Revista do Brasil nº 080

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TRAGÉDIA ANUNCIADA Em Duque de Caxias, um repeteco do descaso nacional

DANIEL MUNDURUKU O pensamento transformador do índio doutor e escritor

nº 80 fevereiro/2013 www.redebrasilatual.com.br

A Caravana da Cidadania passa por Medina, MG

A CARAVANA DA MUDANÇA

Há 20 anos, a peregrinação de Lula, ao lado de especialistas apaixonados, esboçou ideias que mudariam a vida de milhões e conquistariam o respeito do mundo



ÍNDICE

EDITORIAL

6. Na Rede

Unaí: nove anos depois do crime, julgamento ainda não tem data

12. Esporte

Na contagem regressiva da Copa, cidades tentam arrumar a casa

18. Ambiente

O medo das chuvas continua, mas muita dor poderia ser evitada

24. Capa

DIVULGAÇÃO/CEMIG

Há 20 anos, uma viagem de Lula descobriria um país desconhecido

30. Mundo

Davos: o contínuo esvaziamento do antigo pilar da nova ordem mundial

32. Entrevista

É fato que empresas de energia de governos tucanos não aderiram à diminuição das tarifas

36. Cultura

Os fatos de fato e os que se criam

40. Perfil

informação é matéria-prima do jornalismo, mas nas engrenagens de uma redação é longo o caminho até que um fato vire notícia. Às vezes, até não fatos podem virar destaque. Acontece todo dia, às vezes como acidente de trabalho, outras como instrumento de pressão. Recentemente, uma suposta reunião de emergência para discutir o setor de energia virou manchete de jornal. Depois, a crise anunciada quase desapareceu do noticiário. Também se divulgou uma fusão de vulto no setor financeiro, posteriormente desmentida com pedido de desculpas. Teria sido uma “falha interna de procedimento”. Assim também foi quando se falou que o ex-presidente Lula iria “voltar a andar” pelo país. Alguém disse que estavam de volta as caravanas da cidadania, organizadas nos anos 1990, inclusive com roteiro pronto. E começou-se especular sobre as intenções por trás de tal expedição. De fato, o ex-presidente vai viajar, retomar contato com as pessoas, mas não há caravanas sendo planejadas. Elas tiveram seu momento e têm importância do ponto de vista histórico, ao ajudar a despertar consciências para alguns dos graves problemas brasileiros. E podem ter servido como ponto de partida para a formulação de políticas públicas. Pode acontecer ainda de fatos se repetirem ano após ano, como as enchentes. O que deveria fazer com que pelo menos algumas dessas ocorrências fossem evitadas, ou tivessem menor impacto no cotidiano de tanta gente. No final de janeiro, o noticiário foi ocupado com a tragédia ocorrida em uma boate em Santa Maria, no interior gaúcho, em que mais de 200 pessoas morreram – grande parte jovens que mal começavam a conhecer a vida. Seguiu-se uma série de reportagens sobre os problemas que podem existir nas casas noturnas. De novo, se fala em arrumar a porteira depois da boiada passar. E se aproxima a Copa das Confederações, prévia do Mundial de 2014. Mais uma oportunidade para saber o que andam fazendo autoridades e cartolas nesse nem sempre bem jogado mundo da bola. Que a sociedade possa discutir mais fatos “de fato”, com diversidade de opinião, e menos fatos criados por quem tem lado bem definido na batalha da informação.

Daniel Munduruku fala do papel dos índios e do desprezo pela história O frevo é nosso, mas agora também é patrimônio da humanidade

A

Repressão, menores, Transamazônica: as várias lentes de Nair Benedicto

JOÃO MARCOS ROSA/NITRO

Teatro Amazonas

44. Viagem

Manaus: uma Babel no caminho da maior floresta do mundo

Seções Cartas 4 Lalo Leal

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Destaques do mês

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Mauro Santayana

10

Curta essa dica

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Conto: B.Kucinski

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REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Foto de Protásio Nene/AE Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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FEVEREIRO 2013 REVISTA DO BRASIL

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LALO LEAL

O jovem que a TV esconde

Para que o telespectador possa comparar os programas e escolher os que lhe interessam é fundamental que emissoras públicas e privadas estejam lado a lado, com apenas um ‘zap’ entre elas

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erca de 4 mil jovens circulam pelo campus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) na manhã de um sábado de verão. Festival de risos, músicas, mochilas e colchonetes. Estão ali para participar do 14º Coneb, o Conselho Nacional de Entidades de Base, da União Nacional de Estudantes (UNE). Havia gente que levou dois ou três dias para chegar a Recife, como os que saíram do interior do Amapá, usando barcos e ônibus como transporte. Durante três dias vão discutir os rumos da educação brasileira e, de quebra, a luta pela democratização da mídia. Nada mais pertinente e necessário. O próprio encontro é o melhor exemplo dessa necessidade, praticamente ignorado pelos grandes meios de comunicação. O número de participantes, os convidados presentes (autoridades públicas e especialistas) e os temas justificam a inclusão do encontro em qualquer cobertura jornalística séria. Não foi o que ocorreu. Abro dois grandes jornais de Pernambuco no domingo, e nada. Nos do Rio e São Paulo nem sombra do encontro. Televisões presentes só as públicas: TV Brasil e TV Pernambuco. Fato que ressalta a importância desses veículos na luta contra o bloqueio dos meios privados aos movimentos sociais, como o estudantil. Uma cobertura ao vivo no campus da UFPE poderia render ótimas histórias. Além do conteúdo dos debates, as vivências daqueles estudantes com diferentes sotaques mostrariam ao telespectador um jovem comprometido com seu

país, bem diferente dos que aparecem todos os dias nas novelas. Coincidindo com o evento da UNE, foi implemen tada a Empresa Pernambuco de Comunicação, gestora da TV pública local. Embora vinculada ao governo do estado, é gerida por um conselho autônomo que segue em linhas gerais os padrões adotados pela Empresa Brasil de Comunicação. São tentativas promissoras de tornar esses veículos mais públicos e menos estatais. No caso de Pernambuco o processo levou mais de três anos, num debate aberto com ampla participação da sociedade. A TV já existia, mas estava sucateada. Foi criada em 1984 e, durante os governos pós-ditadura de Miguel Arraes (1987-1990 e 1995-1999), tornou-se um importante veículo de informação e entretenimento. Abandonada na gestão Jarbas Vasconcelos (1999-2006), tem agora possibilidades de se reerguer. São passos importantes mas ainda preliminares para a constituição no país de um serviço público de rádio e televisão capaz de competir com a mídia comercial. Um dos obstáculos mais sérios, além de uma destinação constante e consistente de recursos, está na forma de o telespectador sintonizar essas emissoras. O espectro eletromagnético por onde trafegam as ondas de rádio e TV foi praticamente privatizado. Em Recife, a TV Pernambuco pode ser vista no canal 46 (UHF). Até o governo Jarbas era possível ver a emissora estatal em VHF, no canal 9, ao lado das grandes redes comerciais. Mas a concessão foi perdida e ocupada, rapidamente, pela Bandeirantes. O fato se repete em outros estados. Com a digitalização prevista para os próximos anos, o problema pode ser minimizado, mas não resolvido. As grandes redes comerciais continuarão a ser sintonizadas nos canais de números baixos (hoje vão do 2 ao 13), restando os mais longínquos para as redes públicas. Para que o telespectador possa comparar os programas e escolher os que lhe interessam é fundamental que públicas e privadas estejam lado a lado. Não são tantas as TVs comerciais para mostrar praticamente a mesma coisa? Então deveremos ter muitas públicas, para mostrar nossas múltiplas realidades. Só assim será possível cobrir ao vivo, com competência e detalhamento, um evento como o realizado em Recife pela UNE. Dessa forma, o estereótipo do jovem consumista e alienado será, no mínimo, relativizado. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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A “maré vermelha” em apoio a Chávez

À frente da capital paulista, o prefeito Fernando Haddad é apontado por seus colegas petistas da região metropolitana como um líder natural no debate sobre o desenvolvimento regional. Foi esse o tema de um encontro nos primeiros dias da nova gestão. A região metropolitana de São Paulo é formada por 39 municípios, nove dos quais administrados pelo PT. Posteriormente, Haddad se reuniu com o governador Geraldo Alckmin. Tucano e petista anunciaram parcerias em várias áreas, com participação da União. bit.ly/rba_haddad1 bit.ly/rba_haddad2

VALTER CAMPANATO/ABR

Precisa trabalhar mais

Para o ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves, o fator previdenciário prejudica o trabalhador porque os brasileiros se aposentam “prematuramente”, uma situação que ele considera injusta. “A pessoa se aposenta tão precocemente que se vê tolhida em sua aposentadoria”, afirmou, em entrevista à Rede Brasil Atual. Segundo ele, a média é de 53 anos. Ele se manifestou favoravelmente à fórmula 95/105. As centrais sindicais defendem a 85/95, números que se referem à soma da idade com o tempo de contribuição (85 para mulheres e 95 para homens). http://bit.ly/rba_garibaldi 6

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CARLOS GARCIA RAWLINS/REUTERS

Todos por um

A não posse de Chávez

Talvez nunca antes uma não posse tenha mobilizado tanto população e governos mundo afora. O Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela avalizou o adiamento da posse de Hugo Chávez, que em 10 de janeiro iniciaria seu quarto mandato constitucional, mas permanecia em Cuba, recuperando-se de mais uma cirurgia. Líderes da oposição contestaram a decisão e falaram em “artimanha”, enquanto o governo defende a manutenção da estabilidade política no país. No dia da não posse, uma multidão foi às ruas manifestar solidariedade ao presidente. No Brasil, a presidenta Dilma Rousseff manifestou confiança na democracia do país vizinho. bit.ly/rba_chavez1, bit.ly/rba_chavez2, bit.ly/rba_chavez3

Frei Betto

Prêmio para o ‘grão’ A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) concedeu o prêmio José Martí ao escritor Frei Betto, que o dedicou aos movimentos sociais. “Creio que isso não é um mérito pessoal. É um mérito de todos os companheiros e companheiras com quem a gente atua. Sou um grão no meio desse cesto enorme”, afirmou o colunista da Rádio Brasil Atual. “Toda a minha vida militante tem sido de servir às comunidades. Só acredito em uma democracia que passe pelo comunitário.” bit.ly/rba_betto

ANTÔNIO MILENA/ABR

Fernando Haddad

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

FABIO ARANTES/ WWW.PREFEITURA.SP.GOV.BR

WWW.REDEBRASILATUAL.COM.BR


JOSÉ CRUZ/ABR

Cruzes fincadas na Fazenda Bocaina marcam o local onde três fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados

Ainda longe do fim Este ano, quando se completaram nove anos da chacina de Unaí, noroeste de Minas Gerais, parecia que finalmente o julgamento ia ser marcado. Em 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, a manifestação diante do Tribunal Regional Federal em Belo Horizonte serviria para comemorar, ao menos, o fato de os acusados serem julgados. Mas, apenas quatro dias antes, a juíza responsável pelo processo, da 9ª Vara Federal em Minas, decidiu declinar de sua competência e remeter os autos justamente para Unaí. Para os defensores do julgamento, um local que dificilmente garantirá a isenção necessária para um caso tão delicado. A decepção foi ainda maior justamente porque, ainda em janeiro, a Corregedoria Nacional de Justiça tinha obtido compromisso da juíza no sentido de marcar a data do julgamento – falava-se que o início seria em 22 de fevereiro. “Estamos convictos de que esse julgamento

já poderia ter acontecido há bastante tempo, em Belo Horizonte. É um retrocesso”, declarou a subprocuradora da República Raquel Dodge, coordenadora da Câmara Criminal do Ministério Público Federal. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o deputado Domingos Dutra comparou a decisão de marcar o júri para Unaí a “botar a galinha na boca da raposa”. Trata-se da cidade de Antério Mânica, acusado de mandante do crime, empresário do setor rural e prefeito por dois mandatos seguidos, o segundo encerrado em 31 de dezembro. O ex-ministro de Direitos Humanos Nilmário Miranda disse que a juíza “vai entrar para a história por não ter coragem de cumprir o seu papel”. Em 28 de janeiro de 2004, quatro servidores do Ministério do Trabalho e Emprego – três auditores fiscais e um motorista – foram mortos a tiros. bit.ly/rba_unai1, bit.ly/rba_unai2

DAVI MARCOS/OBSERVATÓRIO DE FAVELAS

Escola Popular na Maré

Aula inaugural da Espocc

Em 15 de janeiro, ocorreu a aula inaugural da Escola Popular de Comunicação Crítica (Espocc), no auditório do Observatório de Favelas, na comunidade da Maré, zona norte do Rio. O curso, com duração de um ano, integra o programa de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Divididos em duas turmas, 110 jovens vão estudar Publicidade com habilitação em Audiovisual e Cultura Digital. O trabalho de conclusão do curso será coletivo. “Todos vão trabalhar para uma campanha chamada Juventude Marcada para Viver, pela redução dos homicídios da juventude negra”, diz o coordenador da escola, Luís Henrique Nascimento. bit.ly/rba_mare REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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TVT

Divisor de águas para a

CULTURA

Em entrevista ao programa Seu Jornal, da TVT, Sérgio Mamberti afirma que o vale-cultura deve proporcionar acesso a produções e bens culturais para 18 milhões de trabalhadores

C

erca de 70% da população brasileira nunca foi a museus ou a centros culturais. E pouco mais de metade dos brasileiros nunca vai a cinemas. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o preço é o maior obstáculo. Mudar essa realidade é um dos objetivos do vale-cultura. O serviço a ser criado a partir do Ministério da Cultura, recentemente aprovado pelo Congresso e sancionado no final de 2012 pela presidenta Dilma Rousseff, institui um tíquete de R$ 50 que o trabalhador assalariado poderá consumir em atividades ou bens culturais, como livros. O projeto deve ser regulamentado até 26 de fevereiro e deve estar pronto para ser posto em prática até o mês de julho. O secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, o ator Sérgio Mamberti, disse em entrevista ao vivo ao Seu Jornal, da TVT, que a expectativa é proporcionar o acesso a atividades culturais a cerca de 18 milhões de trabalhadores. As empresas que aderirem ao programa terão isenção de 1% no Imposto de Renda e o usuário pagará R$ 5 ao mês pelo cartão com crédito de R$ 50. Segundo Mamberti, participam da elaboração do projeto vale-cultura o MinC, que conduz o processo, os ministérios do Trabalho e Emprego e da Fazenda, Casa Civil e integrantes da sociedade civil que atuam no setor, por meio de uma consulta pública. Leia a seguir alguns trechos da entrevista e assista à íntegra no site da emissora (bit.ky/tvt_cultura). Qual é o conceito que rege o vale-cultura?

Ele é apenas um dos pontos do Plano Nacional de Cultura, que tem o objetivo de garantir ao trabalhador acesso a bens e serviços culturais. Hoje a política 8

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de cultura do ministério vai nessa direção, e o valecultura, uma proposta do primeiro mandato do presidente Lula, é uma confirmação disso. Tínhamos a Lei Rouanet, que permitiu fomento à produção cultural. Agora o vale-cultura inverte um pouco essa lógica, será um investimento no direito do cidadão de consumir bens e serviços culturais. Como o vale-cultura vai movimentar a área?

Parte da população, com R$ 50 mensais, poderá ter um acesso que normalmente não teria, e certamente isso vai fazer com que a gente tenha preços diferenciados nas bilheterias de cinemas, teatros etc. Estive lendo nos jornais que companhias produtoras de teatro estão pensando em voltar a promover espetáculos de terça a domingo, uma vez que as empresas que aderirem ao vale-cultura para seus funcionários poderão fazer pacotes para preencher a terça, a quarta e a quinta, que normalmente não tinham agenda. É um momento muito especial. O MinC, nas gestões de Gilberto Gil, Juca Ferreira, Ana de Hollanda e agora de Marta Suplicy, vem trabalhando com a participação efetiva da sociedade. Já fizemos duas grandes conferências nacionais de cultura e hoje temos um plano nacional. A cultura começa a assumir realmente um papel estratégico na construção desse novo Brasil, na qual estamos empenhados. O vale-cultura é um divisor de águas?

