Revista do Brasil nº 087

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ARAQUÉM ALCÂNTARA Fotografia da floresta e da biodiversidade brasileira

A FELICIDADE É ATIVA Jovens que participam da vida política são mais felizes

nº 87 setembro/2013 www.redebrasilatual.com.br

O financiamento privado de campanhas adoece a política. Pesquisas revelam que a população não quer dinheiro de empresas nas eleições

A BACTÉRIA DA CORRUPÇÃO


Jornalismo cidadão Reclamar com a presidenta da República a falta de diálogo com os movimentos sociais. Contribuir para que o cidadão encontre respostas que ajudem a superar o caos em suas cidades – seja na hora de votar, seja para cobrar quem elegeu. Identificar contradições no sistema político, econômico e tributário e caminhar para superar as desigualdades. Entender as angústias do torcedor que vê os templos do futebol serem transformados em itens de primeira classe. Enxergar a energia de uma juventude que cansou de ficar só na torcida e resolveu entrar em campo para virar o jogo. De grão em grão o país escreve uma nova história.

Quem acompanha a Rede Brasil Atual e a Revista do Brasil não se surpreende com as versões. Entende os fatos.

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ÍNDICE

EDITORIAL

10. Capa

O financiamento privado de campanhas precisa acabar

16. Transporte

Sujeira entre cartel e tucanos rompe décadas de blindagem

20. Comportamento O ativismo político faz bem ao mundo e a quem se mexe

24. Saúde

DANILO RAMOS/RBA

Um rastro de chumbo na vida da gente de Santo Amaro (BA)

30. Educação

Como formar trabalhadores que podem mudar o curso da história

Chapa quente: armações nas concorrências do Metrô paulistano são o novo tempero das ruas

34. Mundo

O mal pela raiz

Egito em ebulição e os espinhos de uma primavera sem flores

A

36. Perfil

Bradley Manning, o martírio de um anti-herói americano

38. Entrevista

Araquém Alcântara, flagrantes tristes e belos do Brasil

42. Música

JOÃO MARCOS ROSA/NITRO

Wilson Batista, muito além da rinha com Noel Rosa

44. Viagem

Na mineiríssima Serra da Canastra nasce o Velho Chico

Seções Destaques do mês Lalo Leal

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Curta essa dica

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Mauro Santayana

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metalúrgica Cintia da Silva Freire da Cruz e o estudante Wesley Mendes Souza, personagens de reportagens distintas desta edição, levam vidas diferentes, mas há muito em comum entre eles. Ela tem 27 anos, é profissional formada, opera um equipamento sofisticado e ascendeu em sua atividade por dedicação e competência. Ele, 17, é jovem aprendiz na área contábil de um hospital, abraça a oportunidade com dedicação e vê o mundo com competência. Boa profissional, Cintia frequenta ainda atividades de seu sindicato e é apaixonada pela militância. Acha que sindicato não é só “pra resolver seu problema”, mas uma ferramenta de solidariedade e de expressão coletiva. Esforçado, Wesley sente na pele o dissabor de consumir horas do dia para se deslocar de casa para o trabalho, para a escola. E se viu mais importante perante sua comunidade quando participou dos recentes protestos por melhores serviços públicos de transporte, saúde e educação. Nem todo mundo se organiza e vai à luta, como Cintia e Wesley, mas, como eles, grande parte da população depende de serviços públicos para ter alguma qualidade de vida. Só que nem sempre os governantes governam para ela. Se a maioria dos brasileiros é de trabalhadores, por que há mais deputados e senadores ligados a grandes empresas e corporações? Por que é preciso o povo sair às ruas e brigar para exigir o óbvio? Por que parte da gestão pública é manejada para atender a interesses de quem financia as campanhas eleitorais, e não de quem vota? É nessa discussão que a reportagem de capa mergulha em raízes da corrupção e da ausência do Estado na vida de quem mais precisa dele. E em que pese o esforço da nossa imprensa em fazer com que as pessoas abominem a política como se fosse ela, em si, a mãe da corrupção, o fato é que: 1) se alguém é corrompido no setor público – como no caso do sistema ferroviário no estado de São Paulo – é porque há alguém do capital privado corrompendo – caso do cartel do Metrô denunciado pela Siemens; e 2) a política, em vez de abominada, deve ser entendida como instrumento para mudar esse estado de coisas. Felizmente, parece crescer entre os brasileiros a percepção de que uma reforma política é essencial para melhorar o Brasil. A qualidade dos governantes e o aprimoramento da democracia passam pelo financiamento público de todo o sistema eleitoral. REVISTA DO BRASIL

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nós falamos a sua língua.

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Nicolau Soares, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa A partir de foto de Alexraths/Easyfotostock/Easypix Brasil Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


LALO LEAL

Os números não mentem

Pesquisa revela que não é a qualidade que define a audiência das TVs, mas a falta de opção. E que, apesar da propaganda contrária da imprensa, a maioria quer a democratização da mídia

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debate em torno da democratização da comunicação acaba de ganhar um reforço importante. Uma pesquisa sobre o tema promovida pela Fundação Perseu Abramo permite agora discutir o papel da mídia em cima de dados concretos. Sabia-se, por exemplo, que a TV aberta – apesar do avanço da internet – continuava sendo o meio mais utilizado pelos brasileiros para informação e entretenimento. Agora temos números: 94% fazem isso, 82% deles todos os dias. À frente da internet e dos jornais, empatados em 43%, está o rádio, com 79% (69,2% ouvem diariamente). Presente nas regiões mais remotas do país e nas grandes cidades, sua voz é ouvida por ribeirinhos na Amazônia e pelos motoristas presos nos congestionamentos urbanos, com uma força político-eleitoral que ainda está para ser medida. A pesquisa teve caráter nacional e ouviu 2.400 pessoas, com margem de erro que varia de dois a cinco pontos percentuais. Soube-se por ela que 57% dos brasileiros leem jornais, mas quase a metade (46,2%) só lê o do bairro ou da cidade em que mora. Muito atrás aparece o segundo jornal mais lido: o Extra, com 5,9%. Os jornalões – Folha de S.Paulo (4,5%), O Globo (3,1%) e O Estado de S. Paulo (3%), com leitores concentrados no Sudeste – revelam não ter a projeção nacional por eles apregoada. Entre as revistas o dado é preocupante: 76% leem esse tipo de publicação, dos quais 50,2%, a Veja. Conhecendo a linha editorial da revista fica clara a necessidade de uma alternativa capaz

de contrabalançar os efeitos negativos que ela causa à sociedade. Na internet, o Facebook (38,4%) e o Twitter (25,5%) são os preferidos dos brasileiros. Os portais de notícias – Globo (16,7%), UOL (12,6%), Terra (7,3%) – vêm depois: seis em cada dez entrevistados dizem buscar informações e notícias nesses sites, reforçando a convicção de que a internet é responsável pelo declínio dos jornais impressos. Quanto ao conteúdo, não há uma percepção de que os meios de comunicação, quando tratam de política e economia, defendam os interesses da população. Só 7,8% acreditam nisso. Os demais dizem que eles defendem os interesses dos próprios donos (34,9%), dos que têm mais dinheiro (31,5%) e dos políticos (20,6%). Em relação à TV, a pesquisa concretiza o que os estudiosos já inferiam. A maioria dos brasileiros (71,2%) não sabe que as emissoras de rádio e TV são concessões públicas. E quando passam a ser perguntados sobre o que veem na tela mostram uma clareza maior: 43% dizem não se ver representados na TV e 25% se consideram retratados negativamente. Grande parte avalia às vezes ou quase sempre como desrespeitoso o tratamento dado à mulher (64%), aos nordestinos (63%) e aos negros (66%) nos programas das emissoras. O remédio está na regulação dos meios. Os entrevistados concordaram com essa necessidade, mostrando que a campanha sistemática da mídia, comparando regulação à censura, surte pouco efeito. Deveria haver mais regras para o funcionamento das TVs para 71%. E na opinião de 77,2% deveriam ser estabelecidas e aplicadas por um órgão ou conselho representativo da sociedade, como ocorre em vários países democráticos. A maioria (entre 50,9% e 65,8%) se manifestou contra a veiculação de palavrões, a exposição gratuita do corpo da mulher, de imagens de cadáveres, de crueldade com animais, de nudez e sexo, violência e morte e de uso de drogas. Também se mostrou contrária a cenas de violência e de humilhação de gays e lésbicas, assim como ao humor que ridiculariza as pessoas. E mais: 88,1% não querem propaganda de bebida alcoólica na TV. São dados que não aparecem no Ibope e não têm nada a ver com audiência. A pesquisa revela como é enganosa a afirmação de que a TV mostra o que as pessoas querem ver. Veem, na verdade, por falta de opção ou para não deixar a casa silenciosa. REVISTA DO BRASIL

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redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

“Viemos para trabalhar e nos esforçar. Vamos tratar a todos com respeito, mas também queremos respeito”, afirmou a médica Yasiel Perez, ao desembarcar em Brasília, na companhia de outros 175 profissionais vindos de Cuba. A delegação foi rece-bida no aeroporto com alguns protestos e muita festa. Eles vêm com a missão de ajudar o programa Mais Médicos a chegar em lugares onde a população não tem atendimento. Seu ­colega ­Oscar Martinez disse esperar conquistar a população com o trabalho. “Todas as questões que surgem, no início estão sujeitas a críticas e compreendemos. As últimas palavras sobre nós e nosso trabalho, ditas daqui a um tempo, é que valerão de verdade”, acentuou. A vice-ministra de Saúde de Cuba, Marcia Cobas, afirmou no dia seguinte que os profissionais de seu país que participam de missões estrangeiras, incluindo o Brasil, o fazem por solidariedade e não por salários altos. “Cuba não mercantiliza e presta serviços gratuitos ao Haiti e a países da África. Temos mais de 700 profissionais no Haiti que trabalham de maneira solidária”, disse. http://bit.ly/rba_cubanos

