Revista do Brasil nº 085

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ZUZA HOMEM DE MELLO A mídia é muda, cega e, principalmente, surda

nº 85

ACESSIBILIDADE Resolver o “shhh” no meio do filme é tarefa do cinema

julho/2013 www.redebrasilatual.com.br

A CIDADANIA TEM PRESSA

O recado das ruas e os movimentos dão a Dilma impulso para tocar uma nova agenda social e política. Apesar da falsa maioria oferecida pelos “aliados”


Ajude a construir mais cisternas

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o sertão www.comitebetinho.org.br Deposite qualquer valor em uma das contas abaixo BANCO DO BRASIL Ag. 0018-3 Conta Poupança 85.406-9 Var. 51

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ÍNDICE

EDITORIAL

6. Na Rede

Assuntos que foram destaque na RBA no mês que passou

12. Brasil

A PARTIR DE FOTO DE FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

Junho, um país de pernas pro ar e a nova agenda da política

20. Trabalho

Mudanças na economia pedem acordos coletivos nacionais

24. Mundo

Conflitos sem fim na Síria espalham tensão no Oriente Médio

26. Entrevista

Zuza: história e histórias da música popular brasileira Todos gastaram anos falando sobre a necessária reforma política, agora as ruas exigem

32. Cidadania

O desafio de garantir cultura a quem tem deficiência

A política e o cotidiano

36. Cultura

Projeto Cultura Viva inspira continente e se espalha

JESUS CARLOS/IMAGEM GLOBAL

D

40. Viagem

A tradicional feira de Caruaru mostra suas caras e cores

44. Ciência

Os algoritmos estão em tudo: na mídia, no transporte, no amor

Seções Mauro Santayana

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Mouzar Benedito

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esconfie se ler ou ouvir em algum lugar que as manifestações de junho – que espantaram, assustaram e também emocionaram o país – eram previsíveis. Não, ninguém sabia. Como em 2008, quando uma crise financeira surpreendeu e estremeceu o mundo. Em geral, o máximo que os analistas econômicos, políticos e, por que não?, esportivos podem fazer é tentar explicar ou buscar em algum canto da memória ou da teoria alguma justificativa para fatos que volta e meia mudam a história. No caminho, surgem oportunistas de plantão, tentando adaptar fatos a suas convicções e interesses. Sob o manto da imparcialidade, elegem culpados e tentam pôr seus propósitos à frente. Há também os interessados em fabricar crises, os inconformados derrotados em outros carnavais, e aqueles sempre inclinados à tentação autoritária. Um fato: o que aconteceu durante duas semanas em algumas das maiores cidades brasileiras atropelou as agendas, as visões acomodadas e os atores de sempre. A plateia vaiou e jogou tomates. Pode ter atingido alvos errados aqui e ali, mas demonstrou claramente sua insatisfação. Outro fato: houve, sim, muitos avanços e redução de desigualdade nos últimos anos. Mas milhões de brasileiros seguem vivendo sob más condições, com suas demandas por saúde, educação e por transporte público decentes. O cotidiano ainda é difícil e irrita o cidadão. No plano do poder, a política reforçou a sensação de mal-estar. O país apresentou melhorias sociais e econômicas, mas as instituições permanecem com seus vícios. O governo, a oposição, os partidos, todos gastaram anos falando sobre a necessária reforma política porque, como alertam movimentos sociais e da cidadania, a “força da grana” tem influência excessiva no processo eleitoral e na vida pós-urnas. Como nada sai do lugar, a falta de transparência agrava a desconfiança. O governo tem a oportunidade de ouvir mais os movimentos sociais que querem avançar na democracia e nas conquistas sociais. É hora de esses movimentos disputarem a agenda. De o Parlamento legislar. De as instituições demonstrarem sua importância. De o Estado agir em consonância com o que se ouviu em junho – e que já se ouvia ao longo da história. O povo quer influir mais. E a política pode mais. REVISTA DO BRASIL

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nós falamos a sua língua.

www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Nicolau Soares, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Ilustração de Vicente Mendonça Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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REVISTA DO BRASIL

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carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


MAURO SANTAYANA

O Brasil além das ruas

Há uma crise política universal porque o capitalismo financeiro perdeu o sentido da realidade. A necessidade real acaba por impor-se, sempre mais cedo, em termos históricos, do que se espera

E

screver em revista mensal é um desafio para o jornalista, sobretudo em nosso tempo, quando as informações atropelam a mente e os fatos são substituídos, uns pelos outros, quase que a cada segundo. Corremos o risco de perder a atualidade, mas valha o esforço. Entre o número anterior de nossa Revista do Brasil e a presente edição, o Brasil e o mundo viveram mais uma etapa de uma revolução histórica que poucos conseguem perceber. As manifestações de rua, no Brasil, valem menos por elas mesmas, em seus motivos e resultados rápidos, e mais pelo fato de que revelam o envelhecimento das instituições nacionais, em muito pouco diferentes das instituições planetárias. Há uma crise política universal, porque, em sua atualidade, o capitalismo financeiro perdeu o sentido da realidade, e seu servidor por excelência, o governo dos Estados Unidos, seguiu-o nessa alienação. Ora, a necessidade real acaba por impor-se, sempre mais cedo, em termos históricos, do que se espera. Há, no entanto, que examinar as coisas pelo seu avesso, dentro da velha regra dialética. Vamos supor que sejam corretos os números divulgados pelas emissoras de televisão engajadas nas manifestações, e que até 2 milhões tenham ido às ruas, com o deliberado propósito dos protestos (e não para mostrar a face diante das câmeras, em busca de um segundo de fama). Como a população brasileira era de 190 milhões há três anos, 188 milhões não se manifestaram. Levando-se em conta que a metade seja constituída

de crianças e de pessoas absolutamente desinformadas (o que é difícil em tempo de rádio, televisão e internet), diríamos que mais de 90 milhões de brasileiros, aptos aos protestos, preferiram ficar em casa. Entre estes há os que são felizes com sua vida. Isso não exclui o fato de que os governantes brasileiros sejam também alienados, seguindo a regra mundial. Fechados no círculo do poder, onde são normais as pugnas internas pelo espaço de mando e de glória, muitos dos responsáveis pela administração e pela liderança política, neles incluídos os parlamentares, não sabem o que deles e de seu desempenho pensam os brasileiros. Mantendo os feudos mediante pequenos favores e obtendo obras para sua regiões, em troca de votos, os deputados conseguem reeleger-se sucessivamente, sem se preocupar muito com o interesse nacional ou de seu estado. E, eterno e universal, temos o problema da corrupção. Ao contrário do que muitos acreditam, e outros afirmam, o Brasil não é, nem de longe, o de maior frouxidão moral. Países menos desenvolvidos do que o nosso, e também outros muito mais desenvolvidos, confrontam-se com o mesmo e angustioso problema. Em nosso caso, a corrupção se agrava, e se autoalimenta, a partir da impunidade que estimula os larápios e chantagistas. Uma mudança na legislação penal, que imponha condenações pesadas aos criminosos, embora não elimine a corrupção, reduzirá sua incidência. Ao defini-la como “crime hediondo”, o Parlamento deu um passo importante nesse sentido. Mas faltam outros, ainda que a transparência nos gastos públicos tenha melhorado. O nosso quadro se complica, diante da campanha eleitoral já em andamento. Os inimigos do sistema democrático não perdem a esperança de reverter uma situação em que o quase pleno emprego cria milhões de novos consumidores, o que, como é natural, pressiona os preços no mercado. Uma campanha pela internet, estimulada por esses interesses contrariados, volta com o antigo espantalho do comunismo – que não encontra espaço, hoje, nem mesmo na Albânia –, para pregar novo golpe militar. Não é em defesa dos governantes, que dentro de um ano serão julgados nas urnas, nem dos trabalhadores, ou, tampouco, dos jovens, mas das nossas liberdades democráticas, que se impõe um pacto necessário (e muito mais urgente do que o proposto por Dilma) entre os brasileiros lúcidos e honrados. REVISTA DO BRASIL

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redebrasilatual.com.br

Ana Rosa e Araguaia

MAURICIO MORAIS/RBA

Dona Tetê quer ler

Revista e ampliada Chamada de “lista suja”, a relação de empregadores flagrados por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão ganhou nomes ao ser atualizada: Trabalhadores libertados agora tem 504, entre pessoas em ação do Ministério do Trabalho e Emprego físicas e jurídicas. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, 61 são do setor de pecuária. O Pará é o estado com o maior número de ocorrências: 46. Os incluídos no cadastro ficam impedidos de obter empréstimos em bancos oficiais e entram em outra lista, de empresas pertencentes à “cadeia produtiva” do trabalho escravo. No final de junho, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a chamada PEC do Trabalho Escravo, que seguiria para o plenário. O acordo previa a votação de projeto para definir o conceito de trabalho escravo. bit.ly/rdb_escravo1 e bit.ly/rdb_escravo2 JULHO 2013

REVISTA DO BRASIL

LEONARDO SAKAMOTO/TRABALHOESCRAVO.ORG

Dona Terezinha Brandolim, 82 anos, voltou ao banco escolar para realizar um sonho: ler e escrever. Mas a escola que frequentava em Ribeirão Preto, no interior paulista, fechou as turmas em que estudavam pessoas de todos os níveis de escolaridade. A filha convidou-a a mudar para São Paulo e, na falta de escolas, contratou uma professora particular. “Resolvi fazer esse esforço porque deixei muito tempo na mão do governo estadual, que dizia dar conta, mas não funcionava”, conta Maria Zulmira de Souza. São Paulo, com 1,7 milhão de adultos que não sabem ler nem escrever foi o único estado a não aceitar recursos do governo federal para alfabetização de adultos, segundo o Ministério da Educação. A secretaria estadual diz ter seu próprio programa. bit.ly/rdb_terezinha

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil por não apurar os crimes praticados pelo Estado durante a Guerrilha do Araguaia ganhou uma versão em livro e levou pessoas e entidades que militam na área a criticar novamente o país. “É o único na América Latina que não processou, nem mesmo abriu inquéritos contra agentes públicos que cometeram crimes durante o período de exceção”, diz, por exemplo, o professor Fábio Konder Comparato, para quem o Brasil está “descumprindo flagrantemente” a sentença. O livro foi lançado pela Comissão da Verdade de São Paulo, durante audiência pública que teve a presença da coordenadora da comissão nacional, Rosa Cardoso. Outra audiência terminou sendo cancelada porque a direção da Universidade de São Paulo decidiu não participar. O encontro discutiria o caso de Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva, casal desaparecido desde 22 de abril de 1974. O escritor e jornalista Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa e ex-professor da USP, mandou mensagem à comissão paulista, lamentando a postura da universidade. “O tempo urge”, afirmou. “Meu irmão Wulf Kucinski, que tanto batalhou pela localização de minha irmã, faleceu no ano passado, aos 80 anos de idade, sem conhecer a verdade dos fatos. Eu já estou na casa dos 76 anos.” Em correspondência mandada à comissão, a USP disse considerar o evento “prematuro” e “inoportuno”. bit.ly/rdb_araguaia e bit.ly/rdb_verdade


ANTONIO MILENA/ABR

Equipe de médicos do Correio Aéreo Nacional chega para atender ribeirinhos no Acre

Médicos para todos Segundo estudo divulgado pelo Ministério da Saúde, a maioria dos municípios brasileiros não consegue atrair médicos. De acordo com o balanço, 55% das prefeituras que requisitaram este ano profissionais pelo Programa de Valorização da Atenção Básica (Provab) não foram atendidas porque não houve interesse pelas vagas. Dos

2.867 municípios que pediram profissionais pelo Provab, 1.581 não atraíram nenhum, mesmo com remuneração de R$ 8 mil por uma jornada semanal de 32 horas, com mais oito horas dedicadas a pesquisa. A divulgação foi feita no momento em que o governo discute a possibilidade de trazer médicos de outros países. bit.ly/rdb_medico

Mais um golpe Eleito há pouco mais de um ano, o presidente do Egito, Mouhamed Mursi, foi deposto no dia 3 após um golpe comandado pelas Forças Armadas. A Constituição foi suspensa e as autoridades anunciaram a formação de um governo de transição, até que novas eleições sejam marcadas. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil disse que “acompanha com preocupação a grave situação no Egito” e pediu soluções pacíficas para o país, “chamando ao diálogo e à conciliação para que as justas aspirações da população egípcia por liberdade, democracia e prosperidade possam ser alcançadas sem violência e com a plena vigência da ordem democrática”. Em 2011, Hosni Mubarak renunciou após 30 anos no poder, pressionado por seguidos protestos. bit.ly/rdb_egito

MOHAMMED SABER/EFE

EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS

No Cairo, manifestantes comemoram queda de Mursi

Gorender e seu combate

Autor de Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das Ilusões Perdidas à Luta Armada (1987) e O Escravismo Colonial (1978), Jacob Gorender é referência do pensamento marxista no Brasil. Entrou para o PCB, o chamado Partidão, nos anos 1940, e já durante a ditadura fundou o PCBR. O historiador e intelectual morreu em 11 de junho, aos 90 anos. bit.ly/rdb_gorender REVISTA DO BRASIL

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REDEBRASILATUAL.COM.BR

Novo perfil

HELMUT FOHRINGER/EFE

Evo no aeroporto de Viena: prepotência europeia

Parada mal explicada Ao voltar da Rússia em 3 de julho, o presidente da Bolívia, Evo Morales, foi forçado a alterar trajetória do avião em que viajava depois de ter sido proibido de ingressar no espaço aéreo de quatro países: Espanha, França, Itália e Portugal. Todos alegaram “motivos técnicos”, mas a diplomacia boliviana credita o episódio a uma suspeita de que a aeronave transportasse Edward Snowden, técnico da CIA procurado pelo governo dos Estados Unidos. Após mais de 13 horas no aeroporto de Viena, na Áustria, Evo pôde seguir viagem. “O constrangimento atinge não só a Bolívia, mas toda a América Latina”, criticou a presidenta Dilma Rousseff. Segundo ela a atitude foi inaceitável e configurou grave desrespeito. bit.ly/rdb_evo1 e bit.ly/rdb_evo2 e bit.ly/rdb_evo3

Os químicos ligados à CUT fizeram no início deste mês seu sétimo congresso nacional, reunindo aproximadamente 300 pessoas de 80 entidades. O tema básico do encontro era desenvolvimento com trabalho decente. Na abertura, o pesquisador Remígio Todeschini, do Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília, ex-dirigente da categoria, lançou livro sobre as mudanças no perfil do setor, que em 2010 reunia mais de 1,3 milhão de trabalhadores, 400 mil a mais do que dez anos antes. Entre as constatações, além do crescimento de 55% na renda média, a participação masculina (75%) é bem maior que a média geral brasileira. A escolaridade também subiu e houve um pequeno deslocamento do emprego por região. bit.ly/rdb_quimico

RICARDO STUCKERT/CBF

Assédio ao “cara mau”

O traseiro e o título O Brasil, afinal, ganhou a Copa das Confederações, em uma bela exibição contra a campeã mundial, a Espanha. Mas antes de a bola rolar, entre as várias “gentilezas” concedidas à Fifa, a Câmara Municipal de São Paulo foi além e resolveu conceder o título de cidadão paulistano ao cartola-mor da entidade, Joseph Blatter. Quem foi receber 8

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a honraria foi o secretário-geral, Jérome Valcke, o mesmo que no ano passado afirmou que o Brasil merecia um “chute no traseiro” pelo seu desempenho na organização da Copa de 2014. O Parlamento tentou blindar Valcke, mas ele chegou a ouvir alguns protestos e assumiu ser o “cara mau”. bit.ly/rdb_fifa


LALO LEAL

A TV organiza a massa

“Este não foi um movimento partidário. Dele participaram os setores conscientes da vida política brasileira” Editorial de O Globo, 2/4/1964

