbrios permanecem. “Algumas regiões tiveram crescimento explosivo”, diz o diretor do Ipea, citando municípios como Parauapebas, no Pará, cuja população mais que dobrou em dez anos (de 71 mil para 154 mil), ou Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, que foi de 19 mil habitantes, em 2000, para 45 mil em 2010. Aumento estimulado pela expansão do agronegócio, da soja e da produção de minérios. Não se pensou, porém, em como absorver essa população adicional. “O II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento, para o período 1975-1979) já falava em desconcentração da área econômica no Brasil. Mas acho que a única coisa que a gente conseguiu desconcentrar foi a concentração.” Ou seja, há mais áreas de concentração. Segundo o IBGE, em 2009, excluindo as capitais, 12 municípios respondiam in-

rr

dividualmente por mais de 0,5% do PIB, concentrando 9,3% da renda do país. Das 12 cidades, 11 eram do Sudeste e uma da Região Sul. O economista do Pnud observa que não há dados disponíveis para o período 1980-2011, que permitiriam uma análise regional mais apurada em relação ao IDH. “No entanto, se analisarmos os dados fornecidos pelos relatórios de acompanhamento dos Objetivos de Desen-

0,753

MA

Ce

0,636

PI

0,656

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BA 0,688

MT

MS

0,814

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SC

rS 0,807 maio 2012 revista do brasil

0,822

Brics 66º

eS 0,765

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MG

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SP

O IDH no mundo (2011) 84º

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rJ 0,807

Noruega Austrália Holanda

Fonte: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud)

0,547

Go

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DF

0,687

0,773

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ro

0,755

To

Regiões Norte e Nordeste concentram piores resultados do IDH. Distrito Federal tem o mais alto, Maranhão, o mais baixo. Santa Catarina ocupa o segundo lugar, seguido por São Paulo (2000)

rN 0,705 PB 0,661 Pe 0,705 AL 0,649 Se

0,910

0,723

0,700

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PA

AC

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volvimento do Milênio, verificamos que há, sim, ainda, desigualdades regionais e locais significativas que têm impedido o crescimento homogêneo do país”, diz Oliveira. “O gênero, a raça, a etnia e o local de nascimento de uma criança brasileira ainda determinam, em grande parte, suas oportunidades futuras. Essas desigualdades têm repercussões diretas também na saúde da mulher e na razão da mortalidade materna.”

Mapa da desigualdade

0,943

AM

0,713

0,735

Sonho de consumo em shopping paulistano O estado de São Paulo tem 22% da população nacional, mas concentra 35% dos salários

AP

0,746

0,697

vander fornazieri

Desconcentração

Rússia Brasil China África Índia do Sul


brasil

Riqueza sob o chão A Parauapebas citada pelo diretor do Ipea ilustra os contrastes brasileiros. Tem, por exemplo, PIB per capita (R$ 45.200) quase três vezes maior que a média nacional, o segundo maior do Pará. Trata-se da região com a maior jazida de minério de ferro do planeta. Mas a população abaixo da linha de pobreza chegou a superar os 40%. “Apesar da riqueza que está debaixo do chão, você percebe o contraste. O povo não vê o retorno dessa extração da terra”, diz o estudante Edilson Godim, que é de Parauapebas e cursa Ciências Sociais em Marabá, a 185 quilômetros – a viagem pode durar até três horas por causa das más condições de estrada. Há muitos problemas sociais e de infraestrutura, segundo Edilson, também integrante da coordenação da Pastoral da Juventude. São problemas que tendem a aumentar porque muita gente conti-

nua a chegar. A população triplicou em 19 anos, de 53 mil em 1991 para 154 mil 2010. Relatório da Secretaria Municipal de Planejamento mostra que 30% da população em 2000 era de outros municípios – 9,5% eram migrantes com menos de um ano na cidade e 17,8%, de um a dois anos. Esse movimento não se alterou, e é basicamente urbano (90% moram em áreas urbanas).Em de-

Marco Antônio Teixeira/ag o globo

O Sudeste somava 55% do PIB em 2009, segundo o IBGE. A concentração ainda era grande, mas chegava a 59% em 1995. Também em 2009, aproximadamente 25% da renda provinha de cinco municípios: São Paulo (12%), Rio de Janeiro (5,4%), Brasília (4,1%), Curitiba (1,4%) e Belo Horizonte (também 1,4%). Essas cidades representavam 12,6% da população. E 51 municípios, reunindo 30,8% da população, respondiam por metade do PIB. Assim, o PIB per capita mostra disparidades. Foi de R$ 16.900 em 2009, mas cai para R$ 10.600 na Região Norte, por exemplo, ou R$ 8.200 no Nordeste, e atinge R$ 22.100 no Sudeste e R$ 50.400 no Distrito Federal. O analista econômico Jefferson Mariano, do IBGE, lembra que em 2009 o estado de São Paulo, com 22% da população nacional, reunia 35% dos salários. “Essa questão do rendimento é fortemente concentrada no eixo Sul/Sudeste.” Como disse o professor Celso Furtado, clássico defensor de um projeto para o país, a primeira coisa a fazer é saber aonde se quer chegar. “Um verdadeiro projeto nacional tem de partir do social, identificar os problemas que afligem a população.” E avisava aos mandatários: “A parte da população que não participa dos benefícios do desenvolvimento é tão grande que este passa a ser um dos principais problemas, se não o prioritário, de quem governa o Brasil.”

zembro, um plebiscito rejeitou a divisão do Pará em três. Um dos novos estados se chamaria Carajás e nasceria à sombra da Vale, que controla a exploração na área. Em 2010, mais de 45% das receitas correntes do município vinham da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). No caso do minério de ferro, a alíquota corresponde a 2% do faturamento líquido.

Descontrole Parauapebas: riqueza do minerio e problemas sociais

revista do brasil maio 2012

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mundo

Europa

à deriva Candidato socialista avança na França, mas votos dos conservadores superam os 50% Por Flávio Aguiar

F

az algum tempo que, nas conversas com amigos em Berlim, venho enfatizando que brincam com fogo os governantes europeus, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, com suas políticas de “austeridade” enfiadas goela abaixo das populações em rápido empobrecimento. Devo dizer que quase ninguém – pelo menos até agora – me levou muito a sério. Primeiro, porque essas políticas de recessão fazem parte de um “imaginário virtuoso” da economia, que recomenda contenção de despesas, sobriedade, cortes nos investimentos sociais, crença no poder de remissão social do individualismo liberal, conforme a pregação dos seguidores do economista austríaco Von Hayek, ardoroso crítico de Lord Keynes, inspirador do redistributismo de renda no estilo rooseveltiano. Segundo, porque é difícil entender o que quer dizer “brincar com fogo”. Tal-

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maio 2012 revista do brasil

vez – tenho até alguma certeza – eu persista em me explicar mal, por temer tocar em certos tabus. Mas agora os tabus vieram à tona: talvez a questão – à minha revelia – se torne mais clara e explícita. O tabu veio à tona na forma da expressiva votação (18%) dada à candidata Marine Le Pen, da Frente Nacional, de extrema-direita, no primeiro turno da eleição francesa. O candidato socialista, François Hollande, que chegou em primeiro lugar, com 28%, é o favorito para ganhar o segundo turno, em 6 de maio. Assim mesmo, deve-se registrar que a soma de votos dos conservadores (Le Pen, Sarkozy, François Bayrou) vai a mais de 50% dos votantes, enquanto as esquerdas (Hollande, Jean-Luc Mélenchon, mais as candidaturas de verdes, comunistas e outros dispersos) não atingem a metade do eleitorado. Isso significa que, se Hollande vencer, será mais por rejeição a Sarkozy do que por si mesmo, embora seu estilo ponde-

rado e calmo tenha ampliado sua aceitação pelo eleitorado conservador. E também significa que Le Pen, do alto de seu terceiro lugar no primeiro turno, está embaralhando e repartindo o baralho, pronta para dar as cartas. Le Pen é uma política jovem (43 anos), carismática, que defende um programa sectário mas não fala de modo arrogante. A chave de seu programa é a rejeição ao euro, a crítica da submissão de Sarkozy à chanceler alemã, Angela Merkel, na crise monetária e financeira europeia, e uma xenofobia generalizada, do tipo “empregos franceses para franceses”. Sua atuação atraiu votos ponderáveis entre os jovens (parcela em que vinha na frente dos demais), os mais atingidos pelo desemprego, e em regiões assoladas pelas políticas recessivas, como no nordeste da França, em processo de desindustrialização. Seu estilo mais duro que o eclético de Sarkozy cativou para si parcelas ponderáveis da burguesia tradicional, seja a de


mundo

espírito aristocrático, seja a nacionalista, e da classe média conservadora. Criou-se uma situação que lembra vagamente a da Revolta da Vendeia, de 1793 a 1796, em que aristocratas apeados do poder, padres da Igreja conservadora e camponeses empobrecidos se uniram para enfrentar os republicanos revolucionários. Em grande parte a revolta fracassou, mas é bom lembrar que ajudou os jacobinos radicais a intensificar a repressão – naquilo que ficou conhecido na história como “O Terror”. Isso solapou sua base de apoio, abriu espaço para sua queda e, depois, para o governo do déspota Napoleão, ora mais esclarecido, ora menos, mas sempre despótico – o imperador que espalhou manu militari a revolução burguesa na Europa e quis ao mesmo tempo restabelecer a escravidão no Haiti. Le Pen está longe de ser uma Napoleão, seja nos propósitos, seja na envergadura. Seu desejo mais imediato, e isso pode ser favorável para Hollande, é substituir

Sarkozy na liderança da direita francesa. Para ela e seu grupo próximo é mais interessante tê-la como líder da oposição a Hollande – cujo programa certamente vai se chocar com o conservadorismo hegemônico na zona do euro, na União Europeia e no Banco Central Europeu – do que como coadjuvante secundária em mais um mandato de Sarkozy. Ou seja, independentemente do resultado do segundo turno, o do primeiro mostra que a direita está marchando mais ainda para a direita, abraçando as causas da nova xenofobia cultural e religiosa que assola vários países da Europa, como Áustria, Hungria, Holanda e a própria Alemanha, ainda que sem a dimensão institucional desses outros países. Isso é que venho chamando de “brincar com fogo”. Mesmo algumas das manifestações mais espetaculares da resistência grega contra as medidas arrasadoras de seu poder aquisitivo e dos direitos de sua classe trabalhadora e dos aposentados, entre ou-

Yves Herman/REUTERS

ficou para o segundo turno Vitória do candidato socialista pode ocorrer mais por rejeição a Sarkozy

tras medidas recessivas da ortodoxia, são preocupantes. Há quem se entusiasme com as fotos das bandeiras alemãs sendo queimadas nas ruas ou as caricaturas da chanceler Angela Merkel vestida à la nazi. Como dizia amigo meu, “inclua-me fora disso”. Queimar bandeiras aqui na Europa nunca acabou em boa coisa. Na eleição de 22 de abril, François Hollande conseguiu a proeza de liderar um verdadeiro renascimento da esquerda, ela que estava tão alijada do debate institucional na Europa. Seu programa, ainda que tímido, projetando uma revisão do pacto fiscal europeu e um revigoramento dos investimentos públicos, bem como a taxação maior de grandes fortunas e lucros, é um passo adiante significativo e necessário. Mas o sucesso de Le Pen evidencia o vigor da extrema-direita francesa, também com alcance europeu. Sua penetração entre os jovens mostra como o futuro está a perigo – e como a Europa está à deriva. revista do brasil Maio 2012

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cidades

O

brasileiro, diz a publicidade, é “apaixonado por carro”. Para confirmar a tese, o país tem hoje uma frota de 40 milhões de automóveis, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), um crescimento de 78% em dez anos. A consequência dessa paixão não é das mais românticas: trânsito. A epidemia afeta todas as grandes cidades. Em São Paulo, foco maior do problema, com mais de 5 milhões de automóveis, os recordes de congestionamento são batidos cotidianamente. Resultado de uma opção – política – pelo transporte individual. No meio do congestionamento de ideias requentadas, um sinal verde pode ter se aberto com a entrada em vigor, em abril, da nova Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU). A Lei nº 12.587 estabelece diretrizes para as políticas de mobilidade de estados e municípios, além de fornecer novas ferramentas para a sociedade civil cobrar dos governantes. O texto também esclarece os direitos dos usuários, como ser informado sobre itinerários, horários e tarifas dos serviços nos pontos de embarque e desembarque. A maioria dos dispositivos não é obrigatória para os municípios – responsáveis pelas políticas urbanas de transporte, de acordo com a Constituição. São antes limites e diretrizes para balizar a ação das prefeituras, mas passam também a ser considerados para a liberação de recursos federais. A lei, no entanto, não define um fundo específico para o tema. “A sociedade tem um papel importante de divulgar e aprender a fazer uso dessa lei para contestar medidas do poder público que contrariem as diretrizes, questionar contratos. Isso vai depender muito dessa ação política da sociedade civil, do Ministério Público e de gestores mais ousados”, avalia Alexandre de Ávila Gomide, titular da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “É como uma caixa de ferramentas, que muita gente tem em casa e não aprende a usar. Mas com certeza no médio prazo a lei vai apresentar resultados.”