BRUNO PERES/RBA

‘Viemos para ajudar’

Oscar Martinez: otimismo

FOTOS LUIZ CARVALHO/CUT

Ponto fora da curva Na primeira sessão para julgar recursos da Ação Penal 470, chamou atenção a postura do ministro Luís Roberto Barroso, que participava pela primeira vez do caso. Com declarações destoantes das mais divulgadas: para ele, o chamado mensalão não deve ser visto como o maior escândalo de todos os tempos na história do país - “e, sim, o mais investigado”. O magistrado não trata o caso como episódio isolado. “Ao contrário, ele se insere em uma tradição lamentável, que vem de longe”, observou. Antes de tomar posse, ele havia declarado que considerava o julgamento da AP 470 “um ponto fora da curva”, o que causou irritação no tribunal. Ainda para Barroso, a corrupção não pode ser partidarizada, “é um mal em si”. bit.ly/rdb_barroso

O projeto de lei sobre a terceirização, em momento de votação na Câmara, reuniu algumas centenas de manifestantes da CUT, que fizeram uma “vigília” na Comissão de Constituição e Justiça. As centrais são contra o PL nº 4.330 de 2004, que regulamenta a atividade. As negociações na comissão quadripartite (governo, empresários, trabalhadores e parlamentares) não avançaram. Mesmo uma nova proposta apresentada pelo relator do projeto foi criticada pelos representantes dos trabalhadores, que veem risco de uma terceirização sem limites. A pressão tem levado a sucessivos adiamentos da votação do projeto, enquanto se busca um texto aceitável por todas as partes. bit.ly/rdb_terceiriza 6

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Barroso: “Tradição lamentável”

CARLOS HUMBERTO/SCO/STF

Batalha no Congresso


No dia em que se lembravam os nove anos do assassinato de sete pessoas que dormiam nas proximidades da Praça da Sé, no coração da cidade de São Paulo, moradores de rua puderam falar, reclamar e dar sugestões a autoridades da capital. A cena se passou em agosto, com a presença do subprefeito e do secretário municipal de Direitos Humanos. Os dois ouviram, entre outras coisas, que “todo morador de rua tem um coração”. bit.ly/rdb_albergue

NELSON ANTOINE/FOTOARENA

Onde bate um coração

O combustível da cidade

Rosa Cardoso e Amelinha: “Ustra é condenado”

YARA LOPES/ALESP

Um aumento de R$ 0,50 no preço do litro da gasolina, destinado ao subsídio do sistema, causaria redução de R$ 1,20 no valor da tarifa de ônibus onde ela custa R$ 3. No caso de São Paulo, a redução beneficiaria 78% dos paulistanos, que usam o transporte público. Os dados, preliminares, constam de estudo feito pela Fundação Getulio Vargas a pedido da prefeitura. A pesquisa referese ao impacto da Contribuição de Intervenção Econômica sobre Combustíveis (Cide) no financiamento do transporte. A medida também levaria a uma redução do índice inflacionário. O aproveitamento da Cide para baratear as passagens de ônibus é defendido pela Frente Nacional de Prefeitos desde 2003. bit.ly/rdb_onibus

“Inaceitável”, diz Angela Maria Mendes de Almeida, ex-companheira do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto sob tortura no DOI-Codi, em 1971, sobre a forma com que o coronel da reserva Brilhante Ustra prestou depoimento à Comissão da Verdade, em maio. “Naquela audiência, não foi convidado ninguém torturado. Só o vereador Gilberto Natalini (PV) foi, mas sem ser convidado”, disse Angela durante audiência na Comissão da Verdade paulista. Também estava lá Maria Amélia Almeida Teles, que foi presa com o marido César e os filhos, de 5 e 4 anos – as crianças tiveram de ver os pais sendo torturados. Ela questionou o fato de Ustra ter sido tratado apenas como suspeito. “Ele é condenado em primeira e segunda instância.” bit.ly/rdb_ustra1 A coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, Rosa Cardoso, aceitou as críticas e prometeu trabalhar por nova audiência com Brilhante Ustra, em conjunto com a comissão paulista. bit.ly/rdb_ustra2

CESAR OGATA/PREFEITURA DE SÃO PAULO

As vítimas não falaram

Frente de prefeitos: passagens mais baratas

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MARCELO CAMARGO/ABR

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m 19 de agosto, a presidenta Dilma Rousseff deu entrevista exclusiva à Rádio Brasil Atual e à ABC AM. As duas emissoras foram selecionadas dentro de uma política do Planalto de expandir o contato com a imprensa regional. A presidenta falou dos pactos anunciados em junho, em resposta às manifestações de rua, e a respeito das negociações em curso com as centrais sindicais, especificamente sobre terceirização e fator previdenciário. Aos repórteres Marilu Cabañas, da RBA, e Leandro Amaral, da ABC AM, afirmou que o governo não aceita retrocessos. “Não concordamos com qualquer processo, e não vamos patrocinar qualquer processo, que comprometa direitos dos trabalhadores, que impactem a negociação coletiva ou que precarizem relações e condições de trabalho.” A íntegra da entrevista pode ser ouvida em: http://bit.ly/rba_entrevista_dilma Sobre a movimentação das centrais contra o Projeto de Lei nº 4.330 de 2004, que regulamenta a terceirização, a presidenta observou que o papel do Executivo, nesse caso, é fazer a mediação. “A avaliação do governo é de que há uma posição bem forte pró-terceirização dentro do Congresso. O governo não pode definir o que o Congresso aprova ou não. Chamamos uma mesa de negociação quadripartite. Buscamos o consenso possível”, comentou, referindo-se a um grupo que reúne representantes de trabalhadores e de empresários, além do Executivo e do Legislativo, para buscar um acordo sobre o tema antes de ser levado à votação neste mês de setembro. Segundo Dilma, o “consenso possível” busca “evitar derrotas que você não consegue depois controlar”. Ela lembrou que agora é possível, “a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal”, avaliar novamente e até derrubar os vetos da Presidência da República. E citou o caso do veto presidencial ao projeto que acaba com a multa adicional de 10% do FGTS em demissões sem justa causa. “É importante a compreensão de que é necessário construir um processo de negociação”, disse a presidenta, lembrando

Dilma defende direitos, e negociação Em entrevista à Rádio Brasil Atual, presidenta fala sobre os pactos anunciados após manifestações de rua e sobre as reuniões com as centrais sindicais que na mesa que discute a terceirização participam seis órgãos do Executivo: Ministério do Trabalho e Emprego, do Planejamento, da Fazenda, da Previdência, Secretaria-Geral da Presidência e Secretaria de Relações Institucionais. Em relação ao fator previdenciário, Dilma observou que é um tema da mesa permanente de negociação do governo com as centrais, criada em maio. Ela reafirmou a “disposição política do go-

verno de discutir todos os pontos, independentemente da dificuldade de conseguir o consenso”. “Afirmamos às centrais, e este é um princípio nosso, que não haverá por iniciativa do governo federal redução dos direitos dos trabalhadores. Não fomos nós que pautamos os 10% (do ­FGTS). Perdemos e vetamos.” Mas acrescentou que essa negociação pode ter limites. “Estou disposta a discutir qualquer proposta. Desde que qualquer proposta que não afete a sustentabilidade financeira da Previdência e não coloque em risco a aposentadoria dos trabalhadores.” No dia 21, dois após a entrevista, centrais e governo voltaram a se reunir para discutir a questão. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, estabeleceu prazo de 60 dias para uma possível definição sobre o tema. Ao comentar os chamados pactos propostos depois das manifestações, Dilma entende que eles estão “encaminhados em todos os seus pontos”. “Somos adeptos do diálogo e da parceria, em especial com o Congresso. E isso já deu frutos”, afirmou, referindo-se à aprovação de uma proposta do governo de destinação dos royalties do petróleo e dos recursos do fundo social do pré-sal para a área de educação. “Trata-se de pegar os recursos dos royalties e colocar naquilo que exigirá do país um grande esforço de investimento. O ambiente político que se criou após as manifestações ajudou muito.” Na saúde, a presidenta afirmou que o país tem 700 municípios sem nenhum médico e outros 1.900 com menos de um médico por 1.000 habitantes. Lembrou que o Programa Mais Médicos faz parte do pacto pela saúde. A prioridade é a contratação de médicos formados no Brasil, mas também serão utilizados profissionais formados no exterior. No primeiro mês do programa, aproximadamente 3.500 municípios se inscreveram, com demanda superior a 15 mil médicos – foram selecionados inicialmente 1.618. “É bom saber que vai ter seleção aberta todo mês, até que a gente consiga preencher todo o número (15 mil). Eu acredito que vamos ter nesses dois pactos uma boa resposta.”


