UGO GIORGETTI Ele redescobriu uma cidade perdida
ENERGIA Enfim, um debate de projetos
BRASIL-ÁFRICA Cultura e história contra o racismo
nº 79 janeiro/2013 www.redebrasilatual.com.br
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A batalha do governo argentino contra o monopólio da informação incomoda os cartéis da mídia, daqui e de lá
Cristina Kirchner, presidenta da Argentina
I SSN 1981-4283
BRIGA BOA
R$ 5,00
Em casa, no carro, no ônibus: sintonize a rádio que fala a sua língua. ,3 93 ,9
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L RA STA O T LI ULI PA E ND AULO A GR O P SÃ E EST A O R T NO ULIS PA
De segunda a sexta, das 7h às 9h
ÍNDICE
EDITORIAL
10. Imagens de 2012 Seleção de fotografias lembra cenas da Rede Brasil Atual
16. Economia
Governo tenta baixar o custo da energia para empresas e famílias
20. Capa
A batalha do governo argentino contra o monopólio da informação
26. América Latina
VICTOR SOARES/ABR
O comércio da maconha e direitos civis entram na pauta do Uruguai
30. Memória
Devolução de mandatos é mais um ato de condenação de 1964 Posse de Lula na Presidência, em 1º de janeiro de 2003: até hoje alguns tentam cassá-lo
32. Educação
Ensino da história e da cultura africana é lição contra o racismo
Dez ‘incômodos’ anos
36. Entrevista
N
O cinema de Ugo Giorgetti redescobre a cidade perdida
40. Trabalho
Músicos, uma categoria apaixonada pelo trabalho
JOAO MARCOS ROSA/NITRO
Cânion Fortaleza, no Parque Nacional da Serra Geral
44. Viagem
Cânions e paisagens do extremo sul exercitam os sentidos
Seções Cartas 4 Mauro Santayana Destaques do mês
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Lalo Leal
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Crônica: Mouzar Benedito
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o momento em que esta edição era concluída, circulavam notas discretas a respeito de que a suposta “delação premiada” do empresário Marcos Valério, em depoimento dado em setembro a duas procuradoras da República, seria na verdade uma “delação remunerada”. Segundo uma das versões, por um grupo de interessados em jogar lenha na fogueira na qual setores da imprensa tentam incinerar o ex-presidente Lula. Nenhum veículo deu destaque a essa hipótese. Nem os independentes. Afinal, dar manchete a versões não comprovadas como fatos não é digno de jornalismo sério. Entretanto, foi o que algumas revistas e jornais fizeram, desde setembro, com o suposto depoimento de Valério ao Ministério Público. A liderança de Lula sempre os incomodou. Assim como sua sólida ligação com a presidenta Dilma Rousseff e os êxitos por eles alcançados em dez anos de governo, completados neste 1º de janeiro, apesar do noticiário hostil. Nunca antes na história deste país uma liderança política e um governo apanharam tanto por tanto tempo. Mas os resultados destes dez anos rompem o cerco dos jornais e TVs e chegam à autoestima dos brasileiros. Em dezembro, com Lula ou com Dilma, o PT era favorito a vencer a próxima eleição presidencial ainda no primeiro turno, apontavam pesquisas. Se a política com foco social matou a fome de alguns milhões de famílias numa ponta, na outra deu combustível à economia, beneficiando também os setores já integrantes da chamada classe média trabalhadora. Entre 2006 e 2011, o PIB brasileiro cresceu a um ritmo médio anual de 5,1%, manteve-se o mercado de trabalho aquecido e o desemprego em queda. Mas um estudo da empresa de consultoria Boston Consulting Group, com dados de 150 países, constatou que o avanço social brasileiro equivale ao de um país que tivesse registrado expansão anual de 13% na economia. A ponto de Lula e Dilma serem chamados por líderes europeus, curiosos em conhecer com profundidade a experiência brasileira. O Brasil não escapou ileso da crise, mas mostrou capacidade de recuperação. A mídia, enquanto isso, se organiza para encontrar meios de derrotar a dupla em 2014. Em vez disso, deveria refletir sobre um dado da pesquisa Datafolha, a mesma que apontou o ex-presidente e a atual presidenta como favoritos: o percentual de pessoas que não confiam “de jeito nenhum” nos jornais chegou a 28% (eram 18% quatro meses antes). E já superou os 22% dos que “confiam muito”. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Foto de Antonio Cruz/ABR Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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JANEIRO 2013 REVISTA DO BRASIL
Genoino A casa do “multimilionário” José Genoino (“A solidariedade lhe é familiar”, edição 78), no bairro do Butantã, em São Paulo, é de fazer inveja ao castelo daquele deputado mineiro (risos)... Os inventores do espetáculo circense do “mensalão” deveriam ser julgados em Nuremberg. A Suprema Corte brasileira virou assunto de chacota internacional, e foi para o lixo da nossa história. João Grillo Curitiba (PR) Autoestima em alta Com mais de 40 anos, nunca vi o país tão bem no cenário internacional, conquistando espaços importantes e não sendo mais visto como um lacaio da potência americana – cujo ápice da humilhação se deu com FHC. Lula foi para fora e se revelou o melhor chefe de Estado brasileiro. Fez acordos comerciais importantíssimos, reequilibrando a balança comercial, criando superávits consecutivos, e com isso aumentou a demanda agregada e a inclusão social. O pessimista dirá que “não fez mais que a obrigação”, com o que prontamente concordarei. E o problema é este, seus antecessores nem sequer fizeram a obrigação (“A classe C descobriu o Brasil, e vice-versa”, edição 77). Paulo Figueiredo de Lima Campo Grande (MS)
Mídia concentrada É justamente o que ocorre no Brasil (“Lalo Leal – Imprensa em crise”, edição 77). A Globo com vários jornais, revistas, TVs abertas e pagas, rádios etc. O que manipulam com o poderio econômico é uma barbaridade, pois seus tentáculos alcançam outros órgãos, como o Judiciário. Lei de meios já. Como diz a Constituição. Queremos as rádios comunitárias com no mínimo 10 quilômetros de alcance. Pedro Paulo Salazar Sanches São Paulo (SP) Breno Nossa mensagem de amor e solidariedade a um ser humano que sofre na prisão e aos familiares, que sofrem junto (“Fora de campo”, edição 77). Não me sai da lembrança o jogo São Paulo 2 x 1 Santos (em 16/9/2007), em que Breno saiu driblando e fez um golaço. Roberto Sims São Paulo (SP) Palmasola A reportagem está de parabéns, principalmente pela coragem de entrar num lugar como esse. Uma ligeira crítica: apesar dos nomes fictícios, não é difícil identificar alguns presos (o “mais antigo brasileiro em Palmasola”, por exemplo). Nada que apague o brilho da reportagem. Vanda Araújo (via Agência Pública) Belém (PA) Zona de litígio A situação na “terra de ninguém” (edição 76, sobre zona de litígio entre Ceará e Piauí), como em todo o sertão nordestino, é absurda e intolerável. O mais incrível é que o governo federal vai torrar R$ 90 bilhões num inútil trem-bala Campinas-São Paulo-Rio de Janeiro. Para quem? Para executivos e turistas. Luiz Magalhães São Paulo (SP)
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
MAURO SANTAYANA
O desmonte da Federação
Privilégio aos estados mal considerados produtores de petróleo terão efeito eleitoral. E, como o dinheiro dos royalties será usado na educação, os estados mais carentes serão discriminados
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debate em torno dos royal ties do petróleo pode servir à rediscussão do problema federativo. O Senado e os meios acadêmicos estão estudando o tema. Os Estados federados são antigos na História, e alguns deles serviram de modelo às Federações modernas. Hoje, os exemplos mais notáveis são Alemanha e Estados Unidos. E há simulacros de Federação, com ensaios descentralizadores, na Espanha, em Portugal e na Itália, mediante as “autonomias regionais”, embora continuem constitucionalmente unitários. O predomínio de Madri está fomentando, na Espanha, o separatismo. Ou a Espanha aceita e discute a transformação em uma confederação, em que os bascos, os galegos, os catalães tenham independência tributária e legislativa, ou estes se tornarão plenamente independentes. O mesmo ocorre na Itália, com o separatismo no norte. No sul do Brasil, movimentos racistas falam em criação de um “estado europeu” independente. Argumentaram os estados brasileiros litorâneos – frente aos quais se encontram os depósitos petrolíferos abaixo da crosta de sal – que deles deve ser a parte do leão dos royalties compensatórios. Explicaram que a exploração em suas costas marítimas reclama investimentos de infraestrutura e custeio, no suporte à atividade, como rodovias, saneamento das cidades atingidas, segurança pública, educação e saúde. É bem verdade que as atividades de exploração lhes trazem também maior tributação e aumento na participação dos
recursos arrecadados diretamente pela União e repassados pelos fundos correspondentes. Parece justo e razoável que, na repartição dos royalties, eles tenham uma parcela um pouco mais elevada do que a dos estados não produtores, como compensação por tais gastos, mas bem mais modesta do que a pretendida. A soberania sobre as águas de nosso interesse – que são de 200 milhas náuticas – se projeta entre o paralelo da Boca do Oiapoque, ao norte, e o Arroio Chuí, ao sul. Esse mar é de todos os brasileiros, e não só dos brasileiros desses estados. E deve ser dos brasileiros em geral a parcela de indenização pelo petróleo extraído de seu fundo. Nem todos os estados litorâneos estão nessa campanha pelos royalties diferenciados. Só Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, em cujo litoral foram encontradas jazidas do chamado “pré-sal”, insistiram em que a presidenta vetasse o texto aprovado no Parlamento, o que ela fez de modo parcial. E nem todos eles com a veemência do Rio de Janeiro, em que o governador Sérgio Cabral fez do problema um caso bélico, convocando – mediante o esperto recurso do ponto facultativo do funcionalismo – as massas para protestar contra a divisão decidida. No dia seguinte, os governadores das 24 unidades federativas restantes, incluído o do Distrito Federal, publicaram nos jornais apelo à chefe de governo para que mantivesse o texto legislativo aprovado. Enfim, só os estados diretamente interessados em ter mais do que os outros permanecem na posição discriminatória. Em termos políticos, a contrapressão deveria ser mais poderosa do que o esforço de Sérgio Cabral e dos governadores dos dois estados que com ele confinam. Os efeitos desse privilégio dos estados mal considerados produtores provavelmente serão sentidos eleitoralmente. E há mais: como o dinheiro dos royalties será usado na educação, os estados mais carentes serão discriminados nessa distribuição. Rediscutir o pacto federativo é rediscutir a distribuição de recursos tributários. Desde 1964, os direitos fiscais dos estados vêm sendo corroídos pela solerte apropriação por parte do poder central. E esse saqueio legal, mediante as medidas provisórias, tornou-se ainda mais cruel durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Só uma ação coordenada e forte dos estados poderá levar o Congresso a reformar a Constituição, a fim de restaurar – em toda a sua amplitude – o pacto federativo republicano de 1891. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Segregação de alunos
Escolas públicas: denúncias de seleção irregular
DANILO RAMOS/RBA
Secretários escolares das redes municipal e estadual de São Paulo denunciaram possíveis restrições a matrículas de alunos considerados problemáticos, em pesquisa sobre “processos velados” de seleção, feita pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Entre os “critérios” para evitar a matrícula estariam transferência, excesso de faltas, idade, regiões pobres e até sobrenome semelhante ao de outro estudante de mau comportamento. A pesquisa se baseou em depoimentos de oito secretários. A Secretaria da Educação estadual afirma que não reconhece nem incentiva práticas de seleção de alunos na matrícula ou em pedidos de transferência. bit.ly/rba_escola1
Poucos com muito
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o salário médio cresceu 1,2% em 2011, ante 2,1% em 2010. Em 2007, antes da crise, a expansão foi de 3%. No Brasil, o aumento foi de 2,7%, mais de duas vezes a média mundial. A OIT afirma que os trabalhadores se beneficiam menos dos “frutos do trabalho”, enquanto os proprietários dos capitais se beneficiam
Guy Ryder e o relatório mundial de salários
mais. “Em nível social e político, a interpretação mais clara é que os trabalhadores e suas famílias não estão recebendo o que merecem”, diz o diretor-geral da entidade, Guy Ryder. Os dados da OIT confirmam tendência de recuperação dos salários no Brasil, conforme vários indicadores. bit.ly/rba_oit1
DENIS BALIBOUSE/REUTERS
Capital x trabalho
Seis cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba, Belo Horizonte e Manaus) concentravam, em 2010, 25% da renda brasileira, enquanto as 1.325 de menor participação relativa ficavam com 1%, aponta o IBGE. Dos 5.565 municípios brasileiros, 1.980 (35,6%) tinham mais de um terço de sua economia “dependente da administração, saúde e educação públicas e seguridade social”. bit.ly/rba_pib
WILSON DIAS/ABR
Menos juro, mais crédito
Sede do Banco Central
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Com a redução brusca na taxa básica de juros este ano, parte dos bancos anunciou, em seus relatórios trimestrais, queda nos lucros e demissões. O Dieese afirma que a baixa de juros não significa que o lucro vai cair. “Vai depender muito da estratégia que os bancos vão adotar. Mas é fato que, devido às ações do governo e dos bancos públicos, as instituições privadas começaram a perder algumas fontes de receita fáceis”, diz o economista Gustavo Cavarzan, da subseção do Dieese no Sindicato dos Bancários de São Paulo. Em outubro, o Banco Central reduziu a Selic ao menor nível da história: 7,25% ao ano. A taxa básica chegou a 45% no período Fernando Henrique Cardoso, enquanto na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva oscilou de 8,75% a 26,5%. “No Brasil, a relação entre oferta de crédito e PIB ainda é baixa se comparada à de outros países”, avalia Catia Uehara, também do Dieese. bit.ly/rba_spread1
WILSON DIAS/ABR
Empresários querem corte de direitos
Modernização à antiga A Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou cartilha com 101 propostas para o que a entidade chama de “modernização trabalhista”. No documento, aponta algumas garantias como “irracionalidades”. O texto foi lançado durante encontro que teve a presença de Dilma Rousseff. Com elegância, a presidenta recebeu o documento. Mas em seu discurso assinalou que a redução dos custos da produção é uma das prioridades do governo, mas – “diferentemente do contexto internacional” – sem redução de direitos dos trabalhadores. bit.ly/rba_cni
Referência de gestão
RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA
Em dezembro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidenta Dilma Rousseff percorreram a Europa e falaram da experiência brasileira no combate à pobreza e das medidas de estímulo à economia. Deixaram claro que o país não escapou ileso da crise, mas adotou políticas que permitiram resistir. “Acreditamos que as posições progressistas no mundo estão definidas numa busca de um caminho que não seja ortodoxo”, disse Dilma na França. “Nos oito anos do meu governo, e nos dois da querida presidenta Dilma, demostramos que o acesso do pobre aos direitos de cidadania, e ao consumo, é capaz de estimular toda a economia”, afirmou Lula na Espanha. “O Brasil não distribuiu renda porque cresceu, mas cresceu porque distribuiu renda.” O Partido Socialista francês quer Lula à frente da Internacional Socialista. Lula pensaria no caso, se África e América Latina tivessem maior peso no fórum – europeu demais. bit.ly/rba_lula_dilma
Lula discursa no encerramento do Fórum pelo Progresso Social, em Paris
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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TVT
Programação especial
A
partir da segunda-feira 7 de janeiro a TVT começa a exibir uma programação especialmente preparada para o início do ano. O noticioso diário Seu Jornal, por exemplo, terá 11 edições temáticas. Sempre a partir das 19h, o apresentador conversará com convidados especializados em diversas áreas, enquanto o programa exibe reportagens exclusivas sobre cada uma delas. Nino Brown, da Casa do Hip Hop, e Joanan Prates, do Conselho Municipal de Cultura de Diadema, falam sobre a relação entre as demandas das comunidades e as políticas públicas de cultura. O economista Nelson Karam, do Dieese, avalia o ano que passou e os desafios do próximo período. O presidente da CUT-SP, Adi dos Santos Lima, comenta o desempenho da agenda dos trabalhadores e pendências que devem pautar o movimento sindical em 2013. O diretor de Comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Valter Sanches, avalia como os movimentos sociais e os sindicatos parceiros em projetos como a TVT, a Rede Brasil Atual e o ABCD Maior conquistaram espaço, audiência e credibilidade e quais as perspectivas dos novos embates pela democratização do acesso à informação. O Seu Jornal terá ainda especiais sobre políticas sociais, com o coordenador de Formação Cidadã Oswaldo de Oliveira, e uma releitura dos mais recentes acontecimentos da política brasileira na visão do cientista político Paulo Vannuchi. Ainda na 8
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Emissora apresenta a partir do dia 7 edições temáticas do telejornal diário das 19h programação temática do telejornal das 19h, destaques para as áreas de saúde, meio ambiente, moradia e educação. Paulo Roberto Spina (Fórum Popular de Saúde), Aron Belinky (Instituto Vitae Civilis), Benedito Barbosa (Central de Movimentos Populares) e Sônia Maria Portella Kruppa (secretária de Educação de Suzano) estão entre os convidados.