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TV, chamada de “Príncipe Eletrônico” pelo sociólogo Octavio Ianni, conduziu as massas pelas ruas brasileiras. À internet coube o papel de convocar, à TV de conduzir. Ao perceber que o movimento não tinha direção e poderia assumir bandeiras progressistas, as emissoras de TV, Globo à frente, passaram a conduzi-lo. Nos primeiros dias, eram vândalos que estavam nas ruas e precisavam ser reprimidos. Não esperavam, no entanto, que o movimento ganhasse as proporções que ganhou. Longos anos de neoliberalismo exaltando o consumo e o individualismo tiraram de algumas gerações o prazer de fazer política voltada para a solidariedade e a transformação social. Os partidos que poderiam ser eficientes canais de participação passaram a se preocupar mais com o jogo do poder que com debate e o esclarecimento político, tão necessário na formação dos jovens. Tudo isso estava engasgado. O Movimento Passe Livre serviu de destape. Reprimido com violência como queria a mídia, ele cresceu. Milhões foram às ruas em repúdio ao vandalismo policial daquele 13 de junho. As bandeiras, ao se multiplicarem, diluíram. A história registra o surgimento, nesses momentos, de líderes carismáticos ou de militares bem armados para levar as massas a trágicas aventuras. Alemanha nos anos 1930 e o Brasil em 1964 são apenas dois exemplos. Em 2013, quem assumiu esse papel foi a TV. Percebendo a grandeza física do movimento, mudou o discurso e passou a exaltar a “beleza” das manifestações. Ofereceu a elas suas

bandeiras voltadas para assediar o poder central. Seus “líderes” eram tão invisíveis nas redes quanto as “forças ocultas” de meio século atrás. O grito genérico contra a corrupção ecoa a tentativa de golpe contra o governo Lula em 2005, ensaiado pelos mesmos agentes de hoje. Naquela época o esforço era maior. A TV tinha de convencer a massa a ir para a rua. Em 2013 ela já estava caminhando, era só entregar as bandeiras. A exaltação ao povo que “acordou” foi só o começo. O Jornal Nacional da sexta-feira 14 censurou uma entrevista dada por uma integrante do Movimento Passe Livre, Mayara Vivian. Enquanto ela falava dos ônibus, tudo bem. Mas a parte em que ela defendia a reforma agrária, a reforma política e o fim do latifúndio no Brasil foi cortada pela censura global. Esses temas não fazem parte das bandeiras da família Marinho. A mudança da grade de programação, com a troca da novela pelas manifestações “ao vivo”, foi ainda mais emblemática. Sinalizou para o telespectador que algo de muito grave estava ocorrendo e ele deveria ficar “ligado na Globo” para “entender” a situação. Tanto entenderam que às 20h30 centenas, milhares de pessoas continuavam a sair das estações do metrô na Avenida Paulista. Iam se juntar aos “apolíticos” que hostilizavam os militantes partidários insuflados por pit bulls estrategicamente postados ao longo da avenida. Pela minha cabeça passaram imagens das brigadas nazistas vistas no cinema. Os cartazes tinham de tudo. Alguém disse que era um “facebook” real. Cada um “postava” na cartolina sua reivindicação. E a TV até disso se aproveitou. Ana Maria Braga ensinava como as mães deveriam orientar seus filhos na confecção desses cartazes. Como o Movimento Passe Livre já dissera que não iria mais convocar novas manifestações, parece que a Globo assumiu o comando. Quando será o próximo ato? Saiba na Globo. Fustigado nas ruas e nas telas, o governo, para responder, tem de se valer da mesma TV que o ataca. Julgou, como julgaram outros governos, que isso seria possível, e por isso não constituiu canais alternativos de rádio e TV capazes de equilibrar a disputa informativa (a presidenta Cristina Kirchner não entrou nessa). Sem falar na regulamentação dos meios eletrônicos, cujo projeto formulado ao final do governo Lula está engavetado. Se houvesse sido enviado ao Congresso e aprovado, outras vozes estariam no ar. REVISTA DO BRASIL

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TVT

Conversado nas redes Programa Bom para Todos, da TVT, traz perguntas e respostas de ativista hacker sobre os canais virtuais de relacionamento

A

s redes sociais tiveram um protagonismo sem precedentes na história das manifestações sociais do Brasil. Por meio delas, durante as “jornadas de junho”, os mais diferentes grupos se comunicaram, articularam sua presença nas ruas, combinaram alvos a atacar e causas a defender. Também graças à sintonia “direta” dos canais virtuais, as pessoas “pularam” os meios tradicionais de organização – partidos, sindicatos, ONGs, entidades. E tampouco dependeram dos meios tradicionais de comunicação para saber o que iria acontecer e o que acabou acontecendo. O sociólogo Sérgio Amadeu, ativista digital e professor da Universidade Federal do ABC, analisou em entrevista ao jornal ABCD Maior a importância das redes: “As redes sociais diminuem brutalmente os custos de articulação. Se as mobilizações do Movimento Passe Livre (MPL) tivessem parado antes, não teria dado tempo de outros grupos disputarem a pauta na rede, e essa explosão de mobilizações com pautas difusas não estaria acontecendo com a força que está. Chamou a atenção no desenrolar das manifestações a perda de importância relativa do MPL à medida que outras organizações se envolviam nas mobilizações”. O Facebook é a rede mais acessada no Brasil, por 65 milhões de internautas. O país é o quarto do mundo em usuários de redes sociais, nas quais os brasileiros passam, em média, 13 horas por semana. “O 10

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Jonaya de Castro (à esquerda): “A lógica da cultura hacker é a do faça você mesmo“

Facebook é uma rede de conversas. É isso que muitos partidos políticos não entenderam. Usam a rede para panfletagem, e não funciona assim. Quando tivemos a manifestação antes da repressão policial, e havia criminalização do movimento pela mídia, já se notava pela rede as pessoas se articulando para se defender do que estava sendo armado. E isso foi ganhando força e solidariedade”, constatou Amadeu. “Muita gente que foi pra rua naquele momento não conhecia a página do Passe Livre. A mobilização já estava pulverizada.” O crescimento das redes sociais e a importância dessa ferramenta foi tema do programa Bom para Todos, da TVT. Com exibição em 17 de julho, às 19h30, no canal 13 da Net e no portal tvt.org.br. E ou-

Como sintonizar Canal 48 UHF (NGT) ABC e Grande São Paulo Canal 46 UHF Mogi das Cruzes e Alto Tietê NET no ABC ECO TV: canais 96 (analógico) e 9 (digital) TV a cabo em São Paulo Canais 9 e 72 TVA analógico e 186 TVA digital Na internet www.tvt.org.br

viu a integrante do Ônibus Hacker Jonaya de Castro, coordenadora de laboratórios de criatividade nas Secretarias de Educação, de Comunicação e de Saúde do estado de São Paulo. “A lógica da cultura hacker é a do faça você mesmo e também a da cultura livre. É preciso mudar essa ideia que as pessoas têm de que o hacker é aquele que muda nossa senha do banco etc. O exemplo mais concreto que temos hoje dessa cultura hacker é a Lei de Acesso à Informação”, diz Jonaya. No programa, o convidado responde a perguntas feitas pelo público. Orienta as pessoas a desenvolver critérios, pesquisar e conhecer a história de movimentos, partidos, grupos e indivíduos que estão no entorno das ideias propagadas. Valoriza a participação nas discussões coletivas e alerta sobre como se proteger e não descuidar da violação de sua privacidade. “A vida particular só é interessante pra você e seus amigos, o legal é você conseguir compartilhar assuntos que sejam interessantes para mais pessoas. As redes estão aí para ativar a transparência da informação e das coisas.” O Bom para Todos é exibido às quartas-feiras, às 19h30, pelo canal Net Cidade e também às 7h da manhã pela TV Brasil, com reprise aos sábados, às 9h. www.tvt.org.br/bomparatodos


ATITUDE

Jornalismo cidadão

A

sequência acima reúne algumas das 85 capas da Revista do Brasil nos últimos sete anos. A edição de agosto de 2006, “Quem não faz, toma”, propõe reflexão sobre a importância de as pessoas enxergarem um momento de assumir sua responsabilidade ao decidir quem governa. A manchete seguinte, de junho de 2010, “Projetos em jogo”, traz a imagem de uma manifestação no estádio do Pacaembu e relata o empenho do movimento sindical para incluir as pautas dos trabalhadores nas decisões do governo e do Congresso. Em março de 2011, a RdB destaca o “Fôlego jovem”, com a imagem de uma militante do Movimento Passe Livre, um dos diversos personagens da reportagem “Fé na moçada”, que mostra uma juventude inquieta com as desigualdades e as injustiças. No mês seguinte, a chamada “Futebol de elite” propunha o debate: o formato dos futuros estádios da Copa – Maracanã à frente – não estaria colocando, acima do conforto e da paixão do torcedor, interesses comerciais e mercadológicos? A capa de abril do ano passado, “Manso com os ricos”, chama atenção para projetos como o imposto sobre grandes fortunas

e por sistema tributário mais justo. E a de maio de 2012, com o “Apagão no transporte”, traz um painel de como as cidades brasileiras se recusam a acompanhar o exemplo de grandes centros urbanos do mundo e fazer do transporte coletivo uma solução para mobilidade. Já a edição 75 trazia “O que pode melhorar”, com experiências nas áreas de educação, saúde, cultura e segurança que o leitor pudesse levar em conta ao votar em sua cidade. “Que a Dilma nos ouça”, na edição de abril deste ano, traz novamente a peleja dos sindicatos por um espaço na agenda das decisões nacionais. A revista recupera bandeiras da marcha das centrais em Brasília semanas antes – redução da jornada, proteção ao emprego, fim do fator previdenciário, democratização da mídia –, em um momento em que a imprensa tradicional ainda não ouvia “as vozes das ruas”.

Em cima do lance

A reportagem de capa, nas próximas oito páginas, traz um apanhado da cobertura da equipe da Rede Brasil Atual e da Rádio Brasil Atual dos principais acontecimentos do país entre 6 de junho e 5 de julho. www.redebrasilatual.com.br REVISTA DO BRASIL

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CAPA

A nova agenda e De olho em 2014 e desconectados dos anseios imediatos do país, políticos foram atordoados com os protestos de junho. Movimentos se organizam para apoiar avanços e conter retrocessos

S

e durante as manifestações de junho o Congresso permaneceu calado e as oposições, mudas, sobrou para a presidenta Dilma Rousseff – para quem se apontava grande parte da fúria antigovernos e antipolíticos – reagir. Frequentemente criticada por oposicionistas e aliados, por ser centralizadora e ouvir pouco, e pelos movimentos sociais, pela falta de atenção, a presidenta chamou-se à responsabilidade de assimilar o clamor das ruas e liderar o diálogo com a sociedade, os aliados e as oposições. Ao entrar em cena, devolveu parte das demandas sociais, que estavam dispersas nos protestos, ao ambiente da política, dos partidos e dos movimentos sociais. Mas as ruas não pararam de ecoar – e, como observou o professor Alfredo Bosi, mostram que “a democracia puramente formal e representativa em termos eleitorais está em crise”. O senador Aécio Neves (PSDB-MG), nome trabalhado pela oposição para disputar o Planalto, criticou a agenda sugerida pelo governo. “É absolutamente inviável do ponto de vista prático e diversionista. A presidente da República quer dizer aos brasileiros que aquilo que 12

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RESPOSTA Dilma recebeu centrais sindicais, movimentos sociais, da juventude e do campo.


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FOTOS ROBERTO STUCKERT FILHO/PR

em movimento

E levou aos partidos e poderes propostas para tentar acelerar as demandas das ruas

os levou às ruas foram as propostas que interessam ao PT na reforma política, e não a calamidade da saúde pública, a falência da mobilidade urbana, em especial o transporte público, o aumento da criminalidade”, afirmou, em entrevista coletiva. “Mais uma vez o governo mostra que não entendeu absolutamente nada do que a população brasileira quis dizer.” Aécio está em seu papel. Tem pouco menos de um ano para avaliar se o cenário será favorável a se cacifar para disputar com Dilma ou se será mais seguro para a ocasião voltar a disputar o governo de Minas Gerais. Seu argumento é rebatido pelo sociólogo Emir Sader: “Quando o Brasil enfrenta sua crise atual e as mobilizações populares com diálogo e atendimento de reivindicações, soa o coro dos frustrados para atacar o Brasil”, escreveu, em seu blog no site Carta Maior, acusando também as correntes mais à esquerda de jogar o jogo eleitoral. “Ultraesquerda e direita neoliberal estão juntinho enquanto o Brasil está reinventando seu processo democratizador, sem repressão e sem retrocessos.” O economista Paulo Nogueira Batista Jr., representante do Brasil e de outros dez países na direção executiva do Fundo Monetário Internacional (FMI), observa que não se deve perder de vista que a “colonização da política pelo dinheiro” deformou a democracia e levou a população e os jovens a se rebelar em busca de canais de ação direta. “Tanto a mídia quanto a política estão dominadas pelo dinheiro de maneira avassaladora. As pessoas já não se sentem representadas nem pela política, nem pelos partidos, nem pela mídia. Então buscam a expressão nas redes sociais, onde a população sente que tem mais voz, e na rua”, analisou, em entrevista ao jornal Brasil Econômico. O economista chama atenção para as oportunidades de amadurecimento que a crise oferece: “Como indivíduos, podemos REVISTA DO BRASIL

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melhorar a nossa casa, batalhar o estudo para os nossos filhos, comprar um carro melhor. Mas as mudanças sociais dependem de organização social”. Essa maturação requer o engajamento dos movimentos sindical e social, na avaliação do presidente da CUT, Vagner Freitas, para quem as jornadas de junho contribuíram para colocar no centro da conjuntura o dia a dia das pessoas e seu sentimento em relação à qualidade do transporte coletivo, da saúde e da educação públicas. “Constatamos que setores conservadores tentaram influir nas mobilizações por objetivos estranhos aos interesses da imensa maioria do povo brasileiro”, observou. Entretanto, como ele diz, o movimento soube interpretar os aspectos positivos do que foi expressado nas ruas, criando uma unidade em torno de suas batalhas antigas, sempre sem eco nos meios de comunicação. Essa lógica moveu as centrais a rechaçar uma convocação anônima de “greve geral” para 1º de julho e programar uma série de manifestações conjuntas, como a do dia 11, em várias partes do país, com foco na chamada agenda dos trabalhadores, como a rejeição do projeto de lei que amplia as possibilidades de emprego irregular de mão de obra terceirizada (Projeto de Lei nº 4.330), fim do fator previdenciário, redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. “Em conjunto com os movimentos sociais, a CUT levantará também a luta pela democratização da mídia e pela reforma política por plebiscito popular”, acrescenta o sindicalista.

Responsabilidades

Em meio ao habitual desprezo da imprensa comercial pela pauta sindical, o ator americano Danny Glover, conhecido por sua atuação em filmes como Máquina Mortífera e Ensaio sobre a Cegueira, furou o bloqueio e expressou, em plena Rede Globo, seu sentimento em relação ao papel dos sindicatos. Em visita ao país para uma campanha pelo direito à sindicalização dos funcionários da Nissan no Mississippi, Estados Unidos, Glover participou no dia 1º de uma entrevista no Programa do Jô. O humorista tentou, na conversa, ligar a inflação aos protes14

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Centrais marcaram protestos para 11 de julho para lembrar temas da agenda sindical que não avançam no Executivo e no Congresso, como fim do fator previdenciário e redução da jornada. No dia 4, bancários, metalúrgicos e químicos da CUT protestaram na Paulista contra projeto de terceirização tos. “São manifestações de uma juventude que enfrenta uma inflação que nunca vivenciou. Para mim é um dos fatores importantes que desembocaram nas manifestações”, diz Jô, sendo interrompido pelo ator: “Acho que é algo mais profundo. Acho que é a busca para que sua voz seja ouvida. Eles estão assumindo responsabilidades de cidadãos. O que é uma democracia sem divergências, sem discordâncias, sem diálogo?”. Muitos pontos da agenda dos movimentos sociais vinham sendo cozinhados em banho-maria, no Planalto e no Congresso. Na verdade, o primeiro semestre até apresentava uma pauta movimentada, mas repleta de intrigas e, pelo que ficou demonstrado, desconectada da sociedade. Os primeiros cinco meses

avançavam em ritmo atípico. Da eleição das mesas diretoras da Câmara e do Senado ao envolvimento das duas casas na apreciação das pautas – passando pela composição das comissões de trabalho –, ninguém pode dizer que deputados e senadores estavam paralisados. O jogo da política estava sendo jogado. O ano começa com a eleição de Renan Calheiros (PMDB-AL) para presidir o Senado e de Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) para a Câmara. Renan ingressou na carreira como deputado estadual em 1978 e Alves foi eleito deputado federal pela primeira vez em 1970. Suas carreiras vão da oposição do velho MDB à ditadura ao vício fisiologista adquirido pelo atual PMDB – que, afinal, não é oposição mesmo desde 1985. Mas os defeitos


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de Renan e Alves só se tornaram importantes para a imprensa quando o partido aproximou-se das bases de apoio dos governos Lula e Dilma. Também foi destaque no início da temporada a eleição de Marco Feliciano (PSC-SP) para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. A tragédia desenhou-se quando o PT abriu mão de presidir a comissão e consolidou-se quando PMDB e PSDB cederam vagas para tornar o PSC o partido mais numeroso do colegiado, responsável por avanços, ou retrocessos, em relação às liberdades individuais e à valorização, ou não, da dignidade humana. Chamou ainda atenção a eleição de Blairo Maggi (PR-MT), segundo maior plantador de soja do mundo, para a Comissão de Meio Ambiente do Senado. A formação das comissões permanentes (11 no Senado e 21 na Câmara) atrasou a tramitação do Orçamento da União, que deveria ter ocorrido em novembro, e até a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2014 ficou ameaçada. E seguiu-se o jogo, com clima ácido entre as legendas, a baixa confiabilidade da base aliada e uma oposição à espreita de faturar com algum erro do adversário. A votação da medida provisória que estabeleceu novas regras para ampliar a