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maio 2012 revista do brasil

cole O caminho é

Nova política de mobilidade urbana é instrumento para a sociedade cobrar melhores condições de transporte nos grandes centros Por Nicolau Soares

Algumas medidas têm caráter impositivo, como a determinação de que todos os municípios acima de 20 mil habitantes elaborem seu plano de mobilidade – com a exigência explícita de participação popular e articulação com o Plano Diretor, previsto pelo Estatuto das Cidades para municípios do mesmo porte. “A mobilidade é um dos principais estruturadores, se não o principal, do Plano Diretor. Se não tiver uma conversa bem atrelada, um pode dificultar a implementação do outro. Se você planeja o adensamento de uma área da cidade que não tem transporte coletivo, privilegia alguma classe


cidades

Se correr o bicho pega... Torturada pelo transporte público, Andresa entrou no consórcio de um carro, mas tem dúvidas se isso resolverá seu problema

de São Paulo, a PNMU chega num momento oportuno. “A política está em discussão. Embora tenha sido aprovada agora, traz conceitos trabalhados há tempos na área da mobilidade sustentável que são fundamentais para a garantia da melhoria da qualidade de vida, ambiental e social”, afirma. “Esses conceitos já foram abordados no Planejamento Regional Estratégico e estão sendo considerados para a elaboração do Plano de Mobilidade Regional, atualmente em processo de contratação.” Uma das medidas em estudo é a implementação de rodízio de veículos, a exemplo da capital.

etivo social”, afirma Ricardo Correa, urbanista e sócio da TC Urbes, empresa de consultoria em mobilidade sustentável. Aracaju, capital de Sergipe, já iniciou as discussões para a criação de seu Plano Diretor de Mobilidade Urbana. A intenção da administração municipal é construir um amplo processo de participação da população e da sociedade civil organizada. Foram realizados seminários e reuniões com líderes comunitários, organizações não governamentais e outros atores sociais para apresentar as premissas do plano e receber críticas e propostas. Também foi aberta uma consulta pública on-

-line para que os cidadãos possam contribuir e uma série de audiências públicas está sendo realizada pelos bairros. “A intenção é que o plano seja construído de acordo com os anseios da população, levando em conta o zonea­mento da cidade, as áreas em expansão, os pontos de tráfego”, diz Raquel Passo, assessora da Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito. “As informações trazidas pelos moradores serão analisadas e associadas com as informações mais técnicas.” Para Mário Reali, prefeito de Diadema e presidente do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, na região metropolitana

Ivone Perez

Prioridade

Entre os princípios básicos da lei, está a prioridade para o transporte público, coletivo e não motorizado, em detrimento do transporte individual e motorizado – leia-se automóvel. A intenção é tirar carros da rua, seja por meio de incentivos ao transporte coletivo, seja por “desincentivos” ao individual, caso do rodízio adotado em São Paulo e mesmo do pedágio urbano – prática comum no exterior –, regulamentado pela nova lei e opção a partir de agora para as prefeituras. A conta é simples, como demonstram dados de Horácio Augusto Figueira, consultor em engenharia de tráfego e de transportes e vice-presidente da Associação Brasileira de Pedestres. Um ônibus convencional transporta 35 pessoas sentadas e ocupa 15 metros de uma faixa de tráfego. Considerando a média de 1,4 pessoa por automóvel – 70% dos carros levam apenas o condutor –, são necessários 25 carros para atender ao mesmo contingente. E, com seis metros cada um, em média, ocupam 150 metros de faixa, dez vezes mais do que um ônibus. A questão é promover uma distribuição mais igual dos espaços. “Hoje 20% das pessoas que se deslocam nas cidades usam quase 80% do espaço viário, enquanto o transporte coletivo e o não motorizado, que beneficiam a maioria, ficam com apenas 20%”, diz Alexandre Gomide, do Ipea. revista do brasil Maio 2012

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cidades

Caro, lotado e demorado

fotos danilo ramos

no local de embarque do trem, uma virada na trama: Jaqueline segue no sentido contrário, até o Grajaú, tornando-se um exemplo vivo do que os urbanistas chamam de “viagem negativa”. “O trem já vem lotado e não dá pra entrar. Eu poderia esperar vários passarem e ir apertada, mas prefiro voltar e ter mais conforto”, diz. O processo todo leva em torno de uma hora e meia, sem contar a possibilidade de atrasos, trens quebrados, falhas de comunicação entre as estações e outros fatores que ampliam a desconfortável viagem. Mais uma hora, pelo menos, para chegar a Pinheiros. Jaqueline vai para o ponto e espera outro ônibus – que, como não poderia deixar de ser, demora (passa a cada meia hora) e vai lotado. Chega à PUC por volta das 9h, três horas e meia depois de sair de casa. “É uma situação inacreditável. O preço da condução é caro e não oferece condição nenhuma. São ônibus e trens hiperlotados, sem conforto algum. Falta investimento em políticas públicas de transporte”, indigna-se.

Gleison Miranda/ Futura Press

A rotina de Jaqueline Conceição, moradora do Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo, para chegar à Pontifícia Universidade Católica (PUC), no campus de Perdizes, na zona oeste, onde cursa mestrado, começa às 5h30, quando consegue, após até 30 minutos de espera, embarcar no ônibus, primeira condução lotada que enfrentará. Em 45 minutos (num trajeto que sem trânsito leva menos de 20), alcança a estação Capão Redondo do metrô. A fila começa ainda na calçada. “Vem gente de toda a região e até de cidades vizinhas, como Embu das Artes e Itapecerica, para pegar o metrô aqui”, relata. Na plataforma, espera a passagem de três ou quatro composições até conseguir entrar. Desce na estação Santo Amaro e faz a baldeação para uma linha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), onde seguirá no sentido Osasco até a estação Pinheiros. O processo, no entanto, não é simples. Entre sair do metrô e chegar à plataforma do trem, gasta cerca de 40 minutos num mar de gente. Uma vez

Exemplo Rio Branco: 100 quilômetros de ciclovias integradas ao transporte público

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maio 2012 revista do brasil

Daí a necessidade de investir em transporte público. Mas o prefeito da capital paulista parece discordar. Hoje, a cidade conta com 126 quilômetros de corredores exclusivos para ônibus, 67 construídos na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy. O atual, Gilberto Kassab, estabeleceu em sua eleição a meta de entregar 66 quilômetros de novos corredores. Até agora, nada foi feito. Em março, Kassab resolveu correr atrás do prejuízo e anunciou licitação estimada em R$ 2 bilhões para obras de transporte, incluindo quatro novos corredores (39 quilômetros, ainda abaixo da promessa), que não serão terminadas em seu mandato. A estagnação também se mostra nas obras do metrô. A cidade de São Paulo, por exemplo, mesmo com os investimentos recentes, conta com apenas 74,3 quilômetros de linhas – menos que Buenos


cidades

Aires, na Argentina (75 quilômetros) e Santiago do Chile (94,9) e pouco mais de um terço do total da Cidade do México (201,4). O Rio de Janeiro, com seus 34,9 quilômetros construídos, perde ainda para Caracas, na Venezuela (42,7). Os projetos, no entanto, começaram a ser implementados em período semelhante em todas as cidades, entre 1969 (Cidade do México) e 1979 (Rio de Janeiro) – a exceção é Buenos Aires, o mais antigo, de 1913. O resultado do descaso é o título conquistado pela Linha 3-Vermelha, que atende a zona leste de São Paulo: a mais lotada do mundo. São cerca de 1,4 milhão de passageiros por dia. Em lugar de transporte coletivo, a resposta usual dos governos tem sido outra: construir mais ruas. O exemplo novamente vem da capital paulista, onde, em abril de 2010, o governo do estado inaugurou

o trecho sul do Rodoanel e a ampliação da Marginal do Tietê, com custos de, respectivamente, R$ 1,3 bilhão e R$ 5,03 bilhões. No momento da inauguração, estimativas do Executivo estadual previam redução de até 12% nos índices de congestionamento da cidade. Não durou: um ano depois, a média no pico da manhã já alcançava 104 quilômetros de lentidão, 18% maior do que antes das obras. As comparações tornam mais difícil entender a opção. O dinheiro gasto nas duas obras de efetividade duvidosa supera o custo total da Linha 4-Amarela do metrô, com 12 quilômetros de extensão, de cerca R$ 5,4 bilhões. Montante suficiente para a construção de 168 quilômetros de corredores de ônibus. Um projeto anterior à PNMU, mas de linha semelhante, está em curso no Rio, uma das sedes da Copa do Mundo de

2014 e palco da Olimpíada de 2016. Todo o sistema de transporte coletivo está sendo reorganizado com a criação de um Anel de Transporte de Alta Performance, que ampliará o índice de cobertura de transporte de alta capacidade dos atuais 18% para 63% da população até 2016. O projeto inclui a criação de quatro corredores de BRT (Bus Rapid Transit), modelo semelhante ao adotado em Curitiba. Serão 151 quilômetros de vias exclusivas e separadas fisicamente das demais pistas. As obras podem ajudar a jornalista Andresa Feijó, que mora do bairro de Vargem Pequena, na zona oeste do Rio (1.932.066 automóveis em fevereiro). Ela trabalha no centro, no bairro de Fátima, e leva em média 2 horas e 40 minutos para chegar ao trabalho. “Mas tudo depende. Tem dias em que consigo fazer em menos tempo e outros em que não consigo revista do brasil maio 2012

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danilo ramos

cidades

Questão de justiça Ricardo: “Uma mobilidade democrática garante a todos igualdade no acesso aos recursos da cidade”

chegar na hora, e isso não depende só do horário em que saio”, diz. Vargem Pequena sofre há anos com a questão do transporte. Somente uma viação faz o trajeto e as condições são complicadas. “Eles fazem o que querem, colocam ônibus a cada meia hora, atrasam.” Ao chegar à estação Del Castilho do metrô, o problema é a superlotação. “Às vezes deixo passar uns três carros antes de entrar no vagão. As pessoas saem socando, se estapeando, é uma cena horrorosa”, conta. “São os 20 minutos mais longos do meu dia. O ar-condicionado diversas vezes não funciona, fica todo mundo suado, estressado, mal consigo pôr os pés no chão de tão cheio.” O cenário não melhora até o desembarque, na estação Central, de onde caminha 20 minutos até o trabalho. Andresa está pagando o consórcio de um carro, mas tem dúvidas se isso resolverá o problema. “Não sei se pegar aquele 20

maio 2012 revista do brasil

trânsito me beneficiaria em termos psicológicos. No ônibus, ouço música, estudo, durmo. Num carro, não tem jeito.” “O que está por trás da nova lei é a reconquista da rua. Hoje temos uma rua monofuncional do automóvel, de preferência o modelo ‘tanque de guerra’ preferido pela classe média egoísta”, critica o urbanista Alexandre Delijaicov, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Os trajetos a pé não são insignificantes no Brasil nas pesquisas de origem-destino. É preciso requalificar as calçadas, com uma arquitetura que atraia a se sentar, permanecer no espaço público. Os municípios precisam remodelar as calçadas, com piso antiderrapante, guia rebaixada, mobiliário urbano adequado, como bancos com encosto”, sustenta. Para ele, a lei vai na contramão de um “urbanismo rodoviarista, capitalista, submetido ao mercado” ao incluir os

trajetos a pé e com veículos não motorizados, como a bicicleta, nas discussões a respeito de mobilidade. Exemplo de suas próprias ideias, gasta, há 14 anos, 30 minutos de bicicleta de sua casa, no Itaim Bibi, até a USP, onde leciona. “É outra relação com a cidade. Você passa a perceber outras coisas, fala com as pessoas. É outra maneira de cordialidade, troca de olhar. Você é envolvido pela cidade, é um acolhimento, um recinto urbano. A rua passa a ter dimensão equivalente à sala de estar sem teto”, diz.

Diferenças

O urbanista Ricardo Correa afirma que as limitações são reflexos das diferenças sociais e ajudam a perpetuá-las. Segundo ele, na situação atual, quem utiliza carro faz em média quatro ou cinco viagens por dia. Já quem usa o transporte público faz em média 1,5 viagem. “Quem tem car-


cidades

ro tem mais acesso à cidade. Leva o filho na escola, faz cursos, desfruta de lazer. Ou seja, tem maior possibilidade de usar os recursos da cidade, públicos ou privados”, diz. “Com uma mobilidade mais democrática, a longo e médio prazo aumenta a possibilidade de qualquer camada social gastar menos tempo se deslocando e ter igualdade no acesso à cidade.” Cicloativista, ele vê no reconhecimento da bicicleta e de outros veículos não motorizados um dos avanços da lei. “Esses meios favorecem o adensamento urbano. Com isso, além do impacto no cotidiano das pessoas, você impacta os cofres públicos. Uma cidade mais densa significa que as redes públicas – escolas, hospitais, água tratada, esgoto – podem ser menores. Mesmo a rede de transporte coletivo.” Um exemplo de engajamento governamental no apoio ao transporte não motorizado vem de Rio Branco, capital do Acre. Com 350 mil habitantes, a cidade tem uma rede de mais de 100 quilômetros de ciclovias distribuídas em todo o território e integradas com o transporte público, configurando a maior rede cicloviária per capita do país. A pedido da prefeitura, a TC Urbes, de Ricardo Correa, projetou a requalificação dos quilômetros de ciclovias existentes e as diretrizes dos quilômetros restantes para complementar uma rede de 160 quilômetros, objetivo do Plano de Mobilidade da cidade. O projeto prevê a criação de bicicletários em prédios públicos e outras facilidades para os ciclistas. “Eles querem se tornar modelo para a região amazônica, mas acho que serão modelo para o mundo. Há vias na cidade que têm mais ciclistas que motos e em número quase igual ao de carros. Na Avenida Chico Mendes, por exemplo, passam cerca de 500 ciclistas em horário de pico; no dia inteiro na Avenida Paulista, em São Paulo, 300, em média”, diz. Ricardo acredita que a PNMU traz a possibilidade de buscar um modelo nacional de mobilidade. “Podemos mudar realmente as cidades. É um processo difícil, mas temos um amadurecimento da sociedade civil, que está se organizando. A nova lei é fruto dessa organização. Agora, há um instrumento mais claro para fazer pressão sobre o poder público”, afirma.

Os intermodais

Série exibida pela TVT

Moradores tentam fugir do carro e buscam novos meios de transporte na metrópole Bicicleta, skate, moto, caminhada, carona solidária. As pessoas buscam alternativas para escapar do inferno do trânsito, conforme demonstrou uma série especial de reportagens sobre mobilidade urbana levada ao ar pelo Seu Jornal, da TVT. O programa, exibido de segunda a sexta das 19h às 20h30, mostrou alguns dos chamados meios intermodais, com gente que usa vários tipos de transporte. O professor de aikidô José Roberto Bueno, por exemplo, conta que três anos atrás resolveu deixar o carro na garagem para “ver como se move na cidade” sem o automóvel – e começou a pedalar. “E a primeira descoberta foi que não há uma maneira só de dirigir”, afirma. Para ele, o futuro do transporte está nos trilhos e na bicicleta. “Carro cria isolamento.” Para o publicitário Maurício Alcântara, um dia São Paulo será “uma cidade amiga da bicicleta”. Hoje, as poucas dezenas de quilômetros de ciclovias parecem desaparecer diante do 1 milhão de quilômetros na Dinamarca. Ele teve carro durante quatro anos, mas conta que nunca gostou de dirigir, ainda mais em um trânsito cada vez mais violento e cansativo. O editor de imagens Gabriel Novaes Custódio, morador do ABC, na região metropolitana de São Paulo, encontrou na motocicleta sua solução para a mobilidade. “Eu levava um hora e 20 de ônibus e trem para chegar ao trabalho. Com a moto, no máximo 25 minutos, às vezes menos”, destaca ele, que diariamente dá carona ao amigo João Ruiz. O ganho de tempo vem acompanhado de dificuldades, como os buracos no asfalto e a competição com carros e caminhões. “Ganho tempo indo pelo corredor, cortando entre os carros. Mas os carros fecham a gente direto”, afir-

Bueno: “Carro cria isolamento”

ma. Gabriel considera fundamental ter “a viseira em dia, um capacete de marca boa e muito cuidado”. “Não dá pra ficar enfiando a moto onde não cabe.” Em alguns estados, como Acre, Ceará e Maranhão, como lembra o programa, a frota de motos supera a de automóveis. E duas de cada dez motocicletas do país circulam em São Paulo. Na mesma reportagem, o professor de skate Carlos Eduardo Campos mostra que às vezes é possível andar pelas ruas usando esse pequeno transporte. “É um modo de protesto também”, diz. Repartir a tarefa de levar os filhos à escola foi uma maneira encontrada pelo empresário Ezequiel Andrade e dois colegas para aliviar a rotina diária – um deles dá a carona às segundas e quartas-feiras, outro às terças e quintas e o último às sextas. “Uma questão de conscientização”, diz Ezequiel. “Compensa não só para a pessoa, mas para a coletividade.” O montador de orquestra Carlos Alberto Sotero e a funcionária pública Sônia levantam às 4h30 para uma maratona urbana que inclui ônibus, metrô e lotação. Todos cheios, claro. O número de passageiros de ônibus cresceu 8% nos últimos três anos; a frota, nada. “Eu poderia estar num curso, mas preciso ficar aqui me aperfeiçoando para ter paciência”, ironiza Sônia. Também servidora pública, Maria de Fátima de Morais decidiu percorrer a pé o quilômetro e meio que separa sua casa do trabalho. Ganhou em economia e saúde. “Meu colesterol bom aumentou muito”, conta. Sintonize a TVT Canal 48 UHF (19h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br

