economia Medidas para responder à crise com crescimento
nº 72
junho/2012
moçambique Mia Couto, as guerras e os 20 anos de paz
www.redebrasilatual.com.br
Roberto Civita, dono da revista Veja, tem muito a explicar sobre as relações de seu veículo com Carlinhos Cachoeira
Negócios impublicáveis
paz e liberdade A estrada sedutora de Jack Kerouac
Índice
editorial
10. Economia
País se mexe contra a lógica ditada pelo mercado para voltar a acelerar
16. Mídia
Imprensa deve ser livre para informar e investigada se desfrutar de crimes
20. Política
Coimbra, do Vox Populi: escândalos são oportunidade de mudar o jogo
22. Memória
Assassino confesso a serviço da ditadura dá pistas da barbárie WILSON DIAS/ABR
26. Cidadania
Desolação, maus-tratos e pouca esperança na velha Febem
32. Mundo
O maio de Dilma: Comissão da Verdade, vetos ao Código Florestal e queda recorde de juros
Com o olhar para as gerações futuras, Moçambique se refaz
Tempo de ousadias
36. Entrevista
Mia Couto fala da sua literatura, das guerras e da paz em seu país
O
40. Cultura
RKBarreto/Setur-BA
Meio século depois, o cinema relê clássico que moldou geração beat
44. Viagem
No centenário de Jorge Amado, a sugestiva Mangue Seco, de Tieta
Seções Cartas 4 Mauro Santayana Destaques do mês
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Poema de Ademir Assunção
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Brasil destacou-se no cenário internacional nos últimos anos por buscar uma política que alie crescimento econômico e redução das desigualdades, com as medidas de transferência de renda, valorização do salário mínimo, correção da tabela do IR, entre outras. A crise internacional, no entanto, tem demandado ações mais ousadas. A taxa básica de juros chegou a 8,5% ao ano, seu menor patamar histórico. O governo Dilma já vinha exigindo dos bancos o barateamento do crédito para pessoas físicas e empresas. Ao diminuir as despesas da União com juros, abre caminho para investir mais em infraestrutura e intervir no câmbio. O real valorizado em relação ao dólar encarece os produtos nacionais no exterior e afeta a competitividade das empresas. A ousadia com que inova na gestão da economia confere popularidade à presidenta. Esse respaldo possibilitou que, em maio, fossem colocadas em dia pendências reclamadas pela sociedade. A PEC 438, que permite o confisco de propriedades flagradas com trabalho análogo à escravidão, foi aprovada. Os piores pontos introduzidos pelos deputados no Código Florestal foram vetados. A instalação da Comissão da Verdade para investigar crimes contra a humanidade praticados por agentes da ditadura foi instalada. Mas, na agenda da imprensa comercial, nada mais importa. Para um dos principais líderes da oposição, Roberto Civita, dono da Editora Abril e da revista Veja, a prioridade de seus pares é impedir que gente da imprensa seja investigada pela CPMI do Cachoeira – chefe de organização criminosa suspeito de também chefiar jornalistas e políticos. Para isso, Civita recorreu mais uma vez a Gilmar Mendes, ministro do STF e velho parceiro em tentativas de aplicar um pé no traseiro de Lula. Quando voltou às páginas da revista para acusar o ex-presidente de chantageá-lo, Mendes lançou uma cortina de fumaça no depoimento à Comissão de Ética do Senado de Demóstenes Torres – igualmente bem relacionado com Veja, Cachoeira e Mendes. Até Aécio Neves, ainda candidato a líder da oposição, reagiu à suposta atitude de Lula perante Mendes: “Ninguém está acima da lei e ninguém pode tudo no Brasil”, disse o tucano. É isso aí, senador. Ninguém. Nem os Civita, nem os Marinho. Ou, como defende o manifesto dos blogueiros pela regulação dos meios de comunicação: “Nada além da Constituição”. Para todos. revista do brasil junho 2012
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cartas www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo. Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi. Revisão: Márcia Melo Capa Foto de Cláudio Belli/Valor/Folhapress Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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Apagão no transporte O colapso da mobilidade urbana é uma grande oportunidade para a sociedade brasileira amadurecer, aprendendo a defender os interesses coletivos (“O caminho é coletivo”, ed. 71). Priorizar o transporte público significa optar por qualidade de vida, preservação do meio ambiente e maior equidade de acesso ao recursos da cidade. A participação da população no debate é de fundamental importância para que interesses particulares não ofusquem as reais necessidades dos cidadãos. Amauri Almeida Caótico A reportagem de capa é propícia para os dias de hoje na cidade mais rica do país (“O caminho é coletivo”, ed. 71). Revela uma situação bem conhecida pelos paulistanos, o transporte caótico. Leonardo Brito Impostos Rico não quer e não gosta de pagar imposto. Foi apresentado no Congresso um projeto que regulamenta o imposto sobre grandes fortunas (IGF), mas foi arquivado. A Fiesp, a especialista em reforma tributária, quer uma reforma que isenta ainda mais os ricos. Uma iniciativa como o IGF poderia aliviar o IPVA e o ICMS sobre a eletricidade, que em alguns estados chega a 30% do valor da conta. André
Impostos 2 Sabemos que o imposto de renda é injusto nos patamares atuais (“Não mata ninguém”, ed. 70). O que incomoda é que a responsabilidade de administrar esse imposto é do governo federal. O governo está nas mãos do Partido dos Trabalhadores. E a gestão sob a mesma ideologia aproxima-se de dez anos, tempo suficiente, na minha opinião, para ter mudado um pouco a situação. Não adianta simplesmente dizer que herdou o problema de governos anteriores. O PT tem a chance de governar o Brasil por, no mínimo, uns dez anos à frente. Em 2020, ainda culpará gestões anteriores? Está na hora de trabalhar um pouco mais para resolver problemas como esse. Rogério Impostos 3 Parabéns pelo editorial da revista de abril (“Pesada é a injustiça”, ed. 70, sobre o sistema tributário). Mas não sou eu quem deve ler. Por isso peço que meus exemplares sejam enviados diretamente a Dilma, aos senadores e aos demais membros da quadrilha que de vez em quando estão no Palácio (ou circo) em Brasília. José Eduardo N. Bálsamo, Itapetininga (SP) Bebida e volante Achei excelente a reportagem “Se tiver caráter não beba” (ed. 67), mas de nada vão adiantar leis, campanhas, conscientização se não houver a punição, e punição severa, que sirva de exemplo para que outros irresponsáveis do trânsito pensem duas, dez, mil vezes quando forem beber e dirigir. Deveriam ser criadas “detenções (presídios) para crimes do trânsito”, ou seja, se bebeu, dirigiu e causou acidente grave, detenção automática para o infrator, por um período relativo à gravidade da infração. Só assim é que os animais do trânsito vão se conscientizar sobre a gravidade da mistura álcool e direção. Osni Bernardi, Santo André (SP)
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
Mauro santayana
Quando um não quer, dois não furtam
Não há mais como fechar os olhos: é preciso ir até o fundo nas investigações do sistema de corrupção – nos meios políticos, órgãos públicos, empresariais e outros setores da sociedade
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CPMI criada para examinar os negócios do “empresário” Carlos Augusto de Almeida Ramos e suas estranhas relações com alguns políticos e jornalistas não deve ficar inibida. É seu dever ir ao sumo, e não repetir o caso de outras comissões, que se perderam, encalhadas em expedientes judiciais e manobras políticas. A nação tem o dever de exigir e o direito de obter todas as informações sobre os fatos. A justiça – se os fatos se comprovarem – não se exercerá plenamente se os dinheiros desviados, no superfaturamento de obras e serviços, não forem devolvidos ao erário. Houve quem defendesse, há 20 anos, as atividades do senhor Paulo César Farias, com o argumento torpe de que elas se explicavam pela cultura brasileira. A ofensa, convenhamos, não foi devidamente rechaçada. A cultura nacional não é a do furto, mesmo que tenhamos uma vasta documentação de falcatruas no passado. A cultura de nosso povo é a do trabalho, do comportamento honrado, do respeito aos valores. A essa cultura devemos a manutenção da integridade nacional e o melhor de nosso passado. Os corruptos, os corruptores e os larápios são ínfima parcela da população: não podem inquinar a nacionalidade como um todo. Medidas tomadas nas últimas semanas e meses irão, como todos esperamos, contribuir para o saneamento dos atos políticos e empresariais. Com isso, haverá novos padrões republicanos que legitimarão a representação popular, mais que quaisquer reformas políticas. A Lei da Ficha
Limpa, aprovada sob pressão popular, e referendada pelo Supremo Tribunal Federal, irá fechar o passo aos já condenados pelos tribunais. A extensão da mesma exigência aos candidatos a cargos em comissão do poder público contribuirá, e muito, para a limpeza da administração. A corrupção é um contrato entre o corruptor e o corrompido. Quando um não quer, dois não furtam. Há poucos dias, a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, foi a primeira a divulgar o fac-símile de seu contracheque, como membro do mais elevado tribunal do país. É um bom exemplo. Quando este texto era redigido, esperava-se que os senadores e deputados também o fizessem. Os senadores e deputados são menos de 600 pessoas. Mas, tal como no Poder Judiciário, que não se limita aos ministros do STF – mas se multiplica aos milhares, nos juízes dos outros tribunais em todos os estados brasileiros, com seus servidores permanentes e ocupantes de cargos em comissão –, o Congresso não se limita aos deputados federais e senadores. O país irá espantar-se quando tomar conhecimento do que ganham os servidores permanentes, muito mais do que recebem os eventuais ocupantes de cargos em comissão. Trata-se de privilégios acumulados, ao longo dos anos, mediante leis promulgadas “ad personam”, que, eventualmente, beneficiam membros do mesmo grupo funcional. Não é por outra razão que os funcionários do Legislativo, e os juízes dos tribunais inferiores, mediante a Associação dos Magistrados do Brasil, se organizam para tentar impedir, via Judiciário, o conhecimento do que ganham. É improvável que o Poder Judiciário – que, em sua cúpula, decidiu tornar pública a própria remuneração – venha a aceitar essa postulação. A razão ética não admite o argumento da privacidade, quando o empregador é o povo. A corrupção não é pecado de algum grupo político em particular, de algum partido em particular – mas de todo o sistema. Do saneamento do Estado depende a sobrevivência da nação. Como diziam os romanos, a suprema lei é a que salva a República. E, sem o combate à corrupção, a sobrevivência do Estado democrático está ameaçada pelos “salvadores”, que substituem uns corruptos pelos outros, mediante a censura, a violência policial e a tortura – como disso temos sangrenta e amarga experiência. revista do brasil junho 2012
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Mascote do time olímpico da Grã-Bretanha: denúncia de trabalho degradante na China
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Esporte, celebração e violações
Documento organizado por entidades sindicais internacionais mostrou que trabalho precário, baixa remuneração, horas extras forçadas e restrições à liberdade de organização marcam a produção de materiais esportivos para a Olimpíada de Londres, este ano. O relatório, feito a partir de apuração em 175 empresas asiáticas, adverte ainda que a organização dos Jogos do Rio, em 2016, deve se precaver para não repetir o erro. http://bit.ly/rba_esportes_direitos
Suzanne Plunkett/Reuters
O estresse provocado pelas Margarida jornadas prolongadas e as Barreto crescentes exigências por metas no trabalho interferem na saúde das pessoas, na vida familiar, na produtividade das empresas e nas contas da Previdência Social. Em entrevista à Rede Brasil Atual, a médica do Trabalho e pesquisadora da PUC de São Paulo Margarida Barreto afirmou que a jornada semanal de trabalho de profissionais acostumados a viver sob pressão e grande exigência deveria ser de no máximo 30 horas, conforme orientam a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados da Previdência Social mostram que no período de janeiro a março de 2012 foram atendidos 511.564 pedidos de auxílio-doença. À medida que surgem mais vagas de emprego, segundo a médica, mais se torna indispensável a discussão sobre a qualidade dele para o trabalhador. http://bit.ly/rba_estresse
Informação contra corrupção
Maio terminou com saldo positivo na caminhada para um Estado brasileiro mais transparente e mais democrático. Entrou em vigor a Lei de Acesso à Informação, que faz com que os órgãos públicos de todas as esferas sejam obrigados a fornecer documentos solicitados pelos cidadãos em prazos curtos. Em Brasília, a Conferência Nacional de Transparência e Controle Social (Consocial) elegeu como prioridade o aumento dos instrumentos de acesso à informação. Mas há quem resista à prestação de contas. O Portal da Transparência, do governo federal, é um exemplo a ser seguido, mas ainda é exceção. Em outra ponta, cresce a movimentação pelo financiamento público de campanha, como forma de reduzir a promiscuidade entre doadores privados de recursos, governantes e legisladores. http://bit.ly/rba_acesso_informacao 6
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Cláudio Araújo/CNTI
Qualidade no emprego
São Paulo para trás
O pré-candidato do PT, Fernando Haddad, teme que a campanha de José Serra, na ausência de projetos para a cidade, descambe para a “obscuridade”, levantando novamente questões morais e religiosas em um vale-tudo eleitoral semelhante ao de 2010. Em entrevista coletiva organizada pela Rede Brasil Atual, o ex-ministro da Educação, além de dizer o que não quer, mostrou que deseja debater uma cidade civilizada, com visão de longo prazo. Para Haddad, com a dupla Serra-Kassab a capital paulista deixou de cumprir seu dever de estar na vanguarda das soluções urbanas brasileiras e mundiais. http://bit.ly/rba_haddad
Se vai de metrô, não se distraia Geraldo Alckmin (PSDB), em vez de explicar os cortes de investimentos, partiu para o ataque ao governo federal, afirmando que não havia “um centavo” de verba dos governos Lula e Dilma nas novas linhas – no que foi desmentido pela consulta feita pela Rede Brasil Atual aos portais de transparência. Na comparação entre governos, os petistas no Planalto enviaram a São Paulo R$ 15,2 bilhões, quase quatro vezes o investido por Fernando Henrique Cardoso, tucano como Alckmin. http://bit.ly/rba_metro_acidente
mauricio morais
Haddad: visão de longo prazo
Saúde privatizada
Alessandro Valle/AE
O primeiro choque entre trens com passageiros no metrô de São Paulo escancarou um processo de perda de credibilidade do meio de transporte que outrora foi sinônimo de qualidade e segurança. À parte as dezenas de feridos – de 30 a 50, de acordo com os desencontrados números dos governos estadual e municipal –, restou para a população o medo de se deslocar pelo subterrâneo paulistano. O secretário estadual de Transportes Metropolitanos, Jurandir Fernandes, culpou os passageiros “distraídos” pelo alto número de feridos. O governador
Atendimento a feridos na estação Carrão: a culpa é das vítimas, segundo Jurandir Fernandes
Na Semana de Luta Antimanicomial, encerrada em 18 de maio, ativistas protestaram contra a privatização dos centros de atendimento médico pelo prefeito Gilberto Kassab (PSD). Naquele dia mais uma unidade do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Brasilândia, zona norte paulistana, teria sua gestão transferida para uma Organização Social (OS) que já administra 47 unidades do Programa Saúde da Família (PSF) no município, sete CAPS, 12 programas de atendimento ao idoso e um centro de referência em homeopatia, medicinas tradicionais e práticas integrativas. http://bit.ly/rba_saude_mental revista do brasil junho 2012
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Leonardo Prado/Agência Câmara
Infeliz Heinze: deputados estariam trabalhando como escravos
Escravos da
ganância
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ão é preciso recorrer à literatura do Brasil colônia para lembrar o desdém dos coronéis para com o trabalho indecente praticado em suas propriedades. Os anais do Congresso Nacional registram discursos de algumas semanas atrás de dar vergonha a um país que busca a duras penas um lugar de destaque no cenário internacional. Alguns integrantes da bancada ruralista proferiram pérolas durante a votação da Proposta de Emenda à Constituição 438, a PEC do Trabalho Escravo, que determina o confisco de propriedades onde for flagrado o uso de mão de obra em situação análoga à escravidão.
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“Se na minha propriedade eu matar alguém, tenho direito a defesa. Se eu tiver um bom advogado, não vou nem preso. Mas se eu der a um funcionário um trabalho que o fiscal do Trabalho vai colocar como análogo a escravo, provavelmente a minha esposa e os meus herdeiros vão ficar sem o imóvel, uma penalidade muito maior do que se eu tirar a vida de alguém”, disse o deputado federal Nelson Marquezelli (PTB-SP). Seu colega Luiz Carlos Heinze (PP-RS) foi ainda mais dramático. No afã de argumentar que a lei é vaga, permitindo diferentes entendimentos, Heinze apelou. Reclamou que a falta de sanitários e chuveiros disponíveis para os trabalhadores,
saulo cruz/Agência Câmara
Contra projeto que confisca posses de escravocratas, deputados ruralistas usam argumentos do século 19 Por Virginia Toledo
Hipocrisia Marquezelli: matar pode, escravizar, não
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por exemplo, não pode ser tida como indício de trabalho degradante, pois muitos estabelecimentos não o possuem, citando inclusive a própria Câmara dos Deputados. “Para cada dez trabalhadores, tem de ter um banheiro e um chuveiro. Nesta Casa, onde trabalhamos, às vezes, até meia-noite, 2h da manhã, há três ou quatro vasos sanitários para 513 deputados. Isso aqui não é trabalho degradante, não é jornada exaustiva? Por que não vêm aqui prender e dizer que nós estamos num trabalho escravo?”, indagou o parlamentar em plenário. A hipocrisia não se justifica. O conceito de trabalho em situação análoga à escravidão é muito bem definido pelo Código Penal e por organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E identifica-se em situações como ausência de alojamentos, água, comida em condições decentes, trabalho por dívida, retenção de documentos e privação de liberdade. O fato de não haver mais o comércio e o tráfico de pessoas como até o século 19 não deixa de tornar criminosa a exposição de seres humanos, ludibriados em seu local de origem, a situações indignas.