DANILO RAMOS/RBA

DANILO RAMOS/SINDICATO DOS BANCÁRIOS SP

Acorda, nobre colega

MOVIMENTO EM DISPUTA Movimentos sociais encamparam causas populares e foram disputar os espaços das ruas, mas sofreram hostilidades em alguns locais

capacidade dos portos brasileiros foi momento de grande dedicação do Legislativo ao trabalho – e de críticas às atuações das ministras Gleisi Hoffmann (Casa Civil) e Ideli Salvatti (Relações Institucionais), em seu papel de fazer o meio de campo entre o Planalto e os congressistas. Na votação, a MP dos Portos sofreu diversas alterações, que depois sofreram vetos por parte do Planalto. A MP demorou na Câmara. Rendeu até cenas bizarras de deputados dormindo ou sendo levados de volta ao plenário para dar quórum à sessão. No Senado, teve de ser vapt-vupt, sob protestos de amigos e de inimigos. Por isso, uma semana depois, quando o Senado teria de votar a MP referente à redução das contas de luz, o prazo de validade passou e o Executivo teve de incluir rapidamente a demanda em outro texto para garantir a medida, que alivia o bolso de todos, mas foi pensada especialmente para reduzir custos das empresas. Dias depois, dois deputados do PMDB requereram a instalação de uma CPI para investigar operações da Petrobras fora do país. “Nunca vi a base aliada tomar a iniciativa de pedir CPI contra o governo”, irritou-se o líder Arlindo Chinaglia (PT-SP), assinalando: “Embora a base aliada tenha quase 400 parlamentares, atualmente só se pode contar com 150 deles”. Na agitação e ativismo do Congresso, porém, o que todos – oposição e situação – já vinham fazendo eram contas para 2014. Com olhos muito adiante, a movimentação política não se apercebera do choque de realidade que viria da onda de manifestações de junho, que fez a agenda ordinária ruir e impôs ao país, e à sua democracia, um nova ordem. Uma demonstração, voluntária ou não, de que a política tem seus canais institucionais, mas não pode ser delimitada aos plenários e corredores do Parlamento. Em uma pauta difusa, pareceu clara a crítica à função que o Estado – em nível federal, estadual e municipal – desempenha quanto aos serviços prestados e gastos que realiza. E também despontou o olhar desconfiado em relação a meios de comunicação e aos “formadores de opinião” de sempre. REVISTA DO BRASIL

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As caras das ruas T Entre o início dos protestos e o ápice, as manifestações ganharam grupos diversos. A violência policial, as redes sociais e o repentino apoio da imprensa aos “ex-baderneiros” ajudaram 16

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udo começou na tarde de 6 de junho, quando 2 mil pessoas, convocadas pelas redes sociais pelo Movimento Passe Livre (MPL), parou a Avenida Paulista em protesto contra o aumento das passagens de ônibus e metrô de R$ 3 para R$ 3,20. As manifestações se encorparam nos dias seguintes, assim como a repressão policial. No ápice da barbárie, a Polícia Militar parou São Paulo com uma violência indiscriminada, atingindo até jornalistas e pessoas alheias aos atos. Os movimentos dos “vândalos” e “baderneiros” eram, até então, condenado com veemência por toda a imprensa.

Atividades ocorriam também em outras cidades, especialmente Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Novas reivindicações, como deslocamento para saúde e educação de recursos públicos destinados à Copa, eram incorporadas. A convocação de nova rodada de protestos, para 17 de junho, se espalhou pelas redes, reforçada pelo sentimento de solidariedade contra a violência e por outras bandeiras de luta, contra a Copa, a corrupção, a violência e o abandono nas periferias. Mais de 65 mil pessoas marcharam em São Paulo, 100 mil no Rio, 10 mil em BH, 5 mil em Brasília – calculou-se em 250 mil o volume de participantes dos protestos.


DANILO RAMOS/RBA

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DANILO RAMOS/RBA

JENNIFER GLASS/FOTOS DO OFÍCIO

EVOLUÇÃO Atos contra o aumento da tarifa começaram modestos, condenados pela mídia e reprimidos pela polícia; o repúdio à brutalidade causou comoção e inflamou as ruas

As manifestações passaram a ser saudadas pela imprensa como “pacíficas” e os gestos violentos foram tratados como de “uma minoria”. Os “baderneiros” desaparecem das manchetes. Vídeos, fotos e mensagens de grupos “sem rosto”, “sem liderança”, direcionam a fúria para os políticos e a política. No dia 18, novos atos, sem polícia. O jornal O Estado de S. Paulo lança novo serviço pago de notícias em tempo real, a Globo exibe em horário nobre propaganda contra impostos, um vídeo veiculado por uma “brasileira de Los Angeles” convoca estrangeiros a boicotar a Copa; a prefeitura de São Paulo é depredada, sem reação policial.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito Fernando Haddad anunciam o recuo na tarifa, assim como Eduardo Paes no Rio. O mesmo se sucede em dezenas de outras cidades. Mas o preço das passagens já não era a estrela das manifestações. No dia 20, calculou-se em 1 milhão o volume de gente que saiu às ruas para protestar. A “voz das ruas” saiu do varejo municipal, ecoou no Planalto, estilhaçou vidros da Praça dos Três Poderes, acuou o sistema político do país e atormentou a ciência política. Até o 20 de junho, as principais lideranças políticas do país estavam emudecidas. Quando Dilma fez um pronunciamento

em rede nacional na noite do dia 21, pouca gente de expressão havia arriscado alguma avaliação mais apurada do que acontecia. “Ninguém em sã consciência pode ser contra manifestações, porque a democracia não é um pacto de silêncio, mas sim a sociedade em movimentação, em busca de novas conquistas”, afirmou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu perfil no Facebook na noite de 17 de junho. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também foi cauteloso: “Isso é a democracia. Sempre há coisas para melhorar. E quem quiser tirar proveito disso já perdeu, porque não é o momento político, é o momento social”. REVISTA DO BRASIL

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GABRIELA BILÓ/FUTURA PRESS

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PERIFERIAS População que conhece bem a ausência do Estado e a violência policial também deu o seu recado

No decorrer daquela semana, porém, as diversas faces e sotaques das ruas passaram a se aglutinar em formas mais bem definidas. Os movimentos sociais mais tradicionais e os sindicatos, habituados às ruas mas não às redes, identificaram nos clamores bandeiras históricas. Com diferenças aqui e ali, abraçaram a mobilização. Enquanto isso, extremismos, à esquerda e à direita, completavam a difusão de vozes, movidas essencialmente pela agitação virtual.

Choque de causas

As análises das tribos nas redes identificaram a apropriação da onda de manifestações em várias cidades por pautas conservadoras. Na semana do 20 de junho, campanhas com esses perfis atingem milhares de compartilhamentos. Do “fora 18

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Dilma” ao “assuma Joaquim Barbosa”, da convocação de uma greve geral para 1º de julho por um internauta ao “contrabando” de causas desconexas. O MPL chegou a declarar que não convocaria mais protestos, criticando a violência contra organizações políticas na Avenida Paulista. A reportagem da Rede Brasil Atual testemunhou um jovem, conhecido como Bahia, de 21 anos, tentando por mais de meia hora convencer alguns sobre o despropósito da intolerância e da violência. “É doentio. É assustador. É a barbárie. As pessoas agem como animais”, dizia. Organizações sociais mais tradicionais e movimentos comunitários das periferias também passaram a discutir ações conjuntas com a finalidade de disputar o espaço, contra a desvirtuação dos protestos. “O movimento vem sendo ocupado por fascistas,

neonazistas ou a extrema-direita brasileira, e o problema da direita brasileira, ao contrário da europeia e norte-americana, é que não aceita o processo democrático”, comentou o jurista Pedro Serrano. O professor André Singer, do Departamento de Ciência Política da USP, observou que o país pode estar diante de um novo ciclo de conflito relacionado a distribuição de renda. Disse que a presidenta Dilma tomou medidas corajosas, como estimular uma política de redução de juros, comprar uma briga com os bancos pela diminuição do spread e alterar as regras de remuneração da poupança, no que ele chama de “ensaio de desenvolvimento”. Mas a falta de investimento atual pode indicar, segundo o professor, “limites do pacto de classes” promovido desde o início do governo Lula.


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Singer não vê risco de golpismo, mas pondera: “A democracia foi uma conquista árdua e intensa sobretudo para a classe trabalhadora. Agora, ouve-se o apito da panela de pressão. É possível que a gente esteja na beirada de um novo ciclo de conflito distributivo”. Em comentários na Rádio Brasil Atual, o cientista político Paulo Vannuchi alertou que atitudes antidemocráticas exigiam um reagrupamento das forças de esquerda. “A democracia não se dá só através das instituições, precisa das ruas. Mas não existe democracia sem partidos ou instituições representativas”, afirmou. E defendeu que a presidenta Dilma exercesse a voz de comando que a democracia lhe conferiu. “É hora de ela aparecer em público.”

Reviravolta nos poderes

Ao decidir ir a público em cadeia nacional de rádio e TV na noite do dia 21, Dilma valorizou a “voz das ruas” e prometeu abrir o diálogo entre as instituições e com os movimentos organizados para melhorar os serviços públicos. O foco na reforma

política tomou a dianteira no “dialogo entre as instituições”, até porque, para valer em 2014, tem de ser aprovada um ano antes. Gente de peso no Congresso, porém, não gostou de a presidenta ter-lhes jogado no colo a questão, antes uma Constituinte exclusiva, depois um plebiscito, no qual a população decida sobre onde mexer no sistema político. Foi o preço da omissão. Projetos de mudança adormecem no Legislativo há anos e os políticos não levaram nenhum adiante, embora o tema seja um antigo clamor de entidades da sociedade. E, se para Paulo Vannuchi o financiamento privado das campanhas “é a mãe de todas as corrupções”, para o sociólogo Wagner Iglesias a reforma política é a “mãe de todas as reformas”. “Claro que a questão do transporte, do posto de saúde, da creche, da escola, são mais prementes e urgentes na vida do cidadão. Mas a reforma de fundo, capaz de mudar a forma como o Estado brasileiro funciona, é a reforma política. E a questão central é o fim do financiamento privado de campanhas eleitorais. Não há espaço para sermos in-

gênuos nessa discussão”, alerta. “Tome-se a lista de grupos privados que financiam candidatos, de A a Z, e se vê que muitos são empresas que têm negócios com o poder público. Mudar isso é revolucionar a relação entre Estado e sociedade.” Pesquisa realizada entre abril e maio pelo Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo revelou profunda desconfiança em relação aos partidos e mostrou que 89% da população considera a reforma política importante, e 65% preferem que sejam eleitos representantes exclusivamente para fazer a reforma. A ideia de uma Constituinte exclusiva chegou a ser apresentada, mas foi abortada. Restou a proposta de plebiscito, que ainda estava por se concretizar no fechamento desta edição. Na opinião do deputado Henrique Fontana (PT-RS), ele próprio autor de um projeto de reforma política que não conseguiu fazer andar, o mais importante é que a pauta ganhou status de prioridade. “Há oito semanas ela estava totalmente paralisada”, disse.

Além da reforma política, o Planalto levou a governadores e prefeitos das capitais a dedicação a cinco pactos entre os poderes públicos voltados para o atendimento das principais reivindicações levantadas pelas manifestações. Os pactos envolvem ações em questões como responsabilidade fiscal, combate à corrupção, saúde, educação e transporte – em resumo, firmou Dilma, os governos devem “colocar o cidadão, e não o poder econômico, em primeiro lugar”. O cotidiano do Congresso passou a ser pressionado pela iniciativa do governo de dar respostas às ruas. Os presidentes da Câmara e do Senado implementaram uma agenda de votações a toque de caixa para passar uma mensagem positiva à população. A Câmara aprovou na madrugada do dia 26 o projeto

que destina os recursos dos royalties do petróleo: 75% para a educação e 25% irão para a saúde. Os movimentos defendem que, por mais que os royalties representem um bom reforço, seria importante concretizar a destinação de 10% do PIB para o ensino público, como prevê o Plano Nacional de Educação. O orçamento atual corresponde a 6,1% do PIB de 2012, e é resultado da soma dos 18% dos impostos da União e de 25% dos de estados e municípios. Na área da saúde, as organizações sociais também comemoram a destinação de parte dos recursos dos royalties do petróleo, mas por considerá-la insuficiente defendem uma plataforma orçamentária mais robusta. “É preciso ficar claro que esses 25% são adicionais e que se defina um mínimo que a União deva investir, além dos

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Agenda a toque de caixa

MENOS CIRCO Movimentos querem 10% do PIB para educação

royalties. Se não, vamos colocar com uma mão e tirar com outra”, diz o coordenador do Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, Ronald Ferreira. A Constituição determina um gasto mínimo em saúde apenas para os estados

e para os municípios, que têm de direcionar respectivamente 15% e 12% do seu orçamento. A União não tem um mínimo obrigatório estabelecido por lei. Os movimentos querem que se defina o comprometimento de pelo menos 10% das receitas. REVISTA DO BRASIL

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TRABALHO

T

odos os anos, o Ministério do Trabalho e Emprego registra perto de 30 mil convenções ou acordos coletivos. Poucos têm abrangência nacional. Entre os mais conhecidos, dois se concentram em uma empresa, com os 117 mil trabalhadores dos Correios e os 85 mil da Petrobras. A dos 500 mil bancários completou 20 anos em 2012 e é hoje a principal referência em termos de negociação coletiva nacional. E é uma antiga reivindicação dos metalúrgicos – categoria que reúne 2,5 milhões de trabalhadores –, em um contexto de deslocamento de empresas pelo país. Outros setores começam a discutir acordos nacionais, com temas específicos. O setor automobilístico é um exemplo dessa transição. São Paulo chegou a ter mais de 70% da produção brasileira e hoje tem menos de 50%. Ainda assim, a concentração continua forte: segundo a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores, de 57 unidades industriais em todo o país, 30 estão na Região Sudeste e 21, na Sul. Apenas seis ficam nas demais regiões: três na Centro-Oeste, duas na Nordeste e uma na Norte. Isso causa alvoroço quando uma empresa resolve se instalar em uma região fora do eixo Sudeste-Sul. A Fiat, por exemplo, decidiu abrir uma fábrica em Goiana, cidade de 75 mil habitantes na zona da mata de Pernambuco e onde o salário médio, segundo o IBGE, não passa de R$ 800, menos de um terço da remuneração média do ramo metalúrgico (R$ 2.500). A unidade deverá funcionar a partir de 2015 e abrir 4.500 vagas. Se o piso na unidade for próximo a R$ 800, equivalerá a pouco mais de 11% do salário médio das montadoras do ABC – R$ 7 mil, em valores deste ano, segundo a subseção do Dieese no sindicato da categoria.

Alternativas

As diferenças salariais por região são um dos nós de qualquer tentativa de estabelecer um acordo nacional. Além disso, na mesma categoria as diversas funções têm remunerações distintas, conforme mostram dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do 20

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Do tamanho do

BRASIL Deslocamento de empresas pelo país reforça pauta sindical sobre acordos coletivos nacionais, ainda restritos a poucas categorias Por Vitor Nuzzi

Trabalho e Emprego, de 2011. Segundo estudo elaborado pela subseção do Dieese na Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM-CUT), um alimentador de linha de produção, função que concentra mais de 210 mil trabalhadores na base cutista, tem ganho médio de R$ 1.244, um soldador (102 mil) recebe R$ 1.872 e um montador de veículos (48 mil), aproximadamente R$ 2.600. Um montador pode ganhar em torno de R$ 4 mil no ABC e R$ 2.500 em Manaus – e com a jornada do primeiro sendo menor que a do segundo (40 e 44 horas, respectivamente). Uma alternativa em estudo é negociar, inicialmente, cláusulas sociais. O técni-


TRABALHO

Concentração Distribuição dos metalúrgicos pelo país

Sudeste (63,9%)

Sul (23,9%) Norte (2,1%) Centro-Oeste (5,5%) Nordeste (4,6%)

FOGUINHO/SMETAL

Fonte: Rais 2011 Elaboração: Subseção Dieese/CNM-CUT e FEM-CUT

Desigualdade Salário médio das montadoras em 2012 R$ 6.500

São Bernardo do Campo, SP

R$ 6.200

Taubaté, SP (Volkswagen e Ford)

R$ 4.100

Camaçari, BA (Ford)

R$ 3.100

Juiz de Fora, MG (Mercedes)

R$ 2.900

Porto Real, RJ (Peugeot)

R$ 2.700

Betim, MG (Fiat)

R$ 2.500

Gravataí, RS (General Motors) Anápolis, GO (Hyundai Caoa)

R$ 1.000

Fonte: Subseção do Dieese no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com base em dados estimados pelo Caged/julho de 2012

UNIFICAÇÃO No interior de São Paulo, Joel procura estabelecer organização entre os colegas de outros estados

co do Dieese Rafael Serrao, da subseção na CNM-CUT, observa que muitos itens são já comuns nas convenções locais. Por exemplo, há cláusulas sobre horas extras em 98% das convenções, sobre duração e distribuição da jornada em 93%, sobre Cipa e pagamento de salários em 73% e sobre alimentação em 68%. Alguns itens são vistos como prioridade para iniciar uma negociação desse porte. Em 2012, quando organizou uma conferência sobre tema, a CNM, junto com o Dieese, estudou 41 convenções coletivas, que somavam mais de 2.600 cláusulas. Nasceu aí a proposta de uma pauta mínima de um possível contrato nacional, com cinco itens: creche, funcionamento das ComisREVISTA DO BRASIL

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CARLOS MACEDO/RBA

TRABALHO

ESTÍMULO Marcelo ganha aproximadamente R$ 9 por hora em Porto Alegre. Em São Paulo, a mesma atividade pagaria cerca de 40% a mais

sões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipas), acesso da representação sindical aos locais de trabalho, restrições para demissões imotivadas e duração e distribuição da jornada. “O primeiro ponto é tentar unificar a data-base”, acrescenta o presidente da CUT no Rio Grande do Sul, Claudir Nespolo. “É melhor negociar no segundo semestre, quando já está encaminhada a economia, para o bem ou para o mal. Se os trabalhadores não compreenderem a importância dessa mudança, não farão campanha. O comportamento das empresas é pela dispersão.”

