Revista do Brasil nº 077

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revolução A pequena Islândia dá lições à Europa

fascinante epopeia Os 50 anos da exemplar luta dos queixadas

nº 77

Pesca artesanal No Ceará, a aliada do turismo comunitário

novembro/2012 www.redebrasilatual.com.br

O povo sabe das coisas

Empresas crescem apostando na inclusão, na autoestima e no otimismo do povão. Mas alguns políticos e veículos custam a aprender

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I SSn 1981-4283

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Renato Meirelles, do Instituto Datapopular: a classe C forma um “país” de 104 milhões de consumidores

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Índice

editorial

10. Política

PSDB: reciclagem e renovação pós-Serra para conter o declínio

14. Entrevista

O potencial da classe C, segundo Renato Meirelles, do Datapopular Paulo Pinto/fernandohaddad13/Flickr/CC

20. Velho Mundo

A Islândia enfrenta a crise com respeito social e democracia

24. Mundo

Uma cidade-prisão na Bolívia e seus ‘habitantes’ sem julgamento

30. História

Queixadas: 50 anos depois, uma greve ainda pulsa na comunidade

34. Futebol

A maioria do eleitorado votou com a cabeça na sua cidade: momento de renovar

36. Atitude

Revitalização da política

A angústia de Breno, preso na Alemanha por incendiar a casa Uma campanha que une moda, cooperativismo e solidariedade

N

38. Cidadania

Otávio Nogueira/Flickr/CC

Agitação inspirada na eleição em SP não quer ter data para acabar

Boteco nas Dunas de Tatajuba, Camocim

44. Viagem

Saboreie o Ceará sem estragar o passeio dos que virão depois

Seções Cartas 4 Mauro Santayana Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: B.Kucinski

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o dia seguinte ao segundo turno das eleições municipais, o julgamento do chamado mensalão desapareceu do noticiário. Não que tenha terminado. O Supremo Tribunal Federal concedeu-se um intervalo de duas semanas para que o relator Joaquim Barbosa pudesse se submeter a um tratamento de saúde anteriormente programado. No momento da interrupção, os magistrados discutiam penas cabíveis aos julgados culpados. Mas o interesse do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, já estava atendido. Em entrevista a um jornal no início de outubro, Gurgel havia dito que seria “positivo” se o julgamento interferisse nas eleições. E, no momento em que o STF deu-se a pausa, o mais importante – as manchetes com as condenações de José Dirceu e José Genoino – já estava disponível. Segundo pesquisa do Datafolha, mensalão teve “nenhuma influência” na decisão do voto para 51% dos entrevistados em São Paulo. “Um pouco de influência” foi a resposta de 14%, e 32% responderam “muita influência”. Talvez os jornais esperassem mais, mas o processo não deixou de ter seu impacto. Mesmo tendo lideranças como Dirceu e Genoino expostas a um linchamento, o PT foi o partido mais votado em todo o país nestas eleições. A legenda conquistou pouco mais de 17 milhões de votos no primeiro turno, superando o PMDB, com 16,5 milhões. No segundo, obteve mais 7 milhões de votos, à frente do PSDB (5,6 milhões) e do PMDB (2 milhões). O PSB de Eduardo Campos ficou satisfeito com seu crescimento, o PSD de Gilberto Kassab, idem, e igualmente o mineiro Aécio Neves. Noves fora a contaminação do debate por temas e personagens alheios ao processo, muitos comemoraram. Entre estes não está José Serra, que ouviu até de gente de seu partido que é hora de renovação. A maioria do eleitorado votou com a cabeça em sua cidade e puniu más administrações. Pode-se atribuir ainda aos maus gestores o aumento dos votos brancos e nulos, assim como o crescimento das abstenções. Entretanto, eles podem dividir com os meios de comunicação esse crédito. Afinal, mais que fiscalizar, discutir problemas ou projetos, o noticiário, salvo exceções, sataniza a política e promove o desinteresse dos cidadãos. Enfim, não faltam recados para as novas lideranças que emergem desse outubro com o desafio de revitalizar a sua cidade e também a política. revista do brasil novembro 2012

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cartas www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Foto de Danilo Ramos Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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novembro 2012 revista do brasil

Temas da cidadania Parabéns pelas brilhantes informações. A Rede Brasil Atual está fazendo a diferença. Participo da comissão executiva da Escola da Cidadania Santo Dias, na zona sul de São Paulo. Todos estão convidados a conhecer nosso trabalho. Na escola da zona sul, Jardim Ângela, atua o padre Jaime Growe. Na unidade da zona leste, o padre Ticão. Em nossos encontros trabalhamos incansavelmente para que mais pessoas da base social possam ter acesso a informações. Discutimos orçamento participativo; plano de metas (saúde, educação, mobilidade, segurança pública, cultura e meio ambiente); democracia representativa e democracia participativa; o papel do Estado; experiências da gestão da subprefeitura; entre outros. Todos os meses distribuímos a Revista do Brasil aos participantes. Celina Simões, São Paulo (SP) Engenhão é Saldanha A cidade belíssima do Rio de Janeiro, já enfrentando tantos problemas, com certeza não merecia essa vergonha, o nome desse cidadão (João Havelange), num estádio maravilhoso como o Engenhão. Quem é esse cidadão? O que ele fez para nosso país, a não ser receber suborno? Hoje vive fora, gastando o dinheiro que ganhou junto com seu ex-genro Ricardo Teixeira. João Saldanha, sim, é merecedor dessa honraria. João Carlos Ramos, Rio de Janeiro (RJ)

Marco Aurélio Mello É inaceitável numa democracia um juiz, com o agravante de ser um integrante da Suprema Corte, defender a mais grave quebra institucional de uma nação, o golpe de 1964. No mesmo discurso faz a defesa de ações baseadas no respeito à Constituição. Não existem instituições no Brasil que promovam o respeito à Constituição. Tanto o Ministério Público como o próprio Supremo Tribunal Federal estão a serviço de meia dúzia de pseudobrasileiros. Luiz Antonio Durante

Nota: A reportagem “Marco Aurélio volta a defender golpe de 1964 – ‘Sem a revolução, o que teríamos?’”, na Rede Brasil Atual, recebeu dezenas de comentários. Leia em http://bit.ly/rba_mello_1964.

É lamentável que pense e propague essa ideia o ministro Marco Aurélio, do STF. Parece mais uma provocação gratuita do que propriamente uma tese. E, se fosse tese, certamente seria movida pelo ódio, não pela inteligência. Ocorre que o ilustre jurista é magistrado na Suprema Corte do país, dos que fazem ação diária à obediência e proteção à Constituição Federal. É trabalho para patriota, para gente decente que sabe que o que tem verdadeiramente importância na vida é o ser humano. Simples assim. Então, quando o ministro Marco Aurélio defende uma “revolução” que não existiu, é motivo de reflexão. Qual será a mensagem que ele está passando com sua atitude? Beto Duarte A casa dele não foi invadida a chute pelos gorilas da ditadura, a minha foi e eu tinha apenas 3 anos de idade. Esse cretino diz que a ditadura me fez bem, portanto espero que os netinhos dele sejam obrigados a passar pela mesma experiência traumática. Fábio Ribeiro

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


Mauro santayana

As eleições e a esquerda

Os ricos, à base da astúcia, da força e da injustiça, ainda detêm poder político a lhes assegurar vantagens. Aos pobres, resta a resistência

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ara quem acompanha a história brasileira contemporânea, as eleições municipais não surpreenderam. Não se registraram hegemonias, mas uma nova geração de políticos emergindo, entre os quais Fernando Haddad, em São Paulo, Gustavo Fruet, em Curitiba, Antonio Carlos Magalhães Neto, em Salvador. Registrando-se o nítido crescimento do PT, é de se notar, ainda, que os outros dois grandes vencedores do pleito – pelos candidatos que patrocinaram –, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o governador Eduardo Campos (PSB-PE), são também homens jovens, líderes em seus estados, e potenciais candidatos à Presidência. Cabe a essa geração devolver aos cidadãos o respeito pela atividade política, perdido nos anos de arbítrio, nos atribulados decênios de retorno ao poder civil, dentro das dificuldades normais de um Estado democrático de direito, e na vergonhosa entrega do patrimônio nacional aos estrangeiros por Fernando Henrique. A política existe para administrar os conflitos, não para provocá-los. É certo que a paixão pelas ideias e a ambição do mando são inerentes aos homens. O conflito básico se dá, como se constata ao longo da História, entre os ricos e os pobres. Os ricos, além dos bens materiais, normalmente detêm o poder político, que lhes assegura a situação de vantagem. Aos pobres, nessa divisão imposta pela astúcia, pela força e pela injustiça, resta a resistência. O jogo da política se faz nesse confronto dialético, que se disfarça em programas partidários e na retórica parlamentar. No Brasil as coisas não são diferentes.

Há, no entanto, que se considerar a situação internacional. O Brasil, desde o descobrimento, é cobiçado pelas potências internacionais. Foi assim que as grandes nações europeias do seu tempo, como franceses e holandeses, quiseram deslocar os portugueses. Depois, com mais astúcia, os ingleses passaram a controlar nossa economia, sem os desgastes de uma ocupação militar. Com o Tratado de Methuen, assinado com Portugal em 1703, a Inglaterra habilmente se assenhoreou do mercado das colônias portuguesas. Nem a Independência brasileira tocou no fundamental. Mediante os empréstimos e as concessões, continuamos a ser uma colônia inglesa. O declínio da Inglaterra e a ascensão dos Estados Unidos provocaram a segunda troca de dominadores. É necessário livrar-se desse domínio e, ao mesmo tempo, impedir que a China venha a revezá-los. A tarefa dessa nova geração é manter e aperfeiçoar o ­sistema democrático, realizar, com o ímpeto de sua vitória, as ­reformas políticas que a nação exige, de forma a reestruturar ­(ou, mesmo, refundar) a República, com a real inde­pendência e ­equilíbrio e­ ntre os três poderes; restaurar a prevalência do ­Estado e a­ mpliar a soberania nacional, por meio da solida­ riedade ­inte­rna; ­dedicar-se com prioridade à educação, à­ ciência­ e à tecno­logia; retomar o controle dos setores estratégicos da ­economia; e construir forças militares suficientemente poderosas. Só assim e­ staremos preparados para dissuadir qualquer intervenção ­estrangeira, aberta ou dissimulada. Para cumprir todo esse programa necessário, os novos dirigentes terão de reanimar a juventude e assegurar a credibilidade no processo político. Mesmo que seja impossível a absoluta limpeza ética na administração pública, os líderes deverão agir de forma radical contra os peculatários, os corruptores e os corruptos. O governo Dilma deu o grande passo na racionalização da economia, ao colocar os bancos em seu devido lugar, mediante a redução dos juros e o alinhamento das instituições financeiras públicas aos projetos nacionais de desenvolvimento. Resta fechar a evasão tributária pela via dos paraísos fiscais. Manter esse programa, como determinação de Estado, é o que convém ao Brasil e aos novos líderes, que, pelo que se pode prever, estarão no centro e na esquerda do espectro político. Se o povo quiser, a direita estará condenada a demorado exílio histórico. revista do brasil novembro 2012

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Danilo Ramos/rba

Ministra visitará favelas com o municipal. “Para acompanhar essas questões (Pinheirinho e incêndio em favelas), vou trazer para São Paulo o Grupo de Trabalho sobre Direito Humano à Moradia.” Desde 2008, incêndios atingiram aproximadamente 600 favelas em São Paulo. O fato levou à formação de uma CPI na Câmara Municipal. bit.ly/rba_favelas

A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, se comprometeu a visitar favelas de São Paulo que tiveram registro de incêndio nos últimos anos. Ela se reuniu em outubro com movimentos sociais ligados à Igreja Católica. Representantes das pastorais disseram à ministra que não conseguem dialogar com o governo estadual nem

Verdade sob suspeita

Goulart

Ocorridas em um intervalo de quatro meses, em agosto e dezembro de 1976, as mortes dos ex-presidentes Juscelino ­Kubitschek e João Goulart serão objeto de investigação da Comissão Nacional da Verdade. Oficialmente, JK foi vítima de acidente automobilístico e Jango sofreu um ataque cardíaco. Mas o fato de ambos terem morrido no período da Operação Condor, feita em conjunto pelas ditaduras de Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, alimentou suspeitas de assassinato. Um representante da Comissão da Verdade da OAB de Minas Gerais acrescenta à lista o caso do jornalista Carlos Lacerda, que morreu no ano seguinte. bit.ly/rba_condor 6

novembro 2012 revista do brasil

fotos reproduçÃo

JK

O novo código O texto do novo Código Florestal foi sancionado com nove vetos pela presidenta Dilma Rousseff. Os ruralistas reagiram mal e disseram que pretendem ir à Justiça, enquanto representantes dos ambientalistas consideram insatisfatórias as mudanças propostas. “Os vetos foram importantes e são uma sinalização de que a sociedade deve continuar se mobilizando e pressionando o governo, mas ainda são insuficientes”, comentou Luiz Zarref, da direção do MST e da Via Campesina. bit.ly/rba_codigo

Marcello Casal Jr/ABr

Maria do Rosário

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Elza Fiúza/ABr

www.redebrasilatual.com.br


Saúde para quem?

Um negócio de US$ 4,3 bilhões, a venda de 90% da Amil para a americana UnitedHealth Group causa preocupação em representantes de usuários de planos de saúde. “A venda sinaliza um caminho que pode ser sem volta. Não é só a possibilidade de outras empresas estrangeiras da saúde virem para cá. É a lógica do crescimento do setor privado que preocupa”, analisa o presidente do Grupo pela Vidda-SP, Mario Scheffer, também conselheiro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e membro do conselho diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “A entrada agressiva no mercado brasileiro de uma das maiores operadores de planos de saúde do mundo tem o objetivo explícito de obter aqui os lucros que não obtém mais no mercado americano. Isso mostra que a gente pode caminhar para a ‘americanização’ da saúde no Brasil, uma amostra do que virou esse mercado nos Estados Unidos.” bit.ly/rba_amil

fotos Mauricio Hashizume/Repórter Brasil

Empresa questiona ‘lista suja’ A rede Marisa, de lojas de roupas, foi suspensa do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, porque a empresa questionou judicialmente a chamada “lista suja” do Ministério do Trabalho e Emprego, que inclui empregadores envolvidos com a prática de trabalho análogo à escravidão. Segundo o Comitê de Gestão e Monitoramento, o comportamento da Marisa “afronta e enseja a violação” dos princípios do pacto, criado em 2005 – a Marisa ingressou em março deste ano. Em 2010, uma fiscalização flagrou prática de trabalho escravo em oficina ligada à empresa, que informou ter tomado várias providências desde aquele ano, para ter “pleno conhecimento sobre as condições de trabalho da mão de obra por eles (fornecedores) empregada”. bit.ly/rba_listasuja

CMN/divulgação

Ricardo Moraes/REUTERS

Sede da Amil, no Rio de Janeiro

No salão A Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT) e a United Auto Workers (UAW), sindicato dos trabalhadores no setor automobilístico norte-americano, marcaram presença no Salão Internacional do Automóvel, em São Paulo. Pela primeira vez, consumidores aficcionados por carros foram apresentados a uma pesquisa que o movimento sindical pretende estender a eventos como esse pelo mundo. Participaram do levantamento empregados da Ford, Scania, Mercedes-Benz e Volkswagen durante as duas semanas do salão, aberto em 24 de outubro. Segundo o secretário-geral e de Relações Internacionais da CNM-CUT, João Cayres, a intenção é estimular nos consumidores o interesse em conhecer o processo produtivo no setor e pôr o público em contato com a realidade de quem faz os veículos. http://bit.ly/rba_cnm

Estrangeiros O número de autorizações de trabalho para estrangeiros no país atingiu 55 mil este ano, até setembro, um crescimento de 5% sobre igual período de 2011. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, 30% do total se concentra na indústria de óleo e gás. De acordo com o responsável pelos dados, o crescimento em algumas modalidades reflete o maior volume de investimentos em setores intensivos em máquinas e equipamentos, além da absorção de tecnologias e conhecimentos específicos. bit.ly/rba_estrangeiro revista do brasil novembro 2012

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TVT

Esperança reciclada a cada dia Francisca e Sérgio

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s cidades crescem e as montanhas de lixo se alastram pelas calçadas e ruas. O duvidoso desenvolvimento se expande verticalmente e o volume de lixo, horizontalmente – embora já permita comparações com prédio de três andares, principalmente nas periferias. Esse drama, porém, pode se tornar menos ameaçador para a população. Para isso tem contribuído muito a reciclagem. Reciclar, rever, refazer, remontar e reaproveitar. Quase nada precisa ser desperdiçado. Ouvindo xingamentos da classe média motorizada, os catadores seguem pelas ruas na contramão, mas com destino certo. As cooperativas de materiais recicláveis formam hoje um conglomerado que merece respeito da população. E o programa Memória e Contexto, da TVT, seguiu o caminho dos recicladores. No final de outubro, o programa reuniu em seu estúdio o presidente da Associação de Catadores do Glicério, Sérgio da Silva Bispo, de São Paulo, a integrante da Co­operativa Refazendo Francisca Lima Araújo, de São Bernardo do Campo, e o músico Cláudio Lacerda – trazido pela 8