Manobras futuras
A postura de parte da bancada do agronegócio foi um indício de que buscarão brechas possíveis nessa e em futuras leis que venham a apresentar. Mas não conseguiu evitar a aprovação da PEC, por 360 votos a favor (eram necessários 308). O acontecimento foi comemorado como mais um avanço na luta travada contra a escravidão contempo-
rânea, na qual o Brasil é referência internacional. “Essa é a principal agenda política de direitos humanos. Não é uma agenda a mais, mas a principal agenda”, disse a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). A aprovação da PEC soma-se a conquistas como a consolidação dos Grupos Móveis de Fiscalização (envolvendo fiscais do Trabalho, procuradores e Polícia Federal), a criação em 2003 da “lista suja” de empresas e pessoas físicas flagradas com prática de escravidão em suas propriedades, a formação do pacto nacional que reúne órgãos do governo, entidades como Comissão Pastoral da Terra, Repórter Brasil, Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e mais de duas centenas de empresas para identificar e coibir esse tipo de violação de direitos humanos em suas cadeias produtivas. Algumas empresas decididamente não querem ter o nome relacionado ao trabalho indecente. De acordo com Mariana Parra, coordenadora de projetos de políticas públicas do Ethos, a via judicial para a erradicação do trabalho escravo no Brasil é ainda ineficiente. “Portanto, todas as iniciativas que possam inibir o uso desse tipo de mão de obra são de extrema importância”, defende. Mariana lembra que o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo agrega 250 empresas signatárias, o que representa quase 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Há dois anos, a rede varejista Marisa teve seu nome manchado quando a fisca-
lização identificou a prática de trabalho degradante em uma oficina de confecções de sua cadeia produtiva. Os empregados, bolivianos, não tinham carteira assinada e recebiam em média R$ 200. Apesar da repercussão negativa, em vez de desqualificar a ação de fiscalização, a empresa foi atrás de providências, iniciando um trabalho de auditoria própria para fiscalizar suas contratadas e subcontratadas. “Queremos e podemos usar a força que a Marisa tem junto ao seu grupo de fornecedores para uma conscientização de toda a cadeia produtiva”, disse Marília Parada, gerente-geral de recursos humanos da rede. “O consumidor não gosta de fazer nenhum tipo de contrato ou compra de um produto que possa ter origem em condições degradantes de trabalho. Na soja, nosso compromisso é muito forte. Nenhuma dessas grandes empresas compra nem financia propriedades que constem na lista suja do Ministério do Trabalho e Emprego”, afirmou Bernardo Pires, gerente de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que reúne as maiores exportadoras de soja do Brasil e signatária do pacto.
Acompanhe
De 1995 para cá, mais de 40 mil trabalhadores foram libertados de condições sub-humanas de trabalho e de vida. Com a aprovação da PEC 438, o Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo ganha mais um reforço. Leia as reportagens publicadas antes da votação na Câmara – http://bit.ly/rba_PEC_438. E continue acompanhando o tema pela Rede Brasil Atual. O projeto precisa agora ser votado no Senado.
A presidenta Dilma Rousseff contou com o respaldo de uma ampla mobilização social, e o Diário Oficial da União de 28 de maio publicou o texto do novo Código Florestal. Houve 12 vetos de Dilma e uma medida provisória que promove outras 32 alterações no texto aprovado pela Câmara. Os pontos modificados restituem boa parte do texto redigido no Senado e bloqueiam a possibilidade de consolidação de áreas exploradas indevidamente.
A presidenta optou por enfatizar que a nova legislação visa promover o uso sustentável da floresta “em harmonia com a promoção do desenvolvimento econômico”. E acrescentou uma série de parágrafos que abordam o compromisso comum de União, estados e municípios na preservação da natureza e no uso sustentável da terra. http://bit.ly/rba_vetos_florestal
Valter Campanato/ABr
Sociedade cobra veto ao código
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economia
Queda de braço em boa hora
O governo precisa gastar menos com juros para poder diminuir impostos, estimular a produção e aumentar os investimentos. Para isso, promove um enfrentamento inédito à lógica da economia ditada pelo mercado financeiro Por Eugênio Melloni 10
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os poucos, o apartamento vai ficando com cara de pronto. A analista de projetos Susana Cardoso de Souza e o analista de sistemas Juan Carlos Uzelen dão os últimos retoques. “É a parte mais gostosa”, comemora Susana. “É quando o sonho vai tomando forma”, completa Juan. Com as chaves na mão, ainda faltam R$ 110 mil para que seja, também, um sonho quitado. O casal tinha opção de negociar o saldo devedor com o mesmo banco que custeou a obra, mas decidiu pesquisar. “A gente fez consultas, analisamos juros e outras coisas e optamos pela Caixa”, conta ele. Montador de uma fábrica de caminhões da região do ABC paulista, João Eduardo de Souza, de 32 anos, já está com a questão da moradia resolvida, mas tem outras
preocupações. Casado e pai de um filho de 8 meses, no momento em que conversa com a reportagem, no final de maio, está parado há uma semana. Com a produção em baixa, a empresa concedeu folga a todo o setor de montagem e João está angustiado. Tem oito anos de fábrica e já viu outras crises. “Vem à cabeça a crise de 2009, quando teve demissões e muita gente que estava com contrato por tempo determinado acabou saindo”, lembra. “A gente fica inseguro, não dá para fazer planos.” Para casos como o de Susana e Juan, algumas medidas recentemente adotadas pelo governo federal com o objetivo de estimular o crescimento da economia já surtem efeito. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal foram os primeiros a reduzir taxas de juros com vistas a baratear o crédito. O Planalto, espera assim forçar
economia
Crédito Susana e Juan: sonho realizado
competição desleal principalmente com os produtos chineses. O consumo, mola-mestra do crescimento econômico na era Lula, também apresentava indícios de retração, atribuída ao maior endividamento das famílias. Símbolos da prosperidade dos últimos anos, os automóveis começaram a encalhar nos pátios das montadoras, enquanto diminuíam os lançamentos de imóveis. O crédito tornou-se mais raro e mais caro para pessoa física e jurídica, contribuindo para engessar o crescimento econômico na ponta do consumo e na do investimento na produção. No front externo, a Europa voltou a emitir sinais de SOS, com a ameaça de a Grécia abandonar a moeda única, levando consigo para o buraco países como Espanha e Itália. A China, nosso principal parceiro comercial no ano passado, segue em processo de desaceleração, o que já afeta a demanda por produtos brasileiros, princiOutro cenário palmente commodities como aço e grãos. O ano começou com sinais nítidos de Os Estados Unidos recuperam-se lentaque as engrenagens da economia brasilei- mente dos chacoalhões de 2008, mantenra, que permitiram ao país experimentar, do-se longe ainda de representar refúgio em período recente, uma virtuosa com- seguro para as exportações brasileiras. binação de crescimento econômico com Com essa combinação negativa de fadesenvolvimento social, já não rodam tores, a presidenta Dilma Rousseff viu-se, com a mesma desenvoltura. A indústria no início do ano, diante de um intricado exibiu sinais de enfraquecimento, ator- jogo de xadrez, com risco de seu governo doada pelo câmbio desfavorável e pela ser marcado por uma queda das taxas de crescimento. Mas, como reconhecem os economistas ouvidos pela Revista do Brasil, não houve recuo diante das dificuldades. A divulgação da queda de 0,3% em março do Índice de Atividade Econômica Ganho dos bancos no Brasil com operações de crédito supera o de países mais pobres e Brics do Banco Central, radiografia mensal dos rumos do PIB, foi a senha para a intensi27,8% Brasil ficação de medidas emergenciais. Paraguai 26,9% Para fazer frente ao desafio, Dilma va16,39% Peru leu-se da reedição de fórmulas adotadas Bolívia 9,61% com sucesso pelo governo Lula durante a 7,37% Colômbia crise financeira global de 2008-2009, reaUruguai 5,71% tivando a desoneração de segmentos viCom spread e tarifas altas, de 1994 tais para o consumo e o emprego. ParaChile 4,49% até 2011 os lucros dos bancos brasileiros lelamente, deu novas demonstrações de México 3,82% aumentaram 1.112% coragem política, ao romper paradigmas R$ 53,43 África 3,48% em assuntos considerados tabu: alterou bilhões Argentina 3,39% as regras da poupança, de forma a abrir China 3,06% espaços para uma queda maior dos juros; R$ 4,41 Rússia 3% e forçou, por meio dos bancos públicos, o bilhões sistema financeiro a baixar juros e a desVenezuela 1,49% 1994 2011 travar o crédito. Danilo Ramos
os bancos privados a seguir a mesma trilha para não perder clientela para as instituições controladas pela União. Mas talvez o montador João tenha de esperar um pouco mais para superar sua angústia. Em maio, o governo anunciou outras medidas voltadas a aquecer a atividade industrial, entre as quais a redução de juros e da entrada e a ampliação dos prazos para financiamento de ônibus e caminhões. “As medidas são importantes porque o setor estava parando, com folgas e férias coletivas em empresas do topo da cadeia produtiva. E se a situação está assim nas grandes, imagine nas pequenas e médias”, diz o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre. E vale lembrar que essas medidas carecem de um tempo de maturação para surtir efeito no mercado. Esperamos uma retomada para o segundo semestre.”
Spread é dos mais altos
Superlucro
Fonte: FMI, Banco Central do Brasil e demonstrativo financeiros dos bancos
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economia
O arsenal de medidas de estímulo à economia e de correção de rumos empregado nos últimos meses trouxe algum sucesso no enfrentamento da crise. Na terceira semana de maio, dados divulgados pelo BC mostraram que a concessão de empréstimos havia subido 8,1%, na média diária, para pessoas físicas, e 4,6%, para as empresas em abril, na comparação com março. O BC atribuiu a melhora à redução das taxas de juros e do spread (leia texto na página 15). Para economistas, ainda é cedo para saber se as medidas adotadas resultarão em um nível de crescimento de 4% em 2012, como prevê o ministro da Fazenda, Guido Mantega. A incógnita é a profundidade e duração da crise na zona do euro, que já está convulsionando o mercado financeiro mundial, o que inclui reflexos sobre o câmbio e sobre a bolsa brasileira – que acumulou queda de cerca de 20% entre meados de março e a terceira semana de maio. Enquanto isso, o dólar, que era trocado por R$ 1,80 no início de março, rompeu em maio a barreira dos R$ 2 e testava o patamar de R$ 2,10, que só não se concretizou devido às intervenções do BC. “O impacto da crise europeia é real e pode ser ainda mais sério”, diz o diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz Lúcio. “Um recrudescimento do cenário internacional pode trazer para o Brasil o contágio da crise global”, acrescenta. A disposição revelada pelo governo federal no enfrentamento da situação, contudo, tem agradado. “O governo tem se mostrado atento. As medidas adotadas até o momento são acertadas”, acredita o professor Claudio Salvadori Dedecca, do Instituto de Economia da Unicamp. Samy Dana, da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca que o Executivo tem agido com rapidez, adotando medidas importantes. “Não está sentado, esperando.” De acordo com o consultor Amir Khair, ex-secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), a presidenta Dilma tomou o caminho certo ao buscar ampliar e aper12
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Rodrigo Paiva/Folhapress
Caminho certo
aposta Como em 2008, o governo reduziu impostos de segmentos vitais para o consumo e o emprego. O setor automotivo responde por 25% da atividade industrial e 11% do PIB
feiçoar a política econômica adotada por Lula, que apostou no estímulo ao consumo como motor do crescimento. Segundo ele, é preciso desmitificar a ideia de que o governo Lula somente deu certo, no campo econômico, porque preservou o tripé da política econômica da era Fernando Henrique Cardoso: regime de metas para a inflação e para o superávit primário e câmbio flutuante. “A política econômica de Lula foi mais ampla”, diz Khair. O consultor lembra que o governo Lula optou por adotar uma política de estímulo ao consumo que se irradia de baixo para cima na pirâmide social brasileira. “O que está fazendo a Dilma? Está ampliando a política de estímulo ao consumo, ao
reforçar o Bolsa Família, criar o programa Brasil sem Miséria, institucionalizar o salário mínimo vinculado ao crescimento do PIB até 2014. São todas iniciativas que colocam recursos na base da pirâmide”, afirma Khair.
Indústria
A indústria brasileira transformou-se em um dos alvos preferenciais da política de estímulos adotada por Dilma após a constatação de que no primeiro trimestre de 2012 o setor apresentou recuo de 3%, segundo informações do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Para reverter esse quadro, o governo editou medidas de redução da carga
economia
Marlene Bergamo/Folhapress
tributária de segmentos como a indústria têxtil, bastante suscetível à concorrência chinesa. Em maio, com a constatação de que 400 mil veículos lotavam os pátios das montadoras e as lojas, o governo procurou adotar medidas que permitissem ampliação de prazos, entrada menor e menor incidência de juros sobre o crédito para a compra de veículos, assim como a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). O setor automotivo responde por 25% da atividade industrial e por 11% de todo o PIB do país. Para o professor Dedecca, é natural uma diminuição da atividade econômica no primeiro trimestre, para começar um aquecimento no segundo, que deverá ter seu pico no quarto trimestre. Amir Khair considera, no entanto, que a melhor forma de estimular a indústria é por meio do câmbio. A valorização do dólar melhora significativamente as condições de competição da indústria brasileira, que vinha perdendo espaço inclusive no mercado doméstico para produtos importados, em razão da força do real. Mas Samy Dana, da FGV, pondera que “o risco que se coloca é a perda de renda
Os “sem conta” Em 2010, 39,5% dos brasileiros não tinham conta bancária Nordeste
52,6%
Norte
50%
Sudeste
Centro-Oeste Sul
34%
31,2% 30%
Fonte: Ipea
da população, diante de um processo inflacionário mais encorpado”.
Cruzada contra o spread
Khair admite que a alta do dólar produz um efeito de curto prazo na inflação. Mas, no longo prazo, acredita que o câmbio na casa dos R$ 2,90 pode ajudar no equilíbrio da economia.
Ele lembra que, embora o governo federal tenha se mostrado disposto a promover desonerações com o objetivo de estimular o consumo e ampliar a competitividade da indústria brasileira, os esforços nesse sentido têm limites, uma vez que um dos principais impostos, o ICMS, é estadual – e os governos dos estados já se mostraram, em ocasiões anteriores, refratários à ideia de promover cortes em sua arrecadação. Os movimentos mais ousados da luta em prol do crescimento econômico se deram na área financeira. A presidenta Dilma rompeu um tabu que durou mais de 20 anos, ao alterar a remuneração da caderneta de poupança. A medida se fez necessária para dar sustentação à política de redução da taxa básica juros. A queda da Selic, além de influenciar no setor de crédito, permite ao governo economizar com o serviço de sua dívida. Gastando menos com o pagamento de juros, o Tesouro ganha não só fôlego para reduzir impostos – estimulando a produção e o consumo – como maior capacidade de investir em obras de infraestrutura e políticas públicas. Foi um gesto de ousadia política escan-
mola-mestra O consumo apresentou indícios de retração, atribuídos ao maior endividamento das famílias revista do brasil junho 2012
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economia
carar, em pronunciamento em cadeia nacional no Dia do Trabalho, sua contrariedade em relação ao tamanho do spread bancário – a diferença entre o que os bancos pagam para captar dinheiro e o que cobram para emprestá-lo. Paralelamente, pôs a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil na linha de frente da redução das taxas cobradas pelos seus serviços, dando início a uma saudável competição no segmento. “Nós não possuímos um sistema financeiro que participa da saúde da sociedade. Temos um sistema de agiotagem, que tira dinheiro da sociedade e não proporciona crescimento econômico”, afirma Amir Khair, apoiando as medidas adotadas pelo governo federal. Segundo ele, o governo agora está combatendo essa “anomalia”. Claudio Dedecca, no entanto, considera a queda de braço com os bancos uma briga dura e a redução do spread um processo lento. Levantamento feito pelo Dieese ajuda a entender as razões que levaram a presidenta a promover essa cruzada. Tratada por segmentos mais conservadores da
sociedade como uma intervenção indesejada, a iniciativa foi um tiro certeiro no modo de operação de um segmento oligopolizado, que produz benefícios para poucos e entraves para a economia como um todo. O spread bancário cobrado no país, que em maio caiu de 28 para 26,5 pontos percentuais, está entre os maiores do mundo. Na comparação com outros países latino-americanos, somente o Paraguai se equipara ao Brasil, com taxa de 26,9 pontos percentuais. Argentina (3,39 pontos percentuais), Uruguai (5,71), Bolívia (9,61) e Peru (16,39) apresentam spreads muito menores. Mesmo na comparação com outros membros dos Brics, o clube das nações emergentes, como China (3,06) e Rússia (3), o Brasil exibe um spread anabolizado. Estudo do Dieese mostra que, nos dez maiores bancos do país, mais de um terço do spread é lucro. Os bancos alegam que a inadimplência, o custo tributário elevado e o recolhimento compulsório de depósitos a prazo impedem sua queda, mas os técnicos responsáveis pelo levantamento asseguram que há espaço para baixar o custo do crédi-
Crédito no Brasil é escasso A relação entre o volume de crédito oferecido no Brasil e o PIB do país não chega a 50% Dinamarca
225%
Reino Unido
204%
Estados Unidos
202%
Luxemburgo
185%
Japão
159%
África do Sul
145%
União Europeia
140%
Suécia
140%
China
130%
Tailândia
117%
França
114%
Alemanha
108%
Finlândia
95%
Chile
86%
Brasil
49%
Índia México Argentina
49% 25%
to. O risco de inadimplência, por exemplo, compõe 28% do valor do spread, enquanto no total do sistema bancário brasileiro a inadimplência média é de 3,7%. Outro fator que induz aos spreads mais altos é o sistema bancário altamente concentrado. Segundo o Dieese, os seis maiores bancos controlam mais de 80% dos ativos totais e das operações de crédito, apresentando estrutura próxima à de um “cartel”. Em 1990, disputavam espaços 226 instituições financeiras, entre nacionais, estrangeiras e públicas federais e estaduais. Em 2010 – dezenas de privatizações, fusões e aquisições depois –, o segmento se reduziu a 157 instituições. Daí a importância da atuação dos bancos públicos para quebrar a lógica e influenciar na queda dos juros. O crescimento da concentração coincide com um aumento significativo do lucro dos bancos. No período entre 1994, quando foi implantado o Plano Real, e 2011, o lucro líquido dos bancos apresentou expansão de 1.112%, passando de R$ 4 bilhões para R$ 53,4 bilhões no período. Em 2011, os seis maiores bancos arrecadaram R$ 77 bilhões somente com a cobrança de tarifas – crescimento de 13,5% em relação ao ano anterior. Vista comumente pelo “mercado” como um processo de ganho de produtividade, competitividade e eficiência, a concentração oferece, no outro lado da moeda, uma face negativa: o aumento da exclusão bancária, que afeta a população mais carente e distante dos grandes centros. Com as privatizações a partir dos anos 1990, os bancos públicos foram reduzidos de 34 para apenas nove. “Os bancos têm função social e, sem deixar de serem lucrativos, têm plenas condições de assumir com maior responsabilidade o papel de ajudar a impulsionar o crescimento do país. Os bancos públicos são ferramentas importantes dos governos para esse fim. Pena que tiveram sua presença diminuída pelas privatizações, o que deixou o sistema financeiro mais concentrado”, diz a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira.