Eu queria muito agradecer esta oportunidade de estar no Seu Jornal, porque aqui é a TV do trabalhador, e o vale-cultura é direcionado a ele. Então, a gente convida o trabalhador para dar uma passada pelo nosso site (www.minc.gov.br) e contribuir com sugestões. Acho que esse é o grande divisor de águas para o Brasil. Pela primeira vez a população vai ter


TVT

esse acesso através de um subsídio do governo e uma política pública vai incrementar não só a cadeia produtiva da área, a economia criativa, como também criar para o trabalhador uma nova perspectiva de ter seus direitos culturais ao seu alcance. E quanto aos chamados Pontos de Cultura, o que representam para a gestão da ministra Marta Suplicy?

Faz parte da lei a criação do Sistema Nacional de Informações de Indicadores Culturais, uma grande plataforma que está sendo instalada e vai permitir que a sociedade participe e contribua na construção desses novos dados, desses novos indicadores que estão agregando acervos, ou seja, é um momento de grande amadurecimento.

Os Pontos de Cultura sempre foram uma marca fundamental do ministério. Eles foram criados dentro do governo do ministro Gilberto Gil, na gestão do secretário Célio Turino. Foi uma revolução no ambiente cultural. Não só no Brasil. Os Pontos de Cultura se espalham pela América do Sul e por outros países que assimilaram essa ideia. É um processo muito rico. A meta do Plano Nacional de Cultura prevê que tenhamos 15 mil pontos em 2020 – hoje são 3 mil e tantos no Brasil. É um espaço de manifestação da cidadania muito importante, uma forma de o Estado subsidiar manifestações espontâneas da sociedade, e sempre muito criativas. É um projeto de difícil implantação, inclusive de se cumprirem parâmetros, mas pouco a pouco a gente tem procurado corrigir os erros que aparecem. Eu acho que nesses dois últimos anos viemos trabalhando no sentido inclusive de fazer um reajustamento, porque cresceu muito.

Mamberti: “O vale-cultura será um investimento no direito do cidadão de consumir bens e serviços culturais”

Como está o cumprimento do Plano Nacional de Cultura?

Está indo muito bem. Já temos 53 metas. Este ano já começaram a ser monitoradas. O próprio Congresso Nacional já se manifesta no sentido de acompanhar a execução dessas metas, que darão uma consistência institucional que a área da cultura nunca teve. A saúde tem, a educação tem, e nós da cultura não tínhamos isso. É um amadurecimento.

WILSON DIAS/ABR

Como sintonizar Canal 48 UHF (18h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

Rubem Braga e o poder

Sugestão aos responsáveis pelo ensino de nossa língua: adotem os textos do velho Braga. Eles fluem como as águas limpas de um riacho, e são subversivos contra a ordem do ódio, do ressentimento, do dinheiro

E

m 1990, Rubem Braga descobriu que estava com câncer. O presidente Collor confiscara todos os haveres bancários, incluídos os das cadernetas de poupança. Carlos Castello Branco – que não era amigo do cronista e havia feito uma cirurgia nos Estados Unidos, para livrar-se de mal semelhante – escreveu-lhe uma carta. Nela, com grande otimismo, aconselhava o autor de O Conde e o Passarinho a tratar-se no mesmo hospital em que se tratara, creio que em Houston. Rubem disse aos amigos comuns que iria a Houston, com prazer, desde que o governo liberasse as suas aplicações. Sua amiga Vera Brant acionou as excelentes relações em Brasília, para que o dinheiro 10

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de Rubem – não tão grande assim – lhe fosse entregue para a viagem e o tratamento, comunicou ao cronista as suas diligências e a confiança em que tudo seria resolvido logo. Rubem, segundo alguns amigos, começou a pensar na viagem, enquanto o tempo passava. Uma semana, duas semanas, um mês – e nada. As pessoas do governo, contatadas por Vera Brant, davam vagas informações do pleito, até que a brava mineira reclamou uma resposta clara: o Ministério da Fazenda – ou da Economia, não me lembro ao certo – informou que, se todos os que estivessem com câncer pedissem a liberação de seus haveres, o Plano Collor fracassaria. Vera então imaginou um ardil. Disse a Rubem que o dinheiro já estava libera-

do, mas dependia de meras providências burocráticas. Assim, ela e outros amigos iriam adiantar-lhe a importância necessária para a viagem, e ele, quando recebesse seu dinheiro, poderia devolvê-la. Rubem agradeceu muito, mas como homem honrado e orgulhoso, não aceitava. Percebera a manobra amiga da escritora, agradeceu, recusou com elegância e polidez. Não era um necessitado, só queria que lhe devolvessem as economias que fizera, e com as quais cuidaria da própria saúde. Entendia a solidariedade de Vera e seus amigos, mas era um homem soberbo. Quando percebeu que não havia outro jeito, tratou de se preparar para o pior. Com o dinheiro que reunira, de seus salários na televisão, Rubem foi a São Paulo­,


JOAQUIM NABUCO/AG. O GLOBO

MAURO SANTAYANA

onde funcionava o único crematório no Brasil, indagou pelo preço, preencheu o cheque. Quando lhe perguntaram onde se encontrava o corpo, apontou o próprio peito e disse que seriam informados na hora certa, mas descontassem o cheque logo. Voltou para o Rio, reuniu os amigos em seu apartamento, dois dias antes da morte, e falaram de tudo, dos ausentes, das mulheres amadas, daquele verão, com seu sol e suas chuvas.

Uma porca mal capada

Conheci Rubem em 1956, em Belo Horizonte, quando ele esteve na redação do Diário de Minas, para ver o jornalista Hermenegildo Chaves, de quem havia sido companheiro no Diário da Tarde no início dos anos 30. Rubem tinha então

43 anos e estava no auge de sua carreira. Sempre que eu ia ao Rio o visitava e, enquanto trabalhava com Chaves – que tinha o apelido de Monzeca –, era portador de cachaça e requeijão de Montes Claros que ele enviava ao amigo. Ao longo dos anos, sempre que nos encontrávamos, ele era muito amável e conversávamos invariavelmente sobre Minas e os mineiros. Lembro-me de sua irritação quando descobriu que um sósia visitava escolas do Rio e se apresentava com seu nome, sendo homenageado pelas professoras e pelos pequenos alunos. Vociferava contra o canalha, por enganar as crianças e as professoras ingênuas. Chegou mesmo a escrever uma crônica, denunciando que havia no Rio um sujeito que tinha o péssimo hábito de se passar por Rubem Braga. Não houve, em meu modesto juízo, quem melhor escrevesse em nossa língua portuguesa, nos dois lados do oceano. Seu texto fluía como as águas limpas de um riacho na montanha, contornando suavemente as rochas: sua profundidade se revelava, sem pudores e sem disfarces, na superfície. Era, embora muitos assim não o vissem, severo crítico da sociedade, já em seu tempo hipócrita e egoísta – embora muito menos do que hoje. Certo marido, alertado por delator anônimo, surpreendeu a mulher em companhia do amante – e matou os dois. No dia seguinte, a sua crônica se endereçou ao canalha responsável pela tragédia, chamando-lhe hiena e o cumprimentando pelo provável prazer diante dos mortos, dos filhos órfãos, das famílias atingidas. Poucos conseguiram mostrar a patologia do regime militar com a precisão de Rubem, ao compará-lo, em crônica, a “uma porca mal capada”. Os que conhecem o meio rural sabem que raramente a porca castrada com imperícia consegue sobreviver: sobre a ferida as moscas pousam suas larvas, a infecção se torna invencível e o animal agoniza lentamente – a menos que alguém o sacrifique. Vai, aqui, modesta sugestão aos responsáveis pelo ensino de nossa língua: adotem os textos do velho Braga no ensino fundamental. Não há, neles, nada de politicamente incorreto, posto que são, e

declaradamente, subversivos contra a ordem do ódio, as regras do ressentimento, o domínio do dinheiro. Aconselho, como obrigatório, talvez o mais sério de seus textos, em que, aparentemente sem assunto, narra tenaz acompanhamento do cronista à fugaz borboleta amarela (leia destaque nesta página) nas ruas centrais do Rio: alegre concessão da vida a si mesma, cumplicidade do homem e do inseto, partilhando a alegria de estarem vivos, sem destinos, sob o sol e o azul. Rubem foi um dos maiores nomes da literatura brasileira. Há quem o compare a Machado de Assis. Ao autor de Dom Casmurro – salvo em dois ou três contos, nos quais a ironia ainda era mais forte do que a compaixão – faltava solidariedade para com o sofrimento e não havia a alegria com a felicidade dos outros. Foram esses dois sentimentos que marcaram todos os textos de Rubem Braga. Texto originariamente publicado no Jornal do Brasil

A borboleta “Era uma borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei que fosse uma bruxa ou qualquer outro desses insetos que fazem vida urbana; mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela. Era na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; ela borboleteava junto ao mármore negro do Grande Ponto; depois desceu, passando em face das vitrinas de conservas e uísques; eu vinha na mesma direção; logo estávamos defronte da A.B.I. Entrou um instante no hall, entre duas colunas; seria um jornalista? – pensei com certo tédio.” Assim começa a crônica “A Borboleta Amarela”, publicada – em três pequenas partes, de 30 linhas cada uma – em 1952, no Correio da Manhã, no Rio. O texto daria também nome a um livro publicado pela primeira vez em 1955, reunindo crônicas escritas para o jornal. O centenário de nascimento do escritor foi completado em 12 de janeiro. Leia a íntegra no site: bit.ly/rba_borboleta REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE

Com estádios quase prontos, obras atrasadas e muitas incertezas, a Copa das Confederações, em junho, servirá de teste para o torneio de 2014

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Brasil está próximo de ter seu primeiro grande teste oficial para a Copa do Mundo de 2014. De 15 a 30 de junho, seis cidades, com seus estádios novos em folha, receberão oito seleções que disputarão a Copa das Confederações. O torneio começa em Brasília e termina no Rio de Janeiro. Enquanto o time de Felipão, de volta à seleção brasileira, começa a se preparar, fora de campo sobram dúvidas quanto às obras de infraestrutura. Na capital federal, onde Brasil e Japão se enfrentarão na partida de abertura, a previsão é de que o Estádio Nacional de Brasília, mais conhecido como Mané Garrincha, esteja finalizado em março. Segundo os organizadores, é uma das cidades com os preparativos mais avançados. O estádio – autossustentável em termos ambientais, como ressaltam – e outros quatro projetos de mobilidade urbana em execução totalizam orçamentos entre R$ 1,8 bilhão e R$ 2,2 bilhões. Sem contar obras para a ampliação do centro de convenções e investimentos da iniciativa privada na rede hoteleira, na capacitação de profissionais e no setor de serviços. 12

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Mas justamente o traçado e as curvas que chamam a atenção da capital desde o início são vistos, hoje, como dificuldades para a preparação da Copa: seu tombamento como cidade patrimônio da humanidade e os limites impostos, em consequência, aos projetos urbanísticos. O maior entrave é o novo setor hoteleiro, cujo plano de construção foi rejeitado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E depende, ainda, da aprovação de uma lei na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Como em outros lugares que receberão jogos da Copa, há ainda o temor de que o estádio vire um elefante branco após a competição. Embora tenha sido projetada para ser um espaço multiuso, a arena – com capacidade para 70 mil pessoas – pode vir a ser pouco usada depois do evento e não trazer o retorno econômico esperado, pelo fato de Brasília não ter, nem de longe, a mesma quantidade de jogos de futebol que outras cidades anfitriãs. O anúncio de que não haverá tempo para a construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), conforme previsto, lançou luzes sobre as demais obras de mobilidade urbana e serviu de alerta para que o cronômetro dos trabalhos caminhe num

ME/PORTAL DA COPA/TOMÁS FAQUINI/12/2012

Antes do jogo ritmo mais adiantado. A implementação do VLT, orçada em R$ 277 milhões, foi tirada da lista de projetos previstos para o mundial porque o governo do Distrito Federal não conseguiu contratar a obra a tempo para que fosse concluída até 2014, devido à anulação, pela Justiça, de uma das licitações por causa de irregularidades envolvendo governos anteriores – o que atrasou a realização de uma nova concorrência.

Contra o tempo

Em Fortaleza, a estrutura de concreto e ferro aparentes já não é mais vista na fachada do Castelão. Recém-batizado de Arena, o estádio agora reluz à distância, com sua fachada de vidro espelhado. Por dentro, nada mais lembra o antigo campo. No lugar da velha arquibancada de cimento, poltronas com encosto e um amplo espaço sem divisórias, com capacidade para receber até 63.900 visitantes,


ESPORTE

margeiam o gramado, que deixou de ser protegido por um fosso. Após dois anos de reforma, desde a demolição de parte do antigo estádio, o Castelão foi o primeiro palco da Copa a ser entregue, em festa com a presença da presidenta Dilma Rousseff, em 16 de dezembro. A beleza do estádio, porém, ainda é ofuscada por poeira, tapumes e barulho

de escavadeiras e tratores do lado de fora. No entorno, obras de mobilidade seguem em execução, longe do término. Os trabalhos começaram com atraso e agora há uma verdadeira corrida contra o tempo para que pelo menos as vias que dão acesso direto ao Castelão fiquem prontas até junho deste ano, às vésperas da Copa das Confederações – Brasil e México

ME/PORTAL DA COPA/10/2012

ME/PORTAL DA COPA/11/2012

DIFÍCIL Brasília terá sete jogos da Copa. Depois, o estádio Mané Garrincha pode virar um elefante branco. Várias obras de infraestrutura foram canceladas, como a do Veículo Leve sobre Trilhos, uma das principais promessas para aliviar o superlotado sistema de transporte

jogarão lá em 19 de junho. Isso inclui a construção de um túnel e a ampliação de uma avenida. A celeridade já vinha sendo usada como argumento, nas negociações políticas extracampo, para atrair jogos e seleções para a cidade. A capital cearense vai sediar seis partidas da Copa de 2014 e receberá a seleção brasileira logo na primeira REVISTA DO BRASIL

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ME/PORTAL DA COPA/11/2012

ME/PORTAL DA COPA/11/2012

ME/PORTAL DA COPA/GLAUBER QUEIROZ/12/2012

ESPORTE

CELERIDADE Fortaleza entregou sua arena, o Castelão, agora, o secretário especial da Copa tem de acompanhar as obras pela cidade

fase (no segundo jogo), com a possibilidade de repetir o feito nas oitavas ou nas quartas de final, dependendo do desempenho do Brasil. No quesito quantidade, Fortaleza perde apenas para Brasília e Rio de Janeiro, cada uma com sete jogos, e empata com Belo Horizonte, Salvador e São Paulo – fica à frente, por exemplo, de Porto Alegre e Recife. O atraso dos outros oito empreendimentos destinados à Copa, contudo, preocupa, já que ainda há desapropriações a serem feitas. “Certamente, tudo será feito agora para mudar esse quadro, pois é uma grande oportunidade que Fortaleza não 14

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pode perder”, diz o secretário especial da Copa do governo estadual, Ferruccio Feitosa. Com o término das obras do Castelão, ele passará a coordenar os demais projetos, inclusive acompanhando os de responsabilidade da prefeitura. Para Feitosa, só foi possível cumprir o prazo e o preço preestabelecidos para a obra do Castelão por dois fatores: o modelo do contrato, por parceria público-privada (PPP), e o acompanhamento sistemático de toda a construção. “Levei toda a equipe de servidores da secretaria para um contêiner na obra, para acompanhar todas as etapas.”

Ao todo, na matriz firmada com a Fifa, estão previstas em Fortaleza obras que somam R$ 1,579 bilhão. Um terço disso investido diretamente no estádio, R$ 518,6 milhões, valor que não sofreu reajuste ao longo da reforma. Grande parte do dinheiro é financiamento federal, R$ 761 milhões, mas há também investimento direto da União, de R$ 499 milhões, além de R$ 319,3 milhões de recursos locais, tanto do município como do estado. Tudo dependerá da ação do novo gestor da capital cearense, Roberto Cláudio (PSB), que se elegeu com o apoio do governador


ME/PORTAL DA COPA/ DAVID CAMPBELL/12/2012 ME/PORTAL DA COPA

INSEGURANÇA Em Salvador o estádio está quase pronto, mas na cidade apenas as obras do porto e do aeroporto seguem o cronograma. Além do atraso estrutural que toma conta de todos os aspectos dos preparativos para a Copa, a capital baiana enfrenta um sério problema de segurança pública

Cid Gomes (PSB), contra o candidato da prefeita Luizianne Lins (PT). “Roberto Cláudio já se comprometeu publicamente em entregar todas as obras da matriz de responsabilidade da Copa e assumiu um compromisso pessoal comigo de viabilizar tudo o quanto antes”, diz Feitosa. A execução das obras, com a aplicação dos recursos públicos e o encaminhamento das desapropriações, também tem sido acompanhada pelo Ministério Público Federal (MPF). Para o procurador da República Alessander Sales, é alto o risco de que sejam feridos princípios legais e direitos humanos para acelerar o que está atrasado. “Entregamos recomendações ao estado e ao município com mais de um ano de antecedência para deixar claro que não vamos aceitar dispensa de licitação, reajustes indevidos dessas obras nem qualquer outro desvio de

conduta para viabilizá-las. Não é aceitável que se diga agora que não há tempo de fazer tudo de acordo com a lei. Havia”, afirma.