Produtividade

As datas-base dos metalúrgicos se espalham pelo país. Entre os gaúchos, por exemplo – 27 sindicatos cutistas, com 220 mil trabalhadores na base –, quase todas são em 1º de maio, com exceção de Caxias do Sul (1º de junho) e São Leopoldo (1º de julho). A dos sindicatos ligados à CUT em São Paulo, entre os quais o do ABC, é 22

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1º de setembro. Já os metalúrgicos filiados à Força Sindical no estado têm data-base em 1º de novembro. Para Claudir, o contrato coletivo de trabalho é um dos poucos instrumentos de distribuição de renda. “A produtividade dobrou no Brasil nos últimos dez anos, e os acordos coletivos só repuseram 50%.” Segundo ele, o modelo de contratação dos bancários serve de “inspiração” à categoria. A situação era parecida 20 anos atrás, recorda o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Carlos Cordeiro. “Eram 150 sindicatos, cada um com data-base diferente. Nessas negociações separadas, cada um tinha piso diferenciado numa mesma empresa. Um caixa de São Paulo ganhava mais que um caixa do mesmo banco, com o mesmo número de horas, em Pernambuco. Isso (unificação de datas-base) foi fundamental para a nossa estratégia.” Na avaliação do presidente da federação dos metalúrgicos de Minas Gerais

(FEM-CUT), José Wagner Morais de Oliveira, o melhor seria começar a discussão pelos pontos que unificam os sindicatos. “Precisamos falar a mesma língua”, diz, lembrando que há diferenças dentro de um só segmento. A questão salarial segue sendo um problema. “Ninguém vende carro mais barato em Minas Gerais ou no Nordeste porque o trabalhador ganha menos.” O piso em Belo Horizonte e Contagem para empresas com mais de mil funcionários é de R$ 1.065 – fica em torno de R$ 1.600 nas montadoras do ABC. O presidente da FEM-CUT paulista, Valmir Marques, o Biro Biro, reforça a preocupação. “Precisamos unificar a pauta a partir das semelhanças. O problema é unificar o período da data-base. Em São Paulo, conseguimos trazer todas as negociações para setembro. Mas não é a realidade do país. É preciso construir um ambiente de negociação.” Forneiro em uma fábrica de fundição com 240 funcionários na zona norte de Porto Alegre, Marcelo Rodrigues acredi-


Joel conta que os metalúrgicos paulistas da empresa têm conversado com os gaúchos sobre modalidades de organização que contemplem toda a companhia no país, para troca permanente de informações. “Estamos montando uma rede.” Presidente da CUT em Pernambuco, Carlos Veras avalia que a instalação de uma fábrica da Fiat em Goiana terá “uma desproporção muito grande entre o trabalhador que está em Betim e o daqui”. A média salarial na fábrica mineira é de R$ 2.700. Para ele, um dos entraves na negociação está na diferença de porte entre as várias empresas. A terceirização é outro problema, e a região ainda precisa avançar em termos de distribuição de renda. “Ipojuca (município onde se localiza o complexo industrial de Suape) tem o segundo maior PIB do estado e renda per capita menor que um salário mínimo.” Outra questão é que o debate envolve mais de uma central. Os metalúrgicos ligados à CUT somam aproximadamente 800 mil, espalhados em 80 entidades.

Já a confederação filiada à Força Sindical (CNTM) reúne, segundo informa, 1,2 milhão de trabalhadores e 150 sindicatos e federações. A CTB tem sindicatos importantes, como os de Betim, em Minas Gerais (base da Fiat), e de Camaçari, na Bahia (onde a Ford passou a ter, em 2001, sua primeira fábrica brasileira fora de São Paulo). O contato com as outras centrais já começou a ser feito, segundo o presidente da CNM-CUT, Paulo Cayres, e deve se intensificar após as campanhas salariais do segundo semestre. “Este é o melhor momento. A CNM nasceu em meio a uma crise, com desemprego alto. De 2003 para cá, a indústria só tem crescido”, argumenta. “O problema é que a indústria migra,

Mais emprego Número de metalúrgicos no país

1.9 89 .63 2 2.2 68 .73 3 2.3 94 .03 7

Organização

EXCESSOS Paulo Cayres: “Em um país que não tem sequer as 40 horas (semanais), eles colocam as 50 horas, com horas extras”

1.3 77 .77 7 1.3 45 .00 1

ta que um contrato nacional seria favorável à categoria. Ele ganha aproximadamente R$ 9 por hora – em São Paulo, por exemplo, a mesma atividade pagaria cerca de 40% a mais. Todos os dias, Marcelo pega o ônibus em Gravataí, na região metropolitana, e percorre 25 quilômetros para cumprir sua jornada na capital gaúcha, das 7h30 às 17h18. Com 27 anos, é metalúrgico há seis – antes, tinha uma loja de ar-condicionado em Porto Alegre. Com 48 anos, Joel Américo de Oliveira, operador regulador de máquinas na John­son Controls, está na fábrica de Sorocaba, interior paulista, desde 1991. Sai às 4h30 de casa para sua “maratona da madrugada”, como diz o trabalhador, nascido e criado em Santo André, na região do ABC. O salário inicial vai de R$ 8,50 a R$ 9 por hora. Pelo tempo de casa, ganha em torno de R$ 12. “O pessoal quando vem aqui assusta”, conta, falando dos encontros com colegas de outras empresas. Segundo ele, uma concorrente direta, que levou sua fábrica para o interior do Nordeste, paga pouco acima do salário mínimo.

ROBERTO PARIZOTTI/CUT

TRABALHO

1995

2002

2007

2010

2012

Fonte: Rais e Caged/MTE Elaboração: Subseção Dieese/CNM-CUT e FEM-CUT

leva os produtos e os preços, mas os salários e as condições de trabalho não mudam”, observa. Cayres destaca, entre outras, a questão do controle da jornada. “Em um país que não tem sequer as 40 horas (semanais), eles colocam as 50 horas, com horas extras.” E cita também o conceito de trabalho decente, “que não é só aquele que assina carteira, mas o que não permite assédio nem mutila”. Ainda incipiente no Brasil, a negociação coletiva aos poucos vai sendo praticada no país, envolvendo inclusive categorias tradicionalmente menos organizadas. Há pouco mais de um ano, foi firmado um compromisso nacional para aperfeiçoar as condições de trabalho na construção civil – até junho, havia 20 comissões de trabalhadores instaladas em canteiros de obras. Em abril deste ano, o Ministério do Trabalho e Emprego assinou uma norma regulamentadora (número 36) relativa ao ambiente de trabalho no setor de frigoríficos, resultado de uma discussão que envolveu governo, trabalhadores e empresários. A maioria dos itens da NR36 tem prazo de seis meses para ser implementada. Outra discussão de caráter nacional foi feita no setor da educação, culminando na Lei nº 11.738, de 2008, que instituiu o piso salarial para os profissionais do magistério. Era uma reivindicação discutida desde os tempos em que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) se chamava CPB (do final dos anos 1970 para o início dos 1980), como lembra o presidente da entidade, Roberto Franklin de Leão. Voltando ainda mais na história, um decreto imperial de 1827, apenas cinco anos depois da independência do Brasil, abordava o tema. Mesmo com a lei conquistada em 2008, ainda hoje existem estados e municípios que não seguem a legislação. “Prefeitos e governadores estão criando artifícios para não cumprir o espírito da lei”, diz Leão, fazendo uma relação com os protestos que se espalharam pelo país em junho. “Uma das coisas que mais irritam o povo é essa capacidade de descumprir a lei e nada acontecer.” REVISTA DO BRASIL

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MUNDO

Olhar a moldura para entender o quadro Conflito aparentemente sem saída na Síria espalha tensão no Oriente Médio e traz ecos da antiga Guerra Fria Por Flávio Aguiar

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e você (leitora ou leitor) se debruçar sobre o mapa do Oriente Médio e focalizar a Síria, verá, como parte da mídia ocidental gosta de descrever, bandos de alauítas (o governo de Bashar Al-Assad), xiitas (com base no Irã, em geral aliados dos alauítas, neste caso) e sunitas (apoiados pela Arábia Saudita, pelo Catar e por grupos dessa etnia com base no Iraque) se engalfinhando entre si numa guerra mortífera e, grosso modo, sem saída até agora. A pequena distância, no Líbano, os xiitas do Hezbollah apoiam o governo sírio, e a média distância os israelenses vigiam os caminhos sírios para impedir que armas iranianas caiam nas mãos do Hezbollah. Mas isso é apenas metade do quadro. Para ver o quadro inteiro, é necessário, em primeiro lugar, empreender uma viagem no tempo. O governo de Bashar Al-Assad é herdeiro (mais presuntivo do que de fato) dos movimentos antigos dos vários nacionalismos árabes, que o Ocidente sempre sabotou, e que no caso da Síria se encastelaram no Partido Baath – do qual, aliás, Saddam Hussein fez parte. Esses movimentos nacionalistas do mundo árabe sempre contaram com o apoio da extinta União Soviética – de que o governo russo, chefiado por Vladimir Putin, se coloca como herdeiro (também mais presuntivo do que de fato). Por aí já se vê que uma parte do quadro, na verdade, se pinta na moldura. Como se não bastasse, é evidente para o observador que a Arábia Saudita e o Catar estão disputando a primazia 24

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em fornecer dinheiro e armas para os rebeldes. A Arábia Saudita é dirigida por uma monarquia sunita. Mas nessa composição pesam tanto o termo sunita como o outro – monarquia. Os movimentos nacionalistas do mundo árabe, no passado remoto e no pós-Segunda Guerra, foram a ameaça mais intensa que essas monarquias – todas extremamente reacionárias, em todos os sentidos – tiveram de enfrentar. Portanto, além de combater xiitas, para esses governos de monarcas e emires (Catar) é importante exterminar o vírus nacionalista e baathista onde quer que ele esteja. Israel se sente na obrigação de intervir nesse quadro – mais para manter a ideia de que é o guardião do Ocidente diante da barbárie árabe do que para ser efetivo no conflito. Então bombardeia (como sempre, sem declarar nem que sim, nem que não) alvos do governo sírio em torno de Damasco, com a desculpa de que podem ser pontos de transferência de armas do Irã para o Hezbollah, no Líbano – como se isso não acontecesse de outras formas. Nesse quadro complexo, os Estados Unidos, que temem armar grupos da Al Qaeda ou próximos, que estão cada vez mais controlando espaços políticos e militares entre os rebeldes, decidem anunciar o rompimento do embargo contra o fornecimento de armas a estes. Terá sido uma tentativa de manter o controle sobre para onde essas armas irão? Ou uma tentativa tardia de fortalecer os rebeldes para que estes se assentassem de


MOHD RASFAN/AFP

MUNDO

“PAREM DE MATAR” Entre alauítas, xiitas, sunitas, sauditas, israelenses, governo e rebeldes, existe o povo da Síria

fato na projetada (que hoje está abortada) reunião de negociações entre o governo sírio e aqueles, em Genebra? Não se sabe. Mas o certo é que, em retaliação, o governo de Moscou decidiu entregar armas antiaéreas (para combater os raids israelenses) ao governo de Damasco, e o governo de Bashar Al-Assad se apressou em anunciar isso aos quatro ventos. Ou seja, esses últimos movimentos trouxeram de volta o esquadro e o compasso da Guerra Fria que muitos consideram finada – algo ingênuo, para dizer o mínimo. O exército sírio, de Bashar Al-Assad, não é o iraquiano, de Saddam Hussein, que era um castelo de cartas, na verdade sem armas significativas (as alegadas para justificar a invasão) para se opor às potências ocidentais. Aí está uma das chaves da questão. Esse exército – uma corporação fortíssima, como o seu congênere turco, logo ao lado – não vai entregar a rapadura tão facilmente. Uma pergunta que deve obrigatoriamente ser respondida, para chegar a uma deposição – suave ou dramática – de Bashar Al-Assad, é o que fazer com o exército sírio, além daquela sobre o que fazer com o governante. Como sempre, tais situações intrincadas exigem que se puxe algum fio para que a meada comece a se desfazer. O exército sírio pode ser esse fio. Na verdade, trata-se de negociar com seus líderes militares o que acontecerá na Síria pós-Bashar. Isso envolve a Rússia – afinal, na Síria está a única base naval que ela mantém

em porto fora de seu território, numa posição vital para o acesso ao Mediterrâneo, sem passar pelo Mar Negro, cujos estreitos (Bósforo e Dardanelos) são controlados pela Turquia, país membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Aliás, este é um outro país-chave para entender a moldura da questão. A Turquia – agora também sob um governo de partido islâmico, às voltas com rebeliões internas – conta com um exército de tradição nacionalista, repressiva, e disposto a ter uma preponderância regional. Haja vista o esforço que realizou, junto com Brasil, para chegar a um entendimento sobre o programa nuclear iraniano, com evidentes intenções de jogar água fria na fervura nessa espinhosa questão regional e mundial. Como não bastasse a confusão até aqui descrita, movimentos salafistas em todo o mundo árabe vêm encontrando facilidade entre jovens, muitas vezes desempregados, para recrutá-los para lutar pela “causa islâmica” na Síria, contra o governo de Damasco. Os salafistas eram um movimento doutrinário, de apoio a uma “pureza islâmica”, que foram mobilizados pelo Ocidente na luta para se contrapor à influência soviética na região do norte da África. Terminou medrando entre eles um braço militarizado que, como a Al Qaeda no Afeganistão, galvanizou o movimento. Ah, sim, antes que a gente se esqueça: no meio disso tudo está o povo sírio. Mas quem se lembra disso, numa hora destas? REVISTA DO BRASIL

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Ouça esta Estudioso da música brasileira, Zuza Homem de Mello escreveu uma obra definitiva sobre os festivais dos anos 1960. Mas conta que está sempre atrás do novo Por Paulo Donizetti de Souza e Vitor Nuzzi. Fotos de Jailton Garcia

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m legítimo gramofone Mozart, de 1904, se destaca na sala. “Ainda funciona”, conta Zuza, que em outro cômodo armazena “uns” 10 mil LPs. A música domina o ambiente e a vida de José Eduardo Homem de Mello, mais conhecido pelo seu apelido familiar. Trocou a Faculdade de Engenharia pelo contrabaixo, foi estudar nos Estados Unidos e, na volta, no final dos anos 1950, desembarcou na TV Record, onde seria técnico de som, homem de confiança do dono da emissora, Paulo Machado de Carvalho, e testemunha sonora dos célebres festivais que popularizaram uma geração de compositores surgida naquele instante, à sombra de João Gilberto, considerado por Zuza o “agente provocador”, a “centelha” que fertilizou o solo musical brasileiro naquele momento. A experiência acumulada e o convívio privilegiado resultaram em um livro definitivo sobre o período, A Era dos Festivais – Uma Parábola, lançado dez anos atrás, entre outras obras em que conta a história e as histórias da canção brasileira. Mas, perto dos 80 anos, a se completarem em setembro, Zuza também quer saber do novo, dos talentos que podem brotar. Nesse sentido, considera a mídia – que fabrica sucessos com a mesma desenvoltura com que despreza talentos – “cega, muda e surda”. Conte sobre a final do festival de 1966 (da TV Record), que terminou em empate, mas não foi exatamente um empate...

Foi ajeitado. Eu era o técnico de som da Record desde 1959, no Teatro Record, o local onde se realizavam todos os shows importantes no começo dos anos 60, os shows internacionais, nos quais eu também estava envolvido. Também fazia parte da contratação dos artistas internacionais. Você já tinha estudado lá (nos Estados Unidos)...

Num programa musical, a música tem de sair da melhor forma possível, apesar das limitações dos aparelhos de televisão da época. Foi o que eu fiz, colocando mais microfones, dando destaque a instrumentos ignorados pelos técnicos das demais emissoras, como contrabaixo, violão, guitarra. 26

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Fez parte dessas mudanças o célebre microfone pendurado no teto. No filme Uma Noite em 67 (documentário lançado em 2010), a história é contada como se eu tivesse idealizado isso para esse festival. Na verdade, comecei a usar cinco anos antes. Eu era uma espécie de assistente do Paulinho Machado de Carvalho. Em 1966, a final foi antecedida de uma ansiedade muito grande da parte de todas as pessoas envolvidas na disputa, entre as duas canções favoritas, Disparada (de Geraldo Vandré e Théo de Barros) e A Banda (de Chico Buarque). Eram, de fato, as mais destacadas de todo aquele festival, o primeiro da Record televisionado. Era clima de torcida...

