TERAPIA O prazer da arte no trato da loucura
nº 83 maio/2013
Organizações, comunicadores e ativistas de uma nova mídia saem em defesa da liberdade de expressão. E incomodam os que se achavam donos da informação
DEU TRABALHO Reflexões sobre a septuagenária CLT
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MORTE NA FLORESTA O medo ainda paira sobre Nova Ipixuna
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ÍNDICE
EDITORIAL
5. Na Rede
Assuntos do mês que passou e que foram destaque na RBA
14. Capa
Quem faz a informação livre e quem tem medo da liberdade
20. Trabalho
A CLT faz 70 anos e ainda há quem rejeite seu valor histórico OMAR FREIRE/IMPRENSA MG
26. Ambiente
Depois do julgamento, o medo ainda paira sobre Nova Ipixuna
32. Saúde
Consultar um geriatra não rejuvenesce. Nem envelhece
36. Cidadania
Sem holofotes: a comenda de Aécio Neves a Joaquim Barbosa vai dar no New York Times?
A terapia da arte como aliada da luta antimanicomial
O Grande Colar
40. Esporte
H
Como povos árabes afirmaram sua identidade jogando futebol
42. Perfil
Centenário de Jamelão? Ele não estaria nem aí com isso
ACERVO CENTRO CULTURAL TJIBAOU
Centro Cultural Tjibaou
44. Viagem
Uma colônia francesa prestes a ser dona de sua própria beleza
Seções Na rede
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No rádio
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Mauro Santayana
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Na TVT
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Crônica: Mouzar Benedito
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á menos de um ano, a democracia brasileira tinha apenas um endereço, o Supremo Tribunal Federal. Juízes viraram celebridades, opiniões divergentes eram consideradas antipatrióticas e a cobertura da mídia convergiu, quase em sua totalidade, para a condenação prévia de alguns acusados e para a imortalização do julgamento como momento inigualável da história política do país, que passaria a se dividir em pré e pós-mensalão. O tempo passou, vozes e análises discordantes, críticas, começaram a ser ouvidas, aqui e ali. Contestado tecnicamente, o processo fez alguns ministros “editarem” expressões usadas em seus votos, antes largamente divulgados, em sessões transmitidas como jogos da Copa. Porém, gestos que podem colocar sob suspeição a idoneidade dos magistrados, passam longe dos holofotes, câmeras, microfones. Claro, a mídia tradicional é livre para dizer o que quer e o que não quer, e isso é conquista da cidadania. Também por óbvio, as opiniões dissonantes não ecoaram. Assim como certos fatos passam ao vento. Poderiam virar furacão nas palavras de alguns colunistas, mas tornam-se brisa nos moinhos das redações. Em 21 de abril, o presidente do STF, Joaquim Barbosa, foi à cidade histórica de Ouro Preto, que naquela data se torna simbolicamente a capital de Minas Gerais. Ali, recebeu o Grande Colar, comenda criada nos anos 1950 para homenagear personalidades que contribuíram para o desenvolvimento do estado e do país. Ao lado dele estava Aécio Neves, que, claro, falou sobre o julgamento do mensalão. Quase não se falou do fato de a Corte Suprema ainda não ter julgado o “mensalão pioneiro”, concebido e desenvolvido por integrantes do PSDB mineiro. A um questionamento sobre quando o STF começará o julgar o caso, Barbosa sorriu: “Está vendo por que não falo com vocês?” A parcialidade dos jornais não é mais mito na imprensa internacional. No Brasil, porém, falta coragem para que seja assumida e exercida com transparência. E enquanto a imprensa daqui descarrega ódio no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele é convidado para assinar coluna a ser distribuída pelo The New York Times, maior jornal norte-americano. Vai falar sobre economia, política e combate à pobreza. Quem diria, o NYT, templo conservador liberal, sinaliza que um pouco de pluralidade não faz mal a nenhuma democracia. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Montagem com foto de Stock.XCHNG, Marcelo Lacerda (floresta) e João Correia (terapia) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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LEIA DIVULGUE ASSINE PARTICIPE DA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA MÍDIA
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Evolução da taxa real de juros 26,5%
n IPCA n Taxa Selic
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7,5% 6,6%
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Fontes: IBGE e Banco Central. IPCA acumulado em 12 meses completados em março e Selic definida em seguida pelo Copom. Elaboração: RBA
Mercado assanhado
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a batalha das expectativas, a chamada ala rentista do mercado, aquela que fatura mais quando os juros que remuneram suas aplicações são mais altos, pressiona o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central a aumentar a taxa básica de juros. Até aqui, a decisão do Copom de 17 de abril conseguiu desagradar gregos e troianos. O mercado ainda está insatisfeito. Seus economistas e colunistas escalados nos telejornais dizem que houve demora em retomar o movimento de alta da taxa Selic e a mexida de 7,25% para 7,50% ao ano será insuficiente. Os setores que se opõem à alta da Selic consideraram essa sinalização ao mercado desnecessária. Afirmam que o controle da inflação não depende disso e encarecer o custo do dinheiro pago pelo Tesouro aos investidores obriga o governo a reduzir investimentos. E no meio deles a autoridade monetária acha a decisão de bom tamanho. Demonstra preocupação com o controle da inflação, e tem motivos para se preocupar, mas mantém, apesar do 0,25 ponto a mais, a menor taxa real da história.
Pressão por alta de juros dificulta uma leitura correta da inflação A inflação é o principal combustível a alimentar os rentistas. E há quem defenda também algum “desaqueci mento” do mercado de trabalho, como fez recentemente o economista-chefe do Itaú Unibanco, Ilan Goldfajn. O economista e ex-presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Mattoso identifica nesse suposto alarmismo a existência de “interesse que ultrapassa uma avaliação correta sobre a inflação”. Para ele, as análises sobre o resultado do IPCA de março ignoraram o fato de que a taxa havia sido maior nos dois meses anteriores. De 0,86% em janeiro e 0,60% em fevereiro, caiu para 0,47% em março – abaixo das previsões do mercado, majoritariamente em torno de 0,50%. “Em geral, em janeiro e fevereiro a taxa de inflação
sobe. As políticas adotadas pelo governo estão sendo eficazes”, afirma Mattoso. Mas todos os olhares se voltaram para o índice acumulado em 12 meses, que atingiu 6,59%, rompendo o teto da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (6,5%). Mattoso contesta essa premissa e observa que valerá o resultado acumulado em dezembro: “As metas são para o ano”. Assim, se em abril o IPCA ficar entre 0,35% ou 0,40%, por exemplo – um resultado factível –, a inflação volta para dentro da meta. O economista lembra que um dos fatores de pressão inflacionária, os alimentos, pode ceder nos próximos meses. Ele destaca as políticas que estão sendo implementadas pelo governo que ainda deverão ter efeito sobre a inflação e elogia a ação do BC, ao resistir às pressões de quem desejava aumento dos juros já em março. Nos governos Lula e Dilma, apenas em 2003 e 2004 a inflação oficial fechou o ano acima da meta – resultado que Mattoso atribui a problemas herdados da gestão anterior. A maior taxa a partir de 1995 é do último ano do governo Fernando Henrique Cardoso (12,53%). http://bit.ly/rba_mattoso REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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Os brasileiros que usam carro pagam anualmente de IPVA taxas que vão de 2% a 4% do valor dos veículos. Já os quase 2 mil felizardos proprietários de helicópteros estão livres não só do trânsito como também desse imposto. A constatação está num estudo publicado no mês passado pelo Dieese e pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindfisco). O relatório mostra, por exemplo, que os proprietários de grandes latifúndios respondem por 0,4% de todos os tributos arrecadados pelas cidades, pelos estados e pela União. A cartilha lançada pelas entidades sugere dez medidas que poderiam tornar o sistema tributário mais justo, arrecadando menos de quem tem renda menor. Entre essa medidas, estão a criação de alíquotas sobre dividendos de lucros nos mesmos moldes em que são taxados os salários. Sugere também a tributação mais justa sobre embarcações e aeronaves, grandes propriedades e grandes fortunas. Para conhecer a íntegra da cartilha, acesse este atalho: http:// bit.ly/impostos_mais_justos. E leia aqui reportagens da RBA sobre o tema: http://bit.ly/rba_10_ medidas 6
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RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA
Outra visão sobre os impostos
Ricardo Berzoini, Vagner Freitas, Rui Falcão, Juvandia Moreira, Lula e Luiz Cláudio Marcolino: reforma
1,5 milhão por reforma política O PT lançou em 12 de abril campanha por um projeto de lei de iniciativa popular de reforma política. Em 16 de abril, durante a festa de 90 anos do Sindicato dos Bancários de São Paulo, foi coletada a primeira assinatura: a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O objetivo é alcançar a meta de 1,5 milhão de adesões até fevereiro de 2014. A campanha será centrada no financiamento público, voto em listas fechadas nas eleições proporcionais e paridade entre homens e mulheres nessas listas. E defenderá a criação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para fazer a reforma. http://bit.ly/rba_assina_reforma MD: provável abrigo do serrismo
Mais um do mesmo
Fundado com o objetivo expresso de formar “um novo bloco de oposição” ao governo da presidenta Dilma Rousseff (PT), o partido da Mobilização Democrática (MD) renega em seus documentos inaugurais o projeto neoliberal que até outro dia pautou os discursos de alguns de seus idealizadores. O MD propõe um “Plano Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico”, que, em muitos aspectos, poderia ter sido escrito por um petista: prega o fortalecimento do Estado, o fim das desigualdades e clama por um país soberano. O partido surgiu da fusão entre PPS e PMN e poderá abrigar José Serra, que perdeu espaço em seu partido. O deputado federal Roberto Freire, antigo presidente do PPS, agora preside o MD. Nos bastidores, também tem o apoio do governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB). Num dos cenários do xadrez político para 2014, Campos disputaria a Presidência pelo PSB, reforçado pela candidatura de Serra, no MD, para o governo de São Paulo. http://bit.ly/rba_md
PEDRO LADEIRA/FOLHAPRESS
REDEBRASILATUAL.COM.BR
PEDRO FRANÇA
Estudantes acompanham processo de análise do projeto de lei do Estatuto da Juventude
Finge que não é com ele JOSÉ CRUZ/ABR
A proposta de redução da maioridade idade e por tipo de crime já está definida no penal – propagada pelo governador de São Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Paulo, Geraldo Alckmin – é rechaçada por bem como a internação especial de jovens com especialistas. Alckmin se saiu com essa pegando problemas mentais. Mesmo a punição para carona em mais uma tragédia, que culminou adultos que praticam crimes acompanhados por na morte de um estudante da Faculdade Cásper adolescentes já está estabelecida no estatuto.” Líbero ao ser assaltado por um rapaz de 17 anos. Alckmin: de carona http://bit.ly/rba_maioridade com a tragédia Para Ariel de Castro Alves, fundador e membro A ação do governador vem na contramão da Comissão da Criança e do Adolescente de um gesto do Congresso Nacional que do Conselho Federal da OAB, a proposta é confere mais responsabilidades ao Estado e à oportunista e demagógica. “Não é a primeira vez que, após sociedade brasileira no que diz respeito a essa camada casos de grande repercussão nacional, o governador se ainda muito vulnerável da sociedade, com a aprovação manifesta dessa forma. Em 2003, 2005 e no ano passado do Estatuto da Juventude. ele já fez propostas parecidas. Além disso, a separação por http://bit.ly/rba_juventude
Contaminação e acordo
ANTONIO CRUZ/ABR
Ex-trabalhadores da Basf e Raízen: exposição a produtos tóxicos
Após seis anos de discussão, foi oficializado em 8 de abril um dos maiores acordos da Justiça do Trabalho, envolvendo 1.068 trabalhadores da Raízen (antiga Shell) e da Basf em Paulínia (SP). As empresas também terão de garantir assistência médica e odontológica integral às vítimas. O caso vinha sendo discutido desde 2007, quando o Ministério Público do Trabalho da 15ª Região entrou com ação pública contra as empresas em que cobrava tratamentos de saúde e indenizações, por expor trabalhadores a produtos tóxicos. De 1974 a 2002, Shell e Basf mantiveram fábrica de pesticidas na cidade. O acordo prevê pagamento de R$ 200 milhões por dano moral coletivo e R$ 170,8 milhões por danos individuais materiais e morais. Ainda de acordo com o MPT, aproximadamente 60 pessoas morreram em consequência da contaminação. http://bit.ly/rba_paulinia REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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Horta comunitária no bairro de São Mateus
Mundão velho sem porteira
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Horta na cobertura do Shopping Eldorado
FOTOS GERARDO LAZZARI
São Paulo tem 11 milhões de habitantes, cinco linhas de metrô, 7 milhões de automóveis, rios poluídos, favelas, avenidas largas, muita fumaça e concreto. É a mais rude definição de cidade que o Brasil conseguiu produzir. Mas muitos paulistanos continuam vivendo em contato com a terra. E outros tantos se sustentam com o que plantam e colhem nos espaços ainda não colonizados pelo asfalto, como mostra uma série de reportagens sobre o tema. Como o uso de praças condenadas ao abandono pode ser uma oportunidade de lidar com a terra. As possibilidades de terrenos baldios virarem espaço de cultivo de alimentos. A criatividade de um shopping, que transforma as sobras de alimentos de sua praça de alimentação em terra fértil na própria cobertura. Orgânicos em plena metrópole. No extremo sul da capital, agrotóxicos dão lugar a técnicas agroecológicas para preservar o entorno ambiental e produzir alimentos sem insumos químicos – o que abre até mercados mais rentáveis para gente da comunidade. Confira em: http://bit.ly/rba_hortas_em_sampa
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MARCELO OLIVEIRA/ASCOM-CNV
Rosa Cardoso, em encontro com sindicalistas: abrir arquivos de empresas que ajudaram a repressão
Quem perseguiu e por quê Dirigentes sindicais da época da ditadura (1964-1985) e outros ainda em atividade concordam com a necessidade de abrir os arquivos não apenas das Forças Armadas e dos órgãos de repressão, mas também das empresas que colaboraram com o regime. Coincidiram ainda na importância de as centrais brasi-
leiras unirem forças para resgatar a memória dos trabalhadores perseguidos durante os anos de chumbo. “Queremos formar um grupo muito representativo para contar essa história”, afirmou a advogada Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade. http://bit.ly/rba_empresas_ditadura
A crise nos estádios cariocas reacende a discussão sobre a “vocação olímpica” do Rio, tantas vezes afirmada pelas autoridades públicas e esportivas nos últimos anos. Sede da Olimpíada de 2016, a cidade sofre com as reformas e intervenções urbanas que provocaram ou provocarão o fechamento de alguns de seus principais equipamentos. Os problemas no Engenhão, cantado em verso e prosa como “o principal legado” do Pan, lançam uma nuvem de dúvidas. Com custo inicial estimado em R$ 60 milhões, o estádio acabou sendo construído por R$ 380 milhões, e agora apresenta problemas elétricos, hidráulicos e estruturais – teve de ser interditado. No Maracanã, alguns personagens da construção do Engenhão se repetem, caso das empreiteiras Delta e Odebrecht. O enredo é semelhante, com atrasos na execução das obras, aumento no
SECRETARIA DE OBRAS DO RIO DE JANEIRO/DIVULGAÇÃO
Vocação olímpica em xeque
Maracanã: atrasos, problemas e figurinhas repetidas
orçamento previsto (de R$ 600 milhões para R$ 932 milhões) e muita pressa na reta final. Curiosamente, a Delta havia abandonado a obra do Engenhão no meio, assim como fez mais recentemente com o Maracanã. http://bit.ly/rba_rio_jogos REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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RÁDIO
Horacio Cartes, eleito presidente do Paraguai, fala em aprender com o Brasil a combater a pobreza, defende a volta do país ao Mercosul e quer ficar de bem com a Venezuela
Cartes: pedido de apoio a Dilma
Por Marilu Cabañas
U
m dia depois de ter sido didatos. Efraín Alegre, do Partido Liberal declarado presidente eleito Radical Autêntico, ficou com 37%. Os dois do Paraguai, no pleito de candidatos da esquerda perderam para os 21 de abril, o empresário brancos e nulos: Mario Ferreiro, da Frente Horacio Cartes, do Parti- Avanza País, fez 5,85% dos votos e Aníbal do Colorado, disse em entrevista que Carrillo, da Frente Guasu, 3,32%. O pregostaria de também travar em seu país sidente deposto, Fernando Lugo, foi eleito uma luta contra a pobreza, assim como senador pela Frente Guasu. O presidente eleito ressaltou a necesfaz o Brasil. Afirmou já ter expressado à presidenta Dilma Rousseff o pedido de sidade de investir em infraestrutura e na apoio, quando ela telefonou para cum- criação de empregos. Afirmou que o Paprimentar o vencedor. A posse será em raguai produz alimentos para cerca de 90 15 de agosto. A vitória com 46% dos milhões de pessoas, mas perto de 20% da votos devolve o poder ao partido que, população não tem acesso à alimentação depois de governar o país por 61 anos, básica. E demonstrou que está interessahavia sido derrotado em 2008 pela co- do em aprender com o Brasil políticas púligação de centro-esquerda que elegeu blicas de superação da pobreza. “Pedi isso Fernando Lugo – apoiado pelo Partido a Dilma, que mostrou muita predisposiLiberal, Lugo foi destituído em junho do ção em ajudar no que vocês, brasileiros, já ano passado, depois de um golpe insti- têm experiência.” Chegou a afirmar que, se tucional liderado pelos próprios liberais. o país continuar com índices tão altos de No dia da votação, pobreza ao final de seu o clima era de silêncio mandato, em 2018, seu Sintonize e apatia. Cerca de 32% governo será obrigado dos 3,5 milhões de paa dizer que fracassou. 93,3 FM raguaios aptos a votar Cartes é dono de emLitoral paulista presa de tabaco e acuse abstiveram e outros 98,9 FM Grande São Paulo sado de envolvimento 6% votaram em branco 102,7 FM com narcotráfico, lavaou nulo. Ou seja, quaNoroeste paulista se quatro em cada dez gem de dinheiro e conNa internet trabando de cigarros eleitores não votaram www.redebrasilatual.com.br/radio para o Brasil. Na entreem nenhum dos can10
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vista, ele rebateu essas acusações e disse que criou uma página na internet para prestar esclarecimentos. “Isso é absolutamente falso. Depois que entrei na atividade política comecei a encontrar todo tipo de acusação.” O presidente eleito também falou sobre os interesses comerciais entre Brasil e Paraguai. “O Paraguai tem interesse para o Brasil, pelo custo energético e de mão de obra. Juntos, os dois podem obter benefícios.” O desejo de fazer o país voltar ao Mercosul foi expresso por Cartes diversas vezes. Ele disse que fará todos os esforços para a reintegração. O Paraguai foi afastado do bloco comercial, abrindo espaço para o ingresso da Venezuela, e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) em represália ao impeachment de Lugo. “Temos mais atrativos para buscar coincidências do que ficar nessa diferença, que não é boa para ninguém”, afirmou. “É hora de reparar erros. Quando os senadores paraguaios tomaram a decisão de vetar a Venezuela era outro ambiente; hoje o clima é bom, o compromisso é que se normalizem as relações de mercado comum.”