Especiais das 19h30
Também na segunda-feira, 7 de janeiro, o programa Memória e Contexto, que aborda a relação de fatos históricos das lutas sociais com o presente e o futuro, sempre com diálogos pertinentes e muita música, terá 90 minutos de duração e convidados como o poeta Sérgio Vaz, do Sarau da Cooperifa, e o professor da PUC-SP Carlos Gaspar, com
Como sintonizar Canal 48 UHF (18h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br
o DJ Spaiq, o vocalista Pump Killa e o rapper Thaíde na condução musical. Na terça-feira 8, o Clique e Ligue aborda o alcance das novas tecnologias, as redes sociais e seu potencial de estimular novas atitudes no cotidiano da informação e do comportamento. Na quarta 9, o Bom Para Todos mergulhará na discussão sobre a importância do tempo livre na vida das pessoas, tendo como fio condutor um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre as expectativas das pessoas em relação a jornada, condições de trabalho e qualidade de vida. Quinta-feira 10, o programa Melhor e Mais Justo discorre sobre os avanços alcançados pelo Brasil nas últimas décadas graças à consolidação da democracia – do desenvolvimento econômico à redução das desigualdades, das preocupações ambientais à promoção de políticas afirmativas, da expansão do diálogo social ao combate à corrupção. Como a sociedade deve se organizar para que o país aprimore essas conquistas, sem riscos de retrocessos? O cientista político Aldo Fornazieri, o filósofo Vladimir Safatle e o presidente da federação estadual dos metalúrgicos Valmir Marques, o Biro Biro, conduzem o debate. E, para a sexta-feira 11, o ABCD em Revista selecionou três programas marcantes – “Um dia sem-teto”, “Especulação imobiliária” e “Barão de Mauá, contaminação e omissão” – para serem revistos e analisados, no estúdio, por ativistas e especialistas das áreas de moradia e urbanismo.
JUSTIÇA
Mudança de comportamento Enquanto a Convenção 158 da OIT empaca no Congresso, representantes da Justiça do Trabalho analisam o desempenho de empresas e questionam demissões arbitrárias
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das”. Segundo ele, a negociação é essencial para que a demissão coletiva tenha menor impacto social. Também ficou próximo de 400 o número de trabalhadores atingidos pela decisão da Mangels de fechar a fábrica de São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista, transferindo as atividades de estamparia para a cidade de Três Corações, em Minas Gerais. Nesse caso, o problema não foi a crise. A empresa informou que pretendia simplesmente reduzir custos e aumentar a rentabilidade, além de vender ativos. O presidente da companhia, Robert Max Mangels, disse que as medidas “contribuirão para a melhoria da rentabilidade no médio prazo”. A Mangels contratou um escritório de advocacia para garantir “desligamentos tranquilos, minimizando impactos”. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC considerou falta de responsabilidade o anúncio das demissões sem an-
AGNALDO AZEVEDO/CONTRAF-CUT
o ano em que completou três décadas de existência, a Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho, pensada com a finalidade de coibir demissões injustificadas, foi bastante falada no Brasil. Algumas decisões da Justiça do Trabalho parecem se inspirar nas recomendações da OIT. Uma, emblemática, saiu em dezembro, quando o Tribunal Superior do Trabalho (TST) julgou abusivas e declarou ineficazes as rescisões contratuais de aproximadamente 400 trabalhadores da Novelis, produtora de alumínio que há dois anos encerrou atividades na fábrica de Aratu, na Bahia. Segundo o tribunal, a dispensa coletiva deve ser objeto de negociação com o sindicato da categoria. O julgamento confirmou decisão regional, do TRT da Bahia, da qual a empresa tinha recorrido – alegou razões estratégicas e necessidade de redução de custos diante da crise internacional. Em seu voto, o presidente do TST, João Oreste Dalazen, falou em norma da União Europeia sobre critérios para reduzir as consequências das demissões. “A empresa (Novelis) não atravessa nenhuma crise, tanto que investiu em outras indústrias espalhadas pelo Brasil”, comentou. Para o advogado Mauro Menezes, do escritório contratado pelos metalúrgicos, a medida da empresa “foi pautada pela fria conveniência econômica, com total desprezo por alternativas de negociação e abusividade das medidas adota-
tes buscar alternativas com a entidade e mesmo com a prefeitura. Em São Paulo, o Tribunal Regional do Trabalho concedeu ao Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região liminar que suspende demissões sem justa causa feitas pelo Santander – mais de 400 na capital, apenas na primeira semana de dezembro, número bem acima da média mensal. A juíza responsável fez referência à Convenção 158. E seu despacho foi mencionado pelo secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, Manoel Messias, ao propor, em reunião com representantes do banco e dos bancários em Brasília, a suspensão das demissões efetuadas em dezembro (teriam chegado a 1.200 em todo o país) e abertura de diálogo. Apesar da reclamação usual sobre os custos que acarreta, a prática da demissão ainda é rotineira no Brasil. E, algumas vezes, com objetivos bem claros. No final do ano, a Contraf-CUT, que representa os trabalhadores no setor financeiro, divulgou pesquisa feita pelo Dieese que aponta 34.949 contratações e 32.073 demissões feitas apenas de janeiro a setembro. Apesar do saldo positivo de 2.876 postos de trabalho, o salário médio dos admitidos é 38,65% menor que o dos demitidos. Depois de comprar a Webjet há um ano e meio, a Gol anunciou o fim da companhia e a dispensa de 850 funcionários. A Justiça do Trabalho do Rio concedeu liminar que anula os desligamentos – que, segundo declaração de um executivo em audiência no Congresso – foram uma medida “cruel, mas necessária”.
NATAL DOS AFLITOS Representantes dos bancários, do Santander e do Ministério do Trabalho e Emprego reúnem-se em Brasília REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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MELHORES 2012
MOINHO Em dezembro de 2011, um incêndio atingiu a favela do Moinho, no centro de São Paulo. Duas pessoas morreram e dezenas de famílias perderam a casa. Danilo Ramos visitou alguns moradores que, sem apoio oficial, construíram abrigos embaixo do Viaduto Orlando Murgel. A área, para a qual a gestão do prefeito Gilberto Kassab tinha outros planos, voltou a pegar fogo em setembro
Um ano em imagens Personagens que fazem diferença e têm uma lição para ensinar. A cidadania contra a injustiça. A ousadia frente às discriminações. A coragem de um sorriso. As cores de um cotidiano invisível. A história de pessoas que são a pauta e a razão de ser da Rede Brasil Atual 10
JANEIRO 2013 REVISTA DO BRASIL
CENA DE GUERRA A paisagem, retratada por Danilo Ramos, lembra Sarajevo, cidade destruída pela Guerra da Bósnia nos anos 1990. Os escombros, porém, são do Jardim São Francisco, zona leste de São Paulo, onde tratores derrubaram casas das famílias despejadas. A promessa é de construção de conjuntos habitacionais
MELHORES 2012
FALTA TRANSPORTE Fotografado por Paulo Pepe, João, 6 anos, depende de uma cadeira de rodas. Como não conseguiu transporte adequado nem uma escola perto de casa, na zona leste de São Paulo, o jeito foi usar dois ônibus e percorrer longo trecho para estudar. “Outras mães têm o mesmo problema”, diz a mãe, Maria
TRANSGRESSOR Ele questiona até a si mesmo. Aos 60 anos, o cartunista paulistano Laerte passou a se depilar, se maquiar e se vestir como mulher, como na foto de Maurício Morais. Foi o início da nova vida de um “homem com identidade de gênero feminina”
LIVRE DE VENENO Enquanto o arroz tradicional utiliza muito inseticida, adubo, fertilizante e ureia, que envenenam a terra e a água, agricultores de Nova Santa Rita (RS) produzem, de maneira orgânica, lavouras inteiras, a perder de vista, como a clicada por Andréa Graiz REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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MELHORES 2012
REFÚGIO Nalanda, retratada por Andréa Graiz, é uma espécia de “prefeita” da galeria do Presídio Central de Porto Alegre, onde são agrupados os travestis protegidos da violência pela direção da unidade. E também por Nossa Senhora Aparecida, Iemanjá e São Jorge
AÇÃO CRIMINOSA Há um ano, a Justiça paulista colocou tratores sobre as casas de 1.700 famílias da comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos. Um mês depois da operação de reintegração de posse, Danilo Ramos voltou ao local e retratou os destroços dos sonhos dos antigos moradores
LADISLAU DOWBOR Retratado por Danilo Ramos, o pesquisador do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP recebe a reportagem no quintal de sua casa e fala dos prós e contras da Rio+20
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MELHORES 2012
PRIMAVERA EM QUEBEC Em protesto contra o governo de Quebec, no Canadá, que queria aumentar em 75% o valor das matrículas nas universidades, os estudantes foram às ruas, ocuparam bancos e o Ministério da Educação. Na foto de Felipe Pio, o quadrado vermelho tatuado nas costas da canadense é o símbolo da resistência
XENOFOBIA À PAULISTA Retratados por Gerardo Lazzari, Laura, 11 anos, e Álvaro, 7, não querem mais ir à escola. Passaram a ser xingados e até agredidos fisicamente. “Falam que não gostam de bolivianos”, queixa-se Laura. A cidade que hoje persegue esses imigrantes é a mesma que no passado discriminou os nordestinos REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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MELHORES 2012
TERRAS ALTAS As comunidades indígenas de Cusco, no Peru, exibem a Paulo Donizetti de Souza as cores e o orgulho de sua cultura
FUNDAMENTAL Entre os grandes desafios dos gestores que estão assumindo o mandato neste mês está a ampliação de vagas nas creches e pré-escolas – como a fotografada em Cariacica (ES) por Fabio Lanes. A educação infantil é essencial para o pleno desenvolvimento das crianças e o sucesso escolar
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JANEIRO 2013 REVISTA DO BRASIL
SÍMBOLO Na foto de Gerardo Lazzari, as ruínas da antiga fábrica de cimento em Perus, São Paulo, contam a história da Luta dos Queixadas, o mais longo movimento operário realizado no Brasil (1962-1969), e simbolizam o sonho de uma universidade pública no local
LALO LEAL
Cidades precisam de bons conselhos
Os espaços para discutir comunicação no Brasil são pequenos. Críticas, quando aparecem, são tachadas de censura, interditando o debate. Qualquer forma de romper esse cerco deve ser estimulada
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ma nova oportunidade de discussão da democratização do acesso e da produção de informação surge agora com a posse dos prefeitos eleitos em todo o país. Deles deve ser cobrada a criação de Conselhos Municipais de Comunicação, imprescindíveis para o debate e a implementação de políticas públicas nessa área. Não é tarefa simples. Basta ver as dificuldades encontradas para a criação de conselhos semelhantes nos níveis federal e estadual. O primeiro, embora previsto na Constituição de 1988, levou três anos para virar lei e só entrou em funcionamento em 2002. Para tanto foi necessária uma barganha: em troca, os representantes da mídia no Congresso exigiram a entrada do capital estrangeiro nas empresas de comunicação e que sua propriedade pudesse ser entregue a pessoas jurídicas. Nunca é demais ressaltar que se trata de um conselho apenas consultivo, sem nenhuma força legal de ação. Ainda assim os empresários o temem, tanto é que depois de instalado funcionou até o final de 2006, ficando inativo até meados do ano passado, quando o presidente do Senado, José Sarney, viu-se obrigado a reativá-lo, sob o risco de sofrer uma ação legal. Com participação restrita da sociedade, a composição do conselho é uma garantia de que pouco fará no sentido de levar adiante propostas voltadas à democratização da comunicação. Não é um bom exemplo para os municípios. No nível estadual há pequenos avanços. Algumas Constituições estaduais deter-
minam sua existência, mas até agora só um foi instalado, na Bahia. No Rio Grande do Sul, um amplo processo de debates, realizado em várias regiões do estado, fundamenta o projeto de lei prestes a ser enviado à Assembleia Legislativa. No entanto, há estados, como São Paulo, onde não se saiu do zero, apesar do esforço de alguns deputados. Chegou a hora das prefeituras. Também nas gestões municipais a comunicação não pode ser vista apenas como um processo de mão única, da administração para os contribuintes. Deve haver o retorno dos cidadãos. Aí que entra o papel do conselho, capaz de levar as demandas da sociedade aos governantes, como ocorre, por exemplo, na saúde e na educação. Seriam conselhos amplos, com a participação do poder público e da sociedade, com o propósito de debater e propor regras para a criação e o funcionamento dos órgãos de comunicação dos municípios – além de participar da discussão em torno da alocação de recursos para campanhas educativas e sociais, muitas vezes restritas às agências de publicidade contratadas pelas prefeituras. O critério mercadológico por elas usado poderia ser confrontado, no conselho, com critérios de alcance geográfico e social, quando da escolha dos veículos selecionados para divulgar mensagens das prefeituras. Os conselhos podem ser também importantes fóruns de debate em torno da distribuição de canais de rádio e TV nos municípios. Em Niterói, por exemplo, concessões outorgadas para a cidade são operadas no Rio de Janeiro, do outro lado da Baía de Guanabara. Assim como em São Paulo, onde emissoras autorizadas a operar em municípios da região metropolitana transmitem da Avenida Paulista. Distorções que reduzem a diversidade dos conteúdos veiculados, com desdobramentos negativos para o mercado de trabalho, especialmente de jornalistas, radialistas e publicitários. São problemas para serem debatidos na esfera municipal, ainda que algumas das soluções possam se dar apenas nos níveis estadual ou federal. Há três anos, a Conferência Nacional de Comunicação foi construída com ampla participação dos mais diversos movimentos sociais. Agora, com a posse dos novos prefeitos essa ação pode ser renovada e fortalecida, tendo como meta a implantação dos Conselhos Municipais de Comunicação. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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ECONOMIA
Saiu da planilha e s Entre o lucro das empresas que vendem energia e o peso da conta de luz para as famílias e empresas há um cabo de guerra. De um lado, o governo Dilma tenta dar novo impulso à economia; de outro, seus opositores fazem contas para 2014 Por Maurício Thuswohl
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rradicar a pobreza extrema e tornar mais moderna e competitiva a indústria brasileira. Desde que assumiu o cargo, a presidenta Dilma Rousseff situou essas duas metas entre as principais de seu governo e as tem buscado por meio do aprofundamento de políticas herdadas do governo anterior, com iniciativas como o programa Brasil Sem Miséria e o Plano Brasil Maior. No Palácio do Planalto, a missão de reduzir os elevados custos de produção de energia elétrica no país para baixar o valor da tarifa final cobrada dos consumidores residenciais e das empresas é considerada fundamental para ajudar no combate à pobreza e, principalmente, incentivar o aumento da competitividade das empresas nacionais. O consumo de energia tem peso importante na produção industrial. A diminuição da tarifa seria um dos primeiros movimentos efetivos e generalizados rumo a uma desoneração de fato – e não transitória, como a redução pontual
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de impostos ou de contribuições à Previdência – dos setores produtivos. Ao tentar dar esse passo, no entanto, Dilma enfrenta forte resistência política em setores que não admitem a redução dos lucros das empresas concessionárias que operam no sistema elétrico brasileiro. As transformações para o sistema nacional de geração e transmissão de energia elétrica pretendidas pelo governo foram reunidas na Medida Provisória 579, anunciada em setembro por Dilma e pelo ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. A proposta prevê uma redução média de 20,2% no preço final – 28% para os consumidores industriais e 16,2% nas contas de luz residenciais – a partir de 5 de fevereiro. A MP 579 prevê também a antecipação da renovação, por um período de 30 anos, das concessões para as empresas que atuam no sistema elétrico nacional e têm contratos que expiram até 2017. Para estimular as geradoras e/ou transmissoras a aderir às mudanças, o governo se
comprometeu a eliminar ou reduzir encargos que incidem sobre a produção de energia elétrica. Serão extintas a Reserva Global de Reversão (RGR) e a Conta de Consumo de Combustíveis Fósseis (CCC) e será reduzida a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Todos esses encargos são atualmente repassados pelas empresas às contas de luz.