15% Colaborou Bruno Mascarenhas, da TVT
Fonte: Banco Mundial e Banco Central do Brasil
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junho 2012 revista do brasil
tvt
Economês bem traduzido O ABCD em Revista ouve a população, empresários e especialistas para explicar o que as mudanças na economia têm a ver com a vida das pessoas Por Bruno Mascarenhas
N
ão é fácil desenvolver reportagens de televisão sobre temas técnicos. Se o assunto é abordado de maneira arrastada, o telespectador desliga ou muda de canal. Isso nenhum profissional quer. Daí vem o desafio do programa ABCD em Revista, da TVT. Um dos assuntos mais falados nas últimas semanas foi a batalha pela redução dos juros bancários, de modo a contribuir para que pessoas tenham maior facilidade para realizar um projeto ou adquirir um bem e empresas possam investir em meios para melhorar sua produção. Para reduzir os juros, os bancos precisam reduzir o tal spread. Esse termo do economês quer dizer a diferença entre o que o Política Monetária do Banco Central, que define o valor da Selic. banco paga para o cliente que aplica seu dinheiro e o que cobra Em português: é a taxa básica de juros que o governo paga aos daqueles que precisam de dinheiro emprestado. Para a televi- bancos para se financiar. Há um ano essa taxa estava em 12,5% são, o desafio é contribuir para que o público entenda o quanto ao ano. Para economizar com pagamento de juros, o governo esse assunto interfere na vida de todos. veio reduzindo a Selic – que deve terminar o ano próxima de 8%. Uma das saídas do ABCD em Revista que foi ao ar no dia 18 Ao mesmo tempo, cobrou do sistema financeiro que reduzisde maio, e pode ser revisto no site – http://bit.ly/tvt_spread –, foi se os juros cobrados dos clientes. Para isso determinou que os tratar o assunto sério de maneira bem-humorada. E não é fácil bancos públicos, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Fedeconduzir com humor temas áridos sem comprometer sua se- ral, fossem os primeiros a dar o exemplo. Houve muita moviriedade. Algumas vezes o repórter se atrapalha propositalmen- mentação dos bancos privados para não perderem clientes. Um te com a palavra spread, e faz trocadilhos. Ou recorre a efeitos rebuliço que deu margem para que o ABCD em Revista merespeciais de edição e vira personagens: interpreta um cidadão gulhasse no assunto e mostrasse as diversas possibilidades que que deposita dinheiro na poupança, o banco e outro cidadão, estão surgindo no plano econômico no Brasil. aquele que pega dinheiro emprestado. A TVT, TV dos Trabalhadores, por ser uma emissora eduA reportagem foi às ruas para mostrar como o assunto é com- cativa, tem maior responsabilidade na forma como trata os teplicado. E entrevistou economistas, especialistas, professores, mas. Os programas exigem critério, dedicação e criatividade, sindicalistas, empresários e pessoas que recorreram a emprésti- para mostrar que há maneiras de não recorrer às cartilhas ulmos bancários. Enfim, ouviu diversos setores da sociedade que trapassadas usadas exaustivamente pelos programas jornalístiajudaram a entender a influência do spread cos de maneira geral. O ABCD em Revista bancário na vida do país. O programa usou é resultado dessa dedicação. Desafios coComo sintonizar também quadros com letras e números, exmo este, explicar a importância da redução plicando passo a passo cada informação. do spread bancário para a economia, dão à Canal 48 UHF (18h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) Simultaneamente à questão da pressão nossa equipe – direção, produção, reportaCanal 46 contra os bancos para reduzirem o spread, gem, edição, apoio – um prazer especial. O Mogi das Cruzes (UHF) o Copom baixou a taxa Selic. E tome econode contar parte da história no calor do aconNa internet mês: Selic é sigla de Sistema Especial de Litecimento e contribuir para que os cidadãos www.tvt.org.br quidação e Custódia e Copom é o Comitê de compreendam melhor sua realidade. revista do brasil junho 2012
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mídia
Sob suspeita D O caso DemóstenesCachoeira seria apenas mais um escândalo político a estampar manchetes, não fosse um terceiro e importante fator: no meio do caminho, entre corrompidos e corruptores, tinha uma Veja Por Lalo Leal 16
junho 2012 revista do brasil
e narradora dos acontecimentos a revista semanal da Abril tornou-se personagem, revelando um envolvimento nunca visto de forma tão escancarada na cena política brasileira. Gravações feitas pela Polícia Federal, com autorização da Justiça, não deixam dúvidas. O contraventor Carlinhos Cachoeira era mais do que fonte de informações. Seu relacionamento com o diretor da sucursal de Veja em Brasília, Policarpo Junior, permitia a ele sugerir até a seção da revista em que determinadas notas de seu interesse deveriam ser estampadas. O pouco que se revelou até aqui permite concluir que a publicação tornou-se instrumento de Cachoeira para remover do governo obstáculos aos seus objetivos.
Um desses entraves estaria no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), do Ministério dos Transportes, e dificultava a atuação da Delta Construções, empresa que teria fortes ligações com o contraventor. Segundo o jornalista Luis Nassif, a matéria da Veja sobre o Dnit saiu em 3 de junho de 2011. “A diretoria estava atrapalhando os negócios da Delta. Foi o mesmo modo de operação do episódio dos Correios –que daria origem ao chamado “mensalão”. Cachoeira dava os dados, Veja publicava e desalojava os adversários de Cachoeira.” Com isso cumpria também os objetivos de situar-se como vigilante de desmandos e fustigar os governos Lula e Dilma, pelos quais nunca demonstrou simpatia alguma.
Ana Paula Paiva/folhapress
mídia
Basta lembrar a capa de maio de 2006 com Lula levando um pé no traseiro, juntando numa só imagem grosseria e desres peito. Para não falar de outras, do ano anterior, instigando o “impeachment” do presidente da República. O sucesso dos dois governos Lula e os altos índices de aprovação recebidos até agora pela presidenta Dilma Rousseff parecem ter exacerbado o furor da revista. A proximidade do diretor da sucursal de Brasília com Cachoeira, e deste com o senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), sempre elogiado por Veja, veio a calhar. Até surgirem as gravações da Polícia Federal levando a revista a um recolhimento político só quebrado em defesas tíbias de seu funcionário e do que ela chama de “liberdade de imprensa”. Veja diz-se “enganada pela fonte”, argumento desmentido pelo delegado federal Matheus Mella Rodrigues, coordenador da Operação Monte Carlo. O policial mostrou que o jornalista Policarpo Junior sabia das relações de Demóstenes com Cachoeira, mas nunca as denunciou, protegendo “meliantes”, como resumiu com propriedade a revista CartaCapital.
Interesses empresariais Roberto Civita, patrão de Policarpo Junior (abaixo) e dono da revista que fez campanha para Collor em 1988-89, deu um pontapé no traseiro do presidente em 2006 e agora faz piada com o caso Cachoeira
reprodução
Livre, pero no mucho
Segundo Veja, a “liberdade de imprensa” estaria ameaçada se o jornalista, ou seu patrão Roberto Civita, fosse chamado a depor na Comissão Parlamentar Mista
JOSE CRUZ/Abr
O relacionamento de Cachoeira com o diretor da sucursal de Veja permitia a ele sugerir até a seção da revista em que determinadas notas deveriam ser estampadas
de Inquérito (CPMI) aberta no Congresso Nacional para investigar o caso. Mas, na mesma edição em que supostamente põe o direito à informação acima de tudo, clama por um controle planetário da internet, agastada com a circulação de informações sobre seus descaminhos na rede. A internet foi o principal meio de exposição dos detalhes da suspeita relação Cachoeira-Demóstenes-Veja, e uma enxurrada de expressões nada elogiosas levaram a revista ao topo dos assuntos mais mencionados no Twitter. Os principais veículos de alcance nacional silenciaram ou apoiaram a relação – exceção feita à Rede Record e à revista CartaCapital. Alguns, como O Globo, não titubearam em tomar as dores da Editora Abril. Por um de seus colunistas, Merval Pereira, o jornal isentou a revista de responsabilidades. Depois, em editorial, reagiu à comparação feita por CartaCapital entre o dono da Editora Abril e o magnata Rupert Murdoch, punido pela Justiça britânica pelo mau uso de seus veículos de comunicação no Reino Unido. A Folha de S.Paulo, também em editorial, aliou-se a Veja. Mas sua ombudsman, Suzana Singer, que tem a incumbência de criticar o desempenho do jornal, pelo menos levantou uma dúvida ao dizer que “não se sabe se algo comprometedor envolvendo a imprensa surgirá desse lamaçal”. Para lembrar em seguida revista do brasil junho 2012
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Claudio Belli/valor/Folhapress
JosÉ Antonio Teixeira/Assembléia Legislativa-SP
mídia
Aliados Depois da capa de CartaCapital, os grupos Folha, de Otavio Frias Filho, e Globo, de Roberto Irineu Marinho, saíram em defesa de Civita, da Veja e da “liberdade de imprensa” nos editoriais de seus veículos
que ao PT interessa com o caso Cachoeira empastelar o “mensalão” a ser julgado em breve, e conclui dizendo: “A imprensa não pode cair na armadilha de permitir que um escândalo anule o outro. Tem o dever de apurar tudo – mas sem se poupar. É hora de dar um exemplo de transparência”. Mas a cobertura da Folha das relações Cachoeira-Demóstenes-Veja limita-se a notas superficiais.
Intocável
A ideia de que o caso Cachoeira seria uma forma de desviar as atenções sobre a campanha pelo julgamento dos acusados no caso do “mensalão” foi alardeada pela mídia. E utilizada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para se livrar da acusação de ter sido negligente. A PF encaminhou a Gurgel a denúncia sobre as relações promíscuas entre Cachoeira e Demóstenes em 2009. Se ele tivesse dado andamento à denúncia, o processo se tornaria público e poderia ter comprometido no ano seguinte a eleição de Demóstenes ao Senado, de Marconi Perillo (PSDB) ao governo de Goiás e de outros políticos suspeitos de servir a Cachoeira. 18
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Em vez de explicar por que segurou o processo, Gurgel respondeu às acusações sob a alegação de que partiam dos envolvidos no processo do “mensalão”, temerosos diante da iminência do julgamento no qual ele será o acusador. A CPMI começou em maio e tem seis meses para concluir as apurações. Ainda não havia mostrado, porém, o mesmo ânimo convocatório em relação aos governadores envolvidos com a Delta Construções e muito menos ao jornalista de Veja e seu patrão. Os governadores, por acordos político-partidários; o jornalista e o empresário, não se sabe bem as razões, embora possam ser formuladas hipóteses. Uma delas é a de que o maior partido da base governista, o PMDB, estaria sendo sensível ao lobby da mídia por uma blindagem. Com uma CPMI em banho-maria, o partido não seria muito arranhado com a exposição de políticos peemedebistas a investigações. E o PT, concorrente na disputa por espaço no governo, não capitalizaria demais os resultados. A concentração em poucos e poderosos grupos nacionais e transnacionais deu à mídia um poder nunca antes alcançado,
muitas vezes superior aos próprios poderes republicanos. Assim, governos e outras instituições públicas tornam-se reféns dos meios de comunicação e temem enfrentá-los. Apenas em três ocasiões de nossa história veículos de comunicação foram alvo de investigações por parte de CPIs. Em 1953, o dono do Última Hora, Samuel Wainer, sugeriu ao presidente Getúlio Vargas que seu jornal fosse investigado quanto às operações de crédito mantidas com o Banco do Brasil, como lembra o professor Venício Lima, da Universidade de Brasília. Dez anos depois, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) foi acusado de ter ligações com a CIA e receber recursos dos Estados Unidos para interferir nas eleições brasileiras. O instituto chegou a alugar por três meses, num período pré-eleitoral, o jornal A Noite do Rio, para colocá-lo a serviço da oposição ao presidente João Goulart. E em 1966 foi aberta investigação do acordo entre as Organizações Globo e o grupo de mídia estadunidense Time-Life. Uma operação de US$ 6 milhões, em benefício da TV Globo, acabou com o império dos Diários Associados de Assis Chateaubriand.
mídia
Testemunha de defesa
ram campanha contra a criação da CPMI do Cachoeira. São ações orquestradas que lembram as do Ibad, antes mencionado. As evidências atuais indicam a necessidade de uma investigação séria sobre o papel de setores da mídia no caso Cachoeira. Os indícios vão além do jogo político e apontam para conluios com o crime comum. No entanto, até o momento, a CPMI não mostrou disposição para enfrentar o poder da mídia, que, quando acuada, conta com a defesa não apenas dos proprietários como também de parte de seus empregados.
jornalista uma imunidade que nenhum outro cidadão tem. Nesse mesmo programa, o professor Venício Lima ressaltou o impacto do caso das escutas ilegais promovidas pelo jornal News of the World sobre as relações mídia-sociedade na Inglaterra. “Levou Murdoch (o dono do jornal) e seus jornalistas a depor não só na Comissão de Esportes, Mídia e Cultura da Câmara dos Comuns como na Comissão Leveson, que tem caráter de inquérito policial.” Nada disso ameaçou a liberdade da imprensa britânica.
WILTON JUNIOR/AE
Há uma outra inquirição de jornalista que não se enquadra entre os casos mencionados, embora seja altamente significativa para os dias de hoje. Trata-se da ida a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 2005, do mesmo Policarpo Junior. Na ocasião, o chefe de organização criminiosa se dizia vítima de chantagem por parte de um deputado carioca que estaria exigindo propina para não colocar seu nome no relatório final de uma CPI instalada na Assembleia Legislativa do Rio. Policarpo testemunhou em defesa do bicheiro e nenhum jornal nem a ABI alegaram tratar-se de uma intimidação à imprensa. Uma das explicações para essa baixa exposição de jornais e jornalistas a investigações está no poder de interferência dos grupos midiáticos na política eleitoral. Exemplo clássico é a frase da viúva do proprietário das Organizações Globo referindo-se ao governo Collor: “O Roberto colocou ele na Presidência e depois tirou. Durou pouco. Ele se enganou”, disse com candura dona Lily no lançamento do seu livro Roberto & Lily, em 2005. Mas essa não foi uma ação isolada. Para derrotar Lula em 1989, Globo e Veja faziam dobradinha perfeita, como agora. Demonizavam Lula e exaltavam o jovem governador de Alagoas, “caçador de marajás”. Essa articulação tornou-se hoje mais orgânica. A presidenta da Associação Nacional de Jornais (ANJ), que representa os proprietários de veículos, Judith Brito, assumiu o papel de oposição ao governo Lula. De modo mais discreto, mas não menos eficiente, trabalha o Instituto Millenium, que reúne articulistas, jornalistas e patrões da imprensa. E realiza eventos em que os convidados aliam-se ao que há de mais conservador na sociedade para afinar suas linhas de cobertura. Em um deles estavam Roberto Civita (Abril), Otavio Frias Filho (Folha) e Roberto Irineu Marinho (Globo). Vários colaboradores, exibidos no site do instituto, escrevem e falam contra as cotas raciais nas universidades, criticam a política econômica dos governos Lula e Dilma, seja qual for, louvam o governo Fernando Henrique Cardoso, discordam da atual política externa brasileira e fize-
Candura Lily Marinho: “O Roberto colocou o Collor na Presidência e depois tirou”
Cabe lembrar a observação frequente do jornalista Mino Carta sobre a peculiaridade brasileira de jornalista chamar patrão de colega. Com isso diluem-se interesses de classe e uma difusa “liberdade de imprensa” é utilizada para encobrir contatos altamente suspeitos. Até entidades respeitáveis como a Associação Brasileira de Imprensa, por seu presidente, Maurício Azêdo, confundem as coisas. Em depoimento ao programa Observatório da Imprensa, da TV Brasil, Azêdo não admite a ida de jornalistas à CPMI para prestar depoimentos, sob a alegação de intimidação ao trabalho jornalístico, mas condena a promiscuidade de alguns profissionais com fontes próximas ou ligadas ao crime. Com isso dá ao
Aqui, apesar da resistência com forte apelo corporativo da mídia e de parte dos seus empregados, vozes importantes lembram que ninguém está imune a convocações feitas pelo Congresso Nacional para prestar esclarecimentos. À Record News, o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), foi direto ao ponto: “Todos devem ser investigados no setor público, privado e na imprensa. Sem paixões e sem arroubos. Nós vamos descobrir muitas coisas quando forem feitas as quebras de sigilo – o fiscal, por exemplo. Devemos apoiar sempre a liberdade de expressão. Mas não podemos confundi-la com uma organização criminosa. Para o bem da sociedade e da própria liberdade de expressão.” revista do brasil junho 2012
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política
Mudança de
nélio rodrigues/revista viver brasil
lógica Para Marcos Coimbra, diretor do Vox Populi, partidos de oposição deveriam abandonar “maus ensinamentos” e mudar a relação entre Executivo e Legislativo Por João Peres
O
senso comum, que manda votar contra o governo independentemente de o projeto ser de interesse do país, deveria ser repensado pelos partidos de oposição, na análise do diretor do Instituto Vox Populi, Marcos Coimbra, em entrevista à Rede Brasil Atual. Isso poderia evitar episódios como o da votação do Código Florestal – a aprovação do texto, posteriormente vetado em parte pela presidenta Dilma Rousseff, teria ocorrido não apenas pela força da bancada ruralista, mas por uma soma de forças de oposição, ou nem tanto, interessadas em impor uma derrota ao Palácio do Planalto. Coimbra relaciona o sucesso do governo Dilma à capacidade da presidenta de demarcar mudanças na política tradicional. “A Dilma, ao contrário dos políticos tradicionais, não tem um projeto de ficar no poder. Tem um projeto de administração e enxerga dificuldades para executar esse projeto de administração de uma maneira bem diferente de um político mais tradicional”, afirmou. Em outra ponta, o adversário de Dilma em 2010, o tucano José Serra, mostra sinais de desgaste, segundo o analista político, e por isso poderá ter dificuldades em sua campanha à prefeitura de São Paulo. “Ele é 100% conhecido e tem, digamos, entre 25% e 30% da intenção de voto. Significa inversamente que 70% a 75% da cidade em princípio não vota nele.” A seguir, leia trechos da entrevista.