Ouça mais
As reportagens da Rádio Brasil Atual na cobertura das eleições estão no http://bit.ly/rba_vota_paraguai
PABLO PORCIUNCULA/AFP
Hora de reparar erros
MAURO SANTAYANA
A segunda morte de Thatcher
Quando iniciou a carreira, ela mandou suspender o fornecimento de leite nas escolas. Diante dos protestos, decidiu que as crianças poderiam beber, por conta do Estado, o suficiente para não se desnutrir
A
reação, nas Ilhas Britânicas, diante da morte de Margaret Thatcher, e das dispendiosas cerimônias fúnebres que lhe foram dedicadas, no abril passado, pode ser vista como o prenúncio do fim de um ciclo histórico. Os quase 11 anos em que ela esteve no poder, de 1979 a 1990, foram a grande contrarrevolução histórica do século. A política conservadora, sob seu comando, não trouxe só a anulação das conquistas dos trabalhadores britânicos, ou o princípio da queda do sistema socialista, com a implosão da União Soviética, mas a anulação dos direitos fundamentais do homem. As manifestações de protesto, repetidas em Londres e em outras cidades do Reino Unido, contra os infindáveis cortes no orçamento – iniciados pela “austeridade” de Thatcher há mais de 30 anos – foram também de regozijo pelo seu desaparecimento. “The bitch is dead” (a cadela morreu) dizia um cartaz, durante as manifestações de 13 de abril, no centro de Londres. Thatcher foi o símbolo da brutalidade em favor dos ricos e poderosos, e em claro conluio com a Coroa Britânica, que a tornou nobre com o título de Baronesa de Kesteven. Quando iniciou sua carreira como alta dirigente da Secretaria de Educação da Grã-Bretanha, mandou suspender o fornecimento de leite aos alunos de 7 a 11 anos, com o argumento de que os pais podiam pagar. Diante dos protestos, decidiu que as crianças poderiam beber, por conta do Estado, apenas o suficiente para que não se “desnutrissem”, algo co-
mo um terço de copo do alimento por dia. Com o conluio entre Thatcher, Reagan, João Paulo II e o Clube de Bilderberg e o controle dos grandes meios de comunicação, tornaram-se globais as reformas antissociais da Grã-Bretanha, com o objetivo de demitir o Estado de seu dever de manter o equilíbrio necessário entre o trabalho e o capital. Como disse Lord Prescott, sobre a morte da ex-primeira-ministra, ela só defendeu os multimilionários, os banqueiros, os privilegiados. Nunca mostrou a menor compaixão pelos “doentes, necessitados e desesperados”. Prescott foi o primeiro a denunciar a pompa fúnebre, que custaria 10 milhões de libras esterlinas (o equivalente a R$ 30 milhões) aos contribuintes britânicos. Ele sugeriu que apenas os multimilionários beneficiados por ela contribuíssem para o enterro. O legado de madame Thatcher é hoje o desemprego, a miséria, o aumento da mortalidade na infância, dos trabalhadores idosos, dos suicídios em geral, da criminalidade e do uso de drogas, entre elas os medicamentos psicotrópicos. Os pensadores lúcidos mostram que o sistema capitalista exacerbado pelo neoliberalismo ameaça hoje a sobrevivência do homem. Todos os países, e neles se incluam a China e os emergentes, estão em risco: os políticos e os executivos dos bancos, da indústria, das multinacionais – com poucas exceções – se perdem entre o desvario da corrupção, o delírio do “mercado”, a incapacidade de administrar e a falta de credibilidade. É nessa situação que a esperança do mundo se orienta em busca da mobilização dos trabalhadores e da juventude. Os movimentos de protesto estão privados de organizações políticas disciplinadas e de liderança intelectual. Falta coordenação, nacional e internacional, da ação dos grupos, que só as entidades de classe podem obter. Os banqueiros continuam a mandar nos poderes institucionais dos Estados e a exigir que os pobres paguem com a vida, como está ocorrendo, pela crise provocada por sua ganância – na enlouquecida especulação, na sonegação tributária, no saqueio dos povos, via paraísos fiscais, na sangria das remessas de lucros e nas fraudes já de conhecimento público. É preciso que o Estado volte a ser Estado, o governo volte a ser governo – e o povo volte a ser povo, isto é, o autor de sua própria história. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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TVT
O país visto por eles Correspondentes da imprensa internacional contam suas impressões sobre o Brasil no programa ABCD em Revista
Pablo Giuliano
J
á fomos o país do carnaval, da bossa nova e do futebol. Aliás, ainda somos tudo isso. E passamos a ser também o Brasil do desenvolvimento econômico, do ex-presidente metalúrgico, dos grandes eventos internacionais, o B dos Brics. Viramos a bola da vez. Não, não é egocentrismo. É a opinião declarada por correspondentes da imprensa internacional que atuam no país. Eles foram personagens do programa ABCD em Revista, da TVT, no mês que passou. Cada vez mais a imprensa estrangeira mergulha no universo brasileiro. Assuntos como mensalão, política interna e o ex-presidente Lula são reportagens corriqueiras. Celebridades do mundo do esporte também. O correspondente da agência espanhola EFE, Waldheim Montoya, diz não haver um dia sem notícias sobre Neymar. Antigamente era comum numa entrevista coletiva ter profissionais de países tradicionais, como Portugal, Inglaterra, Estados Unidos. Hoje, Montoya diz encontrar colegas das Filipinas e dos países do Oriente Médio. A agência Reuters é outro exemplo: aumentou o número de jornalistas. Todd Benson, diretor de redação, chama a atenção para, além do crescimento econômico, eventos como a Copa do Mundo em 2014 e a Olimpíada em 2016. Vira e mexe o Mundial é o assunto do dia. A jornalista Eleonora Gosman, do argentino El Clarín, está apreensiva com os preparativos. Para ela, o atraso já é evidente, mas nem por isso vergonhoso. Ela considera haver uma infraestrutura hoteleira crescente no país e ressalta o extremismo brasileiro. O sucesso total ou o fracasso. “Não precisa ser dessa forma.” Para o correspondente dos jornais Los Angeles Times e Financial Times, Vincent Bevins, que mora no Brasil há dois anos, chama a atenção a cobertura tendenciosa de alguns veículos. A imprensa brasileira, em sua opinião, tem apenas uma visão sobre os fatos. Não existe o outro lado da moeda. “Nunca vi em toda a minha vida um lugar onde toda a mídia tem uma tendência e o resto da população parece que tem outra.” Pablo Giuliano, correspondente da agência de notícias italiana Ansa, concorda e fala no poder econômico criando a tendência da mídia nacional. Quando o assunto é a facilidade de trabalhar no país, eles dizem que, tirando um telefonema sem retorno ou uma demora para marcar entrevista, o trabalho é tranquilo. Todd Benson compara: “Países como Venezuela e Cuba, até mesmo Estados 12
MAIO 2013 REVISTA DO BRASIL
Todd Benson
Eleonora Gosman
Unidos, são mais difíceis. Aí o jeitinho brasileiro pode ajudar. Entrar em uma reunião sem credencial é possível por aqui, seria impossível nos Estados Unidos”. Conhecer profundamente o Brasil é, além de um privilégio para os correspondentes, é importante para que a imagem do país seja formada de maneira séria. Daí a importância desses profissionais trabalhando de forma livre, levando ao público internacional a realidade brasileira.
Como sintonizar Canal 48 UH F ABC e Grande S. Paulo (NGT) Canal 46 UHF Mogi das Cruzes e Alto Tietê Na internet www.tvt.org.br
TV a cabo (NET) no ABC ECO TV: canais 96 (analógico) e 9 (digital) TV a cabo em São Paulo Canais 9 e 72 TVA (analógico) NET e 186 (digital)
LALO LEAL
A informação livre
Quem está se dando mal são os grandes grupos empresariais de comunicação, até aqui senhores absolutos da verdade
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m 1994, o respeitável jornal inglês The Guardian atirou no que viu e acertou no que não viu. Em um exercício premonitório, encartou numa de suas edições alguns exemplares do que poderia ser o jornal no então longínquo ano de 2004. A novidade, além do tamanho reduzido, era a personalização das informações. Por meio de um banco de dados, o jornal saberia exatamente quais eram os interesses de cada um de seus leitores, os quais, através de um cartão magnético, imprimiriam um exemplar pessoal em qualquer banca. Havia ainda o requinte da impressão ser feita em um tipo de fibra impermeável, capaz de resistir à água das banheiras, local onde o jornal poderia ser lido com grande conforto, bem ao gosto dos ingleses. A forma não vingou, mas o conteúdo personalizado ganhou força através de outro caminho, a internet. Com uma diferença fundamental: o fim da rígida divisão entre emissores e receptores. Papéis que agora são assumidos sem distinção por todos os envolvidos nas trocas de mensagens eletrônicas. O resultado já pode ser percebido num ainda incipiente mas promissor crescimento da liberdade de expressão pelo mundo. Quem está se dando mal são os grandes grupos empresariais de comunicação, até aqui senhores absolutos da verdade. Muitos já acusam o golpe, alguns discretamente, outros de forma ensandecida, como certos colunistas da grande mídia, que têm suas informações e opiniões contraditadas em blogs e nas redes sociais. Um desses, “José Nêumanne Pinto, foi ao Congresso pedir uma ‘lei dura’ para a internet, usando um
caso de ofensa pessoal, típico no Código Penal, para restabelecer mecanismos de exceção”, como apontou o site Brasil 247. Antes dele, nas eleições presidenciais a força da comunicação alternativa já havia sido sentida pelo candidato José Serra. Acostumado a controlar os grandes meios de comunicação com telefonemas para seus proprietários e editores e receber deles total apoio, Serra viu-se diante do contraditório exposto por diferentes blogs, chamados por ele de “sujos”. Era o reconhecimento explícito do poder da nova mídia que veio para ficar. São inúmeras as notícias censuradas pela velha mídia que só chegam ao conhecimento de parte do público graças à internet. Por exemplo, por qualquer critério jornalístico a morte de oito apoiadores do presidente Maduro da Venezuela, logo após as eleições naquele país, seriam notícia, com detalhamento das circunstâncias em que ocorreu e a completa identificação das vítimas. Mas quem se informou pelo Jornal Nacional de nada ficou sabendo, como bem mostrou o blogueiro Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania. Quando os temas são mais complexos, a censura é ainda pior. Basta ver o debate em torno da alta de preços de alguns produtos e dos riscos inflacionários. Posições diferentes daquelas que defendem a alta de juros como solução não têm vez na grande mídia. No auge dessas discussões a GloboNews, numa conversa entre seus invariáveis comentaristas, colocou durante alguns minutos na tela a legenda implacável: “Dilema da política econômica: inflação ou juros altos”. Qualquer outra opinião estava liminarmente censurada. A pá de cal nesse bloqueio informativo a que os brasileiros estão submetidos há décadas será dada quando a banda larga da internet se universalizar. Virá o momento em que informações urgentes não passarão mais pelos grandes meios para chegar ao público. Aliás, quem já está ligado à rede testemunhou isso na notícia da prisão do segundo suspeito dos atentados em Boston, divulgada em primeira mão através do Twitter. Em São Paulo, a prefeitura anuncia o acesso gratuito à internet nas ruas, passo decisivo para o avanço da democratização das informações. Com isso, parte da profecia do Guardian se concretizará, com o cidadão buscando as notícias de forma personalizada, mas sem a necessidade do cartão magnético. Ficam faltando, para os ingleses, computadores e celulares impermeáveis à água da banheira. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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ALTERNATIVA Conceição Oliveira, a “Maria Frô”: produção independente para furar o bloqueio da imprensa comercial
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ma das vozes mais críticas à concentração midiática do país, o professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) Venício Lima não aguenta mais ficar falando mal dos meios de comunicação tradicionais. “Dizer que os maiores jornais, revistas e canais de tevê são parciais e defendem os interesses das elites econômicas é um discurso muito batido”, argumenta. “O diagnóstico está feito. Agora precisamos qualificar o debate.” Venício não está sozinho. Cresce o número de ativistas que ensaiam substituir a crítica ao trabalho alheio por uma postura mais autêntica no espectro jornalístico brasileiro. “Estamos sempre reagindo e fazendo contraponto. Precisamos elaborar mais pautas próprias”, concorda o repórter Rodrigo Vianna, que mantém o blog Escrevinhador. A ativista Conceição Oliveira, criadora do blog Maria Frô, vê na produção independente uma forma eficaz de furar o bloqueio da imprensa comercial para um “mundaréu” de notícias que não lhes convém. Dessa forma, ela acredita, os meios alternativos de produção jornalística já começam a atrair o interesse e a atenção das fontes, de diversas áreas. “Por exemplo, fui primeira a noticiar, antes mesmo do MST, a parceria entre o Movimento dos Sem Terra e a prefeitura de São Paulo no fornecimento de alimentos para escolas municipais”, afirma. A produção de notícias “fora da pauta” já incomoda os que se consideravam os únicos donos da informação. Não é à toa que blogueiros, portais e publicações independentes vêm sendo alvo de ataques judiciais devido a ações movidas por políticos, autoridades e pessoas ligadas a grandes emissoras, editoras e jornalões. “É um abuso de poder”, avalia o diretor da Rede Brasil Atual, Paulo Salvador. “Os processos são uma forma de censurar vozes dissonantes e cercear a liberdade de expressão por meio do estrangulamento financeiro.” A Rede Brasil Atual, que edita a Revista do Brasil, já foi alvo de dois processos de censura, em junho de 2006 e outubro de 2010, ambos movidos pela coligação liderada pelo PSDB na disputa à Presidência. Os processos têm origens diversas.
