DESONERAÇÕES Empresas ainda acham cedo para comemorar
EDUCAÇÃO Universidades federais, os limites da expansão
VERDADE ACIMA DE TUDO
nº 84
TEATRO E LUZES Nem herói, nem coitado; apenas ator
junho/2013
www.redebrasilatual.com.br
Aos poucos, o país vai reescrevendo sua história oficial, para que as futuras gerações jamais tolerem a crueldade e a tirania como forma de governo
Rosa Cardoso, nova coordenadora da Comissão Nacional da Verdade
Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social 2013
Se você participa de um projeto que transforma a vida das pessoas, conheça a premiação da Fundação Banco do Brasil. Inscreva as soluções que mudaram a realidade da sua comunidade nas áreas de alimentação, água, educação, energia, habitação, saúde, renda e meio ambiente.
R$ 800 mil em premiações | Inscrições até 21 de junho, no site
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www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Foto de Marcelo Camargo/ABr, Assessoria de Comunic. UFFS (Universidades) e Daniel Protzner (Teatro) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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JUNHO 2013 REVISTA DO BRASIL
LEIA DIVULGUE ASSINE PARTICIPE DA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA MÍDIA
ASSINE POR APENAS R$60 AO ANO. ACESSE WWW.REDEBRASILATUAL.COM.BR/LOJA carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
ÍNDICE
EDITORIAL
5. Na Rede
Notas que foram destaque na RBA no mês que passou
16. Economia
Desonerações: fôlego para sair da esteira e seguir em frente
22. Capa
Antes muitas verdades do que nenhuma. E reparar a história
28. Cidadania
SERGIO AMARAL/RBA
Livros do Arquivo Nacional que faltam nos bancos escolares
30. Educação
Ensino superior público chega mais longe, mas poderia ir mais
34. Entrevista
Sob efeito das desonerações, consumidores como Leandro Luna dão fôlego à economia
A conquista inédita da reitoria da Unilab, em Redenção (CE)
Verdade não tem donos
36. Saúde
C
As novas atribuições do SUS para os pacientes com câncer
38. História
Os 60 anos de uma greve que influenciou na criação do Dieese
40. Cultura
Bairro Gótico
44. Viagem
Como estar na terra do Barça e nem lembrar de futebol
Seções Destaques do mês
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Lalo Leal
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Mauro Santayana
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Curta essa dica
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Crônica: Thiago Domenici
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PAULO DONIZETTI DE SOUZA
Todas as línguas do teatro e as vibrações de sua expressão
onhecido como cordial, o brasileiro tem, sim, alguma tendência a pôr pedra sobre determinados assuntos. A Comissão Nacional da Verdade e a Lei de Anistia são dois deles. Instalada há um ano, a comissão mostrou ousadia na apresentação de relatório parcial, pela primeira vez com indicação de responsabilidades e citação a comandos militares. Ainda sofre pressão de quem espera avanços na conciliação do país com sua história. Mas também de quem acha que tudo deve ficar como está. Essa ala afirma que a Lei de Anistia, aprovada em 1979, em um país ainda presidido por general, promoveu a pacificação. Mas crimes contra a humanidade não prescrevem, segundo o direito internacional. E opositores da ditadura foram processados – quem sobreviveu à prisão, claro –, com base nos tribunais e leis do regime autoritário. Ainda hoje, defensores de 1964 afirmam que o golpe se antepôs ao “risco” de uma ditadura comunista. Uma balela. A pretexto de defender a democracia, militares e civis a interromperam por 21 anos. Muitas vezes, como escreveu em 1994 dom Paulo Evaristo Arns, tocando no corpo de suas vítimas para machucar, destruí-las psicológica e humanamente, matar. A Comissão da Verdade não surgiu para “vingar” ninguém. Mas para apresentar a versão da história por décadas sufocada. É sobre esse desafio a reportagem de capa. Esta edição fala ainda sobre outro desafio do futuro, agora na área econômica: as medidas adotadas pelo governo, especialmente as desonerações tributárias – que reduzem custos da produção e encorajam consumidores – e seus possíveis efeitos na retomada do crescimento. Mesmo rateando, com tropeços, o país se diferencia do mundo em crise por recusar o receituário da “austeridade” e continua criando postos de trabalho com carteira assinada e ostentando as menores taxas de desemprego de sua série histórica. Talvez se possa inferir que nem só o PIB mede a eficiência econômica de um país.
Ano 7
A Revista do Brasil completa 84 edições neste mês de junho, todas com a preocupação de levar ao leitor pontos de vista pouco vistos nas demais revistas. São sete anos acreditando em um projeto de comunicação que dê voz àqueles que não se sentem bem i nformados pelos veículos tradicionais e permita demonstrar que a verdade não tem donos. REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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redebrasilatual.com.br A ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, evitou politizar as notícias falsas espalhadas sobre um suposto fim do Bolsa Família. Os boatos que levaram milhares de pessoas às agências da Caixa, principalmente no Nordeste, para ela, passaram a ser assunto de polícia. “O que cada um de nós acha não tem mais importância. Nós estamos investigando principalmente para evitar que essa situação se repita”, disse a ministra. Um dia antes, a presidenta Dilma Rousseff, depois de qualificar a ação de desumana e criminosa, acionou a Polícia Federal para investigar a origem da brincadeira de mau gosto. http://bit.ly/rba_boatos
ASSUNTO DE POLÍCIA Campello: evitar que a situação se repita
UBIRAJARA MACHADO/MDS
Boatos desumanos
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
ANTÔNIO GAUDÉRIO/FOLHAPRESS
SEM SALÁRIO Boliviano em confecção de São Paulo
Além da liberdade O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) quer que o governo federal institucionalize a reinserção de pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão ao mercado formal por meio de qualificação. O objetivo é difundir para outros estados e buscar apoio governamental para o projeto Ação Integrada, inspirado em experiência iniciada em Mato Grosso. A ideia é firmar parcerias com entidades educacionais e empresas para 6
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qualificar e contratar os trabalhadores resgatados. As parcerias naquele estado envolvem Ministério Público do Trabalho, a Organização Internacional do Trabalho e o Senai. A qualificação de cada trabalhador, segundo a diretora da OIT no Brasil, Laís Abramo, custou R$ 3 mil. “O Brasil é referência mundial no enfrentamento desse tipo de problema. Cada vez mais existe interesse de outros países na experiência brasileira.” http://bit.ly/rba_qualificacao
Tuiticídio e ressurreição O ator José de Abreu, provocador e tuiteiro seguido por mais de 75 mil pessoas, anunciou em entrevista à RBA o seu “tuiticídio”. A decisão de dar fim à própria conta no Tweeter foi resposta à derrota sofrida nos tribunais para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Abreu, crítico contundente da postura midiática e partidarizada da Corte durante o julgamento do mensalão, chegou à conclusão de que tem medo do Supremo: “Eu estou com medo do Supremo como eu
“ME DÁ MEDO” Zé de Abreu: insegurança
LUCIANA WHITAKER/RBA
REDEBRASILATUAL.COM.BR
tinha de general no tempo da ditadura. O mesmo medo. Todo mundo vai lá puxar o saco dele, até o Randolfe e a Marina. Me dá medo, me dá medo”. E explicou que, por não conseguir se conter, acha melhor parar. “Sou muito compulsivo. Vejo uma injustiça escrita e vou para cima. Não consigo ficar pensando dez vezes antes de apertar o botão. Eu não sei mais o que posso dizer. Fiquei inseguro.” Não tanto. Dias depois, o ator revogou a própria decisão e ressuscitou-se no microblog. http://bit.ly/rba_abreu
LENTIDÃO Raul do Valle vê “desleixo”
Aprovado em maio do ano passado, o novo Código Florestal só começou a valer em outubro. Não anda, porém, a implementação prática de iniciativas como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), necessário para que o proprietário tenha acesso ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). A lentidão levou entidades ambientalistas a criar o Observatório do Código Florestal, para monitorar o andamento de medidas propostas pela nova lei. Participam do observatório o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o Instituto Socioambiental (ISA), a Fundação SOS Mata Atlântica, o WWF Brasil e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), entre outras organizações. O coordenador do ISA, Raul do Valle, vê um “desleixo” por parte de alguns governos estaduais na tarefa de cadastrar cerca de 5 milhões de produtores rurais no PRA. http://bit.ly/rba_codigo_parado
ANTONIO AUGUSTO/CÂMARA DOS DEPUTADOS
Falta decodificar
REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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Passada a ressaca da votação da MP dos Portos, a expectativa era de início de nova fase na relação entre o PT da presidenta Dilma Rousseff e o PMDB do vice Michel Temer. A votação serviu para a presidenta separar o joio do trigo no maior partido de sua base aliada. Os senadores peemedebistas, por exemplo, desempenharam papel fundamental na aprovação da MP. Na Câmara, a avaliação do governo é inversa. O líder do PMDB na Casa, Eduardo Cunha (RJ), foi o principal articulador de um movimento de rebeldia contra o texto original que quase pôs tudo a perder. “Nós sabemos que ganhamos e ele sabe que perdeu. Não podemos tripudiar”, disse um ministro. No entanto, já não seria surpresa se a indicação de um aliado de Cunha – o deputado Danilo Forte (PMDB-CE) – para a relatoria da Lei de Diretrizes Orçamentárias, antes acertada com o governo, subitamente subisse no telhado. No jogo eleitoral para 2014, os peemedebistas admitem o risco de ver a bancada na Câmara encolher, se não conseguirem carona na popularidade da presidenta. O problema não é tanto a bancada encolher, para os mais pragmáticos, mas quem perderá cadeira. http://bit.ly/rba_base_aliada
Projeto, unidade e alto nível Discursos contra a gestão Dilma Rousseff e contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dominaram a convenção nacional do PSDB, que ratificou, no dia 18 de maio, o nome do senador Aécio Neves (MG) para presidir a sigla. Aécio, potencial candidato tucano à Presidência em 2014, assumiu a tarefa de atacar o atual governo. Classificou o baixo crescimento do PIB nos últimos anos como “ridículo, irrisório e vexatório” e criticou a “inflação saindo de controle e as obras inacabadas e estagnadas”. Seu 8
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DO CONTRA Aécio se lança como candidato
colega Marconi Perillo, governador de Goiás e suspeito de manter ligações com o chefe de organização criminosa Carlinhos Cachoeira, não poupou elogios ao ex-presidente Lula: “Nunca foi tão difícil ser oposição ao maior canalha deste país”. O candidato derrotado em 2002 e 2010, José Serra, disse em seu discurso que trabalha pela unidade dos tucanos, cujo próximo passo, além de definir o nome na disputa, é elaborar seu projeto para o país. http://bit.ly/rba_aecio_2014
FERNANDO BIZERRA JR/EFE
REBELDE Eduardo Cunha: articulação contra o texto original
RENATO ARAÚJO/ABR
Após a batalha, o filtro
MARCELO CAMARGO/ABR
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DEBATE A sociedade ainda não sabe como reagir
Drogas e mais drogas A Câmara aprovou o projeto de lei do deputado Osmar Terra
(PMDB-RS) sobre o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, mesmo sob críticas de setores especializados. Para a coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas, da Universidade de Brasília, Andrea Gallassi, a proposta é “um retrocesso”, se comparada a políticas de outros países. “Alguns países, como Uruguai, estão num debate bem mais progressista, ao entender que a política de drogas deve prever cuidados de saúde para os usuários”, diz Andrea. Segundo a pesquisadora, outro aspecto mais negativo é não observar a situação do dependente num contexto adequado e prever repasse de dinheiro público a entidades privadas que não são equipamento de saúde.” http://bit.ly/precisa atualiza o link com a matéria mais atual
DOUGLAS MANSUR
Josimo e sua causa
PADRE NEGRO Romeiros debatem concentração de terras
Romeiros de todas as regiões do país se reuniram no início de maio em Esperantina (TO) para recordar os 27 anos da morte do padre Josimo Morais Tavares. Durante dois dias debateram a concentração agrária, o desmatamento e problemas provocados pelo uso de venenos agrícolas. A 13ª edição da romaria teve como lema “Firmes na terra, semeando vida” e foi organizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Diocese de Tocantinópolis na região do chamado Bico do Papagaio – que alcança também áreas do Pará e Maranhão –, marcada por conflitos agrários. Nascido em Marabá (PA) em 1953, ainda criança Josimo se mudou com a família para Xambioá (TO). Como coordenador da CPT no Bico do Papagaio, ficou conhecido como o “padre negro de sandálias surradas”, mas amealhou desafetos. Em 16 de abril de 1986, o carro que dirigia foi acertado por uma série de disparos, a mando de fazendeiros. http://bit.ly/rba_josimo REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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DIVULGAÇÃO
HOME DEFENDERS LEAGUE
O secretário municipal de Direitos Humanos de São Paulo, Rogério Sottili (foto), não se sente confortável com a Operação Delegada. O convênio, firmado em 2009 com o estado, permite a policiais receber da prefeitura por serviços prestados em períodos de folga para agir no cumprimento de leis municipais. Ao ser questionado sobre a ampliação do risco de violação de direitos humanos por parte de policiais e sobre a Operação Delegada, Sottili afirmou que “rezou” para que ninguém fizesse essa pergunta. “Sigo uma diretriz política, mas nem sempre nos sentimos confortáveis com algumas decisões que extrapolam nossa competência. Essa é uma delas. Não acho uma boa solução. Acho que poderíamos tentar outras alternativas (de policiamento preventivo)”, comentou. http://bit.ly/rba_delegada
Partiu de madrugada Três dias depois de completar 89 anos, morreu Paulo Vanzolini, em 28 de abril. O autor de Ronda era biólogo, de noite especializado em samba e de dia em répteis, trabalhou durante 50 anos no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Fazia música por hobby. O pesquisador Zuza Homem de Mello o comparava a Adoniran Barbosa: “Frequentou a mesma escola: as ruas, as praças, os bares e os lugares da cidade. Também são de Vanzolini clássicos como Volta por Cima, Praça Clóvis e Boca da Noite. Sobre esta, conta o parceiro Toquinho, em seu site: “Ele chegou para mim e escreveu em um papelzinho duas estrofes. Fiquei com aquele papel, e demorei para fazer a música. Cada palavra tem um som dela própria. Foi muito trabalhoso achar uma linha melódica natural para Boca da Noite”. http://bit.ly/rba_vanzolini 10
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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
Quanto mais eu rezo...
BIÓLOGO Vanzolini fazia música por hobby
Despejem os bancos Um protesto de mutuários do sistema hipotecário norteamericano levou à prisão de 25 deles, no último 20 de maio. O objetivo da atividade, diante do prédio do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, em Washington, era questionar o procurador-geral, Eric Holder, o Roberto Gurgel da terra de Obama. Em março, Holder admitiu numa comissão do Senado que nada acontece com grandes bancos acusados de fraude porque são ricos e poderosos. Oficializou que os bancos são grandes demais para falir, “too big to fail”, e portanto “too big to jail”, grandes demais para a cadeia. Nenhum executivo de Wall Street foi preso depois da crise pós-2008. Com sofás instalados na calçada, ativistas lembravam que mais de 1,5 milhão de americanos, a maioria pobres e moradores de comunidades negras, sofreram ações de despejo, com dívidas muito maiores que o valor das casas. http://bit.ly/rba_wall_street
GERARDO LAZZARI
REDEBRASILATUAL.COM.BR
Começou a ouvir?
Governo retoma diálogo com as centrais, mas alguns temas caros aos trabalhadores não entram na pauta. E a isenção do IR na PLR, enfim, vira lei
E
m março, as centrais sindicais foram a Brasília. Organizaram uma marcha que reuniu algumas dezenas de milhares de pessoas e, ao fim do dia, foram recebidas pela presidenta Dilma Rousseff. Os dirigentes conseguiram ser ouvidos, como queriam. E saíram – pelo menos parte deles – com expectativa da abertura de um processo de negociações que culminasse com o anúncio de decisões importantes durante as atividades do Dia do Trabalho. Foi por pouco. Na véspera do 1º de Maio, uma reunião entre sindicalistas e o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, cobrou uma resposta do governo em relação à pauta de dois meses antes. O Executivo marcou, então, nova reunião para 14 de maio. Mas tirou da mesa, pelo menos neste momento, temas caros à agenda sindical, como redução da jornada para 40 horas e fim do fator previdenciário. Um encontro inicial foi marcado para 11 de junho, para discutir, especificamente, terceirização de mão de obra, regula-
mentação do trabalho doméstico e fortalecimento do Sistema Nacional de Emprego (Sine). As centrais já se articularam contra o Projeto de Lei nº 4.330, sobre terceirização. Em 21 de maio, o governo encaminhou ao Congresso sua proposta de regulamentação do trabalho doméstico, conforme emenda aprovada em março. O Executivo mantém a multa de 40% sobre o saldo do FGTS em caso de demissão, as alíquotas de contribuição previdenciária tanto para empregador como para empregado e valor adicional de 50% para hora extra.