TVT

Franklin Martins

Mídia Ninja

Novas mídias em movimento Primeira concessão de canal aberto para uma entidade de trabalhadores, emissora completa três anos. E celebra, em programa especial, experiências que renovam a pauta jornalística do país

A

TVT completou três anos no ar no último 23 de agosto e celebrou a data com um programa especial. A produção mostrou a comunicação progressista praticada pela TVT e por vários outros meios de comunicação. O canal é parceiro de pauta e conteúdos da Rede Brasil Atual, compondo um inovador projeto de comunicação liderado pelos sindicatos dos Metalúrgicos do ABC e dos Bancários de São Paulo e que reúne dezenas de entidades. De acordo com Valter Sanches, diretor de Comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e presidente da Fundação Sociedade Comunicação, Cultura e Trabalho, mantenedora da emissora, os trabalhadores são os construtores de uma nova comunicação no país. “O especial foi nossa homenagem a eles. Mostramos ainda como funciona o jornalismo colaborativo da TVT, que tem a participação dos cidadãos”, definiu Sanches. “O programa de aniversário foi apresentando como um show de reportagens e enalteceu diversas experiências de comunicação progressista”, disse a diretora de jornalismo da TVT, Nelma Salomão. Dividida em seis blocos, a produção mostra a atuação dos movimentos sociais na construção da comunicação, TVs e rádios comunitárias, a diversidade de opiniões e abordagens no mundo dos blogs,

ações de comunicação na periferia e as iniciativas de documentaristas independentes. Novas ferramentas de comunicação também foram destaque no especial, com apresentação de aplicativos da emissora, explicações sobre redes sociais e o papel desses instrumentos como forma de expressão e mobilização política e social. O colunista da Revista do Brasil Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e professor de Jornalismo da USP, relata experiências de comunicação progressista em outros países. Entre elas, uma comunidade indígena que vive no extremo sul da Argentina e transmite sua cultura por meio de um programa de rádio – o que só foi possível depois da aprovação do novo marco regulatório das comunicações no governo da presidenta Cristina Kirchner. “Nessa questão estamos bem atrasados no Brasil”, afirma a diretora de jornalismo Nelma Salomão. Participaram também do programa o ex-ministro da Secretaria de Comunicação do governo Lula, Franklin Martins; a coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, Rosane Bertotti; a ex-deputada e autora da lei que criou as rádios e TVs comunitárias no Brasil, Irma Passoni; o jornalista e professor da Universidade de Brasília Venício Lima; e o ativista cultural Sérgio Vaz, da Cooperifa, cooperativa que divulga cultura e faz comunicação progressista na periferia paulistana.

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profissionais trabalham na produção da programação própria da TVT

1.096

dias de transmissão, entre 23/8/2010 e 23/8/2013

3.900

reportagens exibidas no Seu Jornal, da TVT, desde 23 de agosto de 2010, envolvendo 8 mil entrevistas

19h às 20h30

é o horário de exibição dos programas produzidos diariamente pela equipe da TVT

Atrações

São sete os programas com produção própria da TVT: ABCD em Revista, Bom para Todos, Clique e Ligue, Melhor e Mais Justo, Memória e Contexto e Pra Você Ver. Há ainda o Seu Jornal, diário, ao vivo, das 19h às 19h30. A emissora retransmite ainda parte da programação da TV Brasil, de parceiros, como a TV Câmara, e produções independentes.

Onde ver

Canal 13 NET Digital: Grande S. Paulo Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br REVISTA DO BRASIL

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CAPA

Vendaval Dinheiro de grandes empresas na mão dos candidatos desequilibra a eleição, o Parlamento e influi nas decisões dos poderes. O caminho é o financiamento público Por Hylda Cavalcanti e Paulo Donizetti de Souza

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ções de pessoas jurídicas e físicas – legítimas e declaradas – deram conta de uma receita de R$ 9,2 milhões para eleger, em 2010, Demóstenes Torres, do DEM. Demóstenes foi também eleito “mosqueteiro da ética” no Congresso pela revista Veja, mas acabou flagrado nas operações Vegas e Monte Carlo, da Polícia Federal. Comprometido não necessariamente com interesses de seu estado, mas com os do chefe de organização criminosa Carlinhos Cachoeira – preso em 2012 –, o democrata foi cassado.

JOSÉ CRUZ/ABR

FÁBIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

ra uma vez um empresário que decidiu apoiar um candidato a senador. Fez as contas e concluiu que não lhe faria falta um aporte de R$ 700 mil no caixa da campanha para, na mais nobre das hipóteses, ajudar a eleger um homem comprometido com a defesa de Goiás no Senado. E ajudou. Ele, dois bancos, uma indústria de fertilizantes, algumas alimentícias, de bebidas, empreiteiras, uma fábrica de armamentos, gente do agronegócio, entre outras dezenas de contribui-

CASO CLÁSSICO Doação de R$ 700 mil de Wilder Morais, dono de construtora, ajudou a eleger Demóstenes, que acabou cassado. Suplente, Morais ficou com a cadeira

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FORÇAS OPOSTAS Protesto na Praça da Sé, em São Paulo, contra a corrupção

DANILO RAMOS/RBA

CAPA

Precavido de que seu estado não ficaria sem um representante à altura diante de circunstância desagradável como essa, o empresário Wilder Pedro de Morais, dono da Orca Construtora e daqueles R$ 700 mil do começo da história, era ele próprio o suplente de Demóstenes. E assumiu a cadeira desocupada em 11 de julho do ano passado. O episódio compõe uma rica ilustração da força do capital privado para colocar no poder pessoas que agem a seu serviço. Como a legislação permite doações indiscriminadas por parte de empresários de todas as áreas, para candidatos de todos os partidos, a todos os cargos eletivos, não é tarefa fácil mapear os políticos que são escolhidos para ser embaixadores dos doadores no interior da gestão pública. É que as empresas fazem doações para muitas campanhas, o que confunde e despista um mapeamento. Os dados das doações são públicos, estão no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas como saber o que passa nos planos da Carioca Christiani Nielsen Engenharia S/A quando ela ajuda candidatos tão díspares como o democrata Demóstenes (R$ 200 mil) e a petista Marta Suplicy (R$ 25 mil)? É legítimo empresas pleitearem vender produtos e serviços a órgãos públicos, ­assim como é legítimo que parlamentares proponham emendas ao orçamento de seu estado ou da União para direcionar recursos a obras em suas regiões. O problema é quando ambições particulares superam o interesse público. Por exemplo: se é verdade que propinas e superfaturamentos consumiam 30% dos contratos de R$ 30 bilhões entre um cartel de empresas de infraestrutura de transportes e o estado de São Paulo, o prejuízo é de R$ 9 bilhões aos cofres públicos. Dinheiro para construir 20 quilômetros de trilhos de metrô. Outra distorção grave proporcionada pelo envolvimento de grandes corporações nos financiamentos das campanhas é que acabam formando suas próprias “bancadas”, a despeito de qualquer composição partidária. Além de interferir em nomeações para postos-chave em órgãos e empresas públicos. Assim, acabam desfrutando de um poder invisível, muito maior que o determinado pelo desejo das urnas. REVISTA DO BRASIL

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CAPA

Por essa razão, entidades respeitáveis da sociedade defendem processos eleitorais custeados exclusivamente com recursos do Orçamento da União, e não mais por dinheiro privado. O chamado financiamento público é bandeira antiga de organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil, Movimento contra a Corrupção Eleitoral (MCCE), União Nacional dos Estudantes (UNE), Central Única dos Trabalhadores (CUT), bem como de setores dos partidos e de parte dos ministros do TSE. Levantamento feito pela Revista do Brasil no TSE mostra que as grandes empresas têm muita munição para esse tipo de investimento. As dez que mais doaram nas eleições brasileiras de 2002 até 2012 desembolsaram mais de R$ 1 bilhão para financiar campanhas no país inteiro. Fazem parte desse grupo cinco construtoras (Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, OAS, Queiroz Galvão e UTC Engenharia), três bancos (Itaú Unibanco, Bradesco e BMG), um frigorífico (JBS) e uma siderúrgica (Gerdau). Jorge Gerdau é eclético a ponto de, em 2010, ajudar com R$ 3 milhões a campanha do tucano José Serra à Presidência e com R$ 1,5 milhão a de Dilma – sem contar R$ 100 mil doados a Luciana Genro (Psol) na corrida à prefeitura de Porto Alegre, em 2008. Em São Paulo, por exemplo, não por acaso, as quatro construtoras que despontam na lista como principais patrocinadoras de candidaturas no país participaram do consórcio para a construção da linha 4 do metrô (a Linha Amarela). Já a OAS, além do consórcio, ganhou a concorrência para construção de dois lotes do Rodoanel. A Camargo Corrêa foi, conforme balanço do Ministério dos Transportes, a empresa que mais ganhou licitação para execução de obras de rodovias federais – no ano passado, da ordem de R$ 213 milhões. Não pairam sobre esses financiamentos denúncias ou acusações, mas o simples gesto de contribuir com campanhas é o bastante para estabelecer, entre empresas e o mundo político, um bom relacionamento. 12

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OAS/DIVULGAÇÃO

Por dentro da máquina

O comportamento das empresas doadoras é observado de diversas formas. Em alguns casos, as doações saem de um único lugar. Em outros, saem de diversas empresas de um mesmo grupo. O Bradesco, por exemplo, tem doações por meio do

Patrões e empregados Dos 513 deputados e 81 senadores brasileiros, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), 273 são empresários, donos ou sócios de algum estabelecimento comercial, industrial, de prestação de serviços, de fazenda ou indústria agropecuária. A bancada empresarial passou de 219, na eleição de 2006, para 273 integrantes em 2010. Os trabalhadores, por outro lado, têm representação inferior: na atual legislatura foram eleitos 72 parlamentares, que podem ser considerados da bancada sindical. Isso explica, por exemplo, dificuldades em relação ao Projeto de Lei nº 4.330, que regulamenta a terceirização, pendendo para o interesse das empresas.