Tarifa injusta
O peso do custo da energia no bolso do consumidor brasileiro é inquestionável (leia destaque na página 18). Na indústria, o cenário se repete. Levantamento feito pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) – entidade que, assim como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), apoia a MP 579 – constata que a tarifa de energia paga pelo setor no Brasil (R$ 329 por megawatt/hora) é 134% superior à média dos outros países do grupo conhecido como Bric: Rússia, Índia e China. O estudo da Firjan revela também que
ECONOMIA
SOBRE FOTO DE STEVEN PUETZER/GETTY IMAGES
subiu no palanque
FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/ABR
FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/ABR
WILSON DIAS/ABR
as despesas da indústria brasileira razão da forma como foi proposcom energia elétrica são maiores to: “O governo pegou de surpresa que as observadas em países como algumas empresas que não planeAlemanha, Japão, França e Estajaram essa antecipação. Isso pode dos Unidos, entre outros. trazer problemas à manutenção do Para Daniel Passos, economista nível de investimentos e fazer com do Departamento Intersindical que algumas tenham dificuldade de Estatística e Estudos Sociode participar dos próximos leilões econômicos (Dieese), a proposta de expansão do setor”. de redução tarifária trazida pela DO CONTRA Alckmin (SP), Richa (PR) e Anastasia (MG): Outro ponto negativo é que a taMP 579 cumprirá o papel de cor- governadores dos estados que produzem 25% da energia rifa para a realização da operação rigir uma injustiça com o consu- do país não apoiaram as medidas para reduzir custos e manutenção nas linhas de transmidor brasileiro: “A geração de missão que estão sendo renovadas energia elétrica no Brasil tem como fon- giões onde é mais difícil receber a energia é em alguns casos muito baixa, conforme te a energia hídrica, que tem um custo de acabe pagando uma tarifa mais elevada”. observa o economista. “No entender do Os indicadores de preços ao consumi- Dieese, é insuficiente para a prestação da geração e manutenção muito baixo. Ainda assim, o modelo brasileiro desde a me- dor mostram que as tarifas de energia elé- operação e da manutenção de forma adetade dos anos 1990 tem feito com que a trica mais elevadas ocorrem atualmente quada e com a qualidade que o sistema tarifa final desse serviço alcance um dos no Maranhão e no Piauí, exatamente os requer. O caminho não precisa ser esse. estados mais pobres do país. Ao mesmo A redução das tarifas é importante, mas maiores patamares do mundo”. Segundo o Dieese, a conta de luz pa- tempo, as mais baixas são praticadas em as coisas têm de ser conjugadas para que ga no Brasil não só tem um padrão mé- Brasília e na capital de São Paulo. “Além os efeitos indesejados não sejam maiores dio de preço elevado como também é ex- de ser cara, a tarifa de energia elétrica no que o benefício pretendido.” tremamente desigual: “A tarifa final paga Brasil tem um viés regressivo, pois é mais pelo consumidor, residencial ou indus- cara exatamente para quem deveria pagar PSDB rejeita mudanças Para alcançar a redução desejada nas trial, leva em conta o custo específico de menos, tendo em vista que são embutidos cada concessionária de energia. Não há os custos da transmissão dessa energia contas de luz, o governo contava com a adesão de todas as principais empresas do uma tarifa-padrão para o país, ou seja, em cada área de concessão”, diz Passos. O economista do Dieese aponta, porém, setor, mas não foi isso o que aconteceu. não existe um mecanismo de equalização. Isso faz com que a população das re- efeitos indesejados no pacote elétrico em Três grandes empresas estaduais – ComREVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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Renda menor, peso maior Na maior cidade do país, a energia elétrica corresponde a 2,62% do orçamento das famílias, segundo cálculo do Dieese. Mas “o peso varia conforme o poder aquisitivo”, observa a economista Cornélia Nogueira Porto, coordenadora do Índice do Custo de Vida (ICV), calculado mensalmente em São Paulo. O instituto divide as famílias em três estratos. “Uma queda de 20% na tarifa não afeta muito o estrato 3, mas afeta bastante o 1.” No estrato 1, que concentra as de menor poder aquisitivo, esse peso é hoje de 4,16%, recuando para 3,25% no segundo e para 1,97% no terceiro. No caso de uma redução de 20%, o peso da energia cairia 0,83 ponto no orçamento dos mais pobres e 0,39 ponto no estrato 3. Estudo da Firjan mostra que as O comportamento da inflação e dos preços de energia nos últimos anos também mostra que a conta aumentou mais despesas da indústria para quem ganhou menos. De 2000 a 2012, por exemplo, o brasileira com energia elétrica ICV variou 130%, enquanto o custo da eletricidade subiu 97%. Para quem ganha menos (estrato 1), essa relação foi bem diestão mais caras que em ferente: 132% no índice geral e 109% na energia. países como Alemanha, Japão, Segundo o IBGE, a participação da energia elétrica resiFrança e Estados Unidos. dencial na composição do IPCA foi de 3,29% em novembro, chegando a 4% em Goiânia e a 3% na região metropolitana de Também a tarifa média brasileira supera São Paulo, 3,81% no Rio de Janeiro, 3,46% em Belo Horizonte em mais de 50% a de um conjunto de 27 e 2,68% no Distrito Federal. Tem se mantido nesse nível. Cinco países (R$ 215 o MWh). Na comparação anos atrás, por exemplo, o peso era de 3,46%. com China, Índia e Rússia, A energia é um insumo importante também para a indústria. Lea diferença vai a 134% vantamento feito pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) revela que a tarifa de energia paga pelo setor no Brasil é de R$ 329 por MWh em média, mas há variação de até 63% entre os estados. “Mais importante, porém, do que observar as disparidades regionais, é avaliar a competitividade da tarifa de energia frente à dos demais países do mundo, em especial a dos principais concorrentes brasileiros”, diz a entidade.
panhia Energética de São Paulo (Cesp), Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) e Companhia Paranaense de Energia (Copel) – não aceitaram a antecipação da renovação dos contratos de concessão de suas maiores usinas hidrelétricas. As três são subordinadas a governos comandados pelo PSDB, principal partido de oposição ao governo federal, e juntas respondem por cerca de 25% da energia elétrica gerada no país. Sem elas, o índice médio de redução nas contas de luz pretendido pelo governo federal não será alcançado em fevereiro, a não ser que sejam adotadas medidas adicionais para desonerar os custos do sistema. Com a recusa em renovar o contrato de seis importantes usinas, Cesp e Cemig são as ausências mais sentidas pelo governo. As usinas Jaguara (424 MW), São Simão (1.710 MW) e Miranda (408 MW), operadas pela empresa mineira, têm uma 18
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importante capacidade somada de geração de energia, assim como as três da empresa paulista que não aderiram ao pacote: Ilha Solteira (3.444 MW), Três Irmãos (807,5 MW) e Jupiá (1.551 MW). Segundo o secretário de Energia de São Paulo e presidente da Cesp, José Aníbal, a empresa não aceitou a antecipação da renovação da concessão de suas usinas porque acredita ter direito a indenizações que somam R$ 7,2 bilhões, enquanto o governo acena com o pagamento de somente R$ 1,8 milhão: “Se a proposta do governo não mudar, a assembleia geral da Cesp já decidiu que não participará do processo. Não podemos aceitar essa defasagem que caberia ao Tesouro de São Paulo assumir”. Já a Cemig decidiu em assembleia de acionistas não antecipar a renovação dos contratos das três usinas, mas concordou integralmente com as novas regras propostas pelo governo para o sistema de
transmissão, assim como para suas outras 18 usinas de geração de energia elétrica. Quatro usinas da Copel, com capacidade menos expressiva, também não renovaram a concessão. Todas as outras grandes empresas do setor elétrico nacional, com destaque para a Eletrobrás, responsável por 35,5% da geração de energia do país, aderiram às mudanças propostas pelo governo.
MP aguarda votação
No Congresso, a comissão mista que analisa a MP 579, com relatoria do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), deveria pôr em votação o pacote elétrico do governo ainda em dezembro. Mais de 400 emendas à MP foram apresentadas por deputados e senadores, propondo desde maior prazo para as empresas aderirem às novas regras – sugestão já acatada pelo relator – até mudanças nos mecanismos de subsídio à redução das tarifas.
EUZIVALDO QUEIROZ/ACRÍTICA
ECONOMIA
INTERESSES OPOSTOS Comunidade recebe energia pelo programa Luz para Todos: governo trabalha pelo acesso ao serviço, e o setor privado, pelas tarifas
Sob a liderança do Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo (Sinergia), filiado à CUT, o movimento sindical apresentou um conjunto de emendas à MP 579. Segundo Daniel Passos, a mais importante trata da terceirização de serviços no setor elétrico: “Há uma forte tendência de prestação de serviços por empresas terceirizadas com um padrão de qualidade muito baixo, prejudicando os trabalhadores com a falta de condições de trabalho e a insegurança. Que a tarifa seja reduzida, mas com condições de trabalho adequadas”.
Modelo anos 1990
A “tempestade elétrica” entre governo e oposição revela duas visões antagônicas sobre a proeminência do mercado e o papel social das concessionárias públicas do setor. Ao colocar o interesse pelo lucro dos acionistas de suas empresas elétricas estaduais à frente da preocupação
de desonerar a cadeia produtiva nacional e aliviar o bolso do consumidor, os governos de São Paulo, Minas Gerais e Paraná seguem a cartilha que prega livre poder ao mercado. Para corroborar a decisão, têm ao seu lado a parte importante da imprensa, agências de rating e a opinião de “especialistas”, todos sempre prontos a denunciar a “perda de rentabilidade” das empresas do setor. Diversos estudos acadêmicos publicados nos últimos anos, entretanto, mostram que a margem de lucro das empresas, na média, ultrapassa 20% do patrimônio líquido. Raro no mercado mundial, esse índice faz com que as empresas que atuam no Brasil tenham desempenho financeiro superior às similares na Europa ou nos Estados Unidos. A grande maioria dos contratos de concessão cujas renovações o governo quer agora antecipar foi firmada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002), período em que foi cunhado o termo “risco Brasil”, para designar fatores nocivos ou ameaçadores aos lucros e interesses dos investidores. Como o aumento de R$ 20 bilhões para R$ 30 bilhões no valor das indenizações a serem pagas pelo governo às empresas do setor elétrico não foi suficiente para garantir a adesão de Cesp, Cemig e Copel à MP 579, o Tesouro Nacional provavelmente terá de elevar os aportes para desonerar o setor elétrico, inicialmente previstos em R$ 3,3 bilhões: “Nós não tivemos colaboradores nessa missão. Eles deixam no seu rastro uma falta de recursos. Essa falta de recursos vai ser bancada pelo governo federal, pelo Tesouro Nacional. Agora, a responsabilidade por não ter feito isso é de quem decidiu não fazer. Não há possibilidade de tergiversar”, disse a presidenta. Colaborou Vitor Nuzzi REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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A Argentina começa 2013 com maior diversidade no rádio e na TV, mas ainda precisa vencer um Judiciário avesso à Lei de Meios. No Brasil, a proposta de democratização da comunicação passou um ano sabático na gaveta de Paulo Bernardo
Quer briga? Por João Peres
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oi brigando contra os privilégios de produtores rurais que Cristina Fernández de Kirchner se meteu em uma briga contra os oligopólios da comunicação argentina. E foi brigando contra os oligopólios na comunicação que a presidenta comprou uma briga
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com o Poder Judiciário. É de peleja em peleja que se faz uma Argentina. Dez anos depois de iniciado, o novo momento do peronismo está longe, nesse sentido, de se parecer com os tempos de acordos de “mi general”, que no século passado se valia da habilidade política para bailar com vários ao mesmo tempo.
Está longe, também, de se parecer com os dez anos dos governos Lula-Dilma. Em março do ano encerrado, a Revista do Brasil convidou o país a debater a democratização da liberdade de expressão. Mas a proposta de regulamentação do sistema de rádio e TV permanece na gaveta do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, e nada indica que de lá sairá em 2013. Com o kirchnerismo, quem chama a Casa Rosada para dançar precisa ser bom no riscado, ou acaba nu no meio do salão. Estava tudo alinhado para o famoso 7D, o 7 de dezembro, em que o Executivo pretendia pôr em curso um dos artigos centrais da Lei de Meios Audiovisuais, sancionada em 2009 com o objetivo de diversificar e democratizar o rádio e a televisão. Mas, horas antes, a Sala 1 da Câmara Civil e Comercial manteve liminar que
ALEJANDRO PAGNI/AFP PHOTO
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há três anos amparava o Grupo Clarín até que houvesse “decisão definitiva” sobre a constitucionalidade do marco legal. Uma semana depois, o juiz Horacio Alfonso colocou-se a favor da posição do governo e neutralizou qualquer medida de caráter provisório. Pouco após, porém, aceitou o recurso do Clarín e restabeleceu a liminar. A Sala 1 não é um qualquer nessa história. Em 2011, havia determinado que a liminar teria validade até 2013, prorrogando por três anos a aplicação do artigo 161: veículos que mantêm concessões de rádio e TV acima dos limites tolerados de concentração de mercado devem apresentar plano de adequação. Os principais pontos são o limite de dez concessões de rádio e TV, 24 canais pagos e 35% de alcance da população total em qualquer dos mercados (entenda o caso Clarín à página 22).