Como ficou PLR Alíquota Até R$ 6.000
Isento
R$ 6.001 a R$ 9.000
7,5%
R$ 9.001 a R$ 12.000
15%
R$ 12.001 a R$ 15.000
22%
Acima de R$ 15.000
27,5%
A partir de 2014, os valores são corrigidos em 4,5%, mesmo percentual da regra geral da tabela do IR sobre os salários.
18 meses depois...
Enquanto as negociações prosseguem, uma das principais bandeiras sindicais está próxima de virar lei. Um ano e meio depois do início da campanha pela redução do imposto de renda descontado do pagamento de prêmios de participação nos lucros ou resultados (PLRs), a Câmara aprovou a medida provisória que isenta de imposto ganhos anuais com PLR no valor de até R$ 6 mil (confira a tabela). No final de maio, o texto foi ao Senado. O movimento começou em novembro de 2011, por iniciativa de algumas categorias, como bancários, metalúrgicos, químicos e petroleiros – com bases que em São Paulo somam 700 mil trabalhadores –, e depois foi abraçado pelas centrais. Em 1º de maio de 2012, Gilberto Carvalho anunciou que o governo iria apresentar uma proposta, mas a negociação só foi finalizada em dezembro. Segundo o governo, a medida representará uma renúncia fiscal de R$ 1,7 bilhão. Para a economia, é mais dinheiro circulando. http://bit.ly/rba_plr_lei REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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RÁDIO
Bem-vindos os médicos
O
Conselho Federal de Medicina (CFM) ficou indignado frente ao anúncio do governo brasileiro de que pretende trazer 6 mil médicos de Cuba e outros tantos de Portugal e Espanha para atuar em municípios carentes de profissionais da saúde. Mas a opinião do conselho importa menos que a dos habitantes das periferias e do interior do país, que tanto necessitam de cuidados. Estudos do próprio CFM, em parceria com o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), demonstram que em 2011 o Brasil dispunha de 1,9 médico para cada mil habitantes. Cuba dispõe de 6,4. Em 2005, a Argentina contava com mais de 3 médicos para cada mil habitantes, o que o Brasil só deve alcançar em 2031. Dos 372 mil médicos registrados no Brasil, 209 mil se concentravam nas regiões Sul e Sudeste, enquanto pouco mais de 15 mil na Norte. (O Brasil oferecerá vistos de trabalho de dois a três anos para profissionais dos três países que queiram realizar atendimento em cidades carentes na área da saúde.) Se a medicina cubana fosse de má qualidade, como se explica a saúde daquela população apresentar, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), índices melhores que os do Brasil e comparáveis aos dos Estados Unidos? No ranking da OMS, dados de 2011, o melhor sistema de saúde do mundo é o da França. Os Estados Unidos ocupam o 37º lugar e Cuba, o 39º. O Brasil está em 125º. Cuba, espe-
Profissional cubano não virá ao Brasil para concorrer com a medicina de mercado, mas para tratar de problemas que podem reduzir as mortalidades infantil e materna em regiões onde poucos querem trabalhar Por Frei Betto
cialista em medicina preventiva, exporta médicos para 70 países. Graças a essa solidariedade, a população do Haiti teve amenizado o sofrimento decorrido do terremoto de 2010. Médico cubano não virá para o Brasil
para emitir laudos de ressonância magnética ou atuar em medicina nuclear. Virá tratar de verminose, diarreia, malária, desidratação, reduzindo as mortalidades infantil e materna, aplicando vacinas, ensinando medidas como cuidados de higiene. O New England Journal of Medicine elogiou a medicina cubana, que alcanças as maiores taxas de vacinação do mundo, “porque o sistema não foi projetado para a escolha do consumidor ou iniciativas individuais”. Em outras palavras, não é o mercado que manda, é o direito do cidadão. Quem dera um dia o Brasil pudesse expor em suas cidades um cartaz como o que vi em Havana: a cada ano, 80 mil crianças no mundo morrem de doenças facilmente tratáveis: nenhuma delas é cubana.
Ouça todo dia
Frei Betto faz parte do time de colunistas da Rádio Brasil Atual. Sintonize o jornal, das 7h às 9h e das 12h30 às 14h30. Ao longo do dia, ouça música brasileira.
Desigualdade perversa Distribuição de especialistas em pediatria
RR
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MT DF
Sintonize 93,3 FM Litoral paulista 98,9 FM Grande São Paulo 102,7 FM Noroeste paulista Na internet www.redebrasilatual.com.br/radio
45 - 159 n 160 - 455 n 456 - 1.044 n 1.045 - 2.208 n 2.209 - 3.361 n 3.262 - 8.001 n
Fonte: CFM/AMB/CNRM; Pesquisa Demografia Médica do Brasil
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JUNHIO 2013 REVISTA DO BRASIL
GO
Número absoluto de médicos
MG
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MS SP PR SC RS
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LALO LEAL
O Brasil na TV paga Para quem pode pagar para ver TV por assinatura, a situação melhorou um pouco. A mudança na legislação proporcionou maior diversidade e mais Brasil nas telas
A
lei da TV paga, em vigor desde o final do ano passado, criou cotas para a produção nacional e independente. A cada seis canais estrangeiros, os pacotes de TV têm de oferecer um canal brasileiro que exiba, em horário nobre, três horas e meia semanais de conteúdo nacional qualificado. A metade desse tempo deve ser ocupada por produtores independentes. Para garantir a qualidade da produção, a lei diz que não podem ser considerados qualificados os conteúdos religiosos ou políticos, eventos esportivos, concursos, publicidade, televendas, comerciais, propaganda política obrigatória, programas jornalísticos e de auditório. Não sobra muita coisa, mas o que sobra é aquilo que falta na nossa TV, fechada e aberta. O resultado da aplicação da lei começa a ser percebido pelo telespectador, ainda que timidamente. Canais brasileiros dedicados ao cinema e às artes em geral, por exemplo, já estão nos pacotes das principais operadoras. Embora escondido no canal 115 da Net e 101 da Sky, o Arte1, lançado em março pelo grupo Bandeirantes, é uma surpresa agradável, com teatro, literatura, artes plásticas, cinema e música popular e erudita. Assim como o Curta! (Net 113 e Claro 79), que exibe curtas-metragens e documentários, oferecendo ao telespectador uma diversidade de filmes cada vez mais difícil de encontrar na TV paga, repleta de reprises. E o MusicBoxBrasil (Net 117 e Claro 111), com programação exclusiva de música brasileira apresentada em
shows, documentários, vídeos e entrevistas. Se para o telespectador as coisas estão melhorando, para os produtores de audiovisual o momento é de euforia. Nunca se produziu tanto para a TV como nos últimos meses, ampliando um mercado de trabalho historicamente sufocado pela concentração da produção nas grandes redes. A diretora executiva do Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo, Debora Ivanov, comemora: “As cotas valorizam nossos talentos – escritores, diretores, atores e um enorme número de técnicos das mais diversas áreas –, garantem maior diversidade aos canais e dão oportunidade de falar para nosso próprio país na sua língua e com suas histórias”. Chegar a isso não foi fácil. A lei tramitou por mais de quatro anos no Congresso até ser aprovada. Mesmo depois de sancionada pela presidenta da República, sofreu dura campanha da Sky. A operadora pôs no ar depoimentos de figuras conhecidas do público que afirmavam maliciosamente que o controle sairia das mãos do telespectador e passaria para a Ancine, a agência reguladora do audiovisual. Não satisfeita, parte dos empresários do setor, por meio do partido Democratas, foi ao STF com uma ação de inconstitucionalidade da lei. Tudo isso por causa de uma cota que garante apenas 2% de programação nacional na TV paga, quando em outros países a proteção à própria cultura e aos seus produtores é muito maior. Na França, Espanha e Romênia, é de 40%. Em Portugal e na Polônia, chega a 30%. Por aqui ainda imperam os interesses das grandes operadoras nacionais e estrangeiras. Os preços dos pacotes são altos e o telespectador é obrigado a engolir canais religiosos, de vendas e anúncios comerciais. Se a lei foi positiva para a questão das cotas, no caso da propaganda foi desastrosa. Estabeleceu o teto de 25% de espaço na programação para comerciais, impondo ao telespectador uma dupla cobrança: pela assinatura e pelo valor da propaganda embutida em qualquer produto anunciado que ele adquira. Sem contar a poluição causada nas telas pelos anúncios. Apesar disso, o acesso à TV paga é um privilégio só alcançado até agora por cerca de 17 milhões de assinantes – número que poderia subir se os pacotes fossem mais baratos e as cotas para a produção nacional, mais generosas. REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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TVT
Vingança e espetáculo Veículos de comunicação oportunistas e políticos com autoridade abalada pelo aumento da violência dão ao debate da maioridade penal um tom de vingança e espetáculo. Não é por aí que se constrói a paz Por Luiz Parise, diretor do Melhor e Mais Justo
TVT/REPRODUÇÃO
A
morte – nua, crua e cruel –, quase em tempo real, chega às redações jornalísticas, sobe aos satélites, invade as casas e ganha o mundo via web. Imagens chocantes, que se repetem exaustivamente. Nelas, dois jovens protagonistas. Um, o estudante Victor, o outro, um menor tirando-lhe a vida. Vozes ecoam por uma justiça-vingança: sociedade, amigos, ilustres desconhecidos, cidadãos-juízes e, como não poderia deixar de ser, autoridades. Como essas convulsões sociais incomodam, põem em xeque a capacidade das autoridades e das políticas públicas, precisam ser respondidas rapidamente – e respondidas não quer dizer resolvidas. Convoca-se uma entrevista coletiva: delegados, juízes, psicólogos e tantos outros têm os holofotes a explicar como esses fenômenos aconteceram e por que continuam acontecendo. Para as autoridades, esse tipo de situação pede voz empostada ou embargada; palavras duras que reponham a autoridade abalada pelo aumento da criminalidade. Surgem soluções mágicas para acabar, da noite para o dia, com a praga da violência. A solução do momento é resgatar a velha proposta de redução da idade penal de 18 para 16 anos. Alguns, mais exaltados, acreditam até que poderia ser para 14, ou menos. Algumas autoridades e especialistas dizem que todos concordam com a proposta. Todos quem, cara-pálida? Há quem concorde, há quem discorde e – mais ainda – há uma maioria mal informada, já que o que deveria ser informação e reflexão é transformado por
Marisa Deppman, mãe do estudante Vitor Hugo, assassinado em abril, participou do programa, junto com os advogados Flávio Cardoso e Tatiana Cardoso e o juiz federal Ricardo Rezende. O Melhor e Mais Justo vai ao ar às quintas-feiras, às 19h30
certos políticos e certos meios de comunicação em espetáculo. O sistema carcerário está superlotado e sua lógica está falida, bem como as políticas socioeducativas para menores infratores, não aplicadas adequadamente. O que fazer? Diante da escalada de violência e crimes envolvendo menores de idade, várias perguntas continuam sem resposta: como o Estado deve encaminhar os casos de menores em conflito com a lei? Como fazer cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente? Como fazer funcionar a Fundação Casa ou criar alternativas a ela?
A TVT, primeira concessão de televisão a uma entidade de trabalhadores, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, recebeu em maio o Prêmio África Brasil 2013, promovido pelo Centro Cultural Africano, organização criada em 1999 com o objetivo de fortalecer o intercâmbio entre o Brasil e a África e de valorizar tradições culturais africanas e afrodescendentes no país. O prêmio homenageia personalidades, empresas e governos que se destacam em ações que contribuem para a inclusão social dos afrodescendentes. E destaca experiências aplicadas na promoção da cidadania. A TVT foi reconhecida pelo conjunto de sua programação. 14
JUNHIO 2013 REVISTA DO BRASIL
CENTRO CULTURAL AFRICANO
Programação premiada
O diretor da TVT, Valter Sanches, recebe o troféu Mama África do presidente do Centro Cultural Africano, Otunba Adekunle, nigeriano naturalizado brasileiro
Como sintonizar Canal 48 UHF (NGT) ABC e Grande S. Paulo Canal 46 UHF Mg. das Cruzes e Alto Tietê NET no ABC ECO TV: canais 96 (analógico) e 9 (digital) TV a cabo em S. Paulo Canais 9 e 72 TVA (analógico) NET e 186 (digital) Na internet www.tvt.org.br
MAURO SANTAYANA
O Brasil e sua influência no mundo Nossas elites, com exceção de poucas personalidades lúcidas e honradas, valem pouca coisa, se é que valem alguma. O povo, com suas dificuldades e sofrimento, carrega o país para a frente
E
m um dos seus discursos, na pregação democrática que conduziu à transição, Tancredo Neves disse que a construção da nacionalidade se deve mais ao povo do que às elites. Os ricos têm seus bens, algumas vezes até mesmo fora do país. Os pobres só têm o patrimônio comum da nação, com seus heróis e seus símbolos. É em razão disso que os trabalhadores, de modo geral, quando ascendem ao poder, mediante as poucas oportunidades que surgem, contribuem para o crescimento do país. Nada mais expressivo, nessa constatação, do que o exemplo de Lula. Ele pode encerrar a sua vida política hoje, se quiser: o que fez, no exercício do poder, já o consagra na História. Mas o Brasil tem seus competidores e inimigos externos – além dos inimigos internos. Não se sabe exatamente quais são os piores. A leitura dos grandes jornais brasileiros e o acompanhamento dos principais programas de televisão levam as pessoas desatentas a imaginar que nos encontramos no pior dos mundos. É certo que não podemos levantar um muro sanitário ao longo de nossas fronteiras, de forma a impedir a repercussão interna das crises econômicas, temos ocupado na economia mundial uma posição sólida, com presença crescente em todas as regiões do planeta. Uma de nossas grandes vantagens é a amplitude do mercado interno. As políticas compensatórias nos permitiram o aumento do consumo, primeiro, de alimentos e, em seguida, de bens durá-
veis, o que repercutiu no crescimento do emprego, da massa salarial e da poupança, com o dinamismo geral da economia. Tivemos o cuidado de não expor demasiadamente a economia ao comércio internacional, de forma a manter, no teto confortável de 12% do PIB, o valor de nossas exportações. Não somos, como outras nações, assim tão dependentes do mercado externo. Os esforços nacionais, na formação de saldos no balanço de pagamentos, nos transformaram no terceiro maior país credor dos Estados Unidos – depois da China e do Japão – e o maior credor no mundo ocidental. Em março deste ano, segundo informações oficiais do Tesouro norte-americano, eles nos deviam US$ 258,6 bilhões, US$ 5 bilhões a mais do que no fim do ano passado. Nos últimos meses, os Estados Unidos têm empurrado o México a tentar confronto inútil com o Brasil, na disputa de influência na América Latina. Há uma enorme diferença entre o Brasil e o México, na divisão internacional do trabalho. O México é a etapa final de maquiagem de produtos das multinacionais norte-americanas e de terceiros países, destinados aos Estados Unidos e aos outros países do Nafta, o tratado de livre-comércio firmado em 1991 entre as três nações da América do Norte, para onde se dirigem 90% das exportações. O Brasil, é certo, exporta menos que o México, mas exporta para todos os continentes, e bens realmente produzidos em nosso território – e não simplesmente aqui maquiados. Todos esses êxitos, somados, refletem-se em nossa posição política no mundo, e estimulam o patriotismo, mas é preciso ter cautelas. Não podemos fazer disso instrumento de orgulho, sobretudo em nossas relações com os vizinhos. Se quisermos influir no continente, devemos não apregoar a superioridade territorial nem os resultados econômicos. A América do Sul só será poderosa se for a soma entre iguais, não obstante as suas dimensões geográficas e políticas – e esse, que poderia ser o caminho natural, é trecho difícil de ser percorrido. A diplomacia brasileira, que vem obtendo êxitos, como a eleição do embaixador Roberto Azevêdo para o posto de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, terá de redobrar a sua prudência. REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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ECONOMIA
Correndo na esteira
Com desonerações, redução de custos das empresas, preservação de empregos e poder de compra, economia mantém o fôlego, mas ainda não saiu do lugar Por Hylda Cavalcanti
SERGIO AMARAL/RBA
POUPANÇA Maria Claudinei: “Meus filhos têm curtido muito. Todo mundo sabe que carro zero é o sonho de qualquer consumidor”
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ECONOMIA
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Com trabalho e o salário estáveis há algum tempo, o que contribuiu para a decisão desses consumidores de comprar o que antes achavam que não dava foi o preço mais em conta e o crédito mais fácil. Esse cenário se tornou possível no momento em que o governo decidiu abrir mão de arrecadar uma parte dos encargos e impostos embutidos nos preços dos produtos. A redução de tributos como IPI, PIS/Cofins e das contribuições das empresas ao INSS já atinge 43 setores da economia e deve aumentar no segundo semestre. E representará para os cofres públicos, segundo estimativas do Ministério da Fazenda, uma renúncia fiscal de R$ 202,8 bilhões até o final de 2014.