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junho 2012 revista do brasil
De que maneira todos sairiam ganhando com uma mudança na relação entre os partidos e entre o Legislativo e o Executivo?
Uma das razões que explicam a duração dos embates políticos no Brasil é a partidarização excessiva de algumas questões. É totalmente natural que alguns temas sejam tratados a partir da identificação partidária do parlamentar. Mas existem outros em que o que está em jogo é uma coisa mais ampla, que é o interesse nacional, para usar uma expressão que serve em situações como essa. Não é incomum nem diferente em outros lugares do mundo, quando o sistema político está perante questões que não são partidárias são quase consenso. Em questões como essa eu acredito que o mais correto seria o parlamentar votar contra o consenso. E, na votação do Código Florestal, vimos isso. Quem acabou apoiando não foi o setor diretamente interessado, mas uma coalizão na qual há pessoas que no fundo não acreditam que essa é a melhor solução para o Brasil. Votaram desse jeito apenas para derrotar o posicionamento do governo. Isso que eu acho que era um mau ensinamento da época em que o próprio PT tinha um comportamento muito negativo, mas revisto quando o partido chegou ao governo. O que é estranho é que as atuais oposições que foram governo e cobravam do PT agora fazem o mesmo jogo. Dilma tem conseguido imprimir essa mudança de lógica política ou ainda é cedo? Qual o limite dessa mudança?
política
Acho que ela está fazendo. Se consolidará como uma marca da sua administração, talvez seja coisa a dizer. A Dilma, ao contrário dos políticos tradicionais, não tem um projeto de ficar no poder. Tem um projeto de administração e enxerga dificuldades para executar esse projeto de administração de uma maneira bem diferente de um político mais tradicional, até do Lula, que tinha uma tolerância que ela não tem. E isso é muito salutar para ficar na política brasileira. Agora, até que ponto ela irá, é difícil dizer. Acho ela vai tão longe quanto conseguir, e é desejável para todos que ela tenha apoio. Você tem alguma expectativa de que a CPMI do Cachoeira resulte em revelações efetivas ou se transformará em mais um palco para essa partidarização excessiva?
É um exemplo 100% político. Em outros casos não vejo, pelo menos por enquanto, que já esteja na hora de invocar o que seria, digamos, interesse nacional. Acho, no entanto, que já está na hora de uma oportunidade para uma revisão do relacionamento do sistema político com os grupos de interesse, nesse caso envolvendo uma organização com atividades ilegais ou criminosas. É o mais longe que se pode ir na privatização da política, fazendo parte do sucesso não só de um grupo econômico e de um grupo de interesses, mas de um grupo econômico e de interesses cujas raízes estão na ilegalidade. Se for colocada essa discussão, o assunto passa a ser suprapartidário. Mas, por enquanto, estamos vendo um tensionamento político característico da vida parlamentar. Discutir a relação entre veículos de imprensa, criminosos e políticos pode ser benéfico à sociedade?
Para mim não tem dúvida. O que tivemos nos últimos anos e as revelações que até agora foram feitas sugerem que houve uma deliberada concordância dos veículos de imprensa em nada fazer para denunciar uma coisa que estavam vendo – denunciar como imprensa, e não como autoridade policial, que não é o caso – em troca de uma estratégia de tomada de posição política dos veículos. O que se fez foi a aplicação do velho princípio de que os fins justificam os meios. Para atacar o governo vale qualquer coisa, inclusive fazer um papel muito discutível de colaboração duradoura, digamos assim, com o grupo do Cachoeira. Dizer que quando alguém que questiona isso está questionando a imprensa é usar o conceito de “liberdade de imprensa” para se proteger, para proteger uma prática que é francamente condenável. Não se conhece nos anais da imprensa política internacional um caso desse tipo. No Watergate, os
repórteres do Washington Post usaram de alguém que fazia confidências e estava diante do governo. É completamente diferente. A tendência é que a candidatura de Serra veja crescer a rejeição ou consiga superar de alguma maneira essa rejeição?
O problema do Serra não é que a rejeição aumente, pode até acontecer. Do modo como ele conduziu a campanha de 2010, por exemplo, não seria surpreendente se voltasse a usar estratégias que possam provocar um aumento de rejeição. Não acho que esse seja o problema. O problema do Serra é que a imagem dele já chegou num teto em matéria de conhecimento da cidade. Quando se pega qualquer pesquisa feita há mais tempo e outra agora, ele é conhecido por praticamente 100%. E uma maioria diz que o conhece muito bem. Então, se é verdade que ele tem poucas chances de que a rejeição aumente, também tem poucas chances de que a simpatia aumente. Não há nada que ele possa dizer – pelo menos ao que parece – que faça com que o eleitor melhore a imagem que tem dele. Também tem pouca coisa a dizer que provoque rejeição, porque todo mundo já sabe o que ele tem de bom e o que ele tem de ruim. É nesse balanço de coisas boas e ruins que a candidatura dele tem uma grande dificuldade. O fato de o PSDB apostar em alguém que já foi candidato várias outras vezes é emblemático do momento do partido?
Integralmente. E representa um recuo. Uma parcela grande do PSDB de São Paulo não queria que a eleição ficasse dessa forma. Queria avançar com as prévias, queria fazer com que elas permitissem, pelo menos começassem, uma vida partidária real dentro do PSDB e pelos integrantes das instâncias mais capilares que efetivamente tivessem voto e influência na decisão do partido. Isso não aconteceu, e essa é a frustração que marcou a candidatura do Serra desde o nascimento e se traduziu na vitória apertada que ele teve no que acabou ficando como prévia. Então, as prévias de verdade foram suspensas, os candidatos de renovação tiveram de recuar e, ao invés do passo adiante, que parecia que iriam dar, deram dois passos para trás. De outro lado, você tem o Lula mostrando que pesquisa não é para ser obedecida. Pesquisa é para ser analisada politicamente. Se o Lula tivesse se baseado em pesquisa, não teria lançado a Dilma nunca, não teria lançado o Fernando Haddad. O Lula está pensando na frente e o PSDB está pensando para trás, essa que é a diferença. Leia a íntegra da entrevista na Rede Brasil Atual: bit.ly/rba_vox1 e bit.ly/rba_vox2
Para atacar o governo vale qualquer coisa, inclusive fazer um papel muito discutível de colaboração duradoura com o grupo do Cachoeira. Dizer que quando alguém que questiona isso está questionando a imprensa é usar o conceito de “liberdade de imprensa” para se proteger, para proteger uma prática que é francamente condenável
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O caminho da ver Os obstáculos são muitos e as dores, contínuas. Mas algumas ações parecem mostrar que o país está mudando, para que os traumas da história sejam reconhecidos e entendidos. E não se repitam Por Vitor Nuzzi
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região canavieira do Rio de Janeiro está em decadência. No norte do estado, em direção ao Espírito Santo, estão os escombros da usina Cambahyba, que voltaram ao noticiário recente após declarações de um ex-delegado do Dops capixaba, Cláudio Guerra: o local teria sido usado para incinerar corpos de combatentes presos pela ditadura. Alucinação, tentativa de despiste ou revelação macabra? “O que diz essa figura, esse humanista súbito, é perfeitamente plausível. O fato de ele não constar nos documentos mostra que ainda há muitas lacunas. Se 5% do que diz for verdade, ele é um mini-Goebbels”, afirma o jornalista Eric Nepomuceno, referindo-se ao ministro nazista. “Se for mais de 5%, é um genocida.” Esse é apenas um dos desafios da Comissão Nacional da Verdade, cujos sete integrantes foram nomeados em meados de maio pela presidenta Dilma Rousseff. Eles – Cláudio Fontelles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Maria Rita Kehl, Rosa Cardoso e Paulo 22
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Sérgio Pinheiro – terão dois anos para percorrer um caminho espinhoso, que os militantes de direitos humanos conhecem bem. Para o secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, a comissão deve assumir uma dimensão de escuta pública das vítimas, de debate com a sociedade, para criar uma cultura política contra a violência do Estado. “A comissão vai se amparar na força dos testemunhos, enquanto os agentes repressores vão se amparar nos arquivos que eles mesmos produziram.” Abrão observa que o país nunca teve tradição de sistematização e enfrentamento da violência. “Até agora, trabalhou com a lógica da responsabilidade estatal.
A Comissão da Verdade, que não tem o propósito de fazer reparação, tem a tarefa de fazer as responsabilizações individuais. É um mecanismo privilegiado da justiça de transição.” O grupo terá acesso a mais de 70 mil processos, com testemunhos de vítimas. “A verdade só é possível de ser conquistada à medida que haja um trabalho coordenado nas diferentes esferas do poder estatal”, afirma o secretário, para quem informações como a de Guerra devem ser relativizadas e estão condicionadas à investigação. “Há muito o que apurar. Isso ajuda o país a compreender o espectro da dimensão da ditadura. É necessário o entrecruzamento de informações”, afirma. Ele lembra ainda que os arquivos da ditadura devem
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ser lidos de forma contextualizada. “Não refletem verdades factuais, são documentos apenas para justificar a violência.” Cláudio Guerra é o protagonista do livro Memórias de uma Guerra Suja, dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros. O ex-delegado dá aos autores depoimentos sobre episódios marcantes da ditadura, como o atentado do Riocentro, o acidente que matou a estilista Zuzu Angel, o planejamento da morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury e do jornalista Alexandre Baumgarten. Todos até hoje cercados de suspeitas. E traz informações inéditas, a serem apuradas. Entre elas, a incineração de corpos de militantes na usina Cambahyba, ou Cambaíba, como hoje se escreve. Abrão considera relevante, por exemplo, o fato de as declarações do ex-delegado fazerem menção à participação direta da iniciativa privada no apoio à ditadura, como no caso da usina. “Também por isso há uma resistência tão grande (à investigação)”, acrescenta Nepomuceno. “Tem gente não com o rabo, mas com metade do corpo dentro.” Isso chamou igualmenVia Dolorosa A usina Cambaíba, onde a ditadura teria incinerado corpos de opositores, e a instalação da Comissão da Verdade: reconstrução do passado recente brasileiro
ANTONIO CRUZ/ABR
Phillipe Moacyr/Folha da Manhã
Guerra suja
te a atenção do escritor e jornalista Bernardo Kucinski, que procura informações que levem ao paradeiro de sua irmã Ana, sequestrada em 1974 por agentes da repressão e nunca mais vista. Bernardo leu o livro. E lembrou que “jorrava dinheiro de empresário para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas”, segundo declarou em entrevista a Saul Leblon, na agência Carta Maior. O ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos Nilmário Miranda não crê em despiste no caso de Cláudio Guerra. “Ele está se culpando de coisas monstruosas. Por que faria isso? Com toda a monstruosidade das descrições, o importante é que as informações sejam preciosas para as famílias”, defende. “Tem coisas que só se vai saber se os de lá falarem.” Nilmário diz ainda que teve, por meio do livro, a primeira informação desde 1975 sobre Nestor Veras – o ex-delegado teria dado os dois “tiros de misericórdia” no trabalhador rural e líder comunista. “Uma parte da sociedade está entendendo que isso é importante para a democracia, para o país. Nossa democracia é uma transição incompleta, com muitos buracos. Para a transição não tem nada tardio.” A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) vê “consistência, coerência e lógica” no relato de Guerra. “É um nível de detalhe e de profundo conhecimento de quem esteve naquela tragédia que nos deixa muito assustados. A cada relato como esse, as famílias reavivam sua dor.” Para ela, este é o momento de apurar e punir os crimes cometidos, também considerando a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação. “Não há mais desculpa. Vai ter de abrir tudo (os documentos) e não há mais concessão possível. Ou se faz isso de uma vez, ou lamentavelmente ficaremos a dever às futuras gerações.” “O governo já deveria ter chamado esses familiares e as entidades”, critica a vice-presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, falando sobre o episódio Guerra. “A pessoa fala uma coisa dessas e nada acontece? É uma angústia para os familiares. É uma tortura, uma das que continuam.” Ainda em maio, o Ministério Público Federal revista do brasil junho 2012
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(MPF) em Campos, no norte fluminense, determinou abertura de investigação para apurar a denúncia de incineração de pelo menos dez corpos na usina. O pedido foi feito pelo procurador da República Eduardo Santos de Oliveira, um dos que integram o grupo de trabalho denominado Justiça de Transição. São desse grupo os denunciantes dosmilitares Sebastião Curió,no Pará, e C arlos Alberto Brilhante Ustra, em São Paulo, por crimes da ditadura. As investigações do MPF se alinham à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil por violações de direitos humanos na Guerrilha do Araguaia. A fundamentação é que o desaparecimento de pessoas configura crime de caráter permanente, sem aplicação da Lei de Anistia. “Um pacto autoritário”, define Paulo Abrão, referindo-se à lei de 1979. Por mais que encontrem resistência, até mesmo no Judiciário, ações como a do Ministério Público mostram alguma mudança de rumos no país, quase sempre refratário às revisões históricas. Em abril, a Justiça determinou a alteração na certidão de óbito do militante João Batista Drummond, morto em 1976, do local da morte (DOI-Codi) e do motivo (torturas físicas). “A memória é resultado dessa movimentação”, comenta Abrão. Isso pode provocar, inclusive, uma nova visão da identidade nacional: “Não somos apenas um povo cordial ou afeito ao jeitinho, mas também que sabe resistir à opressão”. Recentemente, começaram a surgir os “esculachos” – com inspiração nos escrachos argentinos –, manifestações de denúncia de agentes da ditadura promovidas em vários estados por uma organização denominada Levante Popular da Juventude. Foram também jovens – muitos deles sem nenhuma ligação com pessoas sequestradas e mortas pela ditadura – que fizeram protestos marcantes diante do Clube Militar, no Rio de Janeiro, contra a comemoração dos 48 anos do golpe de 1964. A professora Cristina Meneguello, do Departamento de História da Universi24
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VANDERLEI ALMEIDA/AFP PHOto
Nova visão
Inoportuna e inadequada Militar aposentado é cercado por manifestantes na porta do Clube Militar, no Rio de Janeiro: comemoração do golpe também é contestada
dade Estadual de Campinas (Unicamp), defende a importância de “lugares de conscientização” para que as pessoas saibam o que se passou naqueles tempos. Cita o exemplo do Memorial da Resistência, na região central de São Paulo, no mesmo local que abrigava o antigo Dops. Ela relata a reação dos estudantes que vão até lá.
“Os professores contam que os alunos chegam fazendo aquela fuzarca. Metade já não quer entrar nas celas. O ônibus volta num silêncio... Eles sentem a gravidade de que naquele lugar pessoas sofreram para que eles fossem livres”, comenta Cristina. Em maio, o Conselho de Defesa do Pa-
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Cristina cita o caso do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, tombado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O tombamento ocorre não pela beleza arquitetônica, mas pela importância histórica. “As pessoas que pediram o tombamento do DOI-Codi tinham receio de que acontecesse o que houve no Carandiru (antigo presídio paulistano onde, em 1992, foram mortos 111 detentos, pelos números oficiais). Implodir é uma forma de apagar e esquecer.”
FILIPE ARAUJO/ae
Esquecimento e covardia
Cadu Gomes/CB/D.A Press
Denúncia Esculacho na frente da casa do legista Harry Shibata, autor de laudos falsos para os militares e acusado de instruir torturadores sobre como não deixar vestígios, hoje morador da Vila Madalena, em São Paulo
Para que ninguém esqueça Prédio do antigo DOI-Codi, a central de torturas na capital paulistana, que pode ser tombado por sua importância histórica
trimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), ligado à Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, aceitou parecer de Cristina Meneguello e aprovou o Estudo de Tombamento da antiga sede do DOI-Codi, onde hoje funciona o 36º Distrito Policial, na Vila Mariana, zona sul.
Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais, é cética em relação aos resultados da Comissão da Verdade. Mas espera que “pelo menos as sessões sejam públicas e que o relatório seja público”, para não cair na lógica da ditadura e “produzir sigilo e esquecimento”. A indicação de Gilson Dipp causou desconforto, pelo fato de ele ter sido representante do governo brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA no caso Araguaia. “Ele simplesmente foi testemunha do governo contra as famílias.” Declaração de José Carlos Dias sobre a necessidade de “ouvir os dois lados” também provocou reações indignadas. “É espantoso, ainda mais vindo de uma pessoa que trabalhou com dom Paulo Evaristo Arns. Todos nós respondemos na Justiça a IPMs (inquéritos policiais militares), sob tortura. Ele sabe disso. Nós fomos mais do que investigados. Fomos processados, torturados, exilados”, critica Cecília. Posteriormente, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro deu entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo na qual afirmou que só existe um lado – o das vítimas de violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado. No setor militar, a inquietação já começou. O presidente do Clube Naval, Ricardo Veiga Cabral, anunciou a criação de uma “comissão paralela da verdade”. E em artigo, também no Estado, o general Romulo Bini Pereira, ex-chefe do Estado-Maior da Defesa, conclamou seu pares a romper “a lei do silêncio”. Apesar de toda a resistência, a deputada Erundina vê condições cada vez mais
favoráveis aos trabalhos da Comissão da Verdade. E defende uma nova interpretação para a Lei de Anistia. “Nossa lei é a única no mundo que anistiou tanto os torturadores como os torturados, os que mataram e os que foram mortos, os sequestradores e os sequestrados.” Em 2011, a parlamentar apresentou projeto de lei nesse sentido. O PL 573, nas palavras de Erundina, segue “engavetado” na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Eric Nepomuceno vê sinais de mudança no país, com a instalação da Comissão da Verdade, as atividades públicas e as ações do Ministério Público. Mas critica as manifestações dos militares. “Quem nega a verdade é covarde. O que me choca é que a maioria dos oficiais de alta patente hoje em dia não tem nada a ver com terrorismo de verdade. Ao tentar acobertar, tornam-se cúmplices.” Ele também refuta a tese dos dois lados: “Quem se insurgiu numa rebeldia lícita contra um governo espúrio já pagou, pagou com a vida. Terrorismo de Estado é crime contra a humanidade”. E vê “certa empáfia dos verdugos” estimulada pela impunidade. “A Argentina está comprovando para todos nós que você pode buscar a verdade e a justiça”, afirma, citando o advogado argentino Eduardo Luis Duhalde: “Virar a página, tudo bem. Mas é preciso ler antes o que está escrito”. Na cerimônia de posse da Comissão da Verdade – que encerrará seus trabalhos justamente no ano do cinquentenário do golpe civil-militar –, Dilma citou dois brasileiros: Ulysses Guimarães e dom Paulo Evaristo Arns. O primeiro, na promulgação da Constituição, em 1988, afirmou: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. Dom Paulo, que a presidenta visitou em maio, escreveu no prefácio do livro Brasil: Nunca Mais, de 1985: “Não há ninguém na Terra que consiga descrever a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu”.
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bit.ly/rba_verdade_guerra bit.ly/rba_verdade_usp bit.ly/rba_verdade_ustra bit.ly/rba_verdade_anselmo bit.ly/rba_verdade_comissao revista do brasil junho 2012
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Espera
torturante Enquanto algumas mães de crianças infratoras estampam desolação e medo em meio a relatos de espancamentos, maus-tratos e discriminação, outras aprovam o papel da Fundação Casa, em São Paulo Por Suzana Vier
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istórias de tristeza, angústia e medo se cruzam na calçada da Unidade de Atendimento Inicial da Fundação Casa no bairro do Brás, na região central de São Paulo. O Departamento de Execuções da Infância e Juventude (Deij) fica ao lado. Diante dos prédios, mães, tias, avós e madrinhas passam horas à espera de notícias e decisões judiciais sobre o futuro de suas crianças e adolescentes, internos na antiga Febem. A figura do pai é rara. A desolação tem feições femininas. Algumas lamentam a escolha dos menores, impulsionados ou cooptados por jovens maiores, traficantes ou colegas usuários de drogas. “Ele era um bom menino, até que...” é um testemunho comum. Enquanto as famílias esperam notícias, vans entram e saem. Muitos não se importam em contar sua história, mas quando passa um novo veículo tudo para. “Pode ser meu afilhado”, diz Cida, madrinha de um menino de 16 anos, retido pela primeira vez. A pedido de familiares e dos menores entrevistados, os nomes foram trocados. Uma van sai com garotos sentados e de cabeça abaixada. Mas não era ele. “Cada carro que sai é uma dor a mais”, conta Helena, uma das mães. Dona Isabel espera pela audiência que vai decidir se seu filho será liberado ou não. Sua dor vai além do emocional. Ali mesmo, na calçada, ela teve um começo de enfarto, na porta da fundação. Embora o menino tenha sido liberado, ela não pôde esperá-lo. Teve de ser internada às pressas. Segundo comerciantes da região, é comum as mães não suportarem a espera ou o desfecho dos casos. Passam mal ali mesmo.
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Maria, outra mãe na porta da unidade provisória, começa a contar sua história, mas o mal súbito de Isabel exige a atenção de todos – incluindo a reportagem, que acionou o telefone de emergência 193, do Samu. Após seguidas convulsões na porta da fundação, Isabel foi hospitalizada. Em contato com a família, a reportagem foi informada que ela se recupera em casa. Maria retoma seu relato. Fala rápido e chora muito. Por vezes é difícil compreendê-la. Tortura, crueldade, tristeza e medo são as palavras que mais repete. Naquele dia, segunda-feira seguinte ao Dia das Mães, contou ter acordado angustiada. Antes, no sábado, vira o filho andar com dificuldade e sem explicar por quê. Teme que ele tenha sofrido espancamento. “Abriram a cabeça dele várias vezes”, testemunhou Maria. Também já o encontrou com o rosto sujo de sangue e repetidas vezes com pontos na cabeça. “Eles apanham na cabeça, no estômago e têm costela quebrada.” O jovem é usuário de remédios controlados.
Bem ou mal
Maria diz que os jovens saem revoltados depois de passar por espancamentos e humilhações. Em 2011, um garoto do bairro não teve a sorte de sair. “Foi enfarte, disseram – num menino de 14 anos”, conta. Meninos sem família seriam as vítimas dos piores abusos, porque ninguém reclama por eles. “Não tem ninguém para recuperá-los”, lamenta. “Quem entra é espancado porque é joão-ninguém.” Segundo Maria, o filho já apanhou muito na escola, de garotos mais velhos e mais fortes, e agora apanha de funcionários que deveriam trabalhar por sua recuperação. “Eles têm prazer em torturar. Os diretores gostam de torturadores”, acusa. Na visão de Maria, agressores são valorizados. “Monitores humanos não são aceitos lá. Todo dia tem tortura... A sociedade precisa cuidar desses meninos.” E há ainda menores que torturam outros para sair logo, segundo ela. Cristina, também mãe de interno, pensa diferente. O filho dela está há vários meses na fundação e “é bem tratado”. “Os técnicos gostam dele, está estudando”, contou. O garoto foi pego roubando carros e motos e não estudava. “Ele faz isso agora.” Para Alex, ex-interno com quatro passagens pela instituição, a forma de tratamento depende: “Tem muitas regras. Se respeitar, o tratamento é bom, se não respeitar, entra na borracha”. As tais regras dizem respeito a estar sempre de cabeça baixa, não falar no horário das refeições e de palestras. “Tem muitos que ficam conversando. Não pode. Aí eles chamam de canto e põem na parede, o tratamento começa a ficar ruim”, descreve. “Nunca batem por nada.”
Para o jovem, a medida socioeducativa foi válida. “Minha mãe ‘tá’ de prova que foi bom. Aprendi que precisa ter paciência pras coisas que a gente quer. Não adianta achar que dinheiro é fácil, porque não é.” Sua mãe, Francisca, diz que frequentemente os menores são usados por criminosos para roubos ou para assumir crimes. Cida e Maria têm a mesma opinião. Más companhias, sistema educacional ruim e falta dos pais também são corresponsáveis pela conduta dos filhos. “Ele foi pego com um amigo que portava maconha e farinha”, lembra Cida. “Não dá para acreditar que um garoto meigo e carinhoso estivesse no crime. Se falar, ninguém acredita.” Benedito, um dos poucos pais que acompanham de perto a situação do filho, conta que o jovem sofreu espancamento e teve de dormir na quadra com outros internos. “Deixaram os meninos sem roupa, sentados na quadra, na chuva”, descreve. “Isso depois das 22h. Só voltaram para dentro às 6h, para o café.” Sem acreditar, ele procurou outro interno que saiu no mesmo dia para confirmar a história. O filho também levou um “tapa no ouvido” por se mexer enquanto estava nu. O castigo teria sido motivado pelo assobio de um na hora de dormir – a regra é calar. Depois de passar pela fundação, o filho já acorda amedrontado, dizendo “não, senhor, não, senhor”, segundo Benedito. Lúcia, também presente à calçada da fundação, de saprova a eficácia socioeducativa da instituição. “Para o meu filho não ajudou em nada. Só piorou a situação dele.” O problema, no caso, é a “revolta”. Mas o garoto se nega a dizer o que acontece lá dentro. “Ele saiu muito revoltado. Diz que viu muita coisa, mas não conta especificamente o quê. Só que é terrível, não é lugar para gente”, contou Lúcia. “Ele tem hoje bastante problema, ‘tá’ depressivo, chora, fica nervoso... Vou justamente atrás de psicólogo para saber o que aconteceu.” O sobrinho de 19 anos que a acompanha também passou pela fundação. Seus 15 dias de experiência na Unidade Provisória, há dois anos, foram “tranquilos”.
Relatórios distorcidos
Funcionário da Fundação Casa, Mauro – que também prefere ter o nome preservado – confirma as denúncias de tortura, mas acredita que a situação não é tão ruim como nos tempos da antiga Febem. Segundo ele, atualmente, além da tortura física, há a psicológica. “Já foi muito mais violenta. Antes se arrebentava o menino. Agora, há lugares que ficam só na ameaça.” No entanto, conforme denuncia, o atendimento é discriminatório. “Os meninos de classe média alta só chegam até o juiz. Não ficam lá para passar por medidas socioeducativas”, diz. “Só há favelados, paupérrimos.”
Maria fala rápido e chora muito. Por vezes é difícil compreendê-la. Tortura, crueldade, tristeza e medo são as palavras que mais repete. Naquele dia, segunda-feira seguinte ao Dia das Mães, contou ter acordado angustiada. Antes, no sábado, vira o filho andar com dificuldade e sem explicar por quê
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Funcionário da Fundação Casa confirma as denúncias de tortura, mas acredita que a situação não é tão ruim como nos tempos da antiga Febem
No corpo funcional da instituição são promovidos os mais truculentos, como endossa Mauro. “Os diretores, em sua maioria, são da área de segurança e estão estudando, mas continuam com visão de ‘batedores’”, relata. A ressocialização esperada pela sociedade não acontece. “Saem pior”, atesta, diferentemente do que costumam informar os relatórios de avaliação. “Alguns juízes batem carimbo e acreditam”, alerta. “Os relatórios conclusivos são de melhora, mas não há constatação nem fiscalização. De cada mil submetidos a internação, um se reabilita, mesmo assim por esforços familiares”, calcula o funcionário. Ele cita ainda a “maquiagem” nas dependências da instituição e até funcionário “lavando menino” para receber visitas de inspeção. “As ações socioeducativas são um grande faz de conta”, resume. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência e Educação à Criança, ao Adolescente e à Família do Estado de São Paulo (Sitraemfa), Julio Alves, considera “absurdas” as denúncias de espancamento de menores por funcionários da fundação. Ele não descarta a possibilidade de os trabalhadores se defenderem em casos de tumulto. “Muitos funcionários apanham na cara. Então é incoerente dizer que batem em interno.” Alves considera a Corregedoria muito atuante. Já o número de trabalhadores para atender a toda a demanda da fundação seria insuficiente. “Tanto os funcioná-
rios como os jovens são vítimas de um Estado que não gerencia a aplicação das medidas nem atua para que esses jovens sejam cidadãos com direitos na sociedade, antes de chegar aqui”, afirma. Para a presidenta da Associação de Amigos e Familiares de Presos e Presas de São Paulo (Amparar), Maria Railda, as ações da fundação são para “inglês ver”. “Falam em trabalho pedagógico, mas há tortura”, insiste. “Presenciei um funcionário dizendo: ‘Vou bater mesmo. O que vocês não fizeram, nós vamos fazer’.” A ativista cita o “couro” psicológico (ameaças verbais) como uma nova forma de torturar os jovens, mas não menos cruel. Segundo Maria Railda, até as mães estão sendo torturadas com processos abertos contra elas, após denúncias. A líder da associação reitera ainda denúncias de relatórios de avaliação dos internos feitos para apressar saídas, promoção de funcionários violentos, e a discriminação em relação aos meninos mais pobres. “Na verdade, a sociedade se vinga duas vezes dos pobres: quando tranca e quando coloca na rua (sem condições)”, avalia. “Normalmente, os meninos já vêm de situações em que sofreram preconceito na escola, que os exclui. E, em alguns casos, a família cansa. A situação deles, ao saírem da fundação, fica ainda pior.” Colaborou Estevan Muniz
Respeito aos direitos humanos A Fundação Casa refuta, por meio de sua assessoria de imprensa, a ocorrência de maus-tratos no interior das unidades. “A instituição respeita os direitos humanos dos adolescentes e funcionários e não tolera qualquer tipo de prática de agressões ou tortura em seus centros socioeducativos.” Quando constata abusos, segundo o informe, funcionários são investigados e punidos. Nos últimos sete anos, a assessoria contabiliza 72 servidores demitidos por justa causa. A instituição nega ainda a valorização de funcionários truculentos e haver relatórios inconsistentes: “São feitos 28
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por profissionais preparados e fiscalizados pelo Poder Judiciário – o que torna absurda a hipótese de que os documentos contenham inverdades”. A nota assinala que a Fundação Casa investiu nos últimos sete anos em mudanças estruturais na política de atendimento ao adolescente, como descentralização do atendimento, criação de 60 centros socioeducativos e redução de 50% da taxa de reincidência na medida socioeducativa de internação, caindo de 29% em 2006 para 13,5% em 2012. A fundação possui 142 unidades no estado de São Paulo, que atendem perto de 8 mil jovens. No Departamento de Exe-
cuções da Infância e Juventude (Deij), órgão do Judiciário responsável por acompanhar a trajetória dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, a juíza corregedora Maria Elisa Silva Gibin informa que denúncias de maus-tratos aos internos são apuradas rapidamente. Em 2012 foram instaurados 32 pedidos de providências para as encaminhadas pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público. “O Judiciário não está alheio, investiga e extirpa quem age dessa forma”, garante a corregedora. Por mês, quatro magistrados do Deij realizam cerca de 350 audiências para decidir que medidas serão aplicadas em cada caso. As socioedu-
cativas podem ser internação, semiliberdade e prestação de serviços com liberdade assistida. O departamento avalia ainda a consistência dos relatórios encaminhados pela fundação ou por entidade conveniada. O Judiciário tem equipe técnica própria que elabora laudos complementares de avaliação. Embora a legislação indique a apresentação de relatórios a cada seis meses, por iniciativa do Deij são feitos a cada três meses. Para a corregedora, ocorrências de tortura no interior da Fundação Casa são casos isolados. “Não é a prática da instituição. O Deij e a fundação trabalham muito para mudar a mentalidade no tratamento dos menores.”