Enquanto a sociedade se movimenta para ampliar a liberdade de comunicação e de expressão no país, aqueles que querem a liberdade só para seus negócios usam a Justiça para censurar os que fazem uma nova mídia Por Tadeu Breda
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Estamos apenas reagindo e fazendo contraponto. Precisamos elaborar mais pautas próprias Rodrigo Vianna
ADIANTE Venício Lima: “O diagnóstico está feito. Agora precisamos qualificar o debate”
Em março, o jornalista Luiz Carlos Azenha chegou a anunciar o encerramento do site VioMundo, que edita, depois de ser condenado em primeira instância a pagar indenização de R$ 30 mil ao diretor da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel. A batalha é desigual: contrapõe o blogueiro ao executivo do maior império midiático do país. Kamel ainda mantém processos contra Rodrigo Vianna e Marco Aurélio Mello, do blog Do Lado de Lá. Azenha, Vianna e Mello já trabalharam no jornalismo da Globo. Em 2006, estavam entre os profissionais que contestaram a cobertura das eleições presidenciais e não aderiram, na época, a um abaixo-assinado no qual o chefe incitava os “colegas” a apoiar seus métodos. Kamel já acionou também o blogueiro conhecido como Sr. Cloaca, do Cloaca
News, famoso por empregar humor e sátira em seus posts. Em 2009, Cloaca achou no YouTube o filme Solar das Taras Proibidas, pornochanchada de 1984, e o postou em seu blog. Um dos atores era Ali Kamel, homônimo do executivo da Globo. “Jamais disse que aquele Ali era o da Globo, embora eu considere o jornalismo da emissora pornográfico”, diz. Paulo Henrique Amorim e Luis Nassif, que afora suas atividades profissionais mantêm blogs de elevada audiência, também estão na lista de processados. Apesar da batalha censória-judicial, todos continuam no ar.
Não precisa responder
“Existe um processo de judicialização do debate político no Brasil”, sugere Azenha. “Já fui vilipendiado inúmeras vezes por outros blogueiros e meios de comuREVISTA DO BRASIL
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nicação, mas nunca acionei ninguém judicialmente. Sempre levei as polêmicas para a esfera da discussão política.” O editor do VioMundo lembra que a Globo, apesar de ser uma empresa privada, atua em um espaço de concessão pública e possui enorme influência sobre os destinos do país. “Ali Kamel é um dos seus diretores. Portanto, é legítimo criticá-lo pelas funções que ele exerce, não?” O executivo da Globo não é o único que arremete judicialmente contra os críticos. É conhecido o caso do blog Falha de S. Paulo, tirado do ar após uma ação movida pelo alvo de sua paródia: a Folha de S. Paulo. O processo começou em 2010, quando os irmãos Lino e Mário Ito Bocchini decidiram fundar um espaço na internet para satirizar o diário dirigido por Otavio Frias Filho. “Não duramos nem um mês", lamenta Lino. “A empresa pediu multa de R$ 10 mil por dia. Depois conseguimos diminuir para R$ 1.000. Obviamente, não continuamos. Como pegaria mal cercear a liberdade de expressão de um blog, a Folha resolveu alegar razões comerciais, propriedade industrial, uso da marca.” 16
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Para Lino, essa camuflagem é uma “tática manjada”. A ordem de prisão emitida contra o criador do WikiLeaks, Julian Assange, seria o maior exemplo dessa ânsia censória. “Não conseguiram pegá-lo pelo vazamento dos telegramas diplomáticos dos Estados Unidos, inventaram um suposto caso de abuso sexual”, lembra. “Os que criticaram a Globo não podiam ser processados pelas críticas, então apareceu o episódio do ator pornô e Kamel resolveu se aproveitar. Tanto que o diretor jamais pediu direito de resposta a críticas feitas por Azenha ou Vianna”, observa. “Se o maior bem jurídico é a verdade, como essas pessoas podem pretender apenas uma indenização e dispensar a publicação do desmentido? Como podem querer apenas dinheiro, e não a reparação da verdade?”, questiona o jornalista Fábio Pannunzio, que não integra o grupo dos “blogueiros sujos” – assim batizado pelo tucano José Serra –, mas também tem sido prejudicado financeiramente por processos judiciais. “É uma empreitada para calar os jornalistas.” Pannunzio é repórter da Band há seis anos.
Sempre levei as polêmicas para a esfera da discussão política Luiz Carlos Azenha
omo funcionário, segue a linha editoC rial da emissora. Em 2009, decidiu expressar suas opiniões num blog pessoal. A atividade já lhe rendeu sete processos. Sufocado pelos honorários advocatícios, decidiu interromper as postagens.
Velho de guerra
Pannunzio nunca foi processado por grandes empresas de comunicação. “Ao contrário do que dizem, acredito que a imprensa faz um trabalho maravilhoso no Brasil. Sem ela não teríamos mensalão nem impeachment do Collor", defende. “Nossa mídia é bastante madura para a democracia que temos.” Ainda assim, o bolso do blogueiro sangrou. Um dos responsáveis é o ex-secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo Antonio Ferreira Pinto, que não gostou quando o jornalista quis responsabilizá-lo pela onda de violência na região metropolitana da capital, ano passado. Antes, a família de uma estelionatária paranaense e um político mato-grossense já haviam pedido reparações financeiras por artigos publicados no Blog do Pannunzio.
PAULO PEPE/RBA
A publicação só existe porque fala de coisas que a imprensa tradicional esconde Lúcio Flávio Pinto
ARQUIVO PESSOAL
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Jamais disse que aquele Ali era o da Globo, embora eu considere o jornalismo da emissora pornográfico Sr. Cloaca
"Em 2011, tive de desembolsar R$ 53 mil para pagar advogados em Cuiabá, em Curitiba e em São Paulo. No ano passado, foram mais de R$ 60 mil. Isso só com processos de primeira instância. Depois, quando recorrer aos tribunais superiores, em Brasília, vai ficar mais caro", contabiliza. “Acabou ficando caro manter acesa a chama da liberdade de expressão." Um dos campeões em processos está na Amazônia. Criador do Jornal Pessoal, em 1987, que considera precursor dos blogs, Lúcio Flávio Pinto carrega nas costas 33 ações judiciais, 19 delas movidas pelos diretores de O Liberal, jornal do maior grupo de comunicação de Belém. O jornalista frequenta os tribunais paraenses há 21 anos e confessa que tantos ataques o liquidaram pessoal e profissionalmente. “Minha vida é fazer das tripas coração para que o jornal não pare de circular.” O Jornal Pessoal é um caso atípico. Ao contrário das iniciativas on-line que florescem em todo o país, o “blog” de Lúcio Flávio Pinto circula em papel. ” A publicação só existe porque fala de coisas que a imprensa tradicional esconde", diz.
Apesar da artilharia, Lúcio Flávio só teve de pagar uma indenização até agora: de R$ 25 mil, em março. Mas não tinha um real para desembolsar. “Fiz uma coleta nacional pela internet e mais de 700 pessoas contribuíram.” O dinheiro arrecadado foi transferido para a conta dos herdeiros de Cecílio do Rego Almeida, a quem o jornalista classifica como maior grileiro do Brasil. “A Justiça se transformou no capitão do mato da elite brasileira.” Para o jornalista Altamiro Borges, autor do Blog do Miro e presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, os ativistas devem estar preparados: “Conforme vão aumentando o acesso da população à internet e o número de pessoas que produzem conteúdo na rede, aumentam também as ações de perseguição e cerceamento a essas vozes." Essa perspectiva motivou o Barão de Itararé a estabelecer uma parceria com a ONG internacional Artigo 19 para formular um “mapa da perseguição” no país. A organização encabeça também a cria-
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Conforme aumenta o número de pessoas produzindo conteúdo, aumenta a perseguição Altamiro Borges
ção de um fundo, baseado em doações espontâneas, destinado a socorrer financeiramente colegas que sejam alvo de processos judiciais, ameaças ou violência em todo o Brasil.
Verdades e versões
O professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Eugênio Bucci adiciona outros entraves à plena liberdade de expressão para todos os cidadãos – e não apenas para as grandes empresas de comunicação – no Brasil. “Temos uma cultura que convive bem com a ideia de censurar a imprensa", critica. Bucci considera que a defesa da liberdade de imprensa deve ser abraçada por todas as correntes de opinião. “Seja simpático ou contrário ao governo, todo blog ou jornal que precisa fechar porque está sob censura judicial ou porque levou uma multa desproporcional, que não pode pagar, é vítima de uma mentalidade censória inaceitável. A liberdade deve ser para todos, sem critérios ideológicos, porque se trata de um direito humano.” REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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Acabou ficando caro manter a chama da liberdade de expressão Fábio Pannunzio
Como nem Lula nem Dilma mostraram disposição de mexer nesse vespeiro, os movimentos reunidos no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) decidiram elaborar um projeto de lei de iniciativa popular que regulamente os artigos da
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A ideia parece elementar. Mas os processos movidos por grandes corporações jornalísticas e a contrariedade de muitas empresas do setor de submeter-se a um marco regulatório para as comunicações expõem indisposição de parte poderosa do mundo das comunicações quanto à amplitude da liberdade de expressão para todas as correntes de pensamento. A diversificação de vozes na mídia brasileira é uma necessidade apontada por movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e intelectuais – e reconhecida pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, que em março soltou um relatório sobre a concentração dos meios de comunicação no Brasil. O nome do estudo, O País dos Trinta Berlusconis, remete ao magnata e ex-premiê italiano Silvio Berlusconi e aos grupos familiares que dominam a mídia brasileira. “O Brasil apresenta um nível de concentração midiática que contrasta fortemente com o potencial de seu território e a extrema diversidade de sua sociedade”, aponta o relatório. “O país ainda está longe de oferecer a todos os seus cidadãos um igual acesso aos novos suportes da informação, apesar de seu aparente nível de desenvolvimento.”
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Constituição que proíbem, por exemplo, a propriedade cruzada dos meios de comunicação. “Vamos recolher 1,3 milhão de assinaturas para que o direito à comunicação seja uma realidade no Brasil”, afirma a secretária de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti, coordenadora-geral do FNDC. O assunto está tão presente na agenda das entidades sindicais que o mote “Quero falar também” foi escolhido para uma manifestação do 1º de Maio da CUT na região do ABC paulista. “Nosso objetivo é despertar o senso crítico, para que a população perceba o quanto a comunicação afeta a educação dos nossos filhos, ou o quanto o sistema comercial condiciona até os horários dos jogos de futebol aos interesses de emisoras e anunciantes, e não dos atletas e torcedores”, diz Valter Sanches, diretor de Comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e responsável pelo jornal ABCD Maior e pela emissora TVT. INICIATIVA POPULAR Rosane Bertotti: “Vamos recolher 1,3 milhão de assinaturas para que o direito à comunicação seja uma realidade no Brasil”
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“É sensacional que essa manifestação seja em São Bernardo do Campo, no mesmo lugar onde a luta pela redemocratização do país deslanchou”, lembra Conceição Oliveira. “No Brasil, o que existe é uma liberdade de monopólio. Somos obrigados a ouvir sempre as mesmas pessoas emitindo as mesmas opiniões, num discurso único e emburrecedor", argumenta Miro, do Barão de Itararé. “Nós queremos políticas públicas que estimulem a pluralidade. Assim, mais vozes poderão chegar ao grande público." Mas o diretor executivo da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Ricardo Pedreira, não vê a concentração midiática como anomalia. “A existência de grandes grupos de comunicação é própria das
economias contemporâneas", justifica o representante dos maiores diários do país. “Vemos esse fenômeno com extrema naturalidade – até porque ele não impede a verbalização de todos os tipos de opinião.” Pedreira está convencido de que Globo ou Abril, por exemplo, só conseguiram ser grandes porque têm aceitação e audiência do público. “Não há nenhum reparo a fazer nesse sistema." O empresário Eduardo Guimarães, que trabalha com comércio exterior, que começou a militar na área criando um “movimento dos sem-mídia” e o Blog da Cidadania, admite a crescente evolução dos canais alternativos de difusão de informação. “Mas tudo o que criamos é com nossos próprios parcos recursos, nossa capa-
cidade de produção é muito inferior à das grandes redes, que ainda por cima recebem polpudos recursos da publicidade estatal", ressalva. “Os principais canais de comunicação, a TV e o rádio, são concessões públicas que não refletem a pluralidade da sociedade. E, como não há controle remoto que resolva isso, ainda considero que somos, sim, sem-mídia." Para Venício Lima, da UnB, o que está em jogo no debate sobre a comunicação brasileira é a própria noção de liberdade de imprensa. “A liberdade em que acreditam (os empresários da mídia comercial) é individualista, só pensa em si própria. Numa democracia efetiva, o Estado deve assumir um papel de garantidor de direitos sociais", compara.
A ideia do professor Venício Lima guarda relação com recentes ações do poder público em outras searas: as cotas para negros nas universidades federais, por exemplo, ou a emenda constitucional que garantiu direitos trabalhistas às empregadas domésticas. Se é fato que estudantes negros não têm as mesmas oportunidades que os brancos, então a política pública entra em cena para reduzir a brecha. “Se não houver políticas públicas, quem já é forte ficará ainda mais forte. A inexistência de regras sempre favorece os poderosos”, reflete Altamiro Borges. “Não pode existir liberdade de expressão se não há igualdade de condições.” Além da elaboração e aprovação de um marco regulatório que impeça a formação de monopólios e divida a frequência radioelétrica entre meios públicos, comunitários e comerciais, como está expresso na Constituição, o professor Eugênio Bucci chama atenção para outras medidas que considera urgentes: “Deveríamos nos preocupar com a crescente
mistura de igrejas com emissoras de comunicação e partidos políticos, e também com o abuso de dinheiro público para fazer publicidade em veículos privados”. As verbas da publicidade oficial são um dos objetos de disputa entre as diferentes visões sobre liberdade de imprensa. As grandes empresas abocanham o grosso dos recursos da publicidade oficial. De acordo com dados da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, cerca de 5 mil veículos recebem verbas publicitárias da União, mas as emissoras de TV concentram mais de três quintos de todo o dinheiro. A Globo, por exemplo, recebeu R$ 6 bilhões nos últimos 12 anos.