“Tem sido grande a procura. Lembro de uma mulher que saiu daqui toda feliz, contando que a geladeira que levava era maior que a da patroa”, diz o vendedor João Batista Diniz, de uma loja das Casas Bahia. “Trabalho nisso há oito anos, e o que aconteceu nos últimos meses foi uma revolução até maior que as facilidades de crédito.”
Tempo estável
Conforme pesquisa da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), os negócios do setor ficaram estáveis em abril na comparação com março, mas aumentaram em relação ao ano passado. As vendas e encomendas saltaram de 41%, em abril de 2012, para 60%
JONNE RORIZ/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
os últimos dois anos, a doméstica Maura Helena Gomes conseguiu realizar planos que antes considerava apenas sonhos. Maura queria montar um quarto para a neta Júlia, de 8 anos, o que não teve condições de oferecer à filha – por ter sido mãe adolescente e porque as condições em que criou as crianças foram muito adversas. Com seus filhos já adultos, ela pensou em ampliar o lote onde mora em Brazlândia, na região administrativa do Distrito Federal. Colocou tudo no papel, pesou, e teve de aguardar. Recentemente, conseguiu abrir um crediário de R$ 900 e comprar todos os móveis para Júlia. “Antes eu não teria conseguido. Agora o quarto tem tudo, até cômoda, edredom bonito e bonequinhas”, conta. A decisão ficou mais fácil porque, como fez pesquisas anteriormente, notou que os preços estavam ligeiramente menores e as condições do crédito, mais interessantes. Maura recebe um salário mínimo e sai todos os dias de casa por volta das 5h para trabalhar. Pega quatro ônibus para se locomover até a Asa Norte, no Plano Piloto de Brasília. No ano passado, a doméstica tinha conseguido adquirir uma geladeira. “Se tudo der certo, a próxima compra será uma televisão nova para minha mãe.” O comércio agradece, e os fabricantes idem. A situação de Maria Miranda, funcionária de uma empresa de serviços de limpeza, é semelhante. Maria mora em Samambaia (outra região administrativa do Distrito Federal). E reclamava de chegar em casa cansada e ainda ter de enfrentar o tanque para lavar a roupa dos cinco filhos. A lavadora que ganhou de presente dos dois mais velhos mudou seus dias. “A prestação cabe no bolso e, se um deles não puder pagar em determinado mês, eu completo”, simplifica. O design gráfico Leandro Luna nunca precisou carro, até se casar, no ano passado. Pesquisou, fez as contas e conseguiu comprar um Celta, com uma entrada pequena e financiamento em 48 prestações. “Hoje não consigo imaginar como seriam nossas vidas sem um carro, porque corremos muito, cada um para seu trabalho”, contou.
EMPREGOS Vagas no setor eletroeletrônico aumentaram 1,77% este ano
Mantido esse volume nos mercados produtivo e consumidor, o governo espera que boa parte dele retorne de outra forma, por meio da movimentação da economia: as empresas vendem mais, mantêm ou ampliam o número de funcionários; os trabalhadores preservam seu poder de compra, realizam planos, compram bens, poupam ou pagam dívidas. E o Estado mantém em parte sua arrecadação, preservando a capacidade de investimentos graças a esse giro mais forte no motor da economia.
neste ano, enquanto recuou de 36% para 19% o total de empresas que registraram queda. Na mesma sondagem, a entidade verificou que, em abril, 66% das empresas mantiveram constante o número de empregados, e 19% disseram ter contratado mais funcionários, ante 15% que informaram ter reduzido o quadro. O setor fechou o primeiro trimestre com 186 mil postos de trabalho – a alta no ano foi de 1,77%. “Se por um lado o crescimento não deslanchou, o consenso é que as medidas evitaram grandes retrações”, diz o economista Alexandre Santos, da consultoria Ferreira Nóbrega Associados, lembrando REVISTA DO BRASIL
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ECONOMIA
O que são as desonerações Principais tipos de desoneração promovidos pelo governo
Redução de IPI, PIS/ Cofins e da contribuição do INSS na folha de pagamentos dos trabalhadores
Quantos setores da economia são beneficiados ou vão ser até o início de 2014
43 setores
Quantos devem ser incluídos nas medidas de desoneração até julho, mediante nova MP que tramita no Congresso
36 setores
Impacto que o governo aguarda na economia do país até final de 2014
R$ 202,8 bilhões
Efeitos das desonerações nR edução de custos para as empresas e aquecimento de atividades dos setores n Estímulo à competitividade n Proteção aos empregos existentes e possibilidades de novas contratações nR edução de custos para os consumidores e oportunidades de investir em qualidade de vida nR edução da arrecadação do governo, que espera compensar sua capacidade de investimentos e arcar com seus compromissos com o aquecimento da economia Fontes: Ministério da Fazenda e entidades empresariais
que o país vem conseguindo se proteger de reflexos da crise que abala a Europa. “Sem os incentivos, podemos dizer que o desempenho certamente teria sido bem pior”, afirma o ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda Júlio Gomes de Almeida. Na indústria automobilística, as vendas de veículos leves nacionais entre janeiro e abril alcançaram resultado 13,9% a igual período do ano passado. Foram vendidas 866 mil unidades nos primeiros quatro meses do ano, 250 mil só em abril. Ainda assim, o cenário é visto com cautela. O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Moan Yabiku Júnior, pondera que a comparação com 2012 é prejudicada. “Janeiro a abril do ano passado foi uma fase muito difícil de vendas. A redução do IPI só ocorreu no final de maio.” Para ele, a base de análise estará mais confiável do meio do ano para a frente. De todo mo18
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do, o desempenho repercute bem. O setor empregava 145,1 mil trabalhadores há um ano. Em abril de 2013, eram 153 mil. Se o presidente da Anfavea ainda não tem base segura para avaliar o impacto da redução do IPI, a empregada doméstica Maria Claudinei da Silva tem. Ela diz que o preço mais em conta a encorajou a trocar o carro de dez anos por um modelo zero. Claudinei trabalhava na roça, no Piauí, antes de mudar para Sobradinho (DF). Ela conta que apanhou na vida para ter as contas sob controle e sempre pensa muito, antes de gastar. Nos últimos seis anos, fez uma poupança e no ano passado tomou coragem. “Meus filhos têm curtido muito. Todo mundo sabe que carro zero é o sonho de qualquer consumidor.”
Impactos futuros
Quando se fala em desonerações, as pessoas lembram mais facilmente da redução do IPI e da facilidade observada
SONHO REALIZADO Maura percebeu que os preços estavam mais baixos e montou o quarto para a neta Júlia
nos últimos anos para a compra de carros e eletrodomésticos. Mas o setor de bens de capital também teve desonerações da folha de pagamentos, com redução da alíquota patronal a recolher à Previdência, e melhores condições de manejar tanto os créditos tributários como as linhas de financiamento do BNDES com taxas de juros reduzidas. As desonerações abrangem da indústria automobilística ao setor têxtil, passando por petroquímica, informática e até a cesta básica. Uma das iniciativas mais polêmicas é o alívio na contribuição previdenciária patronal. O benefício ocorre da seguinte forma: o recolhimento das empresas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em torno de 20% sobre a folha, passa a ser na forma de uma taxa entre 1% e 2% do faturamento. A previsão é que a
ASSUERO LIMA/RBA
SERGIO AMARAL/RBA
ECONOMIA
CHANCE Eduardo Carneiro comprou equipamentos novos para suas pizzarias
renúncia fiscal apenas com essa medida seja de R$ 35 bilhões nos próximos dois anos. “Assim, as empresas poderão contratar mais trabalhadores, aumentando o emprego no país para esses setores”, resumiu em abril, durante entrevista, o ministro da Fazenda, Guido Mantega. A expectativa é baseada na própria experiência. Uma das respostas do Brasil à crise de 2008 foi estimular o mercado interno, com a redução do IPI, em 2009, sobre o preço dos carros – uma vez que a cadeia automobilística tem impacto no emprego em vários ramos da indústria. O governo esperava que a medida ajudasse a União a ter em 2010, juntando desonerações tributárias, previdenciárias e financeiras, uma renúncia fiscal de R$ 113,8 bilhões. O resultado acabou sendo de R$ 144 bilhões – sendo R$ 21 milhões a parte das medidas adotadas. Em compensação, a arrecadação total da Receita Federal ficou em R$ 979,07 bilhões. Em 2011, o total da renúncia fiscal foi de R$ 187 bilhões – R$ 20,7 bilhões provenientes de medidas de desoneração. Mesmo assim, a arrecadação geral da União subiu para R$ 1,07 trilhão. Em 2012, o governo elevou o volume de itens desonerados para R$ 44 bilhões. E conseguiu manter a arrecadação geral do Tesouro, que fechou em R$ 1,08 trilhão. Sobre uma eventual repercussão nas contas da Previdência, o ministro deixou claro que o déficit previdenciário está sob controle e a União está preparada para compensar eventual redução na arrecadação, mas acredita que essa compensação virá das próprias medidas de estímulo, com mais contratações, mesmo com a redução da contribuição patronal. “A renúncia significa que vamos arrecadar um pouco menos nesse imposto, mas, como ela estimula um crescimento maior, se deixa de receber na folha de pagamentos e acaba se arrecadando mais PIS/Cofins, assim como os estados arrecadarão mais ICMS e outros tributos. Há uma compensação pelo nível de atividade maior.” Apesar da confiança, a iniciativa tem preocupado entidades como a Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (Cobap), que teme baixas nas contas da Previdência. O pesquisador REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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ECONOMIA
Paulo Kliass, doutor em políticas públicas e gestão governamental, observa que, quando se consideram apenas as parcelas do sistema que têm suas contas corretamente equacionadas (os trabalhadores urbanos), o regime apresenta superávit. “Se considerarmos o acumulado das operações de 2012, a situação dos trabalhadores apresentava um volume de receitas de R$ 274 bilhões e um total de despesas de quase R$ 250 bilhões”, afirmou Kliass em artigo recente. No entanto, ele receia que a desoneração da folha desarrume essa situação de equilíbrio e exija compensação mais sistemática por parte do Tesouro Nacional no futuro. Alguns especialistas, com apoio das centrais sindicais, chegaram a defender a disseminação da contribuição sobre o faturamento, e não sobre a folha de pagamentos. Desse modo, quem emprega mais seria mais beneficiado; e quem fatura muito – bancos de investimento e empresas com alto desempenho tecnológico, por exemplo – contribuiria mais mesmo operando com quadro reduzido. A Previdência, entretanto, ainda não se sente pronta para efetivar uma mudança desse naipe. Durante a publicação da Medida Provisória 582, que resultou nas últimas desonerações, emendas apresentadas por parlamentares incluiriam outros 15 setores entre os beneficiados. Mas o Executivo as vetou, levando em conta que faltaram indicações sobre seu impacto no Orçamento. De acordo com o secretário de Política Econômica, Márcio Holland, todo setor incluído no programa de desoneração tem de ser objeto de análises prévias. Para que haja tempo para que novos estudos sejam feitos, tramita no Senado outra MP (601), que inclui mais 36 setores a serem beneficiados com redução de impostos a partir de janeiro de 2014. No bolo, há empresas que prestam serviço de transporte, construção, armazenagem de contêineres, táxi aéreo, jornalístico e comércio, entre outros. Inicialmente, a MP previa apenas a inclusão de 20 segmentos ligados a construção civil, manutenção e reparação de embarcações e alguns de varejo. Mas o relator, senador Armando Monteiro (PTB-PE), ex-presidente da 20
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Visões diferentes Vidros
A Abividros gostaria que a forma de contribuição ao INSS, sobre a folha ou sobre o faturamento, fosse opcional. Acha que algumas são beneficiadas, outras não
Petroquímica
O setor está satisfeito com as desonerações. A Braskem (maior petroquímica da América Latina) comemora efeitos positivos
Calçados
A Abicalçados considera a tentativa boa para manter o setor estável, mas não para restabelecer a performance dos anos anteriores, abalada pelos produtos mais baratos da Ásia
Têxtil e confecções
A Abit diz que o ganho obtido com as desonerações foi representativo, mas ainda não resolve o problema da retração
Máquinas e equipamentos
Para a Abimaq, se as medidas ainda não trouxeram soluções mais perenes ao problema da falta de competitividade, ajudaram a proteger o país da crise internacional
Automotivo
Foi positivo nos primeiros anos, contra a crise. O impacto das medidas mais recentes (de maio/2012 para cá) ainda não pode ser avaliado
Confederação Nacional da Indústria, incluiu outros 16. “Há atividades importantes que não estavam contempladas”, diz.
Nível de emprego
As consequências e resultados das desonerações são vistos de forma diferente pelos vários setores. Para o superintendente da Associação Técnica Brasileira da Indústria de Vidro (Abividros), Lucien Belmonte, os efeitos da desoneração – no caso desse setor iniciada em janeiro de 2012 – foram pequenos para os produtores de vidro comum, usado na construção civil e em eletrodomésticos. Por isso, as áreas de varejo e construção, por exemplo, gostariam que a medida fosse facultativa, ou seja, poder optar entre recolher pela folha de pagamentos ou com base no faturamento – o que fosse menos oneroso. O governo não concordou, já que o objetivo, além de reduzir os custos e tornar o setor competitivo, é assegurar o nível de emprego, ainda que essa contrapartida não seja explicitada na letra da lei, como defendem as centrais. “Essas empresas têm capital intensivo, são bastante automatizadas, e por isso não têm uma folha de pagamentos pesada”, salienta Belmonte, acrescentando que entre
aquelas que usam mais mão de obra, como as que produzem insumos para os setores farmacêutico e de cosméticos, a previsão é de uma economia maior. Na Braskem, maior petroquímica da América Latina, a diretoria comemora. A previsão é que o impacto positivo da redução da alíquota de PIS/Cofins incidente sobre as matérias-primas da indústria química venha a ser de R$ 600 milhões este ano, de acordo com seu presidente, Carlos Fadiga. A Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), por sua vez, diz que o principal efeito da desoneração foi o repasse dos ganhos para os preços praticados no mercado externo, o que permitiu a redução do valor médio da exportação do calçado brasileiro em 15,7% em 2012. “É uma boa tentativa de recuperar o terreno perdido para a concorrência asiática. Foi importante também para manter o setor estável, mas não o suficiente para restabelecer a performance de anos anteriores”, diz o diretor executivo da entidade, Heitor Klein. De forma semelhante se posiciona a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Segundo a entidade, a desoneração devolveu ao setor R$ 920 mi-
CÉLIO MESSIAS/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
ECONOMIA
MERCADO EXTERNO Para o setor de calçados, a desoneração permitiu a redução do preço do calçado para exportação em 15,7% em 2012
lhões em 2012, o equivalente a 0,9% de sua receita global. Seu presidente, Aguinaldo Diniz Filho, afirma que a intensidade do impacto tem variação, mas de modo geral houve ganho representativo. “Não resolve o problema, mas ajuda.” Para o secretário executivo da CNI, Flavio Castelo Branco, a visão discordante das empresas tende a diminuir com o tempo, uma vez que cada companhia será estimulada a adaptar seu modelo de gestão para aproveitar os benefícios da desoneração.
