Revista do Brasil nº 078

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“MINHA HISTÓRIA É DE IDEIAS, NÃO DE DINHEIRO” Genoino e a luta para provar sua inocência

CURVAS DE NIEMEYER O arquiteto que projetou um Brasil moderno

nº 78 dezembro/2012 www.redebrasilatual.com.br

O D N U M O I A V O A N ACABAR

Ninguém precisa devorar tantas calorias e porcarias como se não houvesse amanhã. A obesidade é um problema social e um risco para o futuro



ÍNDICE

EDITORIAL

10. Política

Genoino, sua família e a força para defender sua história

16. Economia

Governo tenta fazer motor da indústria voltar a funcionar

24. Atitude

A vida em um kibutz em Gaza: medo e vontade de mudar

28. Mundo

STRINGER/REUTERS

China troca governo central e tenta manter crescimento 32. Confusa como a direita dos EUA, só a francesa. Ou a nossa 34. Esquentam na Espanha e em Portugal reações aos cortes

36. Saúde

Operário em Shanxi: a China ajusta sua economia para crescer num ritmo sustentável

40. Cidadania

Continua em 2013

Avanço da obesidade infantil preocupa as autoridades Presídio apoia travestis em luta contra discriminação

E

42. História

Líder da Revolta da Chibata, histórias que não se contam

CERTO XORNAL/FLICKR/CC

Obra assinada por Niemeyer na Espanha

44. Viagem

Oscar Niemeyer espalhou influências pelo mundo

Seções Destaques do mês

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Lalo Leal

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Mauro Santayana

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Curta essa dica

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Crônica: Mouzar Benedito

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ste ano, de novo, anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar, como diz a letra de um samba de Assis Valente – gravado por Carmen Miranda em 1933. De novo, a profecia não se cumpriu, mas o planeta teve lá seus problemas. Na Europa, vários países, diante da crise, recorrem a velhas fórmulas de austeridade que atingem, acima de tudo, os cidadãos. Milhares de pessoas têm saído às ruas para protestar contra o corte de direitos e o aumento de impostos. Nos Estados Unidos e na China, as duas potências mundiais, é momento de correção de rotas. Um país reelegeu seu presidente, enquanto outro vive as tensões decorrentes da troca de comando. No Brasil, a economia perdeu força. Menos mal que as taxas de desemprego se mantiveram em queda ou, pelo menos, estáveis. O emprego ainda cresce, mas em menor ritmo. A indústria parece ser o setor mais atingido e, depois de receber várias medidas de estímulo, tenta empurrar o carro para o alto da ladeira, na esperança de embalar em 2013. Essa é a expectativa do governo, que atinge agora a metade do mandato. Alguns personagens ganharam evidência ao longo do ano. Entre eles o ex-presidente do PT José Genoino, um dos condenados pelo Supremo Tribunal Federal no processo conhecido como “mensalão”. Nesta edição, ele fala como viu o julgamento no STF e lembra sua vivência política, do Araguaia a Brasília. Em tempos de dosimetria, é um bom período para a reflexão sobre os rumos do país e para lembrar que o conceito de nação pressupõe o funcionamento regular e equilibrado do Executivo, Legislativo e Judiciário. Em outras palavras: não se pode demonizar um às custas de outro. Também é tempo de mudança nas prefeituras. Que as novas administrações municipais se inspirem nas expectativas das pessoas nas ruas e as cidades sejam cada vez mais de quem vive nelas, com todas as suas diferenças. Os movimentos sociais, por sua vez, esperam atitudes de seus governantes e legisladores. Temas importantes estão há tempos no Congresso e precisam sair do papel. Fim do fator previdenciário, redução da jornada, marco civil da internet são alguns deles. Como o mundo vai continuar, que seja para melhor. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Influx Productions/Getty Images Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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DEZEMBRO 2012 REVISTA DO BRASIL

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Bom ano para a informação A audiência média dos sites de notícia aumentou 15% em outubro. A da Rede Brasil Atual, 42%. Cresce o número de leitores que procuram, e acham, diferentes visões antes de formar sua opinião Por João Peres

A

s eleições dos últimos anos têm sido fundamentais para fazer a sociedade atentar para o surgimento de novas vozes no jornalismo. À medida que a internet alcança mais brasileiros, torna-se mais fácil para o cidadão acessar diversas visões sobre um mesmo tema. O último pleito, em outubro, não teve bolinha de papel a sacudir cocurutos, mas claramente se dividiu entre os meios de comunicação que evocaram o bate-boca político e os que se prestaram a destacar temas de fato relevantes para os cidadãos. Alguns se arrastaram sofregamente durante três meses pelos corredores do Supremo Tribunal Federal (STF) em busca de notícias que pudessem complicar este ou aquele candidato em meio ao julgamento da Ação Penal 470, do mensalão . Outros compararam planos de governo, esmiuçaram propostas, entrevistaram personagens importantes na formulação das ideias. O resultado está nos números. Segundo dados do Ibope, as páginas de notícias apresentaram crescimento de 15% na audiência em outubro frente a igual período do ano passado. No caso da Rede Brasil Atual, a expansão foi de 42%, e o site chegou a seu maior nível de acesso da história, com 410 mil visitantes. Apesar das dificuldades impostas por certo candidato, os repórteres da RBA estiveram presentes nos principais lances da disputa, especialmente em São Paulo. A revelação, feita por nossa reportagem, de que foi o então prefeito José Serra

(PSDB) quem eliminou um programa de prevenção aos incêndios em favelas virou tema de debate obrigatório entre os candidatos no primeiro turno. Na segunda fase da disputa, pudemos mergulhar a fundo nos planos de governo de cada postulante. Os dados indicam, ainda, existir um grupo de leitores ávido por informações aprofundadas. Enquanto nos grandes portais o tempo médio de cada visita ra-

Maior público para a RBA Crescimento de janeiro a novembro

119%

69% 31% número de acessos

visua­lizações

duração média da visita

Fonte: Google Analitics

Audiência comparada Crescimento da audiência dos sites de notícia em outubro

42%

15%

média do mercado Fonte: Ibope e Google Analitics

Rede Brasil Atual

ramente passa de dois minutos, na RBA o leitor investe mais de seis minutos conectado e lê em média três notícias por visita. Entre janeiro e novembro, o número de acessos cresceu 31%, as visualizações 69% e a duração média da visita, 119%. Séries de reportagens ajudaram o leitor a formar opinião: as heranças da ditadura (1964-1985) ainda vivas em nosso país, os entraves para dar um basta ao trabalho escravo, o uso prático da Lei de Acesso à Informação, a resistência das universidades paulistas à adoção de sistemas de cotas, o tráfico de pessoas. Sobre esse tema, aliás, só em 5 de novembro os leitores de um dos mais acessados portais de notícias souberam que o Brasil tem 241 rotas pelas quais atuam os traficantes. Quatro meses antes, em 13 de julho, a RBA trouxe essa questão, em um conjunto de 14 textos em torno do assunto. Para os meios que fazem da informação uma propriedade privada, as crises de vendas e de audiência nem sempre se combatem com a melhoria da qualidade e a aposta na credibilidade. Alguns fecham jornais, outros apelam ao telemarketing, oferecendo descontos de 50% a 100% nas assinaturas. Mas conforto, mesmo, encontram nos ombros de sempre. Antes de ganhar uma reportagem de capa na edição paulistana de Veja, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, liberou R$ 1,2 milhão de verba pública para produtos do Grupo Abril. E ainda há quem se queixe das migalhas recebidas pela nova mídia. Na tentativa de descobrir algum privilégio praticado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República com suas verbas de publicidade, o jornal Folha de S. Paulo constatou que os grandes privilegiados são ele próprio, junto com os grupos Globo, Record, Estadão e Abril. Muy independentes, não? Felizmente, está crescendo o número de leitores que procuram outras fontes para se informar. E, felizmente, estão encontrando. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Pacto contra o analfabetismo

AGENDA NACIONAL Objetivo é fazer com que todas as crianças até 8 anos saibam ler

MARCELLO CASAL JR./ABR

Assinado por todas as Secretarias de Educação de todos os estados e de 5.270 municípios, o Pacto Nacional pela Alfabetização, lançado pelo governo federal, tem o objetivo de erradicar nesta década o analfabetismo entre crianças até 8 anos de idade. A parceria será coordenada pelo Ministério da Educação. “O pacto tem caráter de urgência. Não nos conformamos com o fato de que, em média, 15% das crianças até 8 anos de idade não estejam plenamente alfabetizadas”, afirmou a presidenta Dilma Rousseff no discurso de lançamento. bit.ly/rba_educa

LIMITE Condições precárias e alimentação à base de doações

MARCELLO CASAL JR./ABR

Frigoríficos: uma NR urgente

Haitianos no Acre

O secretário de Justiça e Direitos Humanos do Acre, Nilson Mourão, afirma que chegou ao limite a capacidade do governo local de prestar ajuda humanitária aos haitianos instalados em Brasileia, na fronteira com a Bolívia. “Não há ação de hostilidade, mas também acabou a solidariedade”, diz Mourão. Até as igrejas, católica ou evangélica, retiraram a ajuda prestada. “Falam muito, mas não fazem nada.” Segundo ele, 3 mil haitianos arrumaram emprego e seguiram para vários estados, mas agora há certa saturação de mão de obra. O auxílio aos que continuam lá está prejudicado por falta de recursos. “A crise econômica afeta também o Brasil, não temos o que fazer. Tive de cortar a alimentação, agora só restam algumas doações recebidas por eles na rua.” bit.ly/rba_acre_haiti 6

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Em 2010, o setor de frigoríficos registrou 30 mil afastamentos por motivos de doença, dos quais 12 mil provocados por esforços repetitivos. Os dados, do Ministério do Trabalho e Emprego, foram divulgados pela Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (Contac), filiada à CUT. A entidade participa da discussão de um novo conjunto de regras para a atividade, no formato de norma regulamentadora. Com a NR, espera-se revolucionar os locais de trabalho nos frigoríficos e tirar a indústria brasileira do setor da liderança do ranking de acidentes. “Temos mais de 200 mil trabalhadores doentes”, diz o presidente da Contac, Siderlei de Oliveira. bit.ly/rba_frigo


FOGO CRUZADO Entre bandidos e PMs, nem as crianças estão salvas

A escalada da violência provocou turbulências no governo de São Paulo, uma aproximação do governo federal e trocas de comando no sistema de segurança do estado. No começo de novembro, Geraldo Alckmin e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, discutiram a formação de uma agência integrada, para desenvolver trabalhos de inteligência. Um dos objetivos é identificar a origem dos recursos que financiam o crime. Quinze dias depois, Alckmin anunciou a saída do secretário de Segurança Pública, Antônio Ferreira Pinto, substituído pelo procurador Fernando Grella, há 28 anos no Ministério Público, e a troca dos comandantes das polícias Civil e Militar. O Comitê contra o Genocídio da População Pobre, Negra e Periférica cobra dos governos satisfações sobre o combate à violência. Algumas regiões vivem ambiente de toque de recolher, acuadas pelos dois lados da guerra. Em entrevista à Rede Brasil Atual, a coordenadora-auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Daniela Skromov, defendeu a mudança de comando.

“Vinha havendo um desgaste absurdo, porque até os próprios policiais começaram a se opor à política do governo e do antigo secretário, Antônio Ferreira Pinto.” Daniela critica o sucateamento da Polícia Civil, afirma que a polícia do Estado democrático é a que investiga e defende a ideia de que as mortes provocadas por policiais podem revelar despreparo e devem ser investigadas como homicídio. bit.ly/rba_onda_violenta IMPENSÁVEL Alckmin aceitou ajuda federal e trocou secretário

FOTOS MARCELO CAMARGO/ABR

JOSÉ L. CONCEIÇÃO/ASS. LEG. SP

Violência e turbulência

O réu Barros Munhoz VOTAÇÃO EMPATADA TJ julga presidente da Assembléia de São Paulo

O presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, Barros Munhoz (PSDB), enfrenta julgamento no Tribunal de Justiça por denúncias de corrupção feitas pelo Ministério Público relativas à sua gestão à frente da Prefeitura de Itapira, de 2001 a 2004. O relator votou pela condenação do tucano; o revisor defendeu a absolvição. O julgamento já sofreu três adiamentos – o placar está três a três. Se for condenado, o deputado ainda pode recorrer. bit.ly/rba_munhoz REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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TVT

FOTOS: DIVULGAÇÃO/TVT

Tecnologia social contra a pobreza Série com 16 programas mostra formas criativas de trabalho, distribuição de renda e inclusão. Histórias de comunidades que criam a própria oportunidade de mudar a realidade

A

cada episódio, a série Tecno­ logia Social: Solução para Superar a Pobreza traz uma experiência original sobre educação, renda, trabalho e qualidade de vida de famílias e comunidades inteiras. Em Baturité (CE), jovens utilizam a música e o esporte para fortalecer a cidadania. Nas comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul, a educação de adultos abre horizontes para a vida dos descendentes de escravos. Projetos de promocão de trabalho e renda atravessam estados na construção de barraginhas, na produção agroecológica integrada e sustentável, no fortalecimento de cadeias produtivas, do mel, do caju, da mandioca, entre outras. Iniciativas que estimulam o cooperativismo e ajudam a produzir riquezas no local de origem dos projetos. A série tem formato de minidocumentários, resultado da parceria entre a Fundação Sociedade Comunicação Cultura e Trabalho, mantenedora da TVT, e a Fundação Banco do Brasil, uma das principais apoiadoras de programas de tecnologias sociais do país. Exibida de segunda a sexta-feira, estreou em 26 de novembro e vai até 17 de dezembro, às 19h30, na programação da TVT, no Canal UHF 46, em Mogi das Cruzes, e na Rede NGT, presente 8

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em 310 cidades espalhadas por 11 estados. Do norte ao sul do Brasil, a série retrata cenários inusitados. Cidades isoladas que parecem ter saído de filme de ficção. Comunidades castigadas pela seca e pela miséria revelam os contrastes entre a paisagem cruel e a beleza do sertão. Em cada região do país, descobre principalmente pessoas com uma vontade imensa de construir uma vida melhor. Em quase todas as histórias, uma característica se destaca: a forte presença das mulheres, valentes e protagonistas. A agricultora Girlene, de Urupá, em Rondônia, é uma delas. Ao lado do marido e dos filhos, ela investe na Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (Pais). Na horta, cultivada num pequeno pedaço de terra e com técnica simples e criativa, a família já colhe os frutos, ou melhor, as caixas de verduras e legumes, que são fornecidas a escolas e feiras da região. A produção sem agrotóxicos re-

Como sintonizar Canal 48 UHF (18h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br

sulta num alimento saudável que todos os dias chega à mesa do consumidor e da própria família. Girlene mora numa casa simples e sem eletricidade, mas um lugar digno, agradável, vistoso. Recebe a equipe com sorriso no rosto, dá boas-vindas aos filhos que chegam da escola, prepara o almoço e ainda enfrenta a lida diária em casa e na roça. E está feliz da vida com os resultados que colhe todos os dias e com a perspectiva de um amanhã próspero para os filhos. Ela é uma entre tantas guerreiras que a série vai mostrar. Realidades como a da professora Crismara, que fez da sua casa a sala de aula para alunos quilombolas; da catadora Cláudia, que trocou o corte e costura por maior consciência ambiental na separação de material reciclado; da cooperada Janecleide, no sertão da Bahia, que viu na produção de biscoito uma forma de aumentar a renda e resgatar a autoestima. Mais do que experiências de tecnologias sociais, a série conta a história de brasileiras e de brasileiros. Além da exibição em rede aberta de televisão, os 16 programas, com roteiro e direção da jornalista Eliane Biondo, podem ser vistos nos portais da TVT (www. tvt.org.br) e da Fundação Banco do Brasil (fbb.org.br).


LALO LEAL

Quando o controle remoto não resolve

Em que pese a importância das redes sociais e da internet para o debate sobre as virtudes e defeitos dos meios de comunicação, nas universidades a crítica definha

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ornais, revistas, o rádio e a televisão tratam de quase tudo sem restrição. Apenas um assunto é tabu: eles mesmos. Se hoje a internet tem papel relevante nesse debate sobre a mídia, na academia houve retrocesso. O programa Globo Univer­ sidade, das Organizações Globo, tem parcela importante de responsabilidade nessa mudança. Surgiu com o objetivo de neutralizar aquela que era uma das poucas áreas em que se realizava uma análise crítica sistemática dos meios de comunicação. Passou a financiar laboratórios de pesquisa e eventos científicos, e, com isso, um objeto de investigação, no caso a própria Globo, tornou-se patrocinador do investigador, retirando da pesquisa a necessária isenção. Fez na comunicação o que a indústria farma­ cêutica faz com a medicina, bancando viagens e congressos médicos para propa­gandear remédios. O resultado prático pode ser visto no número crescente de trabalhos acadêmicos sobre o uso de novas tecnologias associadas à TV e as formas de aplicação de seus resultados pelo mercado. Enfatizam cada vez mais o papel do receptor como elemento capaz de selecionar, a seu critério, os conteúdos que lhe interessam. Fazem, dessa forma, o jogo dos controladores dos meios, retirando deles a responsabilidade por aquilo que é veiculado. Fica tudo nas costas do pobre receptor. Esquecem o fenômeno da concentração dos meios que reduz o mundo a uma pauta única, com pouca diferenciação entre os veículos.