Carnaval

Em Salvador, a organização do evento enfrenta um histórico de atraso estrutural em diversos aspectos, do transporte público à falta de mão de obra qualificada. Para tentar contornar esses problemas, o grupo que organiza o megaevento conta com a experiência da cidade em realizar outros encontros de massa, especialmente o carnaval. A capital baiana tem uma das obras de arena de jogos mais avançadas, mas intervenções de mobilidade urbana são quase inexistentes e desanimam cada vez mais os moradores, ansiosos por aproveitar as vantagens que o torneio poderia proporcionar.

A um ano e meio da Copa, apenas duas obras de mobilidade urbana e infraestrutura estão ativas em Salvador: a do Aeroporto Internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães e a reforma do porto. Houve promessas de conclusão da primeira etapa do metrô e de construção de um novo trecho que atravessaria toda a Avenida Paralela em direção ao aeroporto. Mas já se sabe que, ainda que a obra comece nos próximos meses, não terminaria antes do evento. Outra esperança que a população acalentava era de que toda a verba anunciada para investimentos na competição fosse utilizada pelo governo para promover uma grande reforma nos centros históricos da cidade, mas isso ainda não ocorreu. Com boa parte de suas belezas seculares relegada ao semiabandono, aumentam nessas regiões as taxas de criminalidade, e o número de turistas cai. O Pelourinho tornou-se local de frequência desaconselhado por guias e moradores. Salvador também lida com um problema recente e crescente relativo à violência urbana. De janeiro a outubro de 2012, registrou 1.532 assassinatos, 32,41% acima de São Paulo. A cidade tenta compensar a frustração dos soteropolitanos valendo-se da tradição na organização do carnaval, que recebe centenas de milhares de turistas de todo o Brasil e do mundo. De acordo com os organizadores da Copa na capital, dificuldades como mobilidade e REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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hospedagem de fãs do esporte não serão problema, uma vez que anualmente há a chegada de um contingente humano considerável. A cidade espera receber na época da Copa do Mundo 70 mil turistas estrangeiros e 630 mil que virão de diversas partes do Brasil, incluindo o interior do estado. O período do Mundial também coincidirá com o da festa de São João, o que fará com que as demandas turísticas aumentem ainda mais. Em 2012, o carnaval de Salvador atraiu, segundo números do governo, 500 mil turistas em uma semana de festa. Esse público provocou uma lotação de 94% nos hotéis. A Fonte Nova, além de obras em nível de execução adiantado, tem custo intermediário na comparação com as demais arenas. As obras intensas foram paralisadas poucas vezes, facilitaram o trabalho e garantiram a classificação da sede para a participação na Copa das Confederações. Não foi possível, porém, terminá-lo até o final de janeiro, como queria a Fifa. A reinauguração será em março, possivelmente com um duelo entre Bahia e Vitória.

Dinheiro público

No sul do país, Curitiba vê avançar relativamente bem as principais obras projetadas. De acordo com acompanhamento feito pelo site Portal 2014, das nove principais intervenções acompanhadas, oito estão com avaliação positiva. A principal delas, a reforma da Arena da Baixada, está 55% concluída, com previsão de entrega até agosto. A cidade não está no roteiro da Copa das Confederações. Se a execução do projeto caminha bem, não se pode dizer o mesmo em relação a seu financiamento. Embora seja propriedade privada, a obra é bancada em boa parte pelos cofres públicos. Orçada em cerca de R$ 200 milhões, a reforma contou com financiamento do BNDES feito ao governo do estado e repassado ao Clube Atlético Paranaense. Para a garantia dos empréstimos, a prefeitura emitiu títulos de potencial construtivo, mecanismo que permite a uma construtora adquirir o direito de erguer um edifício mais alto e com maior área do que o tole16

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ESPORTE

CONFLITO O problema de Curitiba é o modelo de financiamento adotado para a execução da reforma da Arena da Baixada: o estádio é privado, o dinheiro, público

rado pelo zoneamento. Em troca, repassa dinheiro a uma obra de interesse público – como a restauração de prédios históricos ou de valor cultural e social ou a preservação de uma área verde. Para o secretário especial para Assuntos da Copa, Mario Celso Cunha, a preocupação do estado não está voltada para o gasto, mas para quanto será captado em investimentos e no legado deixado à cidade e ao Paraná. Ele calcula a captação de R$ 2 bilhões em áreas como mobilidade urbana, por meio de projetos financiados inclusive pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, por investimentos da Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel), pela qualificação da mão de obra e por incrementos no setor de turismo. “Teremos ainda avanços em segurança, saúde e qualificação profissional, entre outros setores”, afirma. A professora Olga Firkowski, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Observatório das Metrópoles, que edita o boletim Copa em Discu$S/Ao, não é tão otimista. Para ela, em Curitiba vive-se uma situação particular, porque, com exceção da reforma da Arena da Baixada e da construção de uma ponte estaiada no corredor que levará do aeroporto ao

centro da cidade, todos os outros projetos já existiam. Sobre as duas novidades, ela vê problemas em usar dinheiro público para reformar um estádio privado e na construção dessa ponte, que custará cerca de R$ 95 milhões com a finalidade de criar um “símbolo” para a cidade. ”É necessária a construção de uma ponte, mas a opção­por uma estaiada é mais um apelo de marketing, porque é mais cara e utiliza tecnologia importada, italiana”, afirma. José Ricardo Vargas, também professor da UFPR e consultor da Ambiens Sociedade Cooperativa, que participa do Comitê Popular da Copa do Mundo de 2014 em Curitiba, reforça a crítica em relação à utilização dos títulos de potencial construtivo para a reforma do estádio, já que o mecanismo está em desacordo com o que prevê a legislação, cujo objetivo é financiar habitação social, equipamentos comunitários (desde que haja doação do terreno por particulares) e a preservação de patrimônio cultural e ambiental. “A Copa do Mundo e outros megaeventos acabam sendo justificativas para projetos e atividades orientados pelo interesse do capital, que associam o interesse econômico com o interesse público por intermédio do projeto esportivo”, analisa. Em relação aos interesses econômi-


ME/PORTAL DA COPA/NITRO IMAGENS/11/2012

ME/PORTAL DA COPA/08/2012

ESPORTE

CONTRA O RELÓGIO O Mineirão está pronto. Agora, Belo Horizonte corre para concluir o corredor de ônibus, já que o projeto de ampliação do metrô foi abandonado

cos, a professora Olga Firkowski também lembra que na Copa ocorrerão problemas em relação a vendedores ambulantes. “Muita gente ganha a vida assim e imagina potencializar seus ganhos na Copa. Mas não ocorrerá isso. Na Copa da África do Sul, por exemplo, muitos camelôs acumularam produtos e foram impedidos de vender numa área de exclusão imposta pela Fifa no entorno do estádio”, diz. Destaca ainda que se um morador dessa região de exclusão estender em casa um banner de uma empresa que não seja parceira da Fifa estará infringindo a Lei Geral da Copa. E aí vem o dilema: quem vai fiscalizar, como serão punidos os in-

fratores? Na África do Sul foram criados tribunais sumários, numa clara afronta a normas legais. “A Fifa é uma empresa. E como o Estado irá se relacionar com essa empresa?”, questiona Olga. Belo Horizonte corre igualmente contra o tempo para não fazer feio no maior evento do futebol mundial. Apesar de o Mineirão, arena que hospedará os jogos da Fifa, já estar pronto, a cidade ainda encontra desafios na mobilidade urbana e na estrutura para atender os milhares de torcedores esperados. O evento que antecede 2014 será um teste para os belo-horizontinos. O secretário Extraordinário para a Copa do

Mundo de Minas Gerais (Secopa-MG), Tiago Lacerda, vê a Copa das Confederações como uma chance para avaliar as estratégias adotadas até aqui. “Será a oportunidade de aprimoramento. Não só para a cidade, mas para o comitê organizador local e para a Fifa, que também vai aprender a organizar uma Copa no Brasil”, afirma. Pelo cronograma dos organizadores, alguns pontos-chave dos preparativos não estarão prontos até junho. Se Belo Horizonte vai poder aprimorar suas estratégias para a Copa do Mundo, um desses testes vai ser na área da mobilidade urbana. A ampliação do metrô – promessa da década de 1970 para a cidade – mais uma vez saiu de campo e a aposta da prefeitura é a construção de linhas de BRT (sigla em inglês para Bus Rapid Transit) para a locomoção rápida de pessoas. O projeto já é reconhecido em outros países, como Alemanha e Colômbia, e também em cidades brasileiras como Curitiba e Uberlândia, no interior de Minas. Trata-se de um sistema de transporte público baseado em corredores exclusivos para ônibus com maior capacidade de passageiros. Para o professor Ronaldo Guimarães Gouvêa, coordenador do Núcleo de Transportes (Nucletrans), da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os belo-horizontinos perderam a oportunidade de deixar um legado maior com a Copa do Mundo. Para ele, o BRT será uma herança positiva, mas a cidade desperdiçou a chance de conquistar melhorias significativas na área da mobilidade urbana. “Nossa estrutura de transporte público é muito deficiente. Eu prefiro não estar em BH na Copa. Vai ser constrangedor”, enfatiza. Autor do gol inaugural no Mineirão, em 1965, o ex-jogador José Alberto Bougleaux, o Buglê, hoje com 77 anos, é mais otimista. “Basta focarmos como fazemos no futebol. O brasileiro, quando faz uma coisa séria, faz muito benfeito.”

Mais no site

Este texto resume uma série de reportagens de Celso Filho (Belo Horizonte), Frédi Vasconcelos (Curitiba), Hylda Cavalcanti (Brasília), Kamila Fernandes (Fortaleza) e Lucas Esteves (Salvador). Leia tudo em: bit.ly/rba_copa2104 REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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AMBIENTE

Dores evitáveis

Mesmo depois das ocorrências de anos anteriores, ações de prevenção custam a andar. Em Duque de Caxias, a oportunidade de se prevenir contra a tragédia, anunciada um ano antes, foi desprezada Por Maurício Thuswohl e Sarah Fernandes

M

aior cidade da Baixada Fluminense, Duque de Caxias aprendeu a conviver com o medo da chuva durante o verão. Logo nos primeiros dias de 2013, as fortes precipitações mais uma vez provocaram inundações e deslizamentos, sobretudo no distrito de Xerém, causando a morte de um homem e deixando 1.200 desalojados. O luto e o transtorno, no entanto, poderiam ter sido evitados se a prefeitura não tivesse ignorado um estudo que aponta a existência de 98 áreas de risco no município. Parte do Projeto de Cartografia de Riscos de Escorrega18

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mentos em Encostas nos Municípios no Estado do Rio de Janeiro, o estudo foi realizado pela empresa de consultoria geológica Regea a pedido do Departamento de Recursos Minerais do Estado (DRM-RJ).­E levado ao conhecimento do então prefeito José Camilo Zito dos Santos em abril de 2011. Nada foi feito. O prefeito recém-empossado, Alexandre Cardoso (PSB), em seu primeiro dia de governo conferiu à Defesa Civil Municipal status de Secretaria de Governo, nomeou como secretário o tenente-coronel bombeiro Marcello da Silva Costa e prometeu recursos para projetos de conscientização da população e prevenção de

desastres. A nova titular da Secretaria Municipal de Educação, Marluce Gomes, embora não se manifeste oficialmente sobre o tema, é, segundo pessoas próximas, favorável a que se dê amplo conhecimento aos estudantes e à população em geral sobre as áreas de risco em Duque de Caxias. Conforme denúncias de servidores, a prefeitura teria recomendado a não divulgação no Atlas Escolar de Duque de Caxias lançado no ano passado. O mapeamento das áreas de risco em todo o Rio de Janeiro foi iniciado pelo DRM em 2010 e identificou pontos vulneráveis em 67 cidades fluminenses, o que poria em risco cerca de 48 mil pes-


AMBIENTE

soas e quase 12 mil casas. O resultado desse levantamento, segundo o governo, foi levado ao imediato conhecimento das prefeituras de todos os municípios citados. O estudo sobre Duque de Caxias é detalhado e divide as áreas em três grupos de risco: alto, potencial e iminente. Fotos aéreas e de satélite compõem o documento, que identifica nominalmente todos os logradouros e casas ameaçados por deslizamentos. “Como resultado, foram mapeadas 98 áreas de risco no município. Dentro destas, foram mapeadas 608 moradias em risco e 2.680 pessoas vivendo nessas áreas de risco. Note-se que o relatório diz serem

DENÚNCIA Ronaldo Reis (de colete laranja): estudo detalhado sobre as áreas de risco em Duque de Caxias fora entregue ao vice-prefeito

estas áreas (objeto) de risco de deslizamento iminente. O relatório foi entregue pessoalmente ao vice-prefeito Jorge Amoreli por representante do estado do Rio de Janeiro na minha presença, pouco antes da minha saída do governo municipal”, afirma, em seu blog, o tenente-coronel Ronaldo Reis, ex-chefe da Defesa Civil de Duque de Caxias.

Vespeiro

EDMILSON MUNIZ/PREF. DE DUQUE DE CAXIAS

VLADIMIR PLATONOV/ABR/01/2013

VLADIMIR PLATONOV/ABR/01/2013

TÂNIA RÊGO/ABR/01/2013

TURBILHÃO Xerém, distrito de Duque de Caxias (RJ), 3 de janeiro

A denúncia é parte de uma reportagem exclusiva publicada pela Rede Brasil Atual em janeiro (leia íntegra no site: bit.ly/ rba_xerem). Em entrevista, Reis confirma que a exoneração foi uma resposta da

prefeitura à sua intenção de dar maior publicidade ao estudo sobre as áreas de risco em Duque de Caxias como forma de fortalecer um projeto para a modernização da Defesa Civil Municipal e compra de novos equipamentos: “Nossa tentativa na época foi exatamente melhorar a Defesa Civil no município. Como fui muito insistente nisso, acabei sendo exonerado pelo prefeito Zito”. O tenente-coronel acredita que mexeu em um vespeiro. “Fui exonerado porque, com base nesse estudo, quis tirar a Defesa Civil da Secretaria de Segurança Pública, à qual era subordinada, para que a gente pudesse ter acesso direto às verREVISTA DO BRASIL

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LUCIANO ZIMBRAO/RBA

bas federais­e fazer um melhor planejamento, já que o município enfrentava um problema agudo de falta de verbas”, diz. Reis lamenta a omissão: “Deixaram de fazer pequenas coisas que poderiam ser feitas. Inclusive, no final de 2011 houve uma audiência pública sobre as enchentes na Câmara Municipal, na qual a prefeitura – qualquer um pode ver no Youtube – se comprometeu a treinar a população e a fazer um sistema de alarme. Mas não passou de retórica. Se o governante não trata essa questão como prioridade, a coisa não acontece, e a prioridade da antiga gestão não era a Defesa Civil”. Em sua opinião, se o estudo tivesse sido levado em conta, a tragédia de Xerém teria sido evitada: “A importância da identificação das áreas de risco é que você tem condições de criar um sistema de alerta e alarme. As pessoas teriam condições de deixar as casas a tempo e de levar alguns pertences mais valiosos. Isso sem falar na perda de vidas. Mas isso, infelizmente, não foi feito na gestão passada”. 20

FEVEREIRO 2013 REVISTA DO BRASIL

WWW.RJ.GOV.BR

“NÃO DESISTE DE MIM” Marcelo Fonseca foi resgatado após 16 horas soterrado nos escombros dos deslizamentos de terra ocorridos em Teresópolis em 2011. De lá para cá, quase nada mudou. As obras de contenção (ao lado) seguem no ritmo da burocracia

Logo após as chuvas que castigaram Xerém, o prefeito Alexandre Cardoso anunciou verbas emergenciais de R$ 35 milhões para a reconstrução das casas, a recuperação das áreas atingidas e o pagamento de indenização social aos moradores. O acordo foi feito com o Ministério da Integração Nacional e facilitado pelo bom trânsito do prefeito com o ministro Fernando Bezerra, já que ambos integram a direção nacional do PSB. “A verba indenizatória, no entanto, não será suficiente para resolvermos esse problema. É preciso retirar as pessoas das áreas de risco para que novos desastres não aconteçam, mas isso é muito difícil”, diz Cardoso.