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mundo
Educação para a reconstrução Há 20 anos reerguendo-se dos escombros de duas guerras, Moçambique depende de apoio humanitário internacional para educar suas crianças Por Estevan Muniz 32
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oçambique é um país jovem. Localizado na África Austral, conquistou a independên cia de Portugal em 1975. Moçambique é uma nação jovem. Quase metade (45%) de sua população é composta por crianças, em grande medida em razão da cultura e da alta taxa de natalidade. Os moçambicanos morrem cedo. Pobreza, HIV, malária, sistema público de saúde precário, falta de saneamento básico são os principais vilões da expectativa de vida no paíos – 51 anos,
ÁFRICA
Moçambique
segundo o governo. O cenário provocou a chegada de diversas organizações de apoio humanitário e o surgimento de projetos sociais especialmente voltados ao amparo às crianças. Instituições como a Action Aid, com sede na África do Sul, a internacional World Vision, a portuguesa Casa do Gaiato e a associação Vida para África, fundada por brasileiros, trabalham p ara desenvolver a educação formal. Com 10 milhões de pessoas em idade escolar, o ensino compulsório é um dos meios de melhoria social para um país que ainda
fotos Estevan Muniz
alternAtivA Parte dos 8,5 milhões de alunos moçambicanos é atendida em escolas comunitárias por falta de instituições públicas
luta para se reconstruir de duas guerras, uma pela independência, seguida por outra civil, na disputa interna pelo poder. Na Guerra da Independência, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) provavelmente não teria sido vitoriosa, em 1975, não fosse a Revolução dos C ravos, que pôs fim à ditadura em Portugal um ano antes. Com a deposição de Marcelo Caetano, Moçambique deixou de ser uma província ultramarina portuguesa. A Frelimo, convertida em partido único, assumiu o poder. Não tardou para que um grupo de dissidentes, sustentados pelo regime do apartheid da África do Sul e por países vizinhos, formasse a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo). O conflito civil armado desestabilizou o país de uma vez por todas. A guerra acabou em 1992. Em duas décadas de paz, os problemas sociais começaram a ser atenuados. O crescimento econômico do país tem atingido altos revista do brasil junho 2012
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mundo
Maputo, capital
Trabalhar e casar
Ainda com menos da metade da população alfabetizada, a educação moçambicana enfrenta problemas estruturais. Não há escolas para todos e em muitas faltam salas e vagas. Dos 8,5 milhões de alunos, conforme estima a Agência de Informação de Moçambique, 700 mil estudam ao ar livre. Na falta de instituições de ensino públicas, são comuns as comunitárias, muitas delas com pouca ou nenhuma estrutura. A cientista política brasileira Mariana Muzzi explica que as maiores dificuldades da educação moçambicana estão na transição do ensino primário para o secundário e no ensino da primeira infância. “O tema da escola primária, embora ainda tenha problemas, está caminhando na direção certa. Mas o trabalho infantil é um problema grave. Quando as crian34
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patamares. Em 2011, foi próximo de 7%. De acordo com a Organização das Nações Unidas, entre 1967 e 2003 a proporção de moçambicanos que vivem abaixo do limite da pobreza baixou de 69% para 54% da população. O grande esforço do momento vai em direção ao cumprimento dos Objetivos do Milênio da ONU no que diz respeito à educação. A missão é ter até 2015 todas as crianças matriculadas no ensino fundamental – e 85% delas já estão. Quando a Frelimo assumiu o poder, o desafio era estabelecer um sistema de educação básica para uma população com 93% de analfabetos – hoje são 52%. Até a independência, em 1975, o ensino formal estava restrito aos portugueses residentes no país e às escolas de missões católicas e protestantes, poucas para atender a toda a população. Futuro melhor O analfabetismo ainda atinge 52% da população, mas antes da independência, em 1975, a educação era privilégio dos portugueses e seus descendentes
ças saem da escola primária, os pais as levam para trabalhar para ajudar na renda familiar”, relata Mariana, especialista do Fundo das Nações Unidas para a Infância de Moçambique (Unicef Moçambique). Geralmente, trabalham com os pais nas machambas – as plantações agrícolas de subsistência. Outro estorvo para a continuação do ensino é o casamento prematuro. Muitas jovens moçambicanas se casam antes dos 18 anos com adultos, que pagam um determinado dote pelo matrimônio, dando à união uma função econômica. A poligamia é aceita em muitas regiões do país. Não é incomum as famílias estimularem a filha a casar pouco tempo depois
da primeira menstruação. Como quem tem recursos são os funcionários públicos e os profissionais liberais, habitualmente na meia-idade, são eles os maridos dessas meninas. A representante do Unicef observa que o casamento prematuro configura a buso sexual. No início de 2011, ela foi uma das articuladoras da campanha Tolerância Zero contra Abuso Sexual da Criança. “É cometido tanto por professores como por alunos, é uma realidade da educação moçambicana”, afirma a brasileira. A educação infantil, por sua vez, carece de política pública. Não há creches nem escolas para uma população de 4,5 milhões de crianças abaixo de 5 anos.
mundo
“Nas primeiras visitas às escolinhas que atendemos na periferia de Maputo, a capital, era comum ver professores que não sabiam ler e agrediam alunos”, relata Magaly. A agressão às crianças, culturalmente aceita pelos pais, é uma das falhas no sistema de ensino que a organização procura corrigir. Para isso, aposta na capacitação acadêmica e ética dos professores. A associação fomenta a criação de escolinhas, faz orientação pedagógica, jurídica e administrativa, mas não é dona de nenhuma. Cada unidade pertence à comunidade em que está instalada. Também ajuda a construir e a reformar escolinhas. “Muitas ficam embaixo das árvores, sem nenhuma estrutura, outras são verdadeiros depósitos de crianças. As salas são muito escuras e quentes e têm o pé-direito muito baixo”, diz Magaly. O alvo do projeto, segundo ela, é fazer uma obra por ano. Além disso, a associação adota estudantes órfãos ou cujas
famílias não têm recursos para ajudar a custear a manutenção da escola. Nada é gratuito. Um livro, que dura o ano todo, custa US$ 13. As mensalidades variam de US$ 5 a US$ 30. “Adotam-se”, também, professores cujas escolinhas não têm arrecadação suficiente para pagá-los. A população é jovem também por motivos culturais. A maioria dos moçambicanos tem muitos filhos para que cuidem deles quando forem mais velhos, mas os filhos não desfrutam de boas condições de vida. A história violenta teve seu peso, uma vez que as guerras levaram muitas vidas, a ponto de hoje haver poucos idosos. Mas as causas da morte precoce em Moçambique agora são outras, como o HIV, que infecta 11% da população, e a malária. “Muitas crianças perdem os pais cedo, nós queremos ajudá-las. E ajudar a educação em Moçambique, com 50% de crianças, é um grande passo para ajudar o país”, define Magaly.
Falta estrutura Muitas crianças aprendem ao ar livre
Estevan Muniz
Dos US$ 995 milhões destinados anualmente pelo governo local à educação, pouco chega ao ensino pré-escolar. Essa etapa da formação das crianças fica a cargo do Ministério da Mulher e da Ação Social – e não da pasta da Educação. O Unicef, presente em Moçambique desde 1975, articula projetos para atrair ajuda externa a esse segmento mais vulnerável. Mas o apoio do órgão das Nações Unidas não dá conta de atender a todas as iniciativas de apoio humanitário atuantes no país. A educadora brasileira Magaly da Silva, presidente da Associação Vida para África, participa de um desses projetos, que sobrevivem com as próprias pernas, de doações e voluntariado. Missionária, Magaly vive há seis anos em Moçambique. Chegou para atuar numa escola apoiada por uma organização americana, mas logo percebeu a necessidade de expandir o trabalho com as “escolinhas” de educação infantil no país e criou a associação. “Quando soube dessa lacuna para 4,5 milhões de crianças, mudei meus objetivos”, conta. As escolinhas existentes são de iniciativa privada e comunitárias e carecem de um ensino eficaz, de propostas pedagógicas e de professores preparados. “Além dos problemas sociais e econômicos, as crianças falam o idioma materno e chegam às escolas sem saber nada de português.” O português é a língua oficial, usada no governo e no ensino, mas há 23 idiomas reconhecidos em Moçambique. A Vida para África oferece a escolinhas comunitárias o único material didático de educação infantil desenvolvido para a realidade cultural do país. Para lecionar nessas unidades, basta ter concluído a 7ª série.
Apoio é bom A Associação Vida para África foi criada em 2006 e atua, com ajuda externa, nas províncias de Maputo e Xai-Xai. Para ter uma ideia, com R$ 50 é possível alimentar uma criança por um mês e mantê-la na escola. Voluntários também têm muito a contribuir. Profissionais de educação, saúde, construção civil e estudantes de qualquer área podem fazer visitas pontuais e realizar projetos em suas áreas. Em julho, por exemplo, a organização recebe estudantes brasileiros de Arquitetura e Engenharia, autores de um projeto de complexo educacional. Pessoas aptas a oferecer cursos técnicos também são bem-vindas, assim como qualquer sindicato ou empresa interessado em conhecer e ajudar os trabalhos da organização. Para saber mais: vida-africa.org revista do brasil junho 2012
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Quando houve a confirmação de que realmente havia acabado a violência eu saí com meu irmão de carro. Era manhã cedo e quando conseguimos passar o cerco tivemos de parar o carro porque estávamos em lágrimas
Mia Couto e a
O escritor e biólogo, um dos autores em língua portuguesa mais traduzidos para o mundo, comenta os 20 anos de paz em Moçambique, e como as guerras mexeram com seu país e sua literatura Por Estevan Muniz
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paz
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á 20 anos, a guerra civil travada entre o grupo governista Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e as forças rebeldes da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) chegava ao fim. Há 20 anos, o escritor moçambicano Mia Couto lançava seu primeiro romance. Terra Sonâmbula tem o conflito como pano de fundo para a história de um velho e um menino que encontram em um baú perdido cadernos com escritos sobre a desesperança. No livro, o autor mistura numa narrativa saborosa o idioma escrito e a tradição oral africana. Moçambique enfrentou dez anos de guerra. Primeiro, para se emancipar de Portugal. Com a fundação da República Popular de Moçambique, em 1975, o governo foi entregue à Frelimo, partido único, de orientação socialista. Após a independência, mergulhou em novo conflito, na disputa interna pelo poder, até a assinatura do Acordo Geral de Paz entre os dois grupos, em 1992. Hoje, Frelimo e Renamo são partidos e disputam pacificamente o poder. Antes, a partir de 1986, com a morte do ditador e herói libertador do p aís, Samora Machel, o governo liderado Joaquim Chissano promoveu aberturas no regime e na economia. Mia Couto foi membro da Frelimo. Durante a guerra pela libertação, deixou o curso de Medicina para infiltrar-se nos jornais coloniais e trabalhar a serviço do ideais da independência. Não integra mais o partido. No Brasil, teve dez títulos publicados. Durante as três últimas décadas, intensificou a dedicação à atividade de biólogo e pesquisador, criou e dirige uma empresa que faz estudos de impacto ambiental e leciona ecologia na maior universidade de Moçambique. Nesse ínterim, tornou-se um dos escritores de língua portuguesa mais traduzidos no mundo.
Quando acontece a conversação de paz, há conciliações em nível profundo, das crenças e das vozes. Houve alguma celebração, sim, mas a grande celebração mesmo foi quando começou a chover, porque naquela altura havia uma grande seca. E a interpretação é que, se chove, os deuses estão compatibilizados com as pessoas. A paz foi um milagre. Eu sou ateu, mas acredito nisso com apreciação. As pessoas entenderam que aquilo que era mais profundo, essa harmonia com entidades divinas, havia sido alcançado. Isso explica por que, de repente, não havia mais tiros, não havia mais violência. Se fosse uma guerra clássica, provavelmente grupos continuariam atuando, mas foi proclamada a paz e não aconteceu mais nada. Nenhum comando militar conseguiria isso sozinho.
Como foram esses 20 anos de paz para o país, politicamente e socialmente?
O país só começou a renascer 17 anos depois de sua independência.
Para falar da paz é preciso falar da guerra. Tivemos uma guerra atípica, não era uma guerra civil, embora hoje se dê esse nome. Não foi uma parte do povo que se revoltou contra outra, tampouco foram etnias. A guerra nasceu fora do país, de uma agressão externa, que depois se converteu num certo grau de violência interna. A Frelimo, ao longo dos primeiros anos de governo, era cega e arrogante em relação a práticas religiosas tradicionais e a valores mais antigos. Quando as pessoas perceberam que havia alguma alternativa de parar aquilo, que a Frelimo via como avanço da modernidade, aderiram à violência. E a grande bandeira da Renamo, que fazia guerra contra a Frelimo, era contra o comunismo, mas ninguém aqui sabia o que era comunismo. Portanto, o retrato oficial da guerra, de clichês e estereótipos, é falso.
A Confissão da Leoa foi lançado no início de maio deste ano em Portugal
O que essas duas décadas significaram para você pessoalmente, como escritor?
Eu já não tinha crença em que íamos conseguir a paz em um golpe só. As cidades viviam situação de cerco absoluto. E este é um país de grandes extensões, temos essa coisa que a África proporciona, essa noção do grande espaço, com horizontes sem limites. Quando houve a confirmação de que realmente havia acabado a violência eu saí com meu irmão de carro. Era manhã cedo e, quando conseguimos passar o cerco, tivemos de parar o carro, porque estávamos em lágrimas. Era uma grande comoção, por causa da saudade desse sentimento do grande espaço. Havia um sentimento de saturação. Havíamos chegado ao limite, as pessoas não tinham o que comer, não tinham motivo para ter esperança, não sabiam o que dariam aos seus filhos no futuro. O sentimento era de um vazio, de modo que quando houve paz a sensação foi de grande euforia, porque a história deste país é muito intensa.
Sou mais velho que o país, ajudei seu parto e estou a assistir a seu crescimento. Meus livros, mesmo não tendo uma relação política tão direta, são profundamente contaminados por aquilo que estava a acontecer. Eu escrevi A Varanda do Frangipani logo a seguir à guerra e já como alerta de que essa euforia ia ser surpreendida, porque a herança da guerra era tão presente que íamos tropeçar nela. O Último Voo do Flamingo, por sua vez, foi em cima dessa experiência de construção da paz. Aponta também que precisamos entender melhor as razões profundas da violência interna em Moçambique. No país que se tinha arrumado de uma certa maneira durante a guerra, milhares de pessoas que haviam se descolado de sua terra durante muito tempo depois regressaram. Esse regresso gerou situações socialmente e literariamente muito ricas.
Não é a briga de elite que salva o país, mas o surgimento de forças novas, gente com discurso inovador. Sou multipartidário. Farei o que puder para fortalecer os partidos alternativos sem nunca pertencer a nenhum deles
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Houve uma espécie de nova geografia humana, redesenhada em um espaço muito breve. Os conflitos sociais que emergiram, quando se reocuparam esses sítios antes vazios, foram enormes. Às vezes, pensava que, se eu não entendia a guerra, também não iria entender a paz. E para a literatura moçambicana, de um modo geral, qual foi o peso desse conflito?
A democracia é válida enquanto dinâmica de confrontos, com forças que controlam umas às outras, impedem excessos e uma partidarização da sociedade
Do ponto de vista da literatura, a guerra teve consequências gravíssimas. A Renamo, quando atacava uma aldeia, começava pela escola e matava os professores. E a escola deixou de existir em grande parte deste país. E era a escola o único veículo da língua portuguesa e era ela que fazia chegar os livros. Um trabalho imenso poderia ter sido feito para criar familiaridade com a escrita, mas houve um corte. E este é um país da oralidade. Poderíamos ter muitos jovens escrevendo e trazendo novas propostas. Há muito mais dinâmica nas artes plásticas, no teatro, do que na literatura. Mas há hoje grandes escritores moçambicanos, Ungulani Ba Ka Khosa, Paulínia Chiziane e o senhor, que produziram durante a guerra e se inspiraram na história do país. E seus livros são bem aceitos em diversos países.
Acho esse grupo muito pequeno. A literatura não se faz com cinco ou seis escritores, mesmo que tenham projeção internacional. É um bem maior, inclui leitores, bibliotecas e discussões literárias. Antes de a guerra entrar nas cidades, houve um movimento grande nas associações de escritores, o movimento da Kuphaluxa, de onde saiu Ungulani Ba Ka Khosa e Eduardo White, mas logo isso deixou de existir. Então, quando eu falo do preço que a guerra teve para a literatura, estou a falar do grande contexto. Mas a guerra – é quase criminoso dizer isso, é politicamente incorreto – proporciona motivos únicos. Ela é um espetáculo de horror e ao mesmo tempo é uma oportunidade de perceber alguma coisa que em situações de normalidade não ocorre. Vi atos de heroísmo de gente que eu não esperava, das quais eu nunca esperaria uma entrega, uma generosidade. Eu vi a alma humana em espetáculo, por assim dizer, na sua totalidade, exibindo-se no que é bom e no que é mau. Nós nos sentíamos tão agredidos e vazios que precisávamos inventar, criar, resistir. A escrita se tornou um exercício de resistência contra esse deserto que a guerra criou. Durantes as guerras – 26 anos entre o início de uma e o fim de outra –, como o senhor diz, a alma humana estava em espetáculo, e os assuntos brotavam do chão. E quando houve a paz?
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As duas guerras não são comparáveis. A Guerra de Libertação transportava um anúncio, uma utopia, ainda que essa utopia não se tenha realizado. Era uma guerra de grande mobilização. A poesia era o grande gênero, porque ela canta o futuro. Havia esse lado épico que contagiou a todos os moçambicanos, mesmo os que depois se levantaram contra a Frelimo. Naquele momento, Afonso Dhlakama (líder da Renamo) era membro da Frelimo. Havia um país inteiro com uma só causa. Meu primeiro livro de poemas nasceu disso. A outra guerra, não. Um dos lados dessa contenda, a Renamo, não produziu nenhum escritor, nenhum homem de cultura que pudesse dar voz ao movimento. Essa guerra foi empobrecedora. E se os escritores encontraram motivos foi pela razão que estou a dizer e também porque escritores não são cronistas só, não fazem só o registro do que está a acontecer, eles estão para além da História. Um brasileiro urbano, como eu, fica impressionado com a componente mágica da cultura moçambicana. Não há uma divisão? O mundo físico e o mundo espiritual coabitam?
Acredito que entre aqui e o Brasil haja uma diferença de grau, não de qualidade. Acho que a mestiçagem no Brasil foi feita no nível mais íntimo, na relação com o divino. Isso se vê na maneira como o brasileiro receia certas coisas e momentos, como quando se diz “vira essa boca pra lá”. Todo brasileiro é um pouco afro-brasileiro. E ainda bem, porque essa combinação tem propensão à felicidade e ao prazer. Mas de fato, no Brasil, são as razões de Estado, da racionalidade, que imperam, e aqui esse universo mágico, o mundo invisível, comanda. Nesse período de estabilização houve crescimento e algum grau de ocidentalização. O que mudou no imaginário popular? Como essa cultura, que conta com a figura do feiticeiro e do curandeiro e determina que os antepassados convivem com os vivos, foi afetada?
Naturalmente, com a paz, as pessoas têm de se incorporar à economia e às razões de mercado. Nos últimos dez anos, os jovens moçambicanos estão no mundo, com a internet, com a mídia. E os moçambicanos têm grande potência para ser do mundo. O moçambicano é como o ilhéu, sempre à espera de quem vem. Em um momento de crise, ficam agarrados à sua cultura, mas no geral são muito disponíveis. Houve mudanças nas camadas mais jovens. A tradição não é o passado, ela se moderniza. Hoje, vejo feiticeiros dando consultas com celulares. As pessoas foram capazes de incorporar a modernidade, fazendo com que ela fosse apenas uma ferramenta.