Inquietação
O país criou 196.913 vagas com carteira assinada em abril, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Foi o menor resultado para o mês desde 2009, mas o melhor do ano. De janeiro a abril, o saldo é de 549 mil postos de trabalho formais, ante 702 mil em igual período de 2012. O total chega a 1, 087 mi-
lhão em 12 meses . Desde o início do atual governo, em janeiro de 2011, o mercado formal criou 4.139.853 empregos. O diretor do Departamento de Emprego e Salário do Ministério do Trabalho, Rodolfo Torelly, reconhece que a movimentação das vagas no ano passado foi irregular, mas está confiante em que o incremento no ritmo de novas contratações será proporcionado pelos efeitos das medidas do governo para reaquecimento da economia. Ele lembra que, além do aumento do número de setores beneficiados pela desoneração, outras iniciativas, como a redução do custo da energia elétrica, ainda influirão no desempenho das empresas. “O estímulo à criação de empregos depende de outras variáveis, como níveis de produção, faturamento e demanda. Só num segundo momento é que os efeitos da medida serão sentidos”, acentua o professor Gilberto Fernandes, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que está concluindo tese sobre variações no mercado de trabalho na Universidade de Brasília (UnB).
A própria Anfavea ajudou a pressionar o governo pela continuidade das medidas de desoneração, uma vez que, antes do bom desempenho em abril, no trimestre entre janeiro e março os números do setor estavam abaixo das espectativas. Posição semelhante tem a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). Para o vice-presidente da entidade, José Velloso, as medidas ainda não foram suficientes para resolver de maneira eficaz o problema da falta de competitividade, mas ajudaram a indústria de máquinas e equipamentos depois da crise econômica mundial de 2008. Embora satisfeitos, de um modo geral, com os benefícios, os setores vivem expectativas diferentes quanto à relação entre efeitos imediatos e os próximos momentos. “Ainda não foi observado efeito no resultado final do trabalho. Por outro lado, consegui adquirir equipamentos novos”, diz o comerciante Eduardo Carneiro, dono de duas pizzarias em João Pessoa. A expectativa de Eduardo é que as melhores condições de se equipar hoje acabem em muitas amanhã. REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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CAPA
A história é re A Comissão Nacional da Verdade reage a críticas e expande atividades em rede que inclui colegiados estaduais e temáticos. Chegar a muitas verdades pode ser melhor que a nenhuma Por Vitor Nuzzi
U
ma ironia ocorreu recentemente na Comissão Nacional da Verdade (CNV): um ex-agente do período autoritário questionou o poder de convocação do colegiado e, para isso, pediu habeas corpus, instrumento básico de direitos humanos suspenso justamente pela ditadura – em 13 de dezembro de 1968, conforme o artigo 10 do AI-5. Com um ano de funcionamento completado em 16 de maio, a CNV ganhou prazo maior para apresentar seu relatório, o que deverá ocorrer no final de 2014, e lida com contradições e dificuldades. 22
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Mas um fato nem sempre lembrado é que ela não atua de forma isolada. Dezenas de comissões e centenas de pessoas pelo país têm buscado documentos e colhido depoimentos, acumulando dados para que se pense no passo seguinte, que inclui a identificação de responsabilidades. A nova coordenadora da comissão é Rosa Cardoso – o colegiado adota sistema de rodízio e já teve à frente Gilson Dipp, Claudio Fonteles e Paulo Sérgio Pinheiro. Como adiantou Rosa, uma das prioridades daqui em diante é a realização de audiências públicas nos estados. “A CNV precisa ter espécies de subseções”,
afirmou, durante balanço divulgado em 21 de maio. “Agora, temos de entrar em ritmo de campanha.” O deputado federal Nilmário Miranda (PT-MG), ex-ministro de Direitos Humanos, observa que a CNV “está conseguindo sistematizar informações que já existiam” e destaca o aspecto “educativo” do processo. O jornalista Eric Nepomuceno vê “pressões naturais”, mas se mostra otimista. “De um lado, há os responsáveis por crimes de lesa-humanidade, que são imprescritíveis, embora sua impunidade esteja assegurada por uma decisão e sdrúxula da Corte Suprema (leia quadro à página 26).
CAPA
MARCELO CAMARGO/ABR
SÉRGIO LIMA/FOLHAPRESS
eescrita
MUITOS MORTOS E DESAPARECIDOS, MUITAS VERDADES O coordenador Paulo Sérgio Pinheiro faz balanço de um ano da Comissão Nacional da Verdade. Criada para apurar violações de direitos humanos no período da ditadura, a CNV deve continuar em atividade até o final de 2014, sob coordenação de Rosa Cardoso nos próximos três meses
De outro, os que reclamam, com razão, que se resgate a memória, se estabeleça a verdade e se faça justiça. Creio que durante um longo tempo a atuação da Comissão da Verdade foi apenas morna. Mas o cenário mudou. Sinto maior agilidade, maior transparência. O papel da comissão é limitado, mas fundamental, e creio, sim, que finalmente está sendo cumprido.” Até maio, pelo menos dez comissões estaduais haviam sido instaladas. A do Espírito Santo iniciou atividades nos últimos dias do mês, enquanto a do Rio Grande do Sul já acumula oito meses de trabalho e a de São Paulo, um ano. Estão funcionando colegiados no Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Pará, Pernambuco, Maranhão e Paraíba. Há ainda comissões municipais e temáticas, envolvendo categorias profissionais, como advogados, jornalistas e metroviários, e outras instaladas em universidades. Na própria CNV foi formado um grupo específico que apura a repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical – a CUT montou recentemente uma comissão. A do Rio, por exemplo, trabalha com o número de 111 mortos e desaparecidos durante a repressão. Tem casos emblemáticos a apurar, como o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, as bombas no Riocentro e na seccional da Ordem dos Advogados Brasil (OAB). Sobre esse episódio, de 1980, “já temos uma linha de investigação aparentemente segura”, conta o coordenador da comissão fluminense, Wadih Damous. As apurações incluem ainda a chamada Casa de Petrópolis ou Casa da Morte, um centro de torturas na região serrana, e podem avançar para a descoberta de outra “casa”, em São Conrado, bairro da zona oeste. “Vamos trabalhar em conjunto (com a CNV) para saber de que forma a comissão estadual pode ajudar a complementar esse trabalho”, diz Damous. Ele lembra que a comissão nacional não tem caráter de punição, atribuição que cabe ao Judiciário. “Seria uma comissão de exceção. O trabalho é apurar, revelar e produzir um relatório. Pedido de punição ficará a cargo do Ministério Público ou dos familiares.” REVISTA DO BRASIL
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O advogado lamenta o posicionamento dos atuais comandantes das Forças Armadas. “Infelizmente, no Brasil, os círculos militares são quase intocáveis, o que é um déficit da democracia brasileira. Acho que seria do interesse (das próprias instituições)”, afirma. “Não consigo entender qual o interesse das Forças Armadas de não colaborar com as investigações.” É esse o ponto de vista do defensor público Carlos Frederico Guazzelli, coordenador da Comissão da Verdade do Rio Grande do Sul. “Não se estão investigando crimes institucionais. Estão-se apurando os crimes cometidos para sustentar a ditadura. Esse sangue não suja as mãos dos militares de hoje nem da maioria dos militares daquela época”, afirma. Para ele, a comissão nacional tem sofrido “críticas injustas” de quem deveria apoiar seu trabalho. “Existe sempre uma tensão entre o que as organizações sociais querem e a investigação. O trabalho é altamente produtivo. Não cabe à CNV ser criticada pelo fato de o processo ter começado tardiamente em relação a outros países”, afirma. Como coordenador da comissão gaúcha, Guazzelli ressalta o perfil do coletivo. “Não tem caráter persecutório nem judicial. Não é Ministério Público, nem polícia judiciária, nem Justiça. O que sobrou é fazer esse trabalho de organização dos dados existentes para fazer o relatório das graves violações de direitos humanos naquele período.” Isso não impede desdobramentos, acrescenta: “O país pode tomar decisões políticas no futuro, responsabilizando pessoas e instituições”. Ao divulgar seu balanço de um ano de atividades, em 21 de maio, a CNV avançou na identificação de responsáveis, apresentando documento do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), de dezembro de 1972, com um prontuário de pessoas mortas. A lista, cruzada com outro documento, do Ministério da Justiça, confirma 11 mortes, incluindo a do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em janeiro de 1971 – são 12.072 páginas a respeito do assunto. Mas em 1993, me24
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Sangue
diante solicitação do então presidente, Itamar Franco, a Marinha informou que Paiva e outros estavam foragidos. “O fato é que a Marinha brasileira ocultou deliberadamente documentos e informações já durante o período democrático”, afirma a professora Heloísa Starling, assessora da comissão, que divulgou ainda um organograma da repressão – apontando ligação direta com os comandos militares.
Tortura
Além disso, a investigação preliminar fez a CNV concluir que a tortura não consistia em algo pontual, mas já era prática sistemática desde 1964, e não apenas após o AI-5, embora o número de denúncias tenha se multiplicado – de 148, em 1964, para 1.027 em 1969. “A prática da tortura está na origem da ditadura”, diz Heloísa.
O balanço parcial aponta 36 centros de tortura, sendo 16 no Rio, incluindo universidades e refinarias. No Rio Grande do Sul, o pedido de exumação do corpo do ex-presidente João Goulart, formalizado pela família durante audiência em março, é um dos objetos da comissão estadual. Mas Carlos Guazzelli cita ainda atividades relacionadas à Operação Condor, política de cooperação entre ditaduras do continente. Outro fato investigado é o que o coordenador gaúcho chama de “Porto Alegre sob terror”, no início dos anos 1970. “Os agentes da repressão se estabeleceram aqui para investigar o sequestro do cônsul americano”, lembrando da tentativa de captura do diplomata Curtis Cutter, em abril de 1970. No Maranhão, um dos focos é o trabalhador rural, lembra o coordenador da
ROBERTO NAVARRO/ ASSEMBLEIA LEGISLATIVA-SP
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ROBERTO NAVARRO/ASSEMBLEIA LEGISLATIVA-SP
“PERGUNTAVAM PELA PESSOA QUE JÁ TINHAM MATADO” Caso emblemático do período autoritário, o desaparecimento de Virgilio Gomes da Silva emociona até hoje os familiares, como Ilda, viúva do militante, e os filhos, entre eles Virgilio (acima). Com o pai provavelmente já morto, as crianças chegaram a ser interrogadas e separadas da mãe, que estava presa. As fotos mostram Ilda em dois momentos, numa manifestação em Brasília e em depoimento à comissão paulista, com imagem rara dos filhos Virgilio, Gregório e Vladimir
comissão, o deputado estadual Bira do Pindaré (PT). “O Maranhão foi um dos estados com mais vítimas camponesas durante a ditadura. Fala-se em mais de 140 que teriam sido vitimadas no campo”, conta. Para ele, as dificuldades da comissão nacional eram previsíveis. “É uma investigação complexa. Houve uma dificuldade metodológica, no sentido de como sistematizar tanta informação. Mas isso me parece que já está equacionado. Acredito que teremos um grande relatório. A produção vai aparecer no tempo devido”, avalia, somando-se aos colegas carioca e gaúcho em relação à expectativa por punições, uma atribuição que não é da CNV. “Isso vai ser o momento posterior. Depois vamos ter os desdobramentos. É um debate que a sociedade vai ter de fazer.” O relatório final será “contundente”, garantiu o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro. Na divulgação do balanço, ele aproveitou para reagir a críticas e chamou de “choradeira” a reclamação sobre uma possível demora na criação da CNV, destacando a existência de recursos tecnológicos que as comissões do século 20 não puderam utilizar. Rebateu críticas sobre disputas internas (“Não tem Fla-Flu”) e disse que a comissão dará ênfase a audiências públicas. Algumas audiências podem ser confidenciais, comentou, mas “não é por isso que somos a favor do segredo”. Segundo Pinheiro, o diálogo com os três comandos militares continua. Ele não revelou a fonte do documento do Cenimar: “Não foi a Marinha que deu”. Ao responder se a comissão já havia exposto o caso às Forças Armadas ou à própria presidenta Dilma Rousseff, Rosa Cardoso foi cautelosa, mas deu sinalizações: “Há questões que, para o avanço do nosso trabalho, não devem ser respondidas”. E acrescentou: “Agradeço a pergunta e acho que ela é indicadora de caminhos”.
Mansidão
O deputado Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão da Verdade paulista, que ganhou o nome de Rubens Paiva, acredita que a chegada da advogada Rosa Cardoso à coordenação da CNV nacional será um divisor de águas, considerando também bem-vinda a prorrogação do REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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Quem poderia imaginar que uma pessoa como Brilhante Ustra sentasse não no banco dos réus, mas numa Comissão da Verdade? Acho que ele se sentiu humilhado Wadih Damous, coordenador da comissão fluminense
Um nó chamado anistia Em 1979, o advogado Fernando Coelho era deputado federal reeleito por Pernambuco, um dos chamados “autênticos” do MDB, partido consentido de oposição à ditadura. Primeiro vice-líder do partido, lembra bem das circunstâncias que envolveram a aprovação da Lei nº 6.683, conhecida como Lei de Anistia. “Posso assegurar que não houve nenhum acordo, como hoje se dá de debater, entre oposição e governo. A anistia nunca houve em termos de um acordo. Nem foi concessão do governo”, afirma o atual coordenador da Comissão da Verdade pernambucana. Para ele, o que ocorreu foi uma “manobra da ditadura para ganhar sobrevida”. O debate sobre a lei ganhou corpo em 2010, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) negou um pedido de revisão 26
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feito pela OAB para anular o perdão a agentes do Estado acusados da prática de tortura durante a ditadura. E voltou agora, com a Comissão da Verdade. Alguns de seus representantes, como a atual coordenadora, Rosa Cardoso, e seu antecessor, Paulo Sérgio Pinheiro, defendem abertamente uma revisão. Rosa observa, no entanto, que isso não é atribuição da CNV, embora possa fazer parte das recomendações do relatório final. A presunção de que a anistia foi resultado de acordo, no sentido da conciliação, teria induzido o Supremo a erro, acredita Coelho: “Não recordo de um discurso, dos mais de mil proferidos entre MDB e Arena, que fale de acordo. Anistia dava cadeia e virou generoso ato de liberalização do governo”. “Essa lei foi imposta no crepúsculo da ditadura. Foi o que
se conseguiu na época, foi extremamente útil, mas não tem razão de ser na democracia estabelecida”, diz Eric Nepomuceno. “O comportamento do Supremo Tribunal Federal é inexplicável. Seus integrantes legitimaram uma impunidade abjeta e ignoraram acordos internacionais assinados pelo Brasil. Foi um voto poltrão e indigno. Tenho a firme esperança de que mais cedo que tarde essa decisão seja revista.” A argumentação é de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos trata os crimes de lesa-humanidade como imprescritíveis. O Brasil, inclusive, já foi condenado pela CIDH. Essa é a expectativa do coordenador da comissão do Rio, o advogado Wadih Damous. “Depois do julgamento do STF, acho que o único caminho é a revisão da Lei de Anistia. Politicamente, o caminho será esse.”
O argumento básico de quem questiona tanto a Comissão da Verdade como uma possível revisão da Lei de Anistia é que o “perdão” valeu para todos. A simples menção da expressão “dois lados” deixa indignado o coordenador da Comissão da Verdade gaúcha, Carlos Guazzelli. “Não tem dois lados. O Superior Tribunal Militar julgou, absolveu, condenou a todos que resistiram e nunca resistiram. Esse lado foi julgado, o outro não. Só há criminosos de um lado, amplamente anistiados pela lei do mais forte. A decisão do STF não se sustenta juridicamente e é vergonhosa.” Há um projeto de lei na Câmara, o 573, de 2011, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que propõe retirar da anistia todos os que praticaram crimes de lesa-humanidade. Em maio, uma audiência pública
SÉRGIO LIMA/FOLHAPRESS
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reuniu personagens díspares como o professor Fábio Konder Comparato, o advogado Belisário dos Santos Júnior, da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, e o general Luiz Eduardo da Rocha Paiva, que em entrevista já chegou a questionar o fato de a presidenta Dilma Rousseff ter sido torturada durante a ditadura e de o jornalista Vladimir Herzog ter sido morto por agentes do Estado, em 1975. Um dia depois de membros da Comissão da Verdade falarem em uma possível revisão da Lei de Anistia, o governo apareceu no sentido contrário. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, declarou que o Executivo não pensa em nenhuma iniciativa nesse sentido, usando como justificativa a decisão do Supremo. Uma posição que causou mal-estar interno.
depois, na casa de tios em São Miguel Paulista, zona leste paulistana. As próprias crianças chegaram a ser interrogadas. “Provavelmente meu pai já estava sendo morto. Acho que era mórbido, doentio. Continuavam perguntando pela pessoa que já tinham matado”, lembrou Virgilio, que morou com a família no Chile até se estabelecer em Cuba. Na volta, em 1994, passou meses desempregado. Hoje, aos 50 anos, tem uma pequena metalúrgica. “Nós vivemos uma prisão sem ser presos”, afirma. Para ele, a CNV tem poder para fazer muita coisa: “Para afastar torturadores de cargos públicos, para constar dos livros de História”. Não importa quanto for preciso escavar, diz Virgilio: é preciso chegar aos restos mortais dos desaparecidos. O presidente da Comissão da Verdade de Pernambuco, o advogado e ex-deputado Fernando Coelho, credita as críticas, em parte, a um “anseio de justiça muito grande por parte daqueles que foram atingidos direta ou indiretamente pela repressão”. Um anseio justificado, admi-
te: “Há um dever do país de dar uma resposta aos que foram injustiçados nesse período. Até hoje, a última palavra do Estado não era verdadeira, era uma versão falseada dos fatos. Teremos uma verdade oficial verdadeira”. A comparação com outros países, como a Argentina, causa frustração, concorda Nepomuceno. “Da mesma forma que incomoda e ofende a resistência não apenas de comparecer a audiências e dizer a verdade, mas também de entregar documentos. Mesmo assim se está conseguindo avançar alguma coisa. Talvez não surja nenhuma denúncia inédita, mas só de conformar e comprovar o que já se sabe é um avanço”, diz. Em 17 de maio, quando Rosa Cardoso assumia a coordenação da CNV, o ex-ditador Jorge Videla morria em uma prisão na Argentina. “Quem poderia imaginar que uma pessoa como Brilhante Ustra sentasse não no banco dos réus, mas numa Comissão da Verdade?”, lembra Damous. “Acho que ele se sentiu humilhado.”
JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM
prazo. Ele pede um papel mais incisivo da comissão, que para o parlamentar “tem de ser a coordenadora de todas as comissões e comitês” e “assumir esse passivo dos cemitérios, dos sítios de memória”. Mas nem toda crítica pode ser atribuída à CNV, observa Diogo, fazendo menção à “transição mansa e pacífica” brasileira. A comissão paulista tem se notabilizado pelas audiências públicas, realizadas praticamente todas as semanas, recolhendo dezenas de testemunhos de vítimas. No início de maio, por exemplo, participaram a viúva de Virgilio Gomes da Silva, dona Ilda, e um dos filhos do militante, também chamado Virgilio. Foi um relato doloroso especialmente nas memórias da infância, quando ele e os irmãos ficaram sem o pai e foram separados durante meses da mãe, que estava presa. Os quatro filhos, incluindo a caçula Isabel, com apenas alguns meses, ficaram sob custódia do Estado, no Juizado de Menores, e depois foram morar cada um com um parente. Reencontraram-se semanas
“AMPLA, GERAL E IRRESTRITA” Campanha mobilizou a sociedade no final dos anos 1970, mas lei aprovada no Congresso ainda é questionada por servir de pretexto para impunidadede torturadores REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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CIDADANIA
A costura da memória No momento em que a Comissão da Verdade completa um ano, o Arquivo Nacional lança três livros que tratam do período da ditadura Por Xandra Stefanel
“S
ó a memória costura tudo.” A frase, de Caio Fernando Abreu, nos desperta para a dimensão da memória. Esta nos dá sentido, enquanto indivíduos e enquanto grupo. Costura o que fomos, o que somos, o espaço e o tempo em que vivemos. Através dela nos reconhecemos, nos reinventamos; é a referência que nos permite enxergar e interpretar o que nos rodeia. Enquanto elemento significativo da teia social, a memória é também espaço de conflitos: desperta divergências, paixões, controvérsias, sentimentos e ressentimentos. Traz à tona lembranças, desencobre dores, expõe o que muitos prefeririam deixar na escuridão... É matéria-prima para pensar a história – a nossa e a do mundo. O período acima abre um dos capítulos do livro O Terror Renegado, de Alessandra Gasparotto, e sintetiza o intuito de outras duas obras também lançadas pelo Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. O projeto é um concurso bianual de monografias que publica trabalhos com base em fontes documentais referentes ao regime autoritário no Brasil. A memória que os três livros trazem à luz são fatos de um período sombrio que ainda tem muito a ser revelado, como mostram os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que completou um ano em 16 de maio. O que aconteceu com militantes que foram forçados, por meio de tortura física e psicológica, a se retratar publicamente, renegando convicções políticas? Ou ainda: qual era a função, os desdobramentos e a macabra metodologia dos interrogatórios preliminares feitos nos porões do regime? E quanto à esquecida atuação dos marinheiros contrários a ditadura e, depois, pela anistia? São essas as memórias reveladas em O Terror Renegado e também em No Centro da Engrenagem, de Mariana Joffily, e Todo o Leme a Bombordo, de Anderson da Silva Almeida. Os “arrependimentos” de que trata Alessandra Gasparotto não podem ser considerados pelo sentido que a palavra tem no dicionário, já que não foi espontaneamente que a maioria dos cerca de 30 militantes apresentaram seus depoimentos que renegavam seus ideais e exaltavam o regime. Ao contrário. As retratações apresentadas em gravações, entrevistas e em cartas foram, em geral, conseguidas por meio de tortura. “A história e a memória desses ‘arrependidos’ nos remetem 28
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a questões centrais da história brasileira contemporânea, tanto daqueles tempos de ditadura quanto de nossa época atual. Suas experiências evidenciam práticas nefastas da propangada oficial e da ação psicológica do regime, assim como a colaboração e a participação das principais empresas de comunicação em tais estratégias”, relata a autora. “É importante resgatar essas memórias porque, primeiro, durante muito tempo elas ficaram esquecidas. Não fazem parte nem da memória ‘oficial’ da ditadura, nem da memória de esquerda, porque esses militantes ficaram muito marcados como traidores”, completa Alessandra, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas (RS).
Triagem
No Centro da Engrenagem, originalmente elaborado por Mariana Joffily para sua tese de doutorado em História Social, na Universidade de São Paulo (USP), resgata interrogatórios feitos de 1969 a 1975 na Operação Bandeirante (Oban) e no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Ela vasculhou o Arquivo Público do Estado de São Paulo para entender como eram realizados, a função e os desdobramentos dos interrogatórios preliminares feitos com os acusados de subversão antes de a prisão ser considerada formal. “Uma das coisas que eu analiso é como no jogo das palavras do interrogado você encontra expressões que são típicas da repressão política. Tem um momento, por exemplo, em que o depoente diz que nunca teve contato com ‘esse famigerado terrorista’, expressão que dificilmente teria saído da boca do militante. Parece muito mais uma expressão dos interrogadores! Tentei entender tanto as estratégias de um, para obter as informações, como de outro, para omitir ou enganar a repressão”, conta Mariana. O processamento das informações e as sucessivas reinquirições e acareações não eram feitos apenas na busca pelos fatos reais, mas também como uma forma de obrigar o interrogado a conformar-se com as conclusões tiradas pelos interrogadores. Apesar de o uso da tortura ser conhecido nessas operações, há, no máximo, indícios do que pode ter acontecido. “O que você encontra, às vezes, é que a sessão foi interrompida porque a pessoa começou a passar mal ou ficou numa situação em que não conseguia dizer nada. Mas não tem nada explicando por que ela chegou a esse estado. O que eu fiz foi cruzar essa documentação com a do projeto Brasil Nunca Mais, que tem as denúncias nos processos do Superior Tribunal Militar das torturas sofridas pelos presos políticos. Em alguns casos, consegui pegar o mesmo cara que foi preso e torturado no DOI-Codi que depois, na fase judicial, denunciou a tortura, e eu cruzo a informação”, afirma.
ALEX REGIS/TRIBUNA DO NORTE
Em um dos livros, conta-se a história de José Xavier Cortez, que, expulso da Marinha por ter participado da rebelião, mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar e morar em um estacionamento perto da PUC. De lavador de carros a estudante bolsista naquela universidade, foi uma questão de tempo. Anos mais tarde, Cortez lançaria uma editora que leva seu sobrenome
Ao ler a bibliografia do golpe de 1964, Anderson da Silva Almeida – que entrou em 1996 na Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco – percebeu que eram recorrentes as menções sobre a rebelião dos marinheiros que ajudou a desencadear a queda do presidente João Goulart. O rapaz decidiu ir a fundo para entender essa história, e assim nasceu seu livro Todo o Leme a Bombordo, dissertação de mestrado em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF). Aqui também as águas são turvas e agitadas e estão repletas de fatos escondidos no fundo desse mar. “Percebi que se falava muito sobre a rebelião dos marinheiros de 1964, sobre o cabo Anselmo, e percebi o silêncio da Marinha sobre isso. Eu tinha fontes que diziam que existiam marinheiros nos movimentos de luta armada, entre os mortos e desaparecidos políticos, nos livros de memória encontro marinheiros no exílio... E a pouca bibliografia que tinha sobre isso só falava sobre o momento da rebelião e os dias que antecederam a queda de Jango. Depois, eles sumiam dos livros”, relata. O pesquisador resgatou parte da história do cara que anos antes vira na TV, José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, um dos líderes do movimento revoltoso e controverso personagem que mudou de lado e passou a agente do governo. Mas ele não é a vedete do livro. São, sim, os militares de baixa patente que atuaram politicamente nos anos que precederam o golpe e tudo o que aconteceu com eles depois: o esquecimento e a anistia tardia.
“Trata-se de um segmento social vindo das classes baixas. Ainda hoje é assim. E, por uma questão principalmente de classe, ficou muito forte na historiografia e na academia a presença da geração de 1968 formada, sobretudo, por estudantes e jovens da classe média. Os marinheiros não apareciam tanto, por mais que estivessem sempre lá, na luta armada, no exílio e no debate da anistia”, opina. Daí emergem histórias como a de José Xavier Cortez, que, expulso da Marinha por ter participado da rebelião, mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar e morar em um estacionamento perto da Pontifícia Universidade Católica (PUC). De lavador de carros a estudante bolsista naquela universidade, foi uma questão de tempo. Anos mais tarde, Cortez lançaria uma editora que leva seu sobrenome. Anderson ressalta a importância da chegada de livros como esses ao mercado. “Que a sociedade como um todo – e não só a academia e as pessoas que estão envolvidas diretamente no debate político – discuta, aprenda e apreenda o que aconteceu no passado recente do Brasil. Afinal, ainda temos vestígios do período ditatorial nas polícias militares, nas instituições, nas escolas.”
Serviço
O Terror Renegado (R$ 37), No Centro da Engrenagem (R$ 48) e Todo o Leme a Bombordo (R$ 34) podem ser adquiridos pelo e-mail vendasdepublicacoes@arquivonacional.gov.br. Informações: www.arquivonacional.gov.br REVISTA DO BRASIL
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EDUCAÇÃO ACERVO PROFESSORES DRª GISELE FELICE E DR. MAURO FARIAS/UNIVASF
Limites da expansão Iniciada há dez anos, a ampliação da rede federal de ensino superior dobrou o número de vagas. Mas ainda faltam pessoal e a conclusão das obras Cida de Oliveira
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o sudeste do Piauí, em pleno semiárido nordestino, o Parque Nacional da Serra da Capivara abriga a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas, mui-
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tos dos quais com pinturas rupestres e outros vestígios da presença do homem pré-histórico. É num desses sítios que os alunos de arqueologia e preservação patrimonial do campus São Raimundo Nonato da Universidade Federal do Vale do
São Francisco (Univasf) fazem escavações. Enquanto aprendem técnicas, têm a chance de novas descobertas, como os restos de uma fogueira, cerâmicas e utensílios de populações que viveram no local há 2 mil anos. Muitos desses estudantes vêm de várias regiões do país – e, como o Indiana Jones do cinema, em busca de aventura. Mas encontram a rotina árdua do trabalho em campo, em laboratórios, e dali saem preparados para trabalhar em centros de pesquisa, órgãos públicos e grandes empresas no Brasil e no exterior. “Esta é a primeira universidade federal a oferecer um curso fundamental para a nossa descoberta enquanto sociedade, enquanto nação, e para a preservação de nosso patrimônio”, diz o professor Mauro Farias Fontes, já viu se formar ali cinco turmas. Segundo ele, outro diferencial do campus é a parceria com o parque nacional e com a Fundação Museu do Homem Americano (Fundham), entidade cien-
EDUCAÇÃO
FOTOS ADOLFO OKUYAMA
INTEGRAÇÃO REGIONAL Alunos da Univasf fazem escavação no Parque Nacional da Serra da Capivara. Enquanto aprendem técnicas, têm a chance de novas descobertas, como os restos de uma fogueira, cerâmicas e utensílios de populações que viveram no local há 2 mil anos. A univesidade foi criada para promover o desenvolvimento de todo o semiárido nordestino
tífica criada em 1986 por pesquisadores brasileiros e franceses, entre eles a arqueóloga paulista Niède Guidon. Aos 80 anos, Niède está à frente de diversas atividades. Dá palestras, recebe alunos para discutir projetos, compartilha informações e pesquisas. Com sede em Petrolina (PE) e unidades em Juazeiro, Senhor do Bonfim e projetos para outra em Paulo Afonso (BA), a Univasf foi criada para promover o desenvolvimento de todo o semiárido nordestino. Oferece graduação em ciências biológicas e agrárias, medicina, enfermagem e engenharia, entre outras áreas, além de residência médica e multiprofissional e mestrado no campus da Bahia e no de Petrolina. Integração regional é objetivo de outra instituição, a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Sonho antigo dos moradores do sudoeste paranaense, oeste catarinense e noroeste gaúcho, a instituição mantém unidades em Chapecó (SC), Cerro Largo e Erechim (RS) e Rea-
leza e Laranjeiras do Sul (PR). Esta última foi em parte construída num assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A universidade tem ao todo 33 cursos, entre os quais Medicina, Administração, Arquitetura e até Engenharia de Energias Renováveis e de Aquicultura. “Em Laranjeiras, a agroecologia é tema transversal dos cursos e projetos para a produção industrial orgânica, inclusive de leite. A de Ciências Econômicas tem ênfase no cooperativismo”, conta o coordenador administrativo do campus, Elemar Cezimbra, que conhece bem a história da UFFS. Segundo ele, a instituição é conquista de movimentos sociais, igrejas e sindicatos de toda a região que, em 2005, se uniram em prol de uma universidade federal. Juntos, pressionaram autoridades, formaram comissões, ajudaram a elaborar o projeto de lei que a criou, acompanharam a tramitação no Congresso e, como não podiam ajudar
a elaborar o plano pedagógico porque é “coisa de doutor”, brigaram para indicar representantes. Para completar, criaram o chamado Conselho Estratégico Social, de caráter consultivo, aprovado pelo regimento da universidade e com assento no Conselho Universitário. Em abril passado, ficaram prontas as instalações próprias, com alojamento e refeitório que poderão ser usados por cursos de extensão nos fins de semana para famílias inteiras de agricultores. “Pôr a universidade para funcionar mesmo enquanto era construída foi uma briga nossa; não podíamos esperar mais”, diz Elemar, lembrando que os mais de mil alunos da unidade, todos vindos da escola pública e com rendimento familiar de até três salários mínimos, não teriam onde estudar. Até 2004, o Brasil tinha ao todo 45 universidades e 148 campi federais. O estado de Tocantins, por exemplo, não tinha nenhum, assim como as regiões onde hoje estão a Univasf e a UFFS. Essa realidade começou a mudar com o Programa Expansão, criado pelo governo federal em 2003 para atender às metas do Plano Nacional de Educação (PNE) de expandir o sistema e o acesso, reduzir desigualdades regionais e formar recursos humanos para pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico. Pela primeira vez, passaram a ser construídas unidades universitárias públicas e gratuitas no interior do país voltadas às necessidades e potencialidades regionais. Segundo o Ministério da Educação (MEC), até 2010 foram criadas 14 novas universidades federais e 126 campi em todas as regiões. De 2003 a 2010, houve aumento de 109,2 mil vagas e foram criados 28 mil postos para docentes e 38,5 mil para servidores técnico-administrativos. Com isso, a rede federal passou para 70,1 mil professores e 105 mil servidores. Desde 2003, foram investidos quase R$ 10 bilhões na expansão e reestruturação que permitiram elevar o número de vagas para cerca de 230 mil. Com o Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em 2008 foram criados 2.428 novos cursos. No total, REVISTA DO BRASIL
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estruturas curriculares, como os bacharelados interdisciplinares implantados em 15 universidades. Entre elas está a Universidade Federal do ABC (UFABC). Ao ingressar conforme nota do Enem, o estudante opta pelo bacharelado em Ciência e Tecnologia ou Ciências e Humanidades, com duração de três anos cada um, com metade das disciplinas obrigatórias e liberdade para compor o restante do currículo, de modo a poder refletir sobre as grandes questões da atualidade. Findo o curso, recebe diploma e tem acesso à pós-graduação ou pode cursar, na própria universidade, oito modalidades de engenharia, entre elas aeroespacial, além de outros programas de bacharelado e licenciatura. “Esses cursos, cada vez mais valorizados pelo mercado de trabalho, proporcionam uma visão global da área escolhida antes de os alunos darem continuidade aos estudos”, afirma o reitor Helio Waldman. Outro aspecto que distingue a UFABC é a qualidade de seus cursos de mestrado e doutorado. O de Nanociências ob-
MAURICIO MORAIS/RBA
de 2003 para cá, 42.099 vagas de trabalho foram abertas por meio de concurso, das quais 21.421 para docentes e 20.678 para técnicos-administrativos. Quanto à infraestrutura, do total de 3.885 obras, 2.417 já estão concluídas (62%) e 1.022 (26%), em execução. O governo prevê que até 2014 existam no Brasil 63 universidades federais, com 321 extensões distribuídas em 272 municípios. No ano passado, o MEC constituiu uma comissão avaliadora com representantes do próprio ministério, da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Segundo seu relatório, foram construídos 368 laboratórios, 292 salas de aula, 43 bibliotecas, 61 restaurantes, 33 moradias, 182 espaços administrativos, 260 áreas multifuncionais, 43 áreas esportivas e 27 auditórios. Quanto ao aspecto pedagógico, a comissão destaca que houve uma mudança de paradigma com a organização de novas
NOVO MODELO Helio Waldman, da UFABC: cursos com visão global das áreas escolhidas
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teve nota 5 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao MEC, maior que a de cursos semelhantes em universidades mais antigas, como a de Brasília (UnB). Com unidades em Santo André e em São Bernardo, há previsão de novo campus em Mauá, também no ABC paulista. A retomada do Estado como indutor da expansão do ensino superior, entretanto, esbarra em questões a serem equacionadas, como a falta de valorização da carreira docente. Nos últimos anos do governo Lula e primeiros da gestão Dilma Rousseff, houve uma recuperação salarial tímida e insuficiente para impedir uma greve nacional deflagrada em maio do ano passado, que se estendeu até setembro, chegando a ter adesão de 58 das 59 universidades. “Defendemos a oferta de vagas para os filhos da classe trabalhadora, mas acompanhada da contratação de professores, técnicos e administrativos em número proporcional ao crescimento da rede e infraestrutura condizente. O trabalho é precário em unidades inacabadas, sem laboratório, funcionando em prédios inadequados, comprometendo o
Pôr a universidade para funcionar mesmo enquanto era construída foi uma briga nossa; não podíamos esperar mais Elemar Cezimbra, de Laranjeiras. Os mil alunos da unidade vieram da escola pública e têm rendimento familiar de até três salários mínimos.