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A qualidade das cidades dependerá cada vez mais do heroico trabalho dos catadores de materiais recicláveis. Histórias de pessoas que dedicam sua vida a esse ofício estão no programa ‘Memória e Contexto’ Como sintonizar Canal 48 UHF (18h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br

produção para acrescentar ritmo e leveza ao debate, como sempre acontece com os temas tratados no programa. Durante a conversa, Cláudio também opinou e levou ideias muito particulares sobre o assunto, contribuindo com sua compreensão. Francisca e Sérgio apresentaram as experiências vividas na rua e contaram como as incertezas em relação a uma atividade tão importante quanto negligenciada são enfrentadas com persistência e esperança. Hoje, seu trabalho proporciona uma renda mensal de aproximadamente R$ 1.000. É pouco. Mas cada um tem sua casa e uma vida muito mais digna, em comparação com o cotidiano duro que levavam no passado, e seguem em frente, batalhando para que a sociedade e o poder público compreendam cada vez mais a importância de seu ofício. E acreditam que sua vida ainda tem muito potencial para melhorar. Afinal, segundo os números da Prefeitura de São Paulo, apenas 214 toneladas das 18 mil recolhidas nas ruas são recicladas. Vale a pena conhecer melhor essa história diretamente da boca de quem a conta, em www.tvt.org.br


rádio

Resistir até morrer O “suicídio coletivo” se espalhou pela internet e o mundo descobriu os Guarani-Kaiowá

Wilson Dias/ABr

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oi preciso que o aviso de ­resistência até a morte contra a expulsão de algumas áreas em Mato Grosso do Sul fosse interpretado como aviso de ­ suicídio coletivo dos índios Guarani-Kaiowá e se espalhasse pelas redes ­sociais, repercutindo em todo o mundo. Não fosse assim, talvez o drama enfrentado por essa população não tivesse chamado a atenção da sociedade, tampouco levado as autoridades brasileiras a se ­manifestar. No ­último dia 30, a Justiça ­Federal no estado suspendeu a liminar que determinava a retirada de 170 índios da fazenda Cambará, em Iguatemi. No entanto, limitou o território ocupado pelos indígenas a apenas um dos 760 hectares da propriedade até que a Fundação Nacional do Índio (Funai) demarque uma reserva para a comunidade Pyelito Kue. A decisão judicial está longe de resolver a questão. Distantes de suas terras, os indígenas passam fome – ficam dias e dias com apenas um tererê (bebida típica) por dia –, adoecem e muitos se suicidam. Nos últimos 20 anos, quase mil deles, a maioria jovens, tiraram a própria vida. “O plano do país é transformar esses indígenas em trabalhadores para as piores tarefas, com as remunerações mais baixas. Em troca da terra negada, recebem cestas básicas de má qualidade, que geralmente chegam atrasadas”, disse em entrevista à Rádio Brasil Atual o antropólogo e jornalista Spensy Pimentel, estudioso desse grupo indígena. Segundo ele, a situação é mais grave em Mato Grosso do Sul, que tem o governo, deputados e prefeitos, em sua am-

Protesto simboliza os mortos da etnia ameaçada

pla maioria, controlados por fazendeiros que cobiçam e tiram dos índios suas terras. “Falta o país perceber a importância e a gravidade da situação e priorizá-la”, afirmou. “Para o índio, a terra não tem o mesmo valor econômico que tem para os fazendeiros. Suas terras são o seu modo de ser, de cultivar, de viver. E isso está sendo negado a eles.” Ouça a entrevista completa no site da rádio. O atalho é: bit.ly/rba_spensy

Morte coletiva

O assessor de movimentos sociais e escritor Frei Betto, colunista da emissora, destacou a urgência de o governo bra-

Sintonize 93,3 FM Litoral paulista 98,9 FM Grande São Paulo 102,7 FM Noroeste paulista Na internet www.redebrasilatual.com.br/radio

sileiro demarcar as terras dos Guarani-Kaiowá, o que já deveria ter sido feito em 1993. “De nada adianta o governo assinar documentos em prol dos direitos humanos, do desenvolvimento sustentável, se isso não se traduzir em gestos concretos para preservar os direitos dos povos indígenas, que pela sua natureza são os que mais preservam o meio ambiente.” Frei Betto lembrou que os Guarani-Kaiowá falam em morte coletiva, que é diferente de suicídio coletivo no con­texto da disputa pela terra. “O suicídio é um recurso frequente para resistir a ameaças. Eles preferem morrer a se degradar. Se os pistoleiros os tirarem, eles vão resistir”, afirmou. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de 2003 a 2011 foram assassinados 503 índios. Mais da metade (279) são da etnia Guarani-Kaiowá. Até a chegada dos portugueses, havia 5 milhões de indígenas, que dominavam centenas de idiomas. Hoje são 817 mil, dos quais 480 mil aldeados divididos em 227 povos, ocupando 3% do território nacional. Ouça o comentário de Frei Betto no site: bit.ly/betto_kaiowa. revista do brasil novembro 2012

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política

José Serra fecha uma década perdida dizendo-se revigorado. Seus próprios correligionários, porém, admitem que o discurso do PSDB envelheceu e o partido precisa reinventar-se

Derrota revig O

fim de semana do segundo turno da eleição na cidade de São Paulo não começou bem para o candidato José Serra. No sábado, ele foi dormir com todas as pesquisas indicando sua derrota para o petista de primeira viagem, Fernando Haddad. E acordou no domingo com os próprios correligionários jogando a toalha. Não foi uma resignação ordinária, típica de quem

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aceita que, no fim, alguém teria mesmo de perder a boa disputa. Com metade do dia de votação ainda em andamento, o mais ilustre integrante da primeira geração tucana, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, já dava entrevistas em que admitia a irreversível vitória do adversário e enviava recados. FHC afirmou que a vitória de Haddad era também do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o resultado (ain-

da o das pesquisas, e não das urnas), refletia uma mudança na geração política atual. “Há um momento em que as gerações mudam.” Antes de votar no Colégio Sion, no bairro de Higienópolis, o ex-presidente declarou que o PSDB precisa prosseguir sua reestruturação e manter seu papel no cenário nacional. E não deixou de queixar-se de ter sido “escondido” da campanha do correligionário. “Sempre estive presente e sempre mani-


política

Todas as forças políticas de expressão comemoram o resultado destas eleições municipais, especialmente no segundo turno, e com muita razão. A oposição recuperou os espaços que perdera, sobretudo em Manaus e em Salvador. O PSB conquistou posições importantes. O PT ganhou em São Paulo e em vários outros municípios expressivos

portantes. O PT ganhou em São Paulo e em vários outros municípios relevantes”, afirmou. Nome dado como certo na disputa presidencial de 2014, como Dilma Rousseff e Marina Silva, o neto de Tancredo fez coro ao ambiente de renovação: “As eleições trouxeram ao cenário político nacional uma geração mais jovem, preparada para conduzir a comunidade nacional em um tempo de fortes desafios de natureza econômica e social. Há também outra lição: onde os candidatos favoritos, ou seja, do PT, se conduziram de forma mais raivosa, perderam o pleito. Esta é outra lição: os eleitores estão escolhendo seus candidatos entre os homens mais sensatos e mais serenos, capazes de administrar sem perseguições e sem rancores”. Embora tenha enfiado o PT no meio da frase, a referência aos “mais serenos, capazes de administrar sem perseguições e sem rancores” permite aos bons entendedores depreender a quem o recado teria sido mineiramente transmitido. Até Arthur Virgílio, um dos caciques tucanos que mais infernizaram o governo Lula na década passada – a ponto de não se reeleger para o Senado em 2010 –, afirmou que o discurso dos tucanos “envelheceu” e o PSDB terá de mudar para enfrentar 2014. Antonio Cruz/abr

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

Aécio Neves

igorante festo minhas opiniões”, disse. A presença do sociólogo na campanha havia terminado discreta como começou: apareceu apenas uma vez na propaganda eleitoral do segundo turno; e no dia mais importante do início, a convenção que definiu a candidatura de seu ex-ministro da Saúde, não deu sequer as caras. Ao final do dia, declarações de outros integrantes do PSDB só iriam “seguir o voto do relator”. Um deles, o senador mi-

neiro Aécio Neves, não chegou a mencionar o nome de Serra no depoimento concedido à Rede Brasil Atual. E não precisou citá-lo para dar a entender que já o considera pouco expressivo: “Todas as forças políticas de expressão comemoram o resultado destas eleições municipais, especialmente no segundo turno, e com muita razão. A oposição recuperou os espaços que perdera, sobretudo em Manaus e em Salvador. O PSB conquistou posições im-

Década perdida

A derrota de José Serra em São Paulo é o fecho de uma década na qual o tucano se transformou em sinônimo de rejeição e símbolo de uma conduta hostil ao debate político. Ele termina o ano político com perspectiva estreita dentro do próprio partido, no qual acumulou tantos desafetos quanto fora dele. Aos 70 anos, com duas derrotas pesadas em sequência, o tucano precisará fazer o que tem demonstrado dificuldade em realizar caso queira ressurgir: reinventar-se. Para o cientista político Humberto Dantas, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o PSDB ganhou um problema ao não apostar na renovação, e Serra, ao se lançar a uma disputa tão complicada. “A questão é que não existe espaço para ele dentro do PSDB. Salvo qualquer problema, de ordem muito expressiva, nada indica que Geraldo Alrevista do brasil

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ckmin não será candidato à reeleição em 2014. A lógica de Serra concorrer a um eventual governo do estado faria sentido apenas em 2018.” A década perdida teve início em 2002, quando saiu derrotado da disputa ao Palácio do Planalto para Luiz Inácio Lula da Silva. Os anos seguintes, a boa avaliação do governo petista, de um lado, e a obsessão do tucano por Brasília, de outro, acabaram por selar a sorte do tucano, derrotado em 2010 na corrida pela Presidência da República após mais um mandato inconcluso. Serra renunciou ao Palácio dos Bandeirantes, para onde havia migrado depois de apenas 15 meses de mandato na prefeitura da capital. Ironicamente, uma das principais promessas de Serra na recente disputa foi de que cumpriria o mandato, “quatro anos, todos os dias”, uma proposta pequena para o tamanho da cidade e de seus problemas. Quando decidiu se candidatar, barrando o processo de prévias que poderia levar o PSDB paulistano a uma renovação, Serra já poderia pressentir a derrota. Conhecido por 100% do eleitorado, tinha alta taxa de rejeição, assim como o prefeito Gilberto Kassab (PSD). Nas prévias, teve 52,1% dos votos dos filiados, uma margem apertada para um confronto com colegas de menor expressão no partido. Em entrevista à RBA em maio, o diretor do instituto Vox Populi, Marcos Coimbra, afirmou que não havia coelho na cartola para o tucano. “O fato é que Serra está começando a candidatura a prefeito nas piores condições da vida dele. Ele nunca teve esse conjunto de elementos tão desfavoráveis, com um conhecimento tão grande, uma rejeição tão alta e uma intenção de votos tão baixa.” Muito dessa rejeição pode ter sido acumulada junto com a mutação do tom ameno na derrota em 2002 para a beligerância em 2010, quando sofreu o segundo revés, dessa vez para Dilma. “Ao vencedor desejo boa sorte na condução dos destinos do Brasil”, disse em 27 de outubro de 2002 a Lula. Oito anos depois, a escolha das palavras já era outra: “E, para os que nos imaginam derrotados, quero dizer: nós apenas estamos começando uma luta de verdade. Nós vamos dar a nossa con12

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tribuição ao país em defesa da pátria, da liberdade, da democracia, do direito que todos têm de falar e ser ouvidos”. Algo semelhante ao pronunciamento feito logo depois de admitir a derrota para Fernando Haddad, cujo nome não mencionou: “Chego ao final dessa campanha com minha energia, minhas ideias e com essa disposição maiores do que quando a campanha começou. As urnas falaram, e as urnas são soberanas”. Mesmo tentando dar à tática moralista algum sentido lógico, ficou difícil para Serra dissociar-se de um tipo de obscurantismo que parecia envelhecido na política. Em pleno século 21, o principal nome do ninho tucano, e alguns operadores anônimos de sua campanha, introduziram no debate eleitoral um método anacrônico.

Os vencedores

O analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), não tem dúvida de que o resultado das eleições pavimentou ainda mais o caminho para a reeleição de Dilma em 2014. “Os partidos da base aliada foram vitoriosos. E a oposição decresceu em número de votos e prefeituras”, afirmou, incluindo PT, PSB, PCdoB e PDT no que chama de “núcleo estratégico” do governo. Para o vereador paulistano Eliseu Gabriel, o PSB, ao qual é filiado, teve o desempenho mais importante entre todos os partidos. “No primeiro turno, vencemos em centenas de cidades, mas especialmente em cidades de grande porte, de grande densidade populacional, como Belo Horizonte. E no segundo ganhamos em quase todas onde disputamos. O PSB se firma em nível nacional em condições de caminhar para 2014 com grandes perspectivas de poder.” Os dirigentes do PSB – em especial seu presidente, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos – têm reafirmado que continuarão com Dilma e o PT na campanha presidencial, daqui a dois anos. Já o PT conquistou 635 prefeituras, considerados os dois turnos, e aumentou em 14% o número de administra-

Na avaliação do presidente do PT, Rui Falcão, o resultado das urnas consolida o projeto iniciado em 2002, com a vitória de Lula, reforçado em 2010, com a eleição de Dilma, e agora com a conquista do Executivo paulistano. Com isso, os petistas se voltam na direção da sede do governo estadual paulista, sob comando dos tucanos desde 1995

Paulo Pinto/fernandohaddad13/Flickr/CC

política

ções municipais em relação a 2008. Ficou com quatro capitais, incluindo a maior do país­. No segundo turno, disputou seis e ganhou três (São Paulo, João Pessoa e Rio Branco) – justamente nas disputas diretas com o PSDB. Na avaliação do presidente do partido, Rui Falcão, o resultado das urnas consolida o projeto iniciado em 2002, com a vitória de Lula, reforçado em 2010, com a eleição de Dilma, e agora com a conquista do Executivo paulistano. Com isso, os petistas se voltam como nunca


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na direção do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual paulista, e sob comando dos tucanos desde 1995. Poder demais? A professora Maria Vic­ to­ria Benevides, da Universidade de São Paulo (USP), considera o pensamento absurdo. “Mesmo nesta campanha, acompanhei no meio universitário pessoas que se identificam com a esquerda vendo um ‘perigo para a democracia’ o PT ficar muito forte, tendo a Presidência da República e a prefeitura de maior

orçamento do país. Esse argumento é ridículo. E no tempo de Fernando Henrique? Esse argumento nunca foi usado para defender a democracia.” Mas, em sua opinião, não pode haver uma disputa prematura dentro do próprio partido. O que a professora defende para a principal metrópole brasileira pode servir de inspiração aos demais eleitos: “A brutal desigualdade que existe em São Paulo está na raiz dos problemas urbanos e sociais de que todos reclamam, mas têm enorme

dificuldade de enfrentá-los”. Essa é uma questão que diz respeito não só aos governantes, mas aos cidadãos realmente interessados em transformações. Este texto resume um conjunto de reportagens da Rede Brasil Atual na cobertura das eleições, com Eduardo Maretti, Evelyn Pedrozo, Frédi Vasconcelos, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Lucas Esteves, Maurício Thuswohl, Paulo Donizetti de Souza, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes, Tadeu Breda, Túlio Muniz e Vitor Nuzzi revista do brasil novembro 2012

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A nossa classe média são 104 milhões de pessoas, que movimentam R$ 1 trilhão por ano. Se fosse um país, seria a 11ª população do mundo e o 18º em potencial de consumo. Ou seja, estaria no G-20 do consumo mundial 14

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A classe C d


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As empresas aprendem a surfar no crescimento vindo da inclusão social. O publicitário Renato Meirelles, do Instituto Datapopular, faz dessa descoberta – entender os hábitos e a índole do povão – um grande negócio Por Paulo Donizetti de Souza

descobriu o Brasil, e vice-versa E nquanto a reportagem se dirige ao escritório do Instituto Datapopular, na região da Avenida Paulista, onde entrevistará o publicitário Renato Meirelles, nota na saída do metrô a propaganda de uma escola de idiomas. Diz o painel: “O mundo quer falar com o Brasil. Aprenda inglês”. No site da escola, um filmete musical expandirá o raciocínio: “Os grandes estão chegando/ O Brasil é a bola da vez/ E você, are you ready?/ O que está esperando?/ Venha aprender inglês...” Pensando em inglês, vem à memória o comercial do uísque que diz “Keep walking, Brazil”, depois de mostrar a montanha que circunda a Baía de Guanabara se mover, estremecer o Rio de Janeiro, se levantar e caminhar, seguida dos dizeres “O gigante não está mais adormecido”. Lembrarei ao publicitário outros reclames, como o do fabricante de automóvel que ousa dizer ao espectador que “esta é a melhor fase de sua vida”; ou do grande banco com o jingle “ser Brazuca é estar na moral, ganhar o seu dindin num trampo legal, na praia ou na cidade, no morro ou na perifa...” E perguntarei o que eles têm em comum. Ele dirá: “O mercado está apostando na autoestima em alta dos brasileiros”.

Exato. Se uma dessas propagandas fosse de empresa pública ou órgão do governo, algum colunista de jornal ou analista da TV diria que é ufanismo barato pago com dinheiro público. Mas, como é o mercado que está dizendo, talvez seja melhor prestar atenção e não brigar com a realidade. Para entrar na cabeça do público-alvo, a publicidade precisa provocar identificação, empatia. Ao apostar no momento brasileiro, algumas empresas não intuem nem chutam. Elas investigam, pesquisam, procuram saber a que pensamentos a cabeça da massa está aberta. Esse é um dos trabalhos do Datapopular: investigar a quantas andam os pensamentos do povão, aquela camada menos endinheirada da população, as chamadas classes C e D, que vivem com renda média per capita abaixo de R$ 1.000, compõem um universo de 104 milhões de pessoas, têm potencial anual de consumo de R$ 1 trilhão e provocam mal-estar entre o núcleo de jornalismo de uma emissora e seu núcleo de novelas, já que esse povão se identifica mais com as meras coincidências entre a ficção e a realidade do que com as notícias do horário nobre. Trata-se de uma “nação” que ganhou 35 milhões de pessoas nos últimos dez anos, passando de 35% da população em 2002 para 53% em 2012.