Dois aniversários

Essa dificuldade é apenas um dos vários tipos de obstáculo a políticas de prevenção que se antecipem a tantas perdas e danos e as evitem. Muitos municípios vitimados nos últimos anos aguardam, vulneráveis, o início de intervenções públicas. “Os dois maiores problemas relacionados a desastres naturais no Brasil são as inundações e os deslizamentos”, afirma o gerente de contenção de encostas do Ministério das Cidades, Tiago Galvão. O maior entrave para a realização de ações como essas é a falta de projetos, de acordo com ele. “O Brasil não tem essa cultura. Antigamente, como havia pouco


AMBIENTE

pneu furou durante a busca por sobreviventes. “Se não fosse isso ele ia passar por cima de mim. Eu gritei ‘não desiste de mim! Estou vivo!’, então me resgataram.” Foram 19 dias na UTI, 15 sessões de hemodiálise, uma costela quebrada e um músculo da perna esmagado, que o impede permanentemente de trabalhar e de praticar natação, escalar e pedalar, atividades que faziam parte de sua vida. “Pelo menos estou vivo. Eu acredito em milagres.”

Soma de tragédias

Com o intuito de financiar diagnósticos, projetos e obras, o Ministério das Cidades realizou duas seleções de municípios vulneráveis. A primeira, em 2011, possuía um orçamento de R$ 595 milhões e fechou 116 contratos com 75 cidades. Destes, apenas 40 eram para obras.

O atraso nas obras do município possui particularidades: o antigo prefeito, Jorge Mário (então filiado ao PT), foi afastado do cargo em agosto passado, suspeito de desviar recursos públicos liberados para a reconstrução da cidade. O vice, Roberto Pinto (PR), morreu dois dias depois de assumir, vítima de um enfarte. Assumiu o presidente da Câmara de Vereadores, Arlei de Oliveira Rosa (PMDB), oficialmente eleito para o cargo em outubro. “Tivemos a tragédia natural e a tragédia política. Lamentavelmente a gente só viu promessas”, afirma o vereador de Teresópolis Cláudio Mello (PT). “Depois de dois anos não foi levantado nenhum tijolo para unidades habitacionais. Parece que a tragédia aconteceu há uma semana... Temos ainda cerca de 50 mil pessoas vivendo em áreas de risco.” Com a demora, o município foi novamente castigado

WILSON DIAS/ABR/01/2011

DANIEL MARCUS/PREFEITURA DE NOVA FRIBURGO/09/2012

recurso e nenhuma expectativa de receber, os municípios não faziam projeto. E isso se perpetua.” Somam-se ao problema o despreparo para realizar licitações e a burocracia no processo de licenciamento ambiental e de titularidade para as obras de drenagem. Sem contar os casos em que esses obstáculos são agravados por omissão do poder público e ausência de projetos. Tudo isso tem um preço muito mais alto que a prevenção. O operário Marcelo Fonseca comemora seu aniversário duas vezes por ano: em 15 de janeiro, como consta de sua certidão de nascimento, e em 2 de janeiro, dia em que foi resgatado após 16 horas soterrado nos escombros dos deslizamentos de terra ocorridos em Teresópolis em 2011. Outras 1.000 pessoas não tiveram sua sorte e morreram no desastre, incluídos os de outros municípios da região serrana do Rio de Janeiro.

TRAGÉDIA NATURAL E TRAGÉDIA POLÍTICA Depois do arrastão das águas em 2011, Nova Friburgo fez apenas três obras de contenção

Ele estava hospedado na casa da irmã. “Acordei com o cachorro arranhando a porta. Fui ver o que era e não tinha luz. Quando abri a porta começou a entrar água na casa, eu não sabia o que estava acontecendo. Fui para o banheiro e não tinha água. Olhei para fora e não conseguia ver nada. De repente deu um relâmpago e com a claridade vi os muros dos vizinhos caindo. Corri para a janela e ouvi um estrondo. Gritei para o cachorro ‘corre, Luke’ e, quando cheguei na varanda, fui arremetido por um deslocamento de ar que me jogou no muro. Aí, tudo caiu”, conta. Marcelo foi salvo por um trator, cujo

A segunda seleção, feita em dezembro de 2012, contava com R$ 2,1 bilhões de orçamento e contratou 35 operações em 38 municípios. Novamente estavam na lista Petrópolis, Nova Friburgo e Teresópolis, que ainda tentam aplicar a verba referente à primeira seleção. “Infelizmente, nossos governantes não fizeram quase nada pela população de Teresópolis, que foi muito atingida”, lamenta Marcelo Fonseca. “Eles colocaram sirenes de emergência. Mas, muitas vezes, quando as pessoas vão para o abrigo ele está trancado. Isso causa uma sensação de impotência e medo. Elas ficam desesperadas.”

por chuvas em abril de 2012. Três pessoas morreram, entre elas um adolescente de 14 anos. Em Nova Friburgo o atraso se repete. De acordo com o secretário de Obras, Clauber Domingues, são aguardadas verbas do governo fluminense. “A prefeitura deve fazer o projeto, licitar e fiscalizar. Fizemos projeto, licitamos, mas até o momento não foi assinado o convênio com o governo do estado. Temos R$ 30 milhões para obras que ainda não chegaram.” Até agora, três obras de contenção de encostas foram concluídas, uma está em construção e outras três foram licitadas, REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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FEVEREIRO 2013 REVISTA DO BRASIL

MORRO ABAIXO Apesar das obras que sucederam ao susto de 2010, Angra dos Reis continua a contar com a sorte para que novas tragédias não voltem a atingir seus morros

WILSON DIAS/ABR/11/2008

de acordo com Domingues. “Temos de agir dentro de uma legalidade. Primeiro fazemos o levantamento topográfico, estimamos o custo e desenhamos o projeto, e aí se consegue licitar. Essas obras são de grande porte e não acontecem de uma hora para outra.” O secretário afirma ainda que está em andamento uma obra de “grande porte” para contenção da margem do Rio Bengalas, orçada em R$ 60 milhões, financiada pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em parceria com o estado. “Agora precisamos de outra para dar continuidade, orçada em R$ 200 milhões.” Em Petrópolis, alguma coisa começa a sair do papel: uma parceria entre União, estado e prefeitura tem garantido a construção de 144 apartamentos no distrito da Posse. Outras 13 casas estão em construção na comunidade quilombola de Tapera e mais 61 em um terreno doado por uma família da cidade, no bairro de Cuiabá, o mais atingido pelas enchentes. Ambas são financiadas com dinheiro de doações. “O que veio do governo federal para o cofre de Petrópolis foram­ R$ 7,5 milhões. A verba foi usada para ações emergenciais”, afirma o ex-prefeito Paulo Mustrangi. “Indicamos terrenos para o estado desapropriar e construir casas. Quando saiu o edital, o valor construtivo por unidade era R$ 55 mil. Na Baixada Fluminense, R$ 63 mil. Com o mercado imobiliário muito aquecido, nenhuma empreiteira se interessou”, diz o ex-prefeito, que negociou com a União um aumento no valor e alcançou o teto de R$ 63 mil. “Mesmo assim não conseguimos empreiteiras. Uma coisa é construir em Mesquita, Duque de Caxias e Nova Iguaçu. Outra coisa é construir em Petrópolis, que é uma região de serra, com muita pedra e muita encosta. O valor da construção é muito maior.” Mustrangi conta que a prefeitura, com auxílio estadual e federal, realizou a recuperação de pelo menos 140 encostas e fez cinco quilômetros de drenagem no bairro de Cuiabá. Além disso, afirma que está para ser concluído o alargamento da foz do Rio Santo Antônio. “São obras de médio e longo prazo, que não se resolvem em dois anos”, avalia. “Do anúncio da verba

ROOSEWELT PINHEIRO/ABR/01/2010

AMBIENTE

DINHEIRO PARADO A inundação foi em 2008, mas até agora Blumenau não mexeu nos mais de RS 14 milhões a que tem direito para realizar obras de prevenção

à execução há um percurso considerável, com uma série de entraves burocráticos.” Segundo o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), órgão responsável pelas ações de drenagem, novas obras em Nova Friburgo e Petrópolis já estão licitadas, em processo de homologação. Juntos, os municípios receberão R$ 258 milhões. As obras de Teresópolis já foram licitadas, no valor de R$ 161 milhões, mas a homologação não começou. “Iniciamos esses projetos

em 2011, logo depois da catástrofe, mas eles têm de ser aprovados pelo Ministério das Cidades, por meio da Caixa Econômica Federal, o que só ocorreu agora”, diz o diretor de obras do órgão, Iel Jordão.

Que o céu ajude

Casas desabando, ruas alagadas, falta de energia elétrica e veículos de comunicação fora do ar. Esse era o cenário de Blumenau em novembro de 2008,


FOTOS DIVULGAÇÃO/IPT/01/2010 E 08/2012

AMBIENTE

INESQUECÍVEL RÉVEILLON No primeiro dia de 2010, São Luiz do Paraitinga (SP) acordou inundada e com seu centro histórico parcialmente destruído. Em parceria com o IPT, a prefeitura realizou obras de contenção do rio

quando uma temporada de chuvas causou enchentes sem precedentes no município. Ao todo, 24 pessoas morreram e pelo menos 2.906 ficaram desabrigadas. O prefeito decretou estado de calamidade pública. Vulnerável por estar num vale, pelo solo sedimentar – que encharca e se move com facilidade – e pela ocupação de encostas, Blumenau permanece, há quatro anos, sem obras para impedir novas enchentes e deslizamentos. Os moradores continuam à mercê do clima. De 2008 para cá, o município concluiu um mapeamento das áreas de risco, em parceria com o Centro de Operação dos Sistemas de Alerta (Ceops), da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb). Nele, estão indicadas as regiões que precisam de obras para ser ocupadas e as muito vulneráveis, onde não é possível construir. “Blumenau tem uma carteira de R$ 1 milhão para projetos e R$ 13,8 milhões em obras, mas não começou ainda porque teve problemas com a licitação”, conta Tiago Galvão, do Ministério das Cidades. De acordo com o secretário de Defesa do Cidadão do município, Marcelo Schrubbe­, a licitação foi concluída e as obras devem ser iniciadas em maio. Inclui construção de muros de contenção, colchões de concreto para conter deslizamentos e instalação de tirantes nas encostas.

“Aprovamos um financiamento para elaborar 23 projetos de contenção, atualmente em licitação. Temos até o final do ano para montá-los”, conta Schrubbe. No entanto, o que há de mais avançado, como ele explica, é a instalação de um sistema de alerta para os moradores, que inclui monitoramento de 16 áreas de risco, com câmeras, pluviômetros e sirenes. O sistema prevê, inclusive, o envio de alertas por mensagens de celular. A expectativa é de que esteja implementado até o segundo semestre.

Obras inócuas

O Réveillon de 2010 foi inesquecível para os moradores de São Luiz do Paraitinga (SP): o rio subiu 15 metros. A água invadiu casarões históricos, o mercado municipal e o grupo escolar. A igreja matriz São Luiz de Tolosa, construída no século 19, desabou. Quatro mil pessoas ficaram sem casa e 5 mil tiveram de ir para abrigos da prefeitura ou casa de parentes e amigos. É muita gente, ainda mais para uma cidade de 11 mil habitantes. De lá para cá, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) realizou uma série de intervenções para impedir novos desastres, em parceria com a prefeitura e com financiamento do governo do estado. De acordo com o coordenador dos projetos, Marcelo Gramani, as ações incluíram retirada de pessoas de áreas de risco, obras de contenção de encostas e controle das

margens do Rio Paraitinga, além de um mapeamento das áreas de risco. Apesar disso, agora em janeiro o nível do rio subiu 3,8 metros acima do normal. Em alguns imóveis a água chegou a um metro de altura e 240 pessoas tiveram de ser deslocadas para abrigos. “As obras evitam enchentes menores, e esta foi uma intermediária”, conta Marcelo. “Nós nos aproximamos muito dos rios e das encostas. É importante pensar a ocupação das cidades de maneira diferente.” Angra dos Reis (RJ) vive situação parecida: o município foi selecionado em 2011, pelo Ministério das Cidades, para receber recursos destinados a ações de prevenção de deslizamentos. Também foram feitas parcerias com o estado para execução de obras de contenção de encostas, concentradas nos bairros de Bonfim, São Bento, Morro do Abel e Morro da Carioca. E há ainda projetos nos bairros de Santo Antônio, Morro do Carmo e Morro do Tatu. Mesmo assim, as chuvas de janeiro voltaram a assustar. Diversas áreas foram alagadas, casas inundadas, faltaram água e energia elétrica, parte do Hospital da Praia Brava ficou interditada e três pessoas tiveram escoriações. A prefeitura decretou estado de emergência. “Pegamos um governo com obras inacabadas”, conta o secretário de Obras, Jefferson Deccache. “Ficaremos em cima. Não podemos mais esperar.” REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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A caravana do repórter

LULA Viagem ao “Brasil real”, como foi chamada a primeira Caravana da Cidadania, lembra transformações que o país viveu principalmente na última década Por Vitor Nuzzi

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m anúncio feito no final de 2012 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de que iria “voltar a andar pelo país”, atiçou obviamente a imprensa e a oposição, que começaram a falar sobre o incerto. E trouxe à lembrança as peripécias da Caravana da Cidadania, cuja primeira edição completará 20 anos no próximo mês de abril – haveria uma segunda em setembro e outras nos anos seguintes, pelo Norte e pelo Sul, totalizando mais de 500 cidades. Lula descarta relação entre aquela caravana e as viagens que pretende fazer neste ano. Mas tanto naquele momento como agora há os comentaristas habituais identificando supostas intenções – e, de olho em 2014, tentando atingir o legado do ex-presidente.

Caetés Canudos

Recife

Canindé de São Francisco Feira de Santana

Vitória da Conquista Teófilo Otoni Governador Valadares Além Paraíba Aparecida Duque de Caxias

São Bernardo

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Guarujá

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FOME E ABANDONO A Primeira Caravana da Cidadania começou em 23 de abril de 1993, em Recife (PE), passou por 60 cidades, terminando no Guarujá (SP), em 12 de maio. Em Aguas Belas, Pernambuco (foto ao lado), Lula falou a uma multidão que se alimentava de palma, planta típica da caatinga, usada para alimentar o gado em estiagens prolongadas


CAPA PROTÁSIO NENE/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

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jornalista Ricardo Kotscho, ex-assessor de imprensa de Lula, contaria depois que mesmo internamente, no PT, houve resistência. Alguns disseram, com certa dose de razão: “Cidadania? O povo desses lugares por onde vocês vão passar nem sabe o que é isso”.