Banco Alvorada, R$ 89,7 milhões entre 2002 e 2012. Já pelo Bankpar, outra subsidiária da mesma instituição financeira, o financiamento foi de R$ 18,3 milhões e, pela Tempo Serviços (também do Bradesco), mais R$ 20 milhões. Os dados, apurados no TSE e com valores totalizados pelo órgão, levaram em conta reajustes pelo Índice Geral de Preços de Mercado (IGP-M). A Vale doou R$ 107 milhões na década, distribuídos por quatro empresas subsidiárias. A empreiteira Odebrecht formalizou ao TSE em todos esses anos a doação de valores que totalizaram R$ 41,1 milhões, mas ao mesmo tempo também foram registradas contribuições de R$ 26,9 milhões da Braskem, em parte pertencente à construtora. “É um negócio para as empresas. Um mercado rentável que funciona de forma competente do ponto de vista dos interesses dos acionistas”, afirma o cientista político Alexandre Neves, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Segundo ele, mesmo que as licitações sejam sérias e ocorram nos rigores da lei, permitem a tais empresários maior contato com parlamentares e governantes e certo acesso ao funcionamento da máquina pública.


CONSTRAN/DIVULGAÇÃO

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DANIEL BASIL/COPA 2014

VITRINES Camargo Corrêa e OAS têm papel de destaque em obras do estado de São Paulo, como a Ponte Estaiada (ao lado) e vários trechos do Rodoanel

O DOBRO OU NADA As construtoras Andrade Gutierrez e Odebrecht ficaram com a reforma do Maracanã, que custou R$ 808,4 milhões, mais que o dobro do contrato original

Não é preciso pesquisar muito para perceber as ligações perigosas. Em 2010, o PCdoB, que nunca recebeu grande apoio privado, foi contemplado com doações de R$ 940 mil feitas por Coca-Cola, McDonald’s e Bradesco. Nunca antes na história deste país o partido havia recebido um centavo desses grupos – interessados nos negócios em torno da Copa do Mundo e da Olimpíada, e portanto, em agradar a legenda do então ministro do Esporte, Orlando Silva Júnior. O fenômeno, no mínimo, desperta desconfiômetros. Há, no entanto, casos que dispensam discrição. Em 2008 e 2010, a Construtora Delta, envolvida no escândalo de irregularidades de licitações no Rio de Janeiro e em Goiás descoberto pela operação Monte Carlo, doações para vários partidos e candidatos de diversos estados, entre eles PT e PMDB, com R$ 1,1 milhão para cada um. Parte foi doada diretamente aos diretórios dos partidos. Outra parte seguiu para candidatos a deputados, senadores, prefeitos e governadores. Somente no Rio de Janeiro, se destacam políticos como os deputados federais Antony Garotinho (PR) e Eduardo REVISTA DO BRASIL

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Cunha (PMDB), deputado estadual Fábio Francisco da Silva (PPB), candidatos a prefeito das cidades de Duque de Caxias e São João do Meriti e a vereador da capital. A empresa também contribuiu com campanhas nos municípios de Ji-Paraná (RO), Teresina (PI), Santa Maria (RS), Jequié (BA), Porto Alegre (RS), Caxias do Sul (RS), Ariquemes (RO), São Paulo, Cariacica (ES), Coari e Itacoatiara (AM). “As regras de financiamento de campanhas devem ser alteradas para excluir do seu âmbito as doações de pessoas jurídicas. Assim é possível tornar o processo democrático mais autêntico, preservando-o das inevitáveis pressões dos grupos econômicos sobre nossos representantes”, defende o ministro Castro Meira, do TSE. Sua colega Carmen Lúcia, ministra do Supremor Tribunak Federal (STF) e presidenta do TSE, concorda que as eleições são muito caras no Brasil e que é deve pesar o conteúdo das propostas dos candidatos, não de suas contas bancáras: “O Congresso tem a árdua tarefa de prioduzir uma reforma que responda aos anseios da população. E o ideal é que as mudanças sejam observadas já nas próximas eleições”, disse. O vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinícius Coelho, considera estar na raiz da maioria dos problemas do sistema político brasileiro – como a corrupção, o descompromisso com os programas partidários e a falta de sintonia entre os Poderes Legislativo e Executivo – a possibilidade de empresas financiarem as campanhas. “O Brasil precisa urgentemente fazer esse choque de legitimidade política. Indiretamente, as pessoas estão buscando a reforma política”, afirma. De fato, pesquisas divulgadas recentemente dão conta dessa percepção. Uma delas, feita pelo Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, detectou num universo de 2.400 entrevistados 89% favoráveis a uma reforma política. A esmagadora maioria dos entrevistados julga “caras” ou “muito caras” as campanhas eleitorais e 68% querem que as empresas sejam proibidas de fazer doações. 14

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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

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OUTRO FOCO Carmem Lúcia: priorizar o debate de ideias entre os candidatos, não de contas bancárias

Outro levantamento recente, do Ibope para o jornal O Estado de S. Paulo, verificou que 39% dos entrevistados são a favor do financiamento público e 14% defendem o custeio das campanhas exclusivamente por pessoas físicas – o que corresponde a um percentual de 53% que desejam que as empresas sejam proibidas de pôr dinheiro em candidaturas. O Ibope, porém, identificou muita gente, 86%, que se considera pouco ou nada informada sobre as discussões em torno de uma possível reforma política – o que leva a crer que os meios de comunicação não são eficientes para contribuir com esse debate.

Inibir os lobbies

O diretor executivo da ONG Transparência Brasil, Cláudio Abramo, é de opinião que o financiamento de campanhas passe a ser misto, por meios privados, inclusive pessoas físicas, e pelo Estado. “Uma empresa, quando financia, compra a promessa de decisão futura. Esse é um mercado como outro qualquer, e tentar proibi-lo não dá certo. O que deve haver é fiscalização”, argumenta Abramo. Para o coordenador do grupo técnico que elabora uma proposta de reforma política na Câmara dos Deputados, Cândido Vaccarezza (PT-SP), “não é sério dizer que se alguém contribuiu para a campanha manda no deputado. Em mim, e na maioria dos deputados aqui na Casa, ninguém manda. Eu não vejo os deputados votarem de acordo com quem contribuiu com sua campanha, como não vejo os governadores fazerem isso nem a presidenta da República”.

O sistema de financiamento de campanhas é misto: público e privado. Permite que os partidos levantem fundos por meio de doações de entidades privadas, pessoas físicas e empresas, e ainda verbas públicas do fundo partidário, mantido por dotações do Orçamento Geral da União. Estas, entre janeiro e junho deste ano, somaram R$ 148 milhões, distribuídos proporcionalmente, de acordo com a votação obtida pelos partidos na eleição anterior. Para se ter ideia, em 2012 os gastos dos candidatos a prefeito e vereador foram de R$ 4,6 bilhões, segundo o TSE. O valor representa crescimento da ordem de 471% em relação às campanhas de 2002, para

Maiores doadores 2002 a 2012, em milhões

Construtora Camargo Corrêa R$ 178,3 Construtora Andrade Gutierrez R$ 161,3 Construtora OAS R$ 146,6 Construtora Queiroz Galvão R$ 129,3 JBS S/A R$ 113,0 Banco Alvorada (do Bradesco) R$ 89,7 Itaú Unibanco R$ 78,6 Banco BMG R$ 73 ,9 UTC Engenharia R$ 52,6 Gerdau Comercial de Aços R$ 47,5 Carioca Christiani Nielsen Engenharia R$ 43,1 Contax R$ 43,0 Construtora Norberto Odebrecht R$ 41,1 Galvão Engenharia R$ 40,3 Leyroz de Caxias Ind. Com. e Logística R$ 34,8 Caemi Mineração e Metalurgia R$ 31,6 Companhia Metalúrgica Prada R$ 30,9 Praiamar Ind. Com. e Distribuição R$ 30,6 Recofarma R$ 30,6 Vale Fertilizantes R$ 30,5 Klabin R$ 28,8 Fosfértil – Vale Fertilizantes R$ 28,4 Egesa Engenharia R$ 27,8 Suzano Papel e Celulose R$ 27,5 Aracruz Celulose R$ 27,4 Braskem R$ 26,9 Ultrafertil R$ 26,6 Veja Engenharia Ambiental R$ 26,5 EIT R$ 26,2 Serveng Civilsan R$ 26,0 Fonte: TSE – valores atualizados pelo IGP-M


ELZA FIÚZA/ABR

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MARCELLO CASAL JR/ABR

OLHO NO LANCE Coca-Cola e McDonald’s, patrocinadoras da Copa, fizeram doações inéditas para o comunista Orlando Silva em 2010. O PCdoB é titular do Ministério dos Esportes

deputados estaduais, federais, senadores, governadores e presidente, quando foram gastos R$ 798 milhões nas campanhas. Na França, as eleições presidenciais e legislativas do ano passado consumiram o correspondente a R$ 70 milhões. “O valor gasto na França com as últimas eleições é próximo da doação feita por uma única construtora do Brasil nas eleições municipais do ano passado, dividida entre vários candidatos”, compara o pesquisador Geraldo Tadeu Monteiro, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Atualmente, 95% das campanhas são financiadas pelas grandes empresas. Em 2010, as doações de 19 mil pessoas jurídicas somaram R$ 2,2 bilhões (75% do total arrecadado), mas metade dessas contribuições esteve concentrada em 70 empresas. E a participação de pessoas físicas só vem caindo. Para o juiz de Direito e cofundador do MCCE, Marlon Reis, o Brasil precisa urgente de novas regras. “É preciso racionalizar o processo, diminuir drasticamente o custo das campanhas e não mais responsabilizar as empresas por esse custeio”, destacou. A redução dos gastos por parte dos ­patrocinadores pode inibir a atuação dos lobbies. Na atual legislatura, a bancada ruralista (a maior de todas, com mais de 200 parlamentares de diversos partidos) confrontou teses em pontos da votação do Código Florestal.