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entrevista

Para entender esse público, Renato Meirelles já fez muitas imersões de campo – e já levou clientes para isso –, vivendo por uma semana ou um mês com famílias em comunidades pobres para decifrar seus sentimentos, porque existe, segundo ele, uma grande diferença entre a teoria da pesquisa de opinião e a prática da vida cotidiana. Não se trata de obra social, tampouco romântica, mas de business: o Datapopular ganha dinheiro, e não é pouco, dando consultoria a empresas. Orienta executivos a desenvolver produtos que cairão no gosto desse consumidor, que está louco para comprar um computador que saiba usar ou para encontrar com facilidade a passagem para a primeira viagem de avião. E que boa parte dos tais formadores de opinião ainda não descobriu.

Durante anos se acreditou que o classe C queria ser classe A. Não é verdade. Sua aspiração está mais próxima do sucesso do vizinho que do ricaço, que para ele é perdulário, joga dinheiro fora e não tem valores familiares

Como você foi parar nesse negócio de investigar a cabeça da população mais pobre?

O Datapopular surgiu em 2001, uma ideia dos meus sócios. Eles viram um relatório do (banco ­norte-americano) Goldman Sachs, que dizia que o futuro do Brasil estava na Rússia, na Índia e na China, e que ninguém estudava esse mercado. Então, o Datapopular nasceu dentro de uma agência de propaganda. Um professor meu entrou nesse primeiro time do Datapopular e me contratou como estagiário. Nesses pouco mais de dez anos fomos crescendo e viramos uma empresa de pesquisa de mercado e também de consultoria para desenvolver estra­tégias de negócios de comunicação para a classe C e D. Tivemos algumas fases de atuação. Num primeiro momento descobrimos que as pessoas não conheciam esse público. Depois apresentamos esse público. Levamos executivos para morar em comunidades. Eu morei várias vezes em favelas, na Cohab, em casas de pessoas. Como assim?

Morando, ué. A gente seleciona uma comu­ nidade, procura uma família que tope receber alguém, e eu passo com ela uma semana, um mês, acor­dando, dormindo, conhecendo. Vivendo com as pessoas vamos entendendo a diferença entre discurso e prática. Porque as metodologias tradi­ cionais de pesquisas são ótimas para identificar o que as pessoas dizem que fazem, no máximo o que elas pensam que fazem. E o que elas estão pensando na exata hora em você faz a pergunta...

Isso. Mas quando mora com as pessoas você descobre o que elas realmente fazem. Então, a pesquisa tem como mérito construir com essas pessoas uma relação de confiança, a ponto de elas poderem se 16

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abrir, e a gente começar a identificar a diferença entre discurso e prática no cotidiano. O segundo momento do Datapopular foi quando as empresas disseram “ok, já sabemos tudo isso, e agora, como a gente faz pra desenvolver estratégias de negócios?” E aí ajudamos essas empresas a desenvolver novos produtos. Ajudamos, por exemplo, a criar o PC da Família, para a Positivo Informática, que durante anos foi líder no varejo. Ajudamos as empresas a desenvolver novos canais de venda. Ajudamos a Gol a abrir lojas próprias para vender passagem aérea – no metrô, no Largo 13... E ajudamos na comunicação dessas empresas, testando e dando insights para quem, de alguma forma, quer conquistar as classes C e D. Fizemos de tudo, desde testes de comunicação até workshops em emissoras de televisão, pra ver conteúdo tanto de jornalismo como da área de entretenimento. Um monte de palestras para equipes dentro das empresas, sempre com o foco – e acho que é essa a missão do Datapopular – de diminuir a distância que separa o mundo corporativo do universo desse novo consumidor que surgiu no Brasil nos últimos dez anos. O que é a classe média?

Quando se fala de classe C, a gente utiliza o critério desenvolvido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Você pega a renda de todo mundo da família, soma e divide pelo número de pessoas. Por exemplo, em uma família com dois filhos em que o pai ganha R$ 1.000 e mãe ganha R$ 1.000, a renda per capita é R$ 500. Uma família é considerada de classe média quando sua renda está entre R$ 291 e R$ 1.019 por pessoa. No mundo inteiro, 54% da população tem renda per capita menor que R$ 291. E só 18% da população mundial tem renda média acima dos R$ 1.019 por integrante da família, o teto da classe média. Ou seja, quando você compara com o mundo, a nossa classe média é alta. São 104 milhões de pessoas, ou 53% da população brasileira, que movimentam R$ 1 trilhão por ano. Essa classe média brasileira seria o 11º país do mundo do ponto de vista da população e o 18º em potencial de consumo. Ou seja, estaria no G-20 do consumo mundial. Algumas empresas têm notado isso e tratado com carinho, digamos assim, esse momento de autoestima elevada detectado no Brasil. Algumas propagandas tentam associar seu produto a esse sentimento e até a novela das 9 explora um arsenal de personagens identificados com o imaginário popular.


Você disse um negócio interessante. O que mudou mesmo, além da melhoria da renda, foi a autoestima dos brasileiros. Estão vencendo na vida e estão otimistas, acham que vão continuar melhorando. Então, é um grande desafio dialogar com essa autoestima. Quando ela cresce, essa ideia da postura aspiracional muda. Durante anos se acreditou que a aspiração do cara da classe C é parecer ser o cara da classe A, e isso não é verdade. O cara da classe C acha que o cara da classe A é perdulário, joga dinheiro fora, não tem valores familiares. Ele não entende por que, na hora do almoço, a madame cheia de grana come só um franguinho com uma saladinha. O aspiracional está muito mais próximo da vizinha que deu certo do que de um grande executivo, um grande empresário. E a melhora do otimismo e da autoestima do brasileiro fez com que ele passasse a se olhar e a se valorizar mais. As empresas que querem conquistar esse público têm o desafio de se apresentar como parceiras da melhora de qualidade de vida desses 104 milhões de brasileiros. Essa classe emergente já usa computador, internet, redes sociais com os mesmos recursos que uma pessoa mais habituada, mais bem informada? As pessoas desfrutam o potencial da internet para se formar e se informar, ou predomina o entretenimento, a diversão?

Eu não consigo hierarquizar o que interfere ou influencia mais ou menos. Mas os produtos não jornalísticos efetivamente interferem. Quem foi que disse que hard news é a única forma de as ­pessoas se informarem? Já pensou o quanto uma discussão sobre câncer no enredo de uma ­novela leva essa discussão para a família? Ou quanto um debate em um programa feminino sobre a Lei ­Maria da Penha pode encorajar mulheres a ­denunciar o marido por uma agressão? Ou qual foi a contribuição dos programas de entrete­nimento, depois do surgimento da aids, para informar ­toda uma geração de jovens sobre se proteger e só ­transar com camisinha? Então, é muito anos 1960, anos 1970, essa discussão de entre­tenimento ­versus jornalismo. Informação boa é aquela que o ­público entende. Essa discussão é tão velha ­quanto a se existe imparcialidade na mídia. E não existe?

( ) Em nenhuma. Conteúdo jornalístico, assim como todo e qualquer conteúdo, é um produto editado. E, se tem edição, tem juízo de valor. Se tem edição, tem ideologia. Não tem saída. Isso não quer dizer que é impossível ter um jornalismo que ouça o outro lado, que não devem ser louváveis os esforços dos manuais de redação de sempre ouvir o contraditório, acho que isso tem de ser incentivado. Agora, achar que um processo de edição não passa por um filtro de valores e de opiniões de quem está editando é no mínimo ingenuidade.

Depende muito do que você considera “se formar”, “se informar culturalmente”, e “se divertir”. A linha entre a informação e o entretenimento é tênue. Oito de cada dez internautas são das classes C, D ou E, e o que a gente tem visto e aprendido é que a internet é uma forma não só de ver o mundo como também de se mostrar para o mundo, se fazer presente. Se a televisão era uma janela para o mundo, a internet é uma vitrine. A pessoa expõe seu rosto, mostra seus gostos, suas origens, e inclusive confere a veracidade das informações que recebe. Durante anos, só a TV aberta, com uma comunicação unidirecional, decidia o que é certo e o que é errado, o que é verdade ou mentira, o que é e o que não é notícia. Com a internet isso muda tudo. Rapidamente se tem acesso a dezenas de versões para determinada edição. Não existe mais espaço para uma única versão. Então a internet bota aí um novo desafio a qualquer força que pretenda trabalhar com uma única versão dos fatos: isso não é mais possível.

É verdade. Mas também é verdade que os grandes veículos são muito hábeis em lidar com as coisas. Porque, ao mesmo tempo que um determinado conteúdo jornalístico conduz para o lado A ou lado B, eles vêm com uma outra pauta, com notícias positivas sobre coisas que estão acontecendo, e não acho que isso seja bondade, mas uma questão de sobrevivência. O produto jornalístico também precisa ter qualidade, porque se não for bom não vai vender...

Você acha que os produtos não jornalísticos da indústria da comunicação concorrem com os produtos jornalísticos na formação de valores, na formação de uma base cultural. A novela é mais influente do que o telejornal no quesito “formador de opinião”?

O sentimento de autoestima em alta detectado nos últimos anos tem contribuído, em momentos eleitorais como o que acabamos de passar, para que os candidatos mais mal-humorados, agressivos e pouco propositivos não prosperem?

O consumidor de informação tem percebido isso, não? Afinal, há mais de uma década os principais veículos de comunicação pendem para um lado e os resultados das eleições, para outro.

fotos gerardo lazzari

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O que mudou mesmo, além da melhoria da renda, foi a autoestima dos brasileiros. Eles estão vencendo e estão otimistas, acham que vão continuar melhorando. A pessoa otimista e com boa autoestima se valoriza mais

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Quando uma pessoa consegue emprego formal ela consegue pensar além, fazer planos, olhar pra frente. Tem uma ambição positiva. A segurança econômica para o país é um ativo, faz sua economia crescer

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O que a gente tem observado é que o voto no ­Brasil não é um voto ideológico. As pessoas não têm c­ lara a noção do que é esquerda e direita, não ­estão m ­ uito preocupadas com isso. O voto no Brasil é p­ ra­gmático. As pessoas melhoram de vida, querem continuar ­melhorando. Votam em candidatos que se pro­ ponham a fazer com que sigam acreditando que a vida vai melhorar. E, mais do que isso, que ­conseguem trazer a discussão política para a vida real. Se tem um mérito do ex-presidente Lula é a capacidade de explicar como poucos os temas de economia, de política nacional ou externa de forma que as pessoas entendam. Ele tem uma forma muito direta para que a população entenda o que ele diz. É por isso que tem um dos maiores índices de aprovação da história. Claro, não é só isso, e as pessoas não são ingênuas. Ele poderia ser o melhor comunicador do mundo e não ter nem 10% dessa aprovação se a vida das pessoas não tivesse efetivamente melhorado nos últimos dez anos. Mas isso se soma à capacidade dele de se fazer entender. Negar o avanço que o Brasil teve nos últimos dez anos é tão improdutivo quanto negar a importância do Plano Real para a história econômica do país. O Brasil melhorou quando teve o controle da inflação. E melhorou porque distribuiu renda. Há responsáveis por esses dois legados, e isso tem de ser dito. A população mais pobre tem propensão maior a levar em conta o interesse coletivo, ter uma visão mais solidária de mundo, ou tende mais ao individualismo, à competitividade?

Quanto menor a renda, mais as comunidades funcionam na lógica da reciprocidade, do eu te ajudo e você me ajuda. Nas classes C e D há mais amigos, os vizinhos se conhecem mais, emprestam o cartão de crédito, cuidam mais do filho do outro, mas não é só por uma questão de solidariedade de classe ou porque são bacanas. É porque precisam mais um do outro, eles descobrem que se ajudando superam carências e vão mais longe. A vida real mostra a importância de você ter mais amigos, de ser solidário, de ter jogo de cintura, e até de saber perdoar e ser mais tolerante. Por exemplo, qualquer pesquisa revela que a elite tende mais a aceitar a união civil de pessoas do mesmo sexo do que as classes C e D. Mas, na prática, os mais pobres aceitam mais. Eles crescem aprendendo a conviver e aceitar as diferenças. E não por uma questão ideológica ou pela formação mais ou menos liberal. Objetivamente, é questão de sobrevivência. Outro exemplo: a elite tende a ser mais a favor da descriminalização do aborto do que as mulheres das classes C e D, que na prática aceitam mais uma mulher que teve de interromper uma gravidez. E sabem do risco, porque ela não vai

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para uma clínica particular, gastar R$ 10 mil pra fazer um aborto. Vai recorrer a um meio alternativo. Então, a prática leva a um comportamento mais solidário com os “diferentes” do que na elite. A segurança econômica é a base da emancipação de um indivíduo? Sem meios de obter a própria renda um cidadão não vai se emancipar culturalmente, não vai satisfazer suas necessidades e desejos, enfim, sentir-se livre?

Uma pessoa sem grana é dependente. Então, quando consegue um emprego com carteira assinada ou aprende a tocar o próprio negócio, tem a chance de pensar além. Quanto menos ela tem de matar um leão por dia para sobreviver, mais consegue fazer planos, olhar pra frente. Consegue ter a ambição de que sua família se desenvolva junto com ela, que sua comunidade se desenvolva. Uma ambição positiva. Então, a segurança do crescimento do emprego formal cria um ambiente que possibilita que mais brasileiros possam pensar adiante. A segurança econômica, mais que uma sensação, é algo efetivo, e para o país é um ativo, é o que faz sua economia crescer. Uma pessoa empregada tem FGTS, 13º, férias com adicional de um terço para poder desejar uma viagem, terá seguro-desemprego. Então, objetivamente, temos um ambiente em que mais indivíduos estão mais seguros de que podem experimentar um desenvolvimento econômico e também pessoal.

Essa pessoa que saiu da chamada linha de pobreza e passa a ser incluída no mercado consumidor não é a que vai comprar jet ski, mas vai experimentar o acesso a um novo hábito alimentar, a roupas, a equipamentos domésticos. Ela passa a ter também maior necessidade de conhecimento, de informação?

A segurança financeira leva as pessoas a estudar mais, a empreender mais, a viajar mais e ampliar seu horizonte cultural. O Brasil começou a mudar com a criação de mais empregos e consequentemente com o aumento da renda, mas é uma mudança nos níveis educacionais que vai levar o país adiante. Temos ­­3 mi­l hões d ­ e estudantes universitários a mais do que há uma década. Uma geração de universitários sendo formada, e cada ano a mais de estudo na vida da pessoa terá impacto positivo no salário e na renda. Além disso, você tem um círculo virtuoso. Pessoas mais escolarizadas também têm filhos mais escolarizados, e portanto tendem a cobrar maior qualidade do ensino que é oferecido a seus filhos. A melhora do ensino leva também à formação de um brasileiro que enxerga a educação como um passaporte para a melhora de sua qualidade de vida.


Lalo leal

Imprensa em crise

A vida dos “donos da mídia” não está fácil. E não falta liberdade, mas credibilidade. O mau jornalismo é cada vez mais notado e desprezado

O

próximo dia 7 é o dia “D” na Argentina: “D” de dezembro, de diversidade e de democracia. É o que diz um anúncio veiculado pela TV pública durante os jogos de futebol para lembrar a data da entrada em vigor da nova Lei de Meios Audiovisuais, aprovada há três anos pelo Congresso. Lembra também que apenas um grupo de comunicação insiste em não acatar a lei, aquele que reúne o conglomerado de veículos encabeçado pelo jornal El Clarín. São 240 TVs a cabo, quatro TVs abertas, nove estações de rádio AM e uma de FM. A nova lei impõe limites: uma empresa pode ser proprietária de, no máximo, 24 licenças para TV a cabo e dez para emissoras abertas de TV e rádio (AM e FM). O objetivo é ampliar a liberdade de expressão dando voz a setores da sociedade emudecidos pela força do monopólio. Pela lei, as licenças de rádio e TV serão destinadas em partes iguais a emissoras estatais, comerciais e de “gestão privada sem fins lucrativos”, algo parecido com as nossas comunitárias. Ao se negar a cumpri-la, o grupo Clarín afronta o Executivo, autor do projeto; o Legislativo, que o debateu e aprovou; e o Judiciário, que, ao considerar constitucional a nova lei, deve zelar pelo seu cumprimento. Além do combate interno, o grupo busca apoio internacional, como ficou demonstrado na recente reunião da Sociedade Interamericana de Prensa (SIP), realizada em São Paulo. No encontro, o caso argentino foi apresentado como atentado à liberdade de imprensa, servindo de mote para condenações de outros governos populares, como

os da Venezuela, Bolívia e Equador. O curioso é que nesses países a mídia comercial é majoritariamente oposicionista e atua com total liberdade. Basta ver as manchetes e os destaques diários de jornais como o El Universal, de Caracas, o El Universo, de Guayaquil, o El Diário, de La Paz, o próprio El Clarín, de Buenos Aires, e grande parte dos programas de TV. Mas a vida para seus proprietários não está mesmo fácil, e não é por causa dos governos. A razão está na crescente perda de credibilidade de suas publicações, cada vez mais descoladas dos avanços sociais inegáveis que ocorrem nesses países. A população, ao votar, leva muito mais em conta as melhoras que sente no dia a dia do que as imprecações estampadas nas páginas de jornais e revistas. Ao lado, é claro, do apoio de novas formas de comunicação capazes de mostrar o outro lado da moeda, e não só a internet. Diante do cerco imposto pela mídia comercial, governos populares passaram a impulsionar meios alternativos. Foi a forma encontrada para respeitar a diversidade de opiniões e dialogar com a população sem filtros conservadores. Reside aí, ao que tudo indica, o maior desespero dos empresários. Sua verdade, antes única, passou a ser confrontada com outras ideias e informações, em alguns países. Trata-se de um abalo. Em todos os encontros empresariais de comunicação sobram interrogações sobre o futuro dos veículos impressos. Aparecem da noite para o dia gurus pagos a preço de ouro para indicar novos caminhos. Falam em “paywall”, “muro de cobrança”, em que o internauta acessa os conteúdos até um determinado limite de matérias. Depois disso, se quiser seguir, tem de pagar. A maioria mantém ainda edições impressas e virtuais simultâneas, enquanto outros tomam decisões mais radicais, como fez há pouco a tradicional revista Newsweek, ficando apenas na internet. De imediato esse parece ser o maior desafio da mídia tradicional. Mas a médio prazo a questão do conteúdo será o problema mais grave, não importando o suporte a ser usado, seja papel, seja tela. À medida que os níveis de renda e de escolaridade das populações latino-americanas crescem, suas exigências tornam-se maiores. Partidarizações em campanhas eleitorais disfarçadas de “jornalismo independente” serão mais notadas e refutadas. Assim como erros de informação e pautas descartáveis, tão comuns hoje, serão desprezados. Como já começa a acontecer em alguns de nossos vizinhos, para desespero dos “donos da mídia”. revista do brasil novembro 2012