Dizem em linguagem empolada o que empresários de TV costumam expressar de modo simples: “O melhor controle é o controle remoto”. Como se ao mudar de canal fosse possível ver algo muito diferente. Cresce também o número de empresas de comunicação que oferecem cursos até em universidades públicas, retirando dessas instituições o espaço do debate e da crítica. Saem dos cursos de comunicação jovens adestrados para o mercado, capazes de se tornar bons profissionais. No entanto, a débil formação geral recebida os impedirá de pôr os conhecimentos obtidos a serviço da cidadania e da transformação social. O papel político desempenhado pelos meios de comunicação e a análise criteriosa dos conteúdos emitidos ficam em segundo plano, tanto na pesquisa como no ensino. Foi-se o tempo em que, logo dos primeiros anos do curso, praticava-se a comunicação comparada, com exercícios capazes de identificar as linhas político-editoriais adotadas pelos diferentes veículos. Caso fosse aplicada hoje, mostraria, com certeza, a uniformidade das pautas, com jornais e telejornais reduzindo os acontecimentos a meia dúzia de fatos capazes de “render matéria”. Mas poderia, em alguns momentos excepcionais, realçar diferenças significativas, imperceptíveis aos olhos do receptor comum. Como no caso ocorrido logo após a condenação de José Dirceu pelo STF. Ao sair de uma reunião, o líder do PT na Câmara dos Deputados, Jilmar Tatto, foi abordado por vários repórteres. Queriam saber sua opinião sobre o veredicto do Supremo. Claro que ele deu apenas uma resposta, mas para quem viu os telejornais da Rede TV e da Globo foram respostas diferentes. Na primeira Tatto dizia: “A Corte tem autonomia soberana e pagamos alto preço por isso. E só espero que essa jurisprudência usada pelo STF continue e que tenha o mesmo tratamento com os acusados do PSDB”. Na Globo a frase sobre o “mensalão tucano” desapareceu. Em casa o telespectador, mesmo vendo os dois jornais, dificilmente perceberia a diferença entre ambos, dada a sequência rápida das imagens. Mas para a universidade seria um excelente mote de pesquisa cujos resultados teriam uma importância sociopolítica muito maior do que longos discursos sobre transmídias e receptores. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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POLÍTICA

A solidariedade lhe é familiar

Depois de pegar em armas contra a ditadura, Genoino pode voltar à prisão em plena democracia. Mas encontra na família, nos amigos e em solidários anônimos energia para defender sua história Por Paulo Donizetti de Souza

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ioco Kayano foi presa em abril de 1972. Caiu nas mãos da repressão à Guerrilha do Araguaia pouco depois de se hospedar em Marabá (PA). O cerco se fechava. A operação contra 70 guerrilheiros teria reunido até 10 mil soldados. José Genoino a conheceu em 1968, das reuniões do PCdoB. E, se a vida na clandestinidade os afastou, a cadeia os uniu. Genoino assistiu à final da Copa de 1970, Brasil 4 x 1 Itália, na casa de Rioco. Embarcou para o sul do Pará no dia em que a seleção brasileira voltou do México. Os tricampeões desfilavam no Anhangabaú, em São Paulo, e ele tomava um ônibus para Campinas (SP), depois Anápolis (GO), Imperatriz (PA), selva. Preso no mesmo mês que a companheira, avistou-a na prisão. Estavam em diferentes salas de tortura e olharam-se acidentalmente através de um espelho – temendo pelo que teriam de suportar. Passaram a trocar mensagens de amor. Casaram-se em 1977, quando ele foi solto. Quando embarcaram para a luta armada, não imaginavam que em menos de uma década o regime autoritário passaria por uma abertura gradual – e “segura” para os golpistas de 1964. Preso numa cela em Carolina do Norte, tendo agora como sonho imediato um pouco de água para abrandar a secura provocada pela malária e pelos choques elétricos, como poderia supor que em 1980 seria o sétimo filiado do diretório do Butantã de um partido legalizado e apto para a disputa e pelo qual seria eleito deputado federal em 1982? 10

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Tampouco cogitaria eleger um operário presidente da República dez anos depois. Muito menos que cairia numa emboscada diferente e, em plena democracia, seria condenado, por acusações não provadas de corrupção ativa e formação de quadrilha, a seis anos e 11 meses de prisão. Resultado de uma trama conduzida com astúcia por políticos, juízes e setores da imprensa, o julgamento do “mensalão” dará ainda muito assunto para a história. Enquanto isso, Genoino e sua família cerram novas fileiras. Quarenta anos depois de cair na guerrilha, as armas de Rioco para enfrentar o cerco ao marido são outras. Paciência e bordado; a solidariedade dos amigos; a presença silenciosa e protetora do filho Ronan, de 29 anos; os escritos e a fé da filha Miruna, de 32, e da enteada Mariana, de 27, que mora em Brasília e tinha 14 quando foi apresentada a Rioco e aos irmãos. O pai tinha medo, esperou que ela e eles crescessem. “Quando veio essa situação foi muito difícil. Mas a Mariana é um ser humano sensacional, que até me emociona.” Rioco, aposentada há cinco anos, participa de grupos de pintura e bordados. No dia 9 de outubro, viu o marido despedir-se do cargo de assessor do Ministério da Defesa, após a condenação no Supremo Tribunal Federal, com uma carta. Na mensagem, aberta com a frase “Eles passarão, eu passarinho”, de Mário Quintana, o ex-presidente do PT afirma: “Reservo-me o direito de discutir a sentença que me foi imposta. Uma injustiça monumental foi cometida”.

Rioco levou o passarinho de Quintana para o bordado. “Eu digo para os meus filhos que cada um tem de desenvolver a sua arma para lidar com a situação. A arma do Genoino é a fala. A Miruna escreve. O Ronan recorre ao silêncio. E eu pinto e bordo”, define. A escrita de Miruna em apoio ao pai, “A coragem é o que dá sentido à liberdade”, correu mundo tão logo o STF proferiu a sentença. A carta não poupa a imprensa: “Você teria coragem de assumir como profissão a manipulação de informações e a especulação? Se sentiria feliz, praticamente em êxtase, em noticiar a tragédia de um político honrado? Pois os meios de comunicação tiveram coragem de fazer isso tudo e muito mais. Mas, ao encontrar-me com meu pai e sua disposição para lutar e se defender, vejo que apenas deram forças para que esse genuíno homem possa continuar sua história”. Além de escrever, ela ­reza. Outro dia pegou o marido e os filhos e foi para Aparecida (SP). “Tenho muita fé”, diz. “Até para, diante de uma situação em que você se sente impotente, poder sentir que está fazendo alguma coisa.” É dela um dos 100 pares de mãos que já participaram do bordado. “Veio à cabeça convidar as pessoas que vinham aqui a participar. Foi uma arma contrapor a algo tão negativo uma coisa bonita”, conta Rioco. “Apareceu gente que não sabe nem colocar linha em agulha. Esse desejo de que coisas boas aconteçam traz energia e nos fortalece. Esse pássaro, fênix, representa um pouco isso. Depois dessa travessia tão difícil o Genoino vai renascer.”


POLÍTICA

REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

GERARDO LAZZARI/RBA

ELES PASSARÃO, EU PASSARINHO Miruna, Rioco e Genoino. A frase de Mário Quintana, dita em carta por Genoino no dia de sua condenação, é o fio condutor do bordado coletivo de Rioco

Esse tecido, que mais de 100 pares de mãos tocaram para bordar alguma coisa, homens e mulheres, é um registro desse período que estamos atravessando 11


ENTREVISTA

Política é uma arte de risco Genoino afirma que sempre mergulhou 100% em suas escolhas, todas com variados graus de risco. Afirma que vive por ideias, não dinheiro. E declara-se um otimista com a vida e com o Brasil Por Paulo Donizetti de Souza

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enoino convive com a missão de reverter os efeitos de um julgamento que considerou politizado pela Justiça e pela mídia. A mesma missão inglória vivida por José Dirceu, companheiro de UNE, em 1968, de clandestinidade, de construção do partido que elegeu Lula e Dilma. Condenado a dez anos e dez meses por corrupção ativa e formação de quadrilha, também sem apresentação de provas pela acusação, Dirceu foi considerado líder do núcleo político do “mensalão”, assim como o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, penalizado com oito anos e 11 meses. No dia 19 de novembro, Genoino, Rioco Kayano e sua filha Miruna receberam a reportagem da Revista do Brasil e da TVT em sua casa no Butantã, zona oeste de São Paulo. Leia aqui os principais trechos e a íntegra no www.redebrasilatual.com.br No Araguaia, houve momento, com a guerrilha acuada, em que você pensou: o que eu estou fazendo aqui?

Não. Porque aquela geração estava embalada num sonho, não tinha limites. O sonho, o risco, a vontade de descobrir o novo, em todos os sentidos, eram predominantes. No dia em que o Geraldo Vandré cantou Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores no Maracanãzinho eu estava indo para o congresso da UNE em Ibiúna (SP). Em 1974, estava preso e via que a luta estava sendo derrotada, aí ficou dramático. Era de uma derrota política, muitos companheiros não existiam mais... Chegou a passar pela sua cabeça que a luta armada seria pretexto da ditadura para endurecer? 12

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Nunca. O endurecimento viria independentemente da luta armada – a luta armada foi uma resposta. Até o AI-5 eu não estava clandestino. O AI-5 emparedou aquela geração, que só tinha três alternativas: ser presa, ir para o exílio ou para a clandestinidade. Clandestinidade significava luta armada. De 1964 até o AI-5 tinha uma ditadura, mas havia habeas corpus, eles não entravam nas universidades. A gente vivia na universidade. Em 1967 eu trabalhava na IBM, a empresa investia em mim, queria que fosse executivo. Quando tinha passeata eu ia trabalhar à noite, perfurando cartões, e ficava liberado durante o dia. Numa das passeatas passamos em frente ao prédio da IBM... Depois de uma semana me chamaram e disseram: “Vou dar a última chance. Você vai pro Rio e abandona o movimento”. Minha vida sempre foi de escolhas dramáticas. “Não.” Eu já havia participado do congresso de Vinhedo em 1967 e estava em preparação para o de Ibiúna. Depois, no meio de 1970, eu fui pro Araguaia. Minhas escolhas sempre foram 100%, nunca pela metade. Por exemplo, defender o governo Lula. A gente começou com uma parada dura. Inflação, fuga de capitais, acordo com FMI. Eu botei tanto a cara pra bater que no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2003, levei uma torta na cara. No Fórum Social de 2002, a Maria da Conceição Tavares dizia, em uma mesa com o Lula, que as pessoas não deviam esperar que a vitória eleitoral instalasse o socialismo. Seria preciso, antes, romper com o modelo econômico. Quando e por que o PT concluiu que nem essa ruptura seria possível?


ENTREVISTA

Foram sete anos de muita perturbação, cada dia uma agonia. O que nos tranquilizava, na relação familiar e com os amigos, é que sempre confiaram muito em mim. Eu não cometi crime, eu não cometi ilícito, eu fiz escolhas políticas. Os empréstimos que eu assinei foram todos legais, foram registrados na Justiça Eleitoral, foram cobrados judicialmente, eu tive minhas contas bloqueadas, o PT homologou pagamento com aval judicial e pagou em quatro anos. Então não são empréstimos fictícios, são legais. Como presidente do PT, o que eu fazia eram reuniões, as pessoas diziam que eu era deputado sem mandato, porque eu vivia no Congresso. Eu tinha essa tranquilidade interior. Ela é muito importante.

GERARDO LAZZARI/RBA

E de onde extrair essa tranquilidade?

Os empréstimos que assinei foram registrados e cobrados judicialmente. São empréstimos legais. Meu sigilo bancário, fiscal e telefônico foi quebrado. Eu quebrei. Não encontraram nada, mas isso não valeu Antes da campanha, na Carta aos Brasileiros (na qual o partido se comprometia a “cumprir os contratos”) e no programa de governo. A minha geração tinha vivido com a ideia de que era preciso derrubar a ordem para mudar a ordem. Derrubar a casa para construir uma nova. E nós fizemos a escolha de mudar a ordem por dentro da ordem. Mudar a casa a partir de dentro dela. Não tínhamos força para fazer a ruptura. O Lula dizia: “Eu não vou deixar o país quebrar na minha mão”. Assim como foi um drama pra nós querer mudar a ordem peitando-a de frente, foi um drama mudar a ordem por dentro da ordem. Esse drama explica a crise de 2005. O PT foi mudar a ordem dentro da ordem e a ordem acabou também mudando o PT?

A política é uma arte de risco. Assim como era arriscado pegar em armas nos anos 1970, é arriscado também mudar um país pela via eleitoral. E estamos mudando. Eu pregava o voto nulo em 1966, 1970. Mas dizia: “Não adianta votar, temos de pegar em armas”. Porque é fácil pregar o voto nulo e ficar em casa. Depois que o Roberto Jefferson deu a entrevista falando do “mensalão”, como ficou a vida familiar? Vocês imaginavam as consequências?

Aprendi muito na cadeia. Quando está preso com seus companheiros, se não tiver uma tranquilidade interior de que o que está fazendo não é crime, você se arrebenta. E nós encontrávamos energia até para descobrir que o relógio serve como espelho, você limpa o fundo do relógio, pule com cinza de cigarro – e isso demora – e tem um espelho, bota a mão pra fora e vê o corredor inteiro. Você descobre que os vasos sanitários da cadeia podem servir de telefone se tirar a água, combina todo mundo na mesma hora, tira a água e se comunica. Depois aprende a “telegrafar” em código Morse na porta, na parede. Enfim, descobre maneiras de sobreviver. Minha geração é marcada por essa solidariedade. Um dia, quando eu estava preso, com malária, febre de 40 graus, tive uma sessão de choque elétrico. Juntaram as duas coisas, e eu não tinha água de jeito nenhum, não cuspia, não urinava, corpo seco. Gritei a noite inteira por água. De madrugada um soldado, que eu não sabia quem era, jogou uma garrafa por baixo da cela. A solidariedade não tem rosto nem ideologia. Como você avalia o julgamento?

Deu-se numa conjuntura política muito específica, fizeram coincidir com as eleições, a imprensa jogou peso – ou condena, ou é conivente com a corrupção – e criou um maniqueísmo, no sentido de não examinar provas, os autos, os detalhes. Meu sigilo bancário, fiscal e telefônico foi totalmente quebrado. Eu quebrei. Não encontraram nada, zero, mas isso não valeu. Vou lutar até o fim da minha vida, jamais vou deixar de recuperar a minha história, que não é de dinheiro, riqueza, é de ideias. Eu fui deputado de ideias, sempre morei num hotel simples em Brasília, nunca tive carro, nunca fui de ir em festa, essas parafernálias do poder. Esse julgamento me deu alguns pesadelos. Alguns a Rioco presenciou, levou uns empurrões enquanto dormia. Eu misturava as sessões dos anos de chumbo com figuras de capa preta. Causou muito impacto, muito pesadelo, porque você junta as cenas. O PT sempre nutriu boa relação com jornalistas no varejo, mas no atacado leva chumbo. Por que, em dez anos de governo, teve medo de enfrentar o monopólio?

Em primeiro lugar um depoimento pessoal. Eu conheci o lado poético e o lado sanguinário da mídia. Eu fui projetado pela mídia, era fonte, dava entrevista permanentemente. Ao mesmo REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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ENTREVISTA

tempo vi o lado sanguinário da notícia, da fofoca. A liberdade de imprensa é um valor fundamental. A informação é um bem público, é um direito do cidadão, não é bem privado nem estatal. Um país como o nosso tem de incentivar alternativas, a mídia regional, a produção regional, captar a riqueza da diversidade cultural, étnica, política e social. Agora não se faz omelete sem quebrar ovos.

GERARDO LAZZARI/RBA

E como ficou a rotina depois do julgamento?

Esse julgamento me deu pesadelos. Alguns a Rioco presenciou, levou uns empurrões enquanto dormia. Eu misturava as sessões dos anos de chumbo com figuras de capa preta. Causou muito impacto, porque você junta as cenas

Eu estou lutando pelo menos pior, mas eu vivo bem, não tem cabeça pesada. A Miruna tem sido muito importante na minha vida. A Rioco tem muita força, a gente tem uma cumplicidade muito grande. Quando nos reencontramos na cadeia eu não sabia que ela estava presa, nos reencontramos através de espelho na sala de tortura, dava para você ver e não ser visto. Ficávamos com muita dúvida no que cada um podia estar dizendo. Desde então começamos a trocar cartas de amor e tal, resolvemos morar juntos. O meu filho Ronan dá muita força. Assim como a Mariana, que é não é da Rioco – e também administramos isso, porque não foi fácil. Ela mora em Brasília, é amiga da gente. Como foi a sensação de ser apresentada a uma irmã aos 14 anos?

Miruna – Eu tinha acabado de passar no vestibular, que era uma coisa que eu queria muito, passar em uma universidade pública. Meus pais sempre financiaram uma educação privada e eu achava que era minha obrigação passar. Quando veio essa ­situação foi muito difícil. Mas a Mariana é um ser humano que me emociona, é sensacional, e soube ter paciência para entrar na nossa vida. Porque que demorou tanto tempo para apresentar a Mariana?

Genoino – Eu tinha medo, eu estava esperando que ela crescesse, que eles crescessem. Mas desde quando nasceu foi minha filha, com todos os direitos, prerrogativas legais. Nunca escondi dela que era seu pai. Rioco – Por isso que eu acho que a vida ensina muito, e o que você acha que pode ser uma tragédia se transforma em uma coisa muito boa, se a gente souber lidar. Durante dois anos a situação foi dramática. Tem o fato de nós quatro não termos fugido do problema. E tem o mérito dela mesma, que conquistou cada um de nós. Foi um ganho, meus filhos ganharam uma irmã, eu ganhei uma enteada, meus netos ganharam uma tia maravilhosa. O que a inspirou na carta que escreveu após a condenação?

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DEZEMBRO 2012 REVISTA DO BRASIL

Miruna – Escrever é uma forma de lidar com meus problemas interiores. Enquanto ele ditava a carta dele de pedido de demissão do Ministério da Defesa, ele respondia à minha carta, minha mãe percebeu. Eu não fiz pensando na reação que causou. Fiz para os amigos, minha família. O ápice foi a leitura do Suplicy, na tribuna do Senado, que me deixou emocionada. Enfim, ganhou espaço, mas não foi escrita com esse fim. Quando meu pai estava no auge, era muito bom falar que era nosso amigo, agora é preciso ser muito corajoso e nem todo mundo foi. Para mim o que me importa é o ter sido uma coisa boa para ele. Com foi o momento em que vocês souberam da pena, seis anos e 11 meses?