ROBERTO PARIZOTTI/CUT NACIONAL
Democratizar a verba
Rovai: governo financia a concentração
“O governo acaba financiando a concentração midiática”, critica o jornalista Renato Rovai, presidente da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores de Comunicação (Altercom) e editor da revista Fórum. “Nós reconhecemos que o número
Distribuição da publicidade do governo federal 62%
5 mil veículos de comunicação
38%
Emissoras de TV
Nos últimos 12 anos, a Globo arrecadou R$ 6 bilhões
de veículos que receberam recursos cresceu nos últimos anos, mas a distribuição continua injusta.” De acordo com o jornalista, de 2000 para 2012, o investimento no meio TV saltou de 54,5% da verba estatal para 62,63%. “Isso apesar da queda de audiência na TV e do fortalecimento da internet. E mesmo no meio internet saltou de 39% para 49% o dinheiro pago aos grandes portais. Outra contradição, concentrar recursos enquanto a diversidade na rede se amplia”, observa. A Altercom propõe como política a destinação de 30% das verbas publicitárias às pequenas empresas de comunicação, como forma de apoiar os meios não tradicionais e de fomentar a diversidade. “Por lei, 30% da merenda escolar servida nas escolas estaduais e municipais deve ser preparada com alimentos cultivados por pequenos proprietários. É uma ação positiva do Estado para proteger produtores familiares. Fazer algo parecido com a comunicação seria um passo sensacional”, defende Rodrigo Vianna. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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Mais para a e
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esquerda
Embora um senso comum aponte uma inspiração fascista da CLT, que completa 70 anos, há teses consistentes, à esquerda, que mostram outras tendências. E insistentes, à direita, a favor de seu fim Por Vitor Nuzzi
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ascida em meio a uma guerra mundial e, internamente, a uma ditadura, a Consolidação das Leis do Trabalho acaba de completar 70 anos possivelmente como uma das legislações brasileiras mais faladas (em geral malfaladas), mais estudadas e, paradoxalmente, menos conhecidas. Seus 900 artigos já passaram por várias atualizações e resistiram a diversas tentativas de reforma. O último remanescente da comissão responsável pela elaboração do anteprojeto da CLT, o jurista Arnaldo Süssekind, que morreu no ano passado, chegou a dizer que os três aspectos fundamentais da relação trabalhista – tempo, salário e dispensa – já estão flexibilizados. Ele também questionava o senso comum que relaciona a consolidação brasileira com a Carta del Lavoro, da Itália fascista, escrita em 1927. Uma pesquisa mais cuidadosa aponta outras fontes para o que se transformaria no Decreto-Lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943. A comissão formada para criar a CLT teria ainda se inspirado, por exemplo, na encíclica Rerum Novarum (Coisas
OPERÁRIOS DA VISCOSEDA, DAS INDÚSTRIAS REUNIDAS F. MATARAZZO, BAIRRO FUNDAÇÃO, SÃO CAETANO DO SUL (SP), 1933. ACERVO FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE SÃO CAETANO DO SUL
PESSOAS COM DIREITOS ESPECÍFICOS A industrialização das décadas de 1930 e 1940 transformou a sociedade brasileira, que passou a olhar para os trabalhadores de forma “mais civilizada” REVISTA DO BRASIL
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Novas), de 1891 (papa Leão XIII), e no 1º Congresso Brasileiro de Direito Social, realizado em 1941, em São Paulo. A comissão também sofreu influência de outras linhas de pensamento – socialista, comunista, positivista. Surgida ainda no contexto da Revolução Industrial, a encíclica deixa claro sua oposição às ideias socialistas de igualdade, ao considerar “impossível que na sociedade todos sejam elevados ao mesmo nível”, porque a natureza estabeleceu diferenças “múltiplas e profundas” entre os homens. Defende a propriedade particular e critica as greves, associando-as à desordem. Mas também fala, por exemplo, da necessidade de estabelecer limites no número de horas diárias de trabalho e de uma remuneração mais justa.
Greves
Argumenta: “O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves”. E julga um grande erro considerar “inimigos” o capital e o trabalho, porque, afinal, um não viveria sem o outro. Palavras parecidas seriam ditas 122 anos depois, em 9 de abril deste ano, quando o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Carlos Alberto
Há décadas o professor John French, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, pesquisa o movimento operário brasileiro. Em 2001, lançou no Brasil o livro Afogados em Leis, sobre a CLT, que ele considera uma legislação avançada. Mas faz a ressalva de que nem tudo saiu do papel. Em seu livro sobre a CLT, o senhor diz que um historiador do trabalho acostumado com os Estados Unidos fica atônito com a liberalidade com que a consolidação estabeleceu direitos e garantias. Visto por essa perspectiva, qual é a importância da CLT no Direito Social? No papel, o Brasil da CLT é uma utopia operária. Em comparação com a CLT, a legislação trabalhista americana é retrógrada e mesquinha. Nossa classe dominante tem verdadeiro ódio pelos trabalhadores organizados que tentam melhorar salários, benefícios e condições de trabalho. Juntando uma ideologia que não reconhece coletividades e um individualismo exacerbado, os governos do nosso país têm mostrado pouco apreço pelos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores, menosprezados na prática e na legislação. No meu estado (Carolina de Norte), nossos legisladores e o governador republicanos já cortaram o seguro-desemprego, dimi22
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nuindo o pagamento por semana e o número de semanas antes de perder o benefício. Fizeram isso apesar de um nível de desemprego aberto que fica entre os piores do país (9,4% em fevereiro). É um estado abertamente antissindical, com menos de 5% de operários sindicalizados e sem direito French: “Nossa classe de negociação coletiva para os trabadominante tem lhadores dos governos e municípios. E, verdadeiro ódio pelos sem um SUS, 10% do nosso povo não trabalhadores organizados que tentam melhorar tem nenhuma cobertura de seguro salários e benefícios” médico. Nossos políticos não aceitaram um aspecto do Obamacare (como é chamado o programa de saúde elaborado pelo governo Obama) que ia dar cobertura médica com dinheiro do governo federal, deixando meio milhão de pessoas sem cobertura. O que o senhor pensa sobre as raízes da CLT? Havia preocupação com uma efetiva proteção social ou o objetivo maior era controlar o movimento trabalhista?
JARED LAZARUS/DIVULGAÇÃO
Uma utopia operária
ENTERRO DO SAPATEIRO MARTINEZ/ACERVO ICONOGRAPHIA
TRABALHO
PRESSÃO Bem antes da CLT, o Brasil viveu momentos de conflito intenso entre trabalho e capital. Paralisações, como a de 1917, já apontavam necessidade de um mínimo de garantias
Com fortes traços do corporativismo católico e fascista italiano, as iniciativas trabalhistas do Estado eram uma arma contra tentativas de organização não tutelada pelo Estado autoritário, especialmente nos primeiros 15 anos da era Vargas. Ao mesmo tempo, porém, aquelas leis dos anos 1930 também eram produto de um reformismo autóctone dentro da intelectualidade brasileira, sobretudo os advogados, que utilizavam a legislação para ampliar seu espaço de ação e influência e minimizar a opressão secular dos que trabalhavam numa sociedade injusta. O objetivo era uma “paz social” baseada no esmagamento do movimento operário antissistêmico. Desconhecendo a validade da luta de classes, o modelo clássico da CLT era baseado no vínculo estreito entre um paternalismo vazio e uma violência feroz dos operários que verdadeiramente acreditavam nas promessas feitas pelo Estado. Ainda que nem toda a legislação tenha sido cumprida, a vida dos trabalhadores brasileiros teria sido pior se não houvesse a CLT? Com uma classe empresarial reacionária e uma classe política retrógrada em comparação com Vargas, o império trabalhista da CLT ofereceu condições para a luta por gerações de militantes sindicais que tentavam – utilizando astúcia numa luta desigual
Reis de Paula, recebeu representantes de centrais sindicais: “Não existe capital sem a valorização do trabalho e sem proteger a livre iniciativa”. Para o ministro, o princípio básico da CLT é “colocar o trabalho como instrumento básico e necessário na relação social”. Já a Carta del Lavoro, aprovada em abril de 1927 pelo Gran Consiglio del Fascismo, órgão do partido liderado pelo então premiê italiano Benito Mussolini, exprimia os princípios sociais do ideário fascista e suas ideias de organização do trabalho, assumidamente atrelada ao Estado. No primeiro de seus 30 artigos, já afirma que a nação italiana “é uma unidade moral, política e econômica que se realiza integralmente no Estado fascista”. E acrescenta, no item seguinte, que o trabalho “é um dever social” que deve ser tutelado pelo Estado. A professora doutora Marly Cardone, livre-docente em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que há muitas identidades entre o texto italiano e o brasileiro. E cita, já questionando: “Espírito colaboracionista das entidades sindicais (negando o conflito), sindicato único por base territorial, direito a férias após um ano de serviço, repouso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho, trabalho noturno com remuneração superior
– criar um contrapoder operário sindical e político que poderia influenciar o Estado para implementar as promessas da CLT. Os vícios da CLT consistiam em um chamamento para a luta operária, que, por sua vez, reconheceu o paternalismo cínico por meio das boas-novas da justiça social prometida. Seria imaginável uma CLT em qualquer outro país? Nos Estados Unidos, por exemplo? Nenhuma legislação tem um significado único e nenhum julgamento – negativo ou positivo – tem sentido eternamente, através das décadas e conjunturas diversas. Em sua origem, as leis trabalhistas eram produto de uma sociedade desigual em crise com uma nova classe nascente e vista como ameaça pelas classes dominantes de todos os matizes. A legislação era, sem dúvida alguma, inovadora em relação a um liberalismo teórico do século 19 avesso à intervenção estatal nas relações sociais e econômicas, como nos Estados Unidos. Nesse contexto, a CLT era sem dúvida avançada internacionalmente e em termos teóricos. Ao mesmo tempo, sempre houve um problema na parte prática, com seu conteúdo viciado e pela falta de vontade política para a implementação do que foi prometido no papel. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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à do diurno, indenização por tempo de serviço. Será preciso mais?”
Contexto
A professora observa que as primeiras leis trabalhistas surgiram nos anos 1930, com caráter “tuitivo” (defensor) dos direitos do trabalhador. O modelo sindical, em sua análise, pretendia negar o conflito de classes, com empregados e empregadores devendo buscar sempre a conciliação. “Era uma filosofia, ou um princípio, que infelizmente prejudicou nosso sindicalismo”, afirma Marly, para quem isso ajudou a criar os chamados “pelegos”, dirigentes que só desfrutavam do posto ao não desafiar o atrelamento determinado pela estrutura oficial. O 1º Congresso Brasileiro de Direito Social “começou a sistematizar o incipiente Direito”, diz Marly, que também é presidente do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior, entidade responsável pelo evento de maio de 1941. “A legislação trabalhista era um punhado de leis. Iniciou-se a ciência do Direito Social”, afirma. Com 500 participantes e 155 teses ins-
RELIGIÃO A comissão formada para criar a CLT teria, por exemplo, a inspiração da encíclica Rerum Novarum (Coisas Novas), de 1891 (papa Leão XIII)
critas, o congresso, por sinal, foi realizado em comemoração aos 50 anos da Rerum Novarum. Algumas das ideias iriam parar na CLT, como o artigo 9º, que considera nulos os atos praticados com o objetivo de “desvirtuar, impedir ou fraudar” a aplicação dos preceitos contidos na con-
solidação. Uma das recomendações do encontro foi justamente a criação de um Código do Trabalho. “Se houve leis sociais antes de 1930, não houve uma legislação social (…) Ninguém ignora que vivemos sempre, até 1930, no regime do puro individualismo”, discursou no encerramento o próprio Cesarino Júnior, pioneiro do tema, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Para o coordenador de Estudos Sociais e Culturais da Fundação Joaquim Nabuco, Túlio Augusto Velho Barreto de Araújo, a CLT deve ser vista em seu contexto histórico. “Havia um debate intenso entre o liberalismo, como marco do capitalismo, e a visão corporativa do Estado. A CLT, e toda essa legislação trabalhista que vai se esboçando a partir de 1930, com a revolução, significava também a possibilidade de universalizar direitos que as categorias, individualmente, iam conquistando.” O pesquisador observa que só foi possível criar essa estrutura porque havia um Estado autoritário na época (o Estado Novo terminaria apenas em 1945). Mas, do ponto de vista dos direitos so-
Arqueologia da lei
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liberal, que tomou conta da mídia conservadora no Brasil – e também de uma parte do Congresso”. Bosi considera a comparação entre CLT e Carta del Lavoro uma meia-verdade, aliás, menos, brinca: “Seria apenas um quinto de verdade. Em bloco, a CLT foi um passo de modernização e de equiparação da política trabalhista brasileira à do resto do mundo, digamos, civilizado. Foi um passo positivo inegável. Todas as reivindicações substantivas foram atendidas e sistematizadas”. O estudioso reforça a ideia de contextualização. “Para começo de conversa, é necessário pensar por que o grupo que assume o poder com a Revolução de 1930 foi mais sensível à questão do trabalho do que todos os outros que dominaram a República Velha, a República do Café com Leite”, diz. A entrevista completa pode ser revista em http://bit.ly/rba_bosi
MAURICIO MORAIS/RBA
Em maio de 2007, a edição número 12 da Revista do Brasil trouxe uma entrevista com o crítico literário, professor e integrante da Academia Brasileira de Letras Alfredo Bosi ao então colega de USP Flávio Aguiar, hoje correspondente da RBA na Europa. Na conversa, intitulada “Arqueologia da CLT”, ele afirma que a legislação trabalhista é positivista, e não fascista. Na ocasião, introduzia Aguiar: “Imagine um Brasil onde os trabalhadores não têm férias nem descanso remunerado, não há salário mínimo, as mulheres não têm licença-maternidade e a jornada de trabalho não tem limite. Esse era o mundo antes das leis trabalhistas, que começaram a ser promulgadas em 1931, com a criação do Ministério do Trabalho, logo depois da Revolução de 1930. Era? Esse mundo pode estar à nossa frente, com a feroz desregulamentação das relações de trabalho promovida com ares de ‘modernização’ pela ideologia neo-
Bosi: desregulamentação com ares de modernização e apoio da mídia conservadora
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ICONOGRAPHIA
ARREIOS Na Carta del Lavoro, dos fascistas liderados por Mussolini, o trabalho “é um dever social” que deve ser tutelado pelo Estado. Influenciada pelo clima da época, a CLT nasceu na ditadura Vargas, que condicionou direitos ao controle das relações de trabalho
Industrialização
Diretor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), José Dari Krein concorda em ressaltar as circunstâncias históricas que antecederam a CLT, com uma profunda crise da ordem liberal no mundo, consolidação dos Estados nacionais e surgimento do capitalismo baseado na grande empresa, o que exigiria regulação. Seriam três as alternativas, muito discrepantes, aliás, ao liberalismo: a Revolução Russa, a social-democracia ou o fascismo-nazismo. As forças que chegam ao poder no Brasil em 1930 por meio da Aliança Liberal, lideradas por Getúlio Vargas, embutem pensamentos inspirados no positivismo e um novo projeto, baseado na industrialização – até os anos 1940, a agricultura era a principal força econômica brasileira. “Essas forças sabem que a industrialização significa a introdução do assala-
riamento”, analisa Dari. Uma nova força operária pode significar conflitos, greves. Assim, o sistema de regulação do trabalho que começa a ser pensado “busca a paz social, busca evitar a existência de uma sociedade conflitiva, mas considerando também que o trabalho precisa ser valorizado”. A professora e pesquisadora Magda Barros Biavaschi contesta de forma veemente a afirmação corrente sobre a relação entre Consolidação das Leis do Trabalho e Carta del Lavoro. Na apresentação de sua tese de pós-doutorado,
TRT/RJ
ciais, considera “extremamente avançada” a legislação criada na era Vargas. “A contrapartida para ter esses direitos de forma universal é o Estado exercer o controle absoluto das relações de trabalho”, diz Araújo, identificando um dilema presente até hoje: se de um lado pode ser vista como um certo empecilho para a negociação coletiva, de outro funciona como proteção social para categorias menos organizadas.