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velho mundo

Em 2008, a Islândia foi o primeiro país a afundar com a crise mundial. Agora, ensina à Europa como sair dela: ampliando a democracia e o respeito aos direitos da população e ao patrimônio nacional Por Flávio Aguiar

Uma revolução no

círculo polar “N ão houve propriamente uma revolução”, disse a deputada social-democrata Sigrídur Ingadóttir, quando a entrevistei em seu escritório, em Reykjavik, na Islândia. “Houve, sim”, retruquei. Não daquelas tradicionais, com combates, fugas, tomadas de cidades etc. Foi uma revolução pacata. Mas houve. Uma pequena revolução no círculo ártico. Em 2008, a Islândia foi o primeiro país europeu a submergir na crise financeira mundial, a partir da quebra do Lehman Brothers nos Estados Unidos. A

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crise islandesa não teve precedentes na história. Da noite para o dia seu sistema bancário faliu por inteiro, e arrastou o governo e o país. Da noite para o dia? “Nem tanto”, afirmou o professor da School of Business Vilhjálmur Bjarnasson, em entrevista à Revista do Brasil na Universidade da Islândia. “A crise começou muito antes, quando o sistema bancário islandês foi privatizado. A partir daí não houve nenhuma supervisão. Cresceu sem limites. Nesse tempo todo, os sinais foram se acumulando. Os bancos começaram a captar empréstimos no exterior. Houve uma

tentativa de transformar a Islândia numa nova Suíça, um centro financeiro internacional. Só que a Suíça levou 200 anos para se tornar um. Aqui, queriam conseguir em cinco ou dez anos. Não havia gente preparada para administrar isso.” O professor foi taxativo: “Além disso, houve desonestidade. Os responsáveis diretos pela crise foram 30 homens e três mulheres, de dentro do sistema financeiro. Ocultaram informações. É muito difícil provar isso num tribunal. Mas os passos da crise foram objeto de uma investigação por parte do Parlamento. Está tudo lá”.


velho mundo

poder ao povo Policial acompanha protesto pacífico em frente ao Parlamento islandês em 2009. Manifestantes pedem um “governo das ruas”. O país disse não às receitas do FMI e da União Europeia e, à sua maneira, está superando a crise econômica

Bob Strong/REUTERS

Ints Kalnins/REUTERS

Assim mesmo, é claro que houve um momento decisivo. A partir da crise que foi se alastrando pelo sistema financeiro norte-americano e daí para o mundo, em 2007, os sinais de que algo estava errado se acumularam. Em 2008 os fornecedores de divisas internacionais para os bancos islandeses cortaram os créditos. Os três grandes bancos islandeses – o Glitnir, o Landsbank e o maior, o Kaupthing – viram-se impossibilitados de rolar suas­ dívidas, e tiveram de sofrer intervenção do Estado. No começo de outubro de 2008, a bomba explodiu. A brasileira Erika Carneiro viveu esse momento. “Houve um dia em que o país parou. Todo mundo parou de trabalhar. As pessoas ficaram ouvindo notícias pelo rádio, pela TV. Nada funcionava. Meu marido, Hlynur Hreisson, trabalhava numa empresa de consultoria econômica. Quando ele voltou para casa à noite, era certo: tinha acontecido uma grande catástrofe. Algum tempo depois, ele perdeu o emprego. Tivemos de sair do país. Eu consegui um emprego na Alemanha, fui para lá com nossa filha. Ele tentou na Noruega, não conseguiu”, relembra ela. “Os anos seguintes foram muito difíceis. Tempos depois ele acabou conseguindo um emprego aqui. Fiquei na Alemanha com nossa filha. Foi complicado.”

Recuperação

Erika está de volta a Reykjavik, com o marido, e eles têm mais uma filha. Não se pode dizer que a Islândia tenha superado inteiramente a crise, mas sem dúvida se recuperou. Foi o primeiro país europeu a entrar nela, mas também o primeiro a reagir. Aliás, o único. Com planos de austeridade recessivos, Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália estão nela mergulhados até os olhos. Outros países, como o Reino Unido, até os joelhos. França e Alemanha, os países mais poderosos da zona do euro, permanecem na margem do abismo. O que, afinal, aconteceu à beira do círculo polar? A partir de outubro de 2008 seguiram-se protestos e marchas defronte ao Parlamento em Reykjavik. Tudo em proporção islandesa. Seus 320 mil habitantes caberiam em Vitória, no Espírito Santo. Dois revista do brasil

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terços dessa população vivem na área da capital, que tem a dimensão de Palmas, no Tocantins. As manifestações reuniram 5 mil, 6 mil pessoas. Houve enfrentamentos. A polícia lançava gás pimenta e lacrimogêneo. Os manifestantes respondiam com pedras e... bolas de neve. No começo de 2009 o governo conservador caiu. Na eleição que se seguiu, firmou-se um governo de coalizão, à esquerda, com os Verdes e o Partido Social Democrata na liderança. As coisas começaram a mudar. A reportagem conversou com o atual ministro da Indústria e da Inovação, Steingrímur J. Sigfússon, ligado ao Partido Verde e um dos líderes da oposição ao Partido Independente, conservador, que estava no poder quando houve a crise. A partir de 2009, foi por três anos ministro das Finanças do país­. Segundo ele, há muitas lições a tirar da crise. “A Islândia tinha uma economia superaquecida, com um sistema bancário gigantesco para o país, e sem supervisão alguma. Todas as falhas de gestão foram objeto de uma investigação parlamentar concluída em 2010. Em poucos meses a Islândia perdeu 85% de seu sistema bancário”, lembra o ministro. “Instalaram-se três crises: do setor financeiro; da moeda, com uma desvalorização brutal da krona; e uma crise econômica, com a retração da produção, do comércio e do emprego.” Mas o país escolheu o próprio modelo, destaca Sigfússon – diferente das receitas que tentam emplacar na Grécia ou na Espanha. “As bases de nosso modelo foram proteger o sistema de bem-estar social, agir imediatamente e equilibrar a austeridade com aumento seletivo de impostos. Nosso sistema tributário, que tinha alíquota única, foi reformado. Criaram-se três alíquotas, de modo que os mais ricos e os ganhos de capital contribuíssem mais. Aumentamos o imposto sobre tabaco e álcool.” O ministro destaca ainda que houve medidas de ajuda aos desempregados, transferindo recursos do seguro-desemprego para a educação e programas de treinamento e qualificação. “Nossa economia voltou a crescer e o desemprego caiu, provando que tomamos medidas 22

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reviravolta Erika: “Houve um dia em que o país parou. Todo mundo parou de trabalhar. As pessoas ficaram ouvindo notícias pelo rádio, pela TV”. Pouco tempo depois, o marido da brasileira perdeu o emprego e ela foi trabalhar na Alemanha. Hoje estão juntos na Islândia

Lições Sigfússon: o país tinha um sistema bancário gigantesco, sem supervisão alguma

certas do ponto de vista social e também econômico”, afirma. O professor Vilhjálmur pondera que a crise islandesa foi diferente da grega, por exemplo, onde foi o setor público que se endividou. Assim, em sua análise, a Islândia se equilibrou rapidamente por ter priorizado, primeiro, a reestruturação do sistema bancário, estimulando depósitos, e não empréstimos. “Não houve privilégios ao sistema bancário internacional privado. Com isso, muitos cidadãos foram poupados.” Em segundo lugar, o governo protegeu a Empresa de Eletri-

cidade da Islândia, que continuou a produzir energia para o país, a indústria, o ­comércio. Em terceiro, protegeu a empresa de Reykjavik que distribui água quente e calor para os lares. “Ou seja, a ­Islândia saiu-se melhor porque privi­ legiou os ­cidadãos, não os investidores financeiros internacionais.”

Reforma constitucional

Essa visão de enfrentamento da ­crise já representaria uma alternativa ­quase revolucionária em relação à ortodoxia ­neoliberal que impera no restante da


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fotos flávio aguiar

pré-explosão Bjarnasson: “A crise na Islândia começou quando o sistema bancário foi privatizado”

Democracia direta Sigrídur: referendos são um guia para o Parlamento

­ uropa e na zona do euro, em particular. E Mas a resposta islandesa não parou por aí. O novo Parlamento decidiu empreender uma reforma da Constituição, vigente desde 1944, quando o país se tornou independente da Dinamarca. E o processo foi original. Primeiro, escolheu-se uma espécie de Assembleia Nacional Constituinte, com 1.500 participantes. Essa assembleia debateu exaustivamente as balizas para um novo projeto de Constituição. Depois, elegeu-se uma comissão de 25 cidadãos sem vínculos partidários, que deflagrou um am-

plo processo de consultas pela internet. A seguir, esse grupo redigiu o anteprojeto e o entregou ao Parlamento, que dará a última palavra. O Legislativo, contudo, decidiu também realizar um plebiscito sobre a nova Constituição. O referendo ocorreu em 20 de outubro, com seis questões. O comparecimento foi de cerca de 50% dos eleitores. A deputada social-democrata Sigrídur Ingadóttir ressaltou que o processo foi muito amplo e participativo. “O referendo foi consultivo, não decisório”, disse ela. “Mas é um guia para o Parlamento. Os dois partidos do governo estão a favor da nova Constituição, junto com um da oposição. Há um partido mais conservador completamente contrário a ela, enquanto outra agremiação oposicionista parece querer colaborar com o governo”, relata a deputada. Ela explica que ainda há ajustes técnicos a fazer antes de o Parlamento bater o martelo. Mas dois terços dos votantes no referendo se declararam a favor da proposta, e isso não poderá ser ignorado. A nova proposta mantém o Parlamento como o fórum legal mais importante e melhora a representatividade dos cidadãos. Antes, o voto de quem vivia na área da capital valia a metade do de quem vivia fora dela. Agora, vai valer o princípio de um eleitor, um voto, igual para todos. Há um avanço democrático, portanto. Outra mudança se deu quanto aos recursos naturais. Só 3% deles são propriedade privada. E a nova Carta Magna estabelece que os 97% restantes são propriedade da nação. Não do Estado: eles não podem ser vendidos. Quem quiser explorá-los privadamente vai ter de pagar preços de mercado. Outra novidade importante é que agora um certo número de cidadãos poderá requerer plebiscitos nacionais. Aumentará, portanto, a democracia direta. A nova proposta de Constituição amplia ainda o capítulo dos direitos humanos. Num continente onde os governos são cada vez mais refratários a plebiscitos e outras formas de democracia direta, o modelo da Islândia tem um perfil revolucionário. Foi, aliás, a ideia de um plebiscito que derrubou Yorgyos Papandreou do governo grego, por imposição

dos líderes mais fortes da Comu­nidade Europeia, a dupla Merkozy, formada ­pela alemã ­Angela Merkel e pelo ex-­ premiê francês Nicolas Sarkozy. A ideia do ­golpeado­­Papandreou era consultar a população grega quanto a ir ou não para o sacrifício a ser imposto pelo arrocho do programa neoliberal de combate à crise. Resta uma questão – entre outras – complicada. Como parte do arranjo pós-crise e do pedido de ajuda ao Fundo Monetário Internacional (cuja cartilha, como se vê, o país não adotou), a Islândia pleiteou a entrada total na União Europeia. Aliás, há no país defensores da adoção do euro, já que sua moeda não tem convertibilidade internacional. E agora? O ministro Sigfússon lembra que a resolução adotada foi começar um processo de negociação. “Essa é uma questão que divide o governo. Meu partido é contra, mas o Social Democrata é a favor da entrada na União Europeia. Por outro lado, o fato de termos a coroa foi prejudicial num primeiro momento, porque sua desvalorização catapultou a dívida pública”, observa. “Mas isso também deu competiti­ vidade ao país. Retomamos o crescimento a partir de 2011, com cerca de 2,5% ao ano. O desemprego caiu de 10% para 6%. Se hoje houvesse um plebis­cito, creio que o ‘não’ venceria. Mas vamos aguardar o que a negociação nos trará.” Já a deputada Sigrídur disse ser favorável à União Europeia. A reportagem questionou-a se a Islândia poderia empreender seu modelo de reação à crise se tivesse de responder à UE. Se seria possível reformar o sistema financeiro, privilegiar depositantes, em vez de credores internacionais, e nacionalizar 97% dos recursos naturais, caso Reykjavik estivesse sob a batuta de Merkozy. Sigrídur responde que é necessário dar tempo ao tempo. Em sua análise, se um grande número de países da UE é dominado por governos conservadores, isso pode mudar, como atesta a eleição de François Hollande na França. As demais nações da Europa também podem aprender a valorosa lição de democracia ensinada ao mundo pelo pequeno país do círculo polar. revista do brasil novembro 2012

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Sem data para sair No maior presídio da Bolívia, a polícia não se mete. Detentos administram a cidade-prisão e fazem as leis, enquanto aguardam meses por uma audiência. Muitos são brasileiros Por Andrea Dip e Tatiane Ribeiro 24

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m muro alto e quatro horas de fila me separam do interior do maior presídio da Bolívia e um dos maiores da América Latina, onde vivem 4.400 pessoas. A temperatura passa dos 35oC e o chão de areia aumenta o desconforto das mulheres que esperam ali e tentam dar conta de seus sapatos de salto alto, crianças pequenas e sacolas. Não é dia de visitas no Centro de Reabilitação Santa Cruz Palmasola, na cidade de Santa Cruz de La Sierra. Ainda assim, cada uma espera pacientemente pelo encontro com seu companheiro. O passe é liberado com o pagamento de 10 pesos bolivianos (cerca de R$ 3) aos policiais.


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Polícia do lado de fora

fotos DESIRéE MARTIN/AFP PHOTO

Lá dentro, quem garante a disciplina são os próprios presos, que uma vez por ano elegem a “regência” e esta escolhe seu exército, homens que andam uniformizados, armados com porretes. A polícia não interfere da porta para dentro

As horas passam, histórias tristes começam a ser contadas e a cumplicidade entre as mulheres aumenta. Logo todas estarão dividindo chicletes, garrafas de água e maquiagem para o retoque, já que a pintura caprichosa desmancha sob o sol. Uma ­moça me pergunta a quem vou visitar. “Uns amigos brasileiros”, respondo de forma vaga, ao que ela conclui rapidamente: “Mil ocho certamente, como a maioria aqui”, referindo-se à Lei nº 1.008, de

repressão ao tráfico de drogas. Diz que o companheiro “caiu” pelo mesmo motivo quatro meses antes, mas ainda não havia tido uma audiência sequer. Segundo o advogado Hernán Mariobo,­ 80% dos detidos em Palmasola estão em prisão preventiva, aguardando julgamento. Muitos já ultrapassaram os três anos estabelecidos por lei. “Estamos falando de mais de mil pessoas com processos parados e, por consequência, com seus direitos violados. Nossa Defensoria Pública tem no máximo 20 pessoas. Elas precisam dar conta de todos esses processos, e é claro que a coisa se complica ainda mais para os estrangeiros.” Além da lentidão com que os processos correm no Judiciário, segundo o advogado Alfredo Gomes Soares, especialista em casos de defesa, o sistema está imerso em corrupção. “Dói reconhecer isso, como um advogado boliviano: a corrupção prolifera. Por uma cópia de documento, para marcar nova audiência, é preciso falar com o secretário, com o juiz. Argumentam que a agenda está cheia, pedem dinheiro”, lamenta Soares. “Para fazer as notificações é pior. Um cliente espanhol de 70 anos teve a audiência cancelada cinco vezes por razões como chegar cinco minutos atrasado, o juiz ter um problema na escola do filho ou ainda porque era o

Dia do Magistrado, e as audiências foram canceladas sem aviso.” Enquanto esperamos, alguns homens chegam de táxi algemados. Mais tarde, Soares me diria que não há um veículo policial para entrar e sair dali. O preso deve pagar o táxi até Palmasola e, quando tem audiência marcada, deve pagar escolta policial e o transporte de ida e volta. Subitamente, um policial aparece à porta da prisão e diz que “ninguém deve pagar um peso sequer”. As mulheres comemoram e apontam para o motivo da gentileza: um jornalista com câmera em punho que espera a saída de um preso famoso.