Gabriel ainda dá carona

Carlos: protesto

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saúde

Perigo D urante muito tempo, uma dieta rica em frutas, verduras, legumes e cereais era garantia de saúde porque suas vitaminas, minerais, fibras e proteínas são essenciais para o bom funcionamento do organismo. Mas essa opção já não é tão saudável. Agroquímicos largamente usados para compensar a terra maltratada e exaurida e para matar ervas daninhas e insetos, sob pretexto de aumentar a produção, permanecem nos alimentos e causam uma série de doenças. Estudos científicos, inclusive dos próprios fabricantes durante o desenvolvimento dos produtos, constatam prejuízos à saúde. A pesquisadora Raquel Rigotto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, conta que há intoxicações agudas que surgem logo após as pulverizações, sinalizadas por dor de cabeça, náusea, alergia, ardor na pele, 22

maio 2012 revista do brasil

Agrotóxicos contaminam os alimentos, a terra, a água, o ar, causam doenças graves e matam Por Cida de Oliveira

no nariz e até convulsões, coma e morte. E há os efeitos crônicos pelo acúmulo de veneno no organismo, afetando quem planta e quem consome. “Causam alterações hormonais, no fígado e rins, abortos, malformações congênitas, câncer de tireoide, de mama, leucemia, distúrbios cerebrais e comportamentais, como tentativas de suicídio”, esclarece Raquel, que

estuda os impactos das pulverizações aéreas na região da chapada do Apodi, no Ceará. Há aumento de casos de câncer, mas a pesquisadora diz que a subnotificação esconde os números reais. Existe ainda o potencial agravamento dos problemas de saúde devido a mistura de ingredientes ativos, dosagens maiores e as aplicações seguidas para compensar a resistência das plantas aos componentes. O relatório mais recente do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), traz dados preocupantes. Das 2.488 amostras colhidas em 2010, apenas 37% estavam livres de veneno. Isso preocupa por se tratar de alimentos comuns da mesa dos brasileiros: arroz, feijão, alface, tomate, batata, cebola, laranja, repolho, pepino, abacaxi, beterraba, cenoura, couve, maçã, mamão, manga, morango e pimentão. E so-


saúde

Elza Fiuza/ABr

no campo e na cidade reprovados Em 28% dos alimentos analisados pela Anvisa em 2010 havia agrotóxicos proibidos ou acima do limite

mente em 35% havia resquícios em doses inferiores ao limite permitido. Já em 28% havia sinais de produtos proibidos para aquela planta, além de substâncias autorizadas mas acima do permitido. Há culturas que recebem produtos impróprios, banidos no país ou nem sequer registrados para uso. Segundo a agência,

59,9% das amostras apresentaram pelo menos um ingrediente ativo irregular e 23,3%, ao menos dois. Em uma porção de morango havia seis diferentes ingredientes e em uma de pimentão, sete. Entre os venenos mais encontrados estão o carbendazim e o clorpirifós, com uso restringido pela Anvisa, o metamidofós, em processo de proibição, e o acetato. Das 694 porções insatisfatórias, 30% continham sobras de componentes ativos que não deveriam ser usados porque estão em processo de reavaliação toxicológica. “A mandioca, o milho e a soja, base da indústria de muitos alimentos, ainda não são analisados porque o processo é complexo e caro”, afirma Luiz Cláudio Meirelles, gerente-geral de toxicologia da Anvisa. Segundo Meirelles, o órgão trabalha pelo banimento de agrotóxicos proibidos em outros países e pelo cumprimento das normas estabelecidas por lei. “À luz do

Ricardo Teles/pulsar imagens

agroveneno Em Primavera do Leste (MT), trator faz pulverização da soja

conhecimento científico atual, há limites para o uso seguro. Mas é claro que isso pode mudar. Há 30 anos, substâncias hoje sabidamente cancerígenas, como o BHC (hexabenzeno de cloro) e o DDT (dicloro-difenil-tricloroetano), eram liberadas.” A presença de resíduos acima do limite tido como seguro decorre do uso abusivo, sem intervalo entre a última aplicação e a colheita, e do desrespeito às orientações. “Lavar os alimentos em água corrente só retira parte dos resíduos presentes na casca e nas folhas. Alguns agrotóxicos são absorvidos pelos tecidos internos da planta e, se não forem degradados pelo metabolismo do próprio vegetal, serão ingeridos”, afirma Rosany Bochner, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox). Como ela destaca, a toxidez dessas substâncias supera a dos medicamentos. “Enquanto o agrotóxico mata três a cada 100 intoxicados, os medicamentos matam um a cada 200.” Em 2009, foram registrados 7.677 casos agudos (7,64% do total) causados por produtos de alta toxicidade, como o chumbinho, vendido nas cidades e de maneira ilegal, para matar ratos. “Muito usado em tentativas de suicídio, acarreta um grave problema de saúde pública.” O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Em 2010, foram comercializados mais de 1 milhão de toneladas, o equivalente a 5 quilos por habitante. A triste liderança começou entre 2001 e 2008, quando as vendas passaram de US$ 2 bilhões para mais de US$ 7 bilhões. No mesmo período, a área cultivada por alimentos aumentou só 4,59%. “Os lucros seguem para as matrizes no exterior. Nós ficamos com as doenças e o impacto ambiental”, diz o agricultor Cleber Folgado, da coordenação da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida. As extensas lavouras de soja, milho e algodão colocam Mato Grosso como o maior consumidor nacional. Como em outras áreas, no estado o veneno geralmente é pulverizado por aviões ou outros implementos, ignorando limites de córregos, beiras de rio e quintais das casas, revista do brasil Maio 2012

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Novos velhos hábitos Em Linhares (ES), a família de Ana Cristina e Elias (à dir.) pratica a agricultura diversificada com manejo ecologicamente correto

danilo ramos

conforme determinam inócuas instruções normativas do Ministério da Agricultura. Segundo especialistas, o vento e as chuvas espalham o veneno, alcançando também os lençóis freáticos. Estudos coordenados por Wanderlei Pignati, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso, mostram que, além de pessoas e animais, a terra, o ar, a chuva, as águas e até o leite materno estão contaminados nas cidades de Rio Verde e Campo Verde. Ele conta que, das 232 amostras de água de poços artesianos, 83% continham vários tipos de pesticida. O mesmo ocorreu com 56% das amostras de água de chuva recolhidas nas escolas: 25% apresentavam pelo menos dois tipos de veneno, como o endossulfam – que será proibido a partir de julho. O leite de 62 mães que participaram do estudo continha uma substância derivada do DDT, proibido em 1985 para a agricultura, e 76% tinha endossulfam. Algumas das mães tiveram filhos com malformações congênitas. No sangue de trabalhadores rurais havia o dobro de resíduos de glifosato em relação ao de moradores da zona urbana. “Comparações mostram que o problema é maior onde os agroquímicos são usados em quantidades maiores”, afirma Pignati. Segundo ele, outras pesquisas no estado apontam maior incidência de câncer nos municípios onde há maior pulverização. Os dados respaldam a luta de movimentos sociais e sindicatos, que já resultou em ações do Ministério Público. Pesquisadora da Fiocruz em Recife e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, Lia Giraldo da Silva Augusto afirma que os malefícios dos agrotóxicos são denunciados desde a década de 1960. Os produtos daquela época, os organoclorados, foram substituídos pelos fosforados, que se mostraram ainda piores. “Como essas substâncias não atacam apenas as pragas que se deseja eliminar, as intoxicações são mais intensas.” Outra questão é a falta de estudos sobre os danos causados pelo acúmulo de pequenas quantidades. “Prevalece ainda a ideia de que os agrotóxicos só trazem problemas agudos. O que mais preocupa, em termos de segu-

Fabio Lanes de Souza

saúde

Saudável Problemas nos rins levaram Maria Luiza a se alimentar apenas com orgânicos


saúde

fotos andréa graiz

Efeito cascata Emerson: “O arroz tradicional utiliza muito inseticida, adubo, fertilizante e ureia, que contaminam a água dos arrozais e, depois, os córregos para onde correm”

Alimentando milhares A Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre espera comercializar este ano 280 mil sacas de arroz ecológico

rança alimentar, é justamente essa exposição crônica, que se confunde com outras causas de doenças.” Conhecendo os riscos dos agrotóxicos, a professora de tai chi chuan Maria Luiza Hourneaux Affonso, de Santo André, no ABC paulista, optou por uma alimentação agroecológica há mais de 30 anos. E ganhou saúde. Antes, ao fazer exames para doar um rim para o pai, soube que tinha o mesmo problema. A doença, que atinge todos os familiares, evolui para a insuficiência renal, que exige sessões de hemodiálise e posterior transplante. “Como os filtros do meu organismo estavam comprometidos, eu não poderia continuar ingerindo venenos. Deixei de consumir alimentos com agrotóxicos, cortei carne, e convivo até hoje com meus rins.” Segundo conta, nunca precisou fazer hemodiálise.

Um primo bem mais novo não teve essa preocupação e está na fila do transplante. No final de 2011, a Comissão de Seguridade Social da Câmara aprovou relatório sobre o uso de agrotóxicos. De acordo com o texto do relator, padre João (João Carlos Siqueira, PT-MG), esses produtos são beneficiados pela redução de ICMS e isenção de IPI para vários ingredientes ativos perigosos e de recolhimentos para o PIS/Pasep e Cofins. Há ainda benefícios estaduais, como no Ceará, onde a isenção chega a 100%. Já a produção agroecológica, com métodos alternativos para o controle de pragas e doenças, não tem incentivos. Mesmo assim, há pequenos agricultores que romperam com o sistema que os obriga a comprar sementes, inclusive transgênicas, e pesticidas como condição

para o acesso ao crédito. Muitos trabalham para produzir alimentos livres de veneno. Em Linhares, no Espírito Santo, os familiares de Ana Cristina Soprani e Elias Alves dos Santos deixaram para trás a monocultura do café praticada por mais de duas décadas. Nos últimos 12 anos, se organizaram para o retorno a uma produção diversificada. Tiveram de recuperar o solo degradado, frequentar reuniões e cursos de agroecologia. Hoje produzem feijão, milho, mandioca, café, banana, laranja, abóbora, quiabo, jiló, maxixe, mamão e coco verde, além de doces e pães caseiros. Ao todo, são comercializados 1.600 quilos de alimentos toda semana. “Não queremos selo para agregar valor à nossa produção, mas oferecer à classe trabalhadora o mesmo alimento saudável que está na nossa mesa”, diz Ana Cristina. Em Nova Santa Rita (RS), a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre já comercializa arroz branco, integral e parboilizado. A safra deste ano está prevista em 280 mil sacas. São 417 famílias, de 16 assentamentos, cultivando 3.993 hectares de arroz ecológico. Para o produtor Emerson José Giacomelli, essas famílias poupam o meio ambiente de agressões químicas. “O arroz tradicional utiliza muito inseticida, adubo, fertilizante e ureia, que contaminam a água dos arrozais e, depois, os córregos para onde correm.” Outro diferencial, segundo ele, é o preço. Como as famílias controlam desde a produção das sementes até a distribuição, os produtores vendem mais barato e têm melhor renda. Para a agrônoma Nívia Regina da Silva, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é possível alimentar toda a população sem agrotóxicos. Isso, porém, exige mudanças no campo, hoje marcado pela concentração de terra, monocultura de produtos para exportação e uso de sementes modificadas, fertilizantes e pesticidas. “A luta do pequeno agricultor, que realmente produz alimentos, é enorme. Ele é obrigado a comprar sementes que não brotam, que exigem a presença de agroquímicos, os quais, por sua vez, exigem sementes melhores. É um círculo vicioso. Se não mudarmos essa forma de produção, teremos um país doente.” revista do brasil maio 2012

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ambiente

O futuro , 20 anos depois Rio volta a sediar debate mundial sobre ambiente e desenvolvimento. Mas o clima é outro Por Maurício Thuswohl

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inte anos depois, o Rio de Janeiro voltará a ser a capital mundial do meio ambiente. A cidade, que sediou em 1992 a histórica Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – mais conhecida como Eco-92 – se prepara agora para receber a Rio+20 em um cenário bem diferente daquele de duas décadas atrás. A efervescência política que na Eco-92 resultou na adoção dos diversos acordos e convenções que criaram um arcabouço para as políticas ambientais globais dá lugar a um cenário de incerteza. Questiona-se a real capacidade que terão os diversos países para enfrentar a tempo problemas como o aquecimento global,

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a perda da biodiversidade e o aumento do impacto das mudanças ambientais sobre as populações humanas mais vulneráveis, entre outros. Precedida pelo pouco avanço obtido nos últimos quatro anos, durante as conferências da Convenção sobre Mudanças Climáticas da ONU (conhecidas como COP), a Rio+20 busca encontrar uma agenda positiva em meio a um clima de pessimismo ambiental agravado pela crise financeira global que atinge, sobretudo, os países mais industrializados. Foram determinados três temas principais para a conferência – economia verde, estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza –, presentes no esboço de tese-guia chamado


Lee Celano/REUTERS

ambiente

dos mercados financeiros. “Alguns países, como Estados Unidos, Canadá, França e Austrália, não querem reconhecer o acesso aos recursos naturais como um direito humano. Estamos correndo sério risco de perder todas as conquistas de direitos humanos dos últimos 20 anos, além de ter um retrocesso no marco jurídico ambiental internacional”, diz. As críticas ao Rascunho Um partem também de representantes governamentais, caso do alemão Achim Steiner, diretor executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma): “Concordo com o sentimento dos grupos da sociedade civil que estão preocupados com o rumo das negociações e os resultados da Rio+20. Acho justa a pressão por uma conferência mais ambiciosa. O processo preparatório está muito lento, e isso tem atrapalhado as negociações”, afirma. Na tentativa de aprofundar as discussões, o grupo de países do G-77, do qual o Brasil faz parte, solicitou no início de abril que o calendário de negociações em torno da tese-guia da Rio+20 fosse estendido, mas a proposta foi vetada pelos países ricos. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, não aceita discutir a criação de mecanismos de financiamento para ações de incentivo aos países mais pobres para que estes desenvolvam técnicas de produção sustentável e de combate ao desmatamento e ao aquecimento global. Diante da pouca vontade política demonstrada por alguns países durante as negociações para o Rascunho Um, há quem tema pelo esvaziamento da Rio+20. Essa preocupação, no entanto, é afastada pelo anfitrião da conferência, o governo brasileiro, segundo o qual 100 chefes de Estado já teriam confirmado