Rioco – O momento de maior impacto foi o da condenação. Não vou dizer que ficamos tranquilos com o anúncio da pena, ficamos indignados, chocados, mas não mais do que quando ele recebeu a condenação. Quando vi que o Genoino estava tranquilo, também fiquei. A gente se mantém assim porque está muito junto, e o que vai acontecer daqui pra frente a gente não sabe. Cedo ou tarde a verdade vai aparecer. Miruna – Mas eu fiquei pior com a dosimetria do que quando ele foi condenado. Uma das piores coisas foi a surpresa. Eu estava subindo a escada no meu prédio, que estava sem energia naquele dia, e meu pai me telefonou e perguntou: “Você já viu o que aconteceu hoje?” Eu não quero falar do STF, mas existem pessoas por trás das decisões, precisa ter respeito, para que as pessoas se preparem (a aplicação da pena pelo relator Joaquim Barbosa foi antecipada em uma semana sem aviso prévio e sem a presença da defesa). No dia em que houve a condenação, pelo andar da carruagem, a gente estava preparada. Tinha um esquema montado pra eu estar com meus filhos pequenos, que a gente tenta preservar. E no dia da dosimetria não tinha. Recebi a notícia sozinha com meus dois filhos e entrei em choque. Tirou-me do eixo, foi de uma crueldade enorme. E daqui pra frente?

Miruna – Do lado dele, sempre. Meus filhos, de 4 e 5 anos, o idolatram. Por incrível que pareça a gente conseguiu protegê-los dessa situação. Teve um dia muito emblemático. A gente nem estava falando nesse assunto e, do nada, meu filho pergunta: “Vovô, por que estão querendo te matar?” Eu tive até de sair da sala, meu marido que segurou a onda. “Não estão querendo me matar”, explicou meu pai. “É que estão dizendo que eu fiz uma coisa que eu não fiz.” E o menino continuou. “Por que você não mata eles também?” E meu pai: “Não. Eu vou conversar”. Colaborou Tallita Galli, da TVT


MAURO SANTAYANA

Acima das provas

A tragicomédia encenada no STF deve alertar a nação para uma necessária reforma do Poder Judiciário, a partir da diretriz de que o ato de julgar é coisa séria – e não mero espetáculo de televisão

P

eço ao leitor que acompanhe o raciocínio de um leigo sobre o resultado, até agora, do julgamento da Ação 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Os tribunais existem para exercer a justiça, como é óbvio. Eles partem de uma acusação, que deve ser acatada pela representação da sociedade, em nosso caso, o Ministério Público. O Ministério Público é provocado normalmente (embora nem sempre) pelos órgãos policiais, que, depois de inquérito formal, indiciam os suspeitos, mediante as provas recolhidas pelas investigações. O promotor, ou procurador, pode aceitar o indiciamento – ou não, se as provas e indícios lhe parecerem insuficientes. Sendo suficientes, o Ministério Público faz a denúncia formal dos indiciados à Justiça. Foi assim que ocorreu, com algumas singularidades, com o rumoroso processo. Primeiro, a denúncia foi feita pelo procurador-geral da República ao STF, porque os parlamentares e o ministro José Dirceu tinham direito ao foro especial. O Supremo rejeitou o pedido de desmembramento feito por advogados de defesa – alegando que apenas alguns acusados faziam jus ao foro especial, devendo a maioria ser processada pela Justiça local. E assim iniciou inovações que assustaram os observadores. Um dos princípios da justiça é que a autoria do crime deve ser claramente comprovada e que, na dúvida, o réu deva ser beneficiado. Vamos supor que todos os indícios reunidos pelo procurador-geral da República tenham sido verdadeiros.

Por mais dedutivo que possa ter sido, só a sua inteligência dedutiva não bastava para legitimar o libelo. São necessárias provas, e, no caso de José Dirceu, o procurador e o relator o apontaram como “chefe da quadrilha”, o chamado “ato de ofício”. O que caracteriza o ato de ofício é a prova clara de que o réu, no exercício de seu cargo, cometeu o crime ou mandou que outros o cometessem. Como todos se recordam, no julgamento de Fernando Collor, o ministro Celso de Mello determinou, com seu voto, a absolvição do ex-presidente, com o argumento de que não havia o ato de ofício. No caso de José Dirceu, concluiu o ministro, não era necessário mais o ato de ofício. Violou-se um rito do processo. E a violação do axioma de que ninguém pode ser condenado sem provas é precedente que põe em risco as garantias constitucionais dos cidadãos brasileiros. O argumento usado pelo ministro relator é que se caracterizava, no caso, a teoria do domínio do fato. Essa teoria, por mais interessante possa ser, não faz parte de nossos códigos, nem da tradição de nossos pensadores do Direito. Embora tenha nascido na Idade Média, foi reavivada em Nuremberg, para punir os chefes nazistas. Re-exposta há poucos anos pelo jurista alemão Claus Roxin, serviu para punir, entre outros, o general Rafael Videla, na Argentina, e Alberto Fujimori, no Peru. Em entrevista à Folha de S.Paulo, Roxin foi claro, ao afirmar que o seu pensamento não fora devidamente assimilado pelos juízes do STF: para estabelecer o “domínio do fato” é necessário mais do que a presunção do julgador. É preciso que haja provas incontestáveis de que a ordem para a execução dos delitos apontados tenha realmente partido do réu – como as houve no caso dos dois ditadores latino-americanos. Enfim, faltou o “ato de ofício” – ausência que socorreu Collor, mas não José Dirceu. A conclusão é singela: o julgamento da Ação 470 foi subjetivo. Não conseguiu o Ministério Público provas cabais da culpa de alguns réus e, sem tais provas, o ministro relator foi buscar, na Alemanha – mas em fonte errada –, o suporte teórico para a condenação. O STF, para julgar sem provas, criou jurisprudência perigosa, que favorece a perseguição política e o exercício dos preconceitos. A partir de agora, qualquer pessoa – e, quem sabe, até mesmo algum ministro do Supremo – poderá vir a ser condenada sem provas. E sem ato de ofício. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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ECONOMIA

ROBERTO PARIZOTTI/CUT

NÚMEROS NA B

FORD EM CAMAÇARI, BA Paulo Cayres: “Os preços, as empresas, os produtos migram, mas os salários e as condições de trabalho, não”

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DEZEMBRO 2012 REVISTA DO BRASIL


ECONOMIA

BALANÇA

Medidas de estímulo ainda têm efeito tímido sobre a indústria. Aposta é de recuperação em 2013, se o mundo deixar Por Vitor Nuzzi

PAULO WHITAKER/REUTERS

C

omo um time que teve desempenho medíocre na temporada, a indústria brasileira passou os últimos meses de 2012 já fazendo contas para o ano seguinte, quando, espera-se, tudo será diferente. As previsões são mais otimistas, com moderação. O governo adotou algumas medidas de estímulo ao setor, porém com efeito limitado. O secretário-geral da CUT Sérgio­ ­Nobre, acredita que é o momento de discutir uma mudança de modelo. Ao ­citar o exemplo do Gol como carro 100% ­fabricado no Brasil, ele afirma que o país está se tornando menos produtor e mais importador. O dirigente considera positivo o Plano Brasil Maior, lançado pelo Executivo, “mas seria melhor se nascesse de um pro­ cesso de diálogo”. As isenções pontuais de impostos, c­ omo lembra Nobre, não chegam a toda a cadeia produtiva. DANIEL CASTELLANO/GAZETA DO POVO/FUTURA PRESS

EQUAÇÃO DIFÍCIL Redução de impostos: duração e efeitos limitados

REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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PAULO DE SOUZA/SMABC

VOLKSWAGEN/DIVULGAÇÃO

ECONOMIA

“Foram as medidas possíveis. A ­gente está conseguindo respirar”, afirm­ a o ­gerente de Relações do Trabalho da Con­ fe­deração Nacional da Indústria (CNI), Emerson Casali, apontando a ­redução de tributos e a desoneração da folha de pagamentos, além do c­âmbio. “­Alguns mantiveram os empregos e conse­guiram crescer. O custo do c­ apital talvez ainda esteja um pouco alto. O ­Brasil ficou ­caro para produzir e com muita insegurança jurídica”, acrescenta, citando insumos, ­como a energia, e logística. Segundo ele, o ­custo “derivado da insegurança jurídica é silen­cioso, mas aos poucos inibe e ­afasta ­investidores”. Para o diretor-superintendente da ­Asso­­­ciação Brasileira da Indústria ­Têxtil e da Confecção (Abit), Fernando Pimentel, ainda é ­cedo­para uma avaliação mais precisa, já que parte das medidas ainda 18

DEZEMBRO 2012 REVISTA DO BRASIL

WWW.CODESA.GOV.BR

LINHAS CRUZADAS Sérgio Nobre destaca a completa nacionalização do Volkswagen Gol, mas lembra que o país está se tornando menos produtor e mais importador

AOS BORBOTÕES Automóveis importados são descarregados no porto de Vitória, ES


ECONOMIA

não foi implementada. “Não é uma panaceia. Estão na direção correta.” Ele lembra que a desoneração da folha de pagamentos (que passou de 1,5% para 1%) é recente: “Não há como medir o impacto, mas vai no sentido positivo”. A prometida redução das tarifas de energia elétrica é outro item aguardado com expectativa. “A energia afeta todos os elos. Mas ainda não aconteceu.” Segundo o executivo, falta ao Plano Brasil Maior “uma consistência que dê horizonte de médio e longo prazo”, ampliando a segurança para investimentos.

“Esse horizonte, esse projeto de país está fazendo falta. Apesar de reconhecer todos os esforços da equipe econômica, aceitando que o Brasil é oneroso e burocrático, o tamanho do desafio transcende a isso. Há muitas coisas no curto prazo”, diz Pimentel. Segundo a Abit, em 2011 a produção caiu 15% no setor têxtil e 4,4% no vestuário – este ano, até setembro, recuou 5,14% e 11,23%, respectivamente. “Vivemos uma situação de excedentes no mundo, e isso está se refletindo nessa queda de produção.” O secretário executivo adjunto da Co-

missão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Antonio Prado, destaca um cenário de queda no comércio mundial, que no período 2004-2007 – ou seja, antes da crise – cresceu 7,4% ao ano, em média, e deve aumentar 4,7% ao ano de 2011 a 2013. “Existe um processo de desaceleração da atividade industrial, e, é claro, muito mais rápido nos países mais industrializados. As economias emergentes tiveram queda menos profunda e terão recuperação mais rápida. Nas economias avançadas, a recuperação agora será muito mais lenta.”

Desenvolvimento exige transformação Antonio Prado, da Cepal, identifica na baixa taxa de investimento um dos motivos que impediram maior dinamismo na indústria. Ele vê sinais de reativação, mas o processo será longo Você diz que a América Latina não soube mudar o padrão de produção. No caso da indústria brasileira, o que faltou? Inovação? Investimento? Diversificação? A indústria brasileira é a mais diversificada da região, e o Brasil, o país que mais gasta com P&D (pesquisa e desenvolvimento), 1,2% do PIB, mas ainda não tem um parque industrial produtor de alta tecnologia, à exceção do complexo aeronáutico e de prospecção e produção de petróleo em águas profundas. Na microeletrônica desenvolvemos muito pouco. O problema está mesmo na baixa taxa de investimentos. Isso se deve ao longo período de apreciação do real e das altas taxas de juros reais. O real valorizado estimulou um aumento de itens importados na composição do valor de produção, financiados a juros externos muito baixos. A recente mudança no regime macroeconômico em direção a juros nominais e reais mais baixos e real mais desvalorizado contribuirá para a reativação da indústria. Mas o resultado não é imediato, pois leva tempo mudar o padrão adotado em função da longa fase do real apreciado.

que cresce o endividamento das famílias e satura a demanda por bens duráveis. É importante buscar outras fontes de dinamismo, que no momento estão nos investimentos e particularmente em gastos com infraestrutura. É importante manter políticas sociais como a do salário mínimo e de transferência de renda? Desenvolvimento é crescimento com transformação estrutural, diminuição das desigualdades e criação de empregos de qualidade. Uma característica de nossa região, e o Brasil também faz parte desse problema, é que há uma imensa heterogeneidade estrutural que reproduz a desigualdade. Isso significa que os setores de alta produtividade geram cerca de dois terços do PIB e só 20% dos empregos. Os de baixa produtividade geram 10% do PIB e mais de 50% dos empregos, que, logo, são de baixíssimos rendimentos e salários. As políticas de valorização do salário mínimo e de transferência de renda são fundamentais para reduzir essas desigualdades e ajudam a dinamizar economias locais.

A aposta do Brasil no mercado interno não está chegando ao limite? O Brasil tem no mercado interno sua principal fonte de dinamismo econômico. Há muito tempo a contribuição do comércio exterior é negativa do ponto de vista macroeconômico. O crescimento do consumo agregado tende a perder ritmo à medida

LORENZO MOSCIA/CEPAL

Com a desaceleração no comércio mundial, o Brasil deverá ser mais pressionado por Estados Unidos e China. Está preparado? Não. Será necessário defender temporariamente a indústria em um momento de superconcorrência internacional, tanto por meio do câmbio como de tarifas. Está claro que as políticas monetárias de emissões de moeda nos Estados Unidos (quantitative easing) terminam por desvalorizar o dólar. Os Estados Unidos já estão superavitários na balança de bens e serviços com o Brasil. O que ainda compensa é o déficit da China com o país, pela importação de commodities – ferro, petróleo, soja, entre outros.

A mudança no regime macroeconômico em direção a juros mais baixos e real mais desvalorizado contribuirá para a reativação da indústria. Mas o resultado não é imediato REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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FABIO BRAGA/FOLHAPRESS

ECONOMIA

OTIMISMO ELETRÔNICO Sondagem feita periodicamente pela Abinee mostra expectativas positivas para este quarto trimestre e para 2013

O Brasil, segundo Prado, tem o desafio de aumentar sua taxa de investimento (hoje em torno de 17% do PIB), enquanto a China tende a diminuí-la (50%). Nos próximos anos, o mercado brasileiro também deverá sofrer pressões das d ­ uas maiores economias mundiais, a americana e a chinesa. “Nossa preocupação é quanto à diferença entre os efeitos do crescimento da renda e nossa indústria. Quando cresce a renda, há pressão para mais importações. E nossa cultura é de consumir bens dos países avançados”, comenta o economista. A participação de importados na economia brasileira fechou o terceiro trimestre em 22,3%, um ponto percentual acima da verificada há um ano, de acordo com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Apesar da queda, o coefi20

DEZEMBRO 2012 REVISTA DO BRASIL

ciente continua em nível elevado, acima da média histórica (19,8%)”, diz o diretor do Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Derex) da entidade, Roberto Giannetti. Segundo ele, o crescimento das importações nos dois últimos anos reduziu oportunidades de expansão da indústria brasileira.

Contrapartidas

A Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), da CUT, sugere maior taxação para produtos importados, além de políticas específicas para as micro e pequenas empresas, setor prestes a ganhar uma secretaria governamental própria, com status de ministério. A confederação defende também que medidas como redução de impostos e de encargos sobre a folha de pagamentos tenham con-

trapartidas sociais, como maior proteção aos trabalhadores e menor rotatividade de mão de obra. O presidente da CNM-CUT, Paulo Cayres, aponta sinais de migração de indústrias do Sudeste para o Nordeste. “Os preços, as empresas, os produtos migram, mas os salários e as condições de trabalho, não.” No início de novembro, a CUT promoveu um encontro entre as entidades do setor para discutir os desafios e as estratégias da indústria. Casali, da confederação patronal, a CNI, observou no evento que o setor já foi responsável por 36% do PIB em 1985 e hoje concentra 15%. Antonio Prado alerta para a permanência de um ponto de vista que identifica os direitos sociais como responsáveis pela baixa competitividade. “A ideologia do neoliberalismo entrou em crise do


ECONOMIA

ponto de vista do pensamento, mas não político. Continua viva nas propostas de ajuste dos países europeus.” As medidas adotadas pelo governo começam a repercutir, como avalia o presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), Humberto Barbato. Sondagem feita periodicamente pela entidade mostra expectativas positivas para este quarto trimestre e para 2013. Ele considera cedo para avaliar o impacto da desoneração da folha de pagamento, mas lembra que a medida abrange apenas 200 dos 1.200 produtos do setor. A entidade projeta queda de 7% na

produção este ano, resultado um pouco melhor que o de 2011 (-9,3%). Barbato também torce pela redução da tarifa de energia. E defende mais do que providências pontuais. “Estamos precisando de medidas estruturais, horizontais, que possam atingir a economia como um todo”, reivindica. E, embora julgue positivas as reduções da taxa básica oficial de juros, observa que as taxas cobradas do consumidor ainda são altas. “Está faltando os banqueiros fazerem a parte deles”, diz. A indústria enfrenta ainda o desafio de se renovar. “Qual é nossa capacidade de

inserção em mercados mais dinâmicos?”, questiona Prado, da Cepal. “O debate da desindustrialização é secundário. O que nossa região não soube fazer foi mudar o padrão de produção. Essa estrutura é uma fábrica de desigualdade.” Segundo o economista, o desenvolvimento está ilhado: ocorre nas atividades de alta produtividade mais ligadas ao mercado internacional que à economia doméstica. A expectativa é de um ano melhor para a América Latina. “Nossa região está passando de forma positiva pela crise. Mas a crise é séria. Temos um horizonte complexo”, observa Prado.

Avançamos, mas ainda há distorções Para Emerson Casali, da Confederação Nacional da Indústria, a economia cresceu, mas a produtividade estagnou e fatores como qualificação, inovação e regulação trabalhista são “deficiências concretas”

A CNI pediu a ampliação de medidas do Plano Brasil Maior. Qual foi o impacto do plano para o setor, até agora? O plano teve impactos mais localizados, em função de medidas de defesa comercial e de desonerações setoriais. Mas há avanços sistêmicos concretos. Aprovou-se o fim do inacreditável incentivo às importações (guerra dos portos). A mudança no patamar cambial trouxe um alívio maior, enquanto a queda dos juros ainda está começando a ser sentida. As mudanças de base de cálculo da Previdência, com algum grau de desoneração, tiveram efeitos bastante positivos nos setores beneficiados, e no mínimo, em alguns casos, evitaram demissões. Há expectativas com a queda do custo de

energia, que tem efeito em toda a cadeia produtiva. O plano está ajudando a evitar mais problemas em um contexto econômico difícil. Além disso, o governo colocou de vez na agenda a preocupação com o custo de produção e a competitividade. No encontro promovido pela CUT com o setor industrial, você falou sobre convergências entre as posições de empresários e sindicalistas. Quais seriam as principais? Naturalmente, há divergências significativas. Começamos a nos entender no sentido de que precisamos avançar na melhoria das condições de trabalho, mas temos de pensar em como reduzir alguns custos trabalhistas descabidos e encontrar meios para melhorar a produtividade. É imprescindível, ainda, modernizarmos as relações trabalhistas. É preciso superar esse modelo engessado e com distorções, fortalecendo a representatividade sindical e seu poder de negociar, com segurança jurídica. Precisamos pensar no que queremos para o país para daqui a 10, 20 anos, e começar a avançar logo.