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Foi praticamente ao mesmo tempo. Comecei a escrever dois anos antes. E a escrita dele foi a única que me deu dores de parto. Posso dizer que sofri para escrevê-lo. Os outros não, eu não tenho aquela coisa do grande escritor que diz que sofre muito, eu não sofro nada, tenho grande prazer. Mas aquilo foi uma coisa dolorosa. Acontecia como uma espécie de visitação. Compulsivamente, eu era tirado da cama. O momento foi muito traumático, porque muitas pessoas presentes na minha vida haviam morrido. Até agora, não consigo fazer luto desses amigos e colegas que foram mortos na guerra. Naquele tempo, eu pensava que não se podia fazer um livro sobre a guerra enquanto ela estivesse a acontecer, mas contrariei esse princípio meu, e já havia sinais de que a paz estava sendo negociada. Publiquei o livro um ou dois meses depois do acordo. Hoje, quando olho pra trás, vejo que o livro tem, sem que eu me percebesse à altura em que o escrevi, uma proposta de reconciliação entre a escrita e a oralidade, a grande reconciliação dos mundos em Moçambique. Esse menino, que de repente se apercebe saber ler e escrever e, por isso, lê os cadernos, tem acesso à modernidade. E o avô, que segue com ele ao longo dessa estrada, tem a ligação com a memória, com as histórias, com as lendas, as raízes mais antigas deste país. Na luta pela independência havia uma poesia politizada. Seu livro Raízes de Orvalho foi uma ruptura com aquilo que se produzia. Nele, falava-se de amor, tema evitado na Frelimo. Já em Terra Sonâmbula há elementos críticos ao governo. Foi outra ruptura?
Em 1985, 1986, eu era diretor do jornal oficial do país, Jornal Nacional, e pedi para sair. Tinha uma distância enorme entre aquilo que era prática e o que era proclamação. Eu continuava sendo membro da Frelimo, mas interiormente já havia percebido que a coisa não era a verdade. Quando pedi demissão, não aceitaram. Mas quando saí, finalmente, fiquei livre. Eu sou mais capaz de tirar alguma coisa mais que uma visão partidária, que uma força política, qualquer que seja. Eu quero ser eu. O senhor se desiludiu?
Há aqui um grupo de gente que se chama de esiludido, que se reclama como uma espécie de d vítima, que diz que foi iludido por alguém, que deu o melhor da sua vida, sua juventude, por uma mentira. Não faço parte desse grupo. Eu dei o melhor da
minha vida e recebi o melhor da minha vida. Nesse período, eu aprendi muito. Só tenho de dizer graças à vida. Não sou amargo, não tenho rancor. Essa ilusão foi minha também. A visão que eu tinha do mundo era muito simplista, muito esquemática, aquela coisa ideológica, de perceber o mundo segundo a luta de classes: os bons e os maus. O mundo é muito mais complexo que isso. Mas o engano foi meu. Não culpo ninguém. No entanto, o senhor já disse que acredita nas mesmas coisas...
Eu acredito que é preciso fazer mudanças profundas num mundo que está construído na base da desigualdade, da injustiça, orientado para o mercado, para o lucro, e não para o bem-estar das pessoas. A disposição de brigar por essa mudança está presente mesmo. Eu não fiquei envelhecido, mas não quero transformar isso em uma luta política e partidária. Estou, como escritor, como pessoa, como cidadão, na briga por coisas que são muito concretas para melhorar o mundo. Em seu livro E Se Obama Fosse Africano? o senhor aponta problemas da democracia na África. Quais são suas expectativas em relação à situação política de Moçambique?
A democracia é valida enquanto dinâmica de confrontos, com forças que controlam umas às outras e impedem excessos e uma partidarização da sociedade. Isso em Moçambique não nasceu; é incipiente, e não só porque alguém abafa e sufoca isso, mas acho que é uma coisa da própria sociedade moçambicana. Eu darei toda minha contribuição para que nasçam mais forças políticas que sejam fortes e tenham a admiração do país. Infelizmente, a Renamo não se converteu nisso. Ela nem sequer é oposição, ela é o Afoisos Dhlakama (líder do partido), com uma vontade enorme de ganância e de poder e de fazer exatamente o que se está a fazer agora. O que Moçambique precisa não é de uma mudança de turno, nesse ponto de vista, de quem o está dirigindo. Não é essa briga de elite que vai salvar o país, mas o aparecimento de forças novas, de gente nova, que tenha um discurso inovador, capaz de produzir alternativas. Eu sou multipartidário nesse sentido. Farei o que puder para fortalecer todos os partidos alternativos sem nunca pertencer a nenhum deles, esse é o serviço que posso prestar à democracia moçambicana. Não me apetece estar a criticar partidos ou pessoas. Quando eu critico a corrupção ou a falta de transparência, critico fenômenos ou tendências sociais, não exatamente alguma coisa que pudesse ser usada como bandeira partidária.
fotos camila lam
Terra Sonâmbula foi publicado em 1992, o ano em que houve o Acordo Geral de Paz. Os “Cadernos de Kindzu”, narrados no livro, podem ser vistos como aquilo que sobrou da guerra. Como foi escrever naquele período?
Posso dizer que sofri para escrever Terra Sonâmbula. Os outros não. Não tenho aquela coisa do escritor que diz que sofre muito. Não sofro nada, tenho grande prazer
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Corações livres O clássico On the Road seduziu gerações de desencantados com o sonho americano e inspirou manifestações ácidas por liberdade. Meio século depois, vira filme nas mãos do brasileiro Walter Salles Por Carlos Minuano
Seattle Olympia
Washington
Montana Salem
Oregon
Maine
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Helena
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Texas Austin Houston
Sabinal
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North Carolina
Tennessee
Oklahoma
Baton Rouge
New York
Trenton New Jersey Dover Delaware Annapolis
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Lansing
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Davenport
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San Francisco California
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Cheyenne
New York
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Iowa
Montpelier N.H. Vt. Concord Boston Albany Mass. Providence Hartford R.I. Conn.
Michigan
Wisconsin
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Tallahassee
D.C.
Movido a jazz e blues A linha vermelha mostra a primeira rota traçada por Kerouac através dos EUA. A viagem começou e terminou em Nova York em 1947
New Orleans
Florida Miami
John Cohen/Getty Images/1959
cultura
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Deu vida à geração beat, mais adiante ao movimento hippie, e as bases de um estilo de comportamento posteriormente chamado de contracultura. “On the Road arrancou as pantufas da literatura, levantou-lhe a barra da saia e a levou para dar uma voltinha na lama do acostamento”, diz Eduardo Bueno, um dos tradutores da primeira fornada do clássico para o português. Lançado com mais de cinco décadas de atraso, o esperado longa Na Estrada, coprodução Brasil, França e EUA, já é um sucesso. A estreia na França, no final de maio, no 65º Festival de Cannes, encerrou uma longa jornada. A produção percorreu mais de 100 mil quilômetros em oito anos de trabalho. Logo que recebeu de Coppola o convite para filmar, Salles decidiu ir para a estrada, refazer as rotas de Kerouac. “Senti que a única maneira de realizar uma adaptação que fizesse justiça a Kerouac seria fazer um documentário em busca de On the Road”, comenta. Também apoiado num documentário sobre o livro, ainda não exibido no Brasil, o cineasta lançou-se à própria aventura. “Fomos de
cidadezinha em cidadezinha, sem uma programação previamente estabelecida, olhando não somente para a estrada, mas para aquilo que havia à margem dela.” Segundo ele, processo semelhante à preparação de Diários da Motocicleta, quando refez duas vezes a rota trilhada por Ernesto Guevara e Alberto Granado do sul ao norte do continente americano. Com uma pequena equipe de três pessoas, Salles foi entrevistando personagens do livro marginal e poetas da geração beat ainda vivos, como Lou Reed ou David Byrne. “Foi uma verdadeira viagem iniciática, um processo de aprendizado extremamente estimulante”, conta o diretor.
O bando infame
Jack Kerouac não esteve sozinho nas estradas por onde andou ou na literatura que subverteu com um jeito novo de escrever – espontâneo, instintivo e sem revisões. Seu bando infame incluiu poetas e escritores tão ou mais malucos do que ele, como Allen Ginsberg, William Burroughs, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, Michael McClure, Gary
Hank O’Neal/1984
s Estados Unidos são uma sociedade conservadora. E o “sonho americano”, alicerçado nos pilares trabalhar-comer-consumir-obedecer, é a célula-tronco da sociedade capitalista. Por isso não deixa de ser curioso que muitos dos ídolos cultuados na América, de ontem e de hoje, foram ou são tremendos marginais, vagabundos incorrigíveis e muitos deles drogados convictos. No topo dessa vasta lista de anti-heróis sempre estará o nome do escritor Jack Kerouac, autor do antológico livro On The Road, traduzido aqui como Pé na Estrada. A obra, uma espécie de bíblia hippie, chega agora ao cinema com mais de meio século de atraso, dirigida pelo brasileiro Walter Salles, de Central do Brasil. Além da mão segura de Salles, o filme é uma produção de Francis Ford Coppola. O diretor da saga de O Poderoso Chefão e Apocalipse Now já havia exibido seu lado beat em obras menos famosas, como Vidas sem Rumo (1979) e Selvagem da Motocicleta (1982), numa espécie de trilogia da juventude, concluída em 2009 com Tetro, filmado na Argentina. Na Estrada mostra a saga de Kerouac, que no final da década de 1940 caiu no mundo, de carro, de carona, de trem, vagando em busca não do sonho americano, mas da utopia de viver a vida intensamente. A louca história dessas viagens foi escrita de forma compulsiva e alucinada em três semanas (segundo o próprio autor). Ele ajustou um enorme rolo de papel para telex para que não precisasse trocar de folha enquanto escrevia. A ideia era que os originais estendidos feito um tapete resultassem na representação de um caminho, a estrada. O resultado foram 40 metros de textos – que hoje valem uma fortuna, equivalente a uma obra de Van Gogh. On the Road é uma fábula sobre as estradas, mas suas histórias são verdadeiras. Kerouac traduz o espírito dos caminhos que percorreu ao lado de seu companheiro Neal Cassady e os recria nos personagens Sal Paradise e Dean Moriarty. Lançado em 1957, foi sucesso imediato e transformou o autor no anti-herói de uma América fracassada. O romance fez (e ainda faz) a cabeça de muita gente no mundo todo.
Cumplicidade Allen Ginsberg e William Burroughs foram dois dos representantes mais longevos da beat generation. Amigos desde a juventude, morreram no mesmo ano, 1997 revista do brasil junho 2012
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Snyder. Essa turma representou a primeira safra da tal beat generation – expressão criada por Kerouac em 1948. “Os beats inspiraram jovens a romper com atitudes e o estilo de vida convencional e procurar novos modos de expressão”, afirma o poeta Cláudio Willer, tradutor do clássico beat Uivo e Outros Poemas, de Allen Ginsberg, e autor do livro Geração Beat (ambos da L&PM). Segundo o próprio Ginsberg, o “movimento literário da geração beat” era formado por “um grupo de amigos que trabalharam juntos em poesia, prosa e consciência cultural”. O termo se tornou popular nos EUA ainda nos anos 1950. Para entender a importância da literatura beat, no entanto, é preciso olhar para trás. Para começar, os Estados Unidos do pós-guerra, reafirmados como potência mundial, tinham Eisenhower como presidente. Nixon, o vice. Veteranos voltavam para casa em busca do american dream. Começava a corrida espacial. Os soviéticos lançavam o Sputnik I e os americanos, o Explorer I. Enquanto ambos corriam para o espaço, na terra protagonizavam a Guerra Fria, travada entre o capitalismo e o comunismo. No campo social, avançavam movimentos pelos direitos humanos e toda uma revolução comportamental que estruturaria na década de 1960 a luta pelos direitos civis, em defesa das mulheres, dos negros, dos homossexuais. A Lei Seca era coisa do passado. Findava a temporada de perseguição a comunistas e progressistas, desencadeada pelo senador John McCarthy – a incipiente geração beat, não partidária por natureza, foi solidária aos caçados pelo macartismo. Ou seja, havia terreno fértil para a revolução (e a bebedeira) de Kerouac e sua gangue. E a trilha sonora era de primeira qualidade. Entravam em cena Thelonius Monk, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, entre outros.
Os brasileiros
Em 1957, em São Paulo, o então prefeito Jânio Quadros proibia o rock nos bailes. A velocidade da informação era a do rádio, da tevê a válvulas e das rotativas. Ainda assim, não tardou a borbulhar por aqui a fervura beat americana. 42
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A sonoridade das ruas tem relação com a busca espiritual inO livro-mito On the Road passa de trínseca a sua obra e vida. O vocábulo, geração em geração sem perder a forentre outros vários significados, conça narrativa. Entre as muitas curvas tém o radical de “beatitude”. Kerouac sinuosas, repletas de jazz, sexo e droacreditava na pregação da bondade gas, o escritor desvendou o espírito de universal. E os beats, por sua vez, na uma época. “Kerouac empenhou-se em criação espontânea, na arte que vem forjar uma nova prosódia, capturando do nada. “Acreditavam na liberdade do a sonoridade das ruas, das planícies e espírito”, arremata Alencar. das estradas dos EUA, disposto a liberNa década de 1960, a ideologia tar a literatura americana das amarras hippie, na arte ou no acadêmicas”, escreveu comportamento, anEduardo Bueno, na corou-se também nas introdução da edição ideias de Kerouac. Paz brasileira. e amor, busca interior, “Essa coragem de atitude transgressora, se lançar em estradas subversiva, rebelde, a desconhecidas perponto de estar tammitiu a experimentabém na raiz da apação, a visceralidade, rentemente contraso desregramento dos tante cultura punk. sentidos (haste fundaTalvez isso explimental para as invenque por que Kerouac ções), o espiritualismo, segue idolatrado não o antimaterialismo”, apenas entre famosos afirma o poeta Celso e por toda parte. Nas de Alencar. “Foi uma livrarias de Nova York, rebelião contra um diz-se, On the Road sistema caduco, sem não é visto nas pratecriação.” leiras, e sim ao lado O termo beat, com Item de colecionador dos caixas: é um dos o qual Jack Kerouac Capa da primeira edição do livros mais roubados. batizou sua geração, clássico, publicado em 1957
Juca Martins/olhar imagem/1984
Mario Anzuoni/Reuters/2005
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Michael Putland/Getty Images/1971
cultura
Nem o golpe militar frearia mentes e corações ávidos por liberdade, e o Brasil se revelou rapidamente celeiro fértil. Da bossa nova à renovação da MPB, o teatro, a literatura, a poesia e o cinema engajados à cultura marginal e à contracultura. Nascia uma literatura visceral, em vozes como de Roberto Piva e Jorge Mautner.Segundo o poeta Cláudio Willer, a cultura beat chegou às terras brasileiras por volta de 1959, 1960, por intermédio de reportagens no antigo Caderno B do Jornal do Brasil e no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Entre os leitores mais atentos estavam o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa e Luiz Carlos Maciel, futuro difusor e pensador da contracultura. E Roberto Piva escancarou o movimento para o Brasil, segundo Willer. “Não mais como notícia, matéria jornalística, mas como diálogo, relação no plano da criação.” A estreia de Piva foi com o instigante Paranoia, ricamente ilustrado por fotos de Wesley Duke Lee, publicado em 1967 pelo editor Massao Ohno. Em 2009, o livro ganhou cuidadosa nova edição pelo Instituto Moreira Salles. Paranoia é pura provocação. Adepto de uma vida desregrada, Piva incorporou totalmente a alma beat.
Vagabundeou o quanto pôde pelo centro de São Paulo e, em perfeita sintonia com Ginsberg, McClure, Snyder, Kerouac, Corso, inovou, experimentou, ousou e rompeu com todo e qualquer academicismo. E também já foi parar em dois documentários. No média-metragem Assombração Urbana, de Valesca Dios (2005), e em Uma Outra Cidade, de Ugo Giorgetti (2000). Por triste coincidência, como Kerouac, morreu pobre, em 2010. Passou os últimos anos solitário em seu pequeno apartamento no centro da capital paulista. Equivalentes brasileiros da beat generation renderiam uma extensa lista. Dos mais próximos ao tropicalismo, Wally Salomão e sua Navilouca, Torquato Neto, Hélio Oiticica e Rogério Duarte. “Cronologicamente, podem ser vinculados a outro ciclo, da contracultura e das rebeliões juvenis da década de 1960, por sua vez com um enorme débito com relação à beat”, observa Cláudio Willer. “Isso vale também, certamente, para Raul Seixas.” O experimentalismo é levado por Zé Celso para o Teatro Oficina; para o cinema marginal de Jairo Ferreira, Rogério Sganzerla,
Julio Bressane e Carlos Reichenbach; para a poesia marginal – reunida na antologia 26 Poetas Hoje, de 1976, preparada por Heloisa Buarque de Hollanda. Sem contar os escritores viajantes Antonio Bivar e Eduardo Bueno, que refizeram os trajetos de Kerouac antes de se destacar como tradutores e difusores dessa cultura.