Rascunho Um (Draft One). O documento, no entanto, é considerado vago e insatisfatório por diversos atores que participarão da Rio+20, pois não questiona os atuais padrões de produção e consumo da humanidade e ignora temas como justiça socioambiental e direitos humanos. “O Rascunho Um parece não enxergar nenhuma relação entre o homem e o meio ambiente”, resume a antropóloga Iara Pietricovsky, que participa das discussões em Nova York como representante do Grupo de Articulação (GA) da Cúpula dos Povos, evento que será protagonizado por redes, organizações e movimentos sociais de todo o mundo em paralelo à Rio+20. Segundo Iara, os itens referentes a temas como o direito a água potável, saneamento básico e alimentação adequada foram suprimidos, assim como o item que abordava a regulamentação

Jayanta Dey/REUTERS

Planeta nervoso Os fenômenos climáticos ficaram mais intensos nos últimos 20 anos. Furacões, como o Katrina, e períodos longos de estiagem, na Índia, causam transtornos

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Cheryl Ravelo/REUTERS

ambiente

Poluição Águas da baia de Manila, Filipinas, no último domingo de Páscoa

presença no encontro, de 20 a 22 de junho, no Rio de Janeiro. Algumas baixas importantes, no entanto, já podem ser contabilizadas. É o caso do primeiro-ministro da Inglaterra, David Cameron, que avisou oficialmente ao Brasil que não virá à Rio+20. Outro que não deverá se deslocar até o Rio é o presidente norte-americano, Barack Obama. Convidado pela presidenta Dilma Rousseff em sua visita aos Estados Unidos, no começo de abril, Obama alegou compromissos com sua campanha eleitoral para justificar a ausência. Em que pese a falta de alguns personagens importantes, a expectativa é que cerca de 50 mil pessoas participem da Rio+20 e da Cúpula dos Povos. A conferência oficial será no Riocentro e o encontro da sociedade civil, no Aterro do Flamengo, território considerado simbólico pelo movimento socioambiental por ter recebido o Fórum Global durante a Eco-92. Outras atividades ocorrerão em diversos pontos da cidade, como a Barra da Tijuca e a zona portuária, e a previsão de gastos do Ministério da Defesa com a montagem do aparato de segurança, que terá cerca de 20 mil homens, é de R$ 150 milhões. Na seara política, a sociedade civil espera que se faça na Rio+20 um balanço dos avanços obtidos na implementação prática dos principais acordos firmados na Eco-92. A herança deixada há 20 anos é rica: Convenção sobre Mudanças Climáticas, Conven28

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Mariana Bazo/REUTERS

Balanço

Expansão Agropecuária A floresta amazônica está ficando sitiada por gado e soja


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Alternativas A exploração da energia limpa ainda é tímida

Pascal Rossignol/REUTERS

Economia verde

ção sobre Diversidade Biológica, Convenção sobre Desertificação, Carta da Terra e Agenda 21. Os resultados, no entanto, são considerados insuficientes duas décadas depois: “Querem evitar que façamos esse balanço da Eco-92 durante a Rio+20, mas ele é urgente e necessário. É preciso pôr os governantes contra a parede e mostrar que nada ou muito pouco foi feito de lá para cá”, afirma Pedro Ivo Batista, representante do Comitê Nacional em Defesa das Florestas no GA da Cúpula dos Povos. A ausência de temas importantes no Rascunho Um também aumenta a preocupação de que sejam ignorados na Rio+20: “A luta contra a desertificação é muito importante e interessa a muita gente, mas eles não querem discutir essa temática. Somente no Brasil, para se ter uma ideia, cerca de 32 milhões de pessoas vivem no semiárido”, exemplifica o agrônomo Procópio Lucena, dirigente da rede Articulação do Semi-Árido (ASA) e também integrante do GA da Cúpula dos Povos. Há ainda temas que não estão sendo tratados a contento pelos negociadores oficiais, na opinião dos ambientalistas: “Ao que tudo indica, não há a intenção de discutir a fundo biodiversidade e mudanças climáticas ou de fazer um balanço minucioso da implementação da Agenda 21. Ou seja, podemos ter um retrocesso em relação à Eco-92”, alerta Carlos Henrique Painel, também membro do GA e dirigente do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente (FBOMS).

Segundo o que aponta o Rascunho Um, as discussões na Rio+20 deverão se dar prioritariamente em torno dos temas que dizem respeito à economia verde, como vem sendo chamado o conjunto de medidas discutidas ou adotadas pelos governos e pelo mercado em busca de práticas econômicas sustentáveis. Temas como a criação de empregos verdes, a utilização de energia e materiais renováveis e a constituição de um mercado de créditos de carbono parecem atrair a atenção dos negociadores oficiais. Nesse contexto, o governo brasileiro espera pautar a discussão sobre a adoção global de mecanismos de estímulo econômico à melhora da qualidade de vida das populações nos países mais vulneráveis: “É preciso pensar, por exemplo, em programas de transferência de renda ligados à questão ambiental”, diz o embaixador André Corrêa do Lago, negociador-chefe para a Rio+20 do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Na visão dos ambientalistas, por outro lado, o conceito de economia verde, além de vago, está sendo apropriado e banalizado pelo mercado: “Não dá para falar em economia verde sem discutir mudanças nos padrões de consumo e na produção atual­mente em vigor”, diz Fátima Mello, diretora da organização FASE e integrante do GA da Cúpula dos Povos. Para o sociólogo brasileiro Michael Löwy, um dos pais da teo­ ria ecossocialista, as coisas precisam ser ditas como são, muito além das aparências e dos discursos fáceis: “Não é por acaso que os redatores do tal rascunho preferem deixar o termo sem definição, bastante vago. A verdade é que não existe ‘economia’ em geral. Ou se trata de uma economia capitalista, ou de uma economia não capitalista. No caso, a ‘economia verde’ do rascunho não é outra coisa do que uma economia capitalista de mercado que busca traduzir em termos de lucro e rentabilidade algumas propostas técnicas ‘verdes’ bastante limitadas”, disse em entrevista ao site do Instituto Humanitas/Unisinos.

Embate

No âmbito interno, alguns pontos sensíveis da política ambiental levada a cabo pelo governo brasileiro podem se transformar em atritos públicos durante a Rio+20. O caso mais emblemático diz respeito às propostas de mudança do Código Florestal. Se for mesmo aprovado o novo código antes de junho, será grande a pressão para que a presidenta Dilma Rousseff vete alguns itens. Caso contrário, o país passará por uma saia-justa ambiental durante a Rio+20. Outro tema que pode provocar um embate é o direito das populações a seus territórios. Nesse caso, o cenário recente também não é animador, já que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados acaba de aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere ao Congresso o poder de determinar a criação de novas Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Terras Quilombolas, hoje prerrogativa do Executivo: “Às vésperas da Rio+20, essa decisão expõe a soberania de nossos territórios aos interesses da bancada do agronegócio”, lamenta Sonia Guajajara, dirigente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). revista do brasil maio 2012

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cidadania

Pluralismo

restrito Enquanto o Brasil cresce e atrai imigrantes, São Paulo repete com os bolivianos do século 21 o preconceito contra os nordestinos do século 20 Por João Peres. Fotos de Gerardo Lazzari

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s irmãos Mamani sofrem da sina do mal viver. Uns nasceram na Bolívia, outros vieram ao mundo no Brasil. Não importa: os traços andinos, o jeito tímido e a pele morena são pecados suficientes para dar-lhes, em vida, o direito ao calvário. Não há idade para começar a pagar penitência. É o despertar dos colegas à intolerância ao diferente o que sela a sorte desses meninos e meninas.

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Laura*, de 11 anos, vive distante do mundo colorido de seus ancestrais. “Não quero mais ir para a escola”, diz, envergonhada, sem fitar os olhos alheios, na casa em que vive, uma mistura de oficina de costura e moradia. Ultrapassado um pesado portão de ferro, revelam-se uma escadaria íngreme e, logo adiante, uma construção inacabada dividida em três pisos, todos habitados por várias famílias. A mãe trabalha das 7h às 22h30, de segunda a sexta, e faz umas horinhas

no sábado em uma sala quente, de telhas plásticas, um ventilador ruidoso e luminárias amarradas por barbantes, prontas para despencar. Os problemas de Laura aumentaram no ano passado, quando passou a ser xingada dentro e fora da sala de aula. E também na rua de casa, onde é agredida fisicamente, o que torna as saídas cada vez mais escassas. “Falam que não gostam de bolivianos. A professora não faz nada”, queixa-se. Como ocorreu aos mais velhos, tomam-lhe o dinheiro do lanche. Como lhe ocorreu, contra o irmão de 7 anos, Álvaro*, atiram maçãs. Também batem e roubam. A família Mamani, na verdade, não é uma triste exceção. “Boliviano, vai para casa. Você veio aqui roubar meu emprego” é o resumo do ideário que move os xenófobos de São Paulo. “Preconceitos que se encontram na rua estão na escola de


cidadania

Xenofobia, droga pura Jeferson, de 16 anos: “A maioria dos brasileiros não fala com a gente. E tudo o que acontece é nossa culpa. Falam que a gente só traz cocaína para cá”

maneira bastante evidente. Muitos professores moram no bairro e acabam por reproduzir o discurso”, afirma a pesquisadora Giovanna Modé, responsável pela tese de mestrado “Fronteiras do direito humano à educação”. A São Paulo do século 21, sempre orgulhosa de sua vanguarda, sai na frente outra vez ao tratar os bolivianos de agora como os nordestinos de outrora. “À medida que o Brasil se consolida como polo regional, naturalmente nossas fronteiras vão receber um contingente cada vez maior de estrangeiros. É uma inversão da história”, afirma o promotor Eduardo Valério, do Ministério Público Estadual em São Paulo. Em janeiro, ele enviou ofício à prefeitura da capital e ao governo do estado em que questiona quais políticas públicas específicas são oferecidas aos imigrantes bolivianos, calculados em 150 mil pessoas. Há trabalhos de esclarecimento na área de saúde? Assistência social voltada aos que chegam? Reforço de aulas de português nas escolas? Valério continua a esperar por uma resposta. “É

bullying racial Com tantos ataques, os irmãos Laura e Álvaro não querem mais ir à escola

o momento de mostrarmos que no Brasil se acolhe o estrangeiro com respeito aos direitos humanos”, adverte.

Bahia ou Bolívia?

“Cabeça chata” era a expressão generalizadora da segunda metade do século 20 em São Paulo. Trazia implícito um pacote de adjetivos: lento, vagabundo, burro, incompetente, todos em oposição a uma suposta aptidão paulistana ao trabalho e ao sucesso individual. O “Bahia”, designação para todos os migrantes nordestinos, deu lugar ao “Bolívia”. “Vocês são índios. Sai daqui” é frase comum aos ouvidos de Cristina Rivas, de 27 anos, há 20 em São Paulo. Um preconceito mal resolvido se soma a outro. Os traços similares aos de grupos indígenas brasileiros rendem aos bolivianos chegados à cidade uma série de preconceitos: sujo, preguiçoso e bêbado. “As crianças viam a gente como se fosse um bicho diferente”, lembra. “Como eu era tímida, nem falava. Não conseguia aprender porque tinha medo de perguntar.” Problema parecido passou Carla Yanapa, hoje com 19 anos. Chegou ao Brasil com 9, já na 4ª série, e logo contou com a compreensão das professoras para a fase de adaptação: “Vai escrever ou não vai escrever?” Em seguida, tomava “ponto negativo” por não conseguir redigir nada em português. Foi na marra, no passeio com o tio pelo bairro, no diálogo com a televisão, que ela aprendeu a se virar. “As professoras davam indireta de que boliviano não toma banho.” Quando mudou para outra escola, passou a contar com a ajuda dos docentes. Mas, aí, eram os colegas que não davam sossego. “Empurravam, quebravam minha presilha de cabelo.” Giovanna Modé analisou um universo estimado em quase 1.500 bolivianos que estudam na rede pública em São Paulo. Eram raras as iniciativas de dar reforço escolar aos recém-chegados e de respeitar o tempo de adaptação a um novo país. Muitos dos imigrantes estão, na verdade, em um segundo momento de mudança. Primeiro, deixaram o interior da Bolívia, muitas vezes falando pouco de castelhano – a língua mais usada é o aimara –, e se mudaram de La Paz, com revista do brasil Maio 2012

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cidadania

900 mil habitantes, para uma selva de 11 milhões de almas. “Não existe política pública no sentido de reconhecer as particularidades da população”, aponta a hoje integrante da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação. No caso de Carla, a persistência e a vontade de ajudar os pais a terem uma vida melhor acabaram prevalecendo, e este ano ela começou a cursar Jornalismo. Mas a cidade que recebe a todos de braços abertos tem os punhos cerrados para os bolivianos. A cada cinco palavras ditas por María Sosa*, uma é medo. Outra é insegurança. Desde que apanhou, em novembro do ano passado, raramente ultrapassa o portão de casa. A filha, Jimena*, havia se transformado em alvo predileto das “brincadeiras” na classe. Um dia, colocaram em sua mochila objetos de outra menina, que logo a acusou de ladra. Chamada à escola, María deparou com o pai da suposta vítima, que, ao notar sua origem, se transformou: “Seu lixo, boliviana de merda, vem aqui no meu país me roubar. Merda de boliviana”. A diretora pediu a María que esperasse na sala ao lado até que o senhor se acalmasse, mas, ao primeiro sinal de distração, ele correu atrás dela, puxou-a pelos cabelos e passou a arrastá-la pelo chão aos gritos de “boliviana de merda, vai embora”. A única coisa em que o agressor acertou foi ao dizer que a agredida, por ser boliviana, jamais conseguiria puni-lo. Ao tentar o apoio da Polícia Militar, da Polícia Civil e da diretoria da unidade, só encontrou quem a desencorajasse a levar o caso adiante. Passou, então, a ter medo e, após dez anos em São Paulo, vive da porta para dentro. “Minha mãe me levava no parque, no zoológico”, lamenta Jimena, de olhos doces e fala mansa. “Ela ficou mais nervosa depois daquilo, briga comigo.” A família espera apenas o término do ano letivo para regressar a La Paz.