Nos próximos meses, nova discussão sobre o assunto será travada, com a apreciação dos vetos feitos pela presidenta Dilma Rousseff. A mesma bancada também brigou feio, no primeiro semestre, para modificar o projeto que trata de desapropriações em flagrantes de uso de mão de obra análoga a escravidão. Itens do texto acabaram “flexibilizados”, em benefício de empregadores que contestam a interpretação dos órgãos fiscalizadores sobre o que pode ser considerado trabalho escravo ou degradante. Também foi observada a influência do poder econômico nas votações da medida provisória que determina a regulamentação do setor de Portos (MP dos Portos) e no projeto que prevê a destinação dos royalties do petróleo para o setor de educação. “Em todos esses casos está explícita a pressão do poder econômico que ajuda a eleger os parlamentares”, destacou o cientista político Alexandre Neves, da UFPE. Outra forma de coibir que lobistas “elejam” previamente quem serão seus representantes no poder é a composição de listas fechadas de candidatos a cargos proporcionais, como vereadores e deputados. A proposta de voto em lista pressupõe que os partidos montem sua “chapa” de candidatos. O eleitorado votaria, então, na chapa, como se faz nos grêmios estudantis ou entidades de classe. E, portanto, nos projetos defendidos por essas chapas, os partidos, e não em pessoas.

Os partidos definem em suas eleições internas a ordem em que seus candidatos aparecem na lista, e essa ordem define os que serão eleitos, de acordo com a proporção de votos alcançada pela legenda. O voto em lista, porém, tem pouca chance de passar numa reforma que, para valer nas eleições de 2014, teria de estar pronta até 5 de outubro. Um grupo especial da Câmara destacado para formular uma proposta não deu sinais de que conseguiria a proeza. Integrante do grupo, o deputado Ricardo Berzoini (PT-SP) empenhou-se num esforço paralelo com colegas do PCdoB, PSB e PDT, que elaboraram um projeto de decreto legislativo que sugere um plebiscito. O texto propõe submeter a consulta popular temas como financiamento público, o uso da internet para projetos de iniciativa popular e a coincidência entre as eleições municipais e federais. “O projeto está próximo das sugestões apresentadas pela presidenta Dilma ao Congresso. Mostramos que é possível atender a essa demanda da presidenta e da socidade já para o ano que vem”, afirmou o parlamentar. Com assinaturas de quase 200 deputados, o texto precisaria passar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e nos plenários das duas Casas. Resta saber qual o obstáculo mais difícil a superar, o tempo ou a acomodação dos que querem que tudo fique como está. REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

N

ão nasceram em julho, quando a revista IstoÉ ­pu­­bli­cou reportagem sobre o caso, as denúncias da empresa alemã Siemens de prática criminosa de cartel em diversas licitações para o transporte ferroviário do estado. O que os executivos da companhia detalharam ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) envolve um esquema de pagamento de propinas para viciar concorrências públicas desde o governo Mário Covas (1995-2001), passando pelas administrações de José Serra (2007-2010) e de Geraldo Alckmin (2001-2006 e desde 2011). Datam de 2008 as primeiras de um total de 15 representações encaminhadas ao Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal pela bancada petista na Assembleia Legislativa do estado, apontando denúncias de superfaturamentos e aditamentos de contratos. Nenhuma foi concluída. O jornalista Gilberto Nascimento, hoje no jornal Brasil Econômico, havia revelado em 2009, em reportagem na Carta Capital, documentos que a imprensa desprezou e dados como novidades por jornais e TVs no início de agosto. Nos bastidores da política, circulam burburinhos de que as denúncias de corrupção no ninho tucano só foram jogadas no ventilador por obra de “fogo amigo” no interior do próprio PSDB, entre os grupos de Aécio Neves e de José Serra­, que vivem em briga de foice no túnel, ambos com muitos amigos nas redações. Em São Paulo, contratos suspeitos somam R$ 30 bilhões e teriam sido firmados com superfaturamento de 30% – segundo a Siemens. Isso representaria R$ 9 bilhões, o suficiente para pagar a construção de 20 quilômetros de metrô, nas contas dos parlamentares da oposição. Conforme a revista, a manipulação de licitações e a corrupção de políticos e autoridades governistas continuaram mesmo depois do escândalo da Alstom, de 2008. A multinacional francesa assinou 237 contratos com o estado, de 1989 a 2009, somando R$ 10,6 bilhões. Na época, o Ministério Público suíço descobriu o pagamento de propinas do grupo a funcionários da gestão paulista. Algo em torno de R$ 848 milhões. 16

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Ninho de suspeitas

Blindadas pela imprensa e por uma maioria esmagadora na Assembleia Legislativa, pessoas encasteladas no governo de São Paulo desde 1995 desdenham das finanças do estado e da vida de passageiros Por Cida de Oliveira


POLÍTICA

JOSÉ LUIS DA CONCEIÇÃO/FLICKR.GOVERNOSP

MILTON MICHIDA/FLICKR.GOVERNOSP

SUJO E PROFUNDO Apesar de tantas denúncias, as obras do Metrô de São Paulo nunca foram investigadas por uma CPI

CENA Alckmin se faz de vítima

A empresa foi punida em todos os países onde aplicou a prática. Menos no Brasil. Só em abril de 2011 o Superior Tribunal de Justiça abriu investigação sobre o – ainda – vice-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP), Robson Marinho, suspeito de receber propina da Alstom para conseguir contratos adicionais. Chefe da Casa Civil de Covas entre 1995 e 1997, ele teria movimentado US$ 3 milhões, segundo autoridades suíças. Com a repercussão da denúncia da Siemens, Alckmin afirmou não ter conhecimento de esquema e que, se o caso do cartel for comprovado, “o estado é vítima”. A denúncia ao Cade veio a público um ano depois de um incêndio criminoso na P.A. Arquivos, em Itu (SP). A firma de digitalização de documentos tem entre seus

clientes o Metrô. Em julho do ano passado, nove homens encapuzados roubaram dez computadores e incendiaram o galpão – . É provável que ali houvesse documentos relacionados a irregularidades. Em 1996, para alavancar a campanha de José Serra à prefeitura, Covas retomou obras do Metrô, apesar dos contratos considerados irregulares e superfaturados pelo Ministério Público e pelo TCE. Na época, o tribunal apontava favorecimento a empreiteiros na construção do trecho Clínicas-­­­-Vila Madalena, da Linha Verde. Em 1998, ­Covas apresentou os trens da espanhola Renfe, que os “doou” ao estado com a condição de receber R$ 93,2 milhões por um contrato para reforma e adaptação. Em abril de 2004, o TCE suspendeu a continuidade da licitação da Linha Amarela, com obras estimadas em R$ 786 milhões. Dos sete consórcios aptos à disputa, venceram o Via Amarela, formado pela CBPO, OAS, Alstom e Queiroz Galvão; e o Camargo Corrêa, com Siemens, Mitsui e Andrade Gutierrez. Três anos depois, sete pessoas morreram quando uma cratera se abriu próximo às obras da estação Pinheiros. Dezenas de representações foram encaminhadas ao Ministério Público, que em novembro de 2008 já contabilizava mais de 20 inquéritos para apurar irregularidades em contratos com a Alstom. Dezesseis desses inquéritos eram para investigar a CPTM, que em 2005 assinou contratos de R$ 50,7 milhões com a multinacional francesa. Inquéritos, arquivados por falta de provas, foram reabertos.

Tristes coincidências

A longa temporada de suspeitas coincide com um período em que a população passou a ser cada vez mais prejudicada por acidentes e panes no transporte paulista. O Metrô, que durante muitos anos foi símbolo de qualidade, não acompanhou o crescimento da demanda – nem com a expansão da rede, nem, ao que parece, com a conservação. Um dos episódios mais marcantes é o de 21 de setembro de 2010. Problemas entre as estações Pedro 2º e Sé, entre as 7h50 e 9h15, deixaram desesperados os passageiros, que quebraram os vidros, desceram e andaram por túneis e vias. REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

O Metrô chegou a dizer que uma blusa impedira o fechamento das portas, lideranças tucanas afirmaram ser intriga da oposição e um laudo técnico atestou se tratar de problemas no fornecimento de energia. Em julho de 2011, dois trens se chocaram na estação Barra Funda, deixando 42 feridos. Nova colisão em maio de 2012, entre as estações Penha e Carrão, por falha no sistema de automação, deixou 49 feridos. No 5 de agosto passado, um trem descarrilou a 300 metros da estação Barra

Em maio de 2008, uma pane levou 2 mil pessoas a sair da composição e a ocupar os trilhos entre as estações Tatuapé e Brás. O ar-condicionado foi desligado, após problema no sistema de freio que levara ao acionamento do sistema de emergência. Houve confusão e depredação. No final de novembro de 2011, um técnico e dois engenheiros da CPTM foram atropelados e mortos por um trem de passageiros quando testavam uma composição. Um quarto atropelado sobreviveu.

Funda. Causa: quebra de um jogo de rodas na composição. Ninguém se feriu. Os problemas na CPTM também são cada vez mais frequentes. Em julho de 2000, nove pessoas morreram e 115 ficaram feridas num acidente na estação de Perus. Uma composição vazia não conseguiu parar num trecho de declive. Segundo o sindicato dos trabalhadores da empresa, recomendações de um relatório da investigação das causas só começaram a ser implementadas um ano depois.