Combate à fome

O Brasil de 1993 tinha acabado de derrubar o presidente Fernando Collor de Mello, substituído pelo vice Itamar Franco. Idealizador do chamado governo paralelo, Lula apresentou a Itamar um plano de combate à fome. Apenas dois dias depois do fim da caravana, em 14 de maio, o governo lançou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, tendo à frente o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o bispo dom Mauro Morelli, da diocese de Duque de Caxias (RJ). Nos milhares de quilômetros percorridos pela trupe, não faltaram exemplos de que a pobreza deveria ser uma questão prioritária para qualquer governante. E a avaliação corrente é de que muito do que se aplicaria posteriormente, já no governo Lula, começou a ser esboçado naquela viagem. Passaram-se 20 anos, com dois períodos bem distintos: a primeira metade teve como grande marco a estabilização da

CENTRO SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA/FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

Durante 20 dias, de 23 de abril a 12 de maio de 1993, a trupe liderada por Lula percorreu 4.500 quilômetros, visitando quase 60 cidades em sete estados, mostrando um país pouco visto, pouco falado e muito maltratado. Não foi uma visita pelas capitais ou pela orla brasileira, mas pelos chamados grotões, lugares distantes do noticiário e da ação do Estado. Como cantou Milton Nascimento, “ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país”. Além de andar por onde ninguém queria ir, Lula inovou: em vez de discursar, ele entrevistava as pessoas, perguntava como elas viviam ali. Colecionou histórias dramáticas e alguns relatos pessoais, como o de uma senhora que revelou estar insatisfeita com o marido, que bebia muito. Deu bronca em um outro que contou, aos 41 anos, ter 12 filhos. E conversou com um senhor que a princípio ficou nervoso diante do “alto-falante” – como ele chamava o microfone –, mas depois não queria largá-lo. E disse a Lula: “O senhor me desculpe, mas nunca peguei no alto-falante, e agora eu vou falar!” O projeto original das caravanas é de 1989, mas saiu do papel apenas em 1993. O objetivo, segundo seus idealizadores: levar Lula ao encontro do Brasil real. O

O GEÓGRAFO E O METALÚRGICO Lula com o professor da USP Aziz Ab’Saber, estimulador da viagem pelo Brasil, que participou de algumas caravanas

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moeda, enquanto a segunda iniciou um processo gradual de redução da pobreza. Dos últimos dez anos, oito tiveram o próprio Lula como presidente, que fez sua sucessora, Dilma Rousseff. Ainda que continue sendo um país muito desigual, nesse período o Brasil tirou milhões de pessoas da linha da pobreza, estabeleceu novos padrões de consumo e reverteu a tendência de informalização do mercado de trabalho. Se a comparação for com 1993, o número de empregos formais no país mais que dobrou.

‘Cutucar o diabo’

Dois dias depois do plebiscito nacional sobre forma (república ou monarquia) e sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo), em 23 de abril de 1993 Lula desembarcou em Recife e fez uma declaração que de certa forma antecipou uma preocupação que se tornaria marca


PROTÁSIO NENE/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

de seu governo: “Quero colocar os famintos do país no cenário político. A fome deve ser assumida não só pelo governo, mas pelos que comem”. Sobre a caravana, manifestou incerteza. “Não sei o que vamos encontrar. O que sei é que vamos cutucar esse diabo com vara curta.” O trajeto iria reconstituir a trajetória do próprio Lula, que em 1952, aos 7 anos, saiu de Garanhuns com a mãe e sete irmãos, rumo a São Paulo. Durante 20 dias, dois ônibus – um com Lula e convidados, outro com jornalistas – percorreriam dezenas de municípios do Nordeste e do Sudeste, cortando estradas de terra que cruzavam localidades quase esquecidas, distantes do “desenvolvimento” e com dificuldades de comunicação – ainda não existiam celular nem internet, o que muitas vezes causava aflição. Em certo local da Bahia, por exemplo, Kotscho chegou ávido à recepção de um hotel perguntan-

do se ali havia jornais. A resposta foi singela: “Tem, mas é de outros dias”. Em 12 daqueles 20 dias, a caravana percorreu quatro estados do Nordeste, “a região semiárida mais povoada do mundo”, como lembrou o geógrafo Aziz Ab’Saber, um estimulador da viagem pelo Brasil e que morreu em março de 2012. Percorreria ainda a região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, uma das mais pobres do país, Rio de Janeiro e São Paulo. Uma das primeiras paradas no Brasil real foi em um acampamento no Sítio Poço Doce, em São Bento do Una, agreste pernambucano. Ali ficavam 25 famílias, tentando sobreviver, acordando de madrugada para andar seis quilômetros atrás de água. “Toda a produção que existe nesta terra é nossa. Esta área é totalmente abandonada, menos o roçado que a gente fez. A única vez que ele (proprietá-

ROÇA E SACRIFÍCIO Parada no acampamento onde viviam 25 famílias: seis quilômetros de caminhada para conseguir água

rio) apareceu aqui foi para nos intimidar”, relatou o representante do acampamento, José Maria da Silva. Para aquelas pessoas, não era incomum se alimentar de um peixinho chamado chupa-pedra. “É a descoberta de sobreviver por meio do que sobrevive na lama”, observou o professor Aziz, conforme anotou o jornalista e escritor Zuenir Ventura, que também andou uns dias por lá. No meio da conversa, um violão chega às mãos de Hilton Acioli – autor, em 1989, do jingle “Lula lá” e integrante do Trio Marayá, nos anos 1960. E ele canta a música-tema da caravana, Clareia: “Duvido que um homem queira tudo/ Quando tem quem não tem nada/ Desde que nasceu”. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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Coordenador da caravana, Francisco Rocha da Silva, o Rochinha, lembrou em entrevista à TVT que o objetivo era “ouvir o que as pessoas pensavam”. Ele chefiou a equipe que andou antes para mapear os locais. A viagem foi bem planejada, mas todo roteiro acaba tendo seus desvios. Em muitos lugares, a população bloqueava a estrada e fazia com que os ônibus desviassem para este ou aquele lugar. “Na grande maioria dos casos, a gente tinha de sair da trajetória”, disse Rochinha.

Faroeste sertanejo

O marco da caravana de 1993 foi, certamente, a passagem pela cidade de Canapi, no sertão de Alagoas. Local emble28

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mático, por ser a terra natal da família Malta, de Rosane Collor, primeira-dama até o ano anterior. Lugar de pistoleiros e de um certo faroeste. Em 1991, um dos irmãos de Rosane havia atirado contra o prefeito, e o bar onde a história aconteceu quase virou atração turística. Em agosto de 1992, Ricardo e seu irmão Ronaldo Kotscho, fotógrafo, foram a Canapi, a trabalho, e acabaram expulsos por um segurança dos Malta. “Era uma temeridade (ir a Canapi). Até eu dei um passo atrás. Mas o presidente Lula deixou muito claro que era uma das cidades em que ele fazia questão de passar”, recordou Rochinha. Passou, foi recebido por uma multidão, andou pelas ruas

e nada anormal aconteceu. Susto, com a visão do Centro Integrado de Atendimento à Criança (Ciac), uma obra luxuosa no meio da pobreza e sem funcionar – batizada por Zuenir Ventura como um “monumento à insensatez”. Ele descreveria assim o Ciac: “Construído num descampado, o visitante se aproxima dele – ou ele do visitante, não se sabe bem – como se fosse uma miragem, uma ilusão de ótica provocada pela inclemência do sol”. Atual secretário de Direitos Humanos do município de São Paulo, Rogério Sottili acompanhou o grupo que percorreu o país antes de Lula para mapear cada local, fazer contatos e identificar possíveis problemas. Ele lembra que a recomendação foi para


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não passar por Canapi. “Ninguém falou com a gente. Todo mundo andava armado”, recorda Sottili, que na época trabalhava na Secretaria Agrária do PT. Em sua primeira fase, o grupo precursor era formado por Sottili, a jornalista Cyntia Campos e três seguranças, também responsáveis pela logística. O diagnóstico era feito com movimentos sociais, sindicatos, associações, igrejas e, quando possível, prefeituras, além dos contatos com a imprensa local. As indicações que seriam usadas na caravana eram minuciosas – chegavam a apontar, por exemplo, que em determinado quilômetro de uma estrada havia um buraco. Em São Paulo, pessoas como Clara Ant e José Graziano preparavam relatórios detalhados com indicadores econômicos e sociais, entre outras informações. Clara é assessora de Lula até hoje. Graziano integraria o Programa Fome Zero, implementado no início do governo do petista, e em 2011 tornou-se o primeiro brasileiro a se tornar diretor-geral da FAO.

EXPECTATIVA Moradores aguardam a Caravana da Cidadania, às margens do Rio Jequitinhonha

PROTÁSIO NENE/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Achismo

Para José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão de Lula, a caravana representou um segundo retorno à terra de origem. Ele esteve lá no final de 1964, após cinco dias de viagem. Ficou 15, ganhou um jipe no bingo com um amigo, vendeu e, na volta a São Paulo, comprou sua primeira casa. Em 1993, constatou que muita coisa ainda não tinha mudado, com o po-

der local concentrado em determinadas famílias e regiões isoladas. Além disso, permanece o desconhecimento em relação à realidade do Norte/Nordeste. “Tem um monte de achismo”, diz Frei Chico. A ignorância também se dá em relação aos fatos históricos. Ele cita casos como o de Delmiro Gouveia, empresário precursor assassinado em 1917 que hoje dá nome a uma cidade no sertão de Alagoas, na divisa com Bahia, Pernambuco e Sergipe. Ou sobre a cidade baiana de Cachoeira, pioneira na luta pela independência do Brasil. Duas coisas, particularmente, impressionaram Frei Chico durante a viagem: a realidade dos trabalhadores do sisal, muitos deles mutilados, e a contaminação do Rio Jequitinhonha, em Minas Gerais, por mercúrio, usado na extração do ouro. “Acho que isso (preservação ambiental) é o grande drama brasileiro, a grande luta nossa no futuro”, afirma, acrescentando que é possível “crescer sem destruir”. Ele também guardou boas lembranças, como uma disputa de sanfoneiros no interior da Bahia, que lamenta não ter visto até o fim. Do ponto de vista político, Frei Chico percebeu a necessidade de buscar união mesmo com aqueles com outros pontos de vista, para começar a mudar o país – e a situação melhorou bastante de lá para cá. Com certeza, observa, “a caravana ajudou muito o Lula a formar a sua visão de Brasil”. Sottili reforça: “Acima de tudo, ele queria mostrar o país”.

Debate subterrâneo Duas décadas separam iniciativas semelhantes, o conselho de combate à fome instalado pelo presidente Itamar Franco por sugestão de Lula e uma parceria entre a Comissão da União Africana, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e o Instituto Lula, a fim de discutir soluções para o mesmo problema na África. Uma reunião com líderes locais e mundiais está prevista para o início de março, em

Adis Abeba, na Etiópia. Isso remete a um debate ainda subterrâneo, que já começou a ser feito pela imprensa, sobre as realizações do governo Lula. Este mês, o ex-ministro Luiz Dulci lança um livro justamente para analisar “as escolhas realizadas nos dois últimos mandatos presidenciais”. Muitas dessas opções eram discutidas no período da caravana: valorização do mercado interno, maior presença

do Estado como indutor da economia, incentivo ao desenvolvimento regional e prioridade ao social. “Estatisticamente, em 2011 o Brasil atingiu o menor nível de desigualdade de sua história”, declarou recentemente o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Neri. Ele lembra que a desigualdade brasileira ainda é uma das 15 maiores do mundo, mas observa: “Sem as políticas

redistributivas patrocinadas pelo Estado brasileiro, a desigualdade teria caído 36% menos na década”. Rogério Sottili não tem dúvida de que as diversas políticas públicas – como o Bolsa Família e o Luz para Todos – implementadas a partir do governo Lula tiveram como nascedouro as Caravanas da Cidadania, da qual ele foi precursor na primeira edição, em 1993. “O Estado chegou a esses lugares”, observa.

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TRABALHO MUNDO

VINCENT KESSLER/REUTERS

ENCONTRO EXPLOSIVO Cameron e Merkel: o futuro da União Europeia em xeque

Um fórum em busca de um eixo O prestígio de Davos despencou com a crise que solapou as bases de confiança no ideário neoliberal e a credibilidade de seus frequentadores Por Flávio Aguiar

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ão fosse pelo suspense provocado pelo discurso do primeiro-ministro britânico, James Cameron, que prometeu um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia para 2017 (caso seja reeleito em 2015), a 43ª edição do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, teria uma das aberturas mais frias de sua história, em 23 de janeiro. O maior suspense era o encontro inevitável entre ele e a chanceler Angela Merkel, da 30

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Alemanha, cujo ministro de Relações Exteriores criticara de modo veemente a posição de Cameron. Fora isso, a emoção e a repercussão do fórum eram mínimas. O Fórum foi fundado em 1971 pelo professor alemão radicado na Suíça Klaus Schwab, como Fórum de Gerenciamento Europeu (European Management Forum). Resumindo muito, pode-se dizer que o objetivo de Schwab era apresentar ao empresariado europeu os métodos de administração norte-americanos, considerados mais eficientes e abrangentes. A partir de

1987 ele passou a ser o Fórum Econômico Mundial e a contar com a presença sistemática e orgânica de representantes de governos e de instituições internacionais. Até o final do século 20, o Fórum de Davos, como ficou conhecido, atingiu o ápice de seu prestígio, devido a diferentes fatores. Governantes e políticos promoveram encontros históricos em seu âmbito, como Yasser Arafat e Shimon Peres, do Oriente Médio; Nelson Mandela e Frederik Willem de Klerk, da África do Sul. A queda dos regimes comunistas e a promoção dos ideais do neoliberalismo favoreceram a ilusão de que a nova ordenação da economia mundial podia ser organizada a partir de uma reunião de “iluminados” e “luminares”, entre empresários, políticos, administradores e governantes e representantes de agências internacionais. O povo, de fora. Idem qualquer forma de pensamento alternativo. Era a época consagradora do “pensamento único”. A ascensão da ideia de que no plano político internacional o mesmo poderia ocorrer no âmbito restrito dos “poderosos” do então G7, grupo das principais potências econômicas do planeta (Fran-


MUNDO

ça, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido, Estados Unidos e Canadá), que se tornou o G-8 com a adesão da Rússia, em 1997. Esse “círculo de confiança” foi abalado, primeiro, pelo nascimento do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2001, que contestou essa ordenação diretamente, junto com as manifestações de Seattle e Gênova, entre outras. O Fórum de Davos resolveu ampliar sua agenda em direção a uma pauta de caráter mais social. Por outro lado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou algumas vezes fazer a ponte, com sucesso relativo, entre ambos os fóruns. A queda de prestígio do Fórum de Davos se acentuou com a eclosão da crise econômico-financeira de 2007-2008, que solapou as bases de confiança de boa parte de seu ideário e a credibilidade de muitos de seus frequentadores. O mesmo se deu com o aprofundamento da crise na zona do euro, e na União Europeia como um todo, mais Estados Unidos e Japão. O prestígio do G-8 entrou igualmente

em parafuso descendente: dos seus oito membros, cinco viveram e estão vivendo ainda crises profundas, um consegue sobrenadar a duras penas graças a sua pauta de exportações (a Alemanha); o Canadá depende dos outros para mergulhar ou não na crise, a Rússia passou a atuar também em função de outras referências, como os Brics. Além disso, duas das oito maiores economias mundiais, Brasil e China, não estão formalmente representadas no grupo, e a partir de 2008 o G-20 passou a ser o fórum mundialmente mais importante para discussão da pauta econômica internacional. Dessa forma, tanto a moldura de apoio do Fórum de Davos como os alicerces do pensamento nele hegemônico entraram em crise, e sua perda de prestígio tornou-se inevitável, tanto no Brasil como em outros países. O ideário que alimentava Davos permanece ainda vivo e hegemônico na União Europeia, mas é contestado por economistas de peso (Paul Krugman e Jo-

seph Stiglitz, por exemplo) e pelo descontentamento crescente no continente. O tema sublinhado nesta 43ª edição era “resiliência”, ou seja, elasticidade, capacidade de recuperação. Um tema atraente, mas ao mesmo tempo revelador da situação das economias dos países que se veem ainda como carros-chefes do Ocidente: não só estão no estaleiro como os mecânicos não vêm dando conta do recado. Em contrapartida, deve-se registrar que também decaiu a repercussão do Fórum Social Mundial (FSM), cuja próxima edição vai se realizar no final de março em Túnis, na Tunísia. O FSM teve uma linha ascendente até sua edição de 2005, a última realizada em Porto Alegre. As edições subsequentes, embora ainda com muita participação, começaram a mostrar certa fadiga, provocada talvez pelas crescentes dissensões entre os que o veem apenas como um encontro para discussões e os que o desejavam como um impulsionador de ações políticas concretas.