Problemas invisíveis

Se na educação os problemas se multiplicam, eles aparecem também na saúde e na assistência social. “O ilegal não quer ser notado”, diz Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Pau32

maio 2012 revista do brasil

Precariedade Em oficinas de costura improvisadas, trabalha-se das 7h30 às 22h30. Muitas crianças acompanham os pais

lo (USP) e atuante na área da integração sul-americana. E mesmo o legal enfrenta problemas: a Cristina tocou trabalhar na costura, outro pacote preconcebido por São Paulo ao boliviano. “Eu me preparei bem, fiz cursos, mas nas empresas não aceitam estrangeiros.” Estrangeiros, aceitam. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, 70.524 autorizações de trabalho foram concedidas a naturais de outros países em 2011, 14 mil a mais que no ano anterior e 36 mil a mais na comparação com 2008. “Acreditamos no mito de que somos um país aberto. A imigração bem-vinda é a branca, associada a um trabalho de formação do país”, diz Deisy. “O governo brasileiro dificulta a regularização. Não regularizar o imigrante é excluí-lo da vida social.” Trancados em oficinas, muitas vezes submetidos a jornadas extenuantes, de segunda a sábado, não têm acesso a fontes de informação. “Nos países de origem não há saúde pública. É importante infor-

má-los”, diz o coordenador-geral do Centro de Apoio ao Migrante (Cami), Roque Patussi. “Um dos fatores que afastam o estrangeiro do posto de saúde é o medo de não ser compreendido.” Ele sugere campanhas no rádio e panfletos em castelhano como forma de contar aos bolivianos que os direitos humanos básicos são, afinal, universais e não dependem de documentação. Faltaria, ainda, combinar com os servidores públicos, que muitas vezes desconhecem a obrigação do atendimento ao estrangeiro. A advogada especializada em Direito Sanitário Tatiana Chang Waldman fez um levantamento com 28 mulheres bolivianas. Delas, três não haviam utilizado o sistema público de saúde. A dificuldade em ausentar-se do trabalho, o idioma e as diferentes relações culturais com o tratamento médico foram detectados como motivos para a frequência relativamente baixa de consultas. Três em cada quatro entrevistadas disseram haver diferenciação no tratamento – “olham feio”, “gritam” e “não têm paciência” foram alguns dos relatos. Para a pesquisadora, porém, a percepção sobre o


cidadania

Anistia incompleta

Sina Cristina vive há 20 anos em São Paulo, mas ainda é vítima de preconceito. Só consegue trabalho nas oficinas de costura

conto do vigário Na tentativa de regularizar a situação, Elizabeth e Rober foram enganados por um falso advogado. Tiveram de pagar uma multa de R$ 4.200 à PF e ainda estão sem documentos

preconceito no atendimento de saúde pode ser fruto de situações vividas em outras partes da cidade. “Por que não se faz um trabalho na Kantuta?”, questiona Patussi, fazendo referência à praça adotada pela comunidade na zona norte paulistana. Aparentemente, não se vê muito glamour nos encontros de bolivianos. Em 24 de janeiro, a festa de Alacitas, tradicional celebração andina, tomou a rua Coimbra, na zona leste. Mas rapidamente apareceu a Guarda Civil Metropolitana, força de repressão municipal, para tentar barrar a reunião sob a alegação de irregularidades. Isso na véspera do aniversário do município, ocasião na qual vídeos e fotos exaltam uma vocação pluralista. “Somos descendentes dos incas. As pessoas veem que não somos daqui”, constata Marcelo Laura, há 18 anos no Brasil, hoje dono de um negócio de comidas típicas. Nada próximo do folclore do Bexiga, a Bela Vista, reduto italiano, ou da harmonia da Liberdade, de chineses e japoneses, ambos com festas promovidas pela administração municipal.

O governo federal abriu em 2009 uma anistia aos estrangeiros. Na primeira fase, inscreveram-se 45 mil pessoas, mas, na hora de fazer a conversão ao visto permanente, dois anos depois, apenas 18 mil conseguiram. O problema principal, exposto ao secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, foi o tratamento pouco amável da Polícia Federal. Abrão assumiu o esforço de amenizar as exigências, mas esbarrou na atuação dos agentes federais. A intransigência do órgão levou Elizabeth Espinoza e o marido, Rober Chuquimia, a cair no conto do vigário. Passando-se por advogado, um homem cobrou R$ 1.000 para ensinar o caminho da regularização. Por fim, tiveram de desembolsar R$ 4.200 à PF, o golpista sumiu e os papéis ainda não saíram. Toda vez que procuram alguma luz entre os servidores da polícia, recebem a recomendação de esperar. Sem dinheiro no bolso, com três filhos para sustentar, não conseguem voltar para a Bolívia nem viver em São Paulo. Também convidada a sair foi Yeda*, mãe dos sete irmãos Mamani. O mais velho, de 19, deixou os estudos. A violência atrapalha igualmente os irmãos do meio. “Foi terrível”, lembra Jeferson*, de 16, sobre o dia em que bateram no primo. Andar pela rua é sinônimo de ser assaltado. “Tudo que acontece é nossa culpa. Falam que a gente só traz cocaína para cá.” Para piorar, em dezembro o marido de Yeda deixou a família. Laura dorme pouco e, quando o faz, tem pesadelos. “Não tenho mais família. Quero ir para o orfanato. Aqui está ruim. Na escola está ruim.” A mãe recebe, em média, R$ 3 por peça costurada, o que toma uma hora e meia de trabalho. Sem o marido, não dá conta das despesas. Espera angariar R$ 1.400 para levar a família de volta. “A inclusão é boa para todos. É a convivência que faz a diferença para uma sociedade mais justa e igualitária”, diz Giovanna Modé. Se depender do senso de justiça de alguns órgãos públicos, o promotor Valério continuará a esperar sentado. Se depender da ajuda dos vizinhos, Yeda pode começar a rezar para Pachamama. * Nomes fictícios revista do brasil maio 2012

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Guerra civil nos sertões do Sul

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história

Para cineasta, a Guerra do Contestado, conflito entre caboclos e o poder público, ainda é um “filho enjeitado” da história Por Vitor Nuzzi

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ta que, recentemente, durante os debates após a exibição de O Contestado – Restos Mortais, parte do público, incluindo jornalistas e críticos, “se declarou surpresa com a efervescência e a brutalidade institucional, política, sociológica e bélica dos acontecimentos que se sucedem na tela, reconhecendo que jamais tinham ouvido falar no Contestado”. O susto foi ainda maior “para a amperagem terrorista que presidiu os embates armados entre rebeldes, tropas do Exército, milícias de jagunços do coronelato da região e as polícias militares de Santa Catarina e do Paraná, algo nunca visto no Brasil nem antes, nem depois”.

claro gustavo jansson

em anos atrás, na divisa entre Paraná e Santa Catarina, começou o conflito que ficaria conhecido como Guerra do Contestado (1912-1916), deflagrado a partir da contestação da concessão de terras feita pelo governo a uma companhia estrangeira. Daí o nome. Um século depois de seu início, que se completará em outubro, o cineasta Sylvio Back acredita que o episódio continua sendo uma espécie de “filho enjeitado” da historiografia brasileira. “Ainda que se constitua no maior e mais sangrento conflito pela posse e pela usurpação da terra no século 20, a impressão que sempre retorna, seja como catarinense e brasileiro, seja como cineasta que frequenta com sua obra a nossa míope história recente e remota, é que o Contestado vem desmilinguindo, está se tornando cada vez mais invisível”, diz. Autor do documentário Guerra dos Pelados (1971, referência aos revoltosos, que raspavam a cabeça), em 2010 Back voltou ao cenário para uma refilmagem, os “restos mortais”, prestes a ser lançada. “Inúmeras vezes fui surpreendido pelo total desconhecimento da população sobre sua própria biografia”, afirma. Para ele, o país é refém da chamada “história oficial”, que mantém ao largo eventos fundamentais do país. Back con-

Há alguns, mas não muitos, fatores em comum com o conflito da Canudos (1896-1897), no sertão da Bahia. O próprio Back lembra que houve quem chamasse Contestado de “Canudos do Sul”, até pela proximidade entre os dois episódios. “É possível encontrar similitudes entre os dois movimentos. O mais significativo seria o milenarismo, a volta de um Messias salvador, que fundeava as convicções dos fanáticos. Na Bahia, Antônio Conselheiro; no Contestado, entre os monges João e José Maria. E, claro, a inaudita violência e implacabilidade com que o Exército brasileiro arrasou e exterminou ambos.” Mas, fora isso, o cineasta define o Contestado como um caldeirão político-ideológico e religioso que contemplava a luta pela terra e pelo poder, xenofobia contra imigrantes europeus, anti-imperialismo contra multinacionais – que construíam uma enorme estrada de ferro na região,

Rendição Foram necessários quatro anos para destruir todos os focos de resistência à maior serraria da América Latina, que usou o terror para expulsar os caboclos da terra


história

Revoltosos descarrilam trem de toras para a serraria

claro gustavo jansson

claro gustavo jansson arquivo do exército no rio de janeiro

As tropas federais contaram com apoio de aviões

além da maior serraria da América Latina –, “implantando um regime de terror na expulsão dos caboclos sem títulos de propriedade”. Canudos resistiu a oito meses de assédio. No Contestado foram necessários quatro anos para destruir seus mais de 30 redutos, cidadelas caboclas que chegaram a reunir mais de 20 mil pessoas. Back define o retorno ao tema, 40 anos depois de Guerra dos Pelados, como ver “um cadáver perdido no mar”. E destaca a “pegada paradocumental” do novo filme, que o autor chama de “antidoc” – e não ficção pura, como na obra de 1971 –, “para desfazer equívocos pessoais de um ideário datado e, na outra ponta do pensamento, aluminando novos meandros

históricos sobre e em torno da Guerra do Contestado”. E a história brasileira reserva certas peculiaridades. Back destaca a “expertise armada” de Portugal, que manteve o país-continente unido desde 1500, sufocando qualquer tipo de rebelião. “O Contestado era uma ameaça, uma ‘nação cabocla independente’, e isso, a meu ver, ainda que impensável hoje em dia, regurgita nos porões do inconsciente coletivo nacional”, afirma. “Não nos esquecemos do movimento ‘o Sul é o meu país’, que volta e meia ressuscita na ânsia de emplacar sua ‘verdade’ racista e segregacionista.” Leia mais: http://bit.ly/rba_contestado

Segurança nacional No início de 1914, o general Fernando Setembrino de Carvalho, gaúcho de Uruguaiana, encontrava-se no Ceará tentando pacificar os adeptos do padre Cícero. Em agosto, recebeu ordens para voltar ao Sul e liquidar com a insurreição que grassava de forma violenta na região contestada entre Paraná e Santa Catarina. De pequenos incidentes locais, toda aquela região se transformara em um enclave perigoso. A lembrança de Canudos era recente e os ânimos republicanos ainda estavam exaltados. Não se tratava mais de uma questão local. Era assunto de “segurança nacional”.

Platéia surpresa Jornalistas e críticos que assitiram ao filme de Back reconheceram que jamais tinham ouvido falar do Contestado

Por Paulo Ramos Derengoski

Diferentemente de quase todos os movimentos messiânicos do mundo, a insurreição catarinense afirmou-se também como uma força imediata, radical, transformadora. Não apenas uma força passiva, de inércia, conformismo ou resignação. Essa foi sua grande característica inovadora, até revolucionária. Daí seu apelo místico e seu caráter extremamente violento para um povo “bom e cordial” como o nosso: milhares de mortos, feridos ou estropiados. Um grande efetivo – mais de 7 mil homens – e bons recursos foram colocados à disposição do general Fernando Setembrino. Conside-

rado um dos melhores estrategistas da época, ele seria ministro da Guerra do governo Arthur Bernardes (19221926) e mediador do Pacto de Pedras Altas, acordo que pacificou o Rio Grande do Sul (1923). Mas em Santa Catarina partiu para o ataque. Com a crescente movimentação das tropas, um fenômeno voltou a ocorrer na região: muitos dos antigos habitantes da zona contestada, especialmente proprietários de terras que haviam fugido para a margem direita do Iguaçu, resolveram regressar às suas taperas. O desejo de vingança de que estavam possuídos contra

os “fanáticos” era grande. O ódio renascia. As primeiras vítimas foram escolhidas ao acaso: um bando de índios xokleng que por ali arrastavam seus trastes foi logo passado no fio da espada – cabeças cortadas. Tal brutalidade chegou a irritar o general Setembrino, que mandou “abrir inquérito”. Mas a sorte dos “jagunços de São João Maria” estava selada. O sonho do povo dos carrascais logo se transformaria em pesadelo. As poderosas forças da realidade haviam entrado em cena. O dragão da República ia cravar a espada de prata no coração de ouro dos “santos guerreiros”.

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entrevista

Laerte Coutinho rompeu com ele mesmo, e nesse movimento nunca foi tĂŁo honesto consigo e com sua felicidade Por Vander Fornazieri

mauricio morais

Transgressor

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ENTREVISTA

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le frequentou as páginas do Pasquim na época de Ziraldo e Jaguar, enquanto pensava em abandonar, pela segunda vez, a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Não colou grau, mas nos anos seguintes emplacou dezenas de personagens nas páginas da imprensa brasileira em cartuns e tiras impagáveis como as do Condomínio, Overman, Piratas do Tietê e Los 3 Amigos, esta a seis mãos, com os parceiros Glauco e Angeli. Filho de professor da USP, criado no bairro paulistano de Pinheiros, Laerte sempre teve laços fortes com a militância política de esquerda. Na faculdade começou seu namoro com o Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, relacionamento que o aproximou do movimento sindical do ABC. Em 1978, desenhou histórias do João Ferrador, personagem criado por Antônio Carlos Félix Nunes para a Tribuna Metalúrgica. Naquele ano fundou, com o amigo jornalista Sérgio Gomes, a Oboré, marco da imprensa sindical, em atividade até hoje. Publicou livros, editou revistas, fez roteiros para a TV Pirata, TV Colosso e Sai de Baixo, programas da Rede Globo exibidos ao longo dos anos 1990. Inquieto, Laerte sempre questionou tudo, inclusive a si mesmo. Explicitou dúvidas. Assumiu crises. E recentemente deu uma guinada radical. Aos 60 anos, dois filhos adultos, namorada firme, carreira sólida, resolveu se “montar”. Depilado, maquiado, enfeitado com bijuterias e vestido com roupas de mulher, saiu à rua. Não era um atrevimento de artista. Foi o início da nova vida de um “homem com identidade de gênero feminina”.

Você tentou ser músico…

É, sempre toquei muito mal. Tive aulas de piano com minha avó quando era criança. Foi com essa bagagem técnica que cursei três anos de música na ECA e caí fora para desenhar. Eu já fazia alguns trabalhos para o jornal do centro acadêmico. Depois prestei novo vestibular e voltei para a ECA para estudar Jornalismo. Foram mais três anos até cair fora de novo. Nunca me formei em nada.

militantes do Partidão. Eu escapei. Três anos depois o movimento sindical renasceu no ABC e voltamos a nos empolgar com a ideia de estimular os sindicatos a construir os próprios órgãos de imprensa. Nossa intenção com a fundação da Oboré, seguindo um conselho do próprio Lula, era dinamizar o jornalismo dos sindicatos. Foi um processo de construção.

Era parte da nossa proposta fazer os sindicatos entenderem que a estrutura de comunicação, assim como a assessoria jurídica ao trabalhador, tinha lugar no movimento. A publicação de charges e quadrinhos nos jornais sindicais foi um upgrade. O trabalhador sentiu que havia na sua imprensa a mesma ferramenta que existia nos grandes jornais. De onde surgiu o bordão “Hoje eu não tô bom”, do João Ferrador?