“SENHORES JUÍZES, CHEGA DE FAVORECER OS MONOPÓLIOS” Como no Brasil, o Judiciário argentino é suscetível a “pressões”
A Corte Suprema definiu em maio de 2012 que uma liminar não poderia se arrastar para sempre, dado seu caráter provisório. Colocou-se 7 de dezembro como data-limite para a validade da medida cautelar que amparava o Clarín. O governo decidiu fazer da oportunidade um marco e estendeu o prazo aos outros 20 grupos em descompasso com a Lei de Meios. Há meses, a Sala 1 estava sem quórum. O governo federal alegava relação de interesse entre os juízes indicados e o grupo Clarín. Mas, faltando poucas horas para o 7D, a câmara foi recomposta e emitiu decisão contrária aos interesses da Casa Rosada. Um dos magistrados que assinam a
sentença teve viagem de 15 dias a Miami paga por uma empresa que tem como sócio majoritário o conglomerado de comunicação. Essa empresa tem no comando a filha de outro juiz envolvido no caso. “As pessoas querem uma Justiça que sirva ao povo”, queixou-se Cristina, 72 horas mais tarde, ao discursar para 400 mil pessoas na Praça de Maio e arredores, em virtude do Dia Internacional dos Direitos Humanos. A presidenta cobrou o aprofundamento da democracia e da independência dos poderes, e respeito à vontade popular. “Se não se respeitam as leis que emanam daí, de que democracia estamos falando? É necessário que a independência do Judiciário não seja apenas do poder político, mas também do poder econômico das corporações.” A decisão da Sala 1 não foi de todo ruim. Abriu um novo flanco de debate e mostrou que a “força excessiva” do governo, propalada por alguns grupos midiáticos, não existe, ou não é capaz de atropelar instituições. O professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) Edgardo Mocca recorda que o enfrentamento ao Clarín é definitivo para reverter a história de uma Casa Rosada submetida ao poder econômico. “Uma parte dos juízes postergou o quanto pôde o julgamento dos responsáveis pelo terrorismo de Estado. Falar do Judiciário argentino como lugar celestial, de competência, igualdade e imparcialidade, é forçado. É tentar mostrar um Poder Executivo avançando sobre o Poder Judiciário, quando se trata justamente de o Executivo defender a aplicação de uma lei votada. O Judiciário não tem funções legislativas, não pode debater as leis.” À meia-noite do 7D, 20 dos 21 grupos que excedem os limites da Lei de Meios haviam apresentado as propostas de adequação. Entre os principais grupos, predomina o pedido de que as sociedades atuais sejam fatiadas, muitas vezes entre familiares, prática que não é vedada. Só o que não se pode é manter estrutura, mão de obra e programação em comum. O Executivo não define o que deve ser feito das concessões de radiodifusão excedentes. Ninguém deve tirar do ar programação alguma. Não há confisco REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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Lei de Meios e Grupo Clarín: a luta pela democratização da comunicação na Argentina Segundo a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, o Grupo Clarín precisa se adequar a todos os pontos previstos na parte sobre cotas de mercado
de bens, não há transmissão cortada. Os canais do Clarín poderão sempre exibir os conteúdos que desejem, sob qualquer recorte ideológico. Só chegarão a menos gente, e onde chegarem também chegarão outras vozes. “A diversidade é importantíssima. Nosso país, igual que o Brasil, tem uma geografia muito extensa. E a Argentina tem realidades climáticas completamente diferentes”, afirma o vice-presidente do Conselho Federal de Comunicação, David Furland, representante da Associação Argentina de Trabalhadores das Comunicações. “O que ocorre hoje é que há muitos lugares do país em que as pessoas querem ouvir as vozes de sua terra natal, saber o que ocorre em sua cidade. Estamos muito acostumados com a ideia de que tudo o que ocorre em Buenos Aires é notícia. Quem sabe para as pessoas do interior não é tão importante que exista um problema com o metrô de Buenos Aires.” Quanto ao Clarín, o governo atua para que se encerre o imbróglio jurídico, e assim, mais uma perna da batalha. O passo seguinte será dar início à transferência da titularidade de concessões de rádio e TV. A Afsca e um órgão do Ministério do Planejamento farão um estudo de valor e de alcance populacional de todas as licenças. Caso não surja nova decisão judicial, a adaptação será feita a partir das conces22
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Há duas condições básicas para se adequar à lei
O Grupo Clarín supera 35% de alcance...
1. Admissibilidade n Funcionário público e/ou acionista de empresa pública não pode ter concessão de rádio e/ou TV n Participantes de concessionárias de serviços públicos ou subsidiárias de empresas estrangeiras também não podem ter concessões
n Em rádios AM e FM
2. Cotas de mercado n Não superar 35% de alcance em relação ao total da população ou do total de assinantes n Não exceder número de licenças em nível nacional e/ou em nível local n Não ter propriedade cruzada
...tem excesso de licenças em nível nacional...
sões de menor valor, até que se atinja os limites estabelecidos pela legislação. Essas licenças são obrigatoriamente colocadas em licitação e, no caso de emissoras sem fins de lucro, haverá concursos para escolher a melhor oferta de programação, sem necessidade de que se apresente uma proposta financeira “Há uma lei, com um juiz que disse que é constitucional. Presido o organismo de aplicação da lei e estamos trabalhando pela aplicação”, avisou o presidente da autoridade reguladora, Martín Sabbatella. Quando estiver concluído o caso Clarín, se poderá promover a divisão do espectro eletromagnético tal como previsto no marco legal. Espectro é o espaço por onde vagueiam as ondas entre os pontos de transmissão e de recepção de uma imagem ou som. Esse espaço é público e, nas democracias mais avançadas, sua ocupação por empresas de radioteledifusão é regulada pelo Estado. Daí a ideia de que esteja dividido em três partes: privados com fins de lucro, privados sem fins de lucro e públicos.
Não pegou, mas valeu
O povo argentino é chegado em datas. Celebra de maneira entusiástica o Dia da Primavera, com piqueniques para todos os lados. Não há 24 de março em que não se recorde em praça pública a ditadura responsável por 30 mil mortes. E há quem ainda
atinge 41,88% da população: 16.801.346 de um total de 40.117.000 n Na TV aberta, alcança 38,78% dos argentinos: 15.557.732 sobre um total de 40.117.000 n Controla 58,61% das assinaturas de TV fechada: 3.847.255 de 6.564.000
AM: 2 FM: 9 TV aberta: 5 TV fechada: 9
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...tem excesso de licenças em nível nacional de TV por assinatura... Província Licenças Buenos Aires 124 Córdoba 33 Santa Fé 32 La Pampa 9 Demais 39 Total 237
O grupo também exerce propriedade cruzada em nível nacional... Quem tem registros de sinal de TV a cabo não pode oferecer serviços de rádio, TV aberta e TV por assinatura
A Lei permite até três licenças em nível local, sendo no máximo uma de cada tipo (FM, AM, TV aberta, TV fechada) n Em 37 localidades argentinas o Clarín excede o limite da Lei de
Meios. Dezenove delas estão na província de Buenos Aires e na capital federal, seis em Córdoba e quatro em Santa Fé
QUESTÃO DE HONRA Argentinos adoram se expressar publicamente, mas a “questão Clarín” virou caso de soberania nacional
MARCOS BRINDICCI/REUTERS
...e excesso de licenças em nível local
O Clarín tem nove registros de TV a cabo n TodoNotícias n Volver n Magazine n Quiero Música en mi Idioma n Metro n El Trece Satelital n Tyc Max n Tyc Sports n Canal Rural
...e no local A Lei não permite ter um serviço local de TV aberta e um de TV por assinatura na mesma área n O Clarín terá de se
adequar na capital federal e Grande Buenos Aires, e nas cidades de Córdoba e Bahía Blanca
bata cartão no Dia de São Perón, no Brasil chamado humildemente de 17 de outubro. Em 12 de dezembro passado, 50 mil se reuniram no centro da capital para celebrar o Dia do Torcedor do Boca. No Dia do Amigo, 20 de julho, é difícil entrar em bares e restaurantes sem reserva. Mas o 7D não pegou: nas ruas via-se uma série de cartazes de adeus ao Clarín, mas cartazes, cá entre nós, no país vizinho não significam lá tanta coisa. Há afiches em todos os cantos, um velho esporte. “A gente com tantos problemas para resolver e vem gastar energia com essa história de Clarín?”, queixava-se um taxista, esse velho sintetizador de momentos, em uma tarde de pegajoso calor portenho. Havia conversas de café aqui e acolá, mas a mobilização que se esperava desde a Casa Rosada jamais se concretizou. Em outros momentos, em especial durante a tramitação no Congresso, a questão resultou em marchas grandes, superiores a 100 mil pessoas, mas, agora, não. “O governo, um pouco forçado pelas circunstâncias, fez algo que nunca faz, que é marcar datas para questões importantes”, avalia a analista política Maria Esperanza Casullo, professora das universidades de Rio Negro e Di Tella. “Também pesa ter dado maior significado à data do que tinha propriamente. Era bastante previsível que essa questão não se resolveria agora.” REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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Na zona sul portenha, o professor Damian Loreti, da Faculdade de Ciências Sociais da UBA, não permite que se finalize a pergunta sobre se o governo exagerou ao colocar peso sobre o 7D. “Sim”, apressa-se, irritado. Loreti nunca se deixou apresentar como criador do projeto que resultou na Lei de Meios. Autoriza ser chamado de um dos pais do “espírito” que conduziu à formulação do texto, surgido a partir de uma articulação de sindicatos, movimentos sociais, grupos de jovens e representantes da área de comunicação. Os 21 Pontos por uma Radiodifusão Democrática ficaram alguns anos na gaveta da Casa Rosada, até que, em 2008, governo e Clarín romperam as boas relações. O apoio midiático aos agroexportadores contrários à criação de novos impostos fez os Kirchner notar que havia apenas uma versão dos fatos circulando. Loretti é mais ácido em relação ao tratamento que o Executivo dá à legislação. “Faz três anos que discutimos um só artigo da lei. Há muito mais artigos, mas não se pôde dar visibilidade a isso. Por imperícia, por erro, porque não quiseram”, lamenta.
Elos de poder
Em 2003, Néstor Kirchner chegou ao poder depois de vencer as eleições com 22% dos votos. Era um pleito insólito, no qual concorreu com o ex-presidente Carlos Menem, um dos responsáveis por
conduzir o país à bomba que explodiu em 2001 e por abrir caminho, ao jogar pelos ares antigas carreiras, para o surgimento de um político feioso, de oratória sofrível, quase desconhecido do público geral, vindo da fria e distante província de Santa Cruz. “A única verdade é a realidade”, diz uma velha máxima peronista, que, interpretada historicamente, significa levar o pragmatismo às últimas consequências. Em uma Argentina enlouquecida, Néstor notou que uma das questões que mais irritavam a população eram os juízes da Corte Suprema, responsáveis pela proteção às principais figuras da década em que o país foi à bancarrota. Trocou-os. Pode ser que agora a sucessora, Cristina, banque a segunda fase de “purificação” do Judiciário. “O papel da Justiça na Argentina é ser o último elo do poder”, afirma o integrante da direção nacional da Central dos Trabalhadores da Argentina (CTA) Carlos G irotti, um simpático ex-guerrilheiro, cara e bigode de vovô. “Essa disputa p ela Lei de Meios está mostrando que o exemplo desses quase dez anos de kirchnerismo tem de ser freado. Não aceito a ideia de que se trate de uma ofensiva conjuntural da direita. É uma ofensiva que vem para ficar.” Reeleita em 2011 com 54% dos votos válidos, um dos resultados mais expres-
sivos da história, Cristina se viu frente a alguns problemas que já estavam cantados havia tempos. A única verdade é a realidade de que os preços dos itens básicos de consumo estão exorbitantes após anos de uma camuflada inflação, a economia se viu afetada pela crise internacional e a alta dos salários perdeu fôlego. Em outra frente, o governo impôs desde o começo de 2012 uma série de freios à
Rádios indígenas Entre 2012 e os primeiros meses de 2013, por exemplo, uma dezena de rádios indígenas estará funcionando em todo o território argentino. A legislação garante o direito a todas as comunidades dos povos originários, sem ressalvas. Justamente no 7D, em Buenos Aires, teve início o 2º Congresso de Comunicação Indígena da Argentina, que reuniu 150 pessoas em uma quadra dentro da Escola de Mecânica da Armada (Esma), principal centro de tortura da última ditadura, convertido em um espaço de atividades 24
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pró-cidadania em 2004, após outra batalha dos Kirchner. Do outro lado do país, entrou no ar a primeira emissora de TV controlada por indígenas, que emitirá seu sinal na zona de Bariloche, extremo sudoeste. Matías Melillán, mapuche alto, de cabelos longos, olhar duro, comemorou o mal-estar criado usando o exemplo do jornal La Nación, representante da classe alta portenha. Líder da coordenação de comunicadores indígenas, Melillán é também integrante do Conselho Federal de Comunicação Audiovisual, surgido
da Lei de Meios e responsável por auxiliar o órgão regulador. “Wall Kintun TV incomoda a família Mitre e a seus sócios. Algo bom estamos fazendo, ou não se irritariam tanto. Devemos defender o que temos, que é a possibilidade de definir o rumo das políticas de comunicação.” Uma série de outros aspectos da Lei de Meios já está em andamento. Loreti poderia enumerá-los durante horas: “A modificação das regras das campanhas eleitorais, que garantiu um pluralismo fora de série em
nossa história, as 150 rádios escolares permitiram que milhares de crianças tomassem o microfone frente a suas comunidades, 250 emissoras de baixa potência receberam licenças e estavam em situação de vulnerabilidade, 3 mil horas no banco de conteúdos audiovisuais, produção e difusão no interior, 3 mil inscritos nos concursos de produção audiovisual, serviços informativos próprios, aumento da produção local, 6 mil postos de trabalho em três anos, 692 concursos para outorga de licenças AM e FM”.
CAPA
CASA ROSADA
TÉLAM/CF
Roteiro repetido
PRAÇA DE MAIO No Dia Internacional dos Direitos Humanos, 400 mil pessoas
compra do dólar, uma tentativa de barrar a especulação e de diminuir a quantidade de moeda circulando. Os argentinos desconfiam da inflação, velha inimiga, e desconfiam dos governos, velhos confiscadores de poupanças. Com isso, há décadas preferem poupar utilizando a moeda norte-americana, que garante rendimento e viagens ao exterior. A insatisfação com a gestão de
Cristina se expressou algumas vezes ao longo do ano. Sintetizou-se em panelaços na capital e outras grandes cidades em novembro. “Foram algo muito interessante do ponto de vista da sociologia política”, diz Maria Esperanza Casullo. “Para mim expressa sobretudo que há um grupo social na Argentina que é profundamente antikirchnerista e não tem representação política.”