REFORMA Süssekind: “Tempo, salário e dispensa já estão flexibilizados”
afirma que a CLT ser cópia do texto italiano “é insustentável tanto teórica quanto empiricamente”, citando diversas linhas de pensamento do período. Seu estudo aborda as transformações políticas e econômicas da época, quando o comunismo era visto como “ameaça” ao Ocidente. “Getúlio deparava, ainda, com uma efervescente discussão que movimentava a esquerda e a social-democracia europeia: a planificação da economia. Reformas das estruturas capitalistas eram implementadas pela social-democracia sueca, pelos EUA do New Deal e também, ainda que com marcadas diferenças, pela Itália fascista e, a partir de 1933, pela Alemanha nazista. O Brasil não poderia ser pensado descolado dessa realidade.” Magda procura ainda demonstrar a importância da intervenção do Estado, considerando o ambiente de 1930, nas relações econômicas e sociais, “sobretudo nos processos de industrialização e transformação da sociedade brasileira em uma outra, moderna, com seus trabalhadores constituídos como sujeitos de direitos”. A superação do liberalismo passava pela regulação do mercado de trabalho. (Leia entrevista com a pesquisadora na página da Rede Brasil Atual. O atalho é http://bit. ly/rba_magda_biavaschi.) A presença do Estado na vida em sociedade é a questão que se discute até hoje. E, sem meios-termos, se reflete entre quem defende e quem quer destruir a CLT. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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Onde os justos
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FELIPE MILANEZ/REUTERS/ LATINSTOCK
s não têm vez Acusado de mandar matar os extrativistas Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo está livre. No assentamento onde o casal vivia, a irmã de Maria continua ameaçada de morte, e testemunhas vivem com medo Por Patricia Cornils
ESTÁ SOLTO Manifestantes protestam em frente ao Fórum de Marabá contra o resultado do julgamento
(CC BY-SA) FORA DO EIXO
N
ilton José Ferreira de Lima morava havia seis meses no assentamento Praialta-Piranheira, em Nova Ipixuna, no Pará. Em 24 de maio de 2011, estava em uma das estradas vicinais do lugar, onde consertava uma cerca. “Eu estava trabalhando e chegou um velhinho, o seu Zé, e começou a conversar comigo.” Perto das 8h, uma moto vermelha parou, com motorista e garupa. O motorista perguntou onde era a saída para o Porto do Barroso. Seu Zé explicou. A moto disparou, e naquele momento a vida de Nilton começou a mudar. Na hora do almoço soube que Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo, casal de extrativistas que morava no assentamento, haviam sido emboscados e assassinados a
tiros de escopeta, perto das 8h, a sete quilômetros de onde ele consertava a cerca. Não conhecia o casal, mas ligou a cena da moto a uma conversa no domingo anterior, no Bar do Esquinão, que pertencia a sua sogra. O interlocutor era a pessoa que dirigia a moto vermelha. Nilton teve medo. José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva participaram da criação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Praialta-Piranheira. A ideia original do projeto era encontrar meios para que assentados vivessem na e da floresta, sem agredi-la. O sociólogo Raimundo Gomes, do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp) de Marabá, trabalhou na criação do assentamento, em 1997. “Ainda vivíamos o legado de Chico REVISTA DO BRASIL
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NELSON FEITOSA/ DIVULGAÇÃO IBAMA
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ALTO CUSTO Madeireira embargada pelo Ibama em Nova Ipixuna depois do assassinato dos ambientalistas: comércio ilegal
Mendes. Defendíamos a alternativa, para os pequenos, de viverem dos recursos múltiplos da floresta, e não de derrubá-la para transformar em pastagem.” Uma cartaz com a frase “Chico Mendes Vive” e uma foto do líder ambientalista assassinado em 1988 enfeita a entrada da casa de madeira de Zé Cláudio e Maria, abandonada desde o crime. Proporcionar renda a partir do extrativismo dos frutos da floresta não era algo estranho à região, segundo Raimundo. Havia plantios consorciados entre os Rios Praialta e Piranheira. E coleta de frutos na mata: castanha, açaí, cupuaçu, bacaba, óleo de copaíba e andiroba. Mas a ideia de sobreviver assim estava longe de ser consenso na região.
Não derrubem
“Antes de eles chegarem, antes do projeto, a gente tinha nosso negócio à vontade. Tínhamos paz”, conta João Nascimento, que vive na área desde 1985. “Depois 28
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entrou madeireiro, chegou o carvão, começou a perseguição de Zé Cláudio a todo mundo para não derrubar, para não vender árvore. Ficou uma situação difícil. Fome a gente não passa porque planta para sobreviver. Mas dinheiro ficou difícil.” Havia desentendimentos entre o casal e os assentados. João vendia madeira. Uma castanheira, R$ 400. “Mas ainda tem floresta em quatro de meus dez alqueires”, diz. Ele reclama que Zé Cláudio ofendia as pessoas, mas admite: “Eles defendiam a natureza, a obrigação deles era essa mesmo”. No dia 27 de abril de 2011, Zé Cláudio fez uma palestra no TEDx Amazônia. Disse que quando o Projeto de Assentamento Extrativista foi criado possuía 85% de cobertura nativa. E, com a chegada das madeireiras e das guseiras a Marabá, restava pouco mais de 20% dessa cobertura. “É um desastre para quem vive do extrativismo como eu, castanheiro desde os 7
anos. Vivo da floresta, protejo a floresta de todo jeito. Por isso eu vivo com a bala na cabeça a qualquer hora”, avisava Zé. Nilton não sabia de nada disso quando decidiu sair do assentamento, naquele maio. Foi embora por ter lembrado do motorista da moto, com quem havia conversado no Bar do Esquinão, e ligado o desconhecido ao assassinato. Naquela mesma semana, foi para Jacundá, a 55 quilômetros de Nova Ipixuna. Três dias depois, a Polícia Federal o encontrou lá. Queria seu depoimento na investigação. No domingo 22 de maio Nilton estava no Esquinão, a dois quilômetros do local do crime. Dois homens de moto encostam no bar. Era uma motocicleta Honda Bros vermelha, sem placa. “O moreno não deu muito o rosto para a gente ver. Mas o outro conversou bastante comigo. Eu estava falando com meus amigos sobre meu tornozelo. Estava com dois meses que eu tinha fraturado o tornozelo.
MARIA DO ESPIRITO SANTO
AMBIENTE
FELIPE MILANEZ
UMA CASTANHEIRA, R$ 400 Foto da ambientalista Maria do Espírito Santo mostra o trânsito de caminhões carregados de toras pelo assentamento. Uma melancólica placa é a única marca da existência do poder público por aquelas bandas
E ele entrou no assunto. Disse que tinha fraturado também uma canela.” O nome do motorista, Nilton soube depois: Lindonjonson Silva Rocha. Desconhecido na região, ele perguntava detalhes sobre o traçado e para onde levavam as estradas da localidade. “Fiquei olhando bastante para ele. Foi assim que identifiquei o rosto, o corpo todo, e pude fazer a foto falada.” Era isso que a polícia queria: “Eles conseguiram rastrear a identidade do Lindonjonson e me mostraram. E perguntaram se era parecido com aquele cara. Eu respondi: ‘Parecido não, é esse cara mesmo’. O delegado de Belém falou da fratura na canela do cara. E a polícia foi ajuntando as peças”. O testemunho de Nilton quase dois anos depois, no Tribunal do Júri de Marabá, nos dias 3 e 4 de abril, foi fundamental para a condenação de Lindonjonson. Seu depoimento colocou o assassino na cena do crime, enquanto a defesa argu-
mentava que ele estava, na verdade, em Novo Repartimento, onde os pais moram e onde ele morava também. Mas por que Lindonjonson teria saído do outro lado do Rio Tocantins, do outro lado do Lago de Tucuruí, para matar duas pessoas em Nova Ipixuna? Aqui entra a outra peça que a polícia juntou durante a investigação: o irmão de Lindonjonson, José Rodrigues Moreira, acusado de ser o mandante do crime. José Rodrigues vendeu suas terras em Novo Repartimento, onde vive sua família, por R$ 130 mil. E comprou, por R$ 100 mil, um lote no PAE Praialta-Piranheira, mais perto de Marabá. Queria recomeçar a vida no lugar onde sua irmã já morava. E iniciou uma criação de gado, 130 cabeças. Formar fazendas de gado dentro contraria a vocação do PAE. As circunstâncias em que ele comprou as terras, dentro de um assentamento em que não podem ser compradas nem
vendidas, serão apuradas em um inquérito do Ministério Público Federal. Além disso, ele foi avisado pelos vendedores – e, de acordo com testemunhas, pela própria Maria – que algumas pessoas viviam no local. No inquérito e no julgamento, José Rodrigues diz que não pagou pelas terras, e sim pelas benfeitorias – embora não houvesse, de acordo com posseiros que moravam nos lotes, benfeitoria alguma. A história desses lotes, no entanto, tem outra versão. Em 25 de maio de 2005, Maria do Espírito Santo Silva, à época presidente da Associação do Projeto de Assentamento Agroextrativista Praialta-Piranheira, encaminhou ofício à então Superintendente do Incra de Marabá, Bernadete Ten Caten, com a denúncia da compra ilegal, naquela data, por parte de Neusa Maria Santis (cartorária de Marabá), de uma área no interior do referido projeto de assentamento. Segundo documento detalhado anexo ao ofício, Neusa Santis, para garantir o controle da área, estava utilizando “laranjas” e todos haviam sido ilegalmente assentados pelo Incra e recebido créditos. A denúncia foi feita pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura e pela Comissão Pastoral da Terra, agora em março, ao Ministério Público Federal do Pará. No lote comprado pela sogra de José Rodrigues havia posseiros. Francisco Tadeu Vaz e Silva, o Tadeu, era um deles. Havia limpado o terreno, plantado arroz, mandioca, pepinos. Queria morar ali e preparava a terra para receber o restante da família. Ficou até o dia em que chegaram a Polícia Civil, José Rodrigues e um fazendeiro chamado Gilzão para expulsá-lo, sem mandado algum de reintegração e nenhuma denúncia contra ele. Pegou as coisas, saiu levado no carro da polícia. Negociou com José Rodrigues receber R$ 3 mil pelo trabalho que havia feito no lote, mas nunca recebeu. Zequinha, que era posseiro em outro pedaço do lote, teve sua casa queimada. “Ele era acusado de pedofilia contra a filha de 12 anos”, diz José Rodrigues. “Por isso, botei fogo no barraco.” O terceiro posseiro era Marabá, irmão de Zé Cláudio. Quando souberam que os três haviam sido expulsos, Maria e Zé REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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PAULO PADILHA
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SINA Fotos de Dorothy Stang e Chico Mendes enfeitam uma das paredes externas da casa de José Cláudio e Maria do Espírito Santo
Cláudio os orientaram a voltar. E eles voltaram. “Isso não causou um sentimento de injustiça no senhor?”, perguntou o juiz Murilo Lemos Simão a José Rodrigues, durante o inquérito. “Não, senhor. Entreguei a Deus. Fiquei esperando pela justiça de Deus e pelos homens aqui da Terra.” Tadeu afirmou, no julgamento, ter ouvido várias ameaças ao casal, por parte de José Rodrigues. “Ele dizia que podia até perder a terra, mas que eles iam pagar. Dizia que a batata deles estava assando.” José Rodrigues nega. “Sou pessoa de paz, sou trabalhador.” O Conselho do Júri de Marabá acreditou nele. José Rodrigues foi absolvido de ser o mandante do assassinato de José Cláudio e Maria do Espírito Santo. Seu irmão Lindonjonson foi condenado a 42 anos de prisão. Alberto Lopes do Nascimento foi condenado a 45. A orelha de Zé Cláudio foi cortada depois dos tiros, enquanto ele ainda vi30
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via, e o júri concluiu que quem fez isso foi Alberto – contra quem menos havia provas no inquérito. O júri concluiu que as mortes aconteceram pela disputa da terra. E o juiz atribuiu aos mortos a responsabilidade pelo seu assassinato. “O comportamento da vítima contribuiu, de certa maneira, para o crime, pois, conforme declarado em plenário pela testemunha José Maria, a vítima enfrentou o irmão do acusado Lindonjonson, o corréu José Rodrigues Moreira, tentando fazer justiça pelas próprias mãos, utilizando terceiros (posseiros/sem-terra) para impedir o corréu de ter a posse de um imóvel rural, acarretando assim o agravamento do conflito fundiário, quando a vítima poderia ter procurado o apoio das autoridades constituídas para acionar na Justiça a ação do corréu”, escreveu. Ignorou, assim, todos os registros de que
as vítimas, não poucas vezes, recorreram a autoridades constituídas contra as ilegalidades no assentamento. No dia 14 de dezembro passado, o Incra incluiu a esposa de José Rodrigues, Antônia Nery de Sousza (com “sz” mesmo) na lista de beneficiados pela reforma agrária. Assentou Antônia Nery no PAE Praialta-Piranheira – embora o órgão tenha argumentado depois, em nota à imprensa de 20 de fevereiro, que o processo administrativo em questão não está concluído: “Embora a sra. Antonia Nery, na condição de titular requerente da regularização, não esteja arrolada no processo criminal, a Superintendência Regional do Incra de Marabá identificou a situação de impedimento do cônjuge, sr. José Rodrigues Moreira. A partir dessa identificação, no dia 20 de fevereiro de 2013 encaminhou o processo administrativo à Procuradoria Federal Especializada pa-
FOTOS ((CC BY-SA) FORA DO EIXO
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MARCADA Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria do Espírito Santo, continua recebendo ameaças de morte e abandonou a cidade
CULPA DA VÍTIMA Os réus Abert, Lindonjonson e José Rodrigues, este último absolvido num julgamento em que o juiz culpou os assassinados
ra ajuizamento de ação judicial visando a retomada do imóvel ocupado pela sra. Antonia Nery”.
Destino incerto
A história não se encerra com o julgamento dos dias 3 e 4 de abril. O Ministério Público recorreu contra a absolvição de José Rodrigues, e os advogados de Lindonjonson e Alberto Lemos, contra suas condenações. A situação das terras, no assentamento, está sob investigação do Incra. Em 22 de março de 2013, oito anos depois da denúncia de Maria do Espírito Santo e quase dois depois de sua morte, o órgão determinou a constituição de um grupo de trabalho para realizar uma supervisão no PAE Paialta-Piranheira, a fim de verificar irregularidades na ocupação. O grupo tem 60 dias para apresentar relatório. José Rodrigues, em entrevista na sema-
na seguinte ao julgamento, disse que vai voltar para lá. Francisco Tadeu vive em outro estado desde o assassinato. A família de Zé Cláudio – sua mãe, irmãos e irmãs – abandonou o assentamento depois do crime, por medo. A mãe e irmãs moram, de favor, em uma casa na periferia de Marabá. Mas querem reabrir a casa onde viviam Zé Cláudio e Maria e criar uma escola de educação ambiental. Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, saiu da cidade. Já teve seu cachorro morto a tiros, recebeu bilhetes para se calar, recados para tomar cuidado. “Recebi ameaças dizendo que iam varrer minha família da região”, conta. Laísa quer voltar para casa, com proteção do governo. Sabe que poderá encontrar, no assentamento, o acusado de matar sua irmã. E que, a qualquer fiscalização do Ibama sobre madeireiros e carvoarias, se dirá no assentamento: “Foi Laísa quem denunciou”. Se
o Incra não confirmar a homologação de Ana Nery como assentada em Praialta-Piranheira, em que situação fica Laísa? E se homologar? José Rondon, seu marido, permanece no lote do casal, cuida da floresta, planta árvores e alimento. “Não saio antes de acabar a colheita da andiroba”, disse a quem lhe sugere passar um tempo fora. E Nilton? “Não posso voltar para casa. Eu estava confiando na lei. Mas o júri não fez o trabalho que era para ser... O mandante está solto. Minha vida está em mais risco.” Nilton não é ativista nem ambientalista. “Fui depor porque eu morava lá e achei aquela morte muito cruel. Uns bandidos daqueles não podem estar soltos, porque a mesma coisa que eles fizeram lá podem fazer a outra família. Se todo brasileiro chegasse a denunciar... Mas quem vai ter coragem de depor para alguém, se não tem Justiça aqui?” REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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SAÚDE
Cuidados na hora certa
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ntioxidantes, hormônios e tantos outros tratamenO acompanhamento geriátrico tos estão à venda com a promessa de bloquear efeinão retarda o processo de tos do tempo sobre o corpo e a mente. Por enquanto, nenhum tem esses efeitos comprovados pela ciênenvelhecimento, mas ajuda cia. Tal como um dia após o outro, o envelhecimento a preservar as funções do é inexorável, trazendo alterações físicas e mentais. E, embora ainda não seja possível retardá-lo, há uma boa notícia: o acompanhaorganismo por muito mais tempo mento geriátrico tem tudo para prolongar, por muitos anos, a saúPor Cida de Oliveira. Fotos de Gerardo Lazzari 32
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de, o bem-estar, a autonomia e uma vida mais produtiva.