Foi criação do próprio Lula. Com aquela voz rouca ele pediu: “Faz aí o João Ferrador dizendo ‘hoje eu não tô bom’”. O personagem virou símbolo de uma vontade política. Era um agitador de ideias. O Henfil fez parte dessa história e também da fundação do PT.

Ele estava em Natal, mas nós vivíamos em contato. Ele veio para São Paulo e começamos a trabalhar juntos, inclusive para a Tribuna. Era uma pessoa extraordinária, com capacidade de criar ininterruptamente. Discutíamos muito sobre tudo: um novo partido, abertura, anistia. Vínhamos de uma frente de oposições, o que para mim ainda era a melhor tática para enfrentar a ditadura. Acreditava que aquele momento de pseudoabertura era um golpe para enfraquecer a oposição, que deveria se manter unida. O que resultou dessas discussões?

Começou no movimento estudantil. Eu conheci o Partidão na USP, em 1973, em pleno governo Médici.

Era tudo uma ilusão. Havia várias forças interessadíssimas em organizar seus partidos. O Henfil participou ativamente da construção do PT, que não era uma ideia exclusiva da esquerda. Pessoas do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo também estavam interessadas em participar. Foram a congressos e depois saíram. Foi aí que a coisa ficou mais ideologizada. O fato é que eu e o Henfil nos desentendemos, e acho que o tempo provou que ele estava certo (risos).

Como foi a fundação da Oboré?

E a anistia?

E a militância política?

Eu e o (jornalista) Sérgio Gomes começamos essa experiência de imprensa sindical em 1974, nos (Sindicato dos Trabalhadores) Têxteis. Mas ela foi interrompida porque a diretoria entrou em cana. Em 1975, o Sérgio também foi preso com outros

A Lei da Anistia serve hoje de salvaguarda para torturador. Na época as pessoas não tinham clareza, elas queriam ver os amigos (exilados) de volta. A gente se pegou no argumento da anistia possível, do depois a gente vê como fica.

Quando comecei a me vestir com roupa feminina e sair à rua, a sensação mais forte que tive foi a da descoberta de que isso é possível. Eu já sabia que ia me encantar, mas não sabia que era tão possível. O fato de ser um negócio realizável é o suprassumo. É muito legal

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ENTREVISTA

Você foi censurado?

A única vez foi na Gazeta Mercantil, já no governo Sarney. Eu já estava mais ainda à esquerda e fiz alguma coisa que não agradou ao jornal. Eu disse: ué, finalmente, consegui! (risos) Sempre fui muito cagão. Media com a régua do meu temor até onde podia ir. Nos jornais sindicais também sabia que não podia pregar a revolução armada. Charge tem de fazer cabeça?

Não acredito que o cartum editorial faça cabeças novas. Acho que ele age como reforçador de posições já partilhadas por um determinado grupo. Falando em grupo, quando você saiu do Partidão?

Às vezes acho que o humor brasileiro, apesar de rico e produtivo, se distancia da vida da população. Várias vezes a gente constata a presença do humorista, não como um sujeito alinhado às ideias pioneiras, mas ao preconceito

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Foi em 1984, na mesma época em que saí da Oboré, que já era uma espécie de núcleo dissidente. Quando os dirigentes do PCB voltaram do exílio deu-se aquele choque. A gente descobriu que eles eram muito antigos (risos) e não estavam entendendo nada. Hoje você tem simpatia por algum partido?

Tenho simpatia por várias pessoas. Acho que os partidos estão apanhando. Não estão conseguindo acompanhar o pique do país. A dinâmica da sociedade brasileira mais uma vez está deixando as estruturas partidárias para trás. Vejo disputa de espaço muito intensa. Volta e meia a gente vê que os próprios trabalhadores estão entregues, como no caso de Jirau (operários da construção da usina hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, lutam por melhores condições de trabalho). Não tinha sindicato para defendê-los, não tinha imprensa para cobrir, não tinha nada. Como está a relação da mídia com o mundo do trabalho?

Tá uma vergonha. Existe uma tendência de despolitizar o momento sindical, de transportar os assuntos para a área técnica. Vira tudo caderno de economia.

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A imprensa precisa de regulamentação?

Tem de ter algum tipo de discussão, em que termos eu não sei. Boa parte das suspeitas e do pé atrás da imprensa em relação a isso é justificada porque passamos por uma ditadura, na qual, aliás, ela mesma teve papel vergonhoso. Mas a imprensa gosta de se imaginar campeã de todas as liberdades, e não é bem assim. No Brasil, tem se estruturado em torno de interesses particulares e de empresas. Acho que hoje nem a imprensa se diz imparcial. E o humor?

Eu ando muito cansado do humor. Ele virou um certo problema. Passo o tempo inteiro questionando se o que estou produzindo é humor. Como é que o humor consegue acompanhar um momento de transgressão, de enfrentamento ideológico? O humor tem feito isso ou ele só conseguia fazê-lo na época em que isso era evidente, quando existia uma ditadura e uma oposição? E mesmo nessa época maniqueísta o humor falava com quem? Às vezes acho que o humor brasileiro, apesar de rico e produtivo, se distancia da vida da população. Várias vezes a gente constata a presença do humorista não como um sujeito alinhado às ideias pioneiras, de transgressão, de enfrentamento, mas às ideias feitas, ao preconceito. Parece que você ainda está construindo esse pensamento.

Hoje de manhã estava pensando nisso. Quando o movimento gay mundial conseguiu finalmente traçar uma política séria de garantia de direitos civis e expor a ideia de que gay é um ser humano, vem o Millôr Fernandes e diz que homossexualidade é uma “questão de furo íntimo”. É um trocadilho genial, como quase tudo que o Millôr fez, mas não tem nada a ver com avanço, com solidificar uma visão humanista. Então você deve estranhar o tipo humor que se faz hoje.


ENTREVISTA

Num passado não muito distante você também explorou o preconceito.

a maior parte das pessoas transgêneras, travestis e transexuais­assume as barras muito jovem, correndo riscos e colocando a vida inteira na balança. Isso serve para eu ter uma medida do que é coragem. Existe uma relação entre os recentes ataques homofóbicos e a maior visibilidade dos vários grupos homossexuais?

Sim. É muito fácil para o humor frequentar essa área porque ele trabalha a partir de um repertório comum para o autor e a audiência. Senão a piada não acontece. Por exemplo: todos precisam partilhar a ideia de que mulher dirige mal. Mas existe humor de todas as facções. Tem o humor de resposta.

Ataques sempre existiram, porém é desejável que a visibilidade aumente porque, ao mesmo tempo, crescem as possibilidades de defesa, de acionar o poder público. Então, se alguém está pensando em voltar para o armário… Hum, hum, movimento errado.

Uma vez você disse que a vida é muito chata.

Sim, e isso é reviver minha militância. Existem dezenas de entidades de defesa dos direitos civis dessa população. Fui recentemente a um congresso em Curitiba. Em agosto haverá outro na Bahia. Eu e umas amigas vamos abrir uma ONG, a Associação Brasileira de Transgêneros (Abrat). A ideia é estimular o debate, produzir teses e prestar serviços de informação.

Quando a gente diz que a vida está chata, é uma incapacidade nossa de enxergar o que está se passando. Outra forma de dizer isso talvez seja “estou me sentindo bloqueado em determinadas vontades, desejos”. Essa falta de clareza de ideias, que muitas vezes não podem ser trilhadas por causa de proibições internas, nos faz achar que a vida está chata. Aí a gente fica esperando que a vida nos abra perspectivas, quando é o contrário que tem de acontecer. Como foi virar um transgênero?

Ou de assumir minha transgeneridade… Acho que a falta de compreensão dessa possibilidade é que me fez dizer que a vida estava chata. Quando comecei a me vestir com roupa feminina e sair à rua, a sensação mais forte que tive foi a da descoberta de que isso é possível. Eu já sabia que ia me encantar, mas não sabia que era tão possível. O fato de ser um negócio realizável é o suprassumo. É muito legal. O fato de você ser uma pessoa conhecida, um profissional respeitado, facilitou esse processo?

Por ter essa natureza cagona, precisei desse tempo todo, dessa idade, de estar numa situação em que as perdas são administráveis. Não que eu não tenha corrido riscos, mas estava pronto. Veja que

fotos mauricio morais

Estranho, mas continuo defendendo a liberdade de imprensa, de expressão. Sou contra a censura. Acho que até o Proibidão (show de humor politicamente incorreto) deve ser possível. Mas tem de ser discutido. Tem de estar ao alcance da crítica.

Você tem participado dos grupos ativistas LGBT?

Até onde vai sua transformação? Você pensa em tomar hormônios?

Penso, mas ainda não decidi. Estou com 60 anos. Não partiria, com certeza, para a via cirúrgica. Você imaginava a repercussão que sua decisão alcançaria?

Às vezes me assusta a dimensão que as coisas tomam. Mas se isso acontece é porque há uma área de tensão, coisas mal resolvidas. Quando dizem “não sei por que gastar cinco parágrafos com esse assunto”, ouçam a si próprios: porque é importante.

Acho que os partidos estão apanhando. Não estão conseguindo acompanhar o pique do país. A dinâmica da sociedade brasileira mais uma vez está deixando as estruturas partidárias para trás

Participou Talita Galli, da TVT Confira a entrevista de Laerte para a Rádio Brasil Atual sobre Millôr Fernandes (http://bit.ly/rba_laerte) e o especial sobre a charge na Tribuna Metalúrgica levada ao ar pela TVT no Seu Jornal (http://bit.ly/rba_chargistas)

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cultura

cordel O vento que balança o

Uma geração de artistas renova a literatura popular nordestina, quebrando tabus e até reinventando a história do gênero Por Allan da Rosa e Spensy Pimentel

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hega a hora de o poeta cordelista Augusto Bitu chamar o verso na sua vez da voz. Hoje em praça pública, amanhã ocupando faculdades ou centros culturais, ele aparece de bermudão e óculos escuros pra brindar a lua com sua verve. À sua volta, o povo noturno mescla boné com chapéu de couro, alpercata com coturno, minissaia com vestido de chita, enquanto toma seus goles, gargalha ou lacrimeja, de acordo com a mordida de cada poema. Os versos de Bitu podem ser os de “A reide”, um de seus cordéis mais populares. O romance pinga nas estrofes o desconcerto e a folia do matuto que vai a uma rave e a compara aos balanços de sua rede. Na plateia, outros poetas que fácil e naturalmente podem misturar métricas dodecassílabas refinadas com haicais ou

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versos eróticos sem rima. Tudo entrosado com o cotidiano de uma cidade com muitos romeiros, mas também faculdades e boates, ruas repletas de motocicletas pilotadas por jovens ou idosos antes acostumados ao jumento velho de guerra, municípios pouco parecidos com a idealização rasteira que ainda impera nas novelas globais ‘sertanejas’ e não dá conta da realidade das cidades médias que florescem no Nordeste contemporâneo. O local é o Crato, no Ceará, em pleno Vale do Cariri, um dos grande centros difusores da literatura popular nordestina. O sarau de que Bitu participa ocorre em uma mostra do Serviço Social do Comércio (Sesc). Não é o tipo de evento que seja raro por ali. Engana-se quem pensa que a poesia popular nordestina parou no tempo, ou está em “extinção”. Nas cidades da região, o que se vê é um vigo-

roso movimento literário, que trança as tradições com formas contemporâneas e novas temáticas, quebrando tabus e injetando sangue novo em formas seculares. Outro sucesso de Bitu é “O dia em que o papa deu o anel no Rio de Janeiro”, que narra peripécias e reflexões sobre uma suposta passagem do papa pelas praias do Brasil. O romance lhe rendeu nariz torcido e pragas dos mais rígidos e carolas poetas da Academia dos Cordelistas do Crato, ofendidos com a afronta perante o senhor do Vaticano. Por outro lado, segundo ele, também houve apoio de poe­tas anciãos. “A real da academia é que ela segue o padrão mais conservador de comportamento nordestino, porém nem sempre segue o padrão da poesia popular mais raiz”, comenta. Bailando na ambiguidade, Bitu segue a tradição da poesia popular. Renega-


cultura

do pelo conservadorismo dos donos das empresas que imprimem os folhetos do cordel, inaugurou a própria editora, a Pé Duro. Por ela continuou lançando títulos como “Exaltação brasileira aos árabes de nossa nação”, produzido em tempos de islamofobia crescente. Como crônica jornalística, ficção, elegia ou crítica social cortante, milhares de poetas vêm há mais de um século imprimindo seus folhetos, “arrecifes”, romances ou ABCs, como são também chamados os livros que ganharam, ao longo do século 20, a chancela quase universal de “poesia de cordel”. O fato que justificaria essa denominação – de que os folhetos seriam vendidos pendurados em cordões nas feiras – é controverso e contestado por vários pesquisadores, de acordo com Claudia Rejanne Granjeiro, professora da Uni-

Pimenta foi que botaro Naquelas lata magrela Só dava esse tar de negético E ninguém sortava ela Se escuitava ‘eu tô frevido’ E Foi tanto comprimido Que tumavum de cautela A reide, de Augusto Bitu

versidade Regional do Cariri e autora integrante do projeto Conexão Poética. Ela lembra que a versão sobre o cordão foi difundida, sobretudo, por pesquisadores estrangeiros – o maior acervo de cordel do mundo fica, hoje, em Poitiers, na França, e guarda muitos títulos impossíveis de se achar no Brasil. A pesquisadora acrescenta que os poe­tas e mascates que circulavam sertão adentro com seus romances levavam as edições para expor em grandes balaios, no chão forrado por esteiras ou enfileirados em bancas. Outro aspecto questionado é a origem ibérica. “Diferentemente do que se pensa, o cordel não ‘veio de Portugal’ dessa forma mecânica. Ele é fruto da voz, da poética do corpo, das oralidades, entre as quais vozes negras, por exemplo”, diz Claudia. “Era uma definição pejorativa dos his-

fotos wilson bernardo

Insurgente Bitu: matuto na rave e papa na praia

toriadores de poesia, que a população incorporou. Pejorativa porque nasceu de ‘literatura de cordão’, dando a ideia de inferioridade em relação a uma outra literatura”, completa o poeta, músico e escritor pernambucano José Paes de Lira, mais conhecido como Lirinha, em seu trabalho como líder da banda Cordel do Fogo Encantado, ao longo da última década. Há alguns anos, ele lançou carreira própria, com um espetáculo de teatro e um romance, ambos batizados “Mercadorias & Futuro”. Agora, vem à luz um disco solo. Lirinha é exemplo de que os artistas nordestinos mais vanguardistas, muitas vezes, são os que mantêm laços estreitos com essa tradição da literatura popular. Nascido na região de Arcoverde, começou a carreira aos 12 anos, em um palco bem distinto daqueles que imagina quem

Origens Claudia: “O cordel é fruto da voz, da poética do corpo, das oralidades, entre as quais vozes negras” revista do brasil Maio 2012