Outro mundo

Nada em Palmasola se parece com o modelo penitenciário que conhecemos. Passada a pequena porta, vê-se um grande descampado lotado de lixo e urubus, cortado por uma rua que separa os pavilhões. Um de segurança máxima, conhecido como Chonchocorito – em referência a Chonchocoro, presídio de segurança máxima da capital La Paz –, outro reservado às mulheres, um terceiro para presos “comuns”, mais um para portadores de doenças contagiosas e, finalmente, um para policiais e autoridades, a “área vip”. Todos são trancados, porém a polícia revista do brasil

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fica do lado de fora. Lá dentro, quem garante a disciplina são os próprios presos, que uma vez por ano elegem a “regência”, espécie de administração penitenciária própria, e esta escolhe seu exército, conhecido como “disciplina”, homens que andam uniformizados, armados com porretes, para garantir o cumprimento das regras estipuladas pelos próprios presos em conjunto com a regência. Também há liberdade para punir o que achar necessário, inclusive pegando presos como “exemplos” para outros. A polícia não interfere da porta para dentro, a não ser em casos extremos que possam repercutir de forma negativa. Ainda na zona neutra encontro Darly Franco, advogada brasileira que vive em Santa Cruz e há seis anos milita pela causa dos brasileiros presos em Palmasola. Ela é autora de tese na qual sugere a modificação do código penal para estrangeiros que cometeram delito de narcotráfico. “Na verdade, para qualquer delito penal o procedimento é o mesmo. Os artigos principais são o 233, 234 e 235, que dizem que a pessoa não vai em detenção preventiva se tiver trabalho, família, domicílio. Mas como a gente faz isso com estrangeiro?”, questiona. “Se o Decreto Supremo Migratório diz que nenhum turista pode exercer uma atividade econômica, como vamos demonstrar que ele tem trabalho lícito? Se eu estou de passagem e me pegam no aeroporto, como vou ter domicílio? Então é pouco provável que a pessoa consiga responder em liberdade. Foi pego, vai preso. E, se não tem dinheiro, vai ficar lá, por conta de todo o esquema de corrupção e da lentidão da Justiça.” Respeitada pelos detentos, principalmente os brasileiros aos quais defende como pode, mesmo que paguem pouco ou nada, Darly se oferece para me conduzir pelos pavilhões e ajuda a organizar as entrevistas. Quando entra, os presos pedem para carregar suas pastas, andam ao seu redor. “Praticamente vivi em Palmasola quando escrevi minha tese e, de lá para cá, venho uma vez por semana para tentar fazer com que esses processos andem”, explica. Para entrar no PC4, destinado aos cumpridores de regime aberto, digo o 26

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DESIRéE MARTIN/AFP PHOTO

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nome de um brasileiro – os presos não serão identificados na reportagem por questão de segurança –, pago mais 5 pesos a outro policial que me carimba o pulso e entro no maior pavilhão, onde estão, naquele dia, 70 homens brasileiros, a terceira maior população de estrangeiros, segundo Darly, depois de peruanos e colombianos. O paranaense Mario (nome fictício), de fala mansa, educado, nos conduz à igreja onde vive. Ele fugiu de uma penitenciária brasileira depois de cumprir dois anos de pena e vivia há mais de 20 anos na Bolívia quando brigou com um funcionário da fazenda onde trabalhava e o matou com um tiro de espingarda. Há dez anos em Palmasola, é o brasileiro mais antigo no PC4 e representante dos outros. Para sobreviver e pagar os cerca de 30 pesos diários que diz gastar com co-

mida, itens de higiene e taxas não especificadas, faz redes e artesanato para vender dentro e fora da penitenciária, por meio de familiares de outros presos. No caminho, passamos por lojas de artesanato, lanchonetes, um campo de futebol, uma universidade de Direito e até uma pousada onde familiares e amigos dos presos podem se hospedar por alguns dias. Tudo criado, construído e administrado pelos internos. Os detentos em melhor condição ­financeira – que recebem dinheiro da ­família, do tráfico ou de negócios in­ternos – ­podem usufruir os bens de consumo e serviços, ter acesso a prostitutas que chegam de fora e do pavilhão de mulheres, conseguir drogas – segundo alguns, manipuladas em um laboratório local – e até incrementar a cela (alugada) com jacuzzi, televisão e c­ ozinha. É permitido inclusive


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morar com a família. Segundo a Defen­soria de Santa Cruz, mais de mil crianças vivem dentro de Palmasola. Elas saem para estudar em escolas próximas e voltam no fim do dia para dormir na “casa” dos pais.

Bairros da cidade-cadeia

Avesso

Stephen Moore/Gmancasefile.com

Mais de mil crianças vivem dentro de Palmasola. Elas saem para estudar em escolas próximas e voltam no fim do dia para dormir na “casa” dos pais

Como em uma cidade, há “bairros” ricos e pobres. Quem não tem dinheiro para consumir os quitutes do comércio local – como a maioria dos brasileiros, que não tem família ou amigos que mandem dinheiro – se vira com o “rancho”, como é chamada a comida levada pela polícia até a porta de cada pavilhão, três vezes ao dia. Naquela quarta-feira de outubro, o rancho era uma papa de arroz com lentilha coberta com um caldo laranja não identificado. Para dormir, há de se contar com a ajuda das igrejas ou ser um bom jogador de futebol: “Os bolivianos gostam muito do futebol brasileiro. Quem joga bem e participa dos campeonatos que a gente faz aqui recebe mais ajuda do pessoal”, conta Juan, preso por tentativa de estelionato há dois anos e três meses. “É claro que existe um regime penitenciário e alguns processos administrativos se encaixam na lei, mas o resto está totalmente à margem. O que acontece em Palmasola é o que acontece fora, quem tem mais recursos vive melhor”, explica o advogado Hernán Mariobo. “O que está na lei é o sistema-padrão, como o norte-americano, com celas, horários. Nossas leis e sistemas são copiados, mas a realidade superou. Os presos criaram seu próprio sistema.” Antes de entrarmos na igreja, Marcelo, um moço jovem preso por roubo em San Matias, nos leva para conhecer “el bote”, uma cela pequena e escura usada como medida punitiva, sem janelas, trancada por barras de ferro, com vários homens. Um brasileiro se apresenta, diz que não se lembra há quantos dias está ali e que foi trancado porque se atrasou para a chamada. Comem o rancho que outros presos passam pela grade. Marcelo levanta a camiseta para mostrar as costas tomadas por um tipo de doença de pele parecida com sarna, com grandes manchas vermelhas e algumas ferevista do brasil novembro 2012

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A reclamação maior é contra o consulado brasileiro. “O cônsul não vem aqui. Eles nos mandam cestas básicas de três em três meses”, diz um deles. “O advogado vem de vez em quando, anota nosso nome, diz que vai ajudar a mover o processo, e não faz nada”, acrescenta, referindo-se ao advogado boliviano contratado há mais de dez anos pelo consulado para agilizar os processos dos brasileiros. Os outros concordam. A reportagem teve acesso a uma carta escrita a mão, endereçada ao consulado, que diz: “Como cidadão brasileiro reclamo meus direitos a assistência social e médica e a um advogado. Não temos nada disso. Estamos abandonados, esperamos que nos atendam como pessoas. Estou sem documentos, com a condicional cumprida”.

Pés gelados

Depois do PC4, fomos a Chonchocorito. Por algum tempo se proibiu a visita de mulheres ao pavilhão de segurança máxima porque muitas eram estupradas. Éramos as únicas ali dentro. A advogada estava calma e ambientada, cumprimentava os homens pelo nome, perguntava sobre a família. Um boliviano reincidente veio mostrar seu bebê em um carrinho, dizendo que agora tomaria juízo.

DESIRéE MARTIN/AFP PHOTO

ridas. “Peguei esse bagulho quando fiquei mais de 70 dias no bote. Uns brasileiros fugiram e a “disciplina” nos pegou como exemplo. Bateram, quebraram minha costela e nos trancaram aí”, conta. “Só que para se consultar com o médico tem de pagar, para o remédio tem de pagar. Isso está se espalhando, mas não tenho o que fazer.” As reclamações aparecem ora em uníssono, ora num caos de vozes em uma mistura de português, castelhano e gírias locais. “Nós, brasileiros, somos tratados como cachorros”, afirma um. “Queria eu ser tratado como perro, somos é lixo”, diz outro. “A comida é ruim, não temos onde dormir, não temos remédios”, grita um terceiro. Uma criança pequena escuta tudo atentamente, do colo do pai brasileiro. A mãe, boliviana, estava trabalhando. Darly tenta organizar a bagunça, ­pede que as queixas sejam feitas por ­tema. Quase nenhum dos homens ali tem ­documentos, retidos pela polícia qu­a­nd­o­ são pegos. Nenhum tem a cópia do processo e muitos estão há anos em prisão preventiva por crimes considerados de bagatela, como tentativa de furto – um brasileiro está há mais de três por tentar abrir um carro com um arame.

O papel do Itamaraty O advogado Juan Soliz, contratado pelo consulado, conta que ajuda como pode, faz correr os processos, mas que a verba é curta. “Temos muitos indigentes, esses hippies que vêm para cá, usuários de drogas que decidem cometer alguns delitos, quando são presos ficam nesses lugares mais humildes. Normalmente minha atividade é centrada nessa gente. De maneira voluntária, o consulado manda um pouco de comida a cada dois ou três meses. Mas não é nossa atribuição. Hoje são cerca de 100 presos brasileiros e a verba que temos para todos é de US$ 1.000.” Segundo o advogado Clau28

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dio Fikelstein, especializado em direito internacional, não há uma lei que determine o que o consulado brasileiro deve ou não fazer nesses casos, mas ele lembra que regularizar a parte de documentos, avisar a família dos presos e prestar auxílio jurídico são obrigações do órgão. “Alguns consulados realmente interferem mais em detenções de brasileiros no exterior, como os que envolvem pena de morte e casos extremos. Outros, talvez por falta de verba ou de pessoal, interferem menos”, diz. Questionado, o Itamaraty informou por meio da assessoria de imprensa que em 2011 foram feitas 95 visitas

de periodicidade quinzenal aos 120 brasileiros em Palmasola – diferentemente do que dizem alguns presos e presas, que afirmam ter falado pouco ou nenhuma vez com o advogado. Declarou também que o governo brasileiro não tem competência para representar em corte os brasileiros presos, mas o consulado deve verificar se o detento dispõe de um advogado ou defensor público. Segundo o ministério, a responsabilidade básica pela dignidade e pelo bem-estar dos presos é da autoridade local. O cidadão detido, porém, pode se comunicar com o consulado e levar suas denúncias sempre que neces-

sário e, em “casos extremos”, adquirir artigos básicos como remédios, alimentos e peças de vestuário. Existe, no entanto, o Manual de Normas do Serviço Consular e Jurídico (NSCJ), que regulamenta a assistência a presos brasileiros no exterior prestada pelo Itamaraty. Em seu artigo 3.10.7, estipula: “A Autoridade Consular procurará apurar junto às autoridades locais qualquer fato que possa, a seu critério, colocar em risco a integridade moral, física e psicológica do preso brasileiro, solicitando a implementação de providências nesse sentido”.


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Tudo tem preço

Todos os homens quando chegam vão direto para Chonchocorito e os que podem pagar cerca de US$ 1.000 são transferidos para o pavilhão mais cômodo

Dois portões depois, estávamos, a doutora e eu, por nossa conta. Ali, nada de lojas nem lanchonetes: apenas um grande prédio cinza ao lado de um pequeno campo de futebol improvisado e uma espécie de pátio com bancos à sombra de um toldo. Um brasileiro vem ao nosso encontro e sai para chamar outros cinco. Enquanto conversamos, homens passam armados com pedaços de canos e armas brancas de todo tipo para saber o que está acontecendo. O tratamento é respeitoso. Um deles, com algo preso à cintura, passa de tempos em tempos para ouvir a conversa. Em Chonchocorito, porém, não estão os detentos mais perigosos ou que cometeram as “maiores atrocidades”, por assim dizer. A maioria dos brasileiros caiu ali por tráfico de drogas ou roubo – diferentemen-

te do PC4, onde muitos estão por assassinato e devem cumprir penas de mais de 20 anos. Eles contam que todos os homens, quando chegam a Palmasola, vão direto para Chonchocorito e os que podem pagar cerca de US$ 1.000 são transferidos para o pavilhão mais cômodo. Entre eles está o reincidente João. Junto com um grupo de 22 brasileiros, em 2003 ele se crucificou e costurou os lábios para chamar a atenção do consulado para a situação em Palmasola. “O cônsul veio aqui, prometeu melhorias, saiu em um monte de jornais no Brasil, e depois ficou tudo igual. Igual não, na verdade pior, porque sofremos represália. Apanhamos mais, o custo de vida aumentou.” No PC4, o mineiro Luiz havia dito que, se um boliviano ganha 10 pesos por um dia de trabalho

(limpando, arrumando), um estrangeiro ganha 5. O mesmo acontece com o custo da comida e bebida. João vai buscar a panela para me mostrar o rancho. Dessa vez só vejo o caldo gorduroso cor de laranja. Um jovem pego roubando há três meses conta que não teve nem a primeira audiência com o juiz. “Estou sem documento, sem meus pertences, que foram tirados pela polícia, e nunca vi ninguém do consulado brasileiro aqui. Sei que existe um advogado porque os outros disseram. A cesta básica chegou apenas três vezes neste ano.” No dia seguinte à nossa visita, Chonchocorito entraria em “rebelião pacífica” por melhores condições de vida, com uma greve de fome que foi notícia nas principais emissoras de Santa Cruz. O último pavilhão a visitar – o relógio apontava 17h, e o sol a pino não dava trégua – era o das mulheres. Tensão e tristeza. Diferentemente do PC4, quase não há visitas. Muitas das 18 brasileiras presas são dependentes de drogas, sobretudo do crack e outras variações da pasta-base da cocaína, incluindo injetáveis. Elas têm a pele solta no corpo, marcas de agulhas e facadas, arranhões, hematomas das brigas diárias. Poucas se juntam a nós, muitas estão dopadas demais para conversar. Quando pergunto onde arranjam dinheiro para sobreviver ali dentro, uma responde: “Roubando. A gente rouba umas das outras, pede emprestado e não devolve, pega. Principalmente para as drogas. Eu sou uma viciada, não tenho vergonha de assumir isso. Só queria dinheiro para usar”. Entre elas, uma senhora que aparenta ter mais de 60 anos age de modo maternal com as outras, cuidando para que não falem demais. “Pelo amor de Deus, arranje ajuda médica para essas meninas”, apela a Darly. Ela faz pães e os vende nos pavilhões. Pretende juntar algum dinheiro para pagar um advogado. Está presa por mil ocho. Ao final do dia, uma voz masculina em particular, sem rosto, ecoa sobre as outras: “Moça, não sei como, mas eu saio daqui logo. Nem que seja com os pés gelados”. Reportagem feita em parceria com a agência Pública – http://apublica.org revista do brasil novembro 2012

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história

A lição dos queixadas Personagens de uma greve que durou de 1962 até 1969 contam por que essa batalha, 50 anos depois, ainda vive na comunidade, que vislumbra na antiga fábrica uma universidade e um polo cultural Por Cida de Oliveira

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s piquetes lembravam os de outras greves. A diferença é que mais de 200 policiais estavam dentro da fábrica desde as 3h da madrugada, a pedido do patrão. Quem estava lá teve de sair. E quem chegava não entrava. O movimento, marcado para começar às 6h de 14 de maio de 1962 caso as reivindicações não fossem atendidas, foi diferente também porque se prolongaria por sete anos e quatro meses, provavelmente um caso único no mundo. 30

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Foi assim que cruzaram os braços todos os 1.400 trabalhadores na fábrica de cimento localizada em Perus, no noroeste da capital paulista, e nas pedreiras de calcário situadas a 20 quilômetros dali, no município de Cajamar. Eles reivindicavam o pagamento de salários atrasados, o cumprimento de acordos coletivos, reajuste e pagamento da verba para casa própria no período entre outubro de 1960 e maio de 1962. Pela primeira vez, desde 1951, foi desligado todo o maquinário obsoleto, desgastado e barulhento – o que não acontecia nem para manutenção.