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METRO.SP.GOV.BR

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s CIETE SILVÉRIO/FLICKR.GOVERNOSP

ALMEIDA ROCHA/FOLHA

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1 C º/ m om 1/1 an eç 99 da a 9 to o s de eg M un ar do io Co va 16/2/1998 Covas apresenta os trens espanhóis doados pela Renfe mediante contrato de reforma de R$ 93,2 milhões, sem licitação

28/7/2000 Acidente com trem da CPTM mata 9 e fere 115

a, el ar Am e a rt a Vi pa icia a, 04 cio em , in inh nte ô 20 ór az S L e tr 9/ ns l f OA da lm Me 2/ co ua e o ota lo O o q om uçã ra t pe d lst str ei da A n m a co pri atiz a riv p

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Trem da Alstom na Linha Verde

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CPTM.SP.GOV.BR

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1 M º/ se ari 1/1 go u o C 99 ve pri o 5 rn me va ja ad ir s t O ne or o m om 43 m iro de a a ,4 etr /1 km ô t 99 Sã nda pos em 5 o to se Pa c e ul om m o o

Em 18 anos de governos tucanos, o metrô paulistano ganhou menos de 1,8 km de trilhos por ano

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Problemas demais. Trilhos de menos


POLÍTICA

no final do mês, novo “apagão”: a quinta pane no sistema num mesmo dia deixou passageiros revoltados e houve depredações. Em julho do ano passado, duas composições se chocaram na Barra Funda, matando cinco pessoas e deixando 47 feridas. Em dezembro, dois trens bateram em Francisco Morato, ferindo 29. Aumentou a pressão sobre os parlamentares que apoiam o governador Alckmin. É praxe na Assembleia Legislativa o esforço para impedir a abertura de CPI

12/1/2007 Desabamento abre cratera de 30 metros de profundidade e 80 de diâmetro nas obras da Linha 4 em Pinheiros. Sete pessoas morrem e 230 ficam sem casa

25/05/2010 Abertas as duas primeiras estações da Linha Amarela, Paulista e Faria Lima

12/7/2012 Choque de trens da CPTM na Barra Funda deixa 47 feridos e cinco mortos

m set et e rô m te br m o/ 74 20 ,3 13 km

23/11/2008 Ministério Público abre mais 20 inquéritos para apurar suspeitas de irregularidades em contratos do governo paulista com a Alstom, que somavam R$ 1,378 bilhão. Dos 20, 16 são para investigar a CPTM

CPTM.SP.GOV.BR

21/5/2008 Pane em trem da CPTM deixou 60 mil sem transporte

MILTON MICHIDA/FLICKR.GOVERNOSP

FILIPE ARAÚJO/AE

2005 A CPTM assina contratos de R$ 50,7 milhões com a Alstom, sem licitação

1 A º/ se lck 1/2 go u mi 01 ve ter n t 1 rn ce om ad iro a or m po an ss da e p to ar de a

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21/9/2010 Na Linha 3 Vermelha, desesperados, os passageiros quebram os vidros de composição parada, descem e andam pela via. Em véspera de eleição, o Metrô chega a dizer que uma blusa vermelha impediu o fechamento das portas

O

5/8/2013 Composição descarrila a 300 metros da estação Barra Funda. Estações tiveram de ser fechadas para evitar superlotação das plataformas. Causa: quebra de um jogo de rodas na composição reformada em 2011

que incomode o Palácio dos Bandeirantes. A oposição (PT, PCdoB, PSOL e um deputado do PDT) não consegue alcançar as assinaturas necessárias para superar a blindagem montada pela base do governador (PSDB, PDT, PV, PMDB e PSD). “Uma maioria dá guarida para o governador”, lamenta o líder do PT na Casa, Luiz Cláudio Marcolino. É possível que parte desses acidentes pudesse ser evitada se recursos públicos não tivessem tomado o trem errado.

1 S 8/ Su TJ i 4/2 d s nv 0 g a pe es 11 Ju ran Cas ito tiga a st d a d ge Jor iça es s Civ e re o c LUIZ GUARNIERI/FUTURA PRESS st ge de om il d ce on ão F l a e b se Se aga á ta s n Co er p lhe rra li m a va ro iro Ne bé Su s pi d to m íça en na o T , ir te , tre d C m ria se 1 a A E ão c gu 99 ls Ro do on nd 5 e tom bso pr gel o au 19 , M n M es ad to 97 a a id o ri , m rin rin en co da o h h te nt de vi o, o. do a a s. me che 9/ Am 12 M trib A nta fe et u la / va rô ída A nç aur 201 Pr a o y R 1 na iva l ib ta ivro eir ria o Jr. Tu ca na

A empresa chegou a afirmar que as vítimas não seguiam normas de segurança. Dois meses adiante, outros dois trens se chocaram entre as estações Itapevi e Engenheiro Cardoso, deixando feridos cinco passageiros e o maquinista. Em fevereiro de 2012 a empresa demitiu por justa causa o maquinista de um trem que descarrilou na Linha Esmeralda. Em março, problema no sistema de tração de um trem causou tumulto e quebra-quebra no Brás, com seis pessoas detidas;

agosto/2013 Revelado acordo de delação da Siemens com o Cade para entregar esquemas fraudulentos em concorrências de linhas dos metrôs de São Paulo e Brasília, sob mandatos do PSDB e DEM

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COMPORTAMENTO

A GE NTE NÃO SOMOS L I T Ú IN s soa pes lítica” s a ue por po te q tan ressar r o p e É im se int a: “ a Sofi ecem com

Não é só consciência, é alto-astral. Uma pesquisa mostra que a participação política e social está entre os fatores que trazem felicidade às pessoas Por Adriana Cardoso 20

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A

gente não sabemos escolher presidente/ A gente não sabemos tomar conta da gente/ A gente não sabemos nem escovar os dentes/ Tem gringo pensando que nóis é indigente/ Inútil/ A gente somos inútil. O rock irreverente da banda Ultraje a Rigor fez tanto sucesso, há quase três décadas, que acabou animando uma geração de adolescentes que mal sabia o que era canção de protesto – dada a ausência de então – a ir às ruas com a mesma irreverência. Uma camiseta com os dizeres “Já sei escovar os dentes, quero votar pra presidente” foi vista pela primeira vez

num comício das Diretas em Belo Horizonte e tornou-se hit nas manifestações que tomaram o país. Na ocasião, não era incomum os jovens fazerem a própria arte das camisetas com silkscreen ou pintá-las a mão para dar seu recado. Também não é incomum, nas imagens de pessoas em movimento, identificar uma aura de energia e de alto-astral. Como que dizendo: “Se mexer para mudar o estado das coisas faz bem”. O engajamento político não é somente um vetor importante na promoção de mudanças sociais, mas também um dos fatores que podem fazer as pessoas mais felizes. É o que mostram os dados do World Happi-


FOTOS: MAURÍCIO MORAIS/RBA

COMPORTAMENTO

ness Database, em Roterdã, na Holanda, que coletou informações de estudos de diversos países para mensurar o que traz felicidade às pessoas ou, melhor ainda, quais mudanças podemos fazer em nossa vida para nos tornarmos mais felizes. O estudo, divulgado em julho passado pela BBC Magazine, coloca o engajamento social numa posição tão importante para a satisfação pessoal como ter uma relação amorosa longa e estável, ser ativo nas horas vagas, sair para jantar de vez em quando e tomar um chopinho com os amigos. Ah, aos machistas de plantão, o levantamento também revela que os homens tendem a ser mais felizes em um

ambiente no qual as mulheres estão em Fernando Collor de Mello, em 1992. À época, Liliane tinha quase a idade da pé de igualdade. O diretor do Database e professor da filha hoje. Ela, a filha, a sogra e o marido Clodoal­ Erasmus University de Roterdã Ruut Veenhoven diz à BBC Magazine que os do moram no Jardim Fraternidade, entre dados coletados ao redor do mundo o Capão Redondo e o Jardim Ângela, no mostram que ter uma vida socialmente extremo sul da capital paulista. E, a desativa e participativa é mais eficiente pa- peito da vida difícil na periferia, consira trazer felicidade do que traçar metas. deram-se felizes, o que dá para notar na Segundo o professor, estabelecer objeti- empolgação com que falam de política – vos e segui-los de maneira obassunto, aliás, sempre discutido em casa. sessiva pode levar o indivíduo Ter um Era a primeira vez que Bruna socia a vida a ser mais angustiado. participava de uma malmen te at nifestação. Nem foi a reTrês países latinoi v a ep -americanos estão na efi articipativa é mais dução da passagem de ciente para trazer lista dos dez mais ônibus que a motivou. Foi e u q felizes, em termos de “pelas outras coisas” e, eso d e d felicida s pecialmente, porque aquele satisfação geral com a vida: ta e m traçar Costa Rica (o primeiro), momento lhe dava uma sensaMéxico (o sétimo) e Panamá (o último). ção de pertencimento. “Gostei de participar, me senti importante. Vivemos numa As demais posições são distribuídas entre países europeus (todos os nórdicos, democracia e devemos lutar por nossos onde as pessoas são muito ativas socialideais”, assinala. Faz tempo que Liliane mente) e o Canadá. marchou pela saída de Collor, e ainda A pesquisa ajuda a explicar o que move lembra muito bem. “Estava um dia muidiferentes gerações de ativistas. Como a to chuvoso, mas havia um mar de gente recepcionista Bruna de Souza Lopes, de nas ruas. Ficou marcado.” Embora nunca tivesse ido às ruas, o ati27 anos, que tinha acabado de voltar para São Paulo, após quatro anos morando em vismo de Bruna começou quando ela traMinas Gerais, quando os protestos co- balhou como recepcionista num hospimeçavam a pipocar. Frequentadora das tal em Minas. “Comprei muita briga com redes sociais, juntou um grupo de amigos médico que fazia corpo mole para atene foi. A mãe de Bruna, a esteticista Lilia- der pacientes.” ne Aparecida de Souza Lopes, de 46 anos, A psicóloga Ana Lúcia da Silva ponfoi da geração cara-pintada. Levada pe- dera que a ida às ruas é importante por la sogra, Margarida, participara dos pro- ser impulsionada “por um desejo de mutestos pelo impeachment do presidente dança”, mas a sensação de felicidade vai

Wesley: “Alé m do transp or precisamos de melhoria te público, s na saúde mais oportu e nidades para os jovens”

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COMPORTAMENTO

depender das respostas. “A experiência de se sentir fazendo parte de algo maior pode trazer uma satisfação duradoura ou não, dependendo da resposta efetiva às necessidades individuais e coletivas”, diz a terapeuta do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo.