JOSÉ PAULO LACERDA/CNI

A participação da indústria no PIB passou de 35,8%, em 1985, para os atuais 14,6%. Em parte, isso se deve a fatores conjunturais. Houve também aspectos estruturais? A partir de 1985, foram quase dez anos de muita instabilidade econômica. No início da década de 1990, a abertura comercial pegou a indústria pouco preparada para concorrer. Em seguida, vieram o problema da sobrevalorização cambial, os juros altos e a entrada da Ásia de forma muito competitiva nos produtos industrializados. A partir de 2005, o país teve grande crescimento da economia e no consumo, mas a produtividade estagnou, o custo de produção disparou e a competitividade dos produtos brasileiros despencou. A produtividade relaciona-se a qualificação, inovação e regulação trabalhista, e nos três pontos temos deficiências concretas. Os importados aproveitaram o aumento da demanda interna e também tomaram mercado de produtos brasileiros exportados.

A desoneração da contribuição patronal à Previdência foi positiva e evitou demissões em alguns casos

Em relação às divergências, a maior seria relativa à redução da jornada? Essa é uma. Na visão empresarial, o que temos hoje é um limite máximo de 44 horas semanais, mas já existem muitas jornadas negociadas abaixo disso. A questão da demissão imotivada talvez seja a maior divergência, pois as empresas acreditam que isso tira a dinâmica do mercado de trabalho e traz muita insegurança para quem gera o emprego, em especial no Brasil, com as conhecidas características da sua Justiça do Trabalho. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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SOCIEDADE

AGÊNCIA BRASIL

A América Latina se move

Relatório detecta crescimento da classe média, destaca políticas públicas, mas lembra que região ainda é vulnerável Por Hylda Cavalcanti

A

transformação social obser­­ vada na Amé­rica Latina e Caribe nos últimos anos, com o crescimento da classe média na região, foi medida agora pelo Banco Mundial (Bird). De acordo com trabalho divulgado em novembro, essa fatia da população era formada, em 2003, por 103 milhões de pessoas e aumentou para 152 milhões em 2009. Jamais houve mobilidade social tão intensa. Dos 17 países analisados, os destaques são Brasil, que apresentou aumento da classe média de 40% na última década, Colômbia (54%) e México (17%). 22

DEZEMBRO 2012 REVISTA DO BRASIL

“O relatório aponta aumento de aproximadamente 50% da classe média latino-americana e caribenha. O mundo quer entender como isso aconteceu na região e como esse fenômeno se sucedeu no Brasil, onde as mudanças foram maiores”, afirmou a diretora do Bird para o Brasil, Debora Wetzel. Segundo o estudo, o aumento é resultado de políticas públicas governamentais voltadas para a redução das desigualdades, melhoria do nível educacional dessas pessoas, maior produtividade dos países, aumento do número de empregos no setor formal e maior oferta de mão de obra qualificada.

Também foram preponderantes o maior número de pessoas vivendo em áreas urbanas, a elevação da presença feminina no mercado de trabalho e a redução do tamanho das famílias. Mas há um porém. De acordo com o trabalho do Banco Mundial, parcela considerável das pessoas que subiram para a classe média corre o risco de retroagir nos próximos anos, uma vez que vive em ambiente de instabilidade. Isso acontece pelo fato de os empregos criados serem de curta duração, sujeitos a rotatividade e a anúncios de fechamento de vagas por parte de indústrias e outros setores, em razão de crises econômicas.


SOCIEDADE

O pesquisador Francisco ­Ferrei­­ra, um dos autores do trabalho, explica que levou o Banco Mundial a pensar num estudo sobre mobilidade da classe média foi o fato de que, na última década, houve crescimento do PIB per capita na América­ Latina e, em paralelo a esse cresci­mento, a redução da pobreza em um quarto da população. Para se ter ideia, o índice Gini – que mede o grau de desigualdade a partir da renda per capita das populações –, que era 0,530 em 1990, foi reduzido ­para 0,497 na América Latina e Caribe em 2010. E o percentual de pobres na r­ egião caiu de 44% para 30% da população. “Por trás disso tem de haver mudanças­ sociais importantes. Houve também a­ queda da desigualdade em 12 dos 15 ­países pesquisados em 5 pontos do índice Gini”, enfatizou Ferreira. Segundo o pesquisador, está acontecendo um processo inédito, mas que provoca novos desafios e perguntas. “Por que alguns saíram da pobreza e outros não? Quem saiu e quem permaneceu? Todo mundo que saiu da pobreza entrou na classe média?” Ferreira diz que existe relação entre essa mobilidade populacional observada nos últimos anos e as várias políticas pú-

ça na distribuição de renda com redução da pobreza e redução no grau de desigualdade. Só que as transformações na distribuição de renda na América Latina e no Brasil são mais ricas do que isso, e esse relatório mostra, justamente, que existe mais do que medidas de pobreza e medidas de desigualdade por trás de uma distribuição de renda. Mostra que as mudanças têm a ver com esse grupo vulnerável e com essa classe média que é bem descolada”, disse. Na avaliação de Paes de Barros, no caso do Brasil, programas sociais como o Bolsa Família – que foram tão importantes para tirar as pessoas da extrema pobreza – não foram importantes para fazer com que as pessoas pobres subissem para a classe média. “Vários fatores aconteceram, como o crescimento do emprego formal no Brasil. Essa nova classe média tem mais a ver com o trabalho e pouco a ver com a transferência de renda. O relatório ajuda a consolidar essa visão.” Outra percepção da nova classe média que chamou a atenção dos pesquisadores é a falta de sintonia ou capacidade de integração com políticas de melhoria dos serviços públicos e das populações

“Tomamos conhecimento que essa classe­média é mais exigente, mas ela vai buscar segregação espacial dos serviços públicos ou vai lutar pela melhoria dos serviços públicos em geral? Qual a relação dessa classe média com a pobreza? É formada por pessoas que pagam impostos com prazer, desde que sejam gastos para produzir serviços e educação para a população pobre? Está disposta a praticar uma certa benevolência em relação à população pobre? Tudo isso será importante para a continuidade da queda da pobreza e para as novas políticas a serem definidas.” O presidente do Instituto de Pesquisa­ Econômica Aplicada (Ipea), Mar­ celo ­Neri, enfatiza a melhoria na edu­cação das pessoas que apresentaram essa mobili­­ dade. De acordo com Neri, os resul­ tados são consequên­cia de uma década de ­inclusão na escola, na renda e no mer­ cado de trabalho. “As políticas de governo contribuíram para colocar as crianças na escola, as pessoas conseguirem em­prego e as famílias subirem na vida. Daqui por diante, nos falta uma década de quali­dade de educação, medida por proficiência. O ­mote da próxima década não é dar aos ­pobres o mercado, o que fizemos até aqui.

Os resultados são consequên­cia de uma década de inclusão na escola, na renda e no mercado de trabalho blicas. “Você vê os gastos com previdência e assistência social juntos e pode achar que essa correlação é quase zero com a mobilidade social dos países. Mas quando se olha para alguns instrumentos específicos, não só incluindo experiências como o Bolsa Família, mas programas de incentivo à produtividade, por exemplo, aí você vê as pessoas saindo da pobreza, numa correlação positiva e bastante ­alta”, acentua. Já na avaliação do secretário executivo da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, Ricardo Paes de Barros, o relatório chama a atenção para um ponto fundamental para os próximos estudos sobre comportamento e ascensão da população brasileira. “Sempre associamos mudan-

mais pobres. “Em parte, esperávamos uma classe média de vanguarda, como um grupo que viesse para arejar a elite com valores mais modernos, comportamentos mais adequados. Mas o que se vê são comportamentos intermediários entre a classe baixa e a classe alta, comportamentos que podem ser explicados pelo nível de ascensão de renda, e portanto sem vanguarda de valores, de atitudes, percepções”, ressalta. Segundo o secretário executivo da SAE, é preciso, agora, saber se um ­país com uma classe média grande é forte ao impacto de choques externos, qual o impacto dessa classe média sobre o n ­ ível de endividamento e sobre a inflação dos países e como essa classe média quer ­cooperar com o Estado.

Mas dar o Estado e os mercados aos pobres e a essa nova classe média. E a educação é o melhor passaporte para o mercado de trabalho, que é onde a renda das pessoas é decidida a médio e a longo prazo.” Trabalho divulgado dias antes do ­relatório do Bird pela SAE, com b­ ase na Pesquisa Nacional por Amostra de ­Domicílios (Pnad), do IBGE, mostrou que, no Brasil, do total dos que integram hoje a classe média, 35% (ou 36 ­milhões de pessoas) ingressaram nessa­­camada econômica nos últimos dez anos. Desses­ novos integrantes da classe­média ­brasileira – ou seja, desses 36 ­milhões de pessoas –, 75% são negros e 25% brancos. Os cruzamentos dos dados dos dois ­trabalhos vão ser usados para a formulação de novos estudos. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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ATITUDE

Vozes dissonantes Organização formada por israelenses de Gaza condena ações do governo de Benjamin Netanyahu, favorito nas eleições de 2013, e busca adesões a um movimento em defesa do diálogo e da paz Por Erika Jara, do Kibutz Erez (Israel)

GUETO Em Belém, na Cisjordânia, fronteira leste de Israel, palestinos protestam contra os ataques a Gaza atirando pedras contra o muro que os separa dos judeus. A guarda responde com balas e bombas

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DEZEMBRO 2012 REVISTA DO BRASIL

JONATHAN NACKSTRAND/AFP PHOTO/2009

“M

as o que estão fazendo, idiotas? Não veem que agora virá a aviação israelense e esmagará todos vocês e a população?” Era maio, e Roni Keidar, de 68 anos, aposentada, moradora do Kibutz Erez (a dois quilômetros da fronteira de Gaza), gritava em seu jardim. Foguetes eram lançados a partir de Gaza, soavam os alarmes. Ela estava em pânico ao correr para o abrigo e perceber que seu neto não estava mais com ela. Agora, passados seis meses, suas vidas voltam a ser assoladas pela força. O alerta vermelho disparado pela aveludada voz feminina nos alto-falantes alcançava diversas ruas. Era o aviso aos moradores: têm 15 segundos para alcançar o bunker ou abrigo mais próximo. Os buracos nos telhados da casas denunciam estilhaços de foguetes caídos nas proximidades. Nos anos 1990, uma das quatro filhas de Roni decidiu mudar-se para Eilat, distante dos foguetes. Outra vive no Canadá. As duas restantes moram no mesmo povoado junto com um filho. “Vivemos assim há 12 anos”, desabafa Ovadia, marido de Roni. “E a situação não vai mudar enquanto se tentar resolvê-la à base de foguetes e bombardeios”, ela acrescenta. O kibutz onde vivem Roni e Ovadia encontra-se dentro de uma área fechada pelo Exército israelense no sábado 10 de novembro. Os militares permitem o uso das es-

RECADO Israelenses em Tel Aviv: “Você quer parar o Hamas? Dê esperança a Gaza, não guerra”


ATITUDE

Líbano Síria

Faixa de Gaza

Cisjordânia

FOTOS JAVIER VIDELA

Israel Egito

Jordânia

Arábia Saudita

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JAVIER VIDELA

ATITUDE

MÍSSIL LANÇADO DE GAZA Roni e seu marido se escondem no bunker caseiro ao soar o alarme que se escuta em toda a vizinhança

tradas apenas para evasão do local. A entrada só é permitida a alguns dos 75 mil reservistas convocados às pressas, que chegam pouco a pouco em carros particulares, e para os caminhões que transportam os tanques de guerra para uma eventual incursão pela “faixa” . As paredes da casa de Roni, que se encontra no meio do desolado, silencioso e sepulcral kibutz, tremem com estrondos a cada instante. A ausência de alarme indica que o ataque é israelense e o impacto deu-se no lado gazeu do muro – onde vivem os habitantes naturais da região. “Se aqui, a quatro quilômetros da zona habitada de Gaza, ressoam assim, imagine o que estarão passando os palestinos que estão ali dentro”, diz Roni. Pouco depois, a sinistra voz feminina nos alto-falantes impele o casal a correr novamente para um abrigo, uma pequena despensa de três metros quadrados sem janelas situada nos fundos da cozinha, onde máscaras de gás se amontoam sobre um armário. E tremem de novo as paredes. 26

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“Caramba, este caiu perto”, diz ela. Essa rotina de anos já não lhe permite surpreender-se em demasia. De volta ao sofá de sua sala, Roni começa a explicar tranquilamente que pertence à organização A Outra Voz, formada em 2008, que agrupa israelenses atingidos pelo lançamento dos foguetes gazeus. Sua mensagem: “A guerra não vai solucionar o problema; enquanto não houver diálogo entre as partes, o conflito não será solucionado. A tragédia é que compartilhamos a mesma história. Ambos contamos a verdade de nossas situações, mas cada parte tem seu ponto de vista e bom seria se deixássemos de prejulgamentos e nos escutássemos”, acredita Roni.

Alvos políticos

Os membros de A Outra Voz comunicam-se com pessoas de Gaza por celulares e pela internet, e em certas ocasiões a parte israelense trata de obter permissões para que alguns gazeus possam deixar a Faixa de Gaza e participar de seminários

e conferências. “Há vezes em que fico sabendo que alguém de Gaza conseguiu uma permissão para ajudar algum hospital em Israel e vou até a fronteira buscá-lo para levá-lo até lá. Além de prestar uma ajuda, é uma excelente oportunidade para que nos conheçamos.” No início da onda de violência desencadeada em novembro, A Outra Voz encaminhou uma carta ao ministro de Defesa, Ehud Barak, e ao primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. Pediam que “se deixasse de jogar com suas vidas e fossem abertos imediatamente os contatos diplomáticos com o governo do Hamas”. Diziam estar “cansados de ser alvos fáceis a serviço de interesses políticos”; que “os mísseis de lá e os bombardeios daqui não nos protegem”. Denunciavam o fato de que “ambas as partes pagaram e estão pagando ainda um preço muito alto” e concluíam afirmando que “já é hora de falar e lutar por um acordo de longo prazo que permita aos cidadãos de ambos os lados da fronteira viver uma vida normal”.


ATITUDE

Segundo Roni, em meados de novembro a carta já contava com 11 mil assinaturas, a maioria obtida entre 10 e 20 novembro. Nesse período, morreram 167 pessoas (162 palestinos e cinco israelenses) e foram feridas outras 1.300 (50 delas israelenses).

Muitas vozes

Ovadia Keidar é de origem egípcia. Roni provém de uma família inglesa de longa tradição sionista. Até 1979, o casal viveu em um assentamento israelense na província egípcia do Sinai. Depois do acordo de paz entre as partes, decidiram se mudar para o local onde vivem atualmente, junto à fronteira norte de Gaza. “Realmente pensávamos que a paz chegaria. Os gazeus vinham trabalhar aqui conosco e íamos comprar ali,” lembra Roni. Mas então chegou a primeira Intifada, e logo a segunda, o muro, o bloqueio, “e começamos a sofrer”. Ambos se recordam como, no dia seguinte à desocupação israelense de Gaza, em 2005, um foguete lançado desde Gaza matou a filha mais nova, “que só tinha 23 anos de idade”. Sua família mudou-se então para outros lugares. “Eu o faria também, mas meu marido possui aqui sua produção de sementes, que além de tudo

dá trabalho a dez tailandeses e vietnamitas. Um deles morreu devido a um foguete há dois anos.” Algo que ainda deixa Roni com os nervos à flor da pele é quando soa o alarme e Ovadia não está por perto e não responde ao telefone. Apesar de tudo, Roni é membro convicta de A Outra Voz, embora se considere moderada. “Não estou disposta a assumir toda a culpa. Não se pode ver somente a versão da outra parte, porque então se perde o sentido do que se tentava conseguir.” Segundo Roni, o Hamas tem de reconhecer Israel como Estado judeu. “E deixar-nos viver.” Ela reconhece: “A minha independência foi um desastre para os palestinos, é normal que não a esqueçam e tampouco a comemorem, mas devemos dar um futuro aos nossos filhos”. E assume certa responsabilidade sobre a situação de Gaza: “É certo que deixamos aquele lugar, ao sairmos, porém, fechamos as portas e os deixamos ali enclausurados. Se tivéssemos dado a eles a oportunidade de crescer, e não só de pensar no modo como nos atingir, t­ alvez tudo isso fosse diferente”.