Filhos da geração
Charles Platiau/REUTERS
Versão Hollywood Cena de On The Road, filme dirigido pelo brasileiro Walter Salles: “Fomos de cidadezinha em cidadezinha olhando não somente para a estrada, mas para aquilo que havia à margem dela”
divulgação
beberam da fonte John Lennon, Bob Dylan, Johnny Depp e Raul Seixas são alguns dos artistas influenciados pela cultura beat, transparentes no trabalho e nas atitudes
Relíquia Rolo de papel de 40 metros onde foi escrito On the Road é valioso como uma pintura de Van Gogh
Mesmo que você não faça a menor ideia de quem foi Jack Kerouac, já ouviu ou leu muita coisa a ver com ele. Ele foi idola trado por muita gente famosa. Os Beatles têm a raiz beat identificada por John Lennon. Bob Dylan, Jim Morrinson, Tom Waits, Franz Zappa, cada música “atirando” para um lado, têm algo do guru das estradas em seu DNA; no cinema, Johnny Depp, Win Wenders, Gus Van Sant (e por que não arriscar Francis Coppola), idem. Outro beat da pá virada, William Burroughs, reconheceu o sucesso do amigo: “Kerouac abriu um milhão de cafés literários e vendeu bilhões de jeans Levis”. Apesar da indústria criada em torno do escritor, ele morreu em 1969 na pindaíba, duro e, por ironia, de costas para uma tal revolução da qual fora mentor. “Passou seus últimos anos sentado no sofá vendo programas de auditório na TV, na casa da mãe, onde morou a vida inteira, barrigudo, alcoólatra e reacionário”, escreve Eduardo Bueno na introdução de Pé na Estrada. Kerouac terminou a vida frustrado e pobre. Mas, morto, sua lenda só tem crescido. “Seu legado, em essência, desde que os seguidores saibam discernir, é que, apesar de tudo, a liberdade e o livre-arbítrio são para todos”, afirma o escritor Antonio Bivar, atualmente em Londres. revista do brasil junho 2012
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Romeu e Julieta
fincados na areia Mangue Seco, eternizada por Jorge Amado em Tieta, resiste bela e aconchegante aos predadores, Ă s intempĂŠries e ao risco de desaparecer Por Guilherme Bryan 44
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BA
Jorge Amado certamente se entristeceria se visse esse paraíso tropical correndo o risco de desaparecer
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vilarejo de Santa Cruz da Bela Vista, na divisa entre Bahia e Sergipe, conquista os visitantes com suas imensas dunas, a beleza das praias e do Rio Real. Mais famoso com o nome de Mangue Seco, o lugarejo a 240 quilômetros de Salvador foi escolhido por Jorge Amado para ambientar seu romance Tieta do Agreste. Amado, se cá estivesse para festejar seus 100 anos no próximo 10 de agosto, certamente se entristeceria se visse esse paraíso tropical correndo o risco de desaparecer. De um lado, sobe o nível do Rio Real. De outro, as águas salgadas do Atlântico já engolem grandes áreas da região. Para completar, a vegetação que protege as dunas também sofre com o turismo predatório, que muitas vezes vai de bugue. “Mangue Seco tem ar puro, paz, tranquilidade e, olhando de cima das dunas, é fácil se encantar”, explica a professora aposentada Raimunda Araújo, filha do lugarejo. “Há aqui uma biodiversidade enorme, pássaros, tartarugas e caranguejos. Em poucos lugares você vê dunas desse tamanho. Tem também uma praia tranquila e o encontro do rio com o mar, que é muito interessante”, diz o prefeito Roberto Leite, de Jandaíra, município responsável por Mangue Seco. E, se serviu de inspiração para Jorge Amado criar Tieta, não poderia ser outro o cenário da telenovela homônima (1989-1990). Ali foram rodadas principalmente as cenas estreladas pela atriz Claudia Ohana, Tieta ainda mocinha, correndo nas dunas. No
centro da vila, as ruas de areia e as casas coloridas ainda hoje criam uma atmosfera cenográfica. Seis anos mais tarde, Cacá Diegues filmou a adaptação para o cinema, com Sonia Braga no papel principal. As gravações ainda estão vivas na memória dos moradores. Maria Feliciano, de 54 anos, trabalhou como cozinheira para a equipe. “Naquela época, não existia restaurante aqui, e eu e outra garota fazíamos as refeições para os artistas, pois metade da equipe ficou hospedada em Mangue Seco. Eu não tinha muito tempo para vê-los e só acompanhei as gravações uma vez, em cima das dunas, que naquele tempo eram mais altas”, lembra.
O preço da fama
A TV e o cinema aqueceram tanto o turismo que o lugar não dava conta de receber os ônibus que encostavam ali às dezenas. Às vezes era preciso acionar a polícia para tentar conter o tumulto. Muita gente que chegou acabou ficando, a ponto de hoje a população ser constituída principalmente de pessoas de fora. E as lendas vão se misturando a fantasias. É verdade, por exemplo, que o local onde está o par de coqueiros conhecido como Romeu e Julieta é belíssimo, mas não foi exatamente ali que se gravou a abertura da telenovela com a atriz Isadora Ribeiro, como alguns costumam contar. Aqueles coqueiros já foram engolidos pelas dunas há muito tempo. “Com familiares nos municípios de Estância e Tobias Barreto, ambos em Sergipe, Jorge Amado esteve aqui apenas duas vezes. Uma delas foi em 1935, antes revista do brasil junho 2012
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A vegetação que protege as dunas também sofre com o turismo predatório
de ir para a Rússia, porque estava sendo perseguido por Getúlio Vargas por motivos políticos, e aqui o acesso era muito difícil”, conta Ana Flora Nascimento Amado, de 73 anos, prima distante do escritor. Proprietária da sorveteria Recanto Dona Sula e da cafeteria Amado Café Amado, Ana escolheu morar em Mangue Seco há 11 anos, em função das belezas naturais, e considera que o livro, escrito nos anos 1970 – época do “milagre econômico” do governo militar –, levanta questões sérias. “Jorge romanceou a história e colocou Mangue Seco como pano de fundo para tratar do choque de gerações, do problema da luz elétrica, dos correios e da poluição, por ocasião do interesse de uma indústria química de se estabelecer por aqui.” Existe a lenda também de que Tieta, ou Antonieta, realmente existiu, mas morava na vizinha Estância. Última praia no norte baiano, Mangue Seco tem cerca de 200 habitantes. Foi descoberta por acaso, em 1548, quando alguns padres se salvaram de um naufrágio. No século 19, já se destacava pela movimentação portuária. Em 1930, porém, a maré alta da Baía de Estância provocou o desaparecimento de uma rua, com armazéns e sobrados, e isolou o local entre 46
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a foz do Rio Real, o oceano e as imensas dunas que se movem com o vento. O Rio Real é um dos seis – junto com Fundo, Guararema, Piauí, Priapu e Sagui – que chegam ao mar passando por Mangue Seco e o único caminho para alcançar a vila – seja pela Bahia, seja por Sergipe. Ali, as casas não têm número. E as ruas não têm nome, apenas apelidos. Rua da Praça, Rua do Meio, Rua da Praia e Rua da Escola. E durante muitos anos não havia ali sequer luz elétrica. “A primeira geladeira que surgiu aqui foi à bateria, assim como a televisão. Também foram instalados orelhões para nos comunicarmos com os parentes. Só depois vieram os telefones fixos. Para as correspondências, damos o endereço de pessoas conhecidas de cidades próximas”, conta Raimunda, que lamenta a ausência de comércio e bancos. A comunicação melhorou quando, em 2010, foi inaugurada a Ponte Joel Silveira, que atravessa o Rio Vaza-Barris, no lado sergipano. Mas a única maneira de chegar ao vilarejo ainda é de barco. O prefeito Roberto Leite promete iniciativas para aumentar o fluxo de turistas, assim como a construção de um cais para impedir o avanço do rio. “Mangue Seco deve ser um lugar para o turista passar o dia, e não pa-
ra dormir. Não há estrutura para ele se hospedar e é preciso ser muito cuidadoso para não haver, por exemplo, contaminação do solo, pois os lençóis freáticos são muito rasos. Queremos criar uma estrutura boa de restaurantes e atrair os turistas de maneira sustentável, além de criar mais empregos.” Desde novembro de 1991, o recanto é considerado Área de Proteção Ambiental, ou seja, com controle sobre a ocupação humana e regras para preservação da diversidade biológica e dos recursos naturais. Mesmo assim, os riscos de soterramento são evidentes. “As dunas estão invadindo o povoado e quem mora encostado está exposto. Há uns 15 anos, foi preciso fazer um trabalho de contenção com palha de coco, pois algumas pousadas e casas estavam sendo cobertas pela areia”, recorda Cleverton José dos Santos Lima, bugueiro de 35 anos nascido em Mangue Seco. Ele defende a criação de trilhas específicas para os bugueiros trabalharem, assim como de uma cooperativa para organizar a categoria na região, onde 90% das pessoas vivem do turismo. O oceanógrafo David Zee, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), explica que a faixa costeira é zona de tran-
Última praia no norte baiano, Mangue Seco tem cerca de 200 habitantes
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Lembranças de Jorge Amado Pelo menos dois grandes eventos r elembram os 100 anos de Jorge Amado no país. No Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, a exposição Jorge Amado e Universal reúne centenas de fotografias, vídeos, livros, roupas, cartas, textos originais e objetos que representam o sincretismo religioso e a cultura baiana, em diferentes ambientes. Fica em cartaz até 27 de julho e depois seguirá para Salvador, no Museu de Arte Moderna da Bahia, de 10 de agosto a 14 de outubro. Entre 4 e 12 de agosto, Ilhéus (BA) sediará o Festival Literário e Artístico Amar Amado. O evento terá atores que já interpretaram personagens de Jorge Amado, como José Wilker e Sônia Braga, lendo textos nas janelas de c asarões; exibições de teatro, de adaptações cinematográficas dos livros e shows de Margareth Menezes e Caetano Veloso; e cardápios temáticos nos restaurantes. Para o festival, o quarteirão do centro histórico onde o escritor viveu será revitalizado.
sição. Está sujeita a ter sua morfologia ditada tanto pela vazão dos rios como pela ação das ondas e dos ventos – todos responsáveis pela movimentação de sedimentos de um lado para outro. Mas considera que a ação humana também pode interferir no ecossistema. E, se o faz geralmente para o mal, também poderia fazê-lo para o bem, segundo Zee, com medidas como plantio de vegetação nativa em determinados pontos, expansão da praia com deslocamento de areia de um local para outro, construção de estrutura dura, “como um quebra-mar”. Há cerca de dez anos, o pai de Cle verton tinha um sítio que foi engolido pelas águas e hoje se encontra cerca de 500 metros mar adentro. Ao mesmo tempo, as águas do Rio Real avançaram muito nos últimos anos. Ana Flora A mado conhece os movimentos. “A areia é mais difícil de você controlar. No mar, é possível construir um cais e fazer barragens. Mas as dunas são muito perigosas. Não as que estão bem próximas ao povoado, mas as que vêm atrás, cobrindo as da frente. Já cobriram duas praças grandes aqui. Do outro lado, o mar também vem avançando”, completa a dona do Amado Café Amado. revista do brasil junho 2012
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Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Olhar de Segall
Entre 1940 e 1943, Lasar Segall produziu o caderno Visões de Guerra, com 75 desenhos aquarelados de cenas dramáticas vivenciadas na Primeira Guerra Mundial, quando morava na Alemanha. O artista russo de origem judaica desenhou o caderno já em terras brasileiras, onde havia se radicado nos anos 1920. O material, pouco conhecido na íntegra, fica exposto até 12 de agosto no Centro de Cultura Judaica, em São Paulo. A programação paralela tem debates, filmes e show. De terça a sábado, das 12h às 19h. Domingos, das 11h às 19h. Rua Oscar Freire, 2050, Metrô Sumaré. www.culturajudaica.org.br. Grátis.
Bergman em São Paulo e Brasília
Cena de O Sétimo Selo, de 1956
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O diretor sueco Ingmar Bergman deixou um legado de mais de 50 filmes, conduziu de maneira genial temas existencialistas, como o desejo, a religiosidade e a morte, e influenciou gerações de cineastas. Morto há cinco anos, Bergman é homenageado com programação do Centro Cultural Banco do Brasil. A mostra já passou pelo Rio de Janeiro, chega a São Paulo e segue para Brasília. São exibidos de filmes menos conhecidos, como O Olho do Diabo e Rumo à Felicidade, aos clássicos Monika e o Desejo, O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, Persona, O Ovo da Serpente e Fanny e Alexander. Há ainda quatro documentários que retratam a vida e obra do cineasta: A Ilha de Bergman, de Marie Nyreröd; Os Homens e Bergman + As Mulheres e Bergman, de Eva Beling; e Imagens do Playground e ...Mas o Cinema é Minha Amante, de Stig Björkman. No CCBB São Paulo, de 13 de junho a 15 de julho (Rua Álvares Penteado, 112). No CCBB Brasília, de 19 de junho a 22 de julho (SCES, Trecho 2, Lote 22). Confira a programação em http://bit.ly/mostra_bergman. De R$ 3 a R$ 6.
Transformistas O livro Crisálidas (Editora Instituto Moreira Salles, 136 pág.), de Madalena Schwartz,
apresenta 100 fotos de artistas, travestis, transformistas e personagens do teatro underground paulistano dos anos 1970. A fotógrafa nasceu em Budapeste e se mudou para o Brasil em 1960, onde morou até sua morte, em 1993. Madalena documenta pessoas que também deixaram vidas anteriores para trilhar ousados caminhos. Parte das fotografias está exposta em São Paulo desde maio. As que estão na loja do IMS, Livraria Cultura, ficam até 17 de junho (Avenida Paulista, 2073). E as exibidas no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca (Rua Frei Caneca, 569, Piso 3), até 17 de julho.
marcos vilas boas/divulgação
Arnaldo acústico
Arnaldo Antunes comemora 30 anos de carreira com o lançamento de CD e DVD Acústico MTV, em meados de maio. O show traz canções (reformuladas) da carreira solo, dos Titãs, dos Tribalistas e outras inéditas na voz do artista. Entre as músicas estão O Seu Olhar, em dueto com Nina Becker, Até o Fim, com Moreno Veloso, A Nossa Casa, Debaixo d´Água, Alma, Consciência, Engrenagem, Hereditário, Música para Ouvir, Comida e Envelhecer. R$ 30 (CD) e R$ 45 (DVD), em média.
Rock’n’roll Enquanto os fãs de Renato
Russo, da Legião Urbana e do rock nacional aguardam os filmes Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo, podem se deliciar com Rock Brasília – Era de Ouro, que chegou às locadoras em maio. O documentário revisita a construção cultural e ideológica da capital do Brasil e as origens das bandas Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude, que invadiram o cenário musical do país na década de 1980. O filme traz depoimentos de Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá, Dinho Ouro Preto, dos irmãos Fê e Flávio Lemos, de Philippe Seabra, dos integrantes dos Paralamas do Sucesso e de Caetano Veloso, além de cenas históricas, como a confusão generalizada no show da Legião Urbana no Estádio Mané Garrincha, em 1988.
Crise e abandono
Sunset Park é o nome do novo livro de Paul Auster (Cia. das Letras, 280 pág.) e de um bairro de imigrantes no Brooklyn, onde se passa a história de quatro jovens que decidem ocupar ilegalmente um imóvel vazio. Dilemas pessoais se entrelaçam com dificuldades causadas pelo colapso bancário americano de 2008. Um desses jovens, Miles Heller, decidiu fotografar coisas abandonadas e documentar os últimos vestígios das vidas desfeitas pela crise. Apesar da melancolia, Miles encontra no amor por Pilar um impulso para livrar-se do isolamento e deixar para trás uma antiga culpa. R$ 45. revista do brasil junho 2012
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Ademir Assunção
Jack Kerouac na Praia Brava sonhei com jack kerouac sentado na varanda da casa de waldemar cordeiro. eu acabara de acordar e dei de cara com aquele vulto imerso na neblina. bem acima da copa das árvores a lua cheia ardia entre nuvens espessas, com sua cara de gângster. eu disse: “ei, man, onde é que vamos parar?” jack deu uma longa tragada no cigarro, fumaça branca na névoa branca, e me estendeu o copo de uísque. continuou encarando a lua, pálido como um fantasma. disse que estava a bordo de um navio mercante da marinha americana na costa da indonésia até a semana passada. perguntou se ainda havia hippies nas ruas, feministas queimando sutiãs em praça pública e negros enforcados nos galhos de grossos carvalhos no novo méxico. “oh, não, jack, isso faz tanto tempo. agora eles mandam os jovens negros pobres para a guerra no iraque.” descemos até a mercearia da praia brava atrás de umas latinhas de cerveja e de uma garrafa de conhaque. no caminho contei-lhe que leminski e itamar assumpção estiveram nesta mesma casa no carnaval de 1988. “oh, yeah”, disse jack. “os grandes poetas são como as marés: engolem os 50
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barcos dos imprudentes e lançam os destroços na praia.” quando voltamos da mercearia, minha filha de 16 anos lia jorge luis borges e meu filho de 13 lia david goodis. nina simone cantava just call me angel of the morning. jack abriu uma lata de cerveja, bebeu um longo gole olhando as folhas da mata e disse a eles: “não deixem que os idiotas calem sua voz. aquela voz que vem lá do fundo de vocês mesmos. contem comigo pro que der e vier”. minha filha sussurrou no meu ouvido: “quem é esse cara?” “jack kerouac”, eu respondi. “uau”, ela balbuciou. meu filho levantou os olhos do livro e gritou: “eddie acabou de acertar um cruzado de direita na cara do leão de chácara”. eu olhei para jack e em silêncio fizemos um trato: “deixe-os viver. ainda é cedo para contar-lhes sobre as mentiras do mundo”. jack jogou pra dentro um bom gole de conhaque e assentiu com a cabeça. a noite estava fria. a lua continuava socando as nuvens com sua cara de gângster mal-humorado.
Poema do livro A Voz do Ventríloquo, recém-lançado pela Edith Editorial (http://visiteedith.com)
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Uma parceria pela geração de trabalho e renda no país.
A Fundação Banco do Brasil e o BNDES se uniram para promover o desenvolvimento sustentável de comunidades rurais e urbanas que vivem em situação de vulnerabilidade econômica, por meio de programas e tecnologias sociais voltados à geração de trabalho e renda. Em três anos, já foram investidos R$ 110 milhões, envolvendo mais de 113 mil famílias no processo de transformação social.
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