aprendizado”, afirma a presidenta da Associação dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Marinalva Silva Oliveira. Suas críticas são compartilhadas pelos integrantes da comissão que avaliou a expansão. Em seu relatório, eles defendem a ampliação com qualidade, de modo contínuo e cumulativo, até que a taxa bruta de matrículas atinja 50% e a líquida, 33% da população de 18 a 24 anos; o crescimento do número de mestres e doutores para, no mínimo, 75% do corpo docente, dos quais 35% de doutores; a elevação gradual das matrículas no mestrado e doutorado para formar anualmente 60 mil mestres e 25 mil doutores; e, princi-
palmente, que os novos cursos, campi e universidades ofereçam pesquisa, extensão, graduação e pós-graduação voltadas ao desenvolvimento regional em espaços com infraestrutura adequada, professores e técnicos e políticas de assistência estudantil. O presidente da UNE, Daniel Iliescu, endossa as reivindicações e lembra que essa expansão universitária no Brasil veio na sequência de anos de sucateamento do setor. Nos anos 1990, ajustes fiscais, cortes orçamentários e redução dos investimentos em educação pública, em todos os níveis, diminuíram em 24% os recursos para custeio e em 77% o investimento em salas de aulas, laboratórios, computadores e acervo bibliográfico. “Em 2001, durante uma greve na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os manifestantes abraçaram um poste em referência ao corte de energia elétrica nos prédios”, diz Iliescu. Segundo ele, a situação no ensino superior federal era tão séria que, para não se perder o bonde da história, foi feito o que era preciso: trocar o pneu com o carro em movimento.
JORNAL CORREIO DO POVO DO PARANÁ
FOTOS ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO UFFS, CAMPUS LARANJEIRAS DO SUL
EDUCAÇÃO
PARTICIPAÇÃO Comunidade decide sobre abertura de novos cursos REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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ENTREVISTA JR. PANELA/RBA
Integração para a igualdade Primeira mulher negra a ocupar o cargo de reitora em universidade federal, Nilma Lino Gomes considera-se resultado da luta pela igualdade Por Cida de Oliveira 34
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O
currículo de Nilma Lino Gomes é extenso: pedagoga, mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra, integrante da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação e ex-presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Em abril, tomou posse como reitora pro tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). E tem muitos planos para a universidade, com sede em Redenção (CE), cidade que aboliu a escravatura em 25 de março de 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. Qual o significado de sua nomeação como reitora?
É mais que o reconhecimento de uma trajetória individual como professora, pesquisadora, conselheira do CNE, representante do movimento negro de longa data. É o reconhecimento de uma luta coletiva da população negra no Brasil, das reivindicações pela promoção da igualdade racial, de ações afirma-
ENTREVISTA
tivas que levaram a mudanças no Brasil nos últimos dez anos, como uma nova relação do Brasil com o continente africano. E, claro, é uma honra e também uma grande responsabilidade. O Brasil está cumprindo a lei que determina o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas?
A lei em questão, a 10.639, altera uma lei nacional, a de Diretrizes e Bases de Educação, e por isso ganha um caráter nacional. Mesmo assim, não está sendo implementada de maneira regular. Coordenei uma pesquisa nacional, ouvindo professores, alunos, gestores. Em alguns estados e municípios caminha de maneira mais enraizada. Em outros, é incipiente. A pesquisa revela que faltam esforços dos gestores, envolvimento de todos os atores da educação para a implementação. A lei é fruto de lutas dos movimentos contra o racismo e visões distorcidas, estereotipadas, da história dos afrodescendentes. E é um passo importante ao propor uma mudança de mentalidade, a formação de uma nova geração desde a educação básica, no estudo de uma disciplina crítica que a fará repensar a questão do continente africano, da situação da população negra no Brasil. Para mim, a demora e as diferenças na implementação vão além de questões estruturais, de gestão, de financiamento. Estão no ideário brasileiro segundo o qual falar de superação do racismo e da discriminação é entendido por muita gente como forma de discriminar, de separar as pessoas. Por isso as ações indutoras têm de acontecer com maior intensidade. Qual é a importância da Unilab para a integração dos países de língua portuguesa?
Seu próprio projeto, suas diretrizes para estabelecer na educação superior esse link entre o Brasil e os países de língua de expressão portuguesa, em especial os africanos, e a cooperação internacional Sul-Sul, colaborativa, solidária, para a formação de quadros e a produção de conhecimento. Por meio do intercâmbio acadêmico entre estudantes e professores, a médio prazo teremos novos caminhos. O sentido da Unilab vai além do acadêmico. E para o Brasil?
Primeira a integrar os povos de língua portuguesa, a Unilab cumpre também seu papel na interiorização, a exemplo de outras universidades criadas nos últimos dez anos. A Redenção, na região do Maciço do Baturité, a Unilab foi a primeira a chegar, trazendo educação superior pública para jovens daqui que dificilmente teriam acesso a uma universidade. Ao ampliar a rede federal, o governo está cumprindo sua função de garantir cada vez mais a educação superior como um direito, uma possibilidade de continuidade dos estudos para formação profissional e intelectual, e não como um privilégio. E também de contemplar as diversas regiões que estavam em desvantagem. Quais são seus projetos à frente da reitoria?
Minha tarefa é dar continuidade ao trabalho iniciado pelo reitor que me antecedeu, o professor Paulo Speller, hoje secretário da Educação Superior do Ministério da Educação. Ou seja, consolidar a estrutura física e curricular dos cursos e ampliar
o quadro de professores, de técnicos e administrativos da mais jovem universidade federal brasileira, que completa dois anos. Temos de incrementar a pesquisa, a pós-graduação, a educação a distância e a própria cooperação do Brasil e da Unilab com os países parceiros, além de produzir conhecimento sobre essa articulação Brasil-África. É bastante trabalho. A Unilab já funciona plenamente?
As unidades de Redenção sim, com algumas obras ainda em construção, como área de convivência e esporte, com praça e academia de ginástica no campus Liberdade. Na de Palmares, em Acarape, está sendo construído um novo bloco didático de quatro andares. Na das Auroras, entre Redenção e Acarape, que vai atender 5 mil estudantes, há um primeiro prédio sendo construído. No campus de São Francisco do Conde, já temos em funcionamento a educação a distância e cursos de especialização. Como a universidade se relaciona com a população?
Primeiro, pela inserção dos jovens de Redenção e das redondezas no quadro de estudantes e, depois, pelo convívio cotidiano que proporciona entre essa população e nossos alunos e professores que vêm do continente africano, ajudando-os a superar representações negativas de cada lado. Além disso, a universidade tem vários projetos de extensão, com estudantes atuando em escolas de educação básica por meio de programas de apoio à docência, em projetos de desenvolvimento rural, que permitem o contato com pesquisadores, inclusive estrangeiros, e atividades culturais e esportivas abertas à comunidade, cursos de idiomas. O que a Unilab já conquistou?
A própria existência da universidade é uma conquista. Sua configuração, sua localização permitem a construção e consolidação de um espaço acadêmico com a presença de estudantes brasileiros e estrangeiros. Essa proposta de internacionalização em nível superior público, de cooperação Sul-Sul, é ao mesmo tempo um desafio e um passo muito importante.
Além do acadêmico Os brasileiros são maioria, mas entre os 83 professores da Unilab – todos com doutorado – muitos são de países africanos, como Moçambique, Congo, Gabão, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, há um de Portugal e um francês. Entre os 1.009 alunos presenciais, 815 são do Brasil, 19 de Angola, 22 de Cabo Verde, 58 de Guiné-Bissau, 3 de Moçambique, 21 de São Tomé e Príncipe e 71 do Timor Leste. São oito cursos
de graduação presenciais, entre os quais Agronomia e Engenharia de Energias. A distância, são oferecidas graduação em Administração Pública e especialização em Gestão Pública e em Saúde. A Unilab tem hoje 11 grupos de pesquisa, 56 projetos de pesquisa em andamento, que envolvem 46 docentes. A iniciação científica já tem 84 alunos bolsistas e voluntários. São 89 técnicos-administrativos, dos quais 87 efetivos.
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SAÚDE
Tempo de reconstruir Sociedade Brasileira de Mastologia comemora lei que institui no SUS o direito da mulher à cirurgia reparadora em caso de retirada de mamas Por Cida de Olivieira
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O ideal é que a mulher submetida a uma mastectomia saia da sala de cirurgia com sua forma física preservada José Luiz Pedrini, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia
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strela de aventuras e dramas no cinema, a atriz norte-americana Angelina Jolie protagonizou uma polêmica e tanto em maio ao anunciar a retirada das mamas para evitar um possível câncer. Assim como sua mãe, morta aos 56 anos devido à doença, Jolie, de 38 anos, tem uma alteração no gene BRCA1, que aumenta o risco de aparecimento de tumor maligno mamário e ovariano. Conforme ela chegou a dizer, o procedimento reduziu em 85% a possibilidade de vir a ter o problema. A revelação ganhou as capas de grandes jornais e revistas em todo o mundo, foi destaque na tv e na internet e levou muitas mulheres a procurar clínicas para a realização de testes genéticos, que chegam a custar R$ 7 mil nos serviços particulares. A exemplo da artista, passaram a considerar uma eventual mastectomia profilática, embora apenas 5% de toda a população tenha alteração nesse gene. O alarde foi tal que o Ministério da Saúde veio a público alertar sobre a falta de consenso científico quanto à eficácia da cirurgia feita por Jolie como forma de prevenção, razão pela qual o Sistema Único de Saúde (SUS) não custeia o exame de sequenciamento genético nem a cirurgia preventiva, apenas a de retirada quando o tumor é descoberto. Essa remoção, é bom que se diga, não é tão mutiladora como no passado. O tecido mamário retirado pode ser compensado com a colocação de prótese de silicone, que em geral não causa efeitos colaterais. Duas semanas antes da polêmica, porém, passou quase despercebida a entrada em vigor da Lei nº 12.802, que obriga toda a rede de unidades integrantes do SUS a fazer a imediata cirurgia plástica para reconstrução da mama. Conforme a legislação, quando existem condições técnicas, a reparação será efetuada no mesmo procedimento cirúrgico. Caso contrário, haverá acompanhamento e a garantia de sua realização assim que a paciente estiver em plenas condições. A Lei nº 9.797, de 1999, já obrigava o poder público – e os planos de saúde, muito embora discordem disso – a reconstruir a mama, mas não estabelecia prazo. “Nós lutamos muito para que essa lei fosse aprovada”, comemora o vice-presidente da Sociedade Brasi-
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leira de Mastologia (SBM) e médico do Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre, o mastologista José Luiz Pedrini. Para ele, é um grande passo. “O ideal é que a mulher submetida a uma mastectomia saia da sala de cirurgia com sua forma física preservada.” Outro, igualmente importante, será seu cumprimento, uma vez que centros cirúrgicos – assim como os serviços diagnósticos – ainda são insuficientes. Como lembra o especialista, outro direito da mulher é recusar o procedimento imediato. No entanto, adiar pode significar viver para sempre mutilada, desprovida do símbolo maior da sexualidade e feminilidade. Segundo ele, isso é preocupante, pois cerca de 60% das mulheres que não reconstroem a mama imediatamente nunca mais o fazem, por medo, crença de estar sendo punida e diversos outros motivos. Realizada de imediato, a reconstrução não demora mais que 40 minutos e traz um benefício para o resto da vida. “Quando adiada, a forma da mama se perde para sempre, o cirurgião tem muito trabalho, tem de trazer pele de outro local, e a cicatriz será maior.” De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a cada ano surgem aproximadamente 52 mil novos casos. Só que a incidência da doença vem crescendo nos últimos anos, conforme a SBM. E não é devido ao aumento do diagnóstico pela maior cobertura de serviços radiológicos. É que, além de causas genéticas e da postergação da maternidade e da amamentação, que têm efeitos protetores, há fatores ambientais, que respondem por 95% dos casos. Entre eles, estão alimentação inadequada, com excesso de carne vermelha e de aditivos químicos, ganho de peso, em especial depois da menopausa, aumento do alcoolismo, do sedentarismo, do estresse e da depressão, que enfraquecem as defesas do organismo. Por isso, conforme os médicos, a busca por uma vida mais ativa, com uma postura mais positiva diante dos problemas, é a chave para ajudar a prevenir a doença. Uma realidade que exige ainda mais atenção a ações básicas de prevenção, como o exercício frequente do autoexame e a fidelidade às consultas de rotina.