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o vê somente como cantor pop. Sua primeira apresentação foi como declamador de poemas em festivais de cantadores em Pernambuco. Seguiu, aí, a trilha de nomes como Patativa do Assaré, que cumpria a mesma função nesses eventos. Era desse autor, aliás, a primeira poesia que Lirinha se lembra de ter declamado. A cantoria de viola, como explica, seria a outra face da moeda na literatura popular nordestina. “A literatura de cordel é uma coisa diferente da poesia que é feita de improviso na cantoria de viola, embora seja a mesma estrutura.” Por tradição familiar um bom conhecedor dos gêneros, ele esmiúça: “A literatura de cordel trabalha muito com décimas e sextilhas, e alguns martelos, que são décimas de decassílabos. É impressa e colocada à venda, tem uma série de regras”. Lirinha lembra que as formas selecionadas como cânone pela literatura de cordel são só uma pequena parte de um acervo muito maior da poesia oral sertaneja, que inclui fórmulas de métrica e rima com nomes originais como galope à beira-mar, martelo alagoano, gabinete, mourão respondido, mourão voltado, se-

Clélio Tomaz/Fotoarena

cultura

Príncipes e princesas Lirinha: “O cordel era a novela da época”

Raiz Leandro Gomes de Barros (18651918) chegou a ser chamado por Carlos Drummond de Andrade de “o rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”

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te linhas e até mesmo o peculiar “quando eu ia ela voltava, quando eu voltava ela ia”. O cordel era a novela da época, segundo ele. “Meu avô ainda fazia isto: não tinha energia elétrica no sítio dele, e ele lia exatamente naquele horário depois da janta. Reunia as pessoas e lia. Tinha as princesas, os príncipes. Tinha o lado político. Os milagres do Padre Cícero, todo um universo de entretenimento, de uma relação com a arte, imagens que eram criadas e tal”, conta. “Já a cantoria de viola tem outros mestres, o repentista, o que faz rápido. Eles têm, inclusive, certa distância. O que escreve cordel não necessariamente faz de improviso.” O nome Cordel do Fogo Encantado, como explica, não era uma referência à literatura de cordel, propriamente. O

termo “cordel” queria significar o mesmo que “história”. “Até porque, dentro do ambiente em que eu vivia, eu não acompanhava tanto a literatura de cordel.” Esse padrão editorial que nos acostumamos a ver no cordel – capa com xilogravura e sextilhas em 32 ou 64 estrofes – também tem sua história. O formato foi definido pelo poeta e editor João Martins de Athayde (1880-1959), o nome mais importante do gênero entre as décadas de 1920 e 1940, não só pelo sucesso de seus títulos, mas por possuir os direitos de publicar os folhetos do autor considerado por alguns como o maior cordelista de todos os tempos: Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Barros chegou a ser chamado por Carlos Drummond de An-


cultura

drade de “o rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”. Ao longo da vida, Athayde publicou centenas de folhetos, muitos assinados por ele próprio. A autoria de diversos cordéis atribuídos ao editor é questionada por pesquisadores – não só por se verificar que, em algumas edições, ele assinou folhetos que eram de Barros, mas porque era comum a prática de comprar as obras, assumindo, então, a autoria. Nas últimas décadas, a literatura popular nordestina passou por verdadeiro êxodo. Hoje, o cordel não é exclusividade de capitais como Recife e Fortaleza ou cidades como Juazeiro do Norte e Campina Grande. Essa arte está espalhada por capitais do Sudeste que receberam maciça migração nordestina, como Rio de Janeiro e São Paulo. Em alguns casos, esse movimento é ainda mais antigo: em Belém, por exemplo, floresceu na primeira metade do século 20 – nos tempos em que

Tradição O padrão editorial que se acostumou a ver no cordel foi definido pelo poeta e editor João Martins de Athayde, o nome mais importante do gênero entre as décadas de 1920 e 1940

o Nordeste exportava para lá seus “soldados da borracha” – uma das maiores editoras de cordel da história, a Guajarina. Em São Paulo desde os anos 1980, o poeta cearense Costa Senna personifica

esse quadro. Na obra de quem se lembra de ter aprendido as primeiras letras enquanto a tia lia para ele os folhetos de cordel, nota-se a influência do cosmopolitismo provocado pela diáspora nordestina. Com mais de 30 folhetos publicados, além de 12 livros, ele, como bom cordelista, já escreveu sobre Lampião, mas também versa sobre Raul Seixas ou o ensino de matemática. Além de cordel, publica literatura infantil e já atuou em peças de teatro e comédia stand-up. “Nem vejo mais o cordel como uma coisa nordestina, é uma coisa brasileira. Hoje, talvez você encontre mais cordel em São Paulo do que em Fortaleza”, diz o poeta. “Se parar para ouvir Lenine, Belchior, Gil, Caetano, os cantos da capoeira, o pessoal do rap, vai encontrar fragmentos do cordel dentro da obra deles. Até a televisão se aproveita muito de temas que vêm pelo cordel, vide Morte e Vida Severina e O Auto da Compadecida.”

Nova história Até mesmo a versão mais cristalizada da história do cordel – seus heróis, sobretudo – está em revisão. “A história oficial, em geral, só registrou a narrativa dos vencedores. Muitas coisas ficaram ou ficam de fora”, argumenta Francisca Pereira dos Santos, a Fanka, poetisa com dezenas de folhetos publicados, além de professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), no campus Cariri. Entre os que ficaram de fora da história do cordel, como ela destaca, estão sobretudo negros e mulheres – justo os que provavelmente tinham maior dificuldade para publicar e impor seu nome no mundo da literatura. “Perdemos muitas vozes, em especial as vozes femininas que cantaram no século 19, que não foram registradas na historiografia do cordel. Mulheres repentistas que andavam, assim como os homens, com sua viola ou produziam dentro de casa, no privado.” Fanka publicou em 2011 o livro “Água da mesma onda”, no qual mostra a relação epistolar, toda em versos, entre o famoso Patativa do Assaré e a poetisa Bastinha – um dos muitos nomes de mulheres que se destacaram na poesia popular, mas permanecem desconhe-

cidos do grande público, assim como Chica Barroso, Vovó Pangula, Zefinha do Chambocão, Mocinha de Passira, Josenir Lacerda, Salete Maria, entre outras. O reconhecimento que Patativa tinha por Bastinha demonstra como as poetisas podiam ter muito mais prestígio do que a história deixa perceber – e também como estavam muito além das representações estereotipadas presentes na maioria dos cordéis, em que aparecem ora como donzelas indefesas, ora como devassas demoníacas. Hoje, esse quadro muda, rapidamente, e Fanka está no centro disso. Além de pesquisadora, é poeta atuante e, em Juazeiro do Norte, integra o Movimento dos Cordelistas Mauditos, fundado em 2000 com um manifesto que celebrava o fim da subordinação intelectual do Nordeste “tradicional” ao Sudeste “cosmopolita”: “Viva Patativa do Assaré e Oswald de Andrade!” Dois ícones, agora em pé de igualdade. O cordel, que outrora foi novela, como lembrou Lirinha, hoje aborda até mesmo um tema polêmico como a união de pessoas do mesmo sexo, centro de “A história de Joca e Juarez”, folheto de Fanka em parceria com a poeta Sale-

te Maria, ambientado em Juazeiro, nos tempos do Padre Cícero. Um trecho: Juarez era um senhor Devoto do meu padim Trabalhava com ardor Cultivando seu jardim Um dia o cão atentô e Juarez se apaixonou por Joca de Manezim Isso se deu em meados, De mil novecentos e seis Naquele tempo veado Era bicho que deus fez ‘Home não ama ôtro home senão vira Lobisomem’ disse o padre, certa vez “Os Mauditos são uma novidade que promove uma antropofagia do imaginário do cordel homofóbico, machista, racista, além de fazer uma importante crítica à existência de um cânone do cordel, que como eles demonstram, foi (e é ainda) excludente”, destaca Fanka. “É a primeira vez que, no campo do cordel, emerge um grupo que se configura como movimento, que tem manifesto e faz uma crítica mordaz à historiografia do próprio cordel.”

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cinema

Invisíveis na

cabine Em salas multiplex, cinemas de rua, cineclubes ou cinematecas, os projecionistas são as estrelas anônimas Por Guilherme Bryan

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m uma das cenas mais inesquecíveis de Cinema Paradiso (1988), do italiano Giuseppe Tornatore, o personagem Alfredo (Philippe Noiret) se vale do reflexo proporcionado pela lente do projetor para exibir o filme numa parede externa do cinema, para as pessoas que não conseguiram entrar na sala. É também uma imagem emblemática da paixão dos projecionistas pelo ofício. Praticamente esquecidos pelos frequentadores de cinema, eles são os responsáveis por fazer com que cada imagem revelada na película, geralmente de 35 milímetros, chegue com perfeição à tela onde o filme “acontece”. A cada 24 fotogramas, um segundo de história. O ofício foi quase sempre ensinado pelos mais velhos aos novatos, de forma oral e manual, e por quem é apaixonado. Isso pode ser visto no documentário O Homem da Cabine, dirigido por Cristiano Burlan. Por 80 minutos, esses profissionais – de carreira ameaçada pela era digital – vão parar na tela para onde se dirige o olhar do espectador. Encantado pela sequência de Cinema Paradiso, Matheus Alberto Gomes, de 22 anos, fez alguns testes de dentro da cabine de uma das quatro salas de um shopping de Poços de Caldas, em Minas Gerais, onde trabalha há um ano. “O importante no cinema é o projecionista, pois é ele quem vai saber colocar e montar o filme, descer para ouvir se o som está bom e controlar o

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foco e a luz. Há muita curiosidade em torno da profissão. Quando perguntam, explico com prazer. Na cabine, você se sente dentro do filme, é emocionante”, garante. Burlan conta que costuma chamar o projecionista de profissional invisível. “Você só sente a presença dele quando alguma coisa dá errado. Se ele executa bem o trabalho, ninguém percebe que está ali. Hoje, com as cabines-mãe das salas multiplex, um projecionista cuida de quatro ou cinco salas ao mesmo tempo, o que já diminuiu bastante a possibilidade de emprego desse profissional. E, com o advento do digital, você precisa dele praticamente para acender e apagar a luz da sala”, diz o diretor, que quando criança via um tio projecionista trabalhar em Porto Alegre. Tornatore captou de forma poética o sentido do ofício. Numa pequena cidade da Itália, o garoto Totó se refugiava da rotina familiar na cabine comandada por Alfredo. Mais de duas décadas depois, o clássico continua referência para os jovens projecionistas. “O filme demonstra muito bem o que fazemos. Eu ficava ali na cabine, em cima da plateia de um cinema enorme, com 600 lugares, e adorava ver a reação das pessoas. Muitas vezes também descia, porque gostava de ver a luz da projeção saindo da janela. Ninguém repara nisso quando vai ao cinema, mas eu adorava”, conta Juliana Britto, que foi projecionista, entre 2006 e 2009, no Cine FAC, em Assis, interior de São Paulo.

Com 34 anos, Juliana é exceção num ambiente majoritariamente masculino. Herdou a paixão do avô, ferroviário e dono de um projetor de 16 milímetros. O coordenador do cinema ainda duvidava que ela pudesse se firmar na função. “Achavam que eu não daria conta, por ser muito miudinha. Tudo era manual, os projetores eram da década de 1950, os rolos, pesados. Muitas vezes precisava fazer o motor pegar no tranco e sujar as mãos de óleo. Em outras, o filme começava a sair da parte de baixo do rolo e eu ia puxando, formando um montinho do lado e chorando, com medo de estragar, mas não querendo parar a exibição”, lembra. Juliana acredita que, se acabar a projeção em 35 milímetros, a profissão corre o risco de desaparecer, pois qualquer pessoa que saiba mexer num computador poderá programar o filme para ser exibido no horário correto. “Mas, pelo que


cinema

divulgação

Jailton Garcia

Paixão Juliana: “Eu ficava ali na cabine, em cima da plateia de um cinema enorme, com 600 lugares, e adorava ver a reação das pessoas”

No foco O documentário O Homem da Cabine coloca os projecionistas na tela

converso com os diretores de cinema, se depender deles, não acabará. Muitos não gostam do cinema digital, tanto que o número de títulos ainda é pequeno”, opina. Hoje, ela é produtora cultural da Brazucah Produções e coordena projetos. Para Bruno Machado, de 25 anos, os museus também sempre precisarão dos projecionistas, uma vez que os acervos requerem cuidados especiais. Por isso, a profissão tende a passar por constantes

mudanças, mas não vai desaparecer. “O Brasil está com um projeto aprovado para que até 2015 todas as salas do circuito comercial virem digital. O problema é que 90% têm mais de dez anos e foram criadas para um tipo de projeção. Assim, precisam mudar toda a estrutura, e não só os projetores, para superarem a projeção em 16 e 35 milímetros”, afirma. Bruno trabalhou durante dois anos na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e considera

gratificante manusear a película, projetar um filme pela primeira vez e ser reconhecido por um diretor ou um produtor. Atualmente, ele colabora na coordenação da projeção de filmes do festival de documentários É Tudo Verdade. O diretor Burlan não vê a profissão com tanto glamour como se imagina. Ao contrário. Diz que é “dura e insalubre”, porque até há pouco tempo a projeção era feita com carvão, cancerígeno. “Você juntava o negativo e o positivo, e gerava a luz que projetava a imagem da película. E hoje há as lâmpadas de xenônio, que podem causar até cegueira se forem manuseadas incorretamente. Eles também ficavam sozinhos dez horas numa sala de projeção e eram explorados pelos donos dos cinemas, por não terem uma representatividade muito grande. A maioria não casava, alguns enlouqueciam”, lamenta. Burlan destaca, porém, exceções como a de um ex-faxineiro do Cinesesc, em São Paulo, que chegou a projecionista sem ter concluído o ensino médio e hoje faz faculdade, em função de o cinema ter-lhe despertado a busca pelo conhecimento. Benedito Carlos Silva, 53 anos, começou a trabalhar com cinema aos 15, em Francisco Alves, no Paraná. Para ele, hoje presidente do Sindicato dos Operadores Cinematográficos de São Paulo, as salas atuais oferecem melhores condições de segurança. A jornada é de cinco horas diárias e o piso, cerca de R$ 1.000. “O novo sistema digital precisará do operador, mas ainda não sabemos como deverá ser esse novo profissional. Certamente, ele precisará passar por uma qualificação.” O jornalista, escritor e roteirista Marcos Carvalho, de 52 anos, foi projecionista do antigo Cineclube Bexiga, em São Paulo. “No cineclube havia apenas um projetor, e não dois, como deve ser. Tínhamos de fazer um intervalo no meio da projeção para trocar os carretéis”, conta Carvalho. “A ideia de projetar filmes e ficar mais perto do cinema era interessante, ainda mais naquele momento de ditadura. Todos vinham com certificado de censura com duração de cinco anos para ser exibidos. Se saíam de circulação e não eram exibidos pela TV, não havia como vê-los a não ser nos cineclubes”, lembra. revista do brasil Maio 2012

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viagem

Paraíso da

arte

Em uma antiga cerâmica na periferia de Recife fica o acervo de Francisco Brennand, que se mantém na ativa aos 85 anos Por Alexandre de Souza Acioli. Fotos Jesus Carlos/ImagemGlobal