Obama: planos ou planador? Enquanto o presidente dos Estados Unidos faz malabarismos para tentar aumentar os impostos sobre fortunas e aliviar a classe média, seu colega russo – presidente da pátria de Lênin e Trotsky – acolhe de braços abertos o ator fujão Gérard Depardieu, para protegê-lo da prometida “sobrecarga” de impostos que o colega francês de ambos quer impor aos abonados de seu país... Esse verdadeiro tricô de sinais controversos mostra a complexidade da questão. A curta hegemonia indiscutível neoliberal (do reinado de Margaret Thatcher à completa rendição dos social-democratas e socialistas na Europa, depois da queda do Muro de Berlim) deixou cicatrizes e sequelas indeléveis. De lá para cá a neo-ortodoxia vem deixando um rastro de destruição econômica somente comparável ao das grandes guerras, e juntando uma coleção de contestações cada vez mais evidentes, do Sudeste Asiáti-

co à América Latina, da crise russa à europeia, da falência do banco Lehman Brothers à manipulação da taxa Libor. Mas seus arautos na mídia e fora dela continuam impávidos na semeadura da ideia de que não há alternativa a seus credos fanáticos e superstições emboloradas. Entre esses e estas, reina a ideia de que dar mais dinheiro e poder aos mais ricos e às grandes corporações é investimento, enquanto oferecê-lo aos mais pobres é gasto público e demagogia barata, mas cara para o “contribuinte”, essa palavra elástica e fantasmagórica que abrange do pequeno funcionário público ao Barão de Rotschild. Ortodoxos de um lado e do outro do Atlântico vituperam contra as heresias governamentais de expansão das despesas, querendo cortar mais fundo. Nessa briga sobraram rebarbas – no plano internacional , sem falar no nacional – para a presidenta Dilma e o

ministro Mantega, acusados de ser “intervencionistas” antimercado, vampiros keynesianos que só poderiam ser neutralizados pela cruzada tucana em torno do cavaleiro Aécio Neves e seu escudeiro FHC. A conclusão sobre esse acendrado debate assume a forma de uma pergunta: afinal, o que fez o presidente Obama? Bem, de um lado, ele vem se mostrando mais disposto a enfrentar (ao contrário do primeiro mandato) a barulhada republicana, em vários sentidos, do acordo fiscal à mais recente nomeação dos secretários de Estado (John Kerry), da Defesa (Chuck Hagel) e do novo diretor da CIA (John Brennan). De outro, ficam as dúvidas sobre o que suas atitudes têm efetivamente plantado no cenário político norte-americano e internacional. Terá ele de fato posto em marcha um plano para desarticular a resistência ortodoxa dos republicanos e ultraorto-

doxa do Tea Party? Ou terá apenas colocado um capacete antichoque para tentar continuar sobrevoando o abismo em seu planador? A pergunta é séria demais para ser apenas divertida. Atitudes como a mencionada de Vladimir Putin – cujo neoczariato russo necessita de investidores internacionais de porte em sua guerra contra os oligarcas herdeiros das privatizações de Yeltsin e sua disputa de espaço com a nova classe média – mostram quão áspero é o caminho para a formulação de uma anti-hegemonia que enfrente no plano teórico e na práxis o culto ao mercado de capitais como fórum privilegiado para definir os destinos da humanidade. A falência do mercado é evidente; os alicerces de uma nova hegemonia não o são. Até aqui o semeador Obama não se mostrou o líder capaz de construí-los. Sua ação ainda está mais para planador do que para planejamento.

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ENTREVISTA

O progresso Para o escritor paraense Daniel Munduruku, autor de 42 livros, indígenas podem ajudar o país a despertar para os engodos do desenvolvimento capitalista e do consumismo Por Spensy Pimentel

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le não costuma aparecer nas listas de mais vendidos em jornais e revistas, mas é presença obrigatória nas bibliotecas infanto-juvenis. De forma discreta, mas contundente, foi a partir das crianças, o “coração” da nossa sociedade, que Daniel Munduruku e um grupo de escritores de vários povos, de norte a sul do país – como o guarani Olívio Jekupé, o maraguá Yaguarê Yamã e René Nambikuara –, traçaram sua estratégia para transformar a visão dos brasileiros a respeito dos indígenas do Brasil. Tudo indica que já começaram a ter sucesso. Daniel calcula que seus 42 livros, lançados por 14 editoras, já venderam 2 milhões de exemplares – muitos deles, como lembra, adquiridos pelo sistema público de ensino. São títulos como Meu Avô Apolinário, premiado pelas Nações Unidas, O Segredo da Chuva ou O Olho Bom do Menino, entre os mais conhecidos. Histórias de Índio, o primeiro da carreira, de 1996, já tem 17 edições. Hoje, segundo ele, a chamada literatura indígena brasileira tem mais de 40 escritores e cerca de 120 livros lançados. Nascido em Belém, em 1964, o escritor, cujos pais deixaram sua aldeia na região do Rio Tapajós nos anos 1950, estudou com os salesianos. Formado em Filosofia, mestre em Antropologia e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, Daniel atualmente reside em Lorena, no interior paulista , mas é figura constante em feiras do livro e outros eventos literários pelo Brasil. Na entrevista a seguir, à qual preferiu responder por escrito, nosso mais conhecido escritor indígena fala sobre sua obra e também sobre o país e as mudanças que têm atingido a Amazônia. Para ele, os brasileiros têm de superar a “ilusão do progresso”, e é nessa tarefa que os saberes dos povos indígenas podem colaborar de forma fundamental. 32

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Escritor, filósofo, doutor: sua trajetória reúne vários elementos que desafiam estereótipos sobre o que é ser indígena. Como você percebe a persistência desses preconceitos?

Há pessoas que dizem que sou um “índio que deu certo” por conta do caminho que faço dentro da sociedade. Não há maior falácia que essa afirmação. Ela está baseada no estereótipo e no preconceito. Eu sinto que, agora que o Brasil já não consegue ignorar a presença indígena, o preconceito começou a se requintar sob outros formatos, escondendo velhos chavões. Esse requinte tem feito muito mal para a identidade dos indígenas. Há um debate ideológico real, mas com a economia como pano de fundo. É uma reedição acerca da reforma agrária, só que desta vez as vítimas não são os sem-terra, mas os povos indígenas. Isso acontece graças aos avanços que o movimento indígena tem conseguido, a imersão na sociedade, a participação na vida política e a entrada de jovens nas universidades. Os novos latifundiários estão usando seu poder econômico para fazer prevalecer o preconceito contra os direitos constitucionais dos povos indígenas. O recente censo do IBGE mostra que quase 40% dos 897 mil indígenas no Brasil residem em centros urbanos. Você percebe, ainda, uma maior dificuldade dos brasileiros de compreender a experiência dos indígenas na cidade?

A consciência dos brasileiros foi forjada pela ilusão de progresso, desenvolvimento, crescimento a todo custo. Pouco se sabe sobre as consequências de invadir territórios ancestrais e deslocar pessoas, grupos, culturas. Cada vez menos pessoas conseguem fazer uma leitura crítica sobre esses fenômenos e se deixam levar por ilusões de riqueza e bem-estar. A maioria do povo brasileiro tem acreditado que sair


ENTREVISTA

e as ilusões

JONAS BARBETTA/NETNEWS.COM SOLUÇÕES

Os indígenas não criam conceitos para definir a existência. Aprendem desde cedo a agir para tornar a vida melhor. Caçar, pescar, tecer, colher, por exemplo. Contar e ouvir histórias, brincar, cantar, ritualizar ações alimenta o espírito. Para isso não precisam criar tantas necessidades materiais e menos ainda inventar teorias sobre o sentido da vida. É simples assim

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ENTREVISTA

A presença missionária em terra indígena é uma afronta ao caráter laico do Brasil. Deixar as instituições religiosas operando em terra indígena é entregar esses povos ao extermínio cultural

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da miséria é poder comprar bens moveis ou imóveis. Uma consequência dessa mentalidade é desprezar a história e olhar para o próprio umbigo. Outra é não ser capaz de olhar para o que está acontecendo ao nosso redor e perceber que há uma revolução social sendo gestada, porque o capitalismo não nos permite olhar para os lados. É assim que percebo o fenômeno da urbanização das aldeias. Afora o fato de muitos indígenas estarem sendo jogados para fora de suas terras tradicionais, muitos que estão na cidade percebem que chegou a hora de alertar a sociedade brasileira para o engodo em que está caindo. Estar na cidade não é uma “traição” da cultura ancestral. Ao contrário, é oferecer a possibilidade de o Brasil olhar sua realidade sob um prisma diferenciado. É possível ser indígena vivendo no mundo urbano. É possível ser urbano vivendo numa aldeia indígena. A questão não é de local. É uma questão interna. É possível falar em uma “filosofia indígena”, uma forma indígena de encarar o mundo?

Costumo repetir que o “índio” não filosofa, vive o que acredita. Quando isso acontece fatalmente ele se compromete com o momento presente. Os indígenas não criam conceitos para definir a existência, pois aprendem, desde cedo, que é preciso agir no sentido de tornar a vida mais tranquila e pacífica. Caçar, pescar, tecer, colher, entre outras ações, são formas de tornar a vida melhor. Contar e ouvir histórias, brincar, cantar, ritualizar as ações, são formas de alimentar o espírito. Para chegar a isso não é preciso criar outras tantas necessidades materiais e menos ainda inventar teorias para descobrir o sentido da vida. É simples assim. Seus livros estão presentes nas bibliotecas das escolas de todo o país. Nossa escola tem mudado?

No campo da educação formal há muito ainda o que avançar. Já foi aberta uma picada, mas ela ainda tem de ser pisada muitas vezes para poder virar um caminho seguro. Nos últimos 20 anos se lançaram bases para mudanças, e a Lei nº 11.645/08 (que institui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileiras e indígenas nas escolas do país) foi um marco essencial para que isso vire realidade. No entanto, na educação tudo é muito lento e passa por burocracias infindáveis, que não permitem o deslanchar. Nossos livros estão chegando às escolas; os currículos já começaram a ser modificados; professores já conseguem interagir com a cultura indígena... No entanto, ainda é preciso capacitá-los ideologicamente para o embate com o diferente; é preciso investir nessa qualificação. Criar acervos nas bibliotecas para

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que os educandos tenham acesso à literatura indígena. É urgente criar, dentro das secretarias de Educação, grupos de estudos e pesquisas que possam oferecer munição aos educadores. Fazer um banco de dados confiável sobre grupos culturais indígenas que possam visitar as escolas e formar os formadores. Sem isso, é chover no molhado. E nossas universidades: estão preparadas para acolher os povos indígenas e seus saberes?

Elas estão piores que as escolas. Os professores doutores se acham senhores absolutos do saber. Na escola formal há uma política pública que determina ações, mas as universidades se fecham para isso. Mesmo quando se fala de políticas de inclusão, as maiores barreiras são os professores. Há pesquisadores que querem fazer trabalho sobre literatura indígena, mas muitos titulares dizem não existir esse tema e se negam a orientá-los na pesquisa. Os estudantes indígenas – que entram pela política de cotas – estão sendo massacrados nos estudos porque não conhecem os trâmites universitários, e os professores se negam a ajudá-los ou a aprender com eles. De qualquer forma, também nas universidades os indígenas já começam a fazer a diferença, e isso é bonito de ver. Sua obra dialoga, muito, com as crianças. Como tem sido essa experiência? Você nota mudanças em relação à forma como os indígenas são vistos por esse público?

Resolvi escrever para crianças por um motivo: esperança. No início foi bem complicado, mas aos poucos fui impondo meu jeito de narrar, contar nossas histórias. Hoje sinto que atingi não apenas as crianças, mas, e sobretudo, os adultos que têm contato com meu trabalho. Tenho procurado incentivar jovens indígenas a entrar no mundo das letras para que possamos compor um grupo consistente e fazer prevalecer um estilo próprio de narrar. Quais obras de autores indígenas mais recentes o têm impressionado?

Tem surgido uma leva de autores indígenas cuja escrita ainda vai sobressair. Estamos vivendo um momento embrionário, em que o novo está despontando, nascendo das bases. Eu penso que o grupo atual, por ser pioneiro, está, de certo modo, preso aos cânones ocidentais. Não vejo isso como coisa ruim. Ao contrário, esse grupo usa a literatura como instrumento, mas o novo irá emergir muito brevemente. Ele está nas universidades estudando, criando, ao mesmo tempo em que hiberna até que chegue o momento propício para a metamorfose. Com re-


lação aos outros países, estamos, em certo contexto, adiantados. Temos uma vasta produção para o público infantil e juvenil. São quase 120 títulos voltados para esse segmento. Em nenhum outro país há esse expressivo número. Somos mais de 40 autores de diferentes regiões e povos, o que é um universo de informações e saberes. Em outros países, pelo pouco que conheço, há sempre um ou outro autor de destaque e muito bons na escrita, mas desconheço uma organização que atue no sentido de incentivar novos autores, como nós fazemos. A propósito, este ano virá ao Brasil um grande poeta do povo Mapuche, do Chile, o Elikura Chihuailaf, para participar de um sarau lítero-musical que denominamos Caxiri na Cuia. Será na Universidade Federal de São Carlos, entre 9 e 11 de maio. Na ocasião haverá um grande encontro com escritores e escritoras indígenas.

ção, talvez não alcançasse o que alcancei, e não posso ser ingrato, mas muitos jovens da minha geração não tiveram a mesma sorte e acabaram na sarjeta, embora tivessem a mesma formação. Ou seja, o que nos foi ensinado acabou se virando contra a gente graças a uma “lavagem cerebral” que foi sendo introjetada em nossas mentes. Muitos não conseguem se libertar disso nunca mais. Para a maioria restam o ódio e o desejo de vingança contra a instituição, pois no final nos resta apenas a saudade de algo que nos foi arrancado violentamente. Hoje sou radicalmente contra a presença missionária em terra indígena e acho que essa presença é uma afronta ao caráter laico do Brasil, uma vez que as populações indígenas são de responsabilidade do governo brasileiro. Deixar as instituições religiosas operando em terra indígena é entregar esses povos ao extermínio cultural.

Qual o lugar que os indígenas estão buscando no futuro do país? Em pleno século 21, o que é ser indígena?

O governo federal tem retomado projetos de grandes obras na Amazônia, como Belo Monte. O próximo alvo é o Rio Tapajós, região onde vivem os Munduruku – ali devem ser construídas pelo menos duas grandes usinas até 2020. Que notícias têm lhe chegado lá do seu povo?

De algum tempo para cá tem surgido uma consciência nova entre os indígenas, sobretudo entre os jovens. Nossos antigos sábios brigaram bravamente para nos mantermos indígenas, e isso tem sido valorizado. No entanto, os novos tempos trouxeram uma demanda em que os jovens têm um papel fundamental. Trata-se de lutar pela manutenção da cultura, e isso não é possível senão pela atualização dessa mesma cultura. Ser tradicional não significa estar preso ao passado, mas antenado ao presente. Ninguém é tão tradicional quanto aquele que é capaz de reverenciar o passado e os antepassados atualizando os saberes para o momento presente. E o que nos pede o presente? Honrar a tradição. Como se faz isso? Atualizando-a. Atualizar os saberes significa contribuir para sua disseminação entre as pessoas. Para tanto é preciso dominar os instrumentais que o Ocidente desenvolveu e criar uma linguagem que seja capaz de comunicar nossa visão de mundo ao mundo e, quem sabe, ajudar na sua transformação. Sua trajetória pessoal é ligada à Igreja Católica, uma instituição que atuou muito fortemente na história do país, em relação aos indígenas.

Sou fruto da Igreja Católica. Estudei com os salesianos do fundamental ao superior. Quis tornar-me padre por ter muita admiração pela atuação missionária. Com o passar do tempo fui percebendo que isso não era um caminho para mim. Minha consciência crítica – alcançada graças à minha educação salesiana – foi surgindo aos poucos e percebi que a atuação missionária em terra indígena é nociva. Tenho clareza que, se não tivesse recebido tal educa-

Tenho visto com muita preocupação tudo o que está acontecendo. É uma novela reprisada. O governo atua hipocritamente, pois supõe que o desenvolvimento hidrelétrico é o que o povo precisa. Além disso, define povo como apenas uma parcela da população, aquela movida pelo consumo frenético que enriquece umas poucas empresas e escraviza a outra parte. O resultado disso, podemos perceber: população ribeirinha desatendida, populações indígenas e quilombolas expulsas das terras que tradicionalmente ocupam, cidades pequenas inchadas e sem infraestrutura e o preço da energia elétrica entre os mais caros do mundo. Alguns precisam sofrer para o bem da maioria, dizem os cínicos. Sei bem que esse pensamento já não é tão verdadeiro. Trata-se de falácias engendradas no coração do povo brasileiro por alguns poucos que defendem o crescimento a qualquer custo. O Brasil não precisa de hidrelétricas. As construtoras precisam. O que o país precisa é de maior distribuição de renda. E só.