Eleições

Desde o começo da nova onda de violência, muito se tem especulado que o r­ eal

EUA financiam defesa

Erika Jara é natural de Pamplona, Espanha, e há quatro anos trabalha como repórter independente no Oriente Médio Javier Videla é fotojornalista radicado em Barcelona. Todo ano vai a Israel e à Palestina para acompanhar conflitos da região A Outra Voz: www.othervoice.org/welcome-eng

MERCADO DE ARMAS Bateria de mísseis do sistema Cúpula de Ferro: alta tecnologia contra foguetes caseiros

FORÇA DE DEFESA DE ISRAEL

Diferentemente da Operação Chumbo Fundido, de quatro anos atrás, Israel busca aprimorar sua pontaria para não deixar um rastro de 1.300 mortos, como da última vez. Os civis que residem próximo a seus alvos, porém, encontram-se totalmente desprotegidos. Os mortos do lado gazeu poderão ser em maior número, dependendo de como evoluirá o quadro clínico dos feridos. Do outro lado, as populações israelenses próximas à fronteira – e há alguns dias também os grandes núcleos urbanos – dispõem já da Cúpula de Ferro para neutralizar foguetes provenientes de Gaza. O sistema é formado por quatro baterias antiaéreas situadas em Beersheba, Ashdod, Ashkelon e Netivorot, além da instalada recentemente em Tel Aviv. Cada uma pode proteger uma área de 150 quilômetros quadrados e possui sistema de radar, outro de disparo e três lança-mísseis com capacidade para 20 mísseis Tamir, com alcance entre 4 e 60 quilômetros, cuja missão é interceptar no ar os foguetes oriundos de Gaza. Os Estados Unidos financiam parcialmente a Cúpula de Ferro, com US$ 275 milhões, e outros US$ 680 milhões são destinados ao intercâmbio tecnológico. Cada míssil Tamir custa US$ 40 mil, razão pela qual as baterias somente são ativadas quando se detecta que o foguete se dirige a áreas povoadas. O sistema é vulnerável à saturação. Quanto mais foguetes lançados simultaneamente, maior a possibilidade de que alguns não sejam interceptados.

interesse por trás das ações israe­lenses ­seria eleitoral. Roni duvida. Afirma que faria qualquer coisa para tirar Benjamin Netanyahu do poder, mas pondera: “Ele ­está nos levando ao desastre. Mas creio que nem sequer uma pessoa como ele faria algo assim por votos”. De todo ­modo, ­caso ele vença novamente – pesquisas apontam o apoio de 85% dos israelenses –, ela diz que “o fecharia em um quarto” com o primeiro­-ministro gazeu, Ismail Haniye, e não os deixaria sair até que chegassem a uma solução. “Pois existe.” Ovadia respeita a militância de sua ­mulher, embora não esteja de acordo. “Vejo refletida a pequena mentalidade dos palestinos a cada dia no canal ­árabe Al Jazeera, e não me parece que vão ­mudar.” Roni ouve, mas não se deixa convencer. “Pessoas de ambos os lados me chamaram de sonhadora, e eu pergunto se acreditam que Gaza vai desaparecer de um dia para outro. Ou Israel. E respondo: ‘Vocês é que são sonhadores’.”

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MUNDO

O voo do

DRAGÃO Sob não muito nova direção, a China tenta seguir na trilha do crescimento. O desafio é não deixar-se degradar por um crescimento insustentável, pela corrupção, e superar o risco de envelhecer antes de enriquecer Por Milton Pomar 28

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ovembro foi mês da China e do Partido Comunista Chinês (PCCh). Na imprensa mundial, renderam mais assuntos do que as eleições nos Estados Unidos, as crises na Europa e a recessão no Japão. Tudo por causa da mudança do governo central, iniciada em novembro com a nomeação dos sete novos integrantes da executiva do partido e a ser concretizada com a confirmação do presidente e do primeiro-ministro em março de 2013, na reunião do Congresso Nacional do Povo. Xi Jinping, agora secretário-geral do partido, deve presidir também a grande nação do Oriente, com mandato de cinco anos, renovável por mais cinco.

O alvoroço tem a ver com a extraordinária importância econômica e comercial adquirida pela China nos últimos dez anos, período que coincide com o governo de Hu Jintao e Wen Jiabao, presidente e primeiro-ministro em fim de mandato. Segunda maior economia, perto de se tornar a primeira no ranking do PIB mundial, é também a maior exportadora, com 12% do comércio internacional, e a segunda maior importadora – devendo alcançar a condição de número um em breve. Para o Brasil, essa situação já chegou: é a maior freguesa dos produtos brasileiros, nossa principal fornecedora e logo deve se tornar também a maior investidora: segundo estudo do Conselho Empresarial Brasil-China, há 60 projetos de


MUNDO

O mundo inteiro disputa esse dinheiro e cobiça aquele imenso mercado consumidor, que de 2009 para cá passou a ser a tábua de salvação de muitos países, incluindo o Brasil. Vender para os chineses será cada vez mais o sonho de consumo de muitas empresas, porque nos próximos anos o país pretende aumentar seu consumo interno, dos atuais 35% do PIB para 55%. Em dinheiro, será adicionado ao total comprado algo como US$ 1,6 trilhão, o equivalente ao que importa anualmente. Boa parte do salto do superávit na balança comercial brasileira nos anos 2000 tem a ver com as compras crescentes que a China faz, de minério de ferro, soja, celulose, carne de frango etc. Apesar disso, as mercadorias brasileiras representam menos de 2% de tudo o que a China compra do mundo, o que significa que o Brasil ainda tem muito espaço para crescer ali.

DAVID GRAY/REUTERS

Avanços e degradações

FUTURO E TRADIÇÃO A China continua sendo o país das bicicletas, mas também domina a tecnologia que leva homens ao espaço

investimento de empresas chinesas, dos quais 39 estão em andamento, totali­ zando US$ 24 bilhões. Até 2014 esse montante pode passar de US$ 40 bilhões, se os governos federal, estaduais e das cidades do Brasil e grandes empresas nacionais desenvolverem iniciativas com esse objetivo. A China é o país com a maior reserva cambial do mundo, mais de US$ 3 trilhões – quase dez vezes a do Brasil –, e precisa aplicar parte dessa fortuna-papel em bens reais: indústrias, minas, portos, navios, empresas agropecuárias, ferrovias, hotéis, shoppings, aeroportos etc.

Essa imensa expansão do consumo pretendida pelo gigante oriental faz parte de uma mudança radical da política econômica que vigorou nos últimos 30 anos, de crescimento por meio principalmente de exportações de produtos fabricados com mão de obra intensiva. Em 1980, um conjunto de iniciativas conhecidas como Reformas (econômicas, políticas, culturais) e Abertura para o Exterior iniciou a transformação do país muito pobre e atrasado em maior economia mundial até 2020. Nesse período, a mortalidade de crianças antes de completar 1 ano caiu de 190 para 20 para cada mil nascidas vivas. O analfabetismo afeta menos de 5% dos adultos, cuja expectativa de vida dobrou. De 1980 a 2005, a China tirou da miséria 627 milhões de pessoas. Hoje se discute em várias instituições de pesquisa no mundo qual é o tamanho da classe média, se 400 milhões ou 500 milhões de pessoas. Outra polêmica é se já passariam de 10 milhões os indivíduos com mais de US$ 1 milhão na conta bancária. Os números são impactantes e nem sempre confiáveis e, para que se tenha uma ideia da importância da economia do país para o mundo, se o crescimento chinês for de 7% ao ano, nos próximos oito anos dobrará o tamanho do PIB.

Toda essa expansão teve um custo ambiental elevado, e a população hoje já não aceita pagar por ele com a própria saúde. A poluição aérea visível é impressionante e seus efeitos são constatáveis: quase 25% das mortes devem-se a problemas respiratórios. A intensa contaminação de rios, lagos e águas subterrâneas é igualmente impressionante, porque além de tudo a água é escassa e sobram desertos e regiões semiáridas. A China, com 20% da população mundial, tem apenas 6% da água doce existente, daí sua condição de 121º lugar no ranking de água per capita e a dura realidade de racionamento em dois terços das cidades, segundo o Anuário 2010 do Ministério de Recursos Hídricos. Essa realidade de desastre ambiental generalizado está mudando, por pressão popular, de técnicos, acadêmicos, da mídia e dos próprios burocratas, que se deram conta dos estragos causados pela lógica de crescer a qualquer custo. Chama a atenção, nos discursos dos dirigentes chineses de alguns anos para cá, a preocupação ambiental, assim como com a necessidade de reduzir a desigualdade social – a população rural e do interior do país ganha um terço, em média, do que ganham os habitantes urbanos e da região litorânea. Essa parcela mais bem localizada representa cerca de 30% da população e, além do poder aquisitivo muito maior, tem maior acesso a saúde, educação, lazer, moradias melhores e, enfim, uma qualidade de vida muito superior à dos 70% restantes. É nessa parcela majoritária do povo chinês que residem os perigos ao futuro do desenvolvimento. A imensa maioria desses mais de 900 milhões de pessoas sobrevive com as dificuldades imagináveis e passa todo tipo de privação, enquanto vê a parcela felizarda sendo estimulada a consumir e alcançar as benesses de quem tem mais dinheiro. Dadas as características e dimensões da crise mundial, se o crescimento chinês se mantiver em 7% será ótimo, mas serão inevitáveis o aumento do desemprego, a queda dos salários e a insatisfação de milhões de trabalhadores embalados pelo sonho chinês. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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JIANG GUOHONG/IMAGINECHINA/ZUMA PRESS/EASYPIX

MUNDO

EXPANSÃO Aviões da brasileira Embraer serão montados em solo chinês: metade do PIB do país é resultado do comércio exterior

Sabendo-se que 4% de desemprego (taxa atual) representa 32 milhões de desempregados, pois cada ponto percentual são 8 milhões de pessoas sem rendimento, pode-se bem imaginar o potencial de agitação reservado para o futuro imediato. O governo que está saindo bem que tentou minimizar os efeitos da ­crise mundial, iniciando a construção de 36 ­milhões de moradias (a previsão é c­oncluí-las até 2015), acabando com os impostos agrí­colas e aumentando a proteção social ­(seguro-saúde, aposentadoria) nas ­regiões rurais. Além disso, conti­nuam os investimentos pesados em infraestrutura de transportes e de energia­e os subsídios à produção de deter­minados alimentos (leite, por exemplo). Entender a China não é fácil. Pela grandeza dos números, pela lógica em função do tempo, pela complexidade filosófica e por tantas outras variáveis. Muito dos princípios e valores nos quais o povo chinês se baseia para nortear suas ações deriva do que pregava Confúcio, há cerca de 2.500 anos. Quando o processo das Reformas entrou em crise, em 1992, foi preciso o líder político Deng Xiaoping, 30

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que articulara sua formulação no final da década de 1970, viajar o país em busca de apoio político para assegurar sua continuidade. Ele tinha 88 anos. Como na época ele dizia que esse processo das Reformas deveria durar 100 anos, e passaram-se até agora apenas 30, quaisquer conclusões que se tirem a respeito dos seus resultados serão “prematuras”. Nesse caso, como avaliar o sucesso ou o fracasso do que a China está realizando? Por exemplo, o controle de natalidade­. Implementado em 1980, quando a popula­ ção aumentava mais de 12 milhões de habi­tantes por ano, ficou mundialmente conhe­cido como Política do Filho Único. Só podem ter mais de um filho casais de famílias da área rural e de etnias minoritárias, aos quais se permite ter dois. Acima desses limites, pagam multas. Essa política­ teria evitado um aumento da p­ opulação da ordem de 300 milhões de pessoas. Ou seja, atingiu o objetivo para o qual foi criada, é um sucesso. Em contrapartida, resultou em problemas de fertilidade para milhares de mulheres, que abortaram várias vezes, e em uma situação inversa, do ponto de vista demográfico: o

crescimento populacional hoje é de menos de 1%. Com isso, a população caminha rapidamente para ampliar a taxa de pessoas mais velhas em comparação com a quantidade de mais jovens. Há quem diga que a China envelhecerá antes de enriquecer. Daí haver quem considere que essa política foi um fracasso...

Mudanças inevitáveis

Ao assumir o governo central da China em março de 2013, o presidente Xi Jinping e seu primeiro-ministro Li Keqiang terão de pôr em prática as mudanças iniciadas a partir da divulgação, em março de 2011, do 12º Plano Quinquenal. A principal mudança é justamente o redirecionamento do crescimento da economia para o mercado interno, por meio do consumo doméstico. Para que aconteça na proporção planejada, porém, será preciso garantir aumento real de salários e a liberação de recursos poupados, por meio da concessão de aposentadorias e pensões. Estima-se que a taxa de poupança alcance 50% do PIB. Parte desse dinheiro só chegará ao consumo, e à roda da economia, se houver garantia de renda à população idosa.


MUNDO

Ao mesmo tempo, o novo governo terá de continuar o esforço de reduzir as desigualdades sociais, em busca da sociedade harmoniosa citada nos discursos de Hu Jintao. Crescer menos e para dentro, redirecionando os investimentos governamentais para as áreas rurais e a região centro-oeste, sofrendo redução das receitas de exportações e aumento dos gastos com importações, e junto com tudo isso lidar

com as pressões internas e externas que virão de toda parte... É um desafio e tanto, ainda mais porque pegarão o mundo no contrapé, o inverso da situação com que seus antecessores lidaram nos dez anos que lhes couberam. Mas talvez a mais difícil, de todas as mudanças estruturais a serem realizadas, seja o combate à corrupção. Wang Qishan, o novo secretário da Comissão Central de Controle Disciplinar do ­PCCh

eleito em 15 de novembro, será o responsável por coordenar esse trabalho em nível nacional. Hu Jintao, presidente da China e então secretário-geral do PCCh por ocasião da abertura do 18º Congresso, em 8 de novembro, citou 16 vezes a palavra “corrupção” em seu discurso, e foi fundo: para ele, o PCCh e o Estado chinês correm o risco de sucumbir, caso a corrupção não seja reduzida consideravelmente.

Um camponês a estragar a paisagem Populações escorraçadas de suas terras na China contemporânea compõem as maiores migrações da história da humanidade Por Renato Pompeu veis. A saga dessas migrações em massa, as maiores da história da espécie humana, é relatada no livro Scattered Sand – The History of China’s Rural Migrants (Areia Dispersa – A História dos Migrantes Rurais da China), lançado em inglês, em agosto último, em Londres e Nova York. A autora, Hsiao-Hung Pai, é uma jornalista­ nascida em Taiwan em 1968 e radicada na Grã-Bretanha desde 1991. Como ela descende de uma família que fugiu da China comunista, talvez se pudesse alegar que seu livro é produto de um reacionarismo ressentido. No entanto, foi editado pela Verso, editora que publica somente livros de autores esquerdistas, na quase totalidade marxistas. Essa jornalista colabora com o jornal progressista inglês The Guardian, uma voz dissonante do coro dos contentes do pensamento único neoliberal. Ela é autora do livro que resultou no filme Fantasmas, de 2006, disponível nas locadoras brasileiras, que relata a vida dos “trabalhadores fantasmas”, isto é, sem registro nem contrato. Os 200 milhões de migrantes constituem um terço da população economicamente ativa da China, mas ganham no máximo metade do salário mais baixo entre os trabalhadores registrados. Não têm

acesso à saúde pública, ou a qualquer tipo de sistema de saúde, e também seus filhos não têm acesso à educação. As mineradoras, indústrias e construtoras em que trabalham não os contratam formalmente, não garantem condições de segurança do trabalho e muitas vezes deixam de pagar os salários desses não registrados. Não apenas o confisco de suas terras para serem outorgadas a grandes empresas os leva a abandonar municípios, províncias e até o país. Um dos grandes problemas é a inexistência de saúde pública no campo. Para pagar os caros serviços médicos privados prestados a eles e a seus parentes, os camponeses têm de migrar em busca de tra-

balhos que lhes rendam mais dinheiro do que nos precários serviços que podem encontrar em suas aldeias originais. Nas cidades, não são considerados cidadãos, pois continuam tendo registro de residência rural, que não garante tantos direitos quanto o de residência urbana. Talvez um dos piores lados da situação desses migrantes é que eles não contam com nenhuma simpatia das autoridades ou das classes médias urbanas, que os encaram como gente ignorante e incompetente, incapaz de garantir a própria sobrevivência, que enfeia a paisagem das cidades – isso nos raros casos em que as autoridades ou as pessoas das classes médias tomam conhecimento de sua existência.

ALY SONG/REUTERS

“Areia dispersa”, assim são conhecidos na China os 200 milhões de camponeses que, a cada ano, deixam seu município em busca de melhores condições de vida – poucos conseguem. Literalmente escorraçados de seus lares e terras de cultivo por causa da desaceleração da economia, ou de ações malévolas de autoridades corruptas para facilitar a outorga de terras a grandes empresas, alguns dos mais afortunados conseguem emprego em minas subterrâneas, onde fazem trabalhos extenuantes por menos de ­R$ 1­por dia. Outros, na província de Henan, vendem seu sangue até três vezes por dia a clínicas, hospitais e bancos de sangue. A maioria se amontoa em barracos miseráveis na periferia das grandes cidades, fora das vistas da população urbana que está inserida no dinamismo estonteante do chamado milagre econômico chinês. Dos que trabalham nas minas, 3 mil morrem por ano em deslizamentos e soterramentos, a única ocasião em que a mídia se dá conta de sua existência. Do total, 130 milhões mudam não somente de município, mas deixam também sua província natal, e centenas de milhares saíram do país, dos quais 55 mil moram, por exemplo, em Moscou, igualmente em barracos miserá-

EXCLUSÃO EM XANGAI Nem todos participam da divisão do bolo REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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MUNDO

Ensaio sobre a cegueira... da direita Mais confusa do que a direita norte-americana hoje, só a francesa. Ou talvez a brasileira. O curioso é que a confusão nasce não de suas dúvidas, mas de suas certezas Por Flávio Aguiar

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a França, no fim de semana de 17 e 18 de novembro, uma votação para determinar quem sucederia Nicolas Sarkozy no comando da União por um Movimento Popular (UMP) descambou para uma série de acusações entre os dois postulantes, com direito a bate-boca, denúncias de fraudes, com ambos clamando vitória. Jean François Copé, de 48 anos, da extrema direita da UMP, e François Fillon, ex-primeiro-ministro de Sarkozy, 58 anos, da direita mais moderada, não conseguiram chegar sequer a um acordo sobre quem vencera o pleito. Copé, de seu lado, manifestava uma reação característica das direitas derrotadas: bradava em sua campanha contra o racismo “antibranco” da periferia de Paris e dizia que sua facção deveria “ocupar as ruas” – numa competição com Marine Le Pen, a candidata de extrema direita derrotada na eleição de abril/ maio. Já Fillon queria uma postura mais moderada de seu partido, que cortejasse também aqueles que deram a vitória a François Hollande. Nos Estados Unidos a situação, embora em outro estilo, não é muito diferente. O país entrou e saiu profundamente dividido das eleições. As ditas “minorias” – cujo somatório será maioria em 2020 – foram fundamentais para garantir a vitória de Barack­ Obama: negros (93%) e latinos (71%) votaram maciçamente no democrata, que também teve uma confortável maioria entre 32

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Copé bradava em sua campanha contra o racismo “antibranco” da periferia de Paris