Dividiu-se praticamente o país entre as duas canções. Isso pode parecer exagero, mas não é. As pessoas se juntavam para fazer apostas. E, como as duas canções eram muito diferentes uma da outra, era mais fácil ter as duas torcidas bem delineadas também. Vendo o conteúdo, você deduz perfeitamente qual era o perfil dos torcedores de A Banda e de Disparada. O curioso dessas canções é envolver dois compositores com muita influência da Bossa Nova na formação, mas ambas vão cada uma para um lado diferente, e ousam pela simplicidade. Vandré faz uma canção num ritmo regional e Chico, uma marcha.

A Bossa Nova foi o êmulo de todos os compositores brasileiros da geração dos anos 60. Todos se tornaram o que seriam, mais especificamente, em função do João Gilberto, que foi o agente provocador de um número razoável de compositores talentosos. A maioria deles era de uma classe média universitária. Então, já tinham uma carreira encaminhada. A música de João Gilberto os atraiu de tal forma que os fez mudar de ideia e resolver seguir carreira de cantor, de compositor, de músico. A partir de João Gilberto surge essa geração de grandes talentos. Se você pergunta se é possível formar uma nova geração como a dos anos 60, posso responder: é perfeitamente possível, desde que surja um novo João Gilberto.


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canção A partir de João Gilberto surge uma geração de grandes talentos. Se você pergunta se é possível formar uma nova geração como a dos anos 60, posso responder: é. Desde que surja um novo João Gilberto

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FOLHAPRESS

Jair Rodrigues cantou Disparada, Nara Leão, A Banda, de Chico Buarque. Deu empate “ajeitado” no festival da Record de 1966

O Chico Buarque disse ao Paulinho Machado de Carvalho que, se A Banda fosse vencedora, devolveria o prêmio em público. De fato, Disparada é bem melhor

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Voltando ao festival...

Depois desse longo preâmbulo, o assunto do empate. Eu não tomava conhecimento de nada, estava na cabine, isolado. Segundo relato de todas as pessoas envolvidas, o que se passou foi isto: o Chico Buarque, diante da possibilidade de A Banda ser vencedora, teve um gesto muito determinado. Disse ao Paulinho Machado de Carvalho que, se a música dele fosse vencedora, devolveria o prêmio em público. Diante dessa situação, o Paulo Machado propôs algo que teria sido ventilado na tarde daquele dia, a possibilidade de um empate. Logo depois do festival, o público já tinha saí­ do, eu estava lá desligando os cabos, o Paulinho subiu na cabine de som, num lugar quase inacessível, e me entregou um envelope fechado dizendo para guardar e não mostrar a ninguém. Lá tinha o resultado comprovando que A Banda tinha vencido. De fato, Disparada é bem melhor. A Banda, com o tempo, tornou-se uma música merecidamente pouco expressiva na obra de Chico Buarque. E Disparada é considerada uma obra-prima, do Geraldo Vandré e do Théo de Barros, autor da música. Vandré é essencialmente um letrista. Tanto é que, quando ele fez Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, se limitou a dois acordes.

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Ele disse a você, inclusive, que a canção em geral é uma funcionária despudorada do texto...

Você sabe que dia foi isso? Na véspera de ele ir ao Rio defender Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Naquela época, como eu tenho uma formação de músico, estranhei um pouco essa colocação. O tempo foi mostrando que ele tinha razão. Uma grande canção tem de ter uma grande letra. Uma grande canção pode ter uma música razoável, mas uma grande letra pode torná-la uma grande canção. E grandes músicas não são grandes canções porque a letra é fraca. Com o passar do tempo fui prestando cada vez mais atenção às letras. Tenho pelos letristas uma admiração que eu não tinha quando era jovem. Eu, por exemplo, não tinha pelo Cole Porter­a admiração que passei a ter quando comecei a ler as letras. E as letras brasileiras também. Grandes compositores expressam essa dificuldade de pôr letras nas canções, de não concluir a frase enquanto não encontram a palavra exata, de ter a sintonia entre o conteúdo e a sonoridade. O Chico não entregou a letra encomendada para a minissérie Anos Dourados...


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É, a minissérie foi sem letra. E, no entanto, é uma magnífica letra. Ele (Chico) não solta uma letra sem estar convencido. Isso que falta a muitos compositores que soltam de qualquer jeito e, com isso, a obra fica minguada. Eu, que trabalho com texto, fico às vezes uns dois dias em busca de uma palavra. Quando a letra chega ao resultado, pode-se ter a impressão de que foi feita num vapt-vupt, de tão bem feita que é. Você é contemporâneo de uma geração de músicos, compositores que até hoje são referência, e 40, 50 anos depois continuamos ouvindo esses autores. O que faz brotar uma geração em determinada época e em outras a gente percebe uma certa aridez cultural?

Retornando àquilo que eu disse no início, um ou outro compositor que se destaque pode existir em qualquer época, em qualquer país. Agora, uma quantidade razoável surgindo ao mesmo tempo tem de ter uma explicação mais profunda. Se você pegar os pintores que surgiram em Paris no final do século 19, início do 20, tem de haver uma razão. No caso da música popular, acho que essa centelha é o João Gilberto, que fez surgir esses compositores que, em vez de ocorrer o que ocorreu com os grandes compositores dos anos 30, prosseguiram até uma idade em que raramente o compositor popular continua em atividade. Em geral, com 70 anos o compositor popular já pendurou as chuteiras. Alguém poderá alegar que as duplas sertanejas atraem mais gente do que os shows do Gil, do Caetano, do Chico, do Milton Nascimento, do Edu Lobo, do Dori Caymmi, de toda essa plêiade de compositores. Não dá para comparar. Uma é uma função midiática. Não tem a estrutura musical de representatividade da canção brasileira. O futuro vai dizer...

Aquela geração teve uma centelha, o João Gilberto. Da mesma maneira que o grupo de Minas, o chamado Clube da Esquina, teve também uma centelha, Milton Nascimento. Por que o Rio Grande do Sul não tem um grupo de grandes compositores? Porque não teve uma centelha. Por mais que você admire alguns. Tem aquele Nei Lisboa, sensacional. Mas faltou uma centelha. A centelha de Pernambuco é o Luiz Gonzaga, que mais você quer? Jackson do Pandeiro... E nos anos 50 o João Gilberto fez explodir a canção brasileira universalmente. Essa canção brasileira, não a que está na mídia nos dias de hoje. Essa não tem futuro nenhum. Podem mostrar mil números, isso não me impressiona nada, não é argumento.

Se houvesse em 1973 uma Virada Cultural, toda essa safra que você citou, formada uma década antes, estaria lá, assim como pode estar nas próximas, enquanto a longevidade permitir. E, da geração formada nas duas últimas décadas, quem estaria numa virada daqui a 40 anos?

Acho o Guinga um nome perene. Você poderá alegar que ele não é tão jovem assim, mas você tem os que surgiram depois da geração dos anos 60 que têm a longevidade garantida. Há questão de semanas saiu um CD da Rosa Passos interpretando Djavan, uma primorosa edição. Aí você vê claramente porque o Djavan é o Djavan, obra consagrada. Então, você vê nomes como Alceu Valença, Moraes Moreira, João Bosco... O que aconteceu, e é preciso a gente sempre levar em conta, é que o Brasil cresceu muito. Então, a população tinha uma representatividade musical adequada àquele número. Hoje é muito mais. Quando você faz a peneira, o descarte é muito maior. Falta divulgação para os novos?

Acho que a mídia é surda, muda e cega. Principalmente surda. Ela não é tão cega, não é tão muda, mas surda é. Você pega uma artista americana, como a Beyoncé, por exemplo, é pra multidões, e todo mundo sai muito satisfeito do show porque se divertiu bastante, e o propósito não era mais do que isso, e no entanto há outros que não têm esse mesmo alcance, esse mesmo resultado, e são visivelmente muito mais densos. Você pode perfeitamente ter ambas as coisas. Esconder totalmente e não dar espaço e só dar quando tem algum motivo extramusical… Só com motivos extramusicais esses artistas podem ter o merecido destaque. Mesmo dialogando com as pessoas, você percebe que eles (mídia) não estão muito a fim de discutir o mérito da questão.

Alguém poderá alegar que as duplas sertanejas atraem mais gente do que os shows do Gil, do Caetano, do Chico, do Milton Nascimento, do Edu Lobo, do Dori Caymmi... Não dá para comparar

Você disse que faltam ouvidos musicais.

Disso não há a menor dúvida. Ela ficou vazia, oca, criou-se um tipo de opinião baseado em elementos extramusicais, e com uma grande repercussão. E esses mais novos? Dessa geração mais recente, quem você gosta de ouvir?

A Mônica Salmaso é uma que eu gosto muito de ouvir. Curiosamente, alguns cantores e cantoras optaram por um caminho que ofusca um pouco suas totais possibilidades. Por exemplo, a Ivete Sangalo, considerada uma estrela para esse tipo de música, axé ou qual nome você deseje dar, é no entanto uma grande cantora. Se você botar um repertório de primeira categoria, ela dá conta do recado e estraçalha. Então, isso de uma certa forma ajuda as pessoas a ter uma falsa fotografia daquele artista. REVISTA DO BRASIL

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Para isso existem as pessoas profissionais da crítica, para mostrar ao público como isso é possível. Se você pega um setor da música popular desprestigiado pelos, digamos, mais exigentes, como a música brega, isso não quer dizer que seja inteiramente um horror. Existem artistas que são verdadeiros, e fazem aquilo porque falam a linguagem popular, da camada popular, para quem eles dirigem a música. Existem outros que fazem aquilo pegando uma carona. Essa diferenciação entre os caronistas ou não é que compete a pessoas que trabalham profissionalmente na música. A mídia de massa, comercial, que se tornou a televisão, ajudou a deseducar?

Por exemplo, a Ivete Sangalo, considerada uma estrela para esse tipo de música, axé ou qual nome você deseje dar, é no entanto uma grande cantora. Se você botar um repertório de primeira categoria, ela dá conta do recado, estraçalha

Não tenha dúvida. Aquilo virou um rodapé. Não foi mais lá pra cima.

Essa geração talvez esteja mais diluída, e talvez as pessoas tenham na internet seu meio de acesso ao que não tem muito espaço na mídia comercial.

Estou sempre atrás do que há de novo. O que há de novo é que me atrai. Há pouco menos de dois anos, fiquei bastante impressionado com o trabalho de dois cantores e autores, o Pélico (que acaba de produzir o CD de outro jovem que também desponta, Toni Ferreira) e o Filipe Catto. No ano passado, eu os convidei para um show sobre história da canção brasileira. Eles fizeram um sucesso danado, e não tenho a menor dúvida de que têm um brilhante futuro pela frente. Essa percepção de quem pode se transformar num grande nome compete a quem produz. Por exemplo, nas gravadoras Philips ou Odeon, nos anos 60, eles pinçaram o Milton Nascimento, que não era um produto imediatista de sucesso. Ele gramou muito para se tornar quem é. E assim tem sido. Compete às pessoas batalhar por quem realmente mereça um investimento artístico. E segurar as opiniões céticas de quem não entende. E quem é que entende? Músico. Ponto final. Se você for discutir com quem só vê o marketing, vai perder seu tempo. Esse tipo de profissional leva um artista a perverter seu princípio? Por exemplo, o Milton penou, mas seguiu sua linha sem se render. Você citou um exemplo conhecido. Sá Marina, que a gente conheceu com o Simonal, é sensacional com a Ivete. Mas ela seguiu a linha pop star.

Você não pode obrigar a pessoa a fazer aquilo que ela não quer. Mas é obrigado a reconhecer que ela é capaz de fazer aquilo. Essa é a grande diferença. Essa percepção de quem não faz, mas é capaz de fazer, é do músico. 30

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Quem pinçou a Elis Regina, por exemplo? Ou foi ela quem se impôs?

Houve várias pessoas que perceberam, em várias etapas do início da carreira da Elis, as qualidades que estavam embutidas nela como cantora. No Rio Grande do Sul, depois quando ela foi para o Rio de Janeiro... Por exemplo, o Lennie Dale. Quem não pinçou a Elis foram os caras da Continental, que a fizeram gravar aquela coisa de Brotolândia. Em compensação, o pessoal da Philips – o produtor do primeiro disco dela foi Armando Pittigliani – viu que não era por aí. Você via nitidamente as pessoas que queriam transformar a Elis numa cantorinha qualquer. Por que o Paulinho Machado de Carvalho investiu uma fortuna para contratar a Elis? Porque percebeu quem ela era. Ele foi criticado enormemente dentro da própria Record. E em menos de três meses ela já estava dando retorno com o programa O Fino da Bossa. Tanto que gerou cinco ou seis programas musicais diferentes, em menos de um ano a Record estourou e ficou líder de audiência. O que você acha da Maria Rita? Ela tem grande semelhança de voz com a mãe, mas isso basta ou pode ser um impedimento para decolar uma carreira própria?

É uma faca de dois gumes. Você tem de escolher qual vai usar. Eu, com toda franqueza, acho que esses dois CDS que ela fez com canções da Elis, em arranjos praticamente idênticos, é de uma inutilidade absoluta. Não tem sentido, é como um pintor resolver pintar a Mona Lisa. Claro, a gravadora está esfregando as mãos de contentamento, porque o show tem um sucesso danado. Por quê? Por causa da mãe, poxa vida. Aquilo já foi feito daquele mesmo jeito. É um clone! É como esses clones que tem do Elvis Presley nos Estados Unidos. Cansei de ver esses shows. Tinha um que até enxugava a testa com um lencinho e dava o lenço para uma moça na plateia. Acho que, enquanto ela tiver nessa, não tem futuro. O que você prefere? Ouvir o disco da Elis ou o da Maria Rita? E, no entanto, é um sucesso. Algo comum nessa safra genial é a leitura do mundo. E não havia só contestação. A Banda é uma crônica. Disparada é um miniconto. Hoje, você vê alguém, fora do hip-hop, fazendo essas leituras?

Acho que tem pessoas... O que eu percebo é que o preparo de instrumentistas e arranjadores hoje é muito maior. Kassim, Beto Villares, Dante Ozzetti­, têm músicas maravilhosas. Constato de maneira muito clara o preparo técnico de músicos, instrumentistas, arranjadores que hoje em dia fazem coi-


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sas fantásticas. E tem casos de cantores que impressionam muito através do CD e quando você vai ver ao vivo não é a mesma coisa. Por que isso acontece? Por culpa dessas pessoas que fizeram um produto tão bem feito que dá a sensação de que o principal, no caso a cantora, também é algo muito bom. Lembro de ter ido a uma audição no Natura Musical, de novos cantores. Vi uma cantora na qual eles estavam apostando muito. Era uma moça bonita, se trajava ousadamente... Cantou três ou quatro músicas, e quem me impressionou foi um cara que tocava violão e depois, vim a saber, era o arranjador. Fui falar com ele, não com ela. Pessoas como ele são requisitadas para fazer a “cama” de quem os produtores ou os investidores acreditam que será ídolo do futuro. Não estou sendo catastrófico nem dizendo que não tem ninguém. Claro que tem. Mas eu noto como isso é possível, o que provoca uma certa ilusão. Mas sempre teve isso de produtores, empresários, tentarem vender seus produtos. É que agora tomou uma dimensão muito grande.

Muito grande e com grande lucro por trás. A gente trouxe agora alguns dos maiores músicos de jazz nesse festival, BMW. Talvez o maior exemplo disso seja o Pat Metheny – que ganha menos do que qualquer uma dessas duplas sertanejas. Onde está a lógica nisso, sob o ponto de vista musical, artístico? Forma-se um produto que atinge o objetivo de trazer multidões que são levadas meio sem saber para onde vão. É a sensação que eu tenho quando vejo aquele povo todo fazendo assim (mexe os braços para um lado e para o outro, padrão plateia de auditório). Virou uma massa humana que você leva de repente para onde quer. Pessoas visivelmente robotizadas. Falando no advogado do diabo, nos festivais a gente via aquelas imagens das pessoas pulando, gritando... Como diferenciar?

Bom, em primeiro lugar havia uma situação política completamente diferente. Hoje em dia temos uma democracia, naquela época não existia. Não era unanimidade, havia facções pró e contra. Mesmo a vaia do Sérgio Ricardo (quando tentava cantar Beto Bom de Bola no festival da Record em 1967) não foi unanimidade. Nesse caso que você comparou, as pessoas são robotizadas, e as de lá tinham opinião política formada. E, a propósito disso, vale a pena a gente lembrar que pela primeira vez em muitos anos essa juventude está fazendo valer a sua voz, o que estava fazendo muita falta no Brasil, as pessoas protestarem, sob o pretexto de 20 centavos a mais na tarifa de ônibus, que não é o verdadeiro motivo, evidentemente. É o descontentamento, a completa

decepção com a classe política brasileira. Estão abusando da nossa capacidade de raciocínio e de percepção das coisas. Então, esse movimento, é a primeira vez que eu vejo desde aquela época em que os jovens saíam às ruas. Não é nem operário, nem velho. É jovem, e a maioria estudante, que tem o peito aberto, enfrentam a bala, enfrentam o poder. É possível fazer festivais bem-feitos, ou é um formato que está esgotado?

Acho isso muito difícil. É uma fórmula legal, que permite florescer sementes que estão embaixo da terra e a gente não vê. Mas a fórmula eu acho que está bem desgastada, embora continuem a existir esses festivais regionais pontuais. Houve aquela tentativa da Globo...