O ministro da Justiça, Júlio Alak, afirma que uma eventual decisão do Judiciário contrária à Lei de Meios seria um desrespeito ao que foi debatido pelo povo e pelo Congresso. O Clarín se sente chocado. No dia seguinte, seu diário estampa a visão de vários cabeças da oposição. Estes avisam que vão pedir que o ministro seja interpelado no Congresso. Os canais de televisão registram falas dos mesmos líderes da oposição, somados a juízes que sentiram a autonomia violada por Alak. Alguma semelhança? Escolhamos um dia aleatoriamente. Um jornal de São Paulo publica uma suposta declaração do publicitário Marcos Valério, em suposto depoimento ao Ministério Público Federal, em que acusa o ex-presidente Luiz Inácio L ula da Silva de se valer de verba de caixa 2 do esquema conhecido como mensalão para pagar contas pessoais. A oposição se diz indignada, um ministro do Supremo Tribunal Federal cobra investigação e os principais telejornais fazem eco à reportagem divulgada pela manhã. Álvaro Dias e Elisa Carrió, Geraldo Alckmin e Maurício Macri, Aécio Neves e Hermes Binner: derrotada em 2010 e em 2011, a oposição na Argentina e no Branão encontra discurso e líderes capazes de fazer frente a um governo com aprovação popular e força no Executivo e no Legislativo. “A oposição não consegue uma matriz de desenvolvimento programático, social que não dependa do livreto elaborado pelos meios de comunicação”, avalia Edgardo Mocca. “O discurso dos setores oligopólicos da comunicação é o discurso dos setores mais recalcitrantes, e tem dificuldade de apelar a uma ampla massa.” Com isso, para o kirchnerismo, 2013 começa com duas possibilidades: votar no Congresso o direito de Cristina de buscar mais um mandato ou iniciar o debate sobre a sucessão. “O presidente que governe depois desse conflito vai governar com um fator de pressão a menos. O Clarín é um fator de pressão impressionante. Antes da votação de qualquer lei, apareciam no Congresso assessores do Clarín escolhendo a pauta e oferecendo recompensas, e ameaças”, analisa Maria Esperanza. Que venha o futuro, então. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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AMÉRICA LATINA
SEM MEDO D VALE O AMOR Mulheres fazem manifestação no centro de Montevidéu. Legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo deve ser aprovada no início deste ano
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AMÉRICA LATINA
DA POLÊMICA
Impulsionada por uma base social que exige o avanço da agenda pró-direitos sociais, a Frente Ampla pauta no Parlamento uruguaio e na sociedade o comércio de maconha, a união homoafetiva e o aborto Por Gisele Brito
O
a senadora Mónica Xavier, médica de formação, diz que foi “por direitos” – e não por outros motivos – que se discutiu durante mais de duas décadas a despenalização do aborto. “A luta pelo aborto, historicamente, tem a ver com o reconhecimento de que essa é uma das dimensões mais profundas da opressão às mulheres; o controle sobre seu corpo, sua capacidade reprodutiva tem sido uma das áreas de maior domínio patriarcal. Então, não é só que as mulheres não devem morrer por causa do aborto. As mulheres devem ser reco-
MARÍA INES HIRIART/RBA
GISELE BRITO/RBA
pequeno vizinho ao sul do Brasil, com 3,3 milhões de habitantes, fez barulho no ano que passou. O Parlamento do Uruguai aprovou ou começou a discutir leis sobre temas ainda polêmicos, como interrupção de gestação, matrimônio entre pessoas do mesmo sexo e comercialização (estatal) de maconha. Para os ativistas, independentemente de números ou indicadores sociais, predomina um argumento central da cidadania. Presidenta da Frente Ampla, o partido governista,
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MARCHA DOS VALORES Manifestantes religiosos se reúnem na frente do Congresso
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Essa intolerância à violência parece ser a razão central para o avanço da discussão sobre a regularização do comércio da maconha. O projeto apresentado pelo presidente uruguaio, José “Pepe” Mujica, é ousado. Segundo sua proposta, o Estado passaria a produzir, comercializar e controlar o cultivo da planta. No Uruguai, não é permitido vender, produzir ou cultivar drogas. O usuário, porém, não é considerado criminoso. A erva é consumida socialmente, em mesas de restaurantes dispostas nas calçadas, nos pontos de ônibus, sempre às claras, e não em locais marginalizados, como nas cidades brasileiras. Ainda assim, é mais comum ver o uruguaio consumindo mate, uma infusão parecida com o chimarrão, do que alguma droga ilícita. DARWIN BORRELLI/RBA
nhecidas em seu direito pleno de decidir se querem ou não querem ser mãe”, argumenta a ativista Lilián Bracinskas, diretora da organização não governamental Mulheres e Saúde do Uruguai (Mysu). Entre lideranças do movimento que defendem a legalização do casamento igualitário entre casais héteros e homoafetivos – que deve ser aprovada no Senado no início deste ano –, a morte de cinco transexuais em 2012 causa apreensão. “Estamos muito preocupados em saber o que é. Se é um psicopata, se é um grupo organizado, ou se é um incremento da violência social. Mas não acontecia antes”, diz o pesquisador e diretor do movimento Ovejas Negras, Diego Sempol. “Aqui, a violência não é algo tão presente. É diferente do Brasil, que tem resquícios da escravidão”, argumenta Sempol, sem precisar consultar nenhum dos diversos livros sobre a história do Brasil presentes em suas estantes.
MARÍA INES HIRIART/RBA
AMÉRICA LATINA
POR DIREITOS A senadora Mónica: mais de duas décadas de discussão sobre a descriminalização do aborto
LEO CARRENO/RBA
AMÉRICA LATINA
“PEPE NÃO SABE NADA” Diego Sempol: trabalho político é feito pela Frente Ampla
“Para nós, não se trata de uma liberação, mas de uma regulação. Porque o que vamos fazer com a cannabis é dizer: ‘Bom, no Uruguai se consome maconha. O mercado que controla isso é o narcotráfico e a ideia é que possamos regular isso de forma legal’”, argumenta o deputado Sebastian Sabini, presidente da Comissão de Educação e Cultura e da Comissão Especial de Vícios e Drogas, além de relator do projeto da maconha e do casamento igualitário. “Uma legalização seria dizer que qualquer um poderia comprar, produzir, vender, fazer um negócio com a marijuana. E não é isso que estamos fazendo. O que estamos fazendo é criar um marco de atuação para os que querem consumir, comprar, vender e produzir”, defende. O argumento principal em favor do projeto em tramitação é combater um “mal maior”, o crack, apontado como responsável pelo recente aumento da violência. “O consumo começou em 2002, por causa da crise econômica. Assim, a maconha passou a ser vista como a cura para um problema maior”, contextualiza o sociólogo e militante pró-liberação Diego Pietre. Segundo ele, o Uruguai tem uma das leis mais rígidas do mundo contra o tabaco e debate o aumento das penas para traficantes de crack.
LEO CARRENO/RBA
Política com base
“PEPE NÃO TEM NADA A PERDER” Sabini: o presidente está disposto a resolver problemas evidentes com propostas racionais
Apesar da fama internacional, Mujica tem por vezes sua capacidade como gestor questionada. “Pepe não sabe nada sobre esses assuntos”, afirma Sempol. “O que acontece é que o trabalho político não está sendo feito por Mujica, e sim por diferentes setores da Frente Ampla”, observa. A Frente Ampla é o partido de Mujica, mas sua essência popular e de forte base social se sobrepõe aos apelos personalistas de suas principais lideranças. Fundada em 1971, a agremiação reúne diversas correntes de esquerda e chegou ao comando do país pela primeira vez em 2005, com a vitória de Tabaré Vázquez. Cinco anos depois, o Uruguai deu à Frente Ampla a maioria das cadeiras de deputados e senadores e elegeu um ex-guerrilheiro e prisioneiro políti-
co que passou 14 anos encarcerado durante a ditadura de seu país, entre os anos 1970 e 1980. O grande mérito do atual presidente, apontam lideranças de movimentos sociais, é seu compromisso de sancionar o que for aprovado nas casas legislativas. É uma diferença fundamental entre Mujica e seu antecessor, que em 2008 vetou todos os capítulos que tratavam sobre aborto no projeto de lei de saúde sexual e reprodutiva, cujo texto atendia totalmente às demandas apresentadas pelos movimentos sociais, em especial dos feministas. “Pepe é um presidente que está disposto a resolver os problemas evidentes com propostas racionais. Ele não tem nada a perder e prefere enfrentar os problemas a fingir que não existem. Ele não vai vetar nenhuma lei que saia do Legislativo. Isso é uma diferença em relação a Tabaré”, destaca Sabini. Mas o grande motor das mudanças em curso no Uruguai parece ser a força da base social que levou a Frente Ampla ao poder. Sem se deixar cooptar pelo governismo, ela exige o avanço da agenda pró-direitos sociais, formando uma espécie de bancada informal denominada “Pró-Direitos” que pauta e pressiona e Congresso. E não faz concessões. As feministas, por exemplo, insatisfeitas com a mudança de foco da lei do aborto, prometem fazer a Frente Ampla “sentir os custos políticos” de uma “traição”. A lei aprovada prevê que a mulher passe por consulta com ginecologista, psicólogo e assistente social antes de poder fazer um aborto. A missão desses profissionais é apresentar alternativas à interrupção da gravidez. Para os militantes, a lei perdeu o foco, que era o direito de a mulher decidir sobre seu corpo. “Havia condições para aprovar outra lei. Mas a Frente preferiu esse texto mesquinho que não respeita a luta histórica dos movimentos sociais”, critica a feminista Lilián. O texto final foi modificado para conseguir apoio de parlamentares de outros partidos, já que dois legisladores da Frente Ampla alegaram impedimentos de consciência e não seguiram a orientação do partido nessa matéria. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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MEMÓRIA
O deputado e o piloto Mais de 48 anos após o golpe e na data da morte de Jango, personagens daquele governo voltam a Brasília para acertar contas com a história, em um novo ato de condenação da ditadura Por Vitor Nuzzi
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-presidente seguiria para o Uruguai. Foi o último voo do militar. Com o brevê cassado, ele não teve como continuar trabalhando. Acabou reformado compulsoriamente, em 8 de outubro de 1964. Ministro do Trabalho do presidente deposto – reeleito deputado em 1962, licenciou-se no ano seguinte para assumir a pasta –, Almino Affonso considerou o ato da Câmara uma “condenação explícita” à ditadura. “Creio que ajuda a uma retomada de compreensão política do que significou o golpe de 64”, decla-
JOSÉ CRUZ/ABR
O
nome de Almino Affonso era o 62º, em uma lista de 100, aberta por Luiz Carlos Prestes, João Goulart, Jânio Quadros e Miguel Arraes, cidadãos que perdiam os direitos políticos durante dez anos, por decisão do “Comando Supremo da Revolução”. Assinado pelo general Arthur da Costa e Silva, pelo brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e pelo vice-almirante Augusto Rademaker, o ato foi publicado no Diário Oficial da União em 10 de abril de 1964. Em 6 de dezembro de 2012, 48 anos, sete meses e 26 dias depois, Almino Affonso – que também perdeu o mandato de deputado federal – voltou à Câmara, para uma cerimônia de devolução simbólica do mandato de 173 parlamentares cassados pela ditadura, até 1985. Vinte e oito ainda estão vivos, e 18 participaram da solenidade. No mesmo dia e também em Brasília, o coronel da reserva Hernani Fittipaldi, 92 anos, piloto dos presidentes Getúlio Vargas (ajudante de ordens, foi um dos primeiros a ver Vargas morto, em 1954) e João Goulart, deu depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV). E relatou como foi preso e perseguido por ter transportado Jango até o Rio Grande do Sul, em 1º de abril de 1964 – de lá, o ex-
“CONDENAÇÃO DA DITADURA” Almino: retomada de compreensão política do que significou o golpe de 1964
rou. Para ele, diferentemente de países como Argentina e Chile, o Brasil vem tendo comportamento “suave” em relação àquele período. Com a cassação, o ex-deputado e ex-ministro ficou exilado durante 12 anos. João Goulart também permaneceu mais de 12 anos no exílio, até morrer, em dezembro de 1976, no interior da Argentina. Foi o único presidente brasileiro a morrer fora de seu país. A cerimônia na Câmara dos Deputados e o depoimento à Comissão da Verdade ocorreram justamente no dia em que se completavam 36 anos da morte de Jango. O coordenador da Comissão da Verdade, Claudio Fonteles, identifica no confisco de mandatos “a verdadeira subversão” patrocinada pelo regime de exceção: “A cassação de pessoas eleitas pela soberana vontade popular sem qualquer motivo aparente, mas pelo simples fato de terem se oposto a uma concepção militarizada e ditatorial do Estado brasileiro”. Também fazia parte daquela lista inicial de cassados, entre outros, o deputado Rubens Paiva, que desapareceu em 1971.
Comunista
Fittipaldi relatou que, ao voltar a Brasília, após levar Jango, teve o avião cercado, foi preso e incluído em um IPM,
MEMÓRIA
MARCELO OLIVEIRA/ASCOM - CNV
VERDADE E DOR Painel de Elifas Andreato, inaugurado na Câmara no mesmo dia da devolução simbólica dos mandatos cassados, registra o sofrimento em situações extremas. Uma das homenageadas é Dodora, codinome de Maria Auxiliadora Barcelos, companheira de cela de Dilma Rousseff
NÃO TEM PAPO Fittipaldi: “Era um presidente que estava deposto, qual é o papo?
um dos famigerados Inquéritos Policiais Militares da época. “A acusação é que ele seria comunista, mas o aviador não tinha atividade política, era apenas um militar de carreira e um dos fundadores do Ministério da Aeronáutica”, informou a Comissão Nacional da Verdade.
O piloto foi levado para o porão de um navio-prisão fundeado na Baía de Guanabara. A família passou dias sem saber do paradeiro, até que a Aeronáutica – ainda sem confirmar a prisão – comunicou simplesmente que mulher e filhos deveriam desocupar o imóvel
funcional em que viviam. Deu 48 horas de prazo para isso. Apenas no final de 1964 a família foi informada oficialmente da prisão e levada para visitar o militar. “Ele estava barbudo e irreconhecível. Só o deixaram tomar sol na parte final de sua prisão”, relatou à CNV um dos filhos, Sérgio, de 62 anos. Em entrevista à Agência Brasil em 2004, Fittipaldi queixou-se por ter sido impedido de voar. “Eles podiam fazer tudo, menos me proibir de exercer minha profissão. Porque consta na Constituição que nenhum cidadão brasileiro pode ser proibido de exercer sua profissão.” Segundo Sérgio, para sobreviver o pai administrou uma fazenda nas proximidades de Brasília e depois abriu uma granja, que faliu. No relato de 2004, Fittipaldi contou que Jango não falou nada durante o voo, apenas tentou dormir. “Apesar de ter outras pessoas no avião, o momento era de tristeza e abatimento. Afinal, era um presidente que estava deposto, qual é o papo? Não tem papo.” REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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EDUCAÇÃO
Caminho para a igualdade A Lei nº 10.639, que a partir do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira pretende combater o racismo e a discriminação, completa dez anos e ainda patina para “pegar”
E
m Samambaia, no Distrito Federal, a professora de História Jeidma Marinho de Almeida contou com o apoio de outros professores para desenvolver com os alunos do Centro de Ensino Médio 304 atividades sobre lundu – gênero musical e dança folclórica de origem afro32
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FOTOS DANILO RAMOS/RBA
Por Cida de Oliveira
-brasileira criado a partir dos batuques dos escravos. Isso começou em 2010, quando houve palestras e oficinas com a participação de mestres em lundu. “Fomos então a Urucuia, no norte de Minas Gerais, onde a cultura se desenvolveu de forma mais abrasileirada, e gravamos um documentário. Os alunos fizeram roteiro,
gravações e edição”, conta a professora. A partir deste mês, Jeidma fará viagem a um quilombo em Goiás com alunos da suplência, com os quais trabalhou o tema em 2012. Lá será gravado um filme sobre educação quilombola. Por seu trabalho, a professora é uma das vencedoras do Prêmio Educar para a Igualdade, do Centro
EDUCAÇÃO
ESTÍMULO Na Escola Estadual Marcelo Tulman Neto, na Vila Curuçá, em São Paulo, conversas, pesquisas e debates ajudam a desconstruir o racismo e a discriminação
de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. Outra premiada é Raquel Hermont Pereira Senra, diretora da Escola Municipal Florestan Fernandes, localizada em Solimões, na periferia de Belo Horizonte. Além da escola, que fica aberta nos fins de semana, o bairro com mais da meta-
de da população formada por negros não tem nenhum espaço cultural. O reconhecimento é para a gestão. Há três anos sua escola investe na formação de professores para lidar com a temática em sua grade curricular e privilegia conteúdos relacionados a história da África e cultura afro-brasileira no projeto pedagógico. Dessa
forma, trabalha a autoestima dos alunos por meio de oficinas ao longo de todo o ano. “Questões como por que não se aceitar como negro são abordadas nesses encontros”, diz Raquel. A autoestima da população negra constitui um dos principais objetivos da Lei nº 10.639, que altera a Lei de DiretriREVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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EDUCAÇÃO
zes e Bases da Educação (LDB) ao determinar a inclusão da história e da cultura da África e afro-brasileira no currículo do ensino infantil, fundamental e médio. A lei, que completa dez anos neste mês, foi uma conquista do movimento negro e representou uma mudança de paradigma na orientação da educação brasileira. “É o reconhecimento e o respeito à história, cultura e diversidade religiosa de descendentes de pessoas que, apesar de terem as mesmas potencialidades humanas, foram escravizadas e tiveram seus direitos humanos violados”, afirma a secretária de Políticas de Ações Afirmativas da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), Ângela Maria de Lima Nascimento. “O constrangimento de jovens negros na escola está entre as maiores causas de abandono dos estudos no ensino médio”, ressalta Ângela. “Com o desrespeito a suas características físicas, culturais e ancestrais, eles se sentem estranhos, inadequados e mal acolhidos e perdem o interesse pela educação. Com isso, passam a ter maior dificuldade de inserção na sociedade e não têm seu potencial produtivo e criativo desenvolvido. Todos nós perdemos com isso.”