SAÚDE
CUIDADOS GERAIS O geriatra Clineu Almada ausculta dona Amélia Conceição: “O envelhecimento não é doença, mas uma fase da vida. E envelhecer ainda é a melhor opção nesse plano de vida possível”
“O envelhecimento não é doença, mas uma fase da vida. E envelhecer ainda é a melhor opção nesse plano de vida possível”, diz o geriatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Clineu Almada Filho. “Nessa fase surgem alterações acentuadas que comprometem a funcionalidade e a capacidade da pessoa, com perda da autonomia, tornando-a dependente de cuidados.” Segundo o especialista, mesmo em boas condições de saúde, 90% da população a partir dos 60 anos tem alguma doença associada; 40% a 60% sofre de pressão alta – e apenas 20% a controla de maneira adequada; e 25% é diabética, com maiores riscos de um infarto ou acidente vascular cerebral, o derrame. Sem contar a depressão, que, como as demais, limita a qualidade de vida. Da mesma maneira que as crianças são tratadas pelo pediatra e os adultos pelo clínico geral, as pessoas com mais de 60 anos devem ser acompanhadas pelo geriatra. Trata-se, portanto, de uma especialidade clínica que assiste o paciente de maneira global, com abordagem ampla, porém diferenciada: utiliza ferramentas e escalas específicas para essa faixa etária, como aquelas para avaliar a memória, por exemplo, na abordagem do mal de Alzheimer. A doença, ainda incurável, é a principal causa de demência em todo o mundo, prejudicando funções mentais como memória, raciocínio, percepção, atenção e também o comportamento. Cabe a esses especialistas diagnosticar situações que aparecem ou se agravam com o envelhecimento. Ou seja, manter a integridade funcional do organismo do idoso. O geriatra tanto trata as sequelas de um derrame, por exemplo, como trabalha para evitar o surgimento de problemas. Sua formação engloba dez anos de estudos. E não substitui os demais especialistas, mesmo capacitado para acompanhar a pressão alta, o diabetes, problemas vasculares, reumatismo e tantos outros. “O que ele faz é monitorar bem essas doenças que acompanham o envelhecimento, concentrando o tratamento”, diz a geriatra Maisa Kairalla, diretora da seção paulista da Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia (SBGG). “Mas o idoso, em geral, dificilmente terá à disposição todos os especialistas para os problemas que o afetam.” Como a avaliação da saúde e das queixas do paciente é ampla, o médico precisa dedicar mais tempo a essas consultas. Segundo Maisa, vários aspectos são avaliados, como a visão do paciente, a memória, estado psicológico e calendário de vacinas, além de ouvir atentamente suas queixas, que nunca são uma só. “É um atendimento que precisa ser feito com calma, com atenção, porque o paciente deve ser visto como um todo, e não como parte de uma doença, ou uma doença. E é isso que o paciente e seus familiares devem observar. Têm de prestar atenção no quanto esse médico está preocupado com essa avaliação ampla, engajado no tratamento de maneira holística, integral”, diz. “Não é consulta para ser feita em 20 minutos, como pede o Sistema Único de Saúde. Tem de ter no mínimo 30 minutos, embora o tempo ideal seja 40 minutos”, completa o médico e gerontologista Rogério Clóvis de Oliveira, consultor do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe). “Apesar de alguns pacientes terem de retornar mais cedo ao consultório, todo idoso deve ir ao geriatra pelo menos uma vez a cada seis meses.” Segundo Rogério, o envelhecimento exacerba os hábitos e manias das pessoas. Por isso a relação médico-paciente tem de ser bem estabelecida desde o início. “O médico deve estabelecê-la de maneira consensual, tranquila, para contornar a complexidade das doenças que envolvem o envelhecimento, os sentimentos, heranças, interesses pessoais e familiares”, diz.
Quando ir
É a partir dos 60 anos, quando passa a ser considerada idosa – mesmo que ainda não se sinta ou não pareça “velha” –, que a pessoa deve procurar esse médico. Almada lamenta que, diferentemente dos pacientes ambulatoriais, bem mais informados, a maioria dos que recorrem aos hospitais procura o serviço para tratar sequelas e complicações. “Dos idosos que vêm ao ambulatório de longevidaREVISTA DO BRASIL
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SAÚDE
de aqui na universidade, metade busca a prevenção de males e uma vida mais saudável”, diz. Entretanto, nem sempre é fácil conseguir marcar uma consulta. Diretora de Aposentados da Federação dos Bancários de São Paulo (Fetec/CUT-SP), Maria da Glória Abdo, 75 anos, reclama da carência desses profissionais no serviço público e privado. Segundo ela, os aposentados são de uma geração que não teve à disposição medicina preventiva contra doenças do trabalho, como lesão por esforço repetitivo (LER) e estresse, que já existiam sem que se soubesse. “Não contávamos com móveis e equipamentos ergonômicos. As máquinas eram pesadas, barulhentas, de difícil manuseio. A isso se somavam atividades domésticas cansativas, para as quais as máquinas ainda não eram acessíveis a todos os trabalhadores”, lembra. “E hoje que temos as doenças acumuladas com o tempo, mais a depressão e outros problemas que chegam com a aposentadoria, faltam especialistas para nos atender. Não temos sequer médicos para orientar sobre o uso do Viagra, da camisinha, de lubrificantes vaginais.” Para Glória, a questão tem de ser debatida no Brasil, onde falta vontade política para o atendimento. “A lei garante ao idoso o atendimento prioritário. Mas quando o assunto é saúde faltam médicos especializados em envelhecimento”, reclama, lembrando que em Cuba, país que visitou recentemente, sobram geriatras. Segundo ela, nos asilos em que esteve havia pelo menos um especialista em cada turno. Há alguns anos, o aposentado Arnaldo Muchon, 83 anos, frequentava o consultório de uma geriatra credenciada pelo seu plano de saúde. Com a saída da médica, ele e sua mulher ficaram somente com o acompanhamento de especialistas em cardiologia, endocrinologia e vascular, entre outros. Só de três anos para cá, com a criação de um centro de atendimento da especialidade pelo seu convênio médico, voltou a ter tratamento geriátrico, com intervalo de dois a três meses entre as consultas. “Hoje me sinto bem atendido e acolhido, muito mais do que pelos médicos de outras especialidades. O geriatra controla meu peso, pressão, 34
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MAIS ATENÇÃO Arnaldo: “A minha saúde é cuidada de maneira global, e não fragmentada”
quer saber sobre a qualidade do meu sono, me pede exames e faz testes. Tem mais carinho com o idoso. A minha saúde é cuidada com mais atenção, de maneira global, e não fragmentada.” Maria de Lourdes Andrade, 72 anos, também reclama da falta de geriatra. “Tive um câncer de mama, tenho bronquite, colesterol alto, problemas no estômago e outros que surgem. Com tanto remédio para tomar ao longo do dia, sinto falta de um médico que entenda bem as necessidades do idoso”, diz. Há alguns anos Maria de Lourdes fazia acompanhamento espe-
cializado, mas a médica deixou o convênio. “Ela fazia testes, como de memória. E detectou que eu tinha problema de falta de atenção. Tudo era bem explicadinho. Pena que saiu.” O jeito que encontrou foi frequentar o consultório de um médico que ela nem sabe se é geriatra. Mas, como é atencioso, prefere não trocar. Segundo a SBGG, há em todo o país cerca de 1.200 especialistas para atender 21 milhões de idosos. Por ano, são titulados cerca de 40 especialistas. A geriatria é relativamente nova no Brasil. O primeiro serviço surgiu na década de 1960, no
SAÚDE
QUEIXA Maria de Lourdes: “Com tanto remédio para tomar ao longo do dia, sinto falta de um médico que entenda as necessidades do idoso”
Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo, época em que havia no Brasil 3,3 milhões de habitantes com 60 anos ou mais – o correspondente a 4,7% da população. Para completar, a oferta de vagas nas residências médicas também é pequena. A Unifesp oferece atualmente, em sua residência, 12 vagas, disputadas por médicos de diversos estados. Pode parecer pouco, mas há grandes hospitais universitários que chegam a oferecer duas ou três vagas, como o da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o da Faculdade de Medicina da USP. Para ser
geriatra, o médico cursa os seis anos da graduação, mais dois na clínica médica e mais dois em geriatria. Para Maisa Kairalla, vários fatores explicam a falta desses profissionais em todos os serviços de saúde. O primeiro é a relativa novidade da especialidade no país. “Outro é a falta de interesse por uma área tão artesanal da medicina, com paciente difícil, que solicita muito do clínico”, diz. O gerontologista Rogério Clóvis, do Olhe, acrescenta que faltam políticas públicas e planejamento. Afinal, além de acolher, é função do geriatra cuidar da
saúde e prevenir a piora de problemas. E isso ganha maior dimensão ante a perspectiva de que no Brasil, como em todo o mundo, vive-se uma tendência irreversível de envelhecimento da população. Em 2000, 14,5 milhões – 8,5% da população – estavam nessa faixa etária. Em 2010, a proporcão passou para 10,8%, o equivalente a 20,5 milhões de brasileiros, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As estimativas são de que, em 2030, um terço da população brasileira terá 60 anos ou mais. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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CIDADANIA
a r u c u o l A s o n que a t i hab Projeto transforma ala de hospital psiquiátrico em “hotel” para s a abrigar iniciativ ligadas à luta l e à cura antimanicomia e por meio da art ia Filho de João Corre Texto e fotos
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esse hotel não há estrelas. Também não é necessário preencher fichas, fazer check-in ou check-out. A viagem de quem se hospeda aqui é interior, pois se trata de um hotel instalado dentro de um tradicional hospital psiquiátrico no bairro de Engenho Novo, na região norte do Rio de Janeiro, bem longe das belas praias cariocas, lotadas de turistas. Em vez de turistas, o Hotel da Loucura, como foi batizado, abriga médicos, artistas, arte-educadores, gestores, pesquisadores, jornalistas e profissionais da área de saúde que queiram entender um pouco mais sobre a loucura e, claro, sobre sua cura. A ideia de ocupar e transformar em hotel o terceiro andar de um dos edifícios do Instituto Nise da Silveira, antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, é do médico e ator Vitor Pordeus, coordenador do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Com 32 anos, formado em Medicina pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ele reuniu uma equipe para converter o espaço então desativado em um local para a realização de oficinas, palestras, espetáculos, reuniões e para a convivência entre visitantes e pacientes do hospital, que também podem frequentar as atividades. “Conviver é a palavra-chave para isso que chamam de cura da loucura. Ninguém adoece sozinho e ninguém se cura sozinho. As doenças são, antes de tudo, doenças sociais. De nada vale excluir para tratar, que é o que ainda vem sendo feito no Brasil. 36
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A ideia, mais uma vez, é quebrar essa lógica”, afirma Pordeus. Ele acrescenta que é preciso recuperar o papel comunitário e político dos médicos, segundo ele, totalmente esvaziado com a mercantilização da saúde. “A medicina se tornou uma máquina de vender remédio. Criam doenças pra vender remédio, cotados pela indústria farmacêutica. Esqueceram que essa é uma luta política, uma luta de consciência, um luta de disputa por recursos públicos, de disputa com a própria medicina, com o biopoder”, acrescenta.
Ateliê e biblioteca
A primeira vez que o Hotel da Loucura recebeu hóspedes foi em julho de 2012, como sede do 2º Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência (Upac), evento realizado no Rio que reuniu dezenas de pessoas com o propósito comum de discutir a relação entre saúde, cultura e arte popular. Foram as primeiras atividades de muitas que marcaram a transformação do local. Para receber os participantes, paredes descascadas e cinzentas ganharam cores fortes, janelas receberam cortinas com desenhos de flores, corredores foram decorados com frases de filósofos, músicos e poetas. Ou apenas rabiscos que muito ou nada querem dizer. Além dos nove quartos, que ganharam beliches e colchões, foram criados outros ambientes: o hall de entrada passou a ser local de reuniões, de exibição de filmes, de convivência diária; a
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Manuel Muniz já passou por muitas internações e diz que conhecer o trabalho do hotel foi como “ter o meu Maio de 1968”
cozinha voltou a funcionar (aberta a todos os hóspedes); há uma sala de meditação, quase vazia; uma de jantar, com mesas cobertas por tecidos de chita; um ateliê; e uma biblioteca, batizada de Baruch Spinoza, em homenagem ao filósofo holandês do século 17. Desde sua inauguração, o Hotel da Loucura tem atraído muitos hóspedes do instituto, que frequentam diariamente suas atividades. Atualmente, o Nise da Silveira possui cerca de 200 pacientes, mas já chegou a ter mais de 1.500, nos tempos “áureos” da internação psiquiátrica. Estão concentrados nas enfermarias, que ocupam os prédios principais, e divididos em residências que abrigam cerca de 20 pessoas cada uma. Algumas são fechadas por grades, por serem consideradas perigosas pela psiquiatria. Grande parte dos frequentadores do Hotel da Loucura não é de internos, mas proveniente dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), unidades de acompanhamento e tratamento clínico implantadas na década de 1990 como uma forma de substituir os hospitais psiquiátricos.
Imagens do inconsciente
Uma das grandes referências do trabalho de Vitor Pordeus insere-se na própria história do local onde está instalado o Hotel da Loucura. Foi nesse mesmo hospital que, entre as décadas de 1940 e 1950, a médica Nise da Silveira começou a revolucionar a psiquiatria no Brasil. Criou ateliês de pintura e escultura, valendo-se da expressão simbólica e da criatividade como meios de tratamento de seus pacientes, em oposição clara aos vigentes na época, como o confinamento, os eletrochoques e a lobotomia. Criou o também o Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952 dentro do próprio instituto que hoje leva seu nome. Reúne mais de 300 mil obras (a maioria pinturas) feitas por pacientes, que serviram como base para estudos e tratamentos de esquizofrenia e outros distúrbios. Desse modo, o le38
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gado de Nise abriu caminho para a arte como forma de cura e para o amadurecimento do que viria a ser chamado de Movimento (ou Luta) Antimanicomial, iniciado nos anos 1980 e responsável pela aprovação de leis que regulamentaram novos meios de tratamento e provocaram mudanças na compreensão da loucura e de sua representação na sociedade. No caso das atividades do Hotel da Loucura, uma das grandes ferramentas tem sido o teatro, embora Vitor Pordeus faça questão de deixar claro que se trata de um teatro participativo, com viés épico e popular. “Não queremos fazer o teatro de palco, elitesco, calcado na celebridade, no ego, mas sim o teatro no qual cada artista participa de tudo, onde não há diretores nem estrelas”, ressalta o médico ator. Baseado nessa premissa, o hotel oferece uma programação intensa: as oficinas e atividades teatrais são realizadas às terças e quintas-feiras. Um grupo de estudos se reúne às sextas. Às quartas é realizado um cortejo pelas ruas do bairro, quando os pacientes deixam os muros do instituto e caminham nas proximidades de uma feira livre que funciona a poucas quadras dali. Além disso, criam peças de teatro (com a participação de atores e pacientes), músicas, performances e intervenções dentro do instituto. Durante o Carnaval deste ano, participaram de um concurso de sambas-enredo promovido pelo Bloco Loucura Suburbana, iniciativa que faz parte de um projeto de inclusão social de pacientes psiquiátricos. Embora não tenham sido vencedores, desfilaram pelas ruas do Engenho Novo e juntaram-se à loucura da festa, misturando-se à multidão.