VICKY EMPTAGE/GETTY IMAGES
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Passeata na Av. São João, no centro de São Paulo
Panelas vazias, ruas cheias Paralisação ocorrida há 60 anos em São Paulo, conhecida como Greve dos 300 mil, lançou luz sobre dificuldades econômicas e iniciou uma nova organização do movimento sindical Por Vitor Nuzzi
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o final de março de 1953, uma comissão denominada Estudos e Combate à Carestia da Vida, em São Paulo, clamava por uma “solução imediata da situação de angústia e calamidade pública em que se encontram os trabalhadores e o povo em geral”. Estava para começar a chamada Greve dos 300 mil, movimento que uniu cinco categorias por quase um mês e representou o embrião de organizações intersindicais que dariam o tom dali em diante, pelo menos até 1964. Não era pouca gente: a população da cidade em 1950 era de 2,1 milhões. Mais do que o resultado econômico em si (basicamente, 32% de reajuste, ante uma reivindicação de 60%), foi também um desafio à legislação antigreve da época. E o questionamento sobre indicadores de custo de vida começaria a dar corpo a um instituto de pesquisas dos próprios trabalhadores, que surgiria dois anos depois. 38
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Eram tempos difíceis. Na década de 1950, como lembra o pesquisador Murilo Leal, havia inicialmente escassez de produtos básicos – talvez ainda consequência do pós-guerra – e posteriormente uma alta da inflação. No final daquele período, observa no livro A Reinvenção da Classe Trabalhadora (19531964), “o abastecimento popular não estava plenamente regularizado e apresentaram-se novas dificuldades decorrentes da corrosão dos salários”. “Essa greve é o marco de um processo de conquista de legitimidade”, diz Leal, professor de História do Brasil na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Ela desafia a legislação que vem do final do Estado Novo, com o exercício do direito de sair à rua, da mobilização. Conquista esse direito na prática.” A Constituição de 1937, criada sob influência do Estado Novo, a ditadura varguista, instituía a Justiça do Trabalho para
ARQUIVO/AE
HISTÓRIA
ACERVO UH/FOLHA IMAGEM
HISTÓRIA
INFLAÇÃO Também se reivindicava o congelamento da cesta básica
ao poder em 1950, Getúlio Vargas encontra um movimento sindical esvaziado. E inicia “uma abertura tênue”, que vai dando seus passos. Em 1952, o presidente extingue a exigência do atestado de ideologia – a CLT vedava a eleição em entidades de representação profissional daqueles que tivessem “ideologias incompatíveis com as instituições ou os interesses da Nação”. Em meados do ano seguinte, nomeia João Goulart para o Ministério do Trabalho. O pesquisador Hélio da Costa, do Instituto Observatório Social, vê na greve de 1953 “a grande retomada do movimento sindical depois de um período de repressão do governo Dutra” e com alguma distensão promovida por Vargas. E o movimento, segundo ele, de certa forma “atravessa” os sindicatos, já que tem como base a organização nos locais de trabalho, com comissões de greve e de salários. Um dos trabalhadores organizados na Elevadores Atlas, por sinal, era um jovem de 20 anos ligado ao Partido Socialista chamado Paul Singer, hoje secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.
FOTO ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
Comunistas
ABERTURA Jango tinha a missão de distensionar o relacionamento do governo com o movimento sindical e permitir sua reestruturação
dirimir conflitos e era dura, para dizer o mínimo, na definição de greves. Em seu artigo 139, estabelecia: “A greve e o lock-out são declarados recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”. Segundo Leal, o movimento teve dois componentes básicos. O primeiro, o pedido de aumento salarial para as categorias (metalúrgicos, têxteis, gráficos, marceneiros e vidreiros). “Havia também a reivindicação que vai marcar as greves de todo aquele período, que é o congelamento de preços dos gêneros da cesta básica.”
Reorganização
O pesquisador observa que o país passava por certo momento de “descompressão”, após um período de perseguição sistemática aos sindicatos. Depois de um processo de reorganização sindical – “mais dentro da fábrica”, aponta Leal –, o governo Dutra interveio em centenas de entidades em 1948. De volta
Socialistas e comunistas lideravam o movimento. Costa cita nomes como Antônio Chamorro, “o Lula da época”, e Carlos Marighella. Em biografia sobre o líder comunista publicada no ano passado, o jornalista Mário Magalhães lista outro militante, que se tornaria conhecido no meio esportivo: “João Saldanha, o Souza, foi o pombo-correio que transmitiu as instruções de Marighella aos sindicalistas do PCB em 1953.” Costa lembra ainda que, nesse período, o sindicalismo entra na rota dos líderes políticos, de várias tendências, tornando-se “objeto de disputa não só da esquerda, mas também ao centro e à direita”, com a maioria tentando criar suas bases sindicais. Mas muitos adotam posturas “hesitantes” em relação ao movimento. “Essa atitude vai permear os anos 50 e 60: ora dialoga, ora negocia, ora, por pressão de empresários, vai reprimir os trabalhadores”. Segundo o pesquisador, um dos legados da greve dos 300 mil foi a articulação entre os sindicatos, que resultou, por exemplo, no Pacto de Unidade Intersindical, o PUI. “De certa forma, é uma ruptura da estrutura sindical e suas limitações. O movimento sindical dá um salto de qualidade organizativo”, observa. Posteriormente, surgiria o Pacto de Unidade e Ação (PUA), criado já no governo João Goulart, e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), entidade de cúpula que reuniria os principais líderes sindicais do período – mas teria vida curta, devido ao golpe de 1964. Antes disso, e na sequência dos movimentos iniciados em 1953, o movimento sindical criaria no final de 1955 um instituto de estudos e pesquisas, em contraponto aos formuladores de índices econômicos da época, considerados suspeitos. “O Dieese faz parte dessa rearticulação e da reivindicação dos trabalhadores de ter uma entidade em que confiassem, que fosse uma referência”, afirma Hélio da Costa. Para Murilo Leal, a criação do Dieese surgiu a partir de uma “aliança com economistas e outros intelectuais por uma outra verdade sobre o mundo do trabalho”. Foi um “movimento de contra-hegemonia”, define. REVISTA DO BRASIL
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Nem herói, nem O teatro proporciona uma troca vibrante de experiências entre ouvintes e surdos, cegos e videntes. E põe abaixo o estigma de que pessoas com deficiência só podem ter dois papéis na vida Por Miriam Sanger
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palco se enche de luz e, no meio dele, uma trupe de atores está sentada em uma longa mesa. Preparam a massa, ingrediente do espetáculo Não Só de Pão. O público está ansioso – veio assistir a uma peça de teatro encenada por atores cegos, surdos e mudos. É possível ouvir os pensamentos: como pode atuar alguém que não fala, não ouve e não vê? Então a mágica orquestrada pelo Nalaga’at Center, sediado na cidade israelense de Tel Aviv, acontece. Os atores compartilham com a plateia ansiosa, em cenas cheias de poesia, os sonhos que todos os seres huma40
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nos têm e nem mesmo uma deficiência severa é capaz de apagar. É quase um teatro do absurdo, hoje chamado de “teatro inclusivo”, que convida o espectador a entrar em um mundo desconhecido. O mais difícil é saber quem inclui quem nessa história. Um espetáculo que traz em seu elenco atores com deficiências físicas nunca propicia uma experiência comum. Isso acontece também porque, justamente por causa da deficiência – auditiva, visual ou verbal, ou todas conjugadas –, são trabalhados com maior intensidade outros sentidos em geral relegados a segundo plano. A sonorização, mais rica, é um
recurso extra, enquanto o olfato e o tato crescem em cena. Esse tal de teatro inclusivo tem clara vocação artística, obviamente, mas pelo menos nesses primeiros anos de evidente experimentação tem também o papel de quebrar a barreira do preconceito que nos divide em grupos, e nos isola. O resultado é uma experiência mágica e incômoda – põe em perspectiva as deficiências de cada um de nós. “Ninguém sai de nossas peças da mesma forma que entrou”, conta Paulo Braz, diretor do Projeto Expressividade Cênica para Pessoas com Deficiência Visual, iniciado em 2001. “Lembro dos primeiros encontros com esse grupo de atores
coitado cegos, e a situação deu um nó na minha cabeça. Como faríamos para que eles pudessem se movimentar livremente pelo palco? Esse era um aspecto fundamental do trabalho, pois nosso objetivo comum nunca foi valorizar a deficiência. E, em vez de restringir a movimentação, inventamos recursos, como o piso tátil, que permite que os atores, descalços, caminhem com segurança”, explica. “Quando você pensa nos deficientes visuais, vem à mente a dificuldade que têm para caminhar. Não foi o que vi naqueles atores, e isso me chocou. Ao fim da peça, continuei sentada, refletindo. Olhamos para os deficientes achando que sua vida é cheia de limites, e o que vi no palco mostrou o inverso. Saí dali com um olhar diferente”, descreve Lélia Rocha, docente de Língua e Literatura Francesas na Universidade Estadual de Londrina, que as-
PAULO BRAZ/DIVULGAÇÃO
TEATRO INCLUSIVO Não Só de Pão: o mais difícil é saber quem inclui quem nessa história israelense
DAVID ARDON/DIVULGAÇÃO
CULTURA
OLHARES GUARDADOS “Ninguém sai de nossas peças da mesma forma que entrou”
sistiu duas vezes a Olhares Guardados, a segunda montagem teatral do grupo, que sucedeu à peça Cidades Invisíveis. Enquanto diretores reveem sua estratégia e o público, suas concepções, o deficiente também precisa se reinventar, física e emocionalmente, para atuar, superando os próprios preconceitos e receios. “A primeira coisa que fizemos juntos foram exercícios para nos soltar. O deficiente mantém o corpo muito rígido: estamos o tempo inteiro armados pelo medo dos obstáculos”, conta Gleice Santana, atriz do grupo NósCegos, de Belo Horizonte, cega desde os 10 anos de idade. A trupe foi formada em 2006 pela diretora Kelly Crifer, que encontrou em cinco meninos e meninas, entre 13 e 14 anos, disposição de encarar o desafio de se expor a uma plateia que eles só podem imaginar.
“Nas primeiras apresentações eu estava ansiosa, mas também superfeliz. Sentia que, ao mesmo tempo em que eu levava arte para as pessoas, quebrava um paradigma. Ali, no palco, a gente pode tudo”, descreve a atriz. As muitas apresentações que o grupo realizou em escolas foram, em sua opinião, seu trabalho mais importante até o momento. “Preconceito começa na educação. Ao entrarmos em contato com as crianças, mostramos a elas como é possível crescer com uma nova mentalidade, mais aberta, menos excludente. Fala-se muito por aí sobre inclusão, mas a gente sabe que ela dificilmente acontece na prática.”
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A inclusão é um movimento de mão dupla: a aceitação deve vir de todas as partes envolvidas, e esse aspecto precisa REVISTA DO BRASIL
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FOTOS DANIEL PROTZNER/DIVULGAÇÃO
CULTURA
ser também trabalhado com os deficientes, segundo a diretora Kelly. “É fundamental combater a barreira imposta por eles. Normalmente, por causa da nossa ignorância, os deficientes reagem se acomodando e se retraindo. É preciso dar-lhes consciência de suas potencialidades porque, com elas, eles se tornam mais fortes para se expor a novas experiências.” O jovem grupo chegou longe: estreou com a peça Boi sem Estrelas, em 2006, no ano seguinte encenou Os Saltimbancos e, depois, A Ver Estrelas. “Nesse processo, é evidente como esses atores passaram a lidar melhor com seus preconceitos e partiram para a ação: precisam ensinar a sua verdade para as outras pessoas.” Sueli Ramalho, atriz, intérprete, tradutora e professora de línguas gestuais – cada país tem a sua, a do Brasil é a Libras –, faz um trabalho importante nesse sentido. Ela e o irmão Rimar Romano, também ator e surdo, montaram a Cia Arte & Silêncio, com a qual se apresentam em ONGs, empresas e instituições. Suas performances, sempre com doses de comici42
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LUMINOSOS A Ver Estrelas, do NósCegos, de BH: ensinando sua verdade para as outras pessoas
dade, têm como objetivo mostrar o mundo e a cultura dos deficientes auditivos. “Queremos derrubar mitos e preconceitos. Superadas as dificuldades, todos somos obviamente iguais e enriquecedoramente diferentes”, diz Sueli. A atriz israelense Batsheva Ravenseri, cega, surda e muda, também ressalta a importância de expor sua realidade. “Quando estou no palco, me sinto importante porque sei que estou ensinando à plateia algo a respeito do nosso mundo. Muitos nem sabem que existem pessoas como nós”, conta. O objetivo das peças do Nalaga’at – que sugestivamente quer dizer “toque, por favor”, em hebraico – vai nesse sentido, segundo a diretora Adina Tal. “Nosso teatro não fala especificamente sobre surdez ou cegueira, mas sobre a imperfeição em cada um de nós. Essa experiência nos torna mais receptivos às pessoas a nossa volta.” O diretor teatral português João Pedro Correia também tateia nessa direção. Em 2007, formou a companhia Pele, sediada na cidade do Porto e com-
posta por atores surdos. Seu interesse vai além de mostrar ao mundo o que um surdo pode fazer no palco: quer mostrar o que uma pessoa surda pode fazer na plateia. Para isso, busca soluções que tornem o teatro acessível a esse público. “Surdo não entra em sala de teatro porque acredita que não entenderá nada. Mas, quando entra, gosta, participa e sente-se cidadão. Não há outra saída: a mudança precisa partir da própria pessoa”, opina o diretor, que até o momento montou com esse elenco três espetáculos – com a música, no último deles, como elemento de destaque. “Estreamos em um teatro pequeno e, no fim da peça, vários surdos da plateia vieram até nós para dizer que haviam adorado a música. Então entendi que eles sentiram a vibração dos tambores em cena através do piso, e isso abriu para mim uma nova perspectiva cênica.” No quarto espetáculo, prestes a estrear, João Pedro utilizará um sistema de pastilhas que amplifica o som dos objetos em cena. “Um relógio que toca, o passar de vassouras ou
JOÃO MESSIAS/DIVULGAÇÃO
CULTURA
IMPROVÁVEL Surdos fazem música no espetáculo português Quase Nada
Muitas vezes desesperançados ou acomodados, os deficientes encontram uma forma diferente de encarar a vida e a si mesmos
um toque na porta poderão ser sentidos pelo público surdo.” No Brasil, também há experiências interessantes acontecendo. Em Belo Horizonte, há poucas semanas entrou em cartaz a peça Um Amigo Diferente?, a primeira no país com total acessibilidade. Há intérprete de Libras, legenda eletrônica, programa da peça em braile e lugares para cadeirantes. Mais ainda: antes da peça, um profissional passeia pelo palco com o público cego, para que todos possam tocar os figurinos e os cenários e, assim, acompanhar melhor as cenas mais tarde, com a ajuda de audiodescrição. Em São Paulo, O Grande Viúvo, montagem
baseada em texto de Nelson Rodrigues, conta com atores cegos e é totalmente encenada no escuro. Tantas novidades – reinvenção cênica, quebra de paradigmas, revisão de preconceitos – tornam-se, no entanto, pequenas frente à revolução que o teatro inclusivo representa dentro do universo do ator deficiente. Muitas vezes desesperançado ou acomodado, ele encontra uma forma diferente de encarar a vida e a si mesmo. “O teatro foi para mim uma surpresa, porque descobri um talento meu que desconhecia”, conta João Durval, DJ conhecido da noite de Londrina (PR) que, cego desde a infância, foi convidado por Paulo Braz para integrar o grupo Expressividade Cênica. “É um mundo diferente daquele que eu estava acostumado. Na minha atividade como DJ há barulho, e por meio dela me faço ser ouvido; no palco, vivo o silêncio e me exponho. É uma sensação incrível a de ser valorizado pelo que se faz”, descreve. Batsheva também veste uma nova pele quando entra em cena: “Quando estou no palco, sinto-me como uma pessoa normal, sem nenhuma limitação.” E, para seu colega de cena Itzik Hanuna – o narrador da peça Não Só de Pão –, o ingresso no Nalaga’at foi um divisor de águas. “Minha
vida ganhou sentido. Esse não foi um caminho fácil, mas me forçou a me arriscar em novas atividades, como escrever”, conta Hanuna, cego desde o nascimento e surdo a partir dos 11 anos. É no fim da peça, quando o público é convidado a ir ao palco para se comunicar com o elenco, com a ajuda de intérpretes, que Hanuna mais vibra. É um momento delicado, incrivelmente emocionante para uns e terrivelmente incômodo para outros. “Não gostei de ter sido chamado para me aproximar deles. Parece-me que estão sendo expostos, como animais em um zoológico”, comentou o espectador Adi Tali assim que as luzes da plateia se acenderam. Se o ouvisse, Hanuna não concordaria com ele. “O contato com o público é para mim o momento mais prazeroso do espetáculo, pois é a hora em que nos comunicamos como qualquer outra pessoa. Infelizmente, para muitos é mais fácil dividir os deficientes em duas categorias: herói ou coitado. No entanto, não somos nem um, nem outro, e cabe a nós decidir se queremos tomar o destino em nossas mãos ou nos entregar.” Pois afinal, como seu personagem descreve em uma das primeiras cenas do espetáculo, “todos nós temos ambições – não vivemos só de pão”. REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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VIAGEM
Barcelona O além de Barcelona Os olhares sobre a história e a arquitetura da capital da Catalunha por muitos momentos fazem esquecer até a sofisticada arte praticada por Lionel Messi e companhia Por Flávio Aguiar 44
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uem vai a Barcelona munido de um pouco mais do que sede por turismo, ou do que a admiração pela equipe em que brilha Messi, logo terá um encontro com Antoni Gaudí e com as lembranças da Guerra Civil Espanhola. Neste segundo motivo – A Guerra Civil –, existem ligações claras, ainda que poucas, com o Brasil. Foram 16 os combatentes brasileiros do lado dos republicanos, contra os falangistas de Francisco Franco. Além disso, houve mais cinco europeus residentes no Brasil que se juntaram às Brigadas Internacionais. Houve também mais alguns voluntários que partiram para a Espanha, mas por motivos variados não conseguiram chegar às frentes de batalha. O mais famoso de todos esses combatentes foi Apolônio de Carvalho, que, depois, se reuniria à Resistência Francesa. De volta ao Brasil, militou na resistência à ditadura de 1964; foi preso, torturado, e permanece uma referência para a esquerda brasileira. Se a participação brasileira foi pequena diante de outras, na guerra, a repercussão desta na nossa literatura foi intensa, desde logo. Houve poemas candentes de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira, por exemplo. Em 1940, Erico Verissimo lançou o romance Saga (baseado no diário de Homero Castro Jobim), cuja primeira parte se passa na Guerra Civil Espanhola, onde seu protagonista fictício Vasco Bruno vai lutar.