FOTOS JONAS BARBETTA/NETNEWS.COM SOLUÇÕES

ENTREVISTA

Cada vez menos pessoas conseguem fazer uma leitura crítica sobre os efeitos da invasão de territórios ancestrais e de pessoas, grupos, culturas terem de se deslocar. A maioria dos brasileiros acredita que sair da miséria é poder comprar bens móveis ou imóveis

Como amazônida, como você percebe que o brasileiro em geral pensa a região? É dado o devido respeito à floresta e a seus habitantes?

A Amazônia é um mito na mente brasileira. A maioria da população não faz e nunca fará ideia do que ela seja realmente. A história nunca contará de forma adequada sua história. Ela continuará sendo o que sempre foi: um mito, um ideal, um eldorado. Meu maior receio é que vire mesmo um deserto.

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TRABALHO CULTURA

O ritmo da fre Uma das maiores tradições culturais pernambucanas, o frevo desfilará no carnaval deste ano pela primeira vez com o título de patrimônio imaterial da humanidade Por Guilherme Bryan 36

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E

m harmonia frenética, os dançarinos esticam e recolhem pernas e braços, empunham sombrinhas coloridas e arriscam acrobacias. Os foliões parecem ligados no 220 ao seguir o sopro eletrizante de trompetes e trombones, as baquetas atacando o couro da caixa feito metralhadoras, no compasso de tubas e surdos. O sangue parece ferver, e uma corruptela desse verbo batiza o ritmo: frevo. A música e a dança são contundentes e se manifestam tanto na cultura nordestina e do Brasil que acabaram sendo reconhecidas como patrimônio imaterial da humanidade, com a chancela da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).


CULTURA

O frevo é o primeiro bem brasileiro que entra na lista representativa da Unesco, depois de passar pelo crivo da convenção realizada em 2003. “Nossas imagens são tão boas que uma delas foi o cartão-postal de feliz 2013 da Unesco. Quer reconhecimento maior?”, comemora Célia Maria Corsino, diretora do Departamento do Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “O frevo está forte e vibrante, e

esse reconhecimento o fortalece para enfrentar qualquer outra pasteurização que possa haver no carnaval pernambucano. Afinal, nem só de trio elétrico e escola de samba vive o carnaval brasileiro.” Para o antropólogo Hermano Vianna, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a importância do título é simbólica. “O registro como bem imaterial apenas reconhece a importância daquela tradição cultural, e toda tradição evolui. E o frevo realmente é uma obra-prima da humanidade. Uma música/ dança incrível, que continua evoluindo, vide o Micróbio do Frevo, de Silvério Pessoa, ou sua importância decisiva na criação do ‘passinho’ do funk carioca”, avalia.

Como manifestação cultural, o frevo surgiu no final do século 19, em Recife, em pleno carnaval, como expressão das classes populares REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

JAN RIBEIRO/PREFEITURA DE OLINDA

evura

PASSARINHO/PREFEITURA DE OLINDA

Como manifestação cultural, o frevo surgiu no final do século 19, em Recife, em pleno carnaval, como expressão das classes populares, numa época em que a capital pernambucana começava a se urbanizar. O objetivo dos compositores e dos músicos era causar maior animação e efervescência nos quatro dias de folia. Aos poucos, o frevo foi desenvolvendo suas características. De acordo com o historiador José Teles, autor do livro Do Frevo ao Manguebeat, é uma música autenticamente brasileira, pernambucana, e talvez a única que não veio do folclore nem tem origem negra. “É o único gênero popular que não tem música de domínio público, tradicional. Todo frevo tem autor. Só nisso já há uma imensa importância”, diz o pesquisador. “Depois, pelo repertório acumulado nestes cento e poucos anos, torna-se uma música superimportante. O complicado é que só tocam as mesmas músicas. Existe pouco frevo novo, a não ser alguma coisa de Spok. Até porque o instrumental não se

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CULTURA

faz sem saber música, orquestração. Então fica difícil”, relata.

O ano inteiro

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Falta escola

ANTONIO CESAR/DIVULGAÇÃO

Inaldo Cavalcante de Albuquerque, o Spok, nasceu em Igarassu e foi criado na vizinha Abreu e Lima, na Grande Recife, onde começou a ouvir frevo com o pai boêmio e folião, seu Nilo. Aprendeu a gostar de clássicos criados por compositores como Nelson Ferreira (Evocação Nº 1 e Gostosão) e Levino Ferreira (Último Dia) e os cantores Claudionor Germano e Expedito Baracho. “Eu me encantei com a música, fui estudar e aí, sim, minha vida se tornou mais intensa. Mas, como todo pernambucano, tenho ele presente em minha vida desde muito cedo. Eu tocava frevo quatro dias por ano, hoje vivo de frevo todos os dias”, diz o músico. “Com a orquestra, toco durante o ano inteiro pelo Brasil e pelo mundo, em festivais de jazz e de música instrumental”, comemora. Existem diferentes tipos de frevo, como explica Spok. “Há o frevo-canção, que tem um bit acelerado, com letra, poesia, com um cantor ou cantora na frente da orquestra; o frevo de rua, instrumental; e o frevo de bloco, executado por uma orquestra de pau e corda – violões, cavaquinhos, bandolins e flautas. Talvez o frevo seja, junto com o choro, a única música instrumental genuinamente brasileira e, sozinho, o único que nasceu para orquestra”, diz. “Moraes Moreira me contou que o trio elétrico de Dodô e Osmar veio do clube Vassourinhas, de Recife, que também passava por Salvador.” Moraes diz ter se apaixonado cedo pelas orquestras de frevo e, desde que saiu dos Novos Baianos, passou a representar o frevo baiano, com uma influência fortíssima do pernambucano, começando com Pombo Correio. “É o frevo pernambucano com o trio elétrico de Dodô e Osmar. É o metal com o elétrico, mistura fantástica que tenho feito ao longo dos meus trinta e tantos carnavais na Bahia. Sou considerado o primeiro cantor do trio e o frevo está na minha vida. E tive a sorte de fazer sucesso com muitos deles, como Bloco do Prazer e Festa do Interior”, comenta Moraes Moreira.

FREVO BAIANO Moraes: “Tive a sorte de fazer sucesso com muitos frevos, como Bloco do Prazer e Festa do Interior”

Jacob do Bandolim, Chico Buarque e Caetano Veloso foram outros três compositores que também criaram frevos, em Sapeca, Frevo Diabo e Frevo Rasgado, como lembra o músico Antonio Nóbrega. Já na década de 1970, Nóbrega gravou dois frevos com o Quinteto Armorial, do qual fez parte. Depois foi o primeiro a incluir violino nos arranjos e, em 2007, no centenário do frevo, lançou dois CDs, um DVD e um espetáculo com o título 9 de Frevereiro. “O ritmo, mais que uma manifestação, é uma instituição cultural, porque se exterioriza através de uma dança, de uma música instrumental e de um gênero cantado. E ainda tem um primo ou prima, que é o frevo de bloco”, define. Segundo Nóbrega, a música instrumental do frevo requer um compositor-orquestrador. “Não basta ser um cancionetista, e, com isso, não o estou diminuindo. O dançarino de frevo é muito hábil e versátil. É a dança popular mais rica. Por tudo isso, o frevo tem uma grandeza especial e talvez seja a manifestação de dança e música brasileiras que mais nos


CULTURA

PASSARINHO/PREFEITURA DE OLINDA

DIVULGAÇÃO

represente”, comenta. Para nar disponíveis documentação histórica, ensino da ele, no entanto, o ritmo poderia ter um papel mais predança e da música; produzir sente em nossa cultura. “Em catálogos para internet, CDs São Paulo, Levino Ferreira, e DVDs; publicar e distribuir Nelson Ferreira e Zumba livros e reeditar obras raras; são desconhecidos e, no encriar programas de rádio; e tanto, têm uma obra tão ri- MÚSICA PARA elaborar uma exposição itica quanto Pixinguinha, Ja- ORQUESTRA nerante sobre o frevo para cob do Bandolim e Moacir Spok: “Talvez o ser levada a instituições eduseja, junto cacionais diversas. Santos. Que bom seria se ti- frevo com o choro, a única véssemos nas nossas insti- música instrumental “Se não fosse o povo nas tuições ligadas à música um genuinamente ruas, lutando pela sobrevivência desse ritmo frenético, lugarzinho para estudar a brasileira” não estaríamos, hoje, comeobra desse pessoal. A dança poderia ser mais assimilada na educação morando o título de patrimônio imaterial corporal dos jovens brasileiros”, lamenta. da humanidade. No final do século 19 e iníEssa carência parece já estar sendo en- cio do 20, o frevo era muito marginalizado, frentada em Pernambuco, segundo a pes- desprezado pela elite recifense. Mas o poquisadora Mariangela Valença, autora do vo, o pai do frevo, não permitiu. E até hoje livro 100 Anos de Frevo – Aula Espetáculo. continua lutando para mantê-lo vivo”, afirSeu estudo destaca o Plano de Salvaguar- ma Mariangela. “Todo pernambucano carda, feito por vários órgãos oficiais pernam- rega o frevo nas veias e no coração. Então bucanos, em parceria com o Ministério da só me resta convidar seus leitores a dar um Cultura e o Iphan. O plano inclui a criação pulinho aqui, na terra do frevo, e verificar do Paço do Frevo, com objetivos como tor- a importância dele”, diz a pesquisadora.

O que é patrimônio imaterial? A Unesco considera Patrimônio Cultural Imaterial práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais – enfim, elementos representativos do sentimento de identidade de uma comunidade. A Constituição brasileira os destaca como portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da nossa sociedade. “Usando termos simplificadores da Constituição Federal, são modos de criar, fazer e viver e o reconhecimento destaca o bem como sendo importante referencial para a formação da sociedade”, explica o advogado Francisco Humberto Cunha Filho, professor adjunto da Universidade de Fortaleza, no Ceará.

Site da Unesco saúda 2013 com foto de frevo

Por meio do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial do Iphan, esses bens culturais vão para os seguintes livros: Registro dos Saberes, no qual serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Registro das Celebrações, com rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; Registro das

Formas de Expressão, em que serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e Registro dos Lugares, com mercados, feiras, santuários e praças, entre outros espaços onde se realizam práticas culturais coletivas. O reconhecimento também institui, no âmbito do Ministério da Cultura, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, que implemente uma política específica de inventário, referência e valorização do patrimônio. “Desde 2002 trabalhamos na identificação e no reconhecimento das manifestações, celebrações, saberes e fazeres que são patrimônios culturais imateriais. Fazemos o inventário e, a partir dele, podemos fazer o registro.

Nossa ação é de apoio à sustentabilidade do bem, são os próprios grupos que vão sendo mobilizados. São ações diferentes de restaurar uma casa”, afirma a diretora do Departamento de Bens Imateriais do Iphan, Célia Maria Corsino. “Temos mais quatro bens na fila do reconhecimento pela Unesco, entre eles a capoeira, mas só é analisado anualmente um bem por país­. E já temos dois bens registrados como patrimônio na convenção: a expressão gráfica e oral dos índios Wajãpi e o samba de roda do Recôncavo Baiano”, diz Célia. Em 2011, o ritual Yokwa, da tribo indígena Enawene-Nawê, do sul da Amazônia, integrou a lista de patrimônio imaterial da Unesco que necessita de proteção urgente.

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PERFIL

A intensidade de

Nair Benedicto

JULIA RAPOSO

A história do Brasil contada pelas lentes e películas da fotógrafa veterana é mais intensa que a soma de seus fotogramas Por Ateneia Feijó

P

ode acreditar. Nair parece ter poderes mágicos. O mundo se deixa captar pelo olhar genial da fotógrafa. A profissão foi escolhida como estratégia, depois de um ano, de 1969 a 1970, encarcerada no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo. Ao sair de lá entendeu que podia continuar a resistir por meio da linguagem fotográfica, registrando as pegadas da ditadura. Sempre gostou de ouvir e contar histórias. A sua própria começa assim: nasceu paulista, em 1940, neta de quatro avós 40

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imigrantes italianos. De criança alegre e participativa virou a jovem questionadora política que não disfarçava suas indignações. Tampouco a perspicácia. Enxergou a brecha a ser usada por câmeras e lentes, linguagem menos evidente que a falada e a escrita. Os visores turvos da repressão e da censura não imaginaram que aquela mulher baixinha estivesse produzindo e arquivando memórias para o futuro. Nair não bobeou. Documentava o que a intuição, a sensibilidade e a coragem lhe dariam dali


FOTOS DE NAIR BENEDICTO/N-IMAGENS

PERFIL TRABALHO

Amazônia. Índia Arara, Pará, 1983

Amazônia. Índio ArantxêManouki, Mato Grosso, 2006

Amazônia. Pintura corporal. Mulheres Kayapó da Aldeia Gorotire, Pará,1992

para a frente. Descobriu a Amazônia como Área de Segurança Nacional. Presenciou a chegança de gente batalhadora e sonhadora, induzida pelo governo militar a “colonizar” o espaço em torno da Transamazônica. Documentou flagrantes de vidas que hoje explicam a origem de muitos problemas dramáticos: desmatamento, invasão de territórios indígenas e diversos tipos de conflito. Sem deixar de focar também a solidariedade, o afeto, as paixões. Na mesma Transamazônica, nas vizinhanças de Altamira (PA), ela fotografou a aproximação de um subgrupo de índios Arara que tiveram seu tradicional território cortado ao meio pela rodovia, entre 1982 e 1983. Suas fotos dos índios Arara correm o mundo. Antes, juntara-se a Juca Martins, Ricardo Malta e Delfim Martins para fundar a Agência F4 de Fotojornalismo. Largara sua atividade solitária, saltando para trabalhar em grupo. Deu tão certo que a F4 cresceu e se expandiu, tornando-se uma marca de referência. Dois trabalhos memoráveis, em parREVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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PERFIL

Metalúrgicos em assembleia na Igreja Matriz de São Bernardo do Campo, 1980

FOTOS DE NAIR BENEDICTO/N-IMAGENS

Minhocão aos domingos e feriados, São Paulo, 1990

ceria com Juca Martins, transformaram-se em livros: A Greve no ABC e A Questão do Menor. Quando o grupo se dissolveu, em 1991, dele surgiram as agências Tyba, Pulsar, Olhar Imagem e N-Imagens. Concorrentes e inacreditavelmente unidas. Nos anos 1980, Nair jogou-se nas questões do menor e da mulher e produziu vários audiovisuais. Alguns surpreendentes, para quem não a conhecia. Desde criança, afirmava que não pretendia casar, mas de ter filhos não abria mão. E os teve com Jacques Breyton. Ariane, Danielle e Frederic deram-lhe ainda seis netos. Quase não se falava em ecologia e ela já discutia meio ambiente e sustentabilidade. Das vezes em que me chamou para formarmos dupla (fotógrafa e repórter), uma delas foi para uma reportagem sobre uma empresa comercial exportadora chamada A-Ukre Trading Company. Constituída exclusivamente por índios brasileiros da etnia Caiapó, a companhia ficava numa aldeia isolada dentro da floresta amazônica, no sul do Pará. Rústica e eficiente, fornecia óleo de castanha-do-pará para a Body Shop, uma indústria na Inglaterra especializada em cosméticos à base de produtos naturais. Nessas ocasiões Nair expressava seu pioneirismo. Embrenhava-se na selva quando as máquinas fotográficas eram todas mecânicas, pesadas e para funcionar precisavam ser abastecidas com filmes de celulose. Subir ou descer rios em canoa de tronco de árvore lotada de índios, para pular numa margem e ir com eles até um castanhal, era complicado. A umidade da floresta

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FOTOS DE NAIR BENEDICTO/N-IMAGENS

PERFIL

pifava o equipamento com uma frequência terrível. Era preciso ter à mão no mínimo três máquinas e muitos, muitos rolinhos de filme. E celular... Não, não existia. No último dia na aldeia A-Ukre, final de tarde, queríamos nos despedir de uma líder da tribo que estaria numa casa reunida com outras índias. Primeira a entrar, Nair rapidamente levou o olho ao visor da câmara fotográfica, murmurando: “Ateneeeia”. Entendi instantaneamente: o trabalho não terminara. Apressei-me para ver o que fotografava. Protegidas sob o telhado de palha, as mulheres pintavam-se umas às outras. Usavam uma varinha fina e flexível molhada na tinta de jenipapo para fazer desenhos simétricos no corpo, inteiramente nu. Outro sussurro: “Estou sem o tripé!” Saí em disparada para pegar. Era quase noite. Mas não importava. Nair tem essa capacidade de despertar e desenvolver bons sentimentos de cumplicidade. Em 2009, entrou numa lista de espera para transplante de rim. Após várias tentativas abortadas recebeu a doação do órgão de um de seus sobrinhos. Pouco depois, lá estava ela envolvida com o ensaio Na Parede da Memória, com montagem de Salomon Citrynowicz, no Foto-Rio 2011. Na programação do evento, além da exposição das fotos, constava uma palestra. Ela mandou ver. O tema: “Não desisto de mim”. Agora reuniu fotos de quatro décadas no seu novo livro: Vi Ver. Intensamente Nair.