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bairro histórico da Várzea, na periferia de Recife, abriga um dos mais belos e agradáveis espaços da arte brasileira. Lá funciona a Oficina Brennand, onde os amantes da arte, estudiosos e curiosos encontram expostas, em caráter permanente, as mais variadas peças, em tamanhos e estilos, do artista plástico pernambucano Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand, ou simplesmente Francisco Brennand. É um centro de referência no cenário artístico brasileiro, um verdadeiro paraí­ so dentro de um conjunto arquitetônico de grande originalidade. O artista faz questão de registrar que ali confeccio-

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nou, entre 1961 e 1962, o painel a Batalha dos Guararapes, um dos seus mais famosos trabalhos, representando símbolos da sua crença nos ícones da nacionalidade brasileira. São quase 70 anos de produção intensa, de diferentes técnicas, gêneros e estilos. Brennand envereda pelo simbolismo, as questões do universo mítico, a origem da vida, paixões e comportamentos, a condição feminina, a sexualidade e temas ligados ao meio ambiente e às condições da vida na Terra. Quem vai à Oficina não pode ter pressa. São cerca de 3 mil obras distribuídas em espaços temáticos. A jornada contemplativa se inicia no Pátio de Esculturas, com figuras do imaginário artístico


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do autor. Lá, no espaço chamado Templo, está o que ele batizou de Ovo Primordial, simbolizando a origem e reprodução da vida. “O duplo das coisas que se reproduzem permanentemente é o centro das minhas preocupações como artista e como pensamento”, disse o artista em depoimento de 2008. No passeio, veem-se várias esculturas na fachada, como o Prometeu Acorrentado e O Quarteto de Comediantes. Na Muralha Mãe Terra, encontram-se elementos da fauna e flora, serpentes, pássaros rocas e painéis. No Salão de Esculturas está a maioria das peças e painéis criados por Brennand. Há também um anfiteatro, localizado entre os salões. No circuito de visitação percorrem-se ainda o Lago das Sombras, onde está a escultura Árvore da Vida, o Templo do Sacrifício, homenagem aos povos sul-americanos, a Coluna sem Fim, uma exaltação a todas as formas de vida, o Auditório Heitor Villa-Lobos, o Relógio do Sol, o Estádio, que abriga exposições itinerantes e oficinas de arte, a Praça Burle

Marx, com seus jardins, e a Accademia, que abriga esculturas cerâmicas, desenhos, painéis e telas. O pintor francês Paul Gauguin é homenageado com uma praça, onde foi instalado o Cavalo de Troia. Também há obras do artista na Capela da Imaculada Conceição. A Oficina Brennand funciona no terreno do antigo Engenho Santos Cosme e Damião, numa área remanescente da Mata Atlântica. Antes de ser transformado nesse complexo de artes, o local abrigava a Cerâmica São João, fabricante de telhas e tijolos refratários do início do século 20, pertencente à família do artista. Depois de ter a maior parte das suas atividades encerradas, a antiga olaria foi adquirida por Brennand, em novembro de 1971, com o objetivo de transformá-la num gigantesco complexo para abrigar toda a produção artística do escultor, pintor e desenhista. De lá para cá, o conjunto arquitetônico vem sofrendo mutações, constantemente adaptado à modernidade, mas com a preocupação de manter a originalidade. A administração da Ofici-

na lembra que nos primeiros anos de execução do projeto os fornos da antiga olaria, ainda ativos, eram partilhados com outras atividades produtivas. A preocupação do artista é conferir vida e alegria à Oficina. Mostrá-la jovem, moderna, pulsante, em constante crescimento, viva.

Criador inquieto Em 11 de junho, Francisco Brennand completará 85 anos e continua em plena atividade. Inquieto, dedica-se à pintura, acompanha diretamente o dia a dia da Oficina, participa de eventos e trabalha na revisão do seu diário. Brennand respira arte desde os 13 anos. Começou como pintor e desenhista. Na sua formação acadêmica, bebeu nas fontes de Murilo la Greca, mestre do afresco, e do paisagista Álvaro Amorim. No período de 1948 a 1952 visitou diversos países da Europa, onde estudou pintura e cerâmica e teve o privilégio de conviver com os artistas Fernand Léger e André Lhote. No seu currículo acumula mais de 100 exposições (individuais e coletivas), em países como Alemanha, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Portugal, Uruguai e Venezuela. Suas esculturas, painéis e quadros ganharam o mundo e hoje decoram espaços públicos e privados no Chile, Estados Unidos, França, Inglaterra, Peru, Portugal e Suíça.

A Oficina Brennand funciona no terreno do antigo Engenho Santos Cosme e Damião, numa área remanescente da Mata Atlântica

celso pereira JR.

Obelisco de Brennand no cais de Recife

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curta essa dica

Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Drama familiar Rodrigo Santoro e Débora Falabella

Marcos (Rodrigo Santoro) é um brasileiro que se mudou há muitos anos para a Itália, casou com a filha de um rico empresário e deixou para trás as lembranças, o pai Armando (Paulo José) e o irmão Tiago (Cauã Reymond). Quando recebe a notícia da morte de seu pai, volta ao Brasil e encontra a empresa da família em frangalhos e a existência de uma meia-irmã portadora de deficiência mental. O que era para ser uma viagem curta vira a vida de Marcos de cabeça para baixo porque ele não quer voltar para a Itália deixando Manuela (Débora Falabella) na clínica psiquiátrica. A atuação de Santoro, na pele de um personagem introspectivo e difícil, dá brilho ao filme de André Ristum, Meu País, que chegou às locadoras em abril.

Entrou para a história

O ano de 2011 não passará em branco. A onda de manifestações começou no norte da África, com a queda das ditaduras do Egito, do Iêmen, Líbia e Tunísia, depois alcançou a Europa, em greves e ocupações na Espanha, Grécia, Londres, passou pelo Chile, ocupou Wall Street e chegou até a Rússia. Provavelmente 2011 será lembrado como o ano em que pessoas do mundo todo foram às ruas para protestar. Passados seis meses do início da efervescência, a Boitempo Editorial e a revista eletrônica Carta Maior decidiram fazer um balanço do movimento. A coletânea Occupy – Movimentos de Protesto Que Tomaram as Ruas (88 pág.) reúne artigos de David Harvey, Edson Teles, Emir Sader, Giovanni Alves, Henrique Soares Carneiro, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Mike Davis, Slavoj Žižek, Tarik Ali e Vladimir Safatle. R$ 10.

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Arte de rua na academia

Grafites de 20 artistas estão espalhados pelas paredes, por tapumes de obras, em suportes de madeira de demolição e nas projeções de vídeo no Centro Cultural Casa Hercílio Esteves, que fica dentro da Faculdade de Medicina de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. A mostra Da Rua traz diferentes segmentos da street art, como o bomb, a pichação, o sticker, o stencil e o popular lambe-lambe. Em cartaz até 15 de junho, no campus da FMP/Fase, na Av. Barão do Rio Branco, 1.003. De segunda a sexta-feira, das 9h às 18h. Grátis.


Viva Elis

Passado e presente: Elis, no triciclo, e sua filha, Maria Rita, no show em sua homenagem

Em janeiro de 1982 o Brasil perdia uma de suas maiores cantoras: Elis Regina Carvalho Costa, ou Elis Regina, a Pimentinha. Trinta anos depois, é organizada uma leva de homenagens à cantora, com shows da filha, Maria Rita, e exposições que fazem parte do projeto Nivea Viva Elis. A mostra traz mais de 200 fotos, além de entrevistas, pôsteres, documentário com depoimentos de vários artistas, reportagens de revistas e jornais, vídeos de apresentações, programas de televisão, réplicas de figurino e ingressos de shows. Em São Paulo, fica em cartaz até 20 de maio, no Centro Cultural São Paulo; em Porto Alegre, será realizada de 10 de junho a 15 de julho, na Usina do Gasômetro; em Recife, de 5 de agosto a 25 de setembro, no Parque Dona Lindu; no Rio de Janeiro, de 10 de outubro a 11 de novembro, no Centro Cultural Banco do Brasil; e em Belo Horizonte, de 27 de novembro a 6 de janeiro, no Palácio das Artes. Confira as datas dos shows, endereços e outros detalhes em www.nivea.com.br/niveavivaelis. Tanto a exposição como os shows são gratuitos.

Repente Sebastião Marinho

Michela Brígida/divulgação

Em São Paulo, é comum ver repentistas duelando na Praça da Sé e adjacências, no centro. Quando começam a se “enfrentar”, não demora para se aglomerarem admiradores dessa manifestação popular tão genuinamente brasileira. Da rua para o palco, o projeto Violas e Repentes promove encontros entre eles todo primeiro sábado do mês a partir das 15h, no Raso da Catarina, na Vila Madalena, em São Paulo. O objetivo é difundir a diversidade da arte do repente e da tradição oral, além de contextualizar historicamente sua origem e seu surgimento. Durante uma hora e meia, uma dupla de artistas mostra sua improvisação e permite que o público interaja ao propor temas. Consulte a programação em www.rasodacatarina. com.br ou ligue para (11) 3537-9331. Rua Fradique Coutinho, 1.004. Grátis.

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mouzar benedito

O pau-brasil e o legista

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osto de caminhar por ruas bonitas, bem arborizadas, perto da minha casa, na Vila Madalena. Rua de moradores ricos é uma beleza. Como moro perto, minhas caminhadas são naquela direção. Ruas de bairros pobres também poderiam ter muitas árvores, mas os prefeitos parecem achar que pobre tem de morar em lugar feio e desagradável mesmo. E os pobres não reivindicam melhorias como essa. Há exceções, claro. Quem chega de avião a João Pessoa, capital paraibana, se impressiona olhando de cima a cidade bem arborizada. Dizem que é a cidade mais arborizada do Brasil e a segunda capital mais arborizada do mundo, só perdendo para Paris. Não sei se é verdade, mas é bom de ver. O segredo de João Pessoa, fiquei sabendo há décadas, é que a prefeitura abate no IPTU um valor para cada árvore plantada dentro do terreno das casas. Então, além das árvores nas calçadas, há muitas na área interna, privada. Voltando à Vila Madalena, não nas ruas cheias de bares, mas nas de moradias ricas, perto do Alto de Pinheiros, há árvores enormes, lindas. Há algum tempo “descobri” um pé de pau-brasil numa de suas ruas. É uma árvore grande e bonita. Sempre passo lá para “conferir”, pois acredito que algum dia vão derrubar o pau-brasil, dizendo que a árvore é grande demais, que atrapalha a circulação ou qualquer coisa do tipo. Ao lado da árvore tem um pequeno pedestal com uma parte inclinada em cima, onde imagino que havia uma placa

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de bronze identificando como pau-brasil. Não há mais, deve ter sido roubada para venderem o bronze por uns tostões. Aliás, essa é outra coisa comum. Lembro que, quando o sociólogo Eder Sader morreu, deram o nome dele a uma pequena praça, também na Vila Madalena. Inauguraram com festa e com uma placa de bronze. Os filhos do Eder Sader estavam viajando, se atrasaram e chegaram tarde, à noite. Deixaram para ir ver a praça que homenageava o pai no dia seguinte, de manhã. Quando foram lá, a placa já havia sido roubada. Se fosse hoje, diriam que eram viciados em crack que a roubaram para sustentar o vício, mas na época ainda não havia crack. Mas toda essa história é pra contar que no Sábado de Aleluia, quando saí pra minha caminhada, os postes do bairro estavam cheios de cartazes. Fiquei sabendo por eles que morava no bairro o médico legista Harry Shibata, que no período ditatorial assinava laudos inocentando a polícia de mortes de presos sob tortura. Alguns cartazes falavam dos mortos e dos laudos de Shibata. Um dos laudos atestava que Vladimir Herzog se suicidara, embora o legista nem tivesse visto o corpo. Assinava tudo que a polícia pedia. Um cartaz tinha o endereço de Harry Shibata. Conferi: parecia que era a casa que tinha, plantada na calçada, a árvore de paubrasil. Confesso que tremi. Não gostaria de associar na minha mente a única árvore de pau-brasil que conheço na Vila Madalena à residência de um sujeito da ditadura. Evitei passar por lá. No domingo, li nos jornais que houve uma manifestação no sábado, em frente à casa. E resolvi passar lá para tirar a prova. Era ou não a que tinha o pau-brasil em frente? Felizmente, não era. O pau-brasil era em frente à casa ao lado. Nos portões do casarão de Harry Shibata havia inscrições como “assassino”, e na rua uma inscrição e uma seta indicavam que ali morava um legista da ditadura. Depois do alívio, continuei minha caminhada, feliz da vida. Na segunda-feira, quando saí para caminhar, uma estranheza: quase nenhum poste tinha mais os cartazes que denunciavam Harry Shibata. Ou ele contratou uma boa equipe para sair arrancando, ou tem muitos simpatizantes no bairro. Cruz-credo!


O Centro Cultural Afro Brasileiro Francisco Solano Trindade iniciou suas atividades em 1988 através de diversos militantes do Movimento negro, agentes Pastorais Negros, sindicalistas ligados à sociedade organizada e às comissões de fábrica dos trabalhadores da região do ABC. Em maio de 1999, Klaus Volkert, presidente do Comitê Mundial dos Trabalhadores da Volkswagen, lançou a proposta da campanha “Uma Hora para o Futuro”, que consiste em desenvolver uma ação de arrecadação de fundos junto aos trabalhadores da Volkswagen na Europa, especialmente na Alemanha, em apoio a projetos com crianças e adolescentes em situação de rua na África do Sul, Brasil e México. A proposta foi aprovada e em 2003, iniciou-se o trabalho nas comunidades no Brasil com o objetivo de atender às crianças e suas famílias no ambiente onde vivem, assim como fortalecer a comunidade por meio de um trabalho voltado aos direitos da criança e do adolescente e da educação para o combate à discriminação racial. O Centro Cultural trabalha com a missão de resgatar e promover a cultura afro-brasileira e popular junto à sociedade, despertando e estimulando as comunidades de baixa renda da Região do Grande ABCD com a prática de cidadania. Hoje em dia, as crianças e adolescentes sofrem uma grande influencia negativa através dos meios de comunicação como os programas de televisão e as músicas. Para combater essa influência negativa são oficinas realizadas nos núcleos de Diadema e São Bernardo do Campo são de capoeira, informática, teatro do oprimido, canto, dança, artes visuais, artes cênicas, ludicidade, esportes e percussão. Devido à violência verbal e não verbal que estão presentes no dia a dia dessas crianças, no ano de 2012, o Solano quer contribuir para a ampliação da cultura de paz à situação de violência, propondo uma nova forma de trabalhar na resolução de conflitos implantando novas tecnologias como o diálogo, mediação de forma pacífica, jogos cooperativos, danças circulares, processos circulares e comunicação não violenta, pois a violência praticada contra as mulheres e crianças causam traumas graves, que deixam marcas duradouras em sua vida afetiva e psicológica.

www.solano.org.br Tel: (11) 4338-2198

Arte: Eric Gaieta

Centro Solano Trindade: A iniciativa da Cultura de Paz em uma ONG



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