Durante 99 dias, tudo parou naquela que foi a maior fábrica de cimento da América Latina e fornecedora do produto para a construção dos primeiros edifícios de São Paulo, viadutos, pontes, estradas, estádios e até da capital federal. O aposentado Sebastião de Souza Silva, 79 anos, mais conhecido como Tião de Perus, lembra-se bem daqueles dias. Admitido como motorista pouco tempo antes, ele relata que a paralisação incluía trabalhadores de três outras empresas do patrão José João Abdalla, o poderoso J.J. Abdalla, dono de um complexo industrial, bancá-


história

fotos Arquivo Edgard Leuenroth-UNICAMP/Museu Municipal Casa da Memória de Cajamar

gerardo lazzari/rba

Poeira do tempo O movimento dos queixadas começou em 1962 e durou mais de sete anos. Em 1975 a greve foi considerada legal. O governo federal pagou os atrasados e interveio na fábrica dos Abdalla. Em 1987 a Cimento Perus fechou as portas

rio, agropecuário e latifundiário, influente na política e famoso por comprar fábricas para explorar até que não dessem mais lucro. Deputado estadual e federal, foi secretário do Trabalho do governador Ademar de Barros entre 1950 e 1951. A Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus (CBCPP) foi inaugurada por um consórcio formado por empresários canadenses e brasileiros em 1926, quando ainda não havia leis para garan-

tir direitos trabalhistas, apenas decretos específicos sobre limite de idade e jornada noturna. Até a década de 1940 atendia à metade da demanda nacional. Em 1951 o empresário J.J. Abdalla comprou a fábrica, a pedreira e a estrada de ferro Perus-Pirapora. “Nos primeiros 99 dias parou tudo, mas no centésimo houve uma operação fura-greve. Muitos voltaram ao serviço. Eu, não”, conta Tião. Segundo ele, havia a in-

terferência da deputada estadual Con­ ceição da Costa Neves, que estava sempre no bairro para convencer os operários a retornar ao trabalho. Ia à casa de muitos, acompanhada pela polícia, e até os convidava para reunião com Abdalla. Os a­cordos assinados em separado pelos operários das outras empresas – o que Tião chama de traição – favoreceu a operação fura-greve. Filho de trabalhador da fábrica, o historiador Elcio Siqueira, que estudou o episódio para seu mestrado e doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conta que em 21 de agosto, data da operação, houve intervenção policial e os agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) iam atrás dos grevistas em casa. Houve inclusive ocupação militar em Perus e Cajamar. “Dos 1.100 grevistas, 700 ‘indesejáveis’ foram impedidos pelo patrão de retornar, o que os levou a uma resistência épica”, afirma. Ao longo daquele ano foram feitas várias passeatas no bairro e no centro de São Paulo, além de greves de fome na frente da residência oficial do governador Carvalho Pinto. Sem acordo, em janeiro de 1963 o Sindicato dos Queixadas, como era conhecido, entrou com ação para reintegrar os trabalhadores. Abdalla negou, com a justificativa de abandono de emprego. E ainda quis despejá-los das vilas operárias, mandando inclusive cortar água e luz nas casas. Houve resistência e nova ação na Justiça. Os dirigentes sindicais recomendaram então aos grevistas tirar nova Carteira de Trabalho e procurar outro emprego enquanto os processos tramitassem na Justiça. “Meu pai, que era carpinteiro, foi trabalhar na construção de mansões no litoral. Muitos colegas dele se empregaram em grandes construtoras. Tinha muito queixada construindo estádio”, lembra Sidnei Fernandes Cruz, ex-queixada e atual presidente do sindicato em Perus. Com o golpe de 1964, a entidade foi uma das primeiras a sofrer inter­venção, tendo dirigentes presos ou respon­dendo a processos. Uma nova dire­toria foi ­eleita, formada por aqueles que ­tinham furado a greve – os quais, ironica­mente, c­ omandariam uma paralisação ­fra­cas­sada em 1965. revista do brasil

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história

Solidariedade

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Exaustão Tião lembra o tempo em que peregrinavam em busca de sustento e apoio para o movimento enquanto, na fábrica, operários morriam de tanto trabalhar

gerardo lazzari/rba

Ao longo dos sete anos, os grevistas fizeram campanhas e receberam apoio de organizações. Entre 1962 e 1963, diversos setores, como professores e estudantes de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), iam a Perus atender os grevistas e seus familiares. E os acadêmicos do Direito passaram a defender a encampação da fábrica para cogestão operária. Na falta dos salários dos maridos, as mulheres organizaram uma cooperativa de costura. Como lembra Tião, eles se encontravam com frequência para acompanhar os desdobramentos, participar de assembleias e viagens em busca de sustento e apoio para o movimento. “Enquanto isso, dentro da fábrica, as jornadas eram intermináveis para manter a produção, com muitos operários chegando a morrer de exaustão”, lembra o aposentado. A retomada da produção logo depois da greve, com a substituição de ope­ rários, demonstra a simplicidade das ­rotinas grosseiras e penosas. “A política de rebaixamento da qualidade dos serviços de manutenção estava associada a um padrão bárbaro de operação pela administração Abdalla”, aponta ­Elcio. As condições de trabalho eram tão ruins que muitos ado­ e­­ cia­ m e morriam. A ­exposição à poeira causava silicose, grave doença pul­monar, que pode avançar para o câncer, como aconteceu com o pai de Elcio Siqueira e pode ter ocorrido com o pai de Sidnei Fernandes Cruz. Com a simpatia da opinião pública, que acompanhava os desdobra­mentos da greve, o sindicato percebeu o e­ spaço para denunciar Abdalla também ­como corrupto.­Em 1966, com a queda de ­Ademar de Barros – que havia retor­ nado em 1963, no lugar de Carvalho Pinto –, acabou a perseguição policial aos trabalha­dores. A admiração por aqueles operários, conforme pesquisadores, se devia principalmente à sua forma de luta, ba­seada na não violência ativa, que mais tarde seria chamada Firmeza Perma­ ­ nente. Preconizada por M ­ ário Carvalho de ­Jesus, advogado do sindicato, consistia em resistir sem aceitar nenhuma provocação da polícia.

Longe de casa O pai de Sidnei foi trabalhar na construção civil, no litoral paulista

A postura combinava ideias do ­in­diano Mahatma Gandhi (1869-1948) e do ­dominicano padre Lebret (1897-1966), ­teólogo francês que aproximou pensamento ­cristão e ação econômica para uma sociedade mais justa. Tal comportamento lembrava o dos queixadas, porcos selvagens que só reagem ao agressor quando reunidos em manada – daí o apelido dos operários e de seu sindicato.

O Sindicato dos Queixadas chegou a associar 99% dos trabalhadores. Outro traço peculiar era a solidariedade a outros movimentos, como os da Rhodia, da Fiação e Tecelagem Santo André e da Usina Miranda. Mais tarde, na época das grandes greves do ABC paulista, os queixadas denunciaram à Organização Internacional do Trabalho (OIT) a repressão àqueles sindicatos.


Danilo ramos/rba

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Museu Casa da Memória de Cajamar

Danilo ramos/rba

história

50 ANOS DEPOIS Euler, durante aula aberta na comunidade Quilombaque: a antiga fábrica é a memória do trabalho e da construção da cidade

Só em 1967 o governo estadual reconheceu o direito de greve dos 400 trabalhadores estáveis, que foram reintegrados dois anos depois. A fábrica teria de pagar os salários correspondentes aos sete anos. A luta continuou com denúncias de fraudes contra Abdalla e a reivindicação da cogestão da fábrica. A greve foi considerada legal apenas em 1975, quando o governo federal pagou os salários referentes aos 2.448 dias de paralisação e interveio na fábrica. Naquele ano, houve grandes passeatas em Perus contra a poluição, todas apoiadas pela Igreja Católica e reprimidas pelo Dops, que usou o episódio como pretexto para expulsar missionários estrangeiros. Em 1974, os trabalhadores exigiram o confisco total dos bens de Abdalla, o pagamento dos salários atrasados e a instalação de filtros nas chaminés. Logo surgiram movimentos pelo fechamento da fábrica e por medidas de compensação à população por tanto sofrimento com a poeira.

Ideal presente

Em 1979, uma área confiscada pela União foi transferida à prefeitura paulistana e transformada no Parque Anhanguera, quase 20 vezes maior que o Ibirapuera. Em 1983, quando J.J. Abdalla já estava afastado da gestão (ele morreria cinco anos depois), seu sobrinho Antonio João Abdalla Filho, o multimilionário e playboy Toninho Abdalla, desativou a estrada de ferro e as minas de calcário. Agonizante, a fábrica foi fechada em 1987. Para Elcio Siqueira, a paralisação de 1962, que a princípio era moderada, ­limitada a aspectos trabalhistas, radicalizou-se com o tempo. “Os trabalhadores lançaram a proposta de desapropriação da fábrica, que devia muitos impostos, e sua cogestão pelos operários”, diz. Para o governo Carvalho Pinto, a fábrica era inviável e o estado temia abrir um precedente: encampar uma fábrica toda vez que trabalhadores e patrões não se entendessem. Para Sidnei Fernandes Cruz, a ­desapropriação não ocorreu por pressões do cartel do cimento. “A medida permi­ tiria a oferta de cimento a preços infe­riores aos dos outros fabricantes.”

Após 50 anos do começo da greve, o ideal daqueles operários ainda move toda a comunidade. Só que, em vez da defesa de direitos trabalhistas, envolve a construção de uma universidade pública e de um centro de cultura operária no terreno tombado, onde as ruínas da antiga fábrica resistem às tentativas de depre­ dação. Já existe lei para isso. O que falta é a ­desapropriação do terreno, que está na mira da especulação imobiliária. O grupo Abdalla quer transformar o ­ espaço em um shopping center ou ­condomínio residencial. Já o Ministério­ da Edu­ cação planeja construir ali um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Apesar de bem-vindo, está longe do campus defendido pelo movimento Pró-Universidade P ­ ública da Zona Noroeste. “Queremos uma universidade popular capaz de socializar o conhecimento acadêmico com a comunidade e dialogar com os ­saberes locais”, diz Marcos Manoel dos Santos, professor e militante do movimento. A luta conta ainda com o professor Euler Sandeville Júnior, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Seu interesse pelo significado da fábrica o fez levar para o bairro parte do projeto chamado Poéticas e Conflitos na Paisagem. Todo sábado, na comunidade cultural Quilombaque, alunos da graduação assistem a uma aula aberta também ao público. ”A fábrica é o resgate de uma memória do trabalho, dos próprios meios de produção do espaço urbano e de uma fase importante da construção da cidade”, define o professor, que acredita no potencial educativo e cultural do espaço. Para muitos, a greve dos queixadas foi uma derrota em especial para os trabalhadores que não tinham estabilidade e deixou lembranças amargas entre aqueles que não concordavam com os rumos que tomou. “Havia quem quisesse apenas o atendimento da pauta de reivindicação, sem apelar para uma batalha tão claramente contrária à ordem burguesa”, diz Elcio. Tião de Perus, que não tinha estabilidade no emprego, pensa diferente. “Não fracassamos. O movimento nos ensinou muitas coisas, como a solidariedade.” revista do brasil novembro 2012

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futebol Notícia policial Breno chega ao tribunal, em Munique

Fora de campo Caso do zagueiro Breno, preso na Alemanha, mostra que nem sempre a mudança de ares é positiva para o atleta Por Vitor Nuzzi

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reno Vinícius Rodrigues Borges completou 23 anos, em 13 de outubro, em uma cela na prisão Stadelheim, em Munique, na Alemanha. Ele foi capa da edição 19 da Revista do Brasil, de dezembro de 2007, em uma reportagem sobre a saída precoce de boleiros brasileiros para o exterior. Eleito melhor zagueiro do campeonato brasileiro daquele ano e apontado como grande promessa, o jovem Breno foi vendido pelo São Paulo ao Bayer de Munique por € 12 milhões. O atleta, porém, nunca se firmou no principal clube alemão, sofreu contusões e, em um episódio nebuloso, em 19 de setembro de 2011, acabou preso após um incêndio em sua casa. Considerado culpado pelo acidente e condenado pela Justiça ale34

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mã a três anos e nove meses de prisão, cumpre a pena desde julho. Poderá sair dentro de dois anos a dois anos e meio, contados a partir de julho, por bom comportamento. O dinheiro corre solto no mundo do futebol. Segundo o informe anual Global Transfer Market (Mercado Global de Transferências), da Federação Internacional das Associações de Futebol (Fifa), apenas em 2011 as transferências de profissionais movimentaram cerca de US$ 3 bilhões. Foram 11.500 transações, das quais 13% envolvendo brasileiros. Mas muito dinheiro não garante felicidade, como o próprio Breno constatou tempos atrás: “No Brasil, eu tinha menos dinheiro e menos luxo, mas era feliz. Aqui eu tenho dinheiro, mas me falta todo o resto”, declarou ao semanário alemão Bild

am Sonntag. O jovem beque foi emprestado em 2010 ao Nuremberg, time de menor expressão na liga local. O coordenador técnico do São Paulo, Milton Cruz, que promoveu a ida de Breno para os profissionais, na época treinados por Muricy Ramalho, mostra surpresa com a situação do jogador. “Sempre foi um cara muito comportado, nunca deu problema. Uma pessoa bacana, tranquila”, diz. Ele lembra que, no ano passado, foram feitos contatos para tentar trazê-lo de volta para o Brasil. Segundo o coordenador, Breno deixou o país com certa estrutura e estaria adaptado à vida no exterior. Mas os problemas profissionais podem ter minado seu comportamento. “Todo mundo pensa em sair, mas não é fácil. Jogadores experientes também enfrentam dificuldades.” Atualmente no Santos, Muricy se mostra igualmente surpreso e diz que é preciso ter cautela com quem cuida da carreira dos atletas. “Às vezes eles saem sem uma base emocional e sem o lado inte-


futebol

lectual formado, e sofrem no exterior”, disse à agência Gazeta Press. E ressalta que o tratamento na Europa é diferente, o que também pode ter influenciado Breno. “Lá, acabou o treino, o cara vai para casa. Não é como aqui, onde o jogador é tratado praticamente como um filho, com toda a atenção do mundo. Lá, eles pagam e querem que você jogue. É complicado.”

Cabeça ruim

O também treinador e ex-jogador José Sérgio Presti, o Zé Sérgio, trabalhou com Breno na categoria sub-17 do São Paulo. E compara: “Quando o atleta se machuca, já é difícil. Mas no Brasil continua a receber o salário integral. Lá, cortam o salário, ele não tem aquele apoio das pessoas, dos amigos, a cabeça começa a ficar ruim. Se não tiver uma estrutura, pira mesmo”. Zé Sérgio, que atualmente comanda o sub-20 da Ponte Preta, de Campinas (SP), conta que não se surpreendeu totalmente com o episódio. “A gente percebia que Breno não era um menino alegre, brinca-

lhão. Era muito fechado, até No processo da defesa, o sério, pela idade dele. E foi advogado chegou a afirmar muito novo para ter uma vique Renata tinha um caso da independente na Europa, com um ex-empresário do ainda mais na Alemanha, jogador, informação que ela onde não existe calor hu- Breno ilustrou desmentiu. “Isso tudo é uma mano como no Brasil. Co- o tema da saída grande mentira. O Breno é precoce de jogadores migo nunca teve problema, para o exterior, em uma pessoa maravilhosa. era um menino bom, respei- dezembro de 2007 Nós sempre vivemos muito tava demais. É uma pena, eu bem. O advogado inventou gostava muito desse menino.” essa história porque achou que seria uma A mulher de Breno, Renata Borges, boa defesa. Para pôr a culpa em mim.” Ela contou em setembro ao portal Globoes- disse contar com uma reavaliação do proporte.com que no dia seguinte ao inci- cesso. “Que vejam o ser humano Breno. dente o jogador faria mais uma – a quarta Queria que a Justiça percebesse que nós – cirurgia no joelho, e estava triste com somos uma família linda e meu marido isso. O fato de não jogar nem receber sa- não é um criminoso.” lário, apenas um seguro (o que acontece Na primeira visita na prisão, o filho do quando um atleta fica mais de 45 dias sem casal (ela tem dois de outro relacionaatuar na Alemanha), pode ter colabora- mento), Pietro, de 3 anos, pedia para Bredo para que ele entrasse em depressão, no ir embora junto com eles, porque ele como pessoas próximas afirmam. Segun- já tinha trabalhado muito – os pais contado Renata, na véspera da operação Breno ram que o jogador estava trabalhando ali. bebeu cerveja, vinho do Porto e uísque O menino que saiu de Cruzeiro, cidade – uma mistura que o deixou “completa- do Vale do Paraíba, no interior paulista, mente alucinado”. deve demorar a voltar para casa.

fotos Michaela Rehle/REUTERS

nebuloso Peritos examinam a casa alugada por Breno, incendiada em setembro de 2011

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atitude

Saiba onde comprar camisetas do projeto em todasascorestodososamores.com.br

Solidariedade com estilo Campanha Todas as Cores, Todos os Amores une moda, cooperação, respeito à diversidade e esperança para soropositivos Por Cida de Oliveira

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nimada, com a saúde e a autoestima recuperadas, Gabrielly Alves, 30 anos, dedica-se diariamente, em tempo integral e voluntariamente, às atividades de um bazar beneficente na região central de São Paulo. Nem de longe lembra a pessoa debilitada, sem ânimo e incapaz de sorrir que em 2008 foi acolhida pela Casa de Apoio Brenda Lee, também localizada na capital paulista. “Aqui fui redescobrindo a vida, conhecendo mais sobre a minha doença e aprendendo a enfrentá-la, e a enfrentar a tudo e a todos”, conta. 36

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Ela aprendeu a manter a aids sob con­ trole com medicamentos, refez laços sociais e deixou a entidade em 2010. Casou, conquistou o próprio canto, enviuvou, mas não desanimou. “Faço questão de encorajar pessoas que estejam ­numa situação na qual já estive.” Gabrielly personifica o ideal da casa de apoio. “Nosso objetivo é que as pessoas atendidas passem a seguir à risca o tratamento, recuperem a saúde, a autoestima, e sejam reinseridas na família, na sociedade”, diz Maria Luiza Macedo, assistente social que dirige a instituição. Residem ali, pelo tempo necessário para sua recuperação, 26 pessoas adultas.

­A casa começou a funcionar oficialmente em 1986 para dar assistência médica, social, moral e material às pessoas necessitadas, portadoras do HIV, sem distinção de raça, nacionalidade, condição social, cor ou credo. Dois anos antes, Cícero Caetano Leonardo, mais conhecido como Brenda Lee, acolheu em sua casa, o chamado Palácio das Princesas, seu primeiro paciente, encaminhado pelo Hospital Emílio Ribas. Brenda passou a fazer convênios e ampliou sua capacidade de atendimento. Quando foi assassinada, em 1996, abrigava 27 doentes. Com ajuda de amigos e da comunidade, seu trabalho teve continuidade e em 2003 foi premiado pela Fundação Bill & Melinda Gates. O trabalho despertou a atenção também da Conexão Solidária, iniciativa da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) para fortalecer empreendimentos coletivos a partir de uma rede de vendas.


atitude

A criação da logomarca da campanha é do designer Glauco Diógenes e a produção é da Cooperativa de Cos­tura de Osasco, empreendimento de economia solidária com o qual a Conexão trabalha. As peças são produzidas nas cores do arco-íris, tons que compõem a bandeira do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), também utilizada como símbolo da ­diversidade. “A divulgação de um trabalho com essa finalidade e apoiado por e­­­s­ti­­­­lis­ tas famosos vai nos tornar mais c­onhecidas e abrir portas para ­novos negócios”, diz a pre­s­identa da ­ cooperativa, Marize Alves Prazeres Rodrigues. ­ Segundo ela, para produzir as 10 mil camisetas as 11 coope­ radas ­tra­­ba­­lharam diariamente das 8h às 19h, durante um mês e meio. Foram utili­zados 250 quilos de ­malha. “Cuidamos de tudo desde o início. Orça­ mentos, compra de mate­ riais e todo o planejamento ­ficaram por nossa c­ onta.” Fruto de um programa da Prefeitura de Osasco para capacitar trabalhadores e

estimular­e assessorar a criação de empreendimentos solidários, a Cooperativa de Costura foi criada em 2006, por dez costureiras fundadoras. As dificuldades eram grandes, mas não faltou coragem para seguirem em busca de clientes fixos, em especial ­para aten­ der pedidos maiores, e parti­ciparam de ­licitação no município. No ano p­ assado, confeccionaram 52 mil peças de uni­ formes para os alunos da rede municipal. “Dava um orgulho­ tre­mendo ver pela ci­d­­­ade cri­ an­­­ças com camiseta­s, calças, blusas e bermudas­ costuradas por nós”, emociona-se Marize. A oficina tem 18 má­­quinas de costura e uma de corte, e não deve parar por aí. Os planos de ampliação incluem mudança para um galpão maior e compra de novos equipamentos.