À sombra de Dio-Nise
Para Vitor Pordeus, resultados clínicos dessas atividades podem ser percebidos em muitos dos pacientes que frequentam o Hotel da Loucura. É o caso de Maria Rita da Silva, de 47 anos e com histórico de internações e tratamentos com eletrochoque (eletro-
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convulsoterapia), técnica bastante controversa criada por volta de 1930 e usada com restrição nos dias de hoje. “Eu me sinto bem aqui, me sinto viva, sou respeitada pelos meus amigos, sinto que melhoro a cada dia. Acho que eu fico mais serena, pois dançar e cantar faz bem”, diz a paciente, que teve seus medicamentos reduzidos e apresenta um quadro bem mais estável. Manuel Muniz de Castro, de 53 anos, frequentador assíduo das atividades do hotel, é um dos declamadores de poesia da turma. Escreve e recita, além de ser o responsável pela biblioteca Baruch Spinoza. Já passou por muitas internações e diz que conhecer o trabalho do hotel foi como “ter o meu Maio de 1968”, numa referência às manifestações populares ocorridas naquele ano na França, e em vários pontos do planeta, que propagaram uma série de mudanças culturais e sociais. Entre os livros de poemas de que mais gosta está Uma Faca Só Lâmina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto. O Hotel da Loucura costuma receber também Milton Freire, dono de uma vasta ficha manicomial que inclui dezenas de eletrochoques e choques insulínicos, outro tratamento controverso também em desuso por seus riscos ao paciente. A partir da década de 1980, Milton tornou-se militante do Movimento Antimanicomial e foi autor do primeiro manifesto sobre a
condição dos internos, escrito em 1977 e publicado em carta pelo Jornal do Brasil. Autor de vários livros, ele conta que se curou da esquizofrenia, na década de 1990, graças à escrita. “Eu descobri que a arte de escrever podia ser minha salvação. A escrita me ajudou a organizar os pensamentos, a retomar minha vida. Escrevia, escrevia, escrevia. Redescobri o poder da palavra e fui me reconstruindo.” Hoje, totalmente curado, Milton é frequentador assíduo das atividades do Hotel da Loucura e uma das vozes mais requisitadas nas reuniões e eventos ligados à saúde mental. Para 2013, o hotel já tem vasta programação de oficinas e espetáculos. Também se prepara para ser a sede do 3º Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência, em julho. Como parte das atividades do congresso, atores, músicos e pacientes do instituto já começaram a ensaiar a peça Dio-Nise, que versa sobre o universo manicomial, numa referência ao mito de Dionísio, deus da loucura, e ao trabalho de Nise da Silveira. Como tem sido regra no instituto, durante as apresentações todos são iguais, não há loucos nem sãos, não há pacientes nem doutores, todos são artistas. Embora o Hotel da Loucura não tenha estrelas.
Durante o Carnaval deste ano, pacientes participaram de um concurso de sambasenredo promovido pelo Bloco Loucura Suburbana REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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esta Copa das Confederações, pela primeira vez realizada no Brasil, agora em junho, não está presente nenhum país árabe e há apenas um de predominância muçulmana, a Nigéria. Uma pena, para essas nações e seus patrícios espalhados pelo Ocidente. Os povos árabes colonizados, na África e no Oriente Médio, souberam se afirmar como “futebolísticos”, primeiro jogando bola clandestinamente, depois abertamente. Isso apesar do processo de colonização por que passaram. Tanto os dominados pela Grã-Bretanha, como o Egito, quanto os subordinados à França, como a Argélia, eram considerados inaptos para o futebol. O esporte era tido como nobre demais para ser praticado por não brancos e mestiços considerados “inferiores”, étnica e intelectualmente, e incapazes de aspirar a uma civilização maior. E, quando passaram a praticá-lo abertamente, acaba ram afirmando a própria identidade nacional,religiosa anticolonialista, pan-árabe e mesmo pan-islamita, algumas vezes jogando até contra times das potências colonizadoras. O futebol tornou-se assim uma bandeira de luta do movimento anticolonialista. Essa reflexão é tema central do livro Sport, Politics and Society in the Arab World (“Esporte, Política e Sociedade no Mundo Árabe”) de autoria do professor Mahfoud Amara, da Universidadede Loughborough, Reino Unido, recém-lançado pela Palgrave MacMillan. Conquis tada a independência, o futebol se tornou uma poderosa ferramenta para coroar a política de desenvolvimento econômico e, particularmente, a política de industrialização e de fomento ao mercado interno, o que era efetivado sobretudo por meio do uso das figuras dos atletas e das transmissões dos jogos pelo rádio e pela televisão, para propagandear a difusão de novos hábitos de consumo, de novos produtos e de padrões de comportamento. O jogo, assim, tornava seus torcedores pessoas cada vez mais em dia com a civilização contemporânea. O esporte era usado como estímulo do nacionalismo de cada novo Estado40
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O futebol e O esporte era considerado pelos colonizadores nobre demais para ser praticado por “raças inferiores”. Quando passaram a jogá-lo abertamente, esses povos afirmaram sua identidade nacional Por Renato Pompeu
-Nação que surgia nas fronteiras bastante artificiais herdadas das potências colonialistas – lembrando que as noções de nação iraquiana, nação tunisiana etc. eram uma grande novidade para os povos árabes, acostumados milenarmente a se considerar um povo só. Servia também como indutor de um sentimento de pan-arabismo, com as fracassadas tentativas de formar uma seleção representativa da República Árabe Unida, a efêmera RAU, que tentou unificar Egito e Síria. E mais: o futebol foi usado ainda para impulsionar o próprio pan-islamismo, pois as centenas de milhões de torcedores islâmicos, em todo o planeta, se uniam a cada quatro anos para torcer unanimemente para
as Arábias os poucos países muçulmanos que chegavam a disputar as fases finais da Copa do Mundo. O pan-arabismo e o pan-islamismo foram suficientemente fortes para expulsar, futebolisticamente, Israel do Oriente Médio, pois até hoje a seleção do Estado judeu disputa não as eliminatórias da Copa na Ásia, onde se situa geograficamente, mas a da Europa, de onde são oriundos os judeus escapados do Holocausto que fundaram, na Palestina, sob mandato britânico, primeiro o seu Lar Nacional Judaico e desde 1948 o Estado de Israel. Outra consequência importante é que o futebol foi e tem sido um poderoso fator de estímulo a uma consciência de per-
tencimento a uma nação palestina. Tal consciência, como todas as consciências étnicas, dentro da milenar tradição árabe e da secular tradição islâmica, tinha sido antes muito tênue. Os turcos, que são otomanos, e os egípcios, que são camitas arabizados, jamais sentiram estranheza por ser governados por albaneses indo-europeus, como o líder Kemal Ataturk e o rei Faruk, pois afinal todos se sentiam igualmente islâmicos. Os palestinos, antigamente, usavam esse nome, pois se julgavam acima de tudo árabes e logo em seguida islâmicos; com a herança das artificiais fronteiras colonialistas, a revolta contra a partilha da Palestina e, depois, contra a ocupa-
GIUSEPPE BELLINI/GETTY IMAGES
ESPORTE
ção israelense, mais a bandeira do futebol, é que levaram à plena consolidação de uma consciência nacional, identificada com os antigos filisteus. (“Palestina” é a pronúncia romana do nome semita “falastin”, que até hoje, em árabe, designa tanto os palestinos como os antigos filisteus, com a lembrança ominosa dos primeiros choques, milênios atrás, entre os judeus e os filisteus.) A importância do futebol na resistência palestina pode ser ainda avaliada pelo fato de que as autoridades israelenses sistematicamente prendem alguns dos principais craques da Palestina. Chegaram a mandar bombardear campos de futebol nos territórios ocupados. Além disso, na própria Israel a contratação por um dos principais clubes israelenses de um jogador tchetcheno muçulmano desencadeou protestos inflamados e tumultuados da parte de torcedores direitistas. Os campos de futebol, assim, no Oriente Médio e em outros lugares, são campos de batalha. Nos países árabes recém-saídos da colonização que tentaram regimes militares laicos e estatizantes, no chamado “socialismo árabe”, como Argélia e Egito, o futebol em geral e a seleção nacional em particular passaram a simbolizar e a estimular o sonho do nacional-desenvolvimentismo. Com o fim do “socialismo argelino”, em 1988, a partir da explosão da rebelião fundamentalista islâmica, o futebol entrou na Argélia no ritmo “normal”, mercantilizado, imposto pelo neoliberalismo em todo o planeta. No Egito e no Iraque, no entanto, se manteve o espírito laico e modernizador entre grande parte das torcidas, como mostram, em território egípcio, as constantes manifestações pró-democracia em plenos estádios e o recente massacre por motivos políticos no estádio de Port Sak. No Iraque, é notório o sentimento de civilismo e de civismo pró maiores liber dades democráticas dos jogadores da seleção nacional. Assim está o futebol no reino das Arábias. Renato Pompeu é jornalista e escritor ponte-pretano, autor dos livros A Saída do Primeiro Tempo, Canhoteiro, o Homem Que Driblou a Glória, Os-As Brasilíadas e Memórias de uma Bola de Futebol REVISTA DO BRASIL
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PERFIL
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té Jamelão morrer, em 14 de junho de 2008, o vozeirão, “o mais belo canto da Mangueira”, continuava vibrante e belo, e o humor, de cão sarnento, também. Tudo em Jamelão era perdoado – seu talento sempre esteve acima de suas idiossincrasias. Considerado o maior puxador de samba (termo que ele execrava: “Puxador de fumo é a mãe”, dizia) da Estação Primeira de Mangueira, era também tido pela crítica – e por seus pares – como o maior intérprete de Lupicínio Rodrigues, autor de clássicos como Felicidade, Nervos de Aço, Cadeira Vazia. É uma pena que o centenário de José Bispo Clementino dos Santos, completado no dia 12 de maio de 2013, seja comemorado quase em silêncio – não há notícias de shows, DVDs, livros, documentários em tributo ao sambista que um dia duelou contra a big band americana de Tommy Dorsey – e venceu. O duelo foi no auditório da Rádio Tupi, no Rio. Ele era crooner da Orquestra Tabajara, comandada pelo maestro Severino Araújo. Jamelão nunca estudou canto, e impressionou os americanos ao ir do grave ao agudo com a mesma potência e suavidade. Enquanto a maioria dos cantores profissionais chegava a 12, 13 notas, ele alcançava 18. Cantava por uma multidão. E também pela família. Nascido no bairro carioca de São Cristóvão, fez um pouco de tudo antes de virar lenda. Foi engraxate, vendedor de jornal e tocador de tamborim e de cavaquinho nos bailes do subúrbio. O apelido – árvore de fruto escuro e doce (o que prova que o humor do sambista foi piorando com o passar do tempo) – surgiu por caso, na época em que o vigoroso quarto zagueiro do Piedade Futebol Clube era o principal responsável pela defesa menos vazada dos campeonatos de várzea de São Cristóvão. Depois dos jogos, o time se reunia num restaurante para beber e comer. Alguém avisou o gerente da casa que o zagueiro do Piedade adorava cantar no vestiário – e tinha uma voz imbatível –, e este foi anunciado no microfone, pelo próprio gerente, como “Jamelão”. José Bispo começou a cantar e não parou mais, mesmo que nem sempre gostassem da sua voz (foi gongado em testes na Rádio 42
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ÍDOLO Djavan, Chico Buarque, Rosemary, Pedrinho do Cavaco, Dudu Nobre, Lenine, Alcione, Maria Rita, Leci Brandão, Mart’nália, Emílio Santiago no palco com Jamelão e o presidente da Mangueira, Alvaro Luiz Caetano, em show no Canecão em 2006
‘Puxador é a mãe!’ Da zaga do Piedade Futebol Clube de São Cristóvão para o altar da Estação Primeira, sua excelência o Jamelão, o mais belo canto da Mangueira Por Tom Cardoso
Ipanema) e do apelido – Henrique Foréis Domingues, o Almirante, um dos principais produtores e radialistas da época, tentou convencê-lo a trocar de codinome. Jamelão não se dobrava a ninguém. Nem à realeza. Em 1952, quando o poderoso empresário Assis Chateaubriand organizou, com a ajuda do estilista francês Jacques Fath, um jantar no Castelo Coberville, nos arredores de Paris, para a alta-costura europeia e empresários do setor do algodão, Jamelão, ainda crooner da Tabajara, não se intimidou com a presença do diretor Orson Welles e outros convidados ilustres: cantou como se estivesse no vestiário do Piedade e ignorou
PERFIL
Eu conheci o Cartola quando era garoto. Ele nunca gostou de mim e eu nunca fiz questão de gostar dele os pedidos para fazer média com os convidados. Já cultivava manias, como usar dezenas de elásticos enrolados na mão direita. Quando alguém, curioso, perguntava a razão pela qual ele cultivava o estranho hábito, Jamelão o mandava passear. Tão difícil quanto controlar seu gênio era entrevistá-lo. Não que fosse um homem recluso – se fosse assim, não seria o “puxador” de samba da Mangueira por mais de 40 anos. Era apenas avesso a bajuladores e a jornalistas. Para convencê-lo a começar a falar (o que quase sempre não terminava, necessariamente, numa “entrevista”) era preciso, obrigatoriamente, seguir uma rígida cartilha. 1) Não cha-
má-lo, como se sabe, em hipótese alguma, de “puxador”; 2) não se referir a ele como intérprete de canções de dor de cotovelo (“Não sou corno!”); 3) não perguntar a razão dos elásticos (“Não é da sua conta.”); 4) não chamá-lo de “lenda” da Mangueira (“Odeio puxa-saco!”); e 5) não (no caso das repórteres) beijá-lo no rosto. Diante das recomendações, passadas pelo assessor de imprensa do Bar Brahma, onde Jamelão cumpriu uma curta temporada de shows em 2005, todas as terças à noite, este repórter tentou uma pré-entrevista, por telefone. Liguei para a suíte 212 de um decadente hotel do centro de São Paulo:
MARCO ANTÔNIO TEIXEIRA/AG. O GLOBO/13.02.2006
– Alô, Jamelão? – Sim (grunhindo). – Aqui é Tom Cardoso, repórter... – Entrevista? – Sim... – Cobro R$ 10 mil. – Cobra? – Já apanhei muito da vida, meu filho... – Mas eu só quero uma entrevista... Posso ligar mais tarde... – Mais tarde eu já morri. Quem sabe posso dar entrevista depois de morrer. – (Risos...) – Tá rindo da minha cara? – É que o senhor disse que só vai dar entrevista depois de morto... Só se for psicografado... – Tá tirando sarro da minha cara? – Não, senhor. – Então vai se catar! O assessor caiu na gargalhada e ofereceu convites para o show. “Quem sabe você conversa um pouco com ele no fim.” Em três horas de espetáculo, foi possível entender por que Jamelão, aos 92 anos, continuava tão querido, apesar da rabugice e da falta de paciência com a plateia – cantou o que quis e ignorou solenemente os pedidos. Ninguém reclamou. De chapéu, paletó, camisa amarela e um maço de elásticos no pulso, cantou divinamente e com disposição incomum. No fim do show, uma senhora pediu que cantasse As Rosas Não Falam, de Cartola. Ele resmungou e pela primeira vez na noite conversou com a plateia: “Eu conheci o Cartola quando era garoto. Ele nunca gostou de mim e eu nunca fiz questão de gostar dele”. Fez-se um longo silêncio, quebrado pelo próprio Jamelão. E o vozeirão ecoou: Bate outra vez/ Com esperanças o meu coração... Enfim. Fim do show. O repórter caminha até o camarim. Jamelão está esticado numa poltrona, segurando a bengala com a costumeira cara de poucos amigos. A entrevista vai sair. Nesse momento, surge a senhora que havia pedido o Cartola, também beirando os 100 anos. Para surpresa de todos, ela arranca um selinho do cantor, que, no auge de sua sinceridade e grossura, faz cara de nojo e solta um palavrão. A entrevista é cancelada e adiada por tempo indeterminado. REVISTA DO BRASIL
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A ilha do fim do mundo
Depois de mais de 150 anos de colonização francesa, a Nova Caledônia pode passar a ser dona de suas riquezas, de sua beleza, e resgatar a força de sua cultura milenar Por Celso Maldos 44
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gora, na Nova Caledônia são exatamente 13 horas mais tarde que em Brasília. O arquipélago é possivelmente a colônia mais distante de sua “metrópole”, Paris, a quase 17 mil quilômetros. Não é exagero, portanto, dizer que fica mais ou menos próxima do “fim do mundo”. Estima-se que a região seja habitada há cerca de 3 mil anos. E até hoje resgata, em eventos musicais anuais chamados DK Festival, raízes de sua milenar cultura tradicional. A reportagem esteve lá no início deste ano. Crianças e músicos indígenas Kanaki, a população original, de diferentes lugares das ilhas, celebram durante dez dias em oficinas de teatro, música, escultura, dança, produção de instrumentos musicais e vídeos
A paisagem impressiona. Em alguns lugares, se assemelha à da Serra do Mar, no litoral norte de São Paulo. Ali também passa o Trópico de Capricórnio. O arquipélago foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A terra, 1.500 quilômetros a leste da costa australiana e 2 mil quilômetros ao norte da Nova Zelândia, foi “encontrada” por navegadores ingleses no século 18 e batizada Nova Caledônia (em latim, “Nova Escócia”). No século 19, prevalece a colonização comandado por Paris. Portanto, o francês é a língua oficial, embora o idioma kanaki seja falado em toda parte, com algumas centenas de variações e dialetos. Em 1853 é fundada a capital, Numea, e em 1866 os franceses começam a usar o lugar para enviar presos políticos após os eventos da Comuna de Paris. O processo de coloni-
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Nova Caledônia
Austrália
CELSO MALDOS
zação é complicado. Em 1931, um grupo de Kanakis é exposto como canibais, dentro de caixas, por ocasião da Exposição Colonial Internacional na França. Já durante a Segunda Guerra, a população local apoia os franceses contra a ocupação alemã e Numea torna-se base estratégica na batalha contra os japoneses, aliados dos nazistas. Além da posição geográfica, a Nova Caledônia atrai por suas gigantescas minas de níquel, hoje pertencentes a grandes empresas canadenses, multinacionais e a brasileira Vale, que tem ali seu maior investimento no exterior. A mineradora paralisou no ano passado sua unidade de produção de ácido sulfúrico, após vazamento do produto, usado no tratamento do níquel.