Mas foi uma tentativa bem manipulada. Fui júri de duas edições, era visivelmente manipulado. O sucesso na história dos festivais da TV Record era exatamente que não existia manipulação, por mais que possam ser acusados disso. Por exemplo, o Sérgio Ricardo me acusou de ter manipulado as vaias, o que é um absurdo, ocultado o microfone suspenso. O caso do Sérgio Ricardo foi o mais conhecido, até pelo gesto dele, de quebrar o violão. Mas muita gente foi vaiada.

O Roberto Carlos também foi vaiado. Mas a vaia não foi para ele, mas porque a música não tinha conteúdo político.

A Cynara e Cybele sofreram para cantar Sabiá (no festival de 1968).

O fato é que Sabiá (de Tom Jobim e Chico Buarque) estava disputando com uma canção (Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores) que tinha um conteúdo político inusitadamente explosivo.

Quem não pinçou a Elis foram os caras da Continental, que a fizeram gravar aquela coisa de Brotolândia. Em compensação, o pessoal da Philips viu que não era por aí

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Chega de

shhhhh! Acessibilidade em ambientes culturais vai além de rampas. Existem recursos que podem garantir o direito ao acesso a informação, cultura e lazer com autonomia, mas a oferta ainda é pequena Por Xandra Stefanel 32

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a maioria das vezes que Celso Nóbrega vai ao ci­ nema, em Fortaleza, é re­preendido pelos outros espectadores. Cego desde que nasceu, há 28 anos, ele não consegue entender um filme inteiro sem que alguém lhe explique as cenas que não têm como ser compreendidas apenas pelos diálogos entre os atores. “Eu vou ao cinema porque gosto muito e tenho pessoas da família, namorada e amigos que me ajudam a entender informações que só os olhos podem captar. É chato não ter os próprios meios de saber e perceber o que está acontecendo. Durante o filme, tenho de perguntar para a outra pessoa

o que está acontecendo, e isso atrapalha. Quem está ao lado não compreende e fica fazendo ‘shhhhh’, manda calar a boca”, desabafa o jornalista, publicitário e mestrando em Linguística Aplicada na Universidade Estadual do Ceará. Segundo o último Censo do IBGE, dos mais de 45,5 milhões de pessoas que declararam ter pelo menos uma deficiência, 35,8 milhões não enxergam ou têm dificuldade para enxergar. E outros 9,7 milhões têm algum grau de deficiência auditiva. Como essas pessoas fazem para ter acesso a filmes, peças teatrais, exposições e outros eventos culturais? Há pouco mais de uma década, começaram a surgir no Brasil recursos tecnoló-


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O QUE OS OLHOS NÃO VEEM Celso Nóbrega: “É chato não ter os próprios meios de saber e perceber o que está acontecendo. Durante o filme, tenho de perguntar para a outra pessoa”

gicos como audiodescrição e legendagem de som para possibilitar maior autonomia às pessoas com deficiência visual e auditiva. Mas tais recursos ainda estão longe de alcançar a popularidade. A audiodescrição é uma espécie de tradução das cenas em palavras, uma narração detalhada que a pessoa com deficiência visual recebe por meio de um fone de ouvido: cenário, figurinos, efeitos especiais, mudanças de tempo e espaço, leitura de créditos e expressões faciais e corporais dos atores são explicados entre os diálogos. Já a legendagem de som descreve, na tela, os sons para as pessoas com deficiência auditiva. Sem esses recursos, um cego não compreende, por exemplo, uma cena sem falas nem ruídos, e um surdo não tem condições de assimilar informações sonoras que não aparecem nas legendas convencionais. A bancária e tradutora aposentada Sônia Maria Ramires de Almeida, de 65 anos, descobriu aos 22 que sofre de otosclerose, doença genética que provoca a perda progressiva da audição. A partir de então, passou a usar aparelhos que têm como função ampliar os sons. Por

FOTOS: ACERVO LAVORO PRODUÇÕES ARTÍSTICAS

JR. PANELA/RBA

Sensibilização

esse motivo, ir ao cinema e ao teatro, por exemplo, é praticamente impossível. “Em teatro e cinema o problema surge a partir da péssima acústica de muitas salas. Existe um eco, uma reverberação que as pessoas que ouvem normalmente conseguem ‘apagar’. No caso de quem usa aparelhos auditivos, o aparelho capta todo o som ambiente, ruídos de gente caminhando, se movendo nas poltronas, abrindo embalagem de chocolate, cochichando etc. Por isso, fica difícil entender as falas e a história,” lamenta Sônia, reforçando que existe uma enorme diversidade na surdez, assim como soluções específicas para a acessibilidade de cada grupo. “Por que eu vou pagar o ingresso inteiro no cinema para assistir a meio filme? Minha compreensão de um filme sem audiodescrição é 50% menor. Se o filme for em inglês e eu não souber falar inglês, também não consigo ler legenda... Então, para que eu vou ao cinema ou ao teatro? Por isso participar dessas coisas nunca fez parte do dia a dia das pessoas cegas. Agora começa a existir possibilidade”, afirma Paulo Romeu, de 55 anos, militante pela acessibilidade das pessoas com deficiência. Ele deixou de frequentar cinemas e teatros aos 22, quando perdeu completamente a visão em um acidente automobilístico. Depois se formou na área de Tecnologia da Informação e participou de grupos de trabalho para a implementação de recursos

RECURSO ELETRÔNICO Sessão com audiodescrição ao vivo no Teatro Carlos Gomes, do Rio: acesso para deficientes visuais REVISTA DO BRASIL

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acessíveis na televisão e nos caixas eletrônicos. Percebeu possibilidades de pessoas­ como ele alcançarem maior autonomia não só nos espaços culturais, mas também em casa, ao ver televisão. Em 2006, Paulo participou da elaboração da Portaria 310, que define normas de acessibilidade para pessoas com deficiência na programação das televisões. A portaria do Ministério das Comunicações previa legendagem de som e interpretação na linguagem de sinais (Libras) para surdos e audiodescrição para cegos. No início, a audiodescrição deveria ser oferecida duas horas por dia nas emissoras de televisão, chegando, em dez anos, a 100% da programação. Mas acabou se limitando a, inicialmente, duas horas por semana, chegando a 20 em dez anos. Como parte dessa progressão, no último 1º de julho passou a ser obrigatório, para as emissoras de TV abertas brasileiras, oferecer quatro horas semanais de programação audiodescrita. Apesar de a acessibilidade para cegos e surdos ainda não ser regra na TV, mesmo que timidamente já chegou a outros espaços culturais. “Para as emissoras, para as quais existia a obrigação legal, houve uma resistência enorme. Já para cinema, teatro, seminários, palestras, em que não existe nenhuma lei que obrigue a audiodescrição até o momento, já temos pessoas fazendo espontaneamente”, compa-

ra Paulo Romeu. “Há uma sensibilização. O produtor de teatro que resolveu fazer uma exibição com audiodescrição vê aquela quantidade de pessoas sentadas na plateia usando o fone de ouvido, rindo e chorando junto com os outros durante a peça.”

Adaptação

Segundo o Censo 2010, dos 5.565 municípios brasileiros apenas 829 têm alguma legislação no que se refere à adaptação de espaços culturais, artísticos e desportivos para facilitar o ingresso, locomoção e acomodação de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. E isso não significa que essas cidades possuem legislação voltada para aqueles que têm deficiência visual ou auditiva. Na maioria das vezes, quando se menciona a acessibilidade nesse tipo de espaço, pensa-se prioritariamente em rampas. Mesmo assim, museus como o do Futebol e a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, e o Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, além de galerias ou exposições pontuais, já fazem parte do roteiro cultural de muitas pessoas com deficiência visual ou auditiva. O Teatro Carlos Gomes, por exemplo, ofereceu 24 apresentações acessíveis de março de 2012 a abril deste ano, com cerca de 50 pessoas com deficiência por sessão, segundo a assessoria de imprensa.

É para esse tipo de atividade que o grupo Terra São Paulo promove passeios. O programa é definido de acordo com a oferta de eventos, mas, em geral, são saídas de quatro horas para visitar exposições, ver peças teatrais e filmes. Cada pessoa com deficiência é acompanhada por um voluntário que dispõe de todos os sentidos. “A ideia é que haja uma grande troca. Do mesmo modo que um voluntário tem coisas a apresentar para uma pessoa com deficiência, este também tem muito a contar para o voluntário”, diz Ricardo Panelli, criador do grupo. “Para você ser um cidadão completo, não basta só trabalhar e ir embora para casa. Pessoas com deficiência têm acesso muito restrito para participar efetivamente da sociedade. Nosso objetivo é de contribuir e facilitar o acesso a esses eventos.” Um dos passeios que o grupo organizou foi ao Festival Melhores Filmes, promovido em abril pelo CineSesc. Tradicional em São Paulo desde 1974, o evento passou a ter audiodescrição e open caption, a legendagem, em 2010. Na edição de 2013, todos os 40 filmes exibidos em mais de 100 sessões contaram com audiodescritores fazendo as narrações ao vivo. O diretor da empresa que promoveu os serviços ao festival, Mauricio Santana, afirma que o profissional da audiodescrição deve ter amplo entendimento sobre a deficiência visual. “O audiodescritor vem

Audiodescrição pós-produzida: narração gravada e finalizada para DVD, blu-ray, TV, vídeos e outras mídias. Audiodescrição ao vivo e roteirizada: o audiodescritor tem um roteiro pré-elaborado e faz a narração ao vivo, seja na exibição de um filme, peça de teatro ou visita guiada. Narração simultânea: feita ao vivo, sem roteiro antecipadamente elaborado, como é o caso de palestras, seminários e workshops. Nas sessões ao vivo, monta-se uma cabine com microfone e equipamentos de tradução simultânea e a narração chega diretamente aos fones de ouvido previamente distribuídos. Closed caption: legenda oculta com indicações do áudio original (diálogos, ruídos, trilhas sonoras etc.). Open caption: produzidas no mesmo conceito e padrão das closed caption, mas exibidas de forma aberta ao público. Libras: a Língua Brasileira de Sinais é realizada por um tradutorintérprete e pode ser inserida em produtos audiovisuais e culturais, gravada ou ao vivo. 34

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ACERVO LAVORO PRODUÇÕES ARTÍSTICAS-2008

Recursos inclusivos

Tradutora de libras trabalha durante encenação no Centro Cultural dos Correios do Rio de Janeiro


PAULO PEPE/RBA

CIDADANIA

AUTONOMIA Formado em Tecnologia da Informação, Paulo Romeu diz que emissoras de TV tiveram resistência às normas

da área de comunicação, letras, tradução e afins. Ele tem de ter percepção e sensibilidade diferenciadas, conhecer a linguagem do cinema, ter facilidade de improvisação, repertório e vocabulário amplos. Principalmente quando está roteirizando, se colocar no lugar da pessoa com deficiência para narrar o que é fundamental para o entendimento.” Segundo Santana, o custo médio da audiodescrição para um filme de 120 minutos, por exemplo, é de R$ 3 mil a R$ 4 mil, o que engloba o processo de roteirização, revisão, consultoria de uma pessoa com deficiência, produção de estúdio, o trabalho do audiodescritor-ator e a finalização. Usuário do recurso, Paulo Romeu questiona por que não haver mais oferta desses serviços de acessibilidade: “O que significa o custo da audiodescrição no orçamento de um filme? E em comparação com o que uma rede de TV paga de direitos autorais para os filmes que ela apresenta?” Quem não vê ou ouve acha que há um enorme valor. “Significa autonomia. A primeira vez que vi um filme com audiodescrição, coloquei o DVD e não precisei pedir a ninguém que aces-

sasse o menu por mim. Depois de tantos anos, me senti gente”, diz. Christine Villa, responsável pela programação do CineSesc, afirma que não há previsão para tornar toda a programação do cinema acessível. “Nossa intenção é democratizar as sessões e o nosso espaço e tornarmos o festival totalmente acessível. O Sesc percebeu que existe uma demanda de público que necessita desses recursos. A edição de 2013 apresentou um aumento significativo desses espectadores. Ainda é complicado expandirmos o serviço para toda a programação. Mas entendemos o Festival Melhores Filmes como um primeiro passo.” Fora do eixo Rio-São Paulo, no entanto, a oferta de eventos culturais com recursos acessíveis é bem menor. É o caso de Fortaleza, segundo Vera Lúcia Santiago, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e em Linguística da Universidade Estadual do Ceará. Vera observa que a maioria dos produtores culturais não se preocupa em tornar seus produtos acessíveis, embora o Brasil disponha de profissionais altamente qualificados, que acabam encontrando dificul-

dade em conseguir trabalho e migrando para outras profissões. “Já formei muitos alunos comprometidos com a audiodescrição, com a pesquisa e a acessibilidade. Fiz várias ações aqui no teatro, no cinema, no DVD, em exposições, espetáculos de dança. Os produtores se sensibilizaram, mas agora não querem pagar pelo serviço”, critica. “Uma maneira de resolver isso seria o governo colocar como contrapartida dos financiamentos de projetos culturais que os agraciados em editais tornassem seus produtos acessíveis”, sugere a professora. Na opinião de Eduardo Cardoso, do Núcleo Interdisciplinar para Cultura Acessível da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), falta uma efetiva implementação das políticas públicas de inclusão existentes, já que o Brasil tem uma enorme legislação a respeito da acessibilidade. “Especificamente no caso das políticas de cultura acessível, a gente tem algumas iniciativas, mas há muito a ser feito ainda, principalmente no que se refere à maneira que serão postas em prática. É através de políticas que a gente começa a planejar o que é possível, viável e esperado.” REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

Todos por um Projetos inspirados no conceito de Cultura Viva se multiplicam pelo continente

FOTOS ROGÉRIO REIS/TYBA/RBA

Por Carla Santos

BEM EQUIPADO O ponto de cultura Aos Pés do Santa Marta, no Rio, tem escola de música com direito a bateria infantil. O projeto atinge 4.800 moradores

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CULTURA

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Além da Frente, foi criada uma rede de gestores, composta inicialmente de 47 representantes governamentais de 20 cidades, dez países e cinco ministérios. Essa rede aprovou uma plataforma de ação, definindo responsabilidades a serem executadas nos próximos anos. Para Lula Martinez Cornejo, autora da Lei Cultura Viva aprovada na cidade de Lima (Peru), o encontro mostrou que existem, além de processos e organizações de cultura, servidores públicos que estão assumindo, entre as tarefas de Estado. “Isso representa um trabalho de fortalecimento de coletivos culturais e a promoção da legislação de Cultura Viva como uma política de Estado.” Para entender o que é Cultura Viva é preciso perguntar: quem faz cultura? “As

tido, todo espaço coletivo que expresse potência criativa e afetiva pode ser considerado um ponto de cultura. Segundo o historiador Célio Turino, idealizador do Cultura Viva durante a gestão de Gilberto Gil (2003-2007) no Ministério da Cultura no governo Lula, não se trata mais de um programa, mas de um conceito que tem ganhado adesão pelo mundo. “Cultura Viva é a potência da energia criadora do povo. É uma política pública que se estrutura a partir dos pontos de cultura e que, na América Latina, incorporou o comunitário – que é a fixação do Cultura Viva em um território, seja ele físico ou mesmo virtual, a partir de comunidades com o mesmo interesse”, define. Na prática, isso se traduz em programas

CARLA SANTOS

ultura Viva é a revolução do século 21.” A frase de Ivan Nogales, diretor boliviano do Teatro Trono-Compa e coordenador do 1o Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária, realizado em maio em La Paz, dá a dimensão que o programa Cultura Viva – uma invenção brasileira – tem hoje para a América Latina. “Já não somos apenas o ruído, a ressonância e o apoio estético dos grandes movimentos sociais. Somos também atores de um movimento próprio de transformação social: nós por nós mesmos e um apoiando o outro”, define Nogales. Construído sem o patrocínio de governos, o congresso reuniu gente de 17 países, dos 35 que compõem o continente, e 1.500 “artivistas” de diferentes faixas etárias e redes culturais. Entre as resoluções, a Declaração de La Paz teve como principal mensagem a defesa da destinação de 1% dos orçamentos dos países para suas respectivas pastas de Cultura – sendo pelo menos 10% desse orçamento endereçado ao Cultura Viva Comunitária. “O mais importante é que foi criado um conselho executivo para encaminhar o plano de trabalho aprovado”, informa Eduardo Balan, idealizador do encontro e membro do Pueblo Hace Cultura (Argentina). O palhaço Brian, 17 anos, membro da Corporación La Tartana, de Itaguí (Colômbia), viajou nove dias para chegar ao congresso. Mesmo sendo muito jovem, ele não escapou do sorochi – o mal-estar que acama visitantes mais sensíveis aos mais de 3.600 metros de altitude da capital boliviana. “Tudo isso não pesa tanto quanto vale estar aqui e sentir todos juntos revolucionando a cultura latino-americana”, conta. O espírito “revolucionário” contagiou gestores e parlamentares presentes ao evento. “O congresso foi fogo em barril de pólvora e vai dar um desdobramento fantástico, porque o grande objetivo foi integrar, e integrar para sempre”, afirma a deputada federal brasileira Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que coordena junto com Glória Flores, senadora colombiana do Parlamento Andino, a Frente Parlamentar Latino-Americana de Cultura Viva Comunitária lançada no Congresso.