Autoestima Gabrielly Alves foi atendida por Brenda Lee e hoje faz trabalho voluntário no bazar da Casa

fotos gerardo lazzari

Ao todo, a ADS – organização criada em 1999 pela CUT, com apoio de outras entidades sociais – acompanha 160 cooperativas e associações cadastradas em todo o país, que incluem artesanatos, confecções, pequena indústria e agricultura familiar, entre outras. “Há tempos tínhamos o desejo de aproveitar essa rede de empreendimentos em benefício de uma instituição que trabalha pelo combate à discriminação, com apelo à diversidade e no atendimento aos portadores do HIV”, diz Luciana Ma­retti, ­coordenadora da Conexão Solidária. Para unir o útil ao agradável, a organização começou a pensar em uma iniciativa que pudesse, ao mesmo tempo, realizar esse antigo desejo de beneficiar uma entidade respeitada e estimular a produção e a venda de um empreendimento vinculado. Assim surgiu a campanha Todas as ­­­Cores,­­ Todos os Amores, que foi ­lançada agora em ­outubro, em São P ­ aulo, que pretende vender, ao longo de um ano, 10 mil camisetas desenhadas ­ pelos renomados estilistas Ronaldo ­ ­ Fraga, Walter ­ Rodrigues, Walério Araújo, Fernanda Yamamoto, Wilson Ranieri, Mark Greiner, Weider Silveira, Andrea Ribeiro, Michelly X e Estúdio Xingu.

Extremos Casa Brenda Lee e a Cooperativa de Costura: projeto dá apoio a quem trabalha e a quem quer voltar à convivência social revista do brasil

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Raphael Tsavkko/Flickr/CC

cidadania

Amor para O que era no início somente um alerta contra uma candidatura conservadora pode se tornar um movimento permanente do ativismo cultural e social Por Raimundo de Oliveira

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m menos de um mês e a um custo inferior a R$ 20 mil, eles conseguiram uma façanha de dar inveja a publicitários, produtores culturais e marqueteiros. Transitando com desenvoltura na corrida eleitoral da maior cidade da América Latina, em um terreno em que a maioria dos partidos ainda engatinha, as redes sociais atraíram mais de 10 mil pessoas à Praça Roosevelt, na região central de São Paulo. O espaço que acaba de ser reaberto após anos em obras foi palco para shows de Criolo, Gabi Amarantos, Emicida e Karina Buhr e protagonizou uma surpreendente campanha de valorização da cultura e da cidade. O que começou como um ato contra o conservador Celso Russomanno (PRB) culminou em uma grande agitação cultural a uma semana do segundo turno, sem assumir bandeiras de candidaturas e com potencial de constituir um novo movimento. Seus organizadores querem tentar manter viva a campanha para cobrar da prefeitura ações como a desmilitarização de subprefeituras, o fim de medidas restritivas ao ativismo artístico adotadas na gestão de Gilberto Kassab (PSD), melhor infraes-

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cidadania

fotos Fora do Eixo/CC

Raphael Tsavkko/Flickr/CC

oxigenar SP trutura e mais liberdade para uso dos equipamentos públicos em eventos de manifestações populares. A primeira reunião na Praça Roosevelt foi marcada uma semana antes do 7 de outubro, com o mote nada indiscreto “Amor sim, Russomanno não”. Para o jornalista Bruno Torturra, um dos organizadores, um eventual cenário Russomano x Serra no segundo turno paulistano afastaria qualquer possibilidade “mudancista” na administração da cidade. Mesmo após a exclusão de Russomanno do segundo turno (ele ficou em terceiro na votação), os organizadores mantiveram a ideia no ar. Um novo encontro, ampliado, foi programado para a mesma praça, um domingo antes do segundo turno. O acontecimento agora foi nomeado Existe Amor em SP – em alusão ao rap Não Existe Amor em SP, de Criolo. Sem declarar preferência por um dos candidatos que disputavam o segundo turno, a proposta foi ampliar o foco da mobilização para além da eleição, com o objetivo permanente de cobrar melhorias sociais, nas áreas de cultura e de direitos humanos, qualquer que fosse o resultado. “Não temos nenhum vínculo com nenhum partido ou candidato, fizemos o show na base do voluntarismo, os músicos não cobraram nada, o pessoal da aparelhagem fez um preço supercamarada e fizemos vaquinha para bancar tudo”, diz Bruno. Tiago Vinícius Paula da Silva, militante da União Popular de Mulheres e articulador do Banco Comunitário União Sampaio e da Agência Popular Solano Trindade, do Jardim Maria Sampaio, na zona sul também participou da organização. “Na periferia a pegada é outra. Nós estamos aqui para falar de extermínio, não de cultura”, afirmou ele, parodiando o que havia dito o rapper Mano Brown em um recente evento de campanha do petista Fernando Haddad. “Não dá pra falar de cultura, no momento, sem falar do extermínio que tá ocorrendo na periferia. Não dá nem pra fazer uma reunião em um bar ou outro espaço, porque tem o risco de morrer por causa do extermínio que tá rolando”, disse. Para ele, a participação dos grupos que atuam na periferia nessa empreitada deve ser mantida. “A gente deixa tudo claro.” revista do brasil

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cultura

Fugiu de casa

e virou rei

Nascido no sertão de Pernambuco, Luiz Gonzaga completaria 100 anos em dezembro. Cantou a pobreza e a riqueza de sua terra Por Vitor Nuzzi

Raízes Gonzagão, em Exu, terra natal

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mas também era famoso na região – o Sertão do Araripe, quase na divisa do Ceará – por tocar e consertar sanfonas. Dona Santana vendia cordas de sisal na feira e era voz marcante nas novenas. Depois da surra e da fuga, Gonzaga voltou para casa já famoso, em meados dos anos 1940, mas não escapou da bronca. Afinal, tinha de respeitar Januário, com quem aprendeu os segredos da sanfona. A história do retorno rendeu justamente Respeita Januário, de Gonzaga e Humberto Teixeira, um dos parceiros mais constantes do cantador, como gostava de ser chamado – um de seus momentos de maior felicidade foi ouvir um “obrigado, cantador” do papa João Paulo II quando cantou para ele, em Fortaleza, em 1980. Da dupla saíram sucessos como Assum Preto, Qui nem Jiló, No meu Pé de Serra, Asa Branca e Baião. O perfil do médico cearense Humberto Teixeira é retratado no documentário O Homem Que Engarrafava Nuvens (2009), produzido por sua

JOVECI C.DE FREITAS/AE

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m poucas palavras, o próprio Luiz Gonzaga do Nascimento contou o início da trajetória que o coroaria Rei do Baião. Apaixonado por uma moça de sua cidade – Exu, no sertão pernambucano –, ele tomou umas doses, aditivou a valentia e ameaçou de morte o pai da donzela, que o chamou de “tocadorzinho”. No fim, não matou ninguém e apanhou dos próprios pais, seu Januário e dona Ana, conhecida como Santana. Filho bandido em casa? Nem pensar. A surra doeu no corpo e na alma: o garoto vendeu a sanfona e se mandou, alistou-se no Exército e ganhou o mundo. Foi ser artista no Rio de Janeiro. Em 13 de dezembro, faria 100 anos. Morreu em 1989, aos 76. Foi nomeado Luiz com z por ter nascido no Dia de Santa Luzia; Gonzaga por causa do sobrenome do santo Luís; e Nascimento por vir ao mundo no mesmo mês que Jesus. Era o segundo de nove filhos. O pai tinha a rotina dura da roça,

filha, a atriz Denise Dumont. Foi uma série de músicas compostas nos anos 1940 e 1950, época de ouro do baião – gênero desenvolvido, explicou o próprio Gonzaga, a partir da batida dos músicos no instrumento para afinar o violão. O ­ritmo que invadiu o país do samba-canção perderia espaço na década seguinte, com o surgimento da bossa nova, até que os tropicalistas resgatassem Luiz Gonzaga. “Luiz Gonzaga colocou o Nordeste no mapa da MPB”, escreveu tempos atrás o crítico e pesquisador Tárik de Souza. “Não foi o pioneiro, porém o mais completo, consciente e talentoso promotor da música regional.” “Antes de Luiz Gonzaga, não há refe­ rência ao forró”, diz o jornalista Assis Ângelo. Garimpador da cultura popular, com 150 mil itens em seu acervo – que aguarda apoio para ser aberto à visitação –, ele enumera: Gonzaga gravou 625 músicas, em 125 discos de 78 RPM, 41 compactos de 33 e 45 RPM e outros quatro, de 12 polegadas. “É o autor mais regravado da música brasileira.” O primeiro disco é de 1941. A voz demorou um pouco mais para ser ouvida. No início Gonzaga era só sanfoneiro. Chegou a ser proibido de cantar na Rádio Tamoio, por decisão do diretor Fernando Lobo, pai de Edu. Dominava vários instrumentos. “Se eu não tocasse pelo menos violão, eu era engolido pelos cobras. Só tinha cobra no meu tempo”, contou a Assis Ângelo. “Com seu olhar de 360 graus, ele cantava a tristeza, a denúncia e a alegria, através de folguedos populares. A vida brasileira se acha na obra dele, a partir do Nordeste”, define Assis,


cultura

marca A inspiração para usar uma indumentária regional veio do músico gaúcho Pedro Raimundo

Esse negócio de matar gente no sertão já foi trabalho mais maneiro. Menos pra eu. Quis matá um home, me lasquei. Levei uma surra tão danada, uma surra caprichada por meu pai e minha mãe, que arribei de casa. Dezoito anos incompletos, 1930. Ingressei nas Forças. Revolução como diabo, tiro como diabo, nunca dei nenhum. Eu queria ser era artista... revista do brasil

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cultura

que dá mais destaque a Luiz Gonzaga no panteão musical brasileiro do que a um Tom Jobim. Argumenta: Tom teve o jazz americano como fonte, Gonzaga buscou na própria terra. A denúncia estava, por exemplo, em canções como Vozes da Seca, dele e de ­outro parceiro perene, Zé Dantas: “Seu doutô, os nordestino têm muita gr­atidão/ Pelo ­auxílio dos sulista nessa seca do ­sertão/ Mas, doutô, uma esmola/ A um homem qui é são/ Ou lhe mata de ver­gonha ou ­vicia o cidadão”. E alegria sobrava em pérolas como ­Lorota Boa: “Dei uma carreira num cabra qui mexeu c’a Maroquinha/ Começou na Mata Grande e acabou na Lagoinha/ Corri mais de sete légua, carregado como eu vinha/ Pois trazia na cabeça um balaio de galinha”.

Gardel e sanfonas

Homem da terra, eternizou o assassinato de seu primo Raimundo Jacó, boiadeiro dos bons, em 1954. Além da composição A Morte do Vaqueiro, Gonzaga ajudou a criar a Missa do Vaqueiro, celebrada a partir de 1971. A temática nordestina não entrou de imediato em sua obra. Na zona portuária e de prostituição do Rio, ele começou tocando boleros, tangos, polcas,

valsas. Era apaixonado por Carlos Gardel. Até que, provocado por um grupo de estudantes nordestinos que morava em uma pensão no Rio – entre eles o futuro ministro Armando Falcão, pioneiro em esquivar-se com o “nada a declarar” –, começou a tocar música de sua terra. “A partir dali, ele ganha um estilo próprio”, observa Assis Ângelo. A inspiração para usar uma indumentária regional veio do músico gaúcho Pedro Raimundo. “O Nordeste existia e precisava de maior atenção. O nordestino se sentia representado por ele, um predestinado a ser garoto-propaganda da região. Foi uma oportunidade dada por Deus”, diz a cantora Anastácia, pernambucana como Gonzaga e chamada de Rainha do Forró. “Foi, sem dúvida, o artista do século para o Nordeste e para o Brasil.” Ela se recorda de Gonzaga como uma pessoa alegre, que gostava de fazer gracejos. “Mas às vezes se fechava no mundo dele, não sei se lembrava daquela pobreza que via... Sentia que ele estava ruminando aquilo, pensando se pudesse mudar.” Anastácia lembra ainda uma temporada de três meses na qual ela e Dominguinhos, seu marido na épocas e uma das “crias” de Gonzaga, abriam as apresentações em circos, teatros, em tudo

quanto era lugar. “Eu cuidava do dinheiro. Várias vezes tinha de dar dinheiro a alguém porque ele falava que a pessoa estava precisando”, conta. Mas ele não ajudava alguém que bebesse – e Assis Ângelo observa que isso vem do trauma da surra que Gonzaga levou dos pais, ainda mocinho. Depois daquilo, nunca mais tomou bebida alcoólica. O cantador ajudava quem podia, não só com dinheiro. “Distribuiu mais de 200 sanfonas”, diz Assis Ângelo. “E morreu pobre.” Vindo de São Bento do Una, no agreste pernambucano, o cantor e compositor Alceu Valença lembra que cresceu ouvindo a música de aboiadores, emboladores, cantadores de feira, sanfoneiros de oito baixos, “enfim, em convívio permanente com os elementos que ajudaram Luiz a formatar seu estilo”. Segundo ele, é possível notar na origem da obra de Gonzaga a presença de gêneros como a polca, a valsa e a mazurca, e seu estilo foi formatado a partir de diversas manifestações artísticas e culturais do agreste e do sertão. “Acho que música brasileira é aquela que se faz aqui e em nenhum outro lugar do mundo. Eu mesmo, eventualmente, já compus rock, já compus blues. Mas sei

Daniel Gonzaga, 37 anos, segue a linha musical iniciada por “seu” Januário há mais de um século. Como ele mesmo diz, o pai, Gonzaguinha, falava da liberdade, do povo, do desejo de mudança. O avô, certo dia, feliz de vê-lo em cima de um cavalo, em Exu, foi buscar um chapéu e o chamou de boiadeiro. “São dois universos complementares. O urbano e o rural. O político e o ingênuo”, diz. “Dois universos que se descobriram. Se tocam no fim. Uma mistura fantástica.” No disco Discanço em Casa, Moro no Mundo, Gonzaguinha fala que seu pai era muitas pessoas. Como definir pessoas e artistas tão diferentes? Que lembranças trazem? Eles compõem seu xote relativo (título de uma canção de Daniel)? A definição, por si, já é fator de limite. Como se traduz uma personalidade? Pela força de seus atos? Quais atos­? Acho que trabalhar com arte e sobreviver, seja em 1950, 1980 ou 2012, coisa de gênio. São pai e filho, né? Se anulam e se completam. Meu avô gostava do povo, meu pai também. Meu xote relativo vem, sim, disso tudo e de outros fatores que me colocam na mesma linha de frente, diferente e igual. Soma e divisão. 42

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wilton montenegro/Divulgação

Universos que se tocam

Daniel: soma e divisão

Que canções você acha que melhor representam Luiz Gonzaga e Luiz Gonzaga Jr.? Acho que Asa Branca e O Que É o Que É representam um momento deles. E são emblemáticas de cada um.

Pelo que você acompanhou, pai e filho conseguiram uma reconciliação plena? Com certeza. Meu avô no final da vida estava morando com meu pai em Belo Horizonte. Tudo aquilo já havia ficado para trás. Meu pai ajudava nas festas de fim de ano em Exu e meu avô sabia muito mais da gente do que jamais soubera. O filme recém-lançado é fiel à história? Achei o filme bem fiel, sim. Minha reação foi bem doida, porque não dava pra saber se era filme ou a própria vida se desenrolando novamente. Uma emoção muito única.