CHARLES PLATIAU/REUTERS

MUNDO

JIM YOUNG/REUTERS

Há quem diga que Romney perdeu porque fez concessões ao centro

mulheres que vivem sós e gays, é claro. Seu adversário, o republicano Mitt Romney, venceu entre os brancos (59%). Além disso, a questão é que Romney fez uma campanha aparen­­temente voltada apenas para os mais reacionários desse último segmento étnico-social. Suas contínuas gafes em relação­ às mulheres, por exemplo, mostraram que ele simplesmente “não as enxergava”. Outras, como o vídeo em que ele abomi­nava os “47% de norte-americanos que não querem pagar imposto de renda”, evidenciaram que ele também simplesmente “não enxergava” uma larga parte dos Estados Unidos. Romney e seus apoiadores estavam absolutamente certos de que ele ganharia a eleição. A derrota foi muito dura para seu ego – egão, melhor dizendo. Tanto assim que ele só reconheceu a derrota uma hora e meia depois que já era de domínio público. Mas em declarações recentes atribuiu a vitória de Obama a “favores” que este dispensou às “minorias”. Que “minorias”? “Mulheres” e “people of colour”, e ainda “jovens”. É muita cegueira. Mas não é apenas ele a manifestar esse tipo de “incapacidade de ver”. Há um debate entre republicanos sobre como enfrentar a derrota e reabilitar o partido. Muitos, entre eles senadores e governadores, como Chris Christie, de Nova Jersey, e Bobby Jindal, de Luisiana, vieram a público dizer que o partido ­deve voltar-se também para as minorias, para as mulheres, deve “modernizar-se”, em suma. Mas outros, como Matt Kibbe, executivo de uma organização chamada Freedom Works, dessas que defendem o menor dos Estados mínimos, recentemente afirmou no New York Times, na sala de debates do periódico no Facebook, que Romney perdeu porque fez concessões demasiadas ao centro. Insistiu que a única maneira de os republicanos reconquistarem a Casa Branca é mobilizar os adeptos do Tea Party mais firmemente, e para isso precisam ser mais duros, por exemplo, em matéria de “responsabilidade fiscal”. Ou seja: menos impostos para os ricos, menos investimentos sociais, menos ação do Estado. Há, portanto, um vasto mundo que simplesmente escapa à visão da(s) direita(s), simplesmente por desinteresse, ou por impossibilidade mesmo de visualizá-lo. De certo modo, o mesmo acontece no Brasil. Houve um ­certo momento em que o PSDB – Serra à frente – simples­mente p­ erdeu o contato com a realidade. Tanto em 2010 como agora, em 2012, em pleitos de natureza completamente distinta, o tucano, como seu correspondente republicano nos EUA, tinha a absoluta certeza da vitória. Por quê? Porque só conseguia focalizar o m ­ undo para o qual falava, desconsiderando o “resto”. Quando muito, ­buscando o apoio iluminado de cabos eleitorais problemáticos, como o pastor Malafaia, para trazer esse “resto” a seu aprisco de votos por meio do preconceito intolerante. Mais ou menos como fez Romney, mutatis mutandis, nos EUA, e como agora está tentando fazer Copé, na França. Decididamente, precisamos de uma direita mais bem esclarecida. Porque nós, da esquerda, não devemos nos iludir. Essa cega inaptidão da direita rouba o debate, prejudica a esquerda, fazendo-a perder o fio dos argumentos. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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MUNDO

N

o último 14 de novembro, uma greve geral espalhou-se por grandes cidades da Península Ibérica e paralisou muitos serviços, especialmente na área de transportes. Parcela significativa dos trabalhadores da Espanha e de Portugal, com centrais sindicais à frente e suporte de movimentos sociais, cruzou os braços contra as medidas de austeridade incorporadas pelos governos de centro-direita dos dois países no planejamento anual para destinação de recursos públicos. Também houve manifestações na Itália, na França, na Bélgica, na Grécia e no Reino Unido. À medida que novos anúncios são feitos, tanto de resultados decepcionantes decorrentes do arrocho como de ataque ao bolso dos cidadãos, a revolta­aumenta. Na Grécia, o país da União E ­ uropeia (UE) mais devastado até o ­momento, a massa salarial já recuou 35% em três anos. Em Portugal, o governo de coalizão conservadora do Partido Democrático Social (PDS) com o Centro Democrático e Social Partido Popular (CDS-PP), comandado pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, segue à risca o receituário de obsessão contábil pela dívida fiscal e de desmonte da estrutura do Estado pregado pela chamada “troika”. Composta por uma trinca de instituições – Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia (CE) –, esta última impõe, controla e avalia o cumprimento do austero programa de ajuda financeira que injetou recursos solicitados pelas autoridades portuguesas para, acima de tudo, honrar a dívida­ pública com os bancos. A própria CE prevê­que a economia portuguesa deve recuar 1% e o desemprego alcançará o­ ­índice recorde de 16,4% em 2013. Para Nuno Ramos de Almeida, jornalista que já passou por grandes redações portuguesas e esteve entre os lançadores da plataforma “Que se lixe a troika! Queremos nossas vidas”, o governo se nega a dialogar com organizações sociais que se opõem ao caminho adotado e segue uma linha de “obediência cega à troika, mesmo a alguns passos do precipício”. Segundo ele, em vão: “As metas prometidas não 34

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ÀS ARMAS Manifestante desafia a polícia em frente ao prédio do Parlamento português

Austeridade e

REVOLTA

Aprovação de orçamentos marcados por cortes na remuneração de quem ainda tem emprego, arrocho das políticas públicas e aumento de impostos provocam reações cada vez mais intensas na Europa Por Maurício Hashizume, em Coimbra, Portugal

estão sendo cumpridas. M ­ esmo s­ eguindo todo o receituário, devemos mais e temos menos empregos, direitos e atividades produtivas”. A convocação do “Que se lixe a ­troika!” esteve no centro das manifestações de 15 de setembro, que reuniram cerca de 1 milhão de pessoas em dezenas de cidades portuguesas e foram apontadas como as maiores desde 25 de abril de 1974, na Revolução dos Cravos. Almeida vê sinais de

aproximação entre entidades sindicais e movimentos da sociedade civil, mas realça as dificuldades. “As pessoas foram afastadas da participação e relegadas à condição de espectadoras. Os políticos discutem na Assembleia da República enquanto a população assiste a tudo sentada no sofá.” Segundo Almeida, a prioridade das articulações civis (que incluem ainda os Precários Inflexíveis e o Movimento dos Sem


PORTUGAL A dívida está em 120% do PIB. O país aumentará impostos e cortará recursos nas pastas de políticas sociais e reduzirá dezenas de milhares de servidores, principalmente temporários.

Emprego, entre outros grupos) consiste na recusa do programa da “troika”, na substituição dos atuais governantes e na convocação de novas eleições. A estratégia de repressão, porém, também se acirra. Um forte aparato foi montado em 12 de novembro para manter os descontentes longe da comitiva encabeçada pela chanceler alemã, Angela Merkel, em Lisboa.

Crise antropofágica

Na Espanha, as manifestações extrapolaram os círculos da juventude que ficaram conhecidos como “indignados” – ou 15M, em referência à mobilização de 15 de maio passado. Participante da Xarxa Comunitària La Verneda-Sant Martí, de Barcelona (uma das várias iniciativas que emergiram do 15M), a estudante Esther Fernandez diz que a crise, na realidade, é

ESPANHA A dívida está em cerca de 85% do PIB. O país separou € 38,6 bilhões para rolagem parcial dessa dívida. Parte do montante virá de aumento de impostos e de cortes de investimentos públicos.

um “engano”. “O capitalismo precisa continuar enriquecendo. A Europa está a conhecer a verdadeira essência do sistema capitalista”, ironiza. Ela lamenta, entre as consequências desse processo, a supressão de direitos sociais que teriam custado “muitos anos de luta” a muitas gerações. “Ainda pior é o discurso reproduzido pelos governantes no sentido de jogar a culpa da crise nos ‘excessos’ praticados pelas populações”, assinala. Essa linha de raciocínio atribui a crise ao padrão de vida “acima das possibilidades” adotado pelas pessoas – convertidas, assim, nas responsáveis pela própria desgraça. Integrante do Parlamento Europeu, a deputada portuguesa Marisa Matias, do Bloco de Esquerda (BE), repele esse tipo de justificação. E lembra de escolhas políticas deliberadas feitas no passado, uma

RAFAEL MARCHANTE/REUTERS

MUNDO

combinação de crédito desregrado e baixos salários. Segundo ela, a “ilusão de se tornar europeu” por meio de empréstimos e do consumo foi acompanhada por uma desvinculação entre lucros e produção. “Foi uma opção, uma fonte de negócios, e houve gente que saiu lucrando.” A deputada também recusa a interpretação de que o imbróglio decorra de desequilíbrio nos gastos públicos. “Com essa ênfase, o setor financeiro, que está no centro dos agravamentos que estamos presenciando, sai absolvido”, indica. “O atual governo trata a questão como mera planilha de Excel, e ignora os reflexos das medidas de austeridade na vida real.” Para piorar, o agravamento da crise espanhola reacendeu uma antiga polêmica em torno da autonomia política e independência formal da Catalunha, região mais rica do país. Mas estimulou, por outro lado, iniciativas solidárias inovadoras, como a criação de sistemas virtuais de ajuda coletiva para socorrer famílias despejadas de casa devido a complicações com os financiamentos imobiliários. A estudante Esther Fernandez, doutoranda em Sociologia na Universidade de Coimbra (Portugal), destaca também a recente proliferação de assembleias populares organizadas em maiores proporções e por períodos mais longos. Diante de um contexto de escassez de empregos formais, ela ressalta a importância de cooperativas de educação, saúde e emprego, bem como de redes coletivas locais de apoio mútuo. “Tudo isso pode proporcionar muita ‘riqueza’ em sentidos mais amplos que o meramente capitalista, ou seja, pode contribuir para a qualidade de vida real e a dignidade das pessoas.” Da parte das grandes organizações, a novidade é a criação da Cúpula Social, que reúne 150 organizações – incluindo as centrais Comissiones Obreras (CCOO) e União Geral dos Trabalhadores (UGT) – e o movimento por um referendo para pôr em xeque a gestão do primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP), visto que as recentes medidas de arrocho contra a crise não fizeram parte do programa submetido à votação nacional em novembro do ano passado. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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SAÚDE

Imoral e engorda T A publicidade de alimentos industrializados dirigida às crianças e a facilidade de acesso a produtos calóricos e pouco nutritivos estão entre as principais causas da crescente obesidade infantil Por Cida de Oliveira 36

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haina Pereira de Souza, enfim, veste calças jeans no tamanho adequado para sua idade. E quem a vê não acredita que até pouco tempo atrás só usava peças de malha, com numeração para adolescentes. Antes de mudar de roupa, a menina mudou de hábitos. Passou a aceitar carnes grelhadas, salada, legumes, arroz e feijão no lugar das frituras e massas em excesso. E um prato basta, não precisar repetir. “Não foi fácil convencê-la de que para emagrecer não poderia mais comer como antes”, conta a mãe, a dona de casa Manuela Pereira Sales. Com outros casos de obesidade na família e parentes

diabéticos, Manuela diz que tudo começou há dois anos, quando a filha entrou na pré-escola em Itaquera, bairro da zona leste de São Paulo. “Na creche já tinham me alertado sobre o excesso de peso, mas a ficha só caiu quando me chamaram novamente a atenção, dois anos atrás”, lembra. A mãe acreditava que a criança emagreceria naturalmente à medida que crescesse. Quando os exames da filha mostraram colesterol alto, porém, Manuela passou a seguir à risca as orientações da pediatra. Cortou biscoitos recheados, massas em geral e as frituras feitas diariamente. A pizza semanal virou mensal. Biscoito, só de água e sal. O pequeno Felipe, de 1 ano e 1 mês, já compartilha o


novo cardápio da família. “Não quero que ele repita a história da irmã”, diz Manuela. Thaina está entre os milhões de crianças no mundo que despertam a preocupação das autoridades sanitárias com a obesidade. No Brasil, 30% das que têm entre 5 e 9 anos estão com peso acima do recomendado. O dado é da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada entre 2008 e 2009 pelo IBGE. Entre os que têm de 10 a 19 anos, o sobrepeso saltou de 3,7%, em 1970, para 21,7%, em 2009. Diante dos números, o poder público tenta combatê-los com políticas e programas preventivos, como o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) para o

período 2011-2022, no qual estão inseridas a obesidade e suas consequências. Os danos físicos e psicológicos causados pelo excesso de gordura corporal são mostrados no documentário Muito Além do Peso, lançado no mês passado (leia a se­ guir). Dirigido pela cineasta Estela Renner e produzido por Marcos Nisti, vice-presidente do Instituto Alana, ONG dedicada a assuntos da infância, mostra depoimentos de crianças, pais, professores e especialistas nas diversas causas da epidemia. “Entre os riscos imediatos estão os psicoemocionais. As crianças são estigmatizadas, sofrem bullying e são desprezadas pelos colegas. Na adolescência, são afetadas pela preocupação excessiva com a imagem”, afirma o endocrinologista Amélio de Godoy Matos, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. As implicações físicas começam a partir dos 8 anos, com aumento das taxas de colesterol e da pressão arterial. Na adolescência surge a resistência à insulina, processo que mais tarde pode levar ao desenvolvimento do diabetes. E na fase adulta aparecem as doenças cardiovasculares – as que mais matam no Brasil –, além do diabetes, entre outras.

Doença séria

Outro dado preocupante, segundo Godoy, é que, a julgar por uma pesquisa rea­ lizada no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede), do Rio de Janei-

ro, 40% dos adolescentes acima do peso têm gordura abdominal, pressão alta, grande concentração de açúcar, triglicérides e colesterol no sangue e até diabetes. Todas essas alterações, mesmo isoladamente, aumentam o risco de infarto e derrame. O especialista alerta para a facilidade de acesso aos alimentos industrializados calóricos, ricos em gorduras e carboidratos processados, como farinhas e açúcares, e pouco nutritivos. É o caso dos refrigerantes, salgadinhos, biscoitos recheados e outras porcarias. “O aumento da oferta barateou os preços. Como bem mostra o documentário, esses produtos chegam hoje até os mais distantes pontos do país, às populações ribeirinhas da Amazônia, indígenas. Outro fator é a desinformação. Tanto é que a obesidade cresce mais entre as populações pobres dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Quanto menor a escolaridade, maior a obesidade”, afirma. A nutricionista Maysa Toloni pesquisou o tema para seu mestrado e doutorado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Entrevistou mães de crianças matriculadas em creches públicas e filantrópicas e observou que muitos bebês de 3 meses ou menos já tomam refrigerante na mamadeira. E 80% dessas crianças, antes de completar 1 ano, já têm na dieta danoninhos,

COISA FOFA Gisela Solymos: “A maioria das pessoas desconhece a gravidade da obesidade. Para elas, não parece doença séria”

NA LATA/CREN

ERIC LARRAYADIEU/GETTY IMAGES

SAÚDE

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REEDUCAÇÃO Hoje Thaiana se alimenta de forma saudável. A lição vale para o irmãozinho

miojos, salgadinhos de pacote e biscoitos recheados, além de outros dez itens. “Esses alimentos têm muita gordura, sódio – nocivo à circulação do sangue –, açúcar e proteínas, que em excesso fazem mal às crianças, causando obesidade e aumentando o colesterol”, diz. Outra revelação é que as mães mais jovens, menos escolarizadas e de menor renda são as mais suscetíveis a esses erros alimentares. “A maioria das pessoas desconhece a gravidade da obesidade. Para elas, não parece doença séria; muitas alegam ter sido gordinhas e acreditam que a criança obesa vive normalmente e vai emagrecer. Só passam a se preocupar quando a situação já se agravou”, afirma a psicóloga Gisela Solymos, gerente do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), de São Paulo. A entidade capacita equipes de saúde e de creches e atende crianças com distúrbios nutricionais, como desnutrição e obesidade, moradoras em comunidades carentes da cidade. 38

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Reclames suculentos

Apesar de indireta, a publicidade dirigida à criança é outra causa da epidemia que não pode ser desprezada. “Há contato permanente com todo tipo de mensagem publicitária, pela televisão, rádio, outdoors, revistas e internet, entre outros meios”, aponta Ekaterine Karageorgiadis,

advogada do Instituto Alana e integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). São anúncios, jogos “educativos” em sites de fabricantes de alimentos, blogs que atestam uma suposta qualidade nutricional de determinado alimento, brindes colecionáveis e a exposição dos produtos ao alcance das mãos, em embalagens chamativas, com heróis da TV. Para piorar, conforme dados da Universidade de Brasília (UnB), mais de 90% desses anúncios são de redes de fast food, salgadinhos de pacote e refrigerantes, entre outros. O assédio dos fabricantes para fixar sua marca entre as crianças e fidelizar o consumo inclui merchandising em programas infantis, além de campanhas em escolas, como as com personagens conhecidos de cadeias de fast food. “Embora não estejam ali incitando as crianças a comer hambúrguer, eles e o produto que representam são reconhecidos”, diz Ekaterine. Segundo ela, não é à toa o investimento em publicidade para os pequenos. Como assistem diariamente à TV por cinco horas e 17 minutos, segundo o Ibope, e passam tantas outras diante do computador, são futuros consumidores em potencial que influenciam os pais na hora da compra. Pesquisas mostram que 80% de tudo que é comprado, exceto planos de saúde e seguros, leva em consideração a opinião das crianças – daí até fabricantes de produto de limpeza usarem

As crianças têm contato permanente com todo tipo de mensagem publicitária, pela televisão, rádio, outdoors, revistas e internet, entre outros meios Ekaterine Karageorgiadis

JOÃO LACERDA/DIVULGAÇÃO

MAURICIO MORAIS/RBA

SAÚDE


RÁDIO Cena de Muito Além do Peso

REPRODUÇÃO

heróis em seus anúncios. Produtos para bebês, como fraldas e papinhas, são pouco anunciados. Os anunciantes contam com recursos como a linguagem infantil, músicas, personagens conhecidos da TV, prêmios, brindes, animações, jogos e a presença de crianças em anúncios, que leva à identificação direta com o produto. Segundo especialistas, isso funciona porque só aos 12 anos a criança desenvolve plenamente o raciocínio abstrato. Ainda pequena, recebe toda mensagem de modo literal; até os 8 anos será incapaz de distinguir programa e propaganda e de entender que a mensagem publicitária é para incentivá-la a comprar algo, mais e mais. Só aos 12 vai perceber essa diferença, embora nem sempre a intenção da venda. “Esse tipo de publicidade é proibido pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código de Defesa do Consumidor, mas são necessárias novas regras mais específicas”, afirma Ekaterine. Em todo o país tramitam projetos de lei para disciplinar os horários de exibição do anúncio e proibição da venda casada de brindes e alimentos, como já acontece em Florianópolis, por exemplo. Em Belo Horizonte, as empresas passaram a ser obrigadas a informar que o brinquedo pode ser vendido separadamente do sanduíche e de outros alimentos. Em 2009, as indústrias firmaram acordo de autorregulamentação da publicidade, como em outros países, mas os critérios adotados são subjetivos. “Um fabricante de suco informa que seu produto é benéfico por não conter açúcar, apesar de ser pobre em nutrientes e rico em corante”, lembra a advogada do Alana. “É claro que a regulação pode ser mais efetiva com leis que a disciplinem, mas as empresas podem fazer seu papel com a produção de alimentos mais saudáveis e anunciar somente para adultos”, diz. Cabe aos pais se informar melhor sobre os alimentos, mudar os hábitos, escolher produtos naturais e voltar a fazer as refeições com os filhos, longe da tela da TV e do computador. “Todos são responsáveis. A obesidade é um problema social, não individual.”