Ainda não há um instrumento de acompanhamento sistemático da implementação da lei pela Seppir, apenas dados indiretos de pesquisas universitárias e de inscrições de trabalhos pedagógicos em premiações que estimulam ações em prol da igualdade racial. Em muitas escolas o cumprimento da lei depende de iniciativas isoladas de professores e diretores. Caso da professora de História Rosilei Conceição de Melo, da Escola Estadual Marcelo Tulman Neto, na Vila Curuçá, zona leste de São Paulo. Durante todo o ano de 2012 ela inseriu o debate da discriminação no conteúdo da sua disciplina nas séries finais do ensino fundamental. Os trabalhos culminaram com concurso de poesia e dissertação. “O objetivo era estimular os alunos a ler, pesquisar, escrever e conversar sobre racismo e discriminação”, conta Rosilei, lamentando que nem todas as disciplinas privilegiem a temática. O aniversário da lei, segundo representantes do setor, não enseja comemorações, mas avaliações sobre seu cumprimento pelos conselhos estaduais e municipais, gestores da educação e esCULTURA AFRO Jeidma e seus alunos: filme sobre educação quilombola e Prêmio Educar para a Igualdade
Iniciativas pedagógicas com as de Samambaia e de Solimões, entretanto, ainda são exceções nas redes públicas de ensino. Em alguns municípios, há até ações do Ministério Público para a efetiva implementação da lei. Segundo militantes do setor, há grande distância entre o que determinam a lei e as diretrizes curriculares e o que é executado. “Como altera a estrutura educacional brasileira, deslocando a concepção eurocêntrica da civilização, há muita resistência principalmente pelo racismo institucional e pela mentalidade que naturaliza as desigualdades sociais entre as duas maiores parcelas da população brasileira”, avalia a secretária. “O racismo institucional, aliás, dificulta o reconhecimento do valor das populações, das culturas, e a promoção da igualdade racial tanto na escola como na sociedade.” 34
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DANILO RAMOS
Na escola e na vida
INVESTIMENTO Raquel, da Escola Municipal Florestan Fernandes, na periferia de Belo Horizonte: formação de professores para lidar com a temática
tabelecimentos de ensino em todos os níveis. E, apesar do preconceito, da intolerância e da resistência presentes nas escolas e na sociedade, houve avanços. Entre os materiais didáticos e paradidáticos produzidos está a coleção História Geral da África, parceria do Ministério da Educação (MEC) com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). A coleção de oito volumes, que pode ser acessada no site da Fundação Cultural Palmares (www.palmares.gov.br), foi enviada a escolas e universidades. Versões resumidas da obra estão sendo editadas para professores da educação básica. O MEC trabalha ainda a edição de uma coleção de materiais complementares e, recentemente, publicou edital para a compra de livros temáticos para bibliotecas escolares de todo o país.
SERGIO AMARAL/RBA
EDUCAÇÃO
Outra conquista veio em 2004, quando o Conselho Nacional de Educação elaborou e aprovou diretrizes curriculares nacionais para o ensino da história e da cultura afro-brasileiras e para a educação das relações étnico-raciais. Essas diretrizes ampliam a perspectiva da Lei nº 10.639 para todos os níveis de formação, desde o ensino infantil até os cursos de capacitação profissional e de nível superior. “No lugar desses conteúdos nas escolas entra a educação das relações étnico-raciais, que vai além da pessoa negra discriminada e pretende provocar reflexões sobre as relações raciais na sociedade brasileira e como são produzidas as desigualdades de oportunidades”, aponta Jaqueline Santos, assessora do programa Diversidade e Raça na Educação da Ação Educativa, organização não governamental que promove os direitos educativos e culturais da juventude. O MEC tem apoiado ainda a qualificação de professores. Já foram formados 42
mil, dos quais 5.050 são de escolas localizadas em comunidades remanescentes de quilombos. Como a capacitação docente é outro grande desafio para a implementação da legislação, desde 2005 a Seppir também participa de diversas iniciativas com mais de 30 universidades, que já formaram cerca de 20 mil professores. Segundo o órgão, existem atualmente cerca de 80 núcleos de educação afro-brasileira nas universidades públicas. Entre eles está a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-SP), que realiza curso a distância para professores de toda a educação básica. Há ainda instituições privadas que oferecem capacitação.
Projeto de desenvolvimento
Diante do pequeno percentual de escolas adaptadas à nova grade curricular – por falta de formação docente ou de conscientização sobre o tema –, em 2009 a Seppir e o MEC formularam o Plano Nacional de Implantação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O documento, que estabelece metas, estratégias e as competências de cada esfera governamental, inseriu a questão no Plano Nacional de Educação (PNE). A relatora dessas diretrizes foi a professora aposentada Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, da UFSCar. Apesar de bem-vindas, todas essas ações, inclusive as publicações, são insuficientes. “Desde o advento da Lei nº 10.639, autores e editoras buscam elaborar e divulgar informações, mas nem todas têm consistência e carecem de avaliação”, diz. Jaqueline, da Ação Educativa, lembra que outro desafio que persiste é inserir o tema em toda a grade curricular do ensino básico, médio e superior, e não mais abordá-lo de maneira pontual em datas como 13 de maio e 20 de novembro. “Isso significa que quando o professor estiver ensinando sobre escritores, por exemplo, aborde os negros, os africanos; quando for ensinar sobre nossa língua, explicar que o português não é tão português assim, que há influências africanas, assim como há influências em todas as áreas do conhecimento.” Quando a lei foi promulgada, um dos argumentos contrários era o risco de acirramento do racismo. Na avaliação da professora Petronilha, ocorreu o contrário. “Quanto mais nos conhecemos uns aos outros, mais temos chance de nos reconhecer como semelhantes, de nos respeitar, valorizando nossas diferenças. Precisamos realizar pesquisas que nos mostrem o que tem sido criado e a que resultados se tem chegado.” Para Ângela, da Seppir, o descumprimento da lei traz prejuízos para todos. O Brasil tem o segundo maior contingente de pessoas negras, atrás apenas da Nigéria. “Não podemos dar seguimento a um projeto de desenvolvimento nacional sem superar o racismo e as desigualdades sociais que excluem a população negra do acesso aos bens materiais e intelectuais”, diz. Como ela assinala, a superação do racismo e das desigualdades não é um problema dos negros, mas de todos os brasileiros. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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ENTREVISTA
O cinema acabou.
A CIDADE VIVE Para o cineasta Ugo Giorgetti, o que importa é levar a obra ao público. Para o paulistano Ugo, um olhar atento pode redescobrir lugares dados como perdidos Por Vitor Nuzzi
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JANEIRO 2013 REVISTA DO BRASIL
“O que acho interessante no futebol é como se insere na sociedade.” Ao descrever o Pracinha, o autor descreveu um modo de vida, a sociedade da época.
Isso é uma coisa um pouco estranha. Filmo há muitos anos, primeiro na publicidade, que também se passava em São Paulo. Então, estou filmando essa cidade há quase 50 anos, eu circulo por aí. Isso que você falou, sobre as marcas de outro tempos que ficaram na cidade, é algo curioso. Para descobrir essas coisas que ficaram, redescobrir, precisa olhar com atenção. Eu preciso da cidade, sou uma pessoa que anda na rua. Mesmo assim, você só se dá conta de que alguns aspectos restaram quando vai fazer alguma coisa específica. Nasci no bairro de Santana. A prefeitura faz uma série de documentários sobre bairros, e me encarregaram de fazer sobre Santana. Fui com a cabeça de não achar mais nada do tempo em que morei lá. Meu irmão mora lá, então vou frequentemente. Indo para visitar meu irmão, achei que não tinha mais nada, era um horror. Mas, como fui fazer o documentário (lançado em 2009), tinha de olhar com atenção. E realmente sobra. A vida não é mais a mesma, mas a coisa está lá, às vezes intacta. Vilas, ruelas, é impressionante. Mudei completamente minha posição.
DANILO RAMOS/RBA
É possível ainda reconhecer um pouco da São Paulo em que você cresceu, brincou?
No filme O Príncipe, o personagem mostra uma estranheza, porque ficou muito tempo fora do Brasil. Mas aí também é outro olhar...
É outro olhar e também um personagem de ficção. Você tem liberdade para exacerbar... Agora, a cidade está mudando violentamente, com esse boom imobiliário. Perdizes está sendo destruído. Claro que daqui a alguns anos alguém vai descobrir uma casinha aqui, uma viela acolá. Eu botei o personagem por causa disso. A Vila Madalena, a Mourato, virou uma loucura...
SP FILMES/DIVULGAÇÃO
“V
ocê tem certeza que esta é a Rua Mourato Coelho?”, diz o personagem central de O Príncipe, filme lançado em 2002 por Ugo Giorgetti. A cena revela o espanto de alguém que retorna a São Paulo depois de mais de 20 anos e perde as referências. Nascido há 70 anos em Santana, na zona norte de São Paulo, o cineasta pensava que tudo tinha ficado para trás quando, andando pelo bairro a trabalho, surpreendeu-se ao descobrir que ali ainda existem coisas intactas que ele supunha desaparecidas. Giorgetti também passou por Higienópolis, na região central, pelo Horto Florestal, na região norte, e mora em Perdizes, na zona oeste. São Paulo está presente o tempo todo em sua obra. Seus primeiros trabalhos são os documentários Campos Elíseos (1973) e Edifício Martinelli (1975). “Eu nasci aqui, grande parte da cidade me é muito familiar. Fazer esses personagens circular por São Paulo é mais imediato. Não me preocupo muito com a cidade, primeiro a cidade, depois o personagem. É o contrário. Primeiro o personagem, depois a gente o coloca em algum lugar.” No filme Sábado (1995), um de seus nove longas-metragens, ironiza o fato de as pessoas não irem mais ao centro, mesmo falando bem do local. Em sua opinião, São Paulo é uma cidade de apartheids. Isso se transforma no cinema, que para ele acabou, de certa forma, ou perdeu para a televisão. É a era do audiovisual. “O importante é você fazer e passar.” Além do cinema e da cidade, o futebol faz parte das paixões de Giorgetti, mesmo desgostoso com o Palmeiras, seu time do coração. Boleiros (1998), que ganhou uma continuação em 2006, é provavelmente o seu filme mais conhecido. Ele adora futebol, mas abomina o mercado e o oba-oba. E registrou em crônica sua admiração por um livro que conta a história do Pracinha F.C., uma tentativa de clube feita por garotos que batiam bola numa praça paulistana.
Cena de Boleiros 2
ENTREVISTA
Os donos do futebol antigo eram pessoas muito mais simplórias. Depois entram os negociantes, gente que está a fim de fazer dinheiro no futebol
SP FILMES/DIVULGAÇÃO
O brasileiro torce mais ou menos na Copa. Sua pátria é seu clube. Quem gosta da Copa são os anunciantes. O futebol é ambíguo, mexe com a emoção e ao mesmo tempo é tão mercantilista que dá asco
Cena de Cara ou Coroa
Cara ou Coroa não é um filme sobre a ditadura, é sobre o período da ditadura. Mas o distribuidor não estuda seu produto. Não tem nenhuma estratégia REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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ENTREVISTA
O primeiro Boleiros é nostálgico. O segundo é mais realista, com os empresários tomando conta do esporte. É a visão que você tem?
São Paulo tem uma classe média aterrorizada. O sujeito tem medo de andar na rua, muitas vezes sem razão. E não suporta o diferente, o contato com pessoas pobres. O Rio de Janeiro é mais democrático
Os donos do futebol antigo eram pessoas muito mais simplórias. Eram uns caras que tinham algum dinheiro, mas não eram negociantes. Eram torcedores, em primeiro lugar. Você pega aquelas figuras antigas, como o Vicente Matheus (ex-presidente do Corinthians), que era antes de tudo um torcedor, amava o clube. Esse futebol está representado no primeiro Boleiros. Depois entram os negociantes, gente a fim de fazer dinheiro. Mesmo que ele não queira para ele, está fazendo caixa pro clube. O objetivo é sempre caixa. E entrou a publicidade, vigorosamente. Uma infinidade de gente que nunca tinha se metido com futebol. Era outra sociedade, mais simples. O marketing, o consumismo aloprado, para usar a palavra do Lula, esse consumismo absurdo, sem freios, não havia, até porque não havia tanto o que consumir. Agora as pessoas vêm oferecer coisas dentro da sua casa. Os filmes, então, representam épocas diferentes. O futebol acompanha a sociedade à qual ele pertence, o momento histórico em que está. Com tudo isso, você gosta de ver jogos?
Para mal dos meus pecados sou palmeirense. Então, não tenho acompanhado mesmo. Nunca pensei que fosse desligar a televisão em um jogo do Palmeiras. Eu escrevo sobre futebol, então tenho de seguir. Mas o Palmeiras eu não vejo, não quero ver. Nem no estádio novo, que está sendo construído no mesmo local?
Nem lá. Inclusive fui contra esse estádio. Você vê o que é a inserção de estranhos, não estranhos, porque é o mercado que está aí, no futebol. Um estádio é um estádio. Se você chamasse um arquiteto recém-formado, de 23 anos, e dissesse: eu tenho o Parque Antártica, cabem aqui 25 mil. Eu quero que você bote mais 15 mil. Um arquiteto hábil, que não fosse um primata, botava mais 15 mil pessoas. Tinha lugares que você podia ajeitar, e não precisava fazer arena alguma. O que você precisava era de um time. E pela Copa? Você se interessa?
Nem um pouco.
Nem a do Brasil?
Bom, essa nem pretendo estar aqui. Estava até pensando em ir para o Uruguai, mas periga o Uruguai se classificar, e aí fica a loucura lá. Mas, se não se classificar, vou pra Montevidéu. Não vou ficar aqui, nessa palhaçada. Esse negócio de ligar pra Copa do Mundo não corresponde exatamente ao futebol. O 38
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Brasil perdeu várias e o futebol continuou magnífico. O brasileiro torce muito mais pro clube. Sua pátria é seu clube. Quem gosta da Copa são os anunciantes. O futebol é muito ambíguo. Ele mexe com isso (emocional), e ao mesmo tempo é um negócio tão mercantilista que dá asco. Então, você fica sempre dividido. Quem gosta e quem escreve é uma pessoa dividida. Ao mesmo tempo que você sente que é uma força verdadeira, honesta, entranhada, que vem de quando você era criança, também sabe que é um charco, uma coisa odiosa, de compra e venda, de gente corrupta até a raiz dos cabelos. Você saiu da publicidade para não ter de lidar com empresários. Para fazer filme, precisa correr atrás deles, para captar recursos. Como foi com o Cara ou Coroa (lançado em 2012)?
Cinema é uma atividade que requer dinheiro alto. No Cara ou Coroa tive sorte. Eu não circulo muito por aí socialmente. Então, não tenho nenhum laço com empresários, estou sempre desfalcado nessa vertente, precisa ter sorte. Era uma pessoa que tinha estudado com minha filha mais velha, que tinha se transformado numa pessoa importante numa organização e entrou... Você tem de contar com isso, não tem muito jeito. É muito complicado. O Estado deveria apoiar mais?
O Estado apoia tremendamente, mas de uma maneira que ele pretende que não seja vista como apoio do Estado. Então, o dinheiro que os empresários põem nos filmes é público. Por mais que tenha gente fazendo sofisma, dizendo que não é, na minha opinião é inteiramente público. Portanto, é dinheiro do Estado, que por motivos que a gente pode discutir mil vezes ele pretende ficar oculto e fingir que não deu, que quem deu foi o banco não sei o quê. Mas o banco deu o dinheiro que deveria pagar para o Estado, com os impostos. O Estado transfere para o particular a decisão sobre que filme vai fazer. É uma coisa um pouco insensata, que não acredito que exista fora do Brasil. Na França, imagine. Você não vai pedir dinheiro pra Renault. Vai pedir pro governo. A diferença é muito simples: a Renault não faz filmes, faz carros. Por que ela entraria em filme? Então, (a empresa) aprova um filme mais inócuo, uma comedinha facinha, que não incomoda ninguém, que daqui a três dias ninguém vai lembrar que existe. Por que vai colocar sua marca associada a um produto polêmico? Você começa a escolher o filme que não incomode. Isso é terrível, porque mutila artisticamente o país. Mas está instaurado aí há muitos anos, e não vejo nem pessoas muito descontentes com isso, nem a classe reage muito a isso. Então, eu devo estar errado.