Sensação de presença

Wesley Mendes Souza, de 17 anos, foi a dois protestos – um no Capão Redondo, próximo de onde mora, e outro na Avenida Paulista, na companhia da prima Bruna. Embora consuma quatro horas do seu dia dentro de ônibus, trem e metrô, ele viu uma ocasião de expressar insatisfação. “Além do transporte público, precisamos de melhorias na saúde, mais vagas em creches e mais oportunidades para os jovens.” Estudante do 1º ano do ensino médio numa escola pública, Wesley sente na pele os efeitos do abismo de oportunidades. Ele mora com a mãe e a irmã numa casa de quatro cômodos na região do Jardim Ângela, onde pagam R$ 750 de aluguel. Filho de pais separados, passou muito de sua adolescência em casa e sozinho. Há pouco mais de três meses, por meio do programa Jovem Aprendiz, conseguiu uma vaga na área de contabilidade de um hospital no bairro da Barra Funda, na zona oeste. Ganha menos de um salário mínimo por mês e ajuda em casa. A rotina começa às 6h e termina por volta da meia-noite. Mas não reclama – abraça a oportunidade. Não foi à toa que os protestos trouxeram a Wesley, como ele afirma, “maior consciência política” e o fizeram sentir-se parte mais ativa da sociedade. O advogado Aylton dos Santos Lira, de 36 anos, conta que nunca viu algo parecido durante quatro anos em que morou na Alemanha. “Há anos eu sonhava com isso”, diz ele, que não participou das manifestações de 20 anos atrás por achar que havia uma manipulação de parte da mídia. Na ocasião, em vez do verde-amarelo, adotou o preto para protestar. Lira esteve na manifestação de 13 de junho, quando a polícia militar do estado de São Paulo “desceu o sarrafo” em quem era manifestante e em quem não era. Morador das imediações da Rua Maria Antônia, na 22

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região central, ele foi um dos que ajudaram a socorrer a repórter do jornal Folha de S.Paulo Giuliana Vallone, ferida num olho com um tiro de bala de borracha disparado por um dos policiais da Tropa de Choque. “Eu sonhava com isso, sem partido, sem sindicato (liderando as marchas). Quando vi a multidão, fiquei tão emocionado que comecei a chorar.” Desde que retornou, observa o brasileiro mais engajado, participativo e consciente. O professor Edson Passetti, do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, coordena o Núcleo de Sociabilidade Libertária (NU-Sol) na universidade. Para ele, quem acredita que essa é a geração do tédio terá de rever seus conceitos. “O brasileiro não é tonto, não é só cordial e, como qualquer pessoa, pode se manifestar de maneiras surpreendentes”, avalia, enfatizando que o que vem ocorrendo está tirando muita gente de sua zona de conforto.

Que tal um rumo?

Mas um pouco de “rumo” para sair da acomodação não faz mal a ninguém, na opinião da argentina Sofia Rosseaux, de

25 anos. Tinha 13 no começo dos anos 2000, quando sua família veio para o Brasil para fugir do “coice” do então ministro da Economia do governo de Carlos Menem, Domingo Felipe Cavallo, que afundou o país numa crise brutal. Filha de mãe brasileira e pai argentino, a arte-educadora já participou de várias manifestações na vida, mas afirma que só quando há organização e propostas claras pelos movimentos. Tomou parte das jornadas de junho por concordar com o mote do Movimento Passe Livre e avaliar como “ruim e absurdamente caro” o transporte público. “Fiquei preocupada com a proporção que tomou, porque havia ali pessoas que, claramente, estavam entendendo aquela situação de maneira equivocada”, comenta. Mas não acha que seja de todo ruim, “pois é importante que as pessoas comecem a se interessar por política”. E, nesse aspecto, ela observa que na Argentina discute-se política o tempo inteiro, que as pessoas acompanham o que acontece. O recente fenômeno agitante não foi exclusividade paulistana. Surpreendeu dezenas de cidades em todo o país, com momentos de ebulição em grandes regi-


COMPORTAMENTO

LUCIAN

tei de : “Gos e senti a n u r m B ipar, partic tante” r o p im

ões metropolitanas, como Brasília, Rio Baratinha’ foi surpreendente!”, diz, lemde Janeiro, Porto Alegre e Belo Hori- brando um protesto do dia 13 de julho zonte. Aos 34 anos, a médica Luciana em frente ao Copacabana Palace, no Rio Villela nunca havia participado de pro- de Janeiro. A festa de casamento de Frantestos quando decidiu engrossar o coro cisco Feitosa e Beatriz Barata, para mil dos descontentes na Praça Sete de Se- convidados e a um custo estimado em tembro, na capital mineira. Achou “le- R$ 3 milhões, ficou conhecida nas redes gal”, mas ficou preocupada, pois acredi- como o “Casamento de dona Baratinha”. ta que a ignorância de alguns pode O avô da noiva, Jacob Barata, é conhecido como “rei do ônibus”. transformá-los em “massa de Até o Lembrada pela beleza, manobra”. Fran papa pela alegria e também Na opinião do procisco , dur fessor Edson Passetti, a pela violência, agora a ante visit os protestos eviden- que a ao Brasil, disse capital fluminense ficajovem que n ão ciaram quem é quem rá marcada pelas jornadas que continuam a todo dentro das expressões não protesta o vapor. É o que acredita o políticas brasileiras. Para ele lhe agrada estudante Raphael Godói, de 16 há fascistas, sim, como sempre houve em atividades desse tipo. Mas há anos. Ele é um dos fundadores do Fórum de se ter cuidado ao classificar determi- de Lutas contra o Aumento da Passagem nados atos como vandalismo puro e sol- dos transportes públicos e ativista social to. “Aquela farra do ‘casamento da dona há muito tempo. Participou do Dia do Basta à Corrupção e do Ocupa Cabral, entre outras ações, e lembra que, no começo, enfrentou dificuldades para atrair colegas às suas causas. Por isso, acreditava ter nascido em época errada. Morador da Barra da Tijuca, área nobre na zona sul carioca, estuda em escola particular onde a mãe trabalha e anda menos de ônibus porque dá pra ir a pé. Mesmo assim, o fórum não esfria os protestos. “Não tinham esperança de que poderiam provocar mudanças. Hoje, essa esperança reapareceu”, avalia. Talvez por acreditar que essa geração fosse marcada por “desesperança” e apatia, muita gente foi pega de calças curtas. Raphael: “Não tinham esperança de que poderiam Até o papa Francisco, provocar mudanças. Hoje, eu” durante a visita ao Braarec reap a ranç espe essa sil, disse que jovem que não protesta não lhe agrada. Sua patrícia Sofia, portanto, está aprovada. Para ela, manifestações desse tipo ajudam “a reconstruir um sentimento coletivo”, e a sensação de felicidade, como apontada na pesquisa da universidade holandesa, está no potencial de mudança não só, ou não exatamente, no país, mas em cada indivíduo. Pelo menos Raphael Godói, que quis tanto ter nascido em outra época, já se sente bem melhor exatamente onde está. “Está tudo lindo!”, suspira. REVISTA DO BRASIL

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instalação de uma fábrica na pacata Santo Amaro, a 70 quilômetros de Salvador, foi um alento. Em 1960, a cultura da cana-de-açúcar há muito deixara de impulsionar a economia da região. E ser funcionário da Cobrac, a Companhia Brasileira de Chumbo, também dava status. “Todo mundo achava que ia se dar bem”, diz Luciano dos Santos, ex-funcionário. “Em termos financeiros, era o melhor lugar”, conta Nicolau Sousa Passos Filho, que ficou durante seis anos. “Quem trabalhava lá tinha crédito em qualquer lugar”, acrescenta Raimundo Santana Alves. Todos fazem parte da longa lista dos que hoje se queixam de um sem-número de problemas de saúde decorrentes da exposição a metais pe24

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sados, como chumbo e cádmio. Muitos estão em casa, sem condições de sair. Outros tantos já morreram. Em dezembro de 1993, a empresa, já com o nome de Plumbum, fechou as portas sem avisar. Um dia, chamaram os funcionários e disseram que era para esvaziar os armários – rapidamente. “Nem gerente sabia”, conta Antônio Severino Oliveira, que saiu dois meses antes. “Largaram ferramentas, tudo”, lembra Antônio de Sousa Porto. Mas ficaram também resíduos que, ao longo do tempo, contaminaram funcionários e moradores. Santo Amaro tornou-se, talvez, o mais emblemático caso mundial de contaminação por chumbo. Tornada cidade em 1837, Santo Amaro é um dos municípios que compõem o Recôncavo Baiano, no entorno da Baía de

Todos os Santos. Desde 2000, tem se mantido com população em torno de 58 mil habitantes. No trânsito tranquilo, destaca-se a presença das mototáxis. Segundo o IBGE, em 2012 havia mais motocicletas (2.962) do que automóveis (2.788). No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), situa-se em 44º lugar entre os 417 municípios da Bahia. A antiga fábrica fica a aproximadamente dois quilômetros da Igreja da Purificação, a matriz, que dá o nome pelo qual a cidade é mais conhecida. Localizada na Avenida Rui Barbosa, na saída da cidade, à beira do Rio Subaé – que corta toda Santo Amaro –, agora é um monte de escombros. No que já foi o portão de entrada, uma placa, atrás da grade enferrujada, avisa: “Propriedade particular – Proibido (sic) a entrada – Área com resíduo de chumbo”.