Óleo para um batalhão

A

pesar de as informações nutricionais de cada alimento estarem nos rótulos, acessíveis a todos, surpreende saber que com o óleo usado na fritura de um pacote de certos salgadinhos devorados pela garotada daria para cozinhar para um batalhão. E, com o açúcar presente no refrigerante, seria possível adoçar muitas receitas para se deliciar com moderação. Também impressiona ver a chegada de barcos da Nestlé a lugares distantes da Amazônia, levando seus produtos, bem como indígenas mandando ver no macarrão instantâneo. Tudo isso é retratado no documentário Muito Além do Peso, da diretora Estela Renner. “O filme é uma tentativa de decodificar uma informação que já existe no rótulo dos produtos. Não deixa de ser um serviço para os pais, para que consigam entender o que estão comprando para seus filhos”, disse a cineasta em entrevista à repórter Marilu Cabañas, da Rá­

dio Brasil Atual, logo após a pré-estreia, em 12 de novembro, em São Paulo. O filme discute a gravidade da obesidade infantil e os fatores que contribuem para seu aparecimento. Segundo a cineasta, sua preocupação é fazer filmes de cunho social em defesa da criança. “A partir do momento que são 30% das crianças brasileiras acima do peso, pensamos que a causa merecia uma ferramenta audiovisual para ajudar a ampliar esse debate.” Para ouvir a entrevista na íntegra, acesse o atalho: bit.ly/rba_obesidade

Sintonize 93,3 FM Litoral paulista 98,9 FM Grande São Paulo 102,7 FM Noroeste paulista Na internet www.redebrasilatual.com.br/radio REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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CIDADANIA

Refúgio do

PRECONCEITO Um grupo de travestis encontra na direção de um presídio gestos exemplares para enfrentar com dignidade o mundo hostil da discriminação Por Evelyn Pedrozo. Fotos de Andréa Graiz

S

alvas do pior dos mundos, elas desde maio vivem protegidas dos demais detentos em uma galeria exclusiva do Presídio Central de Porto Alegre. Trocaram a rotina de maus-tratos, ameaças físicas e torturas psicológicas por um espaço onde têm o direito de cumprir sua pena com dignidade. São oito celas abertas no terceiro andar do Pavilhão H, onde, diferentemente de todas as outras instalações, a higiene e a organização constam das regras da boa convivência entre as travestis e seus companheiros, num total de 30 pessoas. No “3º do H” estão livres para se maquiar, vestir roupa feminina e viver de acordo com sua identidade de mulher, algo inaceitável quando estavam confinadas entre os homens. O que parece privilégio 40

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foi, na verdade, uma medida de proteção à vida das travestis negociada entre a direção do presídio e a ONG Igualdade RS, com base nos relatos dos abusos sofridos. A coordenadora da ONG, Marcelly Malta Schwarzbold, conta que antes as travestis eram obrigadas a fazer sexo com qualquer um a qualquer hora e, pior, ficavam justamente nas instalações dos presos por crimes sexuais, como estupradores e pedófilos. O relato é angustiante. “Eram submetidas a cortes de cabelo e forçadas a ter relações sexuais, eram até mesmo estupradas quando não atendiam às ordens dos chefes de galeria”, diz Marcelly. Outra barbaridade da qual se livraram foi o papel de “mulas” em dias de visita. “Tinham de esconder drogas e até aparelhos de celular no ânus para entregar aos chefões.” Depois da conquista da cela especial, o

Juliana, a mais jovem, agora livre das agressões

comportamento das travestis surpreendeu a equipe do presídio. Nalanda, de 25 anos, é a líder e leva a turma na rédea curta. É uma espécie de prefeita da galeria, o que lhe garante o direito a um espaço exclusivo, que mantém bem arrumado, limpo e sob a guarda da imagem de seus protetores: Nossa Senhora da Aparecida, Iemanjá e São Jorge. Para esta entrevista, ela se preocupou em manter as meninas concentradas no tema, para “não dispersar” as informações. Como boa cidadã, diz que as celas fazem parte do patrimônio público e, portanto, devem ser mantidas com o cuidado que teriam na própria casa. Mostra sem timidez as instalações, chama a atenção para a limpeza, para o fato de terem chuveiro com água quente, para o “cheiro bom”, privilégios conquistados com a ajuda de Marcelly. Nalanda vem de família estruturada, estudou em bons colégios e tem consciên­ cia de que poderia ter seguido um caminho fora da prostituição e do crime, rota que afirma ter traçado por força da exclusão enfrentada como travesti. Agora, condenada por roubo e furto, consegue


CIDADANIA

enxergar a péssima escolha feita. Por isso, levantou a bandeira da educação no presídio, “a única salvação” para elas. A líder não se cala diante do fato de as travestis não poderem participar, por puro preconceito, das aulas ministradas no presídio pelo projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Os outros presos não aceitam estudar com as travestis. Eles têm nojo. Só queriam abusar da gente. Mas o fato é que tudo começa com educação, e aqui a maioria quer estudar. A gente quer outra vida”, reclama. As outras meninas concordam. Elétricas com a presença da reportagem mais meia dúzia de militares que fazem a segurança, demonstram uma inexplicável alegria e muito otimismo.

Mais que uma fala

O contato da ONG Igualdade RS com o presídio teve início em setembro de 2011, quando o diretor, o tenente-coronel Lean­ dro Santini Santiago, um tipo descon­

fato de não poder desfrutar do fim de tarde, período que saíam para o trabalho nas ruas. A noite na cadeia é o período mais triste. “Olha pra um prédio de dia e depois olha de noite. Nossa vida é igual. De noite é tudo mais bonito, iluminado. De dia é só preconceito. A gente é tratada que nem bicho”, descreve Mayara, condenada por homicídio depois de reagir a uma agressão homofóbica em um bar. “Eu me defendi. Sentei a cadeira no cara e, pro meu azar, ele morreu.” Muitas travestis sofrem de depressão não apenas pela privação da liberdade, mas também pela falta que sentem de seus amores, aqueles por quem cometem erros pelos quais pagam caro. “Um crime de uma travesti tem sempre a ver com um homem”, admite Marcelly. Assim foi com Nalanda, Ágata, Juliana, Fabíola, Yasmin, Ketulin e com tantas outras. “Nós somos fiéis, apaixonadas. Uma travesti faz qualquer coisa por seu homem, tira o cara da

Nalanda: fé nos santos protetores

traído de ideias abertas, fez o convite para uma palestra sobre direitos humanos. A princípio, Marcelly pensou que fosse apenas uma fala, mas os encontros se estenderam. E, de abertos a variados grupos, passaram a ser restringidos. “Claro que todos precisam de respeito, de dignidade, querem ouvir, querem falar. Mas decidimos voltar nossa atenção só para a galeria das meninas”, diz Marcelly, travesti de 61 anos. A coordenadora da ONG virou a “mainha”, indispensável ao grupo porque elas precisam de alguém para ouvi-las falar de suas angústias – entre tantas, o

Marcelly afirma que todas tinham a autoestima muito baixa porque eram completamente subjugadas pelos criminosos sexuais. “Como a segurança fica fora da galeria, não sabia nada do que ocorria lá dentro, e isso começou a me preocupar muito.” E foi movida por esse sentimento que a líder conquistou o termo de co­ope­ração. O tenente-coronel Santiago, que comanda o maior presídio do estado, teve sensibilidade para o tema e disse que a proposta de criar um espaço especial foi surgindo das conversas com a ONG. “Antes elas ficavam dispersas e agora estão ­vivendo com maior dignidade”, diz. Marcelly comemora os resultados. “O coronel Santiago é nosso ídolo, um militar que não é conservador.” Das 13 travestis que saíram do presídio desde o início das aulas de cidadania e do confinamento exclusivo, nenhuma reincidiu nem voltou para o sistema carcerário. Agora, por meio de um convênio com o Senac, elas

Mayara reagiu a um ataque homofóbico

cadeia, mas um homem não faz o mesmo pela travesti”, lamenta Marcelly. Elas sentem falta ainda dos hormônios que tomavam fora. Sem isso, têm de tolerar os efeitos que descortinam seu corpo masculino. Mas a nova rotina, que inclui aulas de artesanato, já começa a alimentar a criatividade das meninas e a abrir seus horizontes. Elas fazem fuxicos, bonecas, bruxinhas, tricô e crochê com material levado ao presídio pela ONG. O propósito é que preencham o tempo com qualidade e, ao sair, tenham alternativa de sobrevivência fora da prostituição.

terão curso de cabeleireira e de manicure. Segundo o tenente-coronel, o presídio, inaugurado em 1958, tem mais que o dobro de presos em relação à sua capacidade. No dia 28 de setembro eram 4.213 em um espaço para 2.069. As celas não têm grades porque seria inviável colocar tantos homens nos pequenos espaços. As galerias ficam abertas e eles circulam. Apenas 150 detentos têm ocupação e também são apenas 150 vagas na escola. Diante dessa realidade em que parece não haver nada a ser feito, uma pequena mudança fez toda a diferença para as travestis. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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HISTÓRIA

D

Amigo do mar lo presidente Hermes da Fonseca, concedendo “amnistia aos insurrectos de posse dos navios da Armada Nacional”. Foi mais uma concessão formal do que real, já que João Cândido e outros terminaram expulsos e perseguidos. Vários foram mortos. Em 23 de julho de 2008, veio a Lei nº 11.756, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que concedeu anistia post mortem a João Cândido e aos demais marinheiros, com o “objetivo de restaurar o que lhes foi assegurado” pelo decreto de 1910. A lei se originou de projeto da então senadora Marina Silva e do então deputado Marcos Afonso, ambos à época filiados ao PT do Acre. João Cândido, morto em 1969 aos 89 anos, virou o “navegante negro” da música O Mestre-Sala dos Mares, 42

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João Cândido, líder da Revolta da Chibata, inocentado há 100 anos, teve sua anistia reconhecida apenas em 2008 Por Vitor Nuzzi

de João Bosco e ­Aldir Blanc. Originalmente, seria o “almirante negro”. A letra original (1975) foi modificada: ­ Rubras ­cascatas Jorravam das c­ ostas dos n ­ egros Pelas pontas das ­chibatas Inundando­o coração De toda tripulação Que a exemplo do ­marinheiro Gritava não A letra começa com os seguintes versos: “Há muito tempo nas águas da Guanabara/ O Dragão do Mar reapareceu”. Era referência a outro personagem, Fran-

cisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, jangadeiro que no Ceará liderou lutas pelo fim da escravidão, abolida naquele estado em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. Reaparecia como “navegante negro”. “Tivemos diversos problemas com a censura”, contou Aldir Blanc, tempos atrás. “Ouvimos ameaças veladas de que o Cenimar (Centro de Informações da Ma­ rinha) não toleraria loas a um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não

EM “A ILLUSTRAÇÃO BRAZILEIRA”.1/12/1910/ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE S.PAULO

Nascido em 1880 no interior do Rio Grande do Sul, João Cândido entrou aos 15 anos na Escola de Aprendizes de Marinheiros. Em seu ofício, participou de várias manobras, inclusive fora do país

ois decretos e uma lei, em momentos distintos da República, explicam um pouco da história brasileira, que ainda resiste a ser contada. O primeiro é o Decreto Federal nº 3, de 16 de novembro de 1889, assinado pelo marechal Deodoro da Fonseca um dia depois da Proclamação: “Fica abolido na Armada o castigo corporal”. Mas no ano seguinte o governo criou as chamadas companhias correcionais, para os “praças de má conduta”. Foi contra esses castigos que se insurgiram 2.300 marinheiros, em 1910, na Revolta da Chibata. No final de 1912, João Cândido Felisberto, identificado como líder do movimento, foi julgado por um conselho de guerra e considerado inocente. E aí entram os outros dois decretos. Na tentativa de acabar com o movimento, que ameaçava inclusive a cidade do Rio de Janeiro, o Congresso aprovou a anistia e o governo publicou o Decreto nº 2.280, de 25 de novembro de 1910, assinado pe-


HISTÓRIA

mutilar o que considerávamos as ideias principais.” Ele disse ter ficado chocado quando um censor afirmou que o “problema” era “essa história de negro, negro, negro”. E se viu “atropelado pelo panzer do racismo nazi-ideológico oficial”. O marinheiro virou mito, contestado por alguns. O vice-almirante reformado e historiador Hélio Leôn­cio Martins, por exemplo, escreveu em 1988 o livro A Re­ volta dos Marinheiros de 1910, no qual lamenta e critica a violência contra os marujos, mas questiona o papel de João Cândido e refuta a fama de heróis dada aos revoltosos. A íntegra da obra pode ser vista na página oficial da Marinha na internet. Em 2008, a Marinha liberou documentos referentes a João Cândido, após pedido feito por um grupo de historiadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), para um projeto da Fundação Banco do Brasil. E o livro-referência sobre o episódio histórico é A Revolta da Chibata, do jornalista Edmar Morel, lançado em 1959 – um dos historiadores da Uerj é Marco Morel, neto de Edmar. O livro ganhou segunda edição em 1963. Com o golpe, no ano seguinte, o tema foi praticamente proscrito da historiografia brasileira. Era perigoso até mencioná-lo, contou Marco Morel em texto de 2009, ano da edição mais recente de A Revolta da Chi­ bata. “Tanto que ele (João Cândido) concederia de forma clandestina depoimento no Museu da Imagem e do Som (RJ), em 1968. A variada imprensa nacionalista e de esquerda foi destroçada e a revolta, perdida num desvão da memória histórica, ainda está a merecer a atenção de historiadores.” O próprio Edmar Morel foi exonerado do cargo público que exercia e teve seus direitos políticos cassados, principalmente pela publicação do livro. “E não pôde mais sobreviver da profissão de repórter, resultado da perseguição de oficiais da Marinha e seus aliados, da censura e autocensura nos grandes veículos de comunicação, embora ele tenha continuado a publicar artigos e livros e atu-

REPRODUÇÃO

Clandestino

REVOLTA Tripulantes do cruzador Barroso, uma das quatro embarcações que parou na Baia da Guanabara e apontou os canhões na direção da cidade para exigir o fim da chibata

ado como assessor sem vínculo empregatício”, conta Marco Morel. “Fiquei sabendo que João Cândido ainda vivia como um proscrito, um simples carregador de cestos de peixe dos barcos de pesca para o entreposto da Praça XV, no Centro do Rio”, narrou Edmar Morel em Histórias de um Repórter, de 1999. Foi conhecê-lo em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. “Não era uma habitação digna da espécie humana”, relatou. No livro, o veterano jornalista chama o personagem de “herói da plebe”. A revolta começou em 22 de novembro de 1910, após castigo imposto ao marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, do navio Minas Gerais – que em 1953 seria vendido como sucata à Itália. A pena era de 25 chibatadas, mas o marujo teria recebido 250. No dia seguinte, canhões de quatro embarcações na Baía de Guanabara se voltaram para a capital. Em carta endereçada ao presidente Hermes da Fonseca – eleito naquele ano, depois de vencer disputa contra Rui Barbosa –, marinheiros pediam a retirada dos “oficiais incompetentes e indignos” de ser-

vir à nação e o fim da chibata e de outros castigos. Os termos finais do documento eram duros: eles davam prazo de 12 horas ao presidente para ter resposta satisfatória, “sob pena de ver a pátria aniquilada”. Quatro oficiais morreram nos navios e duas crianças em terra, por efeito de bombardeios de advertência. Na revolta de 1910, que durou cinco dias, o Congresso aprovou uma anistia às pressas. Semanas d ­ epois, houve nova rebelião, que para alguns teria sido forjada a fim de incriminar os marinheiros. João Cândido foi preso e levado para o quartel da Ilha das Cobras. Foi torturado perto de onde, anos ­depois, sobreviveria como carregador de cestos de peixes. Julgado, terminou absolvido em 29 de novembro de 1912. O depoimento para o MIS foi gravado em 29 de março de 1968, um dia depois do protesto que acabou na morte do estudante secundarista Edson Souto, no Rio de Janeiro. João Cândido tinha 88 anos e morreria em dezembro de 1969. Uma das perguntas: Você não tem queixas do mar? Não, o mar é meu amigo. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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VIAGEM

Postais de Niemeyer Ele assinou mais de 2 mil obras espalhadas pelo mundo e arquitetou um Brasil moderno, mas a urbanização do país tomou rumos que não estavam em sua prancheta

BRUNO DOMINGOS/REUTERS

Por Guilherme Bryan

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VIAGEM ELOY ALONSO/REUTERS

CESAR FERRARI/REUTERS

Museu Oscar Niemeyer, Curitiba

REUTERS/STRINGER/POOL

Escultura para José Martí, Cuba

Projeção sobre a cúpula do Centro Cultural Oscar Niemeyer, Avilés, Espanha

P

alácios do Planalto, da Alvorada, prédios do Congresso Nacional e, aliás, as principais edifi­ cações do Plano Piloto de Brasília. Parque do Ibirapuera e Edifício Copan, em São Paulo. Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. Bolsa de Trabalho de Bobigny, a sede do Partido Comunista Francês,­e Centro Cultural Le Havre, na França. Editora Monda­dori, na Itália. Universidade de Constantine, na Argélia. Pestana Casino Park, em Portugal. Alguns cartões-postais arquitetônicos de importantes cidades do mundo têm em comum a célebre assinatura de Oscar Niemeyer. Mas, além dos edifícios com um estilo bastante particular, ele projetou influências para muitas gerações de novos arquitetos. Talvez nenhum outro arquiteto tenha produzido tanto durante tão longo período de atividade como Niemeyer, nascido em 15 de dezembro de 1907.