NOVOS HORIZONTES Amaury, do Morro Santa Marta: “Eu não conhecia Bossa Nova nem MPB, só funk e pagode”

pessoas acham que o artista é uma qualidade especial de ser humano. Mas, na verdade, cada ser humano é uma qualidade especial de artista”, responde o coordenador do Laboratório de Políticas Culturais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alexandre Santini. Isso quer dizer que todos fazemos cultura? Exatamente. Mas como? Segundo o conceito de Cultura Viva, cultura é tudo, daí o desafio de compreender a dimensão que esse conceito representa. Nesse sen-

que buscam reconhecer com dignidade diversos coletivos populares – muitos até então marginalizados, discriminados ou estigmatizados – como pontos de cultura, o que significa também apoiá-lo com recursos do Estado. No Brasil, segundo dados de 2010 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa Cultura Viva envolveu 5 mil iniciativas, desenvolvidas por 3 mil pontos de cultura, que atingiram 8,4 milhões de pessoas em 1.100 municípios. REVISTA DO BRASIL

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CULTURA FOTOS MÍDIA NINJA/CC

CULTURA É TUDO Santini: “Cada ser humano é uma qualidade especial de artista”

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conta Amaury, que já tocou prossionalmente e hoje se dedica aos estudos de fotografia e ainda atua como figurinista num grupo de teatro. “Nossos sonhos são, sim, possíveis de serem realizados, os meus estão sendo. Mas precisa correr atrás.”

De baixo para cima

“Como historiador, não vejo nenhum outro programa de baixo para cima que incorpore os conceitos Estado-rede, do Manuel Castells, e de Estado ampliado, do (Antonio) Gramsci, na escala em que nós implantamos o Cultura Viva no Brasil. Agora está tendo um refluxo. O MinC fala em 3 mil, mas hoje deve haver no máximo mil pontos recebendo recursos”, lamenta Turino. “A expansão dos pontos foi desacelerada nos últimos anos”, admite Pedro Vasconcellos, diretor da Secretaria de Cidadania e da Diversidade Cultural, área responsável pela gestão do programa dentro do MinC. “O programa Cultura Viva encontrou problemas na sua execução, gerando dificuldades para o MinC e especialmente para os pontos de cultura. Diante desse cenário, desde 2010, mais especialmente, estamos buscando soluções. Alguns caminhos foram validados ao longo do tempo, outros sofreram questionamento dos órgãos de controle e estão sendo reelaborados”. Uma saída para o impasse se dará com a aprovação do projeto de lei que institui a Política Nacional de Cultura Viva (PL

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O MinC paga R$ 60 mil por ano, durante três anos – cada repasse é dividido em 12 parcelas mensais de R$ 5 mil – aos pontos de cultura selecionados em editais. A gestão dos recursos é compartilhada entre as organizações e o Estado. O valor deve ser usado apenas para compra de equipamentos e pagamentos de despesas com obras ou ações culturais desenvolvidas pelos pontos. “Dentro de uma comunidade, o Morro Santa Marta, por exemplo, existe muito resquício daquela coisa do bandido. Então, quando a gente se tornou ponto de cultura, as pessoas disseram: ‘Ah, o ponto de cultura ganha R$ 60 mil’. O que é R$ 60 mil? Não é nada. A pessoa vê você comprando os instrumentos e acha que você está ganhando dinheiro, mas não, você está ganhando os instrumentos”, afirma o músico Robespierre Avila, coordenador do ponto de cultura Aos Pés do Santa Marta, no Rio de Janeiro, e diretor-presidente da ONG Atitude Social, à qual o ponto está vinculado. O projeto nascido em 2003 conta hoje com uma escola de música e uma ilha de edição audiovisual. Cerca de 4.800 moradores de uma das favelas mais famosas do Rio são alcançados pelas atividades. Amaury Lima, de 16 anos, participa do Aos Pés do Santa Marta desde os 10. Aprendeu a tocar violão, guitarra, percussão e bateria. “Eu não conhecia Bossa Nova, não conhecia MPB. O ponto de cultura abriu minha cabeça, mudou minha visão, me fez conhecer novas possibilidades”,

757, de 2011). Depois de ser aprovado pelas comissões de Cultura e de Finanças, o PL agora vai para a Comissão de Constituição e Justiça, concluindo a tramitação na Câmara e seguindo para o Senado. “Se o Senado não fizer nenhuma alteração, o PL não voltará para a Câmara e seguirá para a presidenta assinar. Depois de sancionado, Dilma terá 180 dias para regulamentar o projeto”, informa Marcelo das Histórias, do Ponto de Cultura Nina Griô, formado por educadores, contadores de histórias, músicos, atores, artistas visuais, em Campinas (SP). A expectativa é aprová-lo até outubro. Em meio ao cenário de incertezas, as experiências que resistem são um alento para o programa. “Não vamos espe-


CULTURA

UN TAL BETTÍM/FLICKR/CC

CONGRESSO Atores de um movimento próprio de transformação social: “Nós por nós mesmos e um apoiando o outro”

DO POVO Ivan Nogales e Célio Turino (dir.): “Cultura Viva é a potência da energia criadora do povo. É uma política pública que se estrutura a partir dos pontos de cultura”

rar a atual gestão, nós temos de efetivamente trabalhar com a auto-organização, formas de certificação e reconhecimento desses saberes. Eu entendo todas as universidades públicas latino-americanas como gestoras dessa política”, defende a diretora da Escola de Comunicação da UFRJ e coordenadora do Pontão de Cultura da universidade, Ivana Bentes.

Diversidade

A criatura já superou o criador quando o tema é Lei Cultura Viva. Se no Brasil o PL ainda é um sonho no plano nacional,

ele já é uma realidade em níveis locais nas cidades de Lima (Peru), Bogotá, Medellín, Cali (Colômbia), Buenos Aires (Argentina) e Cartago (Costa Rica). “O programa impulsionado pelo município de Lima e o programa Pontos de Cultura, implementado pelo Ministério da Cultura no Brasil, coincidem em trabalhar para ampliar o acesso à diversidade cultural como um direito à cidadania, para dar visibilidade aos êxitos e conhecimentos provocados pelas organizações e para construir uma relação dialógica entre o Estado e a sociedade civil”, explica a co-

ordenadora de Projetos e Gestão Cultural do Ministério da Cultura do Peru, Paloma Carpio Valdeavellano. Desde agosto de 2012 foram reconhecidos 87 pontos de cultura, para os quais o governo peruano oferece oportunidades de financiamento, capacitação, sistematização de experiências e intercâmbios. Segundo Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura Cidadã de Medellín, apenas em 2013 o orçamento da cidade destinou o correspondente a US$ 470 mil para o Cultura Viva. Não há números oficiais sobre os pontos ativos. “Com certeza há pelo menos 35, mas o número pode ser dez vezes maior, uma vez que cerca de 300 organizações participaram do processo de aprovação da lei em 2010”, atesta. Um dos pioneiros na execução do programa na região, Melguizo discute a autoria brasileira sobre a política: “O Cultura Viva Comunitária não é um modelo made in Brasil, e sim um experimento coletivo na América Latina”. Ciente desse debate, o brasileiro Vasconcellos, do MinC, avalia: “O êxito desse evento é que finalmente o Brasil não está mais de costas para os seus vizinhos. Então, pode-se dizer que o encontro da Bolívia é um marco nessas relações de cooperação internacional”. Ao se espalhar pela América Latina, o Cultura Viva dá novo fôlego para o programa no país. Bem ao estilo tupiniquim “distraídos venceremos”, como dizia o poeta curitibano Paulo Leminski. REVISTA DO BRASIL

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Mil retratos em um Já escrevi poesia Falando em mulher faceira Que anda de saia curta Desfilando a rua inteira Agora faço um cordel Falando o que vi na feira Caxingó, cordelista da Feira de Caruaru, PE

Por Arthur Maciel. Fotos de Jesus Carlos 40

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Museu do Cordel é apenas uma das maiores bibliotecas do gênero e fica mais ou menos no meio do passeio, no meio do agreste. Os títulos, cerca de 10 mil, estão ali, desfilando uma profusão de versos e prosas com sotaque e almas sertanejas. “Chapas” originais, esculpidas em madeira de xilogravura, estão ali para provar que a obra é fresca. O Valor Que o Peido Tem, História da Donzela Teodora, O Casamento do Boiola, 2 Burros Discutindo Política, A Alma Pantariosa (e


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uma resposta bem dada), O Cordel e a Métrica, Pinochet no Inferno Recebido por Hitler, A Chegada de Lampião no Inferno, Almanaque dos Cornos, A Palestra das 3 Donzelas, O Sertão de Alma Lavada. E por aí vai. É só escolher: R$ 1. E mais, Antônio Teodoro dos Santos (O Poeta Garimpeiro), Lampião, o Rei do Cangaço, Amores e Façanhas. Opa, este é R$ 3. Os autores também são muitos. Entre eles, Olegário Fernandes, criador do museu, Maria Betânia, sua filha, Caxiado e Abaeté, José Pacheco, J. Borges, mestre maior da xilogravura, Leandro Gomes de Barros, paraibano que datou em 1865 a primeira edição. E Onildo Almeida, o cordelista que escreveu a música, gravada por Luiz Gonzaga em 1957, e tornada hino do lugar. E segue o baião:

A feira de Caruaru Faz gosto a gente ver De tudo que há no mundo Nela tem pra vender Na feira de Caruaru Tem massa de mandioca Batata assada, tem ovo cru Banana, laranja e manga Batata-doce, queijo e caju Cenoura, jabuticaba, guiné Galinha, pato e peru Tem bode, carneiro e porco E se duvidar inté cururu Tem cesto, balaio, corda Tamanco, greia, tem tatu Tem fumo, tem tabaqueiro Tem peixeira e tem boi zebu Caneco, alcoviteiro, peneira Broa e mel de uruçu Tem calça de alvorada Que é pra matuto não andá nu

O Museu do Cordel é apenas uma das centenas de pontos de parada possíveis da Feira de Caruaru. A cidade, a 130 quilômetros de Recife, conhecida como Capital do Agreste e dona do maior forró do mundo (que nenhum paraibano de Campina Grande nos ouça), não tem parada para sua grandeza: tem de ostentar também a maior feira a céu aberto do planeta, declarada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como patrimônio imaterial do Brasil. A feira é lugar de artista. E também de abacates, graviolas, peras, ramos de coentro e cebolinha, pés de alface. Laranja, vermelho, verde, amarelo, cores suculentas de terra lavada, dispostas em bancadas. Vendedoras de tantas cores, agriculturas de tantas sementes, velhos e velhas observadores calados, fumo de REVISTA DO BRASIL

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Cordelista Jénerson Alves, no Museu do Cordel Olegário Fernandes

rolo, gengibre, jurubeba. Mercado, carne, grãos, processados e a granel. Panelas, alumínio, ferro e barro. Passarela de becos, carros carregados em de mão, transportadores de compras manuais, carrinhos inteligentes. São 20 mil bancas, milhares de rostos. Tem importados? Tem. E vestuário? E como. A cidade, um dos maiores polos de produção têxtil do país, vende ali boa parte de sua arte. Raízes, ervas, plantas e flores. Tem troca-troca, também. Ferra-

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gens. É a praia dos interiores. E democrática. Do lavrador ao senhor de engenho que toma caldo de cana e come uma galinha, um bode, guisado, cozido, um pirão, ou macaxeira. Um festival de cores e sabores, de desejos e ofertas. E trabalho para mais de 100 mil pessoas o ano inteiro, de segunda a sábado, das 8h às 17h. Peças de barro, grandes e miúdas, bonecos que retratam as bandas de pífano, os trios de forrozeiros, morenas rendei-

ras, mulatas do cotidiano. Artesanato em couro, sandálias, chapéus, cintos, botas, carteiras, casacos, gibão e selas. Tapeçaria, rendas pra vestir o corpo, pra fazer a cama e a mesa, artefatos de madeira. Caminhos das lojas de artesanato, espalhadas entre corredores que parecem sem fim, um labirinto de arte em toda parte. A feira pulsa, de domingo a domingo, com dias específicos para a sulanca, para os produtos eletrônicos, a chamada Feira do Paraguai, para as verduras, as carnes,


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cada dia um movimento diferente e novo, embora todas as peças estejam todos os dias presentes. No meio disso tudo tem muita gente, indo e vindo de todos os cantos, carro de mão, bicicleta, motoqueiro. Coração de Caruaru. A história do seu surgimento confunde-se com a da cidade. Estima-se que surgiu há cerca de 200 anos, como ponto de parada de vaqueiros, que levavam gado do interior para Recife, e de mascates, que no sentido inverso

carregavam produtos que chegavam do mundo à capital, pelo porto, direto para o interior. É o epicentro da cidade, de onde tudo parte, de onde tudo se origina, os bares, as ruas, as avenidas, os prédios, os centros comerciais, empresariais, as casas, os conjuntos habitacionais, as rodovias. Em 1992 foi transferida do Largo da Igreja da Conceição, onde se formou originalmente, para o Parque 18 de Maio, também no centro da cidade.

Quanto mais efervesce, mais Caruaru cresce. Trezentos mil moradores, outros tantos visitantes, passageiros e viajantes, comerciantes e negociantes. Gente de Belo Jardim, Pesqueira, Sertânia, Garanhuns, Bonito, Triunfo, Ingazeira, Floresta, Santa Maria da Boa Vista, Gravatá. Da Paraíba, do Ceará, de São Paulo, do Rio de Janeiro, da Argentina. De todo canto, quem vê a feira conhece mil retratos em um, do Nordeste. Do Brasil.

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CIÊNCIA

Abracadabra

eletrônico Entusiastas das teorias da conspiração, não olhem agora: os algoritmos estão dominando o mundo Por Paulo Nogueira 44

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ocê vai conhecer os algoritmos tão bem quanto a mãe deles. Perdão, o pai: Al Khwarizami, matemático que no século 9 criou o primeiro algoritmo, palavra que é uma corruptela do nome desse erudito persa. Grosso modo, um algoritmo é uma sequência finita de instruções bem definidas e não ambíguas, em que cada uma pode ser executada mecanicamente

num período de tempo finito e com uma quantidade de esforço finita. Hein? Um software, por exemplo, é essencialmente um algoritmo que dita ao computador os passos específicos e a ordem em que devem ser executados – para, digamos, calcular as notas que serão impressas nos boletins dos alunos de uma escola. Singelo, não? E também tentacular. O que mudou desde os tempos de Al Khwarizami­é o que os algoritmos estão


CIÊNCIA

fazendo agora: tudo. Acumulam mais informação do que qualquer ser humano seria capaz e estabelecem relações que nenhum de nós vislumbraria. As desvantagens só começam a despontar. Tudo aconteceu quando o algoritmo encontrou o computador. Foi amor à primeira vista. Vejamos: neste preciso instante, milhões de pessoas estão realizando uma busca no Google. Um algoritmo vai determinar o que elas veem, como um porteiro para a internet. Outro vai selecionar que anúncios publicitários acompanharão os resultados da pesquisa (na web tampouco há almoços grátis). Vão anotando: algoritmos decidem o que encomendamos na Amazon (ou no Peixe Urbano), que filmes nos são sugeri-

dos no Netflix, quais músicas ouviremos na Rádio Pandora. Por isso, vira e mexe os jornais peroram contra a influência insidiosa dos algoritmos, como se eles fossem um vodu informático que obriga os websites a vigiar cada internauta. Ou seja, um software que espia nossos e-mails e informa ao Facebook o tipo de propaganda que nos deve ser impingida. Não é bem assim: é pior. Muitos dos alertas da mídia hoje partem de... algoritmos. Assim, a Narrative Science é uma empresa que, sem um único jornalista ou repórter, produz noticiários montados a partir de dados recolhidos na internet pelos algoritmos. Na revista Forbes, por exemplo, muitas matérias já são assinadas “by Narrative Science”. Kristian Hammond, o criador do treco, prevê: “Dentro de 15 anos, 90% dos textos da imprensa serão escritos por computadores”. Outro caso concreto: na madrugada de 3 de fevereiro passado, a edição on-line do Los Angeles Times publicou um artigo sobre “um terremoto de magnitude 3.2 (...)”. O texto, gramaticalmente impecável, foi escrito quando todos os jornalistas dormiam o sono dos justos. Um algoritmo deu um pulinho ao Instituto Geológico dos Estados Unidos, recolheu os números e dados necessários, refogou as frases e apertou em “enviar”. Simples assim. Os algoritmos também determinam as rotas dos trens do metrô – incluindo o paulistano e o carioca. Ou quanta gasolina o piloto de Fórmula 1 terá de botar no tanque para não exceder no peso e poder ser um milésimo de segundo mais rápido a cada volta, e em quais e quantas voltas terá de parar para trocar os pneus – se a conta estiver errada, não é o algoritmo, mas o carro que precisa ser calibrado, ou o piloto. Como diz Simon Willians, dono da empresa de dados digitais QuantumBlack, que trabalha para as escuderias: “As menores contingências ditam vitória ou derrota”.