ENTREVISTA
É o maior problema do cinema nacional. Porque o distribuidor é um sujeito, na minha opinião, desinteressado de filmes em que ele não veja qual é o público imediato. Você pega, vamos supor, uma comédia. Opa, tem global? Tem, dois ou três globais. Legal. A Globo dá? Dá. Então, ele já classifica, não tem a perspicácia e a vontade de falar: pera aí, esse filme é isso ou aquilo. Não, ele classifica imediatamente: esse é o filme que vai dar dinheiro. Seu filme, Cara ou Coroa, sobre o que é? Ditadura? Não, não é sobre a ditadura, é sobre o período da ditadura. Até explicar...
Dá trabalho. O filme é como produto, sabonete. Os distribuidores fariam o papel de uma agência de publicidade. Você leva seu produto a uma agência, eles vão quebrar a cabeça para ver como colocar esse produto no mercado. Essa é a função, que armas usar, como atingir o público. O distribuidor deveria fazer isso. Primeiro, ter capacidade pessoal para analisar se o filme tem méritos ou não, o que eu já acho discutível. Depois, descobrir qual é o público. Todo filme tem público, até o mais cabeça. Agora, precisa ter inteligência. Aqui é assim: ou você é um filme fácil, ou... não sei. Quando você diz “não sei”, ele é imediatamente relegado a uma vala comum. O distribuidor não tem nenhuma estratégia. Você tem a Globo ou não tem. No fundo, é mais ou menos isso. Não é culpa do blockbuster, do 007...
É também. Mas daí é outra coisa. Você não pode, num parque cinematográfico de 2.300, 2.400 salas, ter um filme que entre em mil salas. Isso é uma anomalia, uma aberração. Por outro lado, se esses filmes não entrassem nessas salas, entrariam outros parecidos. A sala também está rotulada. Então, você não entra no Cinemark. Não entra nem um filme não com um mínimo de dificuldade, mas que requeira um pouco mais de atenção do espectador. Só isso. Se não entrasse o Crepúsculo, entraria alguma coisa parecida. Não se engane. Não é que o Crepúsculo está tirando salas de Cara ou Coroa. Em absoluto. O que ocorre é uma atividade anômala muito ruim. São Paulo vem perdendo os cinemas de rua, em troca das grandes salas. Isso atrapalha?
Na minha opinião, o cinema não existe mais. O cinema acabou. O que existe é audiovisual. Isto é, você ver cinema por outros meios. Você tem de pensar em televisão. No DVD, que também está periclitante neste momento, em termos de vendas. Na verdade, você tem de contar com a televisão, com a internet, coisas desse tipo. As salas são um enfeite hoje. O cinema perdeu
para a televisão, e teria de perder mesmo. Quando a televisão foi posta em prática nos Estados Unidos, Hollywood percebeu. Por que você vai sair quando pode ver em casa com a mesma qualidade? Numa cidade que não te convida a sair de casa, é insegura, que tem um trânsito desgraçado, o estacionamento é caro... Então, o cinema é uma atividade inviável, na minha opinião. Serve como uma espécie de vitrine, a crítica vai lá, e você vai pra televisão. Apesar disso, você continua fazendo filmes.
FOTOS DANILO RAMOS/RBA
E a distribuição, é outro problema?
Lógico, mas eu faria pra televisão, sem nenhum problema. Não tenho nenhum romantismo a respeito do filme, do cinema, todas as pessoas ali sentadas. O importante é fazer e passar isso de alguma forma. Sábado ao mesmo tempo fala da decadência de uma parte de São Paulo e do glamour da publicidade... São Paulo tem essa mistura.
Às vezes no mesmo lugar.
As pessoas têm essa relação com a cidade?
Se andam pela cidade, é para lugares muito definidos. O centro não é mais. Aliás, pode ser que o centro venha a ser um lugar aonde as pessoas vão. Mas tem de ser proporcionado pelo Estado, com a iniciativa privada não vai ser isso. Por exemplo, a prefeitura fez um dispositivo chamado Praça das Artes, estão transferindo instalações do Municipal, foi restaurado completamente o Conservatório Musical... Mas isso aí é obra de um secretário de Cultura, que é o Carlos Augusto Calil. Você está sempre na mão de um fenômeno que apareça, de uma pessoa que o destino coloca lá. E dentro de uma prefeitura extremamente, para ser delicado, conturbada, como foi essa prefeitura Kassab, de repente na Cultura teve um secretário exemplar, que transformou a Biblioteca Mário de Andrade, teatros de bairros em teatros viáveis, distribui livros nos terminais de ônibus... O único jeito de ter o centro novamente é uma intervenção do Estado. São Paulo é uma cidade de uma classe média aterro rizada, por tudo, especialmente pela televisão. O sujeito tem medo de andar na rua, sem razão nenhuma, muitas vezes. E não suporta o feio, o diferente, o con tato com pessoas pobres. O Rio de Janeiro é muito mais democrático, até porque está muito próximo... Aqui, quando o pobre, o desvalido, o malvestido, o sujo, está num lugar, a classe média vai pra outro. Então, para ver uma ópera, você vai ter de conviver com o cara que transita na São João. A Broadway é isso. Em São Paulo é que você convive com apartheids, esse apartheid violento. Você vai na Broadway, ninguém pensa em pegar um teatro e levar para um lugar chique de Nova York. É uma maneira de deixar a cidade viva.
Para mal dos meus pecados sou palmeirense. Eu ia muito a estádio, até uns cinco anos atrás. Escrevo sobre futebol, então tenho de seguir. Mas nunca pensei que fosse desligar a TV em um jogo do Palmeiras
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TRABALHO
Conforme
A MUSICA P Em bandas de formatura ou na companhia de grandes nomes da MPB, os músicos pertencem a uma categoria desunida e têm uma rotina árdua. Mas, acima de tudo, desempenham seu ofício com muito prazer Por Guilherme Bryan 40
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assada a temporada de confraternizações de empresas e festas de réveillon, a safra de trabalho das bandas musicais têm ainda uma sobrevida com as festas de formatura, que, por excesso de universidades e falta de espaço no calendário, se estendem até o final do verão. Daí em diante virão períodos de oscilação em busca das próximas apresentações, e de caça ao cachê. Essa é mais ou menos a rotina de quem vive de música em grupos ou orquestras pouco conhecidos, que atuam sob demanda, mas a realidade não
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chega a ser muito diferente para aqueles que acompanham os grandes nomes da música brasileira. Considerando-se membros de uma classe desunida, em geral, eles reclamam da desigualdade de cachês e da ausência de uma entidade atuante para representá-los. “Trabalhamos o ano todo, mas diria que o mercado aquece um pouco mais em dezembro”, diz o baterista Adriano Santos, sócio da banda Ópera Soul. Surgida em 2001, em São Paulo, apresenta-se com 11 integrantes, incluindo três bailarinos, em vários estados. “Os alunos que
ís, e com agenda de pedidos de apresentação em eventos sempre cheia, é a Jet Boys Band Show. Fundada em 1967, em Assis (SP), foi integrada originalmente pelos irmãos Osmir (o Mirão), Laércio, Dinei, Edson e Ademir Fortuna e hoje conta com três cantores, um tecladista, um guitarrista, um baterista, um baixista e três bailarinas. Pelo menos dois momentos são marcantes na história da banda: ao lado da dupla Chitãozinho & Xororó, na década de 1980, e, mais recentemente, quando tocaram com o grupo The Platters, formado em 1953, ainda na era pré-rock, e celebrizado por clássicos como Only You e Smoke Gets in Your Eyes. “Foi um grande dia, pois crescemos ouvindo as músicas deles. Outro momento marcante foi em 1967, quando nós, que éramos um grupo de jovens com média de 15 anos, viajamos de Kombi com equipamentos de Assis a Brasília. Ficamos seis meses fora de casa, sem contato algum com nossos pais. Naquele tempo, não existia um acesso fácil à mídia e a população era carente de ver um artista ao vivo. Cansamos de viajar em estradas de terra no Paraná, Mato Grosso, Bahia...”, recorda Mirão. Os tempos são outros, mas o ambiente ainda é marcado por certo amadorismo, como observa Fabiano Mafezoli, da banda Dreams. “Há ainda muitos ‘marinheiros’, que compram um instrumento, baixam algumas cifras da internet e se autointitulam músicos. Essas pessoas dificultam a ascensão da profissão, pois se ‘vendem’ por qualquer pão com mortadela que oferecem. Um músico profissional estuda música, vive música e sempre tem algo novo a aprender”, diz. A Dreams surgiu em 2000 e toca em até 18 eventos por mês, com 12 músicos e seis dançarinos.
Ouvidos abertos
Músico – do grego mousiké – pode ser definido como alguém hábil na arte e na ciência de combinar os sons de maneira prazerosa aos ouvidos, seja tocando um CAROLINA ANDRADE
GRANDE ESQUEMA Banda Dreams: até 18 eventos por mês, com 12 músicos e seis dançarinos
DIVULGAÇÃO
se formam hoje, assim como os noivos e as empresas, possuem um perfil jovem, buscam ideias novas, e nenhuma banda está preocupada em tocar algo diferenciado para esse público. Era sempre a mesma coisa: anos 60, 70, samba etc. Começamos a tocar em baladas, ver de perto o que o pessoal curtia, e entramos no mercado com um repertório mais moderno”, conta Adriano. Os oito músicos já dividiram palco com artistas famosos, como Jorge Benjor, Daniela Mercury, Sidney Magal, Latino, Buchecha, banda Cheiro de Amor, Monobloco. E, onde quer que toquem, aprender a lidar com pessoas “inconvenientes” nas plateias dos eventos e shows parece um dos ossos do ofício. “Já passamos por muitas situações em que tivemos de aguentar bêbados pedindo para tocar Raul. E até tocamos (risos). Tendo jogo de cintura somos respeitados. Antes de um evento, falamos o repertório e de nosso estilo de trabalho. Músico é um profissional sério”, garante. Uma das bandas mais rodadas do pa-
O PRAZER PREVALECE Barão do Pandeiro: “Desde criança, nunca me imaginei fazendo outra coisa” REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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REALISTA Milton Guedes: “O nível dos cachês caiu muito com a queda na indústria fonográfica. A classe é muito desunida”
BRUNO PRADA/DIVULGAÇÃO
instrumento, seja cantando, escrevendo arranjos, compondo, regendo um coral ou uma banda. Eles estão presentes desde a origem da humanidade e compõem a memória de uma vida. Filho do compositor Ivor Lancellotti, o baterista, percussionista e violonista Domenico lembra-se de frequentar, ainda criança, rodas de samba na casa de João Nogueira e na de Clara Nunes. Entrou profissionalmente no ramo acompanhando o Quarteto em Cy. “Aprendi muito com elas, principalmente a tocar com dinâmica. Rodei Norte e Nordeste com o show dedicado ao Chico Buarque. Tinha 16 anos, estava confiante, e resolvi largar a escola e me dedicar só à música”, conta Domenico. “Tenho muita sorte e sempre trabalhei com pessoas que admiro, cada uma com sua maneira de ver o mundo.” Com a autoridade de quem já acompanhou Caetano Veloso, Fernanda Abreu, Gal Costa e Adriana Calcanhotto, garante: “O músico tem de descobrir um jeito de tocar para cada situação”. A cantora Letycia, por exemplo, aprendeu com Sandy & Junior e Zezé Di Camargo & Luciano. “A experiência trouxe amadurecimento, entendimento do processo do show business no Brasil, visão de trabalho com grandes equipes, ideal de profissionalismo e entendimento de música como arte e negócio. Observei a reação do povo, que canções cantavam junto. Conheci os diversos Brasis dentro do Brasil. E, sobretudo, tive a convicção de querer emplacar a minha carreira solo”, comemora. Letycia se lembra de precisar ficar o dia inteiro disponível para os shows dos artistas que acompanhou, passar o som mais cedo, almoçar e viajar com a equipe. Ela lançou o primeiro álbum solo, Cores do Pop ao Samba, em 2009, e participou da banda do programa Ídolos, da TV Record. “É preciso ser o mais profissional possível, você passa a ter a estrada como sua casa e a equipe como sua família por um grande tempo, principalmente nas turnês grandes ou fora do país. O emocional, o lado pessoal, tem de saber calar e se posicionar apenas quando necessário. Sem deixar de ter presença, mas saber que quem tem de aparecer é ‘o’ artista.”
DANIEL WICKBOLD/DIVULGAÇÃO
TRABALHO
CASO RARO Jaime Alem acompanhou Maria Bethânia por 30 anos: “A lei de oferta e procura é cruel, mas há muito a discutir no que se refere ao trabalho do músico”
ESCOLA DO SHOW BUSINESS Letycia aprendeu com Sandy & Junior e Zezé Di Camargo & Luciano
No palco e no estúdio
Há muitas diferenças entre acompanhar um nome consagrado da MPB em shows e o trabalho em estúdio. “Tem artistas que ficam superconfortáveis em uma situação e angustiados em outra. Então a pessoa muda mesmo. De saída, no estúdio, tudo está ampliado numa incrível ‘lente de aumento’. Então, as características das pessoas sofrem o mesmo efeito”, define o guitarrista e violonista Billy Brandão, que já acompanhou Paulinho Moska, Lobão, Ana Carolina, Marisa Monte, Frejat e Erasmo Carlos. Billy alerta que estúdio é lugar de paciência, repetições e minúcias. “Ao mesmo tempo, pode acontecer o efeito ‘rodar lâmpada’, uma expressão que a gente usa quando o artista não sabe o que quer, mas não gos-
GERARDO LAZZARI/RBA
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ta de nada que está acontecendo e fica só naquele ‘não sei... não acho que seja isso...’ (risos) É difícil.” Durante os shows, o saxofonista, flautista, gaitista e cantor Milton Guedes aprova a liberdade do improviso, permitida por artistas para os quais trabalhou, como Oswaldo Montenegro, Lulu Santos e Roberto Carlos, mas no estúdio não despreza o processo de criação, com muita calma. “Tive o privilégio de tocar com meus ídolos e acompanhar grandes nomes em shows, CDs e DVDs. A facilidade de adaptação a uma diversidade de estilos me tornou muito prático e rendeu muitos convites. Essa convivência me faz estudar mais”, diz o artista, agora também dedicado à carreira solo. Mas a situação dos chamados músicos de apoio o preocupa. “Hoje em dia, é quase inevitável acompanhar vários artistas. O nível dos cachês caiu muito com a queda na indústria fonográfica. Acho que os órgãos existem e há organização neles, mas a classe é muito desunida”, acredita Milton. “Existe uma tabela com valores mínimos estabelecidos pela Ordem dos Músicos do Brasil, mas só no papel. Na prática, vale a condição de cada artista”, lamenta. O resultado é a expansão da informalidade, pois, segundo ele, os valores ínfimos desencorajam a pagar impostos ou contribuir com sindicatos. “Com isso, não existe uma unidade de valores ou direitos. É um tiro no próprio pé. Vemos grandes nomes passando muita necessidade por conta disso.” O violonista e compositor Jaime Alem, há 30 anos na companhia da cantora Maria Bethânia, concorda: “A organização dentro do campo do trabalho passa pela postura dos próprios músicos diante das condições oferecidas pelos empresários. Contrata-se e dispensa-se sem cerimônia. Que eu saiba, apenas dois artistas brasileiros cuidam bem dessa questão – Chico Buarque e Roberto Carlos. A lei de oferta e procura é cruel, mas há muito a discutir no que se refere ao trabalho do músico no aspecto legal”. Jaime Alem, que já tocou também com Gonzaguinha, Trio Esperança e Golden Boys, diz ter alcançado uma marca pessoal no trabalho de diretor musical de Ma-
ria Bethânia. “Com ela usei viola caipira em 0,01% dos arranjos. Mas esse pouquinho teve sua luz própria”, conta. “Fui exclusivo dela por 30 anos. Qualquer coisa que eu fizesse, mesmo gravando em meu pequeno estúdio, era subordinado a uma ação dela. Muitas vezes abandonei amigos em estúdio para atendê-la prontamente. Já abandonei a família em Ouro Preto para embarcar no Galeão no mesmo dia rumo a Portugal para gravar uma música com ela.”