VIAGEM
TEMPLO INACABADO A grandiosidade, beleza e complexidade da Sagrada Família são consideradas o ápice da arquitetura catalã
Bairro Gótico
FOTOS PAULO DONIZETTI DE SOUZA
Detalhe da Sagrada Família
Ferido, ele é recolhido a um hospital em Barcelona, onde tem um caso com uma das enfermeiras, deixando a suspeita de que ela estaria grávida dele. Depois, quase como uma resposta ao livro de Erico – que, além de contra os falangistas, era também crítico dos stalinistas –, José Gay da Cunha, também gaúcho, que lá combateu, escreveu suas memórias em Um Brasileiro na Guerra Espanhola. Voltando ao princípio, quanto à arquitetura de Gaudí, a cidade é farta em amostras, desde o famoso Templo Expiatorio de la Sagrada Familia, igreja mais conhecida pelas duas últimas palavras, até o Parque Güell e a Casa Milà, também conhecida como La Pedrera, aberta à visitação. Normalmente, os visitantes se extasiam perante a originalidade das obras do arquiteto modernista, morto num trágico atropelamento por um bonde, em 1926. Gaudí dedicou 40 anos de sua vida à construção daquele templo, nos últimos 15 trabalhou nele de forma exclusiva, quase obsessiva. Até hoje o seu escritório continua anexo à edificação da Sagrada Família – que começou e foi inaugurada em 2010, embora se encontre ainda em obras. A originalidade de Gaudí tem raízes, e não poucas. É difícil – dado o individualismo hegemônico no campo de boa parte da crítica de arte – ler o diário da genialidade como tendo raízes num contexto histórico determinado, sem prejuízo de se reconhecer a originalidade própria do gênio. Como disse REVISTA DO BRASIL
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GÊNIO OBSESSIVO Barcelona respira Antoni Gaudí, da Catedral da Sagrada Família ao lagarto de ladrilhos do Parque Güell. Da delicadeza da Casa Batlló (acima) à majestade de La Pedrera
VANDER FORNAZIERI
Seres habitam o alto de La Pedrera
La Pedrera
VANDER FORNAZIERI
Sartre certa vez, diante de um crítico algo sectário que afirmava que Flaubert era “apenas” um escritor pequeno-burguês: “Sim, Flaubert era um pequeno-burguês. Mas nem todo pequeno-burguês é Flaubert”. Uma das raízes mais evidentes da arte de Gaudí está nos seus contemporâneos. A Catalunha – da qual Barcelona é a capital – foi das primeiras regiões espanholas a se industrializar. Sua burguesia florescente patrocinou uma das arquiteturas mais originais do mundo – não apenas a de Gaudí, embora este tenha sido exponencial. Vários nomes são expoentes do modernismo arquitetônico catalão: Josep Maria Jujol, Josep Puig i Cadafalch, Enric Sagnier, Josep Vilaseca i Casanova. Destaca-se o de Lluis Domenèch (1850-1923), criador de uma das construções mais originais desta cidade de construções originais: o Palácio da Música Catalã, onde já tocou e cantou até o nosso Gilberto Gil. O Palau, com um palco amplo e uma acústica reconhecida mundialmente, é uma verdadeira alegoria do mundo catalão, com os motivos florais e luminosos se alternando em vistas que deslumbram o visitante. O ponto central desse deslumbramento é a luminária construída no andar superior, onde se confundem as técnicas de iluminação então de vanguarda com a cultura antiga dos mosaicos, originária dos tempos romanos e medievais. O salto no tempo do parágrafo anterior é ilustrativo. Uma das raízes da arte catalã, e dentro dela a da obra de Gaudí, são as
REPRODUÇÃO
PAULO DONIZETTI DE SOUZA
PAULO DONIZETTI DE SOUZA
Detalhe da Casa Batlló
El Drac
alegorias medievais, datadas do período artístico – arquitetônico, escultórico e pictórico – denominado como “românico”, apesar de esse nome não ser muito adequado conceitualmente. Essa “arte românica” floresceu no período da Alta Idade Média, época em que predominava na Europa o feudalismo castelão e rural, anterior ao florescimento das cidades góticas. É um mundo de construções pequenas, muitas vezes baixas e apertadas, perto da elevação das torres góticas que caracterizariam o florescimento urbano a partir dos séculos 13, 14 e 15, conforme a região europeia. Mas na Catalunha o florescimento da arte românica foi esfuziante, colorido e impactante em toda a Europa. A herança dos mosaicos anteriores é evidente – por exemplo, nos olhos “arregalados” dos santos e figuras sagradas na pintura. Mas a coloração exuberante e a comunicação direta com o olhar do observador (embora este seja convidado à resignação diante desse outro olhar que provém de uma sensação da eternidade)
PAULO DONIZETTI DE SOUZA
Parque Güell
FOTOS VANDER FORNAZIERI
VIAGEM
FENOMENAL Outro gênio catalão das artes, nascido em Barcelona, foi Joan Miró. Suas obras estão por toda parte, como nesse mosaico, na rambla de pedestres. No alto do Montjuïc, uma das colinas da cidade, fica a fundação que leva seu nome e abriga grande parte do seu trabalho. São pinturas, esculturas (ao lado lado), tapeçarias e cerâmicas. Torcedor do Barça, Miró também deixou sua homenagem ao clube
apontam para o futuro da arte gótica, mais humanizada, dramática, romântica. Quem quiser ter uma visão privilegiada dessa arte alegórica que está entre as raízes de Gaudí e de seus contemporâneos que vá ao Museu Nacional de Arte da Catalunha, numa colina de onde se tem uma visão excelente da cidade. É um dos maiores e mais belos acervos de “arte românica” da Europa. Depois, para arrematar, um passeio por La Rambla, cheia de flores e cafés, visita ao vizinho Mercado de San Josep, também conhecido como La Boquería, animado pelo vinho catalão, que é mais que ótimo. Por alguns momentos, você nem lembrará que está pisando a terra do arquitetônico futebol de Messi e companhia, arte e assunto, claro, para outro departamento – embora eu prefira lembrar mesmo aquele Barcelona de Ronaldinho Gaúcho, ambos derrotados pelo Internacional no Mundial de Clubes, em histórica partida de 17 de dezembro de 2006. REVISTA DO BRASIL JUNHO 2013
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Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
TARSILA DO AMARAL, 1925
ISMAEL NERY, RIO DE JANEIRO, 1926
curtaessadica
Continua lindo PAULO GAGARIN (1885-1980), ROUPAS AO SOL, 1921
A exposição Rio de Imagens: uma Paisagem em Construção apresenta a Cidade Maravilhosa ao longo de quatro séculos e 400 peças. Pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, fotografias, cartografia, vídeos e mobiliário compõem o que se pode chamar de imaginário da cidade, passando pelas suas muitas transformações. Em cartaz no novíssimo Museu de Arte do Rio (MAR), a exposição conta com obras de Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Burle Max, Iberê Camargo e Lasar Segall, entre outros. De terça a domingo, das 10h às 17h, na Praça Mauá, 5, Centro. Mais detalhes em www.museudeartedorio.org.br. R$ 8, R$4 e grátis às terças-feiras.
Tamanho não é documento
Literatura em até 140 caracteres é o que a mostra interativa #Tuiteratura oferece até dia 4 de agosto, no Sesc Santo Amaro, na capital paulista. As frases são curtas e velozes e vão além do tedioso tom confessional comum nas redes sociais. A criação literária de 62 autores tuiteiros comove, faz rir ou suspirar. Também participam do evento 20 autores cujas obras são marcadas pela concisão antes mesmo da invenção do Twitter, entre eles Andréa del Fuego, Fabrício Carpinejar, Glauco Mattoso, Marcelino Freire, Alice Ruiz e Antônio Cícero. Saraus, mesas de debate e dez oficinas de criação fazem parte da programação. De terça a sexta-feira, das 10h às 21h, e fim de semana e feriado, das 10h às 18h, na Rua Amador Bueno, 505, em Santo Amaro. Mais informações em www.sescsp.org.br. Grátis.
Literatura X preconceito
Não é porque são gordinhos que os personagens de O Mundo É Redondo e a Vida É Cor de Rosa (Ed. Girafinha, 36 pág.) não se divertem. Ao contrário! Os homens, as mulheres, os pássaros e gatos do livro infantil são saltitantes, esportivos, ótimos dançarinos e curtem a vida de forma leve e sem preconceito. De autoria de Maria Cristina Raposo e Milton Célio de Oliveira Filho, com ilustrações do artista plástico Gustavo Rosa, o livro, além de divertido, traz uma bela e acessível discussão sobre obesidade infantil e bullying. R$ 23. 48
JUNHO 2013 REVISTA DO BRASIL
Os atores Hermila Guedes e João Miguel
Ingresso para a vida adulta Verônica é uma psiquiatra que acabou de sair da faculdade e trabalha em um hospital atendendo pacientes que têm sérios problemas. Seu pai (WJ Solha) está doente, e ela tem de encarar a vida adulta de uma vez por todas. Era uma Vez Eu, Verônica é uma espécie de diário íntimo da personagem interpretada pela pernambucana Hermila Guedes (O Céu de Sueli). Verônica conta a seu gravador seus conflitos, os questionamentos quanto a sua escolha profissional, suas relações afetivas e sua
Ro Ro revisitada No álbum Coitadinha Bem Feito, a rouquidão boêmia de Ângela Ro Ro deu lugar a vozes masculinas do cenário “cool” da música paulistana. Com direção geral do DJ Zé Pedro, da Joia Moderna, o disco é uma homenagem à obra da cantora carioca. O hit Amor, Meu Grande Amor é interpretado por Lucas Santtana, Balada da Arrasada ficou a cargo de Tatá Aeroplano e a faixa-título, com Otto. São 17 canções interpretadas por Lira, Leo Cavalcanti, Romulo Fróes, Thiago Pethit, Gui Amabis, Adriano Cintra, Pélico, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Rael, Gustavo Galo, Dani Black, Juliano Gauche e Helio Flanders. Toda a contradição e irreverência de Ro Ro estão impressas no disco, que pode ser baixado gratuitamente no site do projeto www.coitadinhabemfeito.com.br.
agonia de fazer parte de uma sociedade padronizada. O filme, dirigido pelo também pernambucano Marcelo Gomes, é introspectivo como seus anteriores Cinema, Aspirinas e Urubus e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, do qual é codiretor, junto de Karim Aïnouz. Com participação do ator baiano João Miguel, o longa-metragem recentemente lançado em DVD é recheado de sonoridade, de frevos antigos a Karina Buhr, cantando Mira Ira.
Sexo frágil? No romance Três Mulheres Fortes (Cosac e Naify, 288 pág.), a francesa Marie NDiaye conta a história de Norah, Fanta e Khady, que, mesmo em situações de incerteza e sofrimento, resistem à aniquilação. A primeira é uma advogada que mora em Paris e tem de voltar à casa do pai, de quem precisa aprender a se libertar. Fanta é uma professora que deixa a vida bem-sucedida em Dacar para acompanhar o marido francês e precisa reunir todas as suas forças para não deixar que ele sucumba à depressão. A terceira, a senegalesa Khady, é uma viúva banida da família do marido que resiste às privações a ela impostas. O livro impressiona pelo sofrimento das três personagens, sobreviventes de engrenagens que põem sua força à prova o tempo todo. R$ 48, em média. REVISTA DO BRASIL
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THIAGO DOMENICI
Pelos olhos de um cão (guia) O bicho ajuda o cego a desviar de obstáculos, a atravessar a rua, a encontrar caminhos e a ser livre
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ão 8 da manhã de uma sexta-feira. Já passaram pela plataforma de embarque do metrô Barra Funda alguns milhares de pessoas. Na minha distração sonolenta, observando o vaivém das escadas rolantes, o trem se aproximava. Senti um solavanco leve nas costas. Na esquiva instintiva, virei e topei um cego e seu cão-guia. Dei licença o mais rápido que pude, enquanto os dois, bem jovens, se falavam sobre o destino. “Direita, para a plataforma de embarque”, pediu o rapaz, roupa bem cortada. A cadela, uma beleza de labradora de pelo curto caramelo, o olhava de soslaio como quem diz “eu sei chefe, mas isso aqui tá uma bagunça”. Com sua coleira adaptada para a situação, ela decifrou o caminho. O vagão lotou em segundos. Uma senhorinha dessas com cara de avó, já sentada na cadeira azul-clarinha – daquelas reservadas a idosos, grávidas, mulheres com crianças de colo e pessoas com deficiência –, ficou confusa com aquele rapaz com uma cachorra diante dela. Após um vai não vai de segundos, ele solicitou com gentileza à senhorinha que se sentasse na cadeira imediatamente ao lado, ao que foi atendido com um sorriso que diz tanta coisa que dispensa qualquer palavra. Não tinha capricho nenhum naquele pedido, mas uma questão simples: quanto mais perto da saída, menor o enrosco. 50
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Acomodados, ele sacou do bolso um petisco que a companheira engoliu num piscar de olhos. Em seguida, ele fuçou um celular com teclado que puxou do bolso, colocou fones de ouvido brancos e se confortou ao som de alguma música. Na ligeireza habitué, o metrô corria para a estação Santa Cecília, a segunda parada. Eu os observava de perto, num misto de admiração e encantamento. Ela jogada no chão com seu focinho rente ao assoalho, ali no meio da passagem, com ar clássico de cachorro que deixa a gente babando e com vontade de fazer uma carícia. As pessoas desviavam de sua dócil cabeça, enquanto ela acompanhava com olhar de pouca importância. Desci na estação República, a próxima, e os dois foram em frente. A cena ficou em mim. Coincidentemente, eu havia lido na Folha de S.Paulo um texto que dizia das dificuldades dos deficientes visuais de conseguir um anjo de quatro patas. Logo concluí sem esforço que a batalha foi árdua para aqueles dois estarem no metrô naquele dia. Oitenta deficientes visuais têm cães-guia no país, num universo que, segundo o IBGE, passa dos 2 milhões. É uma dificuldade atender à demanda de quem deseja um companheiro de quatro patas. Primeiro, pelo alto custo para formação e treinamento, entre R$ 20 mil e R$ 40 mil. A maioria dos bichos vem do exterior, principalmente dos Estados Unidos, pois aqui, diz a matéria, a formação esbarra “na falta de boas linhagens e treinamento correto”. Do que pesquisei, posso dizer que o trabalho de quem busca dar conforto ao deficiente visual por meio de um companheiro cão é louvável. As iniciativas, como em tantas outras questões que merecem atenção pública, vêm dos particulares que se organizam. Também é recente, de 2005, a lei que dispõe sobre o direito de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de um cão. Ou seja, restaurante, shopping, teatro, supermercado, casa noturna, meio de transporte não podem negar acesso. Mas o que significa ter um cão-guia? À parte o fato de ajudar o cego a desviar de obstáculos, atravessar a rua, encontrar caminhos mais simples e dar, sobretudo, autonomia e liberdade, o bicho faz companhia, traz amor, aprendizado e sorrisos gratuitos. Crônica publicada originalmente no blog Nota de Rodapé. Leia a íntegra em http://bit.ly/rodape
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