Mulheres trabalhando no sisal, Bahia, 1985

Mesa de cocaína, São Paulo, 1991

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VIAGEM

TERRITÓRIO SUPERLATIVO

Há encontros brasileiríssimos e estrangeiríssimos. A variedade de pratos e sabores, assim como os contatos com a floresta, as águas e a biodiversidade, é riquíssima. Manaus e seu entorno são mesmo impactantes Por Ana Paula Carvalhais. Fotos de João Marcos Rosa/Nitro

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elo menos três horas de voo separam Manaus da maior parte dos brasileiros, sendo os cronômetros iniciados em Brasília, que é escala obrigatória para praticamente todos os pontos de partida país adentro. Para quem prefere escapar das alturas, a alternativa é pelas águas – o que pode levar bem mais tempo, mas com a vantagem de ser previamente apresentado aos rios da região. Os mais aventureiros ainda podem considerar a Transamazônica e seus atalhos 44

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como opção, mas sabendo que boa parte da via não é pavimentada. Rodovias, de fato, existem somente para quem segue de Boa Vista (RR) ou Porto Velho (RO). Seja por água, terra ou ar, a chegada à capital do Amazonas é uma experiência ao melhor estilo Babel dentro do próprio país, onde o português vai se fundindo a outras línguas. A tradição indígena salta aos olhos e aos ouvidos, como em nenhum outro canto do país. Das placas com nomes dos lugares aos cardápios, com seus tambaquis, tapioca e açaí. O

mesmo vale para as pessoas que levam no rosto a nítida descendência dos povos da floresta. Por essa razão os estrangeiros facilmente destoam. E não são poucos. É supercomum intercalar conversas em diferentes línguas ao cruzar pelas ruas com claríssimos alemães, ingleses, franceses, canadenses ou norte-americanos com seus respectivos mochilões sobre os ombros e mapas debaixo do braço. Todos conduzidos pelo sonho de conhecer a maior floresta do mundo, com seus mis-


VIAGEM

Arquipélago das Anavilhanas

Encontro das águas

Hotel de selva

Colares de sementes

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VIAGEM

térios, sua gente, sua biodiversidade. É o que faz de Manaus um dos principais destinos do turismo internacional no Brasil. E não apenas os estrangeiros de longe compõem esse mosaico de línguas, traços e culturas. Os sons latinos e do brega se misturam. Vale se deixar perder pelas ruas do centro comercial num dia de semana para ver que o Caribe brasileiro está bem aqui. Além do clima equatorial, o portunhol é mais um elo entre os vizinhos. A cada ano Manaus recebe mais venezuelanos, peruanos e bolivianos – atraí­dos principalmente pelas oportunidades de trabalho –, que logo se sentem em casa. Isso sem levar em conta o grande número de imigrantes orientais que se instalou na cidade desde a década de 1960 por causa de incentivos à produção de eletrônicos na Zona Franca de Manaus. A comunidade japonesa é uma das maiores no Brasil e, claro, o que não falta são bons restaurantes que unem a tradicional cozinha à maior variedade de peixes existente no mundo.

Cores e quitutes

A porta de entrada para a floresta reserva outras saborosas surpresas, curiosidades culturais e uma bela arquitetura dos tempos áureos da borracha. No centro histórico, a influência europeia estampa prédios importantes, como a Alfândega do Porto, construída em 1906 em estilo inglês, e o Mercado Adolpho Lisboa, construído de frente para o Rio Negro em 1882, com inspiração no Les Halles, de Paris. O Teatro Amazonas merece uma visita de algumas boas horas. Especialmente no mês de abril, vale se programar (com antecedência) para conferir o Festival Amazonas de Ópera, que leva montagens locais, nacionais e internacionais para os palcos da imponente construção. Mas, em qualquer época, é possível viajar no tempo por meio de visitas guiadas pelo prédio inaugurado em 1896. É impressionante o cuidado com a preservação dos afrescos, lustres, cabines, salões e mobiliário, que ainda guardam o luxo e a ousadia do que representou a casa de ópera erguida em plena selva amazônica e patrocinada pela seiva das serin46

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OURO NA SELVA O Teatro Amazonas merece uma visita prolongada

gueiras, que também já fez jorrar muito ­dinheiro na região. Nos fins de semana, o entardecer nos arredores do teatro ganha um colorido especial. Os sons invadem a praça e nos convidam a ficar um pouco mais. Da tradição da ópera vem o gosto pela boa música de concerto, e logo algumas centenas de cadeiras se juntam às dos bares e sorveterias, formando uma só plateia para o espetáculo, que fica ainda melhor se acompanhado dos quitutes amazônicos. Eis um universo a ser explorado. Não

se trata apenas de força de expressão ou de modismos gastronômicos. Tão rica é a diversidade de peixes, frutos, cores e aromas, suas combinações e possibilidades, que a rotina merece ser deixada de lado. Uma boa pedida para começar o dia são os cafés regionais, regados a sucos de cupuaçu, jenipapo e graviola, além do já famoso sanduíche “x-caboclinho”, feito com pão francês e tucumã. No almoço ou no jantar, não deixe de provar a costela de tambaqui – peixe da bacia amazônica que pode pesar mais de 40 quilos e prota-


VIAGEM

Família em embarcação no Furo do Paracuúba, próximo ao encontro dos rios Negro e Solimões

Parque Ecológico do Janauari

goniza desde pratos simples da culinária regional até invenções recentes de chefs renomados. Como sobremesa ou a qualquer hora do dia para espantar o calor, os sorvetes locais são uma verdadeira coleção de sensações a experimentar. E, convenhamos, quem vai a Manaus busca muito mais. E encontra. Afastando-se do centro urbano, muitas são as opções de hotéis de selva, com atrações naturais e programação que variam amplamente tanto no preço como na autenticidade de alguns desses “encontros com

a natureza”, nem tão selvagem como se promete, mas uma boa oportunidade de contato com esse mundo novo. Mesmo se hospedando em hotéis dentro da cidade, o visitante poderá em ­alguns minutos conhecer um pouco do ecossistema amazônico em parques públicos e reservas, como o Parque do Mindu, a Estação Ecológica Samaúma e o Jardim Botânico Adolpho Ducke, com seus cerca de três quilômetros de trilhas na intimidade da floresta. E, se tiver de escolher apenas uma atração em Manaus, ela se chama Rio Amazonas. Esqueça tudo e contrate no porto um passeio de barco rumo ao Encontro das Águas. Do cais, a imensidão do Rio Negro já impressiona e o percurso ainda revela muitas ilhas e intervalos para fotografar jiboias e preguiças trazidas por pescadores. Nada se compara, porém, ao encontro das águas do Negro com o Solimões. Ainda que você tenha lido e decorado todas as explicações físicas e químicas para o

fenômeno das águas que não se misturam por quilômetros, não há como não se surpreender. É fascinante, intrigante e muito maior do que a vista pode alcançar. Dentro de um pequeno barco é que finalmente se aprende a repetida lição de geografia que afirma que este é o maior rio existente no planeta. E, como tudo na Amazônia é superlativo e impactante, não deixe de conhecer outros recordes com que a natureza presenteou o Brasil. Antes de voltar ao cais, percorra de barco alguns igarapés que escondem verdadeiros jardins de vitórias-régias, as maiores plantas aquáticas de que se tem notícia. Outro passeio inesquecível é sobrevoar as Anavilhanas, conjunto de ilhas que formam um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo. Com suas mais de 400 ilhas e rica biodiversidade, o local é um parque nacional com visitação permitida apenas para pesquisadores – mas, avistado do alto, o espetáculo é de todos. REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2013

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CURTA ESSA DICA

Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Claudia Ohana e Vanessa Giácomo

Cinema e novela NICOLE HEINIGER E FERNANDO/DIVULGAÇÃO

No final dos anos 1970, ainda sob o regime militar, o Brasil descobria a moda das discotecas graças à novela Dancin´Days, estrondoso sucesso de Gilberto Braga na Rede Globo. O filme Novela das 8, de Odilon Rocha, é uma espécie de tributo à obra. Nele, o policial Brandão (Alexandre Nero) está no encalço da prostituta Amanda (Vanessa Giácomo), que é viciada em novela, e de Dora (Claudia Ohana), ex-guerrilheira que virou empregada doméstica. Drama, ação, suspense, romance (e clichês!) são contados numa linguagem de teledramaturgia e embalados por uma trilha sonora de primeira. Em DVD.

Filhos de peixe...

A brincadeira começou em 2008, quando Antonio Pinto, Arnaldo Antunes, Edgard Scandurra e Taciana Barros decidiram juntar seus filhos para gravar e se divertir com música. Assim nasceu o CD Pequeno Cidadão, que logo ganhou DVD e dois livros, A Viagem Fantástica do Pequeno Cidadão e Tchau Chupeta. Dois anos e meio de estrada depois, eles lançam o segundo álbum, no qual as crianças estão mais soltas e participaram ainda mais das composições e das performances no palco com os pais. Diversão, tristezas, dúvidas são alguns dos temas das músicas que vão do pop ao rock psicodélico e agradam a crianças de todas as idades, de 1 a 91 anos. À venda em www.pequenocidadao.com. 48

FEVEREIRO 2013 REVISTA DO BRASIL

Ilusão Hildebrando é um artista plástico nascido em Olinda que gosta de contar, por meio de seus quadros, histórias que ultrapassam a realidade. A exposição Hildebrando de Castro – Ilusões do Real, em cartaz na Caixa Cultural Rio de Janeiro, reúne 60 obras divididas em seis séries: em Corpo Fragmentado, ele desvenda, com perfeição, o corpo e os órgãos; em Inquieto Coração, traz corações trespassados e holografias que pulsam; com Entre Humanos, brinca com imagens espectrais; em A Infância Perversa, mostra a perversidade infantil e a erotização precoce; em Histórias Insólitas, apresenta acidentes naturais; e, em Arquitetura da Luz, brinca com jogos de luz em prédios de Brasília. A exposição de fotopinturas fica em cartaz na Galeria 3 até 24 de fevereiro, de terça a domingo, das 10h às 21h. Av. Almirante Barroso, 25 (Estação Carioca do Metrô). Grátis.


Giorgetto e Fabrizio Giugiaro observam instalação com um DeLorean

A icônica série F da Nikon: clássico

De volta para o passado A marca que a família Giugiaro deixou na identidade estética italiana do século 20 é tema da exposição Giugiaro: 45 Anos de Design Italiano, em cartaz no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. As obras ocupam cinco salas divididas em módulos que apresentam os diferentes projetos da Italdesign Giugiaro desde 1968, em tamanho real ou em escala reduzida. A série F das câmeras fotográficas da Nikon, os

automóveis Passat e Gol, o estádio do Juventus de Turim e até o design do DMC 12 DeLorean, do filme De Volta para o Futuro, foram criados pela família de Giorgetto e Fabrizio. Documentário e mostra de fotos também fazem parte da programação. De 7 de fevereiro a 31 de março, de terça a domingo, das 10h às 18h, na Av. Faria Lima, 2.705. Ingressos de R$ 2 a R$ 4 e grátis aos domingos e feriados.

Dilema destes tempos

Mais que xepa

A comunicação eletrônica vai nos emancipar ou nos escravizar? Em linhas gerais, é isso o que discute o primeiro livro do editor-chefe do WikiLeaks, Julian Assange, Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet (Boitempo Editorial). Assange antevê uma futura onda de repressão na internet que, acredita, pode ser uma ameaça à civilização humana. O livro é resultado das reflexões de um grupo de pensadores e ativistas na defesa do ciberespaço, como Andy MüllerMaguhn, Jacob Appelbaum e Jérémie Zimmermann, com colaboração do filósofo esloveno Slavoj Žižek e da jornalista Natália Viana, parceira do Wikileaks no Brasil e coordenadora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. R$ 36.

Tem um pouco de tudo no repertório do segundo disco da banda Fim de Feira, De Todo Jeito a Gente Apanha (Fonomatic): música e poesia de cordel misturadas com baião, carimbó, coco, maxixe, enfim, uma vasta degustação da sonoridade de Pernambuco. Tem participação especial de Elba Ramalho em Canário Miudinho, do rapper Zé Brown (do grupo Faces do Subúrbio) no protesto Preso 137 e de Silvério Pessoa em Coco Veloz. R$ 20, em média. REVISTA DO BRASIL

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B.KUCINSKI

Um homem muito alto Conforme crescia ganhava apelidos. Menino, era Pernalonga. Na adolescência, King Kong. No time de basquete, Golias. Na clandestinidade, o batizaram de Grandão, e ele não teve estatura para fugir

A

o viajar de ônibus, em pé, curvava a cabeça para não bater no teto. Nos cinemas sentava-se na última fileira, para não aborrecer. Mas a despeito de situações como essas, sua altura desmesurada trazia-lhe vantagens. Já de pequeno, de tão maior que os outros ninguém se atrevia a desafiá-lo. E foi se agigantando. Aos 10 anos, já media um metro e sessenta, ganhou o apelido de Pernalonga e todos os moleques da rua queriam ser seus amigos. Aos 14 tornou-se goleiro festejado no time juvenil; dificilmente deixava entrar a bola. Já alcançavaum metro e oitenta e ganhou o apelido de King Kong. Além de taludo, tinha garbo e cabelos encaracolados. As garotas o disputavam. Passou a ter dificuldades com as roupas e os sapatos – até então bastava comprar os de tamanho maior –, mas resolveu o problema encomendando regularmente roupas de alfaiates e sapatos de calçadistas. Aos 18 anos foi convidado para jogar basquete e se tornou a estrela do time. Não precisava atirar a bola para encestar, bastava erguê-la com a mão. Tinha então dois metros e oito centímetros de altura e ganhou novo apelido: Golias. Mas não parou aí, ainda cresceria mais cinco centímetros, atingindo dois metros e treze, sua altura de adulto estabilizada a 50

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partir dos 20 anos de idade. Já então estava na faculdade, cursando Engenharia Eletrônica. Trocava muito de namorada, quase todas muito mais baixas que ele, ao ponto de ficar ridículo quando saíam de mãos dadas. Até encontrar a Regianne, mulher alta e corpulenta, embora ainda dentro dos padrões: um metro e oitenta. A faculdade o levou para a política clandestina. Logo se destacou na agremiação pelo talento organizacional e em pouco tempo já fazia parte de um grupo de ação, formado para assaltar bancos. A Regianne afastou-se por discordar dessa forma de financiar o movimento, que considerava arriscada demais. Ele ficou. E o namoro dos dois acabou. De fato, logo no segundo assalto, o sistema de segurança do banco conseguiu filmar a ação e ele foi identificado pelos serviços secretos, por sua altura desmesurada. Começou, então, uma implacável caça ao Grandão, o codinome dado a ele pelos serviços secretos, e a etapa de sua vida em que ele amaldiçoou ser tão alto. Seus companheiros podiam usar disfarces, deixar crescer o bigode, ou a barba, ou o cabelo, ou fazer o contrário, ou mesmo tingir o cabelo, enfim, dispunham de muitos recursos, mas com ele não adiantava: a altura o entregava. Também não podia se valer dos esquemas de fuga para o exterior com papéis falsos, seus dois metros e treze centímetros o denunciariam em qualquer aeroporto ou posto de fronteira. A organização possuía esconderijos diversos, apartamentos discretos e casas alugadas em várias cidades. Ele podia ficar numa delas, depois em outra, mas ao pôr os pés na rua arriscava ser preso. E assim aconteceu. Foi pego num subúrbio do Rio, ao tentar uma saída para comprar cigarros. Levado a julgamento em São Paulo, foi condenado a sete anos de prisão. Preso e condenado por sua altura.


Em casa, no carro, no ônibus: sintonize a rádio que fala a sua língua. ,3 93 ,9

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2,7 0 1

L RA STA O T LI ULI PA E ND AULO A GR O P SÃ E EST A O R T NO ULIS PA

De segunda a sexta, das 7h às 9h



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