CELSO MALDOS
A arquitetura do Centro Cultural Tjibaou é inspirada nas casas dos nativos
Ilha dos Pinhos
DAVID BECKER/ACERVO CENTRO CULTURAL TJIBAOU
BRUNO MENETRIER/WIKIMEDIA COMMONS
Nova Zelândia
CELEBRAÇÃO Crianças e músicos indígenas Kanaki, a população original, de diferentes lugares da(s) ilha(s) celebram durante dez dias em oficinas de teatro, música, escultura, dança, produção de instrumentos musicais e vídeos REVISTA DO BRASIL
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VIAGEM
Na década de 1980, a luta pela independência levou a divisões políticas internas que chegaram ao nível de guerra civil. O líder popular Jean-Marie Tjibaou, pacifista, foi assassinado em 1989 por um de seus pares, que via no confronto armado o único caminho para a independência. Tjibaou dá nome ao centro cultural projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano (coautor do Centro George Pompidou, em Paris) e tem uma história incomum. Adepto da não violência, como Ghandi, foi dado a um padre aos 6 anos, estudou na França com o antropólogo e filósofo Claude Lévis-Strauss e voltou para resgatar a autoestima e a cultura de seu povo. Sua memória estimula a preservação da cultura Kanaki, asfixiada nesses mais de 150 anos de colônia. Entre as atividades dos festivais há fortes movimentos de resgate de saberes, da mitologia, de agricultura, dança, do conhecimento da floresta, da culinária. Caminhar na floresta acompanhado de quem conhece seus segredos é uma experiência única. Eles sabem obter água depositada em algumas espécies, extrair cascas de árvores para produzir instrumentos sem ferir o tronco, escolher diferentes tipos de 46
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bambu para fazer objetos de percussão ou flautas. Preservam o cultivo ancestral de maçã, batata-doce e inhame. Tudo é um aprendizado. Ali, onde são comuns furacões e tsunamis, chama atenção a técnica da construção das casas, redondas, de taipa, com telhados cônicos de palha e uma amarração que permite a passagem de fortes ventos. O mergulho na Nova Caledônia é imperdível. Com uma barreira de corais de 1.600 quilômetros, um oceano verde-esmeralda, basta uma simples máscara com canudo para ver as mais diversas e coloridas espécies marinhas, e, se tiver a sorte de estar acompanhado de mergulhadores Kanaki, em poucos minutos poderá desfrutar uma saborosa salada de peixe cru.
ACERVO CENTRO CULTURAL TJIBAOU
PHILIPPE MIOT/FLICKR/CC
MERGULHO IMPERDÍVEL Com uma barreira de corais de 1.600 quilômetros, um oceano verde-esmeralda, basta uma simples máscara com canudo para ver as mais diversas e coloridas espécies marinhas
O arquipélago se estende por 19 mil quilômetros e possui a maior lagoa de água salgada do mundo. A Grande Terre é a ilha mais rica e mais povoada, rodeada por grande número de ilhotas. Um músico que conhecemos no festival vinha de uma que não chega a cinco quilômetros quadrados, não tem um único rio e coleta-seágua das chuvas para todos os usos. As escolas têm o mesmo currículo que as da metrópole francesa, não se fala nem se estuda absolutamente nada da história Kanaki. No passado recente, quando fez parte da administração setorial, Jean-Marie Tjibaou implementou no sistema de educação de base métodos muito semelhantes aos do educador brasileiro Paulo Freire. No início de 2014, a população da Nova Caledônia estará apta a decidir, por meio de um referendo, se quer se tornar um país independente ou se permanece como parteda República Francesa. O mais provável é que até a França, já tendo priva tizado as ricas minas de níquel, não se oponha a ter ali um problema a menos a administrar. A aprovação da independência, afinal, não será o fim do mundo.
curtaessadica
Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Perseguidos por caçadores furtivos na Zâmbia, os elefantes têm medo dos homens e dos veículos, e geralmente entram rapidamente no mato, assustados
Depois de passar oito anos longe das galerias, o fotojornalista Sebastião Salgado lançou em abril, no Museu de História Natural de Londres, seu mais novo projeto. A exposição Genesis traz 250 fotos que estão em seu livro homônimo. Foram oito anos de trabalho e viagens a 32 países para registrar lugares e comunidades que escaparam às “marcas da sociedade moderna”. Montanhas, desertos, oceanos, animais e povos são capturados em preto e branco (marca registrada do fotógrafo) com o intuito de apresentar a condição humana nas regiões extremas do planeta e promover discussões sobre a importância de preservar esses habitat. O projeto, financiado pela Unesco ao custo de € 1 milhão, também será tema de um documentário feito pelo cineasta alemão Wim Wenders, com colaboração do filho do fotógrafo, Juliano Salgado. A exposição chega em 28 de maio ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde fica até 25 de agosto. Passa por Toronto (Canadá), Roma (Itália), Lausanne (Suíça) e Paris (França) e no dia 9 de setembro vai a São Paulo, no Sesc Belenzinho. Para quem não conseguir ver as mostras e não puder comprar o livro (que custa de R$ 139 a R$ 199, da editora Taschen), algumas fotos do projeto podem ser conferidas no site www.amazonasimages.com/grands-travaux.
FOTOS SEBASTIÃO SALGADO/AMAZONAS IMAGES
A gênese de Salgado
Na região da bacia do Xingu, estado de Mato Grosso, um grupo de indígenas Waurá pesca na lagoa Piyulaga, perto de sua aldeia REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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CURTA ESSA DICA
Explorar e aprender Desde que o homem é homem ele está sempre em busca de novas
terras para conhecer e explorar. O Livro dos Maiores Exploradores de Todos os Tempos (Companhia das Letrinhas, 64 pág.), de Peter Chrisp, com ilustrações de Lisa Swerling e Ralph Lazar, faz um passeio pela história das explorações, seja na caverna do vizinho, na Pré-História, nas maravilhas encontradas por Marco Polo no Oriente ou ainda na chegada do homem à Lua, no final da década de 1960. As crianças vão aprender muita coisa sobre os primeiros viajantes: que lendas amedrontavam os antigos navegadores, como eram as embarcações, quem eram os vikings e muitas incríveis jornadas ao redor do mundo. R$ 46.
História de candangos
O documentário Conterrâneos Velhos de Guerra, de Vladimir Carvalho, mostra a construção de Brasília a partir das condições de trabalho dos cerca de 50 mil candangos, os operários emigrados das mais diversas regiões do país para erguer a capital nacional. Carvalho levou 20 anos para concluir o longa-metragem. Teve dificuldade em reu48
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nir depoimentos porque ninguém queria falar do massacre dos trabalhadores no começo da década de 1970. “Só se falava disso à boca miúda. Entre 1988 e 1989 algumas pessoas começaram a concordar em ser entrevistadas”, diz o diretor. O filme, até então disponível apenas em VHS, foi lançado em DVD em abril pelo Instituto Moreira Salles.
Viva o marketing, abaixo a ditadura Em 1988, o governo chileno, comandado pelo general Augusto Pinochet desde 1973, cedeu a pressões internacionais e convocou um plebiscito no qual a população decidiria entre sua permanência no poder ou a convocação de eleições. No filme No (adaptado da peça teatral El Plebiscito), o diretor Pablo Larraín viaja entre o real e o imaginado ao mostrar os bastidores da campanha de marketing do referendo, executada por René
Jornalismo e literatura Vinte reportagens do jornalista Ivan Marsiglia compõem o livro A Poeira dos Outros (Arquipélago Editorial, 168 pág.), com histórias obscuras e (às vezes) pitorescas do passado e do presente do Brasil. Os textos – sempre elegantes – tratam de temas variados: o perfil do juiz que condenou o Estado pela morte do jornalista Vladimir Herzog em plena ditadura militar; uma madrugada de sábado em um prontosocorro na periferia de São Paulo; a história de uma onça que apareceu na beira de uma rodovia (reconstituída sob o ponto de vista do animal); e a trajetória da Casa da Morte, usada como centro de tortura na época da repressão, comprada por uma família na década de 1970 e desapropriada para possível transformação em museu. R$ 32, no site www.arquipelagoeditorial.com.br.
Saavedra (Gael García Bernal). Em meio a roteiros em que a crise social, a violência do regime e o drama das vítimas da repressão são coadjuvantes, contracenando com anseios individuais típicos das propagandas comerciais convencionais, o marqueteiro da campanha pelo Não traz uma linguagem inovadora que fez escola. A fotografia granulada é semelhante à dos comerciais originais, dando ao filme atmosfera de documentário. Em DVD.
Cantadores da cidade Música paulistana com sotaque e poesia nordestinos. É assim que Vavá Rodrigues e o Pessoal da Banda definem o som que fazem e trazem em seu segundo disco, For All. Com 12 músicas mais uma faixa bônus, o álbum apresenta uma combinação interessante de ritmos: rock, blues e reggae encaixam-se harmoniosamente com xote, xaxado e maracatu. Na faixa-título, o baião-pop tem um rap conduzido por alfaias de maracatu com elementos de música eletrônica e finalizado com black music. Em Aboio Blues, a banda contrasta a aridez do sertão com a da solidão das cidades. Tem também releitura de Qui nem Jiló (de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e de Born to Be Wild (de Steppenwolf). Preço sob consulta. REVISTA DO BRASIL MAIO 2013
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MOUZAR BENEDITO
Funcionário exemplar
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o casamento de um amigo comum, conheci o Denílson, numa cidade do sertão da Paraíba, e nos reencontramos alguns dias depois em João Pessoa. Éramos quatro num Fusca, chegando à capital paraibana, à noite, e bateu a dúvida: procuramos o Denílson ou não? A conclusão foi que devíamos primeiro procurar um hotel, tomar banho e depois ir ao seu encontro. Se fôssemos direto à casa dele, iria querer que todo o bando ficasse hospedado lá. Procurando um hotelzinho no centro, entramos numa rua estreita e quase batemos de frente com um carro... que era dirigido pelo Denílson. Pronto. Não tinha jeito. Queria de todas as maneiras que ficássemos na casa dele. Propusemos que fôssemos tomar uma cerveja num boteco à beira da lagoa que fica no centro da cidade. Lá, pensamos, explicaríamos que preferíamos ficar num hotelzinho. Enquanto bebíamos cerveja, alguém nos avisou: – Arrombaram o Fusca de vocês. Um ladrão levou tudo o que tínhamos de valor. Nunca pensaríamos que nós, que jamais tínhamos sido roubados em lugar nenhum, passaríamos por essa situação na pacata João Pessoa do início de 1978. E o Denílson: sem dinheiro, teríamos de ficar mesmo na casa dele. No dia seguinte, fomos à delegacia dar queixa, para pelo menos apresentar o boletim de ocorrência ao Banco do Brasil e tentar recuperar a grana de uns cheques de viagem. Na delegacia, ninguém dava bola para nós. Falamos do local onde o fato tinha acontecido e um policial exclamou: “É o aleijadinho da lagoa”. Fica50
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mos sabendo então que um sujeito que andava sentado num carrinho de rolimã atuava na região da lagoa, roubando mixarias de turistas. E o delegado nem tchum pra nós. Explicamos a ele que precisávamos do boletim de ocorrência para poder continuar a viagem, pois nas bolsas levadas estavam as carteiras de motorista de dois dos quatro ocupantes do Fusca. E também, caso ele se dispusesse a pegar o aleijadinho, poderíamos recuperar alguns pertences de valor. Aí ele já se interessou. Perguntou o que havia nas bolsas. Máquinas fotográficas, cheques de viagem, dinheiro vivo e outras coisas pessoais. Os olhos dele começaram a brilhar diferente. Mas ainda quis achacar a gente: – Nós estamos sem combustível e sem dinheiro para reabastecer... – Nosso dinheiro está quase todo com o aleijadinho. Ele falou o clássico “vamos ver o que dá pra fazer”, fez o BO e nos dispensou dizendo que daria notícias se conseguissem pegar o ladrão. Claro que pegaram, e claro que garfaram tudo! O Denílson, além de nos dar casa e comida, saía com a gente todos os dias pra passear, nos levou a Cabedelo, Praia do Poço, Costinha, Baía da Traição... Começamos a ficar incomodados, pois ele não ia trabalhar nenhum dia. Temíamos que acabasse perdendo o emprego na repartição pública por nossa causa. Fomos conversar com ele. Explicamos a preocupação, mas ele não aceitava a hipótese de nos deixar sozinhos. Por fim, disse, pra nos tranquilizar: – Então eu vou lá na repartição avisar que não vou trabalhar nos próximos 15 dias. Olha só! Ia avisar que não ia trabalhar! Fomos eu e dois amigos com ele. Não havia lugar pra estacionar o carro, eles entraram na repartição enquanto eu esperava de fora, na direção, para dar uma volta, no caso de aparecer algum guarda. E demoraram. Demoraram. Mais de uma hora e não voltavam. Comecei a me preocupar. Mais um pouco e saíram os três, o Luizinho com cara de espanto, o que me fez pensar que havia dado rolo mesmo. – E aí? – perguntei. O Luizinho foi quem explicou, enquanto o Denílson sorria: – Não apareceu ninguém na repartição pra ele dar o recado.