Corda bamba
Para Domenico, a constante oscilação no mercado da música é incômoda. “Há um movimento natural, quase sazonal. Meses em que há trabalho, meses em que não há. Você anda na corda bamba. Sempre foi assim. Hoje, a música está tão desprestigiada que raramente você pode ter um trabalho só. É preciso se desdobrar. E é tenso tentar conciliar agendas de nomes como Gal Costa, Adriana Calcanhotto e Orquestra Imperial. E ainda tenho de achar brechas para tocar meu trabalho solo”, descreve. Mesmo com tantas dificuldades, o prazer prevalece, como garante Barão do Pandeiro. Com 5 anos ele já batucava e, aos 13, se apresentava em conjuntos. Barão orgulha-se de ter acompanhado gente como Clementina de Jesus, Zé Kéti, Roberto Silva e Nelson Cavaquinho. “Desde criança, nunca me imaginei fazendo outra coisa. Especializei-me em dois instrumentos de ritmo – pandeiro e prato e faca – por influência de João da Bahiana, que foi uma das minhas inspirações”, diz. Billy Brandão define o ato de tocar com grandes nomes da música como a marca de uma carreira “bem-sucedida”, mas a carreira não se esgota nessa constatação. “É preciso ter sorte. É claro, ela não vale nada sem a competência, mas é fundamental. Dei a sorte de trabalhar com vários grandes artistas, famosos etc. Em muitas oportunidades me vi ali, com uma pessoa que simplesmente era (ou é) um dos meus ídolos. Já me peguei algumas vezes sendo distraidamente ‘carregado’ por emoções e chorei no meio do show. Isso é que é especial, com certeza.” REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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VIAGEM Cânion Fortaleza, no Parque Nacional da Serra Geral
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VIAGEM
Gralha-azul
Férias para os sentidos
Floresta de Araucárias no Parque Nacional de São Joaquim
O cheiro e o paladar, o toque e os sons e o olhar. Um cenário mágico para ser bem desfrutado com os cinco sentidos, no sul do Brasil Por Ana Paula Carvalhais. Fotos de Joao Marcos Rosa/Nitro
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im, é possível caminhar nas nuvens. Pelo menos para o visitante que percorre os parques nacionais na divisa entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Acidentes geográficos, como rios e serras, são bem comuns na demarcação de limites no Brasil, mas o que se encontra nessa região é um espetáculo à parte. Próximos a platôs que você certamente já viu em filmes, novelas e publicidade de carros, os cânions sulistas se revelam aos olhos no descortinar da neblina após poucos minutos de caminhada. Imponentes, rasgam o solo e desenham os paredões na região. Um cenário mágico para desfrutar com os cinco sentidos. Partindo de Porto Alegre, o acesso é pela RS-429 rumo a Cambará do Sul. O trajeto de cerca de 180 quilômetros com asfalto em boas condições é feito em poucas horas e permite ao visitante se acostumar, aos poucos, com o clima frio. Quando a vista começa a alcançar belas matas de araucária pode ser também um bom momento para exercitar o paladar com os quitutes típicos da região – especialmente na época REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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VIAGEM
Grupo Floreio Nativo: música típica gaúcha
do pinhão –, nos cafés coloniais na vizinha São Francisco de Paula, a 69 quilômetros do nosso destino. Na chegada a Cambará do Sul, o encontro é com uma cidade surpreendentemente plana, pequena, charmosa e estratégica como ponto de apoio para desbravar os cânions ao redor. Muitas são as opções de pousadas – dentro da cidade e no campo –, além de agências de turismo receptivo que oferecem passeios diários em carros com tração nas quatro rodas para as aventuras. Se você não tiver sorte, como nós, de ir acompanhado por um gaúcho que conheça bem a região, o melhor é mesmo contratar serviços profissionais, para não comprometer o carro e a viagem de volta. O ideal é reservar pelo menos um dia para conhecer cada um dos cânions, sem deixar de lado as trilhas e atrações nas proximidades. Alguns pontos imperdíveis, como o Lajeado das Margaridas, ficam em propriedades privadas, portanto é preciso se informar previamente sobre o acesso. Mas não deixe de visitar esse local onde o Rio Camisas desce raso e lentamente pelas pedras, formando um poço rodeado por colinas com jardins de araucárias. No trajeto, mantenha atentos olhos e ouvidos. Não é raro cruzar com casais de gralhas azuis, símbolo da região. Com canto inconfundível e coloração azul da cor do céu, essas aves são grandes replantadoras dos pinheiros brasileiros, que infelizmente vêm se tornando mais raros, dando lugar a plantações homogêneas de pinus, pinheiro europeu replantado 46
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para utilização em móveis e construção. Se sua chegada está planejada para uma segunda ou terçafeira, programe-se para conhecer primeiro o Cânion Fortaleza, pois o Parque Nacional Aparados da Serra só é aberto para visitação de quarta a domingo. Se a chegada for de quarta em diante, a ordem dos olhares não altera o encantamento. E nem tente estabelecer comparações, pois são belezas e experiências distintas. Quem viaja na companhia de crianças e idosos certamente terá maior facilidade em visitar o Cânion Itaimbezinho, no Parque Nacional Aparados da Serra, onde todo o trajeto é quase plano e pavimentado. Com seus 720 metros de altitude, o local é uma bela fenda com rios correndo ao fundo e incontáveis cachoeiras vistas de cima, a partir de diversos mirantes. O Cânion Fortaleza, mais alto, com seus 1.190 metros de altitude, exige um pouco mais de fôlego, pois os veículos devem ficar estacionados logo na entrada do parque. Uma vez na região, esqueça o relógio. Ou melhor, lembre-se dele apenas para despertar cedo e depois se entregue aos encontros e surpresas. Como os parques abrem às 8h, é importante se programar para chegar à portaria um pouco antes. Além de evitar filas, você poderá curtir o visual com maior tranquilidade, com a indescritível sensação de um espetáculo exclusivo. Não é fácil despertar com o friozinho (mesmo em pleno verão), mas vale a pena. Agasalhe-se, leve água e filtro solar
VIAGEM
Banca com produtos típicos da região
e encomende seu sanduíche na única padaria da cidade. O almoço pode esperar até o meio da tarde ou ser trocado por um jantar em alguns dos restaurantes de comida gaúcha ou italiana. Outro convite ao paladar são os vinhos da região para relaxar antes de um novo dia de caminhada. Já pelo lado catarinense, partindo de Florianópolis, o ponto estratégico para hospedagem é Urubici, a 171 quilômetros da capital, pela BR-282. Dali se pode visitar as cidades mais frias do país, com direito a neve no inverno, como São Joaquim e Bom Retiro. E a melhor época é justamente o inverno, para poder não só tocar a neve como conhecer festas e festivais dedicados ao pinhão, um dos orgulhos mais saborosos da região. Nessas andanças, é possível ainda conhecer um pouco mais da cultura sulista. Afinal, ser gaúcho pode ser muito mais que nascer no estado do Rio Grande do Sul. É compartilhar traços na música, na culinária, nos costumes muito bem delimitados pelo clima e relevo. Assim, apesar das diferenças e algumas rivalidades, os gaúchos e catarinenses das serras em muito lembram os “gauchos” uruguaios e argentinos com suas capas, mate quente, a boa comida e as notas que tiram de seus violões e acordeons. Uma vez visitada a região, esses acordes têm o poder de sempre nos levar novamente pela memória às serras e aos cânions, como num embarque ao voo dos andorinhões que brincam e abusam da liberdade entre os paredões.
Cânion Itaimbezinho, no Parque Nacional dos Aparados da Serra
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CURTA ESSA DICA
Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Gilberto Gil (dir.) canta com Os Mutantes
Alerta!
O planeta foi invadido por seres perigosíssimos, feitos de ferro e aço e quatro rodas! Eles podem ser de muitas cores, têm bancos confortáveis, música, a r-condicionado e, atenção, causam dependência. No livro infantil A Grande Invasão (Panda Books, 28 pág.), de Isabel Minhós Martins e ilustrado por Bernardo Carvalho, os carros têm um só plano: povoar a Terra e acabar com ela. R$ 23,90.
Superbacana A liberdade de expressão era limitada, mas a criatividade, não. Entre 1967 e 1968, as estruturas da música popular brasileira foram abala-
das por um furacão que misturava as tradições populares com arranjos vanguardistas. O documentário Tropicália, dirigido por Marcelo Machado, é embalado pelas canções daquele período e costurado com depoimentos reveladores e imagens raras de arquivos, como o show em que Caetano Veloso, já no exílio, cantou Shoot me Dead, acompanhado por Antonio Bivar no pandeiro, no Festival da Ilha de Wight (Inglaterra). Depois de cinco anos de pesquisa, o documentário passou pelos cinemas e saiu em DVD.
ÓLEO SOBRE TELA/COLEÇÃO MASP
Mestres na casa de Oscar
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Cinco Moças de Guaratinguetá, 1930. Di Cavalcanti
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O Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, abriu em dezembro a exposição Di Cavalcanti, Brasil e Modernismo, com 80 obras do modernista, entre telas desenhos e aquarelas. O curador, Olívio Tavares, garimpou os trabalhos mais importantes de Di Cavalcanti em acervos museológicos do Brasil e em coleções particulares. A mostra fica em cartaz até 17 de fevereiro na sala 1 do MON. Na sala 7, a exposição Degas: Poesia Geral da Ação exibe 73 esculturas do artista impressionista francês, Edgar Degas, até 24 de fevereiro. Pertencentes ao acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), as peças são fundidas em bronze e revelam características marcantes da produção de Degas: seu fascínio pelo movimento. A clássica Bailarina de 14 Anos faz parte da mostra, que tem curadoria de Teixeira Coelho. Outro mestre que visita a “casa” de Niemeyer em Curitiba é Paulo Leminski. O espaço Olho do MON terá nichos ambientados nas áreas em que o poeta
FOTOS EVANDRO TEIXEIRA
Brasis de Evandro
Em Copacabana, no Rio de Janeiro, Evandro Teixeira expõe 16 fotos em branco e preto que põem em evidência o contraste entre a alegria e descontração da bossa nova e a tensão provocada pela ditadura na década de 1960. Tempos de Chumbo, Tempo de Bossa apresenta fotos da visita da rainha Elizabeth, a exuberância de Helô Pinheiro, a garota de Ipanema, e protestos contra a ditadura. Teixeira é autor da famosa foto da Passeata dos 100 mil, na Cinelândia, com a faixa ˝Abaixo a ditadura – povo no poder˝, tema da seção Retrato da edição de maio de 2008 da RdB (http://bit.ly/rdb_evandro_teixeira). A exposição pode ser conferida até fevereiro na Galeria Tempo, na Avenida Atlântica, 1.782, loja E, de terça a sábado, das 11h às 19h. Grátis.
Bailarinas de Degas
Viagem poética aos Pampas COLEÇÃO MASP/FOTOS DE JOÃO MUSA
atuava: música, tradução, cinema, grafite, quadrinhos, além, é claro, de poesia. Múltiplo Leminski, a maior exposição já realizada sobre o porta-voz da poesia concreta, pode ser vista até 31 de março. O MON abre de terça a domingo, das 10h às 18h, e nas primeiras quintas-feiras do mês, das 10h às 20h. Rua Marechal Hermes, 999, no Centro Cívico de Curitiba. R$ 4 e R$ 2, grátis no primeiro domingo de cada mês.
Fabrício Carpinejar viajou pelo Rio Grande do Sul durante um ano à procura de histórias e personagens inusitados. O autor cruzou com as culturas italiana, alemã, suíça, japonesa, africana, polonesa, açoriana e indígena em 52 cidades. Seu objetivo era escrever a série de reportagens Beleza Interior – Uma Viagem Poética pelo Rio Grande do Sul (Arquipélago Editorial, 240 pág.), originalmente publicada no jornal Zero Hora. O olhar lírico de Carpinejar enxerga histórias como as do alemão mais feio do mundo, do empalhador de cachorros e do vendedor que pagou a universidade de seis filhos vendendo rapadura. Inclui um caderno de fotos. R$ 34,90. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2013
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MOUZAR BENEDITO
Panchos y panchitos
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onge de mim admitir a exploração do trabalho de crianças, ao contrário. Acho que quem, por exemplo, escraviza crianças – e adultos também – em carvoarias é um criminoso da pior espécie. Mas acho também que há alguns exageros que dão em efeitos colaterais ruins. Tem gente que considera exploração de mão de obra infantil até na ajuda que pais pedem aos filhos para pequenas tarefas. Recentemente um amigo que precisava de uma auxiliar numa revistaria não pôde dar o emprego a uma mocinha necessitada porque ela não tinha completado 16 anos. Era contra a lei empregar a menina. E ela, sem o emprego, na miséria. Isso me faz lembrar uma viagem que fiz certa vez ao Paraguai. Na década de 1980, minha namorada e eu resolvemos passar uns dias de férias no país vizinho e aproveitar para conhecer algumas ruínas das missões jesuíticas. Saí daqui brincando, dizendo que ia conhecer o Brasil do futuro. O Paraguai, porém, não sustentava a piada. Tinha corrupção, violência e bandidagem, sim. Inclusive no governo, ainda do general Stroessner, e entre os militares e a polícia. Mas me espantei com a honestidade do povo paraguaio. Podia-se andar na capital Assunção até de madrugada sem medo de assaltos. Um dia, andando por um bairro de classe média, reparei que todas as casas tinham quintais grandes, com mangueiras, e não eram cercadas por muros. Havia apenas pequenas muretas, de menos de um metro de altura, separando os jardins das calçadas. Em cima de algumas muretas vi muitas mangas enfileiradas. Era um hábito colher as mangas que caíam de maduras durante a madrugada, a família ficar só com as que consumiria no dia e
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JANEIRO 2013 REVISTA DO BRASIL
colocar as restantes para quem quisesse. E vi muita gente com feições indígenas passar por ali e pegar apenas uma manga. “É civilização demais!”, pensei. Crianças na rua? Tinha, sim, mas vendendo jornais, tererê (um espécie de chimarrão frio), saltenhas e doces, e não cheirando cola, roubando ou pedindo dinheiro. Eu comprava jornais dos meninos. Havia dois diários: um que custava 200 guaranis e outro 100. Preferia o de 200. Um dia, distraído, peguei um jornal de 100 guaranis, dei uma nota de 200 e saí andando. O menino veio correndo atrás de mim me dar o troco. Comecei a dar dinheiro a mais de propósito, em várias situações, e sempre me devolveram o excedente. Crianças trabalhando honestamente... Bom, lembro-me do dia em que chegamos a Assunção, um domingo à tarde. Fomos tomar uma caña e uma cerveja num bar ao ar livre, com vista para o Rio Paraguai lá embaixo. Bonito. Para acompanhar a bebida, precisávamos de um tira-gosto. Na parede, havia propaganda dos “panchos” daquele bar, e queríamos saber o que era. Chamei o garçom, um menino ainda: — Que és pancho? – perguntei. Ele pensou, pensou, e respondeu: — És como um panchito, pero muuuuy grande. — Y como és un panchito? Ele coçou a cabeça e disse, saindo rápido: — Bueno... És muuuuy difícil explicar! Ficamos curiosos, esperando que alguém pedisse pancho para ver o que era. E finalmente um casal ao lado pediu dois. Vieram dois cachorros-quentes. Só que grandes, muuuuy grandes. Muuuuy difícil explicar!
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