RICARDO MORAES/REUTERS

Congresso Nacional, Brasília

“O vocabulário da arquitetura moderna brasileira deve muito ao seu trabalho inicial. Os arquitetos modernos brasileiros são todos seus seguidores. Ele influenciou a lógica de pensar o objeto arquitetônico e sua inserção, mais que na cidade, na paisagem”, define o professor Luiz Antonio Recamán Barros, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). “Não podemos falar, porém, de uma escola ou mesmo de seguidores diretamente, ainda que muitos façam referência direta às suas soluções consagradas, mas em contexto bastante diverso. As condições políticas e nacionais que permitiram a extensa atividade de Niemeyer são dificilmente reproduzidas hoje, no Brasil ou em qualquer outro país do mundo.” Oscar Niemeyer começou trabalhando na tipografia do pai, filho de um ministro do Supremo Tribunal Federal, até ingressar em 1929 na Escola Nacional de Belas Artes, onde se formou arquiteto e engenheiro cinco anos depois. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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VIAGEM GULHERME JÓFILI/FLICKR/CC

SERGIO MORAES/REUTERS

Museu de Arte Contemporânea, Niterói

Passeio em Niterói Silveira, Praça JK, Centro Petrobras de Cinema e Estação Hidroviária de Charitas, terminando no já tradicional Museu de Arte Contemporânea da cidade, inaugurado em 1996. “O Caminho Niemeyer pronto vai causar uma revolução cultural-turística e

Seu primeiro projeto individual foi erguido em 1937, a Obra do Berço, no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro, marcada pela presença de pilotis e de planta e fachada livres, o que possibilitava a abertura total de janelas na fachada, do terraço-jardim e do brise-soleil, ou quebra-sol – clara inspiração nos elementos defendidos pelo franco-suíço Le Corbusier. Essa influência repetiu-se em 1943, quando foi inaugurado o novo edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública, fruto de uma assessoria pedida pelo urbanista Lúcio Costa ao escritório de Le Corwusier. Elevando-se da rua por meio do apoio de pilotis, o prédio contou com azulejos de Cândido Portinari, esculturas de Alfred Ceschiatti e jardins de Roberto Burle Marx. Ou seja, os maiores nomes do modernismo brasileiro e, por isso, considerado o primeiro marco da arquitetura moderna do Brasil. “O projeto elaborado por integrantes de movimentos de vanguarda nas primeiras décadas do século 20, como Walter Gropius, Le Corbusier e Mies Igreja da van der Rohe, tinha como Pampulha, premissa um espaço moderno, Belo abstrato, apartado da tradição e Horizonte da história. A cidade moderna será a concepção suprema do projeto moderno e, consequen­ temente, da própria arte moderna. Oscar Niemeyer é o arquiteto que materializa a utopia das vanguardas”, afirma o professor Rodrigo Queiroz, do Departamento de Projeto da FAU-USP. 46

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produtiva na cidade de Niterói e uma repaginação do centro. A cidade passa a ser a segunda do mundo com a maior quantidade de obras projetadas por ele”, diz Liberato Pinto, diretor da Niterói Empresa de Lazer e Turismo, autarquia subordinada à prefeitura.

A primeira obra de Niemeyer a alcançar grande projeção, a ponto de ser considerada por muitos seu melhor trabalho, é o Conjunto Arquitetônico da Pampulha. Em 1940, o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, encomendou-lhe uma série de edificações para a área homônima situada na zona norte da cidade. Foram construídos, ao redor de um lago artificial, um cassino, uma igreja, uma casa de baile, um clube e um hotel. O desenho da Igreja São Francisco de Assis aborreceu o clero, que se recusou a benzer a obra por causa do cachorro junto ao santo no mural de Cândido Portinari. “Entre seus mais de 2 mil projetos, creio que os mais importantes foram os que deflagraram uma nova linguagem para a própria arquitetura moderna no Brasil. No conjunto da Pampulha, pela primeira vez Niemeyer experimenta a curva de modo mais livre. Nos edifícios de Brasília, está representada uma revisão crítica sobre sua própria linguagem”, explica Queiroz. Para Recamán Barros, o projeto da Pampulha definiu os caminhos da arquitetura nas décadas seguintes. “Em São Paulo, temos o Copan e o Parque do Ibirapuera, definitivos para enfrentar o grande desafio que se apresentava ao país: a urbanização paulista, a grande metrópole. Foram fundamentais para as soluções encontradas em Brasília, sem dúvida um marco para a arquitetura internacional.” ROSINO/FLICKR/CC

Desde o início de novembro, está aberto à visitação o Caminho Niemeyer, em Niterói (RJ), que percorre 3.500 metros da orla da cidade e passa por várias construções projetadas pelo arquiteto, como Teatro Popular, Fundação Niemeyer, Memorial Roberto


UESLEI MARCELINO/REUTERS

VIAGEM

Catedral de Brasília

O projeto da nova capital federal surge como mais um convite de JK, agora presidente da República, ao arquiteto, que em 1957 abre concurso público para o Plano Piloto. O projeto vencedor é de Lúcio Costa, seu amigo e ex-patrão. A construção de uma cidade em tempo recorde chama atenção, assim como seus edifícios, caso da Catedral de Brasília e do Palácio do Planalto, e os conceitos modernistas postos em prática, como o privilégio ao automóvel e os blocos de edifícios afastados, em pilotis sobre grandes áreas verdes. “Niemeyer foi responsável pelos edifícios mais importantes e Lúcio Costa, pelo Plano Piloto. Um evento com tamanha complexidade não pode ser avaliado em termos de acerto ou erro. Brasília foi projetada e construída quando muitos pressupostos sobre os quais foi idealizada já estavam sendo revistos no debate sobre cidade e arquitetura, como o zoneamento restrito, a ênfase na circulação de automóveis”, avalia Recamán Barros. Seu principal problema foi a impossibilidade de tratar a questão social e habitacional dos trabalhadores que a construíram e daqueles que para lá foram atraídos. “As cidades-satélites, que herdamos desse audacioso projeto, representam a dimensão desse problema.” Uma proposta inicial de Brasília era que todas as moradias pertenceriam ao Estado e seriam utilizadas pelos funcionários públicos, algo então considerado próximo do ideal socialista.

Niemeyer sempre esteve envolvido com a luta política, foi filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e emprestou a própria casa para que Luiz Carlos Prestes montasse o comitê do partido. Durante alguns anos do regime militar, foi morar na França. Mas segundo o cineasta Fabiano Maciel, diretor e roteirista do documentário A Vida É um Sopro, a respeito do centenário do arquiteto, sua obra não foi tão marcada por suas predileções políticas. “Ele mesmo discordava da arquitetura soviética, por exemplo.” Nenhum outro arquiteto brasileiro, na opinião de Recamán Barros, soube interpretar os anseios e conflitos da modernização social do país e a necessidade de criação de fortes emblemas nacionais durante o processo de formação do Estado moderno, dos anos 1930 até a construção de Brasília. “Ele foi responsável por uma das mais fortes e constantes imagens da nacionalidade.” O professor da FAU-USP é autor de tese de doutorado em Filosofia – Oscar Niemeyer: Forma Arquitetônica e Cidade no Brasil Moderno. “O grande problema da arquitetura moderna brasileira é exatamente o fato de não considerar a complexidade das cidades e do processo de urbanização que o país viveu desde os anos 1940. Os importantes edifícios não lograram interferir, positivamente, na estrutura urbana que ­estaria por vir.” REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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CURTA ESSA DICA

Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Caio Blat, como Heitor

Docudrama Os pais de Heitor não queriam que ele entrasse para a luta armada contra a ditadura, como fez sua irmã, Lúcia Murat. Enviado em 1969 para Londres, o caçula dos três filhos mergulhou na inquietação. Foi para os mares do sul, Indonésia, Tailândia, Afeganistão. Deu a volta ao mundo por duas vezes e viveu experiências viscerais. As cartas que enviou à família, na época, guiam o documentário Uma Longa Viagem (dirigido pela própria Lúcia), interpretadas por Caio Blat e permeadas por projeções de fotos, vídeos, narrações da irmã-diretora e entrevistas em que Heitor revela hoje o que não podia revelar aos pais nas cartas: as prisões e suas viagens pelo mundo das drogas. Em DVD.

Releitura bíblica Flávio Aguiar, colaborador assíduo desta Revista do Brasil, lança no início de dezembro mais um livro: A Bíblia Segundo Beliel – Da Criação ao Fim do Mundo: Como Tudo de Fato Aconteceu e Vai Acontecer (Editora Boitempo, 122 pág.). Beliel é um anjo desgarrado que decide reunir narrativas bíblicas perdidas. Os coadjuvantes da história são, em sua maioria, também desgarrados, como o demônio Misgodeu, o porteiro do inferno, a pomba que Noé soltou para ver se as águas do dilúvio tinham baixado, o escravo de Jó, entre outros. Beliel nos mostra sua versão do mundo e o autor apresenta não só as previsões apocalípticas de origem religiosa, mas também as de natureza científica e histórica, como guerras nucleares e o aquecimento global. Falando assim, parece até um livro sisudo com pretensões proféticas, mas não. É engraçado e tem uma narrativa melódica bem atual. Para isso, o autor se ancorou nas tradições bíblicas (as quais conhece profundamente) e cruzou leituras da Sagrada Escritura 48

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com as do Evangelho segundo Nicodemus e segundo Maria Madalena, textos de Camões, cancioneiros de Carlos Gomes, Dorival Caymmi e (até) Erasmo Carlos, poemas de Catulo da Paixão Cearense e livros de Teilhard de Chardin. As fontes de onde Flávio bebeu para escrever são ricas, e sua costura, refinada. Ele combina a leveza da chanchada com reflexões profundas sobre temas que lhe são caros e podem levar à redenção da sociedade: a liberdade, a justiça, o amor e a crença contrapondo-se à religião, ao fanatismo, à opressão e à desigualdade. Sobre o churrasco que Noé prepara com os animais da Arca, Flávio, gaúcho de Porto Alegre, é enfático: “Não inventei o churrasco de Noé. Ele está em Gênesis, 9, 2022. (...) Aliás, inventei muito pouco neste livro todo. Alguns nomes, nada mais. Apenas li muita coisa com o espírito aberto. Cruzei as leituras e traduzi tudo para um novo contexto”, escreve nos comentários finais. As ilustrações são de Ricardo Bezerra.


FOTOS DE THOMAS HOEPKER/MAGNUM PHOTOS/LATINSTOCK

EpitáfioAntes de a fotografia digital tomar

conta das redações, os fotógrafos faziam uma primeira prova em miniatura das imagens dos filmes numa folha de contato ou em cromos antes de escolher as que queriam ampliar. O livro Magnum – Contatos chega ao Brasil com 139 folhas de com 435 imagens feitas entre 1930 e 2010 por 69 fotógrafos da agência. Os desembarques na Normandia, por Robert Capa, e os distúrbios em Paris, em maio de 1968, por Bruno Barbey, estão no livro, além de imagens de Henri-Cartier Bresson, Elliot Erwitt e Inge Morath. (Ao lado, os fotogramas em que Thomas Hoepker flagra grupo de jovens alheios às Torres Gêmeas ardendo ao fundo, no 11 de setembro de 2001; acima, a foto publicada.) Quem não quiser pagar R$ 190 pela obra, pode conferir, de graça, a exposição com 39 fotos até 6 de janeiro na loja do Instituto Moreira Salles, no Conjunto Nacional, em São Paulo. De segunda a sábado das 9h às 22h e domingo e feriado das 12h às 20h.

Uma brasa, mora?

Teresa Cristina mudou de ares. Com uma carreira consolidada no samba, ela aceitou a proposta da banda de rock Os Outros e lançou disco em homenagem a Roberto Carlos. O namoro com o repertório começou quando foi convidada pelo grupo (que é fã do rei) para fazer shows. A parceria deu certo e o álbum foi lançado em novembro pela Deck, com sucessos como Proposta, Como Dois e Dois, Sua Estupidez, Cama e Mesa, As Curvas da Estrada de Santos. Preço sob consulta.

Acervo de Tom Um dos mais nobres visitantes do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Tom Jobim ganhou uma exposição permanente que torna acessível parte de seu acervo pessoal e de sua obra. A mostra vai ocupar 190 metros quadrados do instituto que leva seu nome e traz a público móveis do estúdio de gravação, objetos pessoais e até o piano no qual o maestro compôs suas músicas quando vivia na emblemática Rua Nascimento Silva, 107, em Ipanema. De terça a domingo, das 10h às 17h, na Rua Jardim Botânico, 1008. Grátis. REVISTA DO BRASIL DEZEMBRO 2012

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MOUZAR BENEDITO

É o fim do livro? Viva o livro!

O

brasileiro lê cada vez menos, conforme diz muita gente. É certo que, com exceção dos best-sellers lançados com um baita esquema promocional, as tiragens dos livros no Brasil diminuem, em vez de aumentar. Mas o número de edições cresce. Quando o Brasil tinha 70 milhões de habitantes, a tiragem inicial de um livro de autor não famoso era de 3 mil exemplares. Nessa época estive em Cuba e me espantei com os números de lá. Livros simples começavam com 100 mil exemplares, num país com pouco mais de 10 milhões de habitantes. É que lá havia uma proporção de leitores muito maior do que aqui, o que barateia o livro pelo volume publicado. Além disso, fora os de arte e alguns que exigem tratamento gráfico mais apurado, custam pouco porque são de papeljornal. O que interessa é o conteúdo. E lá não tem um monte de atravessadores até chegar ao leitor. Aqui, quem lucra menos com os livros é o escritor. Até 60% do preço de venda vai para livreiros/distribuidores. Publiquei muitos, mas se dependesse deles para viver já teria morrido de fome há muito tempo. E não estou usando força de expressão, a coisa funciona assim mesmo. Ah, falei das tiragens iniciais quando o Brasil tinha 70 milhões de habitantes. Quando tínhamos 120 milhões, baixaram para 2 mil. Mais recentemente, com 170 milhões de habitantes, baixaram para mil exemplares. E logo em seguida para 500! Agora, existe um sistema de impressão 50

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que permite menos ainda. Há ­edi­­to­ras publicando 100 ou 200 exemplares e outras nem isso. Quando alguém faz uma encomenda, imprimem meia dúzia de exemplares. Claro que isso encarece. Quanto menor a tiragem, mais caro fica. Então é um círculo vicioso: o livro custa caro porque a tiragem é pequena e a tiragem é pequena porque o livro custa caro e poucos podem comprar. Mas não é só isso. Muita gente acha normal pagar, por exemplo, R$ 200 ou mais para assistir a um show e considera caríssimo um livro de R$ 40 ou R$ 50. Agora, contraditoriamente, nunca vi tanta promoção de eventos ligados a livros. Alguns monstruosos (em volume), como a Bienal do Livro de São Paulo, mas lá a gente só vê fila no banheiro das mulheres e nos caixas de lanchonetes. Para comprar livros não há filas. Pouca gente vai lá pra isso. Mas em São Paulo mesmo há muitos outros eventos, como a Primavera dos Livros, feita por pequenas e médias editoras, e uma feira pra valer, onde as pessoas vão para comprar mesmo, no prédio de Geografia e História da USP, com descontos de 50%. Há também no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre... Num monte de lugares. A cada ano, a gente fica sabendo de novas feiras ou festas literárias em todos os recantos do Brasil. No entanto, parece-me que nas cidades menores são mais bem-sucedidas. Bom, é preciso levar em conta também o formato. Falam muito bem da Festa Literária Internacional de Parati (Flip), em que nunca estive. Em Palmas, capital de Tocantins, cidade com pouco mais de 200 mil habitantes, a feira anual do livro recebe quase 500 mil pessoas, porque as cidades do interior, carentes de livrarias, lotam ônibus de gente para ir lá ouvir palestras e comprar livros. Participei e gostei de feiras em Ribeirão Preto e Poços de ­Caldas e de um evento menor, mas bom, no Circuito das Águas, em Minas. E, quando esta revista chegar ao leitor, já terei participado de uma nova que me enche de curiosidade e interesse, a Festa Literária do Sertão de Jequié (Felisquié), na Bahia, entre 29 de novembro e 1o de dezembro. Enfim, no meio do discurso de que a era do computador e da internet vai acabar com o livro impresso, parece que tem muita gente teimosa no Brasil, não é? Ainda bem.


CARTEIRA DE TRABALHO E FGTS: UM BENEFÍCIO QUE VAI MUITO ALÉM DO QUE VOCÊ IMAGINA. Nesse último ano aumentou o número de carteiras assinadas no país. É a certeza de que milhões de brasileiros podem contar com o FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – e seus benefícios. Entre eles, linhas de crédito especiais e o programa Minha Casa Minha Vida. Além disso, os recursos do FGTS são investidos em obras de infraestrutura, saneamento básico e desenvolvimento urbano. Um impulso e tanto para a economia e para a qualidade de vida de cada trabalhador.

FGTS. Bom para os brasileiros. Melhor ainda para o Brasil.

www.fgts.gov.br

www.mte.gov.br


Uma parceria pela geração de trabalho e renda no país.

A Fundação Banco do Brasil e o BNDES se uniram para promover o desenvolvimento sustentável de comunidades rurais e urbanas que vivem em situação de vulnerabilidade econômica, por meio de programas e tecnologias sociais voltados à geração de trabalho e renda. Em três anos, foram investidos R$ 130 milhões, envolvendo mais de 120 mil famílias no processo de transformação social. www.fbb.org.br/bndes-fbb


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