Mas tem mais

Muito mais. Até o amor já entrou na dança, naquela busca quimérica dos seres humanos para encontrar o Par Perfeito –

por sinal, o nome de um dos milhões de sites de encontros que usam algoritmos para escolher perfis compatíveis com o de cada cliente. Claro que prever comportamentos individuais é mais complexo. Mas, já este ano, o jornal Psychological Science in the Public Interest publicou artigo, assinado por vários psicólogos de renome, que analisa as alegações dos sites que esgrimem algoritmos para encontrar o amor da nossa vida. E a conclusão foi assombrosa: esses cupidos eletrônicos funcionam muito satisfatoriamente – desde que os dados fornecidos pelos clientes sejam genuínos. E, claro, descontada aquela história de que o amor tem razões que a própria razão desconhece. Se é melindroso predizer o que faz um ser humano arrastar um bonde pelo coração de outro, é bem mais fácil prognosticar o interesse por um partido político. Em 2008, numa das eleições mais acirradas dos Estados Unidos, a campanha de Barack Obama já desistira de converter eleitores republicanos. Mas os democratas indecisos eram outros quinhentos. Com um software de algoritmos chamado VoteBuilder, voluntários combinaram os registros de democratas com informação de marketing e demográfica. Quem era um crente praticante? Quem vivia em blocos de apartamentos? Quem tinha um nome hispânico? Quem incluía feijão em suas listas de compras? Todo dia, os voluntários recebiam por e-mail listas de possíveis democratas em cada cidade. O VoteBuilder funcionou às mil maravilhas, ao descobrir ambivalências úteis em eleitores que, de outro modo, poderiam ser negligenciados. Assim, havia eleitores que adoravam armas – mas também apoiavam o programa nacional de saúde gratuita. Ou abastados criacionistas que, por outro lado, defendiam o fechamento de Guantánamo. Se não fossem os algoritmos, milhares de votos teriam ido pelo ralo da rede convencional de proselitismo. Nas manifestações que convulsionaram o Brasil a partir da segunda semana de junho, os algoritmos também deram o ar de sua graça. Seguramente, a principal ferramenta para sensibilizar e mobilizar REVISTA DO BRASIL

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EM STRATA SUMMIT 2011, DE OREILLYMEDIA

CIÊNCIA

os ativistas foram as redes sociais – sobretudo o Facebook. Pesquisas recentes indicaram que 40% do tempo despendido pelo internauta no FB recai no Feed de Notícias, e apenas 12% nos perfis individuais. Ora, é precisamente um algoritmo – batizado de Edge Rank – que seleciona quais posts serão exibidos no Feed de Notícias e quais serão excluídos. Ele calcula e determina o que pode bombar as discussões, e o que é “irrelevante”. Assim, é um algoritmo que decide o que interessa saber, como acessar essa informação, e como participar de debates políticos e sociais. No Brasil, a partir de junho o Edge Rank começou a destacar posts que contivessem a expressão “não é por 20 centavos, é por direitos”. Nos últimos anos, floresceu em Square Mile, às margens do Rio Tâmisa, aquilo que os londrinos gostam de chamar de seu Vale do Silício (o enclave californiano onde brotaram os colossos da eletrônica e da informática, como a Apple e a Microsoft). Ali estão armazenadas linhas secretas de códigos que valem bilhões de libras. Há uma década, o comércio informático ainda era uma excentricidade. Hoje, um terço de todos os negócios realizados na City de Londres (o coração empresarial da Inglaterra) é executado automaticamente por algoritmos – e, em Nova York, nada menos que a metade. Tais códigos podem informar, por exemplo, que menos pessoas estão com46

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MÍDIA ROBÓTICA Kristian Hammond criou algoritmos capazes de “produzir” textos noticiosos a partir de dados disponíveis na internet: “Dentro de 15 anos, 90% dos textos da imprensa serão escritos por computadores”

prando banana e muitas estão comprando gás; portanto, você deve comprar aço. Não importa se você não entende o motivo: compre, compre, compre! Em nanossegundos, o negócio está selado e o mercado se move. Se a coisa der certo, você passou na frente de um mundaréu de gente e maximizou os lucros. Se a vaca for para o brejo, também terá se estrepado muito mais depressa que no passado recente. Uma das áreas em que os algoritmos mais deitam e rolam é o cinema. Cada vez mais, dados estatísticos fazem gato e sapato de roteiros e produções de primeira linha. A Worldwide Motion Picture Group é uma empresa de Hollywood. A Epagogix é outra, só que baseada em Londres. Quando qualquer delas recebe uma incumbência de um estúdio, a primeira coisa é quantificar milhares de fatores do roteiro. Há um vilão perfeitamente claro? Quanta empatia o mocinho suscita? A mocinha estabelece alquimia com o herói? A combinação desses fatores é comparada com combinações semelhantes de outros filmes que bombaram nas bilheterias. O último cálculo revela o lucro provável

do projeto em causa. Enfim, nasceu uma espécie de Frankenstein eletrônico: um algoritmo que julga o valor – ou ao menos os dividendos – da arte. Assustador? Animador? Uma coisa é certa: a fórmula tende a apostar no mais do mesmo. Depois não podemos nos queixar de que já vimos esse filme... Às vezes, há tiros no próprio pé. Este ano, uma empresa americana (Solid Gold Bomb) se interessou pelo slogan britânico durante a 2ª Guerra Mundial, Keep Calm and Carry On (Mantenha a Calma e Siga em Frente) – que virou um meme viral nas redes sociais. Usaram um programa de algoritmos que manipulava centenas de milhares de palavras para parafrasear aquele slogan – e imprimiram os resultados em camisetas postas à venda na Amazon. O negócio provocou um escândalo que encolerizou o primeiro-ministro inglês David Cameron. A Solid Gold Bomb não previu que, entre as combinações aleatórias de palavras, surgissem nas camisetas (também para crianças) slogans como “Mantenha a Calma e Estupre”, ou “Mantenha a Calma e Boline”. As camisetas foram recolhidas, com prejuízos fenomenais. Todo dia floresce um novo negócio baseado em algoritmos – já se tornaram tão comuns que ninguém realça o fato. Também este ano, a Target, um empresa de marketing, usou seu software para rastrear clientes por meio dos hábitos de consumo – e assim enviar cupons para potenciais fregueses. E enviaram cupons de fraldas para uma adolescente londrina, cujo pai ficou uma onça e apresentou uma queixa oficial. Um pouco mais tarde, porém, ele telefonou para a Target e pediu desculpas: “Acontece que houve algumas atividades aqui em casa que eu até agora desconhecia. Vou virar avô, e a minha filha vai mesmo precisar dessas fraldas”. Parece até que os algoritmos têm dons oraculares. No romance Deuses sem Homens, do britânico Hari Kunzru, que acaba de ser publicado no Brasil, o protagonista é um físico que trabalha para uma corretora de Wall Street, e desenvolve um algoritmo “para revelar o rosto de Deus”. Realmente, era só o que faltava.


curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Fotografia social

Prisão de travesti, SP, 1980

Garimpo de ouro em Serra Pelada, PA, 1980

Repressão à greve dos bancários, SP, 1979

FOTOS DE JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM

Manifestação do Movimento contra a Carestia na Praça da Sé, SP, 1978

Boa parte das fotos de Juca Martins compõe o que se pode chamar de denúncias visuais contra diversos tipos de violência social: exclusão, pobreza, guerras, opressão, exploração etc. Mais que cenas chocantes, Juca capta a dignidade das pessoas mesmo nas situações mais adversas. Testemunha Ocular: Fotografias de Juca Martins, em cartaz até 21 de setembro na Casa da Imagem, em São Paulo, reúne diferentes trabalhos que mostram toda a simplicidade do povo brasileiro, coberturas das guerras de El Salvador e do Líbano e os trabalhadores do garimpo de Serra Pelada. Destaque para as imagens das greves de metalúrgicos e bancários durante a ditadura e dos movimentos pela anistia. De terça a domingo, das 9h às 17h, na Rua Roberto Simonsen, 136-B, Centro. Tel.: (11) 3241-4238. Grátis.

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CURTAESSADICA

Romântica, sim, senhor! Com voz levemente rouca, pegada sessentista e letras em português, francês e inglês, a carioca radicada em São Paulo Bárbara Eugênia lançou seu segundo disco. É o Que Temos traz 11 faixas com fortes toques de Jovem Guarda misturados com samba-canção e uma boa pitada de rock. Porque Brigamos, clássico brega de Neil Diamond que virou hit na versão de Diana, em 1972, ganha uma dose extra de dramaticidade, mas mantém as cores em sépia da versão original, mesmo com a modernosa guitarra distorcida. Jusqu’à la Mort tem cara de Françoise Hardy e o country Ugabuga Feelings remete ao sensual cheiro de dendê. O disco foi produzido por Edgard Scandurra (cuja guitarra é marcante no álbum todo) e Clayton Martin. Tatá Aeroplano participa na música Não Tenho Medo da Chuva e Não Fico Só e Pélico divide com Bárbara a autoria e os vocais de Roupa Suja. As músicas podem ser ouvidas no www.barbaraeugenia.com ou no CD, que custa em média R$ 30.

Liberdade, liberdade

Três amigos inseparáveis decidem fugir do Instituto Madre Tereza para tentar realizar seus sonhos: Stalone (Ariel Goldenberg) quer ver o mar, Aninha (Rita Pokk) deseja se casar e Márcio (Breno Viola) quer voar. Pelo caminho, se metem nas mais variadas trapalhadas. Colegas, de Marcelo Galvão, é uma homenagem ao cinema (está repleto de frases célebres de filmes) e uma bela demonstração do que pessoas com síndrome de Down são capazes de fazer. A história toda é contada do ingênuo ponto de vista dos três atores, que, mesmo tendo o distúrbio genético, são iguais a todo mundo quando se trata de “ânsia pela liberdade”. Mesmo com a narração melosa de Lima Duarte, o longa-metragem recentemente lançado em DVD é emocionante e engraçado, sem a pretensão de ser uma obra de arte. 48

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O erotismo de Isabel

A obra da escritora chilena Isabel Allende é repleta de sensualidade: amores proibidos, desejos secretos, traições, entregas intensas, abusos violentos. Por isso, seus editores tiveram a ideia de reunir em uma coletânea as melhores cenas de amor de todos os seus livros. De inédito, Amor (Ed. Bertrand, 240 pág.) tem a introdução, na qual Isabel faz uma espécie de desabafo sobre a sexualidade em sua vida, e as aberturas de cada capítulo, em que ela explica a escolha dos trechos. Picante e saborosa, essa compilação pode ser degustada tanto texto a texto, vagarosamente, como de uma tacada só. R$ 29.


O lugar do grafite Varal, Beijo, Jacaré (que ilustra a capa do livro), Boca com Alfinete e a popular Rainha do Frango Assado: sofisticação e repertório infantil

Nas décadas de 1970 e 1980, botas, luvas, jacarés, mágicos e telefones se multiplicavam pelos muros de São Paulo. Seu autor, Alex Vallauri, é considerado um dos pioneiros da arte de rua no Brasil. São dele os desenhos do livro infantil Já Era Jacaré – Rolê pelo Graffiti de Alex Vallauri (Ed. Olhares, X pág.), da arte-educadora e autora de livros sobre arte para crianças Renata Sant’Anna. Os desenhos

do artista ganham vida em páginas que se desdobram em duas, três ou quatro, em composição com textos que mostram a importância do trabalho de Alex, além de desmistificar essa manifestação artística que colore os muros das cidades. Tudo isso com uma linguagem acessível e figurações que fazem parte do repertório infantil. R$ 39,90.

Brasilidade Cerca de 100 trabalhos do desenhista, gravador e ilustrador Glauco Rodrigues estão expostos

até 4 de agosto na Caixa Cultural Brasília. A mostra O Universo Gráfico de Glauco Rodrigues celebra os 50 anos de sua primeira exposição individual no Rio de Janeiro, em 1961. A retrospectiva traz obras gráficas, serigrafias, litografias, linoleogravuras e ilustrações que mostram toda a brasilidade do artista, conhecido por ter feito verdadeiras crônicas visuais do país. A exposição apresenta seis fases de sua carreira: Clube de Gravura de Bagé e Porto Alegre, a fase pop, tropicalista e antropofágica, as séries Rio de Janeiro e gaúcha e suas litografias com conteúdos críticos e políticos. De terça a domingo, das 9h às 21h, na Galeria Vitrine – SBS, Quadra 4, Lotes 3-4, em Brasília. Mais informações em www.universoglaucorodrigues.com.br. Grátis. REVISTA DO BRASIL

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MOUZAR BENEDITO

Sai Neymar, entra Victor Nhacanhá

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epois de muita conversa, se Neymar deveria ou não ir para o futebol europeu, ele foi. O pessoal que entende de futebol diz que aqui ele não teria chance de avançar, tornar-se o craque do ano, o melhor do mundo. Dizem que no Brasil ele atuaria ao lado de jogadores de nível mais baixo, e contra times mais fracos que os europeus. Claro. Se tudo quanto é craque brasileiro vai para a Europa, o futebol de lá fica melhor e o daqui fica pior. Mas não passa pela cabeça desse pessoal que esses craques deveriam estar jogando aqui, nos times brasileiros. Imagine se, em vez de exportar nossos melhores jogadores, tivéssemos aqui Lucas, Kaká, Robinho, David Luiz e mais dezenas de jogadores de alto nível que hoje estão na Europa. Seria ou não um campeonato invejável, com nível acima do espanhol? Ah... Mas aqui o estilo de jogo perdeu sua força, há esquemas ruins, afirmam. Claro, de novo! Abandonamos o estilo brasileiro, de futebol bonito, alegre e competitivo. Passamos a imitar times europeus, enquanto eles passaram a querer jogar como o Brasil de antes. Pelé, Garrincha, Nilton Santos, Didi, Zito, Clodoaldo, Gérson, Djalma Santos e muitos outros gênios do futebol não saíram do Brasil, e dava gosto assistir a um jogo quando não acontecia isso de qualquer sujeito que se destaca da média achar que tem de ir para a Europa. Aliás, isso me lembra uma época em que certas atrizes televisivas e modelos achavam que para ser aceitas como bonitas de verdade tinham de aparecer peladas na Playboy. Agora é assim: jogador de futebol só é craque se jogar na Europa. Com essas e outras, o futebol jogado aqui vai ficando bem mais feio e ruim. 50

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Será que vão sobrar aqui só os pernas de pau? Já prevejo o que vai acontecer. O campeonato brasileiro pode acabar virando uma disputa de peladas. Vou, então, contar aqui umas histórias de peladeiros, para a gente ir se acostumando com o porvir. Começo pelo Barroso, apelido dado por gozadores que o consideravam parecido com um sujeito que tinha esse sobrenome e era tido como o mais feio de sua cidade. O nosso Barroso é um rapaz calmo, nunca ligou para brincadeiras como essa, mas quando entrava no campo de futebol virava uma fera. Ele jogava na lateral direita, e um dia pegou pela frente um ponta-esquerda driblador e gozador. O sujeito ficou fazendo embaixada na frente dele, com a

intenção de lhe dar um chapéu, mas o Barroso não foi na bola. Foi direto na canela dele. E justificou: — Ele ficou petecando na minha frente... Petecou, eu quebro. Já o amigo Nicola tinha uma miopia fortíssima, não enxergava meio metro à frente sem óculos. E resolveu participar de uma pelada com a gente. Entrou no campo sem óculos. Mal tocava a bola; ela é que tocava nele de vez em quando. E, quando alguém se aproximava, ele perguntava: — Você é do meu time ou do adversário? E tinha o Eduardo. Esse teve um acidente em que bateu com a cabeça no chão e, depois de recuperado, ficou com um problema nos membros do lado esquerdo, controlados pelo lado direito do cérebro, atingido no acidente. Para andar, não tinha problema, mas para correr tinha. A mobilidade da sua perna esquerda era pequena. Então, durante os jogos, corria com a perna direita e andava com a esquerda. Era muito gozado. Para finalizar, tem meu amigo Victor Nhacanhá. Seus colegas de trabalho resolveram fazer um campeonato interno de futebol e, pelo seu porte, pinta de goleador, todas as equipes o queriam no ataque. Nunca o tinham visto jogar, mas acreditavam que era um craque. No dia do primeiro jogo, entrou em campo com chuteira nova, calção novo, tudo novo. Escalado como centroavante, ele chegou lá, onde a bola já o esperava, para dar início à partida. Pegou a “pelota”, olhou para ela com ar de curiosidade e, depois de alguns segundos de contemplação, gozador, ele disse, para desespero dos seus colegas de equipe: — Então, isso é que é bola?!


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D EÇO DE UMA AVESSIA. NÃO R OJETO T ENDER

tá ra quem es ia R a p P e O in g à a Ç ulto, im ravess FUNDA para um ad da Fundação Projeto T a. Além il c AJUDE A fá é o ã s as sn om as açõe minho de c dia nas rua Se o dia a do a vida. Contribua c reencontrarem o ca s um futuro melhor. a le só começan nças e adolescentes cê estará doando a e sia.org.br/doar.html o a v ri v , c o ra e ã .t es e ajud o e proteç d esse: www a c A id u c , o h de carin

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