Agência O Globo

cultura

Superação Gonzagão e Gonzaguinha no show A Vida do Viajante: o filho conheceu a dimensão da obra do pai, e o pai soube res­peitar o trabalho do filho. No final da vida, o pai foi morar com o filho em Belo Horizonte

que, quando faço um blues, estou dando a minha leitura para um estilo de música americano, não é música brasileira. É como ir a um restaurante japonês. Mesmo que o sushiman seja cearense, ninguém vai dizer que aquilo é comida nordestina. Com música é a mesma coisa”, acrescenta Alceu, que diz lamentar quando vê um artista brasileiro trocar “a grandeza da identidade da cultura brasileira” pelo que ele chamada de “pasteurização” da música de mercado. A reflexão surgiu de uma pergunta sobre um pedido que lhe foi feito pelo próprio Gonzaga, para não deixar o “forrozinho” morrer. Recentemente, Alceu criticou bandas que estariam se escondendo “sob o rótulo de forró”, mas lem-

brou que o legado de Luiz Gonzaga está acima disso. “Outro dia, num aeroporto, um rapaz se aproximou de mim para dizer que era cantor e compositor. Perguntei qual o estilo da música que ele fazia. O rapaz então me disse: ‘Faço rap, porque parece com a embolada’. Daí eu indaguei: ‘Então, por que não faz logo embolada?’ O Brasil precisa recuperar urgentemente sua trilha sonora. Precisamos ser mais cultos e menos cult”, diz o compositor, que em 1983 gravou com Gonzaga a música Plano Piloto (de Alceu e Carlos Fernando), homenagem a Brasília. No final deste ano de centenário foi lançado o longa Gonzaga – de Pai pra Filho, de Breno Silveira, o mesmo diretor de Dois Filhos de Francisco (2005). Baseado

no livro Gonzaguinha e Gonzagão – Uma História Brasileira, de Regina Echeverria, o filme mostra histórias de pai e filho, a relação muita vezes conflituosa e o reencontro, inclusive musical, no final da vida. Gonzaguinha nasceu em 1945. Não foi criado pelos pais. O pai artista tinha rotina­ de viajante e a mãe, Odaleia, contraiu tuber­culose – morreu quando o menino ainda era pequeno. Os padrinhos, Dina e Xavier, ficaram com Luizinho, como ele era chamado. Especulou-se muito sobre a paternidade, mas o fato é que o garoto foi registrado por Luiz Gonzaga. Dife­rentes fisicamente, no pensamento e na personalidade, tiveram convivência difícil. Mas superaram barreiras e conseguiram se aproximar a ponto, inclusive, de fazer um show juntos, entre 1980 e 1981, A Vida do Viajante. O filho conheceu a dimensão da obra do pai, e o pai soube res­peitar o trabalho do filho, que morreu em um acidente em 1991, menos de dois anos depois de Gonzagão. Eram artistas da estrada. revista do brasil novembro 2012

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Desfrute bem, com todo o respeito Atenção a pequenas regras de proteção dos biomas marinhos e ao modo de vida das comunidades tradicionais é ponto de partida para uma saborosa viagem ao litoral cearense Por Túlio Muniz

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Lagoa da Encantada, Jenipapo-Kanindé, Aquiraz

Arquivo Instituto Terramar

C

om mais de 570 quilômetros de praias, mangues e restingas, com sol o ano inteiro e boa infra­estrutura para todos os gostos e bolsos, o estado do Ceará tornou-se um dos campeões de prefe­rência do turismo nacional. Em seus extremos estão ­Jericoacoara, 300 quilômetros a oeste de Fortaleza, e Icapuí, pioneira no turismo social promovido pelas comunidades de pescadores artesanais, 220 quilômetros a leste. Entre uma e outra, há lugares efervescentes e discretos, sempre exuberantes. A capital já é o maior destino do Nordeste, à frente de Recife e Salvador. O movimento turístico no Ceará aumentou 40% em cinco anos, chegando a quase 3 milhões de pessoas em 2011 e constituindo-se num dos mais importantes motores da economia local. Em julho, dos 2 mil empregos com carteira criados no setor de serviços no estado, mais da metade, 1.226, foi no turismo. No mesmo período, a Bahia teve saldo positivo de 661 vagas


viagem

no segmento, seguida por Rio Grande do Norte (593) e Sergipe (492). Em todo o Nordeste, mais da metade das oportunidades criadas está no Ceará. Os dados são do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho. Embora Fortaleza seja a mais importante porta de entrada do estado, é crescente o interesse de viajantes por destinos mais distantes e menos urbanizados, seduzidos pela popularidade das iguarias do mar (lagosta, camarão e caranguejos), por pousadas mais em conta, ambientes mais rústicos e aconchegantes. Essa tendência, porém, mexe com as comunidades antes voltadas a pequenas atividades econômicas de subsistência, como a pesca artesanal e o artesanato típico, sobretudo as rendas e o labirinto – técnica de “desfazimento” de tecido para composição de forros de almofadas, toalhas e colchas com desenhos geométricos intrincados. A chegada desordenada de visitantes aumenta as ameaças ambientais – principalmente as ligadas ao consumo de espécies marinhas e à ocupação do solo – e afeta a vida social e a cultura das populações locais. Algumas, preocupadas em não desperdiçar efeitos positivos do turismo para a economia local e também em não permitir a degradação de suas localidades, começaram a organizar redes de turismo comunitário. O armador americano Davis Morgan foi o precursor da indústria cearense da pesca da lagosta, a partir de 1955. A atividade, dali em diante, mudou o cotidiano de pescadores e suas famílias, animados com um mercado no qual o preço médio chegou a US$ 20 o quilo (nenhuma outra espécie capturada chega a tanto), levou empolgação a pequenas vilas praianas. Mesmo no consumo interno, a lagosta – consumida a peso de ouro no Sul e Sudeste – tornou-se acessível nos cardápios locais, em sofisticados restaurantes da capital cearense ou nas modestas barracas de praias mais afastadas. Meio século de pesca predatória, no entanto, bastou para levar a atividade ao declínio, sobretudo por conta da pesca ilegal

camila garcia/tucum.org

Praia de Tremembé, Icapuí

Águeda Coelho/tucum.org

Praia no Parque Nacional de Jericoacoara

Roberto Bandeira/olhar imagem

Conter a empolgação

Regata de paquetes do Assentamento Maceió, Itapipoca

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do crustáceo e da proliferação da captura, por mergulho, da lagosta miúda, cuja venda é proibida pelo Ibama. Atualmente, a pesca só é permitida entre os meses de maio e novembro. Nos cinco restantes, dezembro a abril, deve-se respeitar o chamado “defeso”, época de reprodução natural do crustáceo. O período coincide com a “safra” do turismo, quando se concentram as férias dos brasileiros e a chegada dos estrangeiros em “fuga” do inverno do hemisfério norte. E não é incomum visitantes desavisados consumirem uma lagosta ilegalmente levada para o prato. “Seria de grande valia se os turistas procurassem se informar sobre a legislação ambiental local. As operadoras de turismo também têm de colaborar nessa questão”, afirma Cláudio Ferreira, do Núcleo de Pesca do Ibama-CE. Mas, no estado mais visitado da região, poucas o fazem. Além da lagosta, uma variedade imensa de espécies marinhas tem a captura proibida em determinados períodos do ano. “O Brasil tem uma legislação ambiental atualizada acerca da proteção dos seus recursos pesqueiros do Nordeste. Entretanto, faltam ações de educação ambiental e de controle do nosso ecossistema marinho”, explica Ferreira. René Scharer, membro do Comitê de Gestão para o Uso Sustentável da Lagosta, afirma que o defeso é um instrumento de gestão necessário. Segundo ele, está em discussão uma certificação destinada ao consumo. A lagosta certificada é mantida viva, e assim seria comercializada, inclusive em restaurantes. Duas espécies são encontradas no Brasil, e ambas só podem ser capturadas com, no mínimo, 11 centímetros de cauda. “A certificação ajudaria a minimizar o fracasso nas políticas públicas referente à lagosta”, afirma Scharer. Cabe ao turista consciente se informar, diante do fornecedor, se o prato que chega à sua mesa foi produzido a partir de retirada legal. Pedir lagosta “fresca” durante o defeso é contribuir para pôr em risco o bioma marinho. 46

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Dunas de Tatajuba, Camocim

Arquivo Instituto Terramar

Águeda Coelho/tucum.org

Prainha do Canto Verde, Beberibe


viagem

Águeda Coelho/tucum.org

Turismo comunitário

De olho no calendário Espécie

Defeso

Pargo

15/12 a 30/4, litoral de AP, PA, MA, PI, CE, RN, PB, PE e AL

Robalo, robalo branco e camurim ou barriga mole

15/5 a 31/7, BA (litoral e interior) 1º/5 a 30/6, ES (litoral e interior)

Sardinha-verdadeira

1º/11 a 15/2, do Cabo de S. Tomé (RJ) ao Cabo de Santa Marta (SC)

Camarão rosa, branco e sete barbas (costa Norte)

15/10 a 15/2, AP, PA, MA, PI

Camarão rosa, branco e sete barbas (costa Nordeste)

1º/4 a 15/5, divisa dos estados de PE e AL 1º/12 a 15/5, divisa dos municípios de Mata de S. João e Camaçari (BA) 15/9 a 31/10, divisa de BA e ES

Caranguejo-uçá (Norte e Nordeste)

1º/12 a 31/5, Região Nordeste e Pará

Guaiamum (Nordeste)

Proíbe a captura de fêmeas nos estados do Nordeste

O turismo convencional em larga escala também causa prejuízos ambientais por uso indevido do solo. A ocupação irregular de áreas de preservação por grandes condomínios e hotéis altera a paisagem natural e remove populações locais indistintamente. Com vistas a coibir essa prática foi criada em 2008 a Rede Cearense de Turismo Comunitário. Na prática, a Rede Tucum, como é conhecida, incentiva a capacitação de famílias residentes em localidades turísticas para receberem visitantes num modelo que pode ser chamado de pousada domiciliar ou familiar. Segundo a coordenadora da rede, Rosa Martins, a proposta de turismo comunitário começou junto com uma mobilização social em defesa de políticas públicas de turismo e dos direitos das populações ameaçadas pela ocupação do litoral por grupos econômicos e pela especulação imobiliária. “É uma estratégia de resistência, de afirmação das culturas, que propõe construir relações éticas e solidárias entre comunidades e visitantes. As comunidades acolhem turistas identificados com a proposta para partilhar saberes e fazeres com diversidade e beleza”, diz Rosa. A Rede Tucum já tem grupos atuantes nas praias de Tatajuba (entre Jericoacoara e Camocim) e Caetanos de Cima (Amontada), no litoral oeste, e em Jenipapo-Kanindé (aldeia indígena em Aquiraz), Canto Verde (Beberibe), Tremembé e Ponta Grossa (em Icapuí), no leste. “Antes da rede, as políticas de turismo desconsideravam as organizações comunitárias e os impactos ao ambiente e aos modos de vida tradicionais”, observa Rosa. “A mobilização envolveu novos sujeitos sociais e ajudou a construir uma visão crítica acerca das perspectivas com que são conduzidas as estratégias de desenvolvimento que elegeram o turismo como a solução para os problemas do Nordeste.” Ao alertar para a proteção das comunidades tradicionais, a Rede Tucum promove também a preocupação com os ecossistemas locais e com a ocupação dos terrenos. A expansão imobiliária ligada à indústria do turismo é um grande problema. A edificação desenfreada acelera a erosão de falésias e a deterioração de dunas, para onde correm águas de chuvas não mais absorvidas devido à impermeabilização ostensiva do solo. A ­degradação acompanhou o boom de urbanização e dos com­ plexos turísticos de grandes hotéis, resorts e condomínios. As pousadas familiares são um convite a uma cultura turística mais sustentável. Sem abrir mão das maravilhas da região, os visitantes contribuem com comunidades onde há pouca ou nenhuma alteração na integração entre natureza e moradores. A experiência tem amadurecido a ponto de já oferecer “pacotes” alternativos. Sem luxo, mas com aconchego, afeto e interação ambiental, itens nem sempre presentes em hotéis e pacotes convencionais.

Saiba mais

Rede Tucum: www.tucum.org Instituto Terramar: (85) 3226-2476, 9933-0153, skipe:rosinhamartins1 Manual do Ministério do Meio Ambiente para consumo responsável: http://bit.ly/consumo_legal revista do brasil novembro 2012

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curta essa dica

Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Gota d’água Em uma pequena comunidade muçulmana machista e conservadora no norte da África, a tarefa das mulheres é buscar água na fonte, distante e de difícil acesso. Elas sobem e descem caminhos tortuosos, carregando baldes pesados que vão suprir as necessidades de todas as famílias. O conflito começa quando uma delas sofre um aborto depois de uma queda, ao descer a montanha. Leila (Leila Bekhti), uma das poucas mulheres que

sabem ler na comunidade, propõe a todas fazer greve de sexo até que os homens consigam a água encanada. Feminismo, corrupção, religião e transgressão são apresentados ao espectador de A Fonte das Mulheres, de Radu Mihaileanu, de maneira leve, ingênua e até engraçada. O filme enche olhos e ouvidos com paisagens incríveis e músicas belíssimas. Em DVD.

Fantoches e animais raros

Juanín (voz de Daniel de Oliveira) é produtor do telejornal 31 Minutos, produzido e apresentado por personagens coloridos e excêntricos. Ao saber que ele é o último de sua espécie, a colecionadora de animais em extinção Cachirula (dublada por Mariana Ximenes) o rapta e leva até seu castelo, onde mantém em cativeiro muitos outros animais raros. A atrapalhada equipe do programa dá início a uma busca muito louca, na qual terá de enfrentar um verdadeiro exército para salvar Juanín. O filme infantil, baseado no programa homônimo exibido no canal pago Nickelodeon, é uma coprodução (Brasil, Chile e Espanha) e o único longa-metragem brasileiro feito apenas com fantoches. O DVD chega agora em novembro. 48

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Tricolor gaúcho

O jornalista gaúcho Marcelo Ferla reuniu, por meio de suas lembranças afetivas de torcedor, os jogos mais importantes do Grêmio de Porto Alegre no livro Jogos Monumentais – Memórias do Estádio Olímpico (Arquipélago Editorial, 208 pág.). Para contar a história do time, o autor escolheu 11 partidas emblemáticas, todas jogadas no estádio: a de sua inauguração, em 1954, contra o Uruguai, e outras que resultaram em títulos, como a do Campeonato Brasileiro de 1981, a da Libertadores de 1983 e as das Copas do Brasil de 1989 e 1994. Além da trajetória do time, Ferla relata as mudanças pelas quais o futebol e a cidade passaram nesses quase 60 anos. Com ilustrações de Hélio Devinar. R$ 39,90.


Cecília Meireles repaginada Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles, é um clássico presente na memória de muitas crianças nascidas após 1964, quando foi lançado. Na obra, a poeta agrega com a naturalidade e a simplicidade de seu talento uma diversidade de componentes da linguagem e do cotidiano de adultos e crianças. De cantigas de ninar a trava-línguas, de adivinhações a parlendas – aqueles versos de rima fácil para exercitar o raciocínio e divertir. Relançado pela Global Editora (66 pág.), o livro agora pode voltar às estantes ilustrado pelos desenhos de Odilon Moraes, que caprichou nas aquarelas para homenagear uma de suas histórias preferidas. R$ 42.

Primeiro capítulo

Trechos do primeiro show do Skank fora de Belo Horizonte, em junho de 1991, viraram, mais de 20 anos depois, o disco Skank 91, “um retrato de como era o grupo nos primórdios”, como define Samuel Rosa, líder da banda. Telefone, da Gang 90, Raça, de Milton Nascimento, Shot in the Dark, de Henry Mancini, Macaco Prego, Eu me Perdi e Homem Que Sabia Demais foram resgatadas e masterizadas por Chris Gehringer, em Nova York. R$ 25, em média.

Balões e Brown

Uma série de esculturas infláveis feitas de papel de seda e inspiradas em mestres baloeiros das zonas norte e oeste do Rio de Janeiro compõe a exposição Pneumática, do artista paraense Paulo Paes, em cartaz até 25 de novembro na Caixa Cultural Brasília, na Galeria Vitrine. Já na Galeria Acervo, da mesma CCB, estão 25 telas e cinco instalações feitas pelo músico Carlinhos Brown. Nas obras de O Olhar Que Ouve, Brown levou para as telas toda a sua musicalidade e seu movimento por meio de traços e cores exuberantes. Com curadoria de Matilde Matos, a exposição fica em cartaz até 2 de dezembro, de terça a domingo, das 9h às 21h. SBS, Quadra 4, Lotes 3/4 – anexo do edifício Matriz da Caixa. Grátis. revista do brasil

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b.Kucinski

O cozinheiro do Figueiredo

Em Florianópolis, você não pega táxi na rua. É preciso telefonar. De preferência com antecedência, marcar hora. O taxista desta história foi chamado pelo hotel. Aproveitei para anotar seu celular. Assim, teria a quem recorrer dali para a frente

O

homem é atarracado, o rosto estufado, de quem come bem e gosta de uma cerveja. Não parece velho. Deve ter entre 55 e 60 anos. Chamo-o de Quincas. Para sair do pátio do hotel, ele precisou dar a ré e esterçar. Já na avenida, depois de alguns minutos, disse: — Agora manobro carro, mas antes eu manobrava fogão. — Como assim, o senhor era cozinheiro? Então senti que ele disse o que estava querendo dizer desde o começo, talvez para mostrar que não era um taxista qualquer, que tinha uma história. — Eu fui cozinheiro do Figueiredo. — Do general Figueiredo? E como era ele? — Gostava de carne doce, costela, maminha, tinha de pôr fruta, maçã, pêssego, abacaxi; quando comia fora eu é que provava.

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— Tinha medo de ser envenenado? — Era do regulamento; para onde ele ia, eu ia junto. — E como é que o senhor virou cozinheiro do general Figueiredo? — Eu sou militar. — Com que patente? — Taifeiro da Aeronáutica. — Mas taifeiro não é de navio, da Marinha? — Eu era da Marinha, mas passei para a Aeronáutica; lá também tem taifeiro, os cozinheiros, os ajudantes, são todos taifeiros. — E como era o Figueiredo como pessoa? — Era um homem bom, ruim era o Geisel, esse era tão mau que acho que não gostava nem dele mesmo. — Então você gostou de trabalhar com o general Figueiredo? — Só o que ele fez de ruim foi dar anistia para esses vagabundos lá de fora, eu disse para ele que estava errado, mas ele disse que precisava fazer isso. A conversa parou aí. Por sorte, chegara aonde tinha de chegar. Paguei. Saí. Risquei o celular do Quincas da minha agenda. Prefiro andar a pé, pensei. Passei o resto do dia triste com meu país.




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