SAÚDE

Há quase 40 anos estudando o local, o professor Fernando Martins Carvalho, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vê uma situação grave de negligência. “Era a grande empresa do local. Se fosse uma empresa brasileira na França que poluísse lá, o que a França iria fazer?”, diz, referindo-se ao fato de, na origem, a Cobrac pertencer ao grupo francês Penarroya Oxide, hoje Penox Group, um dos líderes mundiais na produção de óxido de chumbo, com atividades na Alemanha, Espanha e México. Em 1989, a fábrica de Santo Amaro foi vendida e incorporada à Plumbum Mineração e Metalurgia, ligada a um grupo brasileiro. Depois de fechada, ali funcionou durante algum tempo uma fábrica de guardanapos. Em 2000, a escória abandonada no local foi encapsulada. Evidências de contaminação vêm ainda da década de 1970. Em ação de 2003, o Ministério Público Federal afirma que todos os argumentos exibidos pela empresa “não se revelam capazes de sequer pôr em dúvida” que Santo Amaro “foi – e continua sendo – vítima de uma poluição grave, prolongada e apenas parcialmente reversível”. Também em 2003 o Ministério da Saúde fez um estudo pormenorizado. Embora relutante quanto à relação causal entre exposição a metais e doenças, destaca o fato de que os trabalhadores nunca tive-

ram atenção à saúde específica e diferenciada, compatível com o grau de risco de adoecimento que sofreram durante o período em que estiveram expostos. “Vários desses trabalhadores já têm o diagnóstico estabelecido de saturnismo”, diz o ministério, referindo-se à doença decorrente da intoxicação por chumbo. “Desde o começo era muito claro que tínhamos um grande problema ocupacional e ambiental, negligenciado pelos órgãos públicos e pela empresa”, critica Fernando Carvalho. “Durante 32 anos a empresa produziu 500 mil toneladas de escória (resíduo). A prefeitura usava essa escória para fazer pavimentação das ruas. Desde os anos 1980, dizíamos que isso era prejudicial à saúde, que a escória era tóxica. O Estado comia a farofa, para usar uma expressão baiana.” Segundo Carvalho, o chumbo tem vários efeitos nocivos, como anemia, paralisia, doenças arteriais, além de ser um provável cancerígeno. “Todos os ex-funcionários devem ser monitorados.”

Sem controle

“O que falta é ser feito um acompanhamento sistemático de pessoas que moram perto”, acrescenta a jornalista Maiza Ferreira de Andrade, mestre em Saúde, Ambiente e Trabalho pela Faculdade de Medicina da UFBA. “A empresa operou

PURIFICAR O SUBAÉ Também conhecida por Santo Amaro da Purificação, por causa do nome da igreja matriz, a cidade baiana continua sofrendo com a poluição da fábrica fechada em 1993. O agonizante Rio Subaé, que já foi tema de música de Caetano Veloso, parece que jamais se livrará da contaminação REVISTA DO BRASIL

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20 anos praticamente sem nenhum controle.” O caso de Santo Amaro foi muito estudado. Acompanhamento feito pela pesquisadora no período 1975-2010 coletou cinco teses, 15 dissertações e seis monografias. Da mesma forma, não faltaram estudos de órgãos públicos e ações judiciais. Faltaram mesmo soluções. No bairro do Derba, na entrada da cidade, vive Luiz Alves da Silva, o Lula, 62 anos, 12 passados na fábrica. Com aparência frágil, ele relata o que vem sentindo há tempos: “Tontice, pressão alta, e agora me apareceu uma dor nas pernas que não consigo andar pra longe. Eles só mandam fazer exame. Agora, o cardiologista mandou fazer exame de pulmão. Aqui não faz, só em Salvador. Mas não tenho condições de viajar”. Também tem restrições alimentares. “Não posso mais comer farinha.” E sente falta de ar e dor ao mastigar. Alagoano que chegou a Santo Amaro no início dos anos 1980 para trabalhar, Lula não tem mais forças nos braços que puxavam pesados lingotes – agora, não consegue segurar a neta de 10 anos. A única renda vem da mulher, Rita, que trabalha de doméstica “quando dá”. “Tenho de ficar olhando ele.” Há frequentes relatos de acordos fechados na Justiça do Trabalho com valores reduzidos. Criada há dez anos, a Avicca, associação que reúne as vítimas da contaminação, tenta reabrir alguns. Somente em 2006 e 2007, segundo o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da Bahia, a Vara de Santo Amaro recebeu 777 ações da Justiça Comum, referentes a doenças ocupacionais. Foi feita parceria com o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (Cesat) para produção de laudos. Em 2008, em três dias de mutirão, a Vara promoveu 49 conciliações, somando R$ 108 mil – pouco mais de R$ 2 mil por caso. Dona Maria de Lourdes Pereira Barbosa, 71 anos, que há três perdeu o marido, José Cassimiro Barbosa, acabou aceitando um acordo de R$ 70 mil. “Eles (advogados) ficaram lá dentro me opressando”, conta. “O homem morreu muito acabado. As unhas dele eram uma massa, os pés também... Andava dez minutos, parava meia hora.” Ela perdeu também o filho mais velho, outro ex26

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FORNO DO INFERNO José Alves Ferreira trabalhou num dos lugares mais insalubres da Cobrac, o forno. Se aposentou por invalidez e recebe um salário mínimo: “Ruim, ruim”

-funcionário, aos 39 anos, com quatro filhos. Ela mesmo diz sentir fraqueza. “Até para falar estou com deficiência.” Recebe uma pensão de R$ 1.200. “Como é que vou trabalhar agora, se nem peso aguento carregar? Antes vendia marisco pelas feiras”, diz Maria de Lourdes, dez filhos, 46 netos e 25 bisnetos – metade mora em Santo Amaro, metade em Salvador. Júlia da Anunciação de Oliveira relata uma situação comum às viúvas de trabalhadores. Ela lavava a roupa que o marido, Damião, trazia da fábrica, expondo-se à contaminação. “Além da cabeça, o corpo dói. Tenho dor nas mãos, no pescoço, problemas cardíacos.”

Depois de três anos trabalhando na fábrica, Gérson “saiu já doente”, conta Gilda Paixão Soledade Baraúna, 70 anos. Sofreu um acidente vascular cerebral e morreu há seis anos. “Meu marido sofreu muito e se acabou, ficou apodrecendo em cima da cama. Ficou quatro anos em cima da cama, como tantos outros, sem direito a nada.” Ela também relata sentir dores constantes, hipertensão e fraqueza. “Não consigo abrir uma garrafa.”

Boca do forno

José Roque das Mercês, 67 anos, morou na mesma Avenida Rui Barbosa, a 300 metros da fábrica, onde entrou em 1968.


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SEM FORÇAS Lula, 12 anos de fábrica, descreve os sintomas: “Tontice, pressão alta, e agora me apareceu uma dor nas pernas que não consigo andar pra longe”

“Trabalhava na boca do forno.” Aposentado por invalidez, tem osteoporose, artrose, tontura, problemas de audição, dores no corpo. “Morriam muitos animais (no entorno da fábrica), mas ninguém sabia a causa.” Quem também trabalhava na carga do forno, “um lugar perigoso”, era Carlos Alberto Pereira Paranaguá, 58 anos, servente que ficou na fábrica entre 1988 e 1989 e se queixa de problemas na visão e nos joelhos. Foi afastado pelo INSS. Seu colega Antônio Severino Oliveira, 54 anos, entrou lá em 1980 e saiu em 1993, dois meses antes do fechamento. Tem pressão alta e reclama de dores que não cessam. “Sempre tive problema de dor. Um dia, o médico chegou e me deu (receitou) 184 injeções. Até hoje não sei para que era”, conta Antônio, que tenta reabrir seu processo. “Não recebi nem um real, não trabalhei mais em lugar nenhum, nem me aposentei.” Com 66 completados neste 25 de setembro, o ex-funcionário Antônio Roque

de Sousa Serra conta que “o rim parou” há alguns anos e o levou à hemodiálise. Aposentado, recebe o equivalente a um salário mínimo. “Minha esposa é que me segura.” De 1969 a 1975 na Cobrac, José Alves Ferreira sofreu AVC e tem dificuldade de falar. Trabalhava na metalurgia, carregando carga do forno. Aposentou-se por invalidez e ganha um salário mínimo. “Ruim, ruim”, limita-se a dizer, fazendo um gesto com a mão. Vive com a mulher, Leonice. “Eu, ele e Jesus”, diz ela. Professora titular do Instituto de Química da UFBA, Tania Tavares, ao lado de Fernando Carvalho, também acompanha os problemas de Santo Amaro há algumas décadas. Com dificuldades, conta: “Eu nem podia entrar na fábrica. A indústria não deixava”. Ela lembra que a instalação se deu em uma época que não havia nenhuma preocupação com danos ambientais. Hoje, a contaminação maior está no solo. “A empresa deixou lá algumas toneladas de resíduo sólido.”

VIZINHO José Roque também trabalhava no forno e morava a 300 metros da fábrica: “Morriam muitos animais (no entorno)” REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

Nos anos 1970, com as primeiras pesquisas sobre efeitos do chumbo em pescadores e trabalhadores, a empresa teve negada licença para ampliar a produção. Estudos feitos a partir da década de 1980 mostraram contaminação em crianças, com altas concentrações de chumbo e cádmio no sangue. No rosário de ações relativas ao caso, em fevereiro deste ano a Justiça Federal, a pedido do Ministério Público, determinou que a cidade de Santo Amaro recebesse um centro de referência para tratamento de vítimas de contaminação por metais pesados. A implementação, em um prazo de seis meses, ficaria a cargo da União e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que recorreu. O Ministério da Saúde informa considerar “mais eficiente e mais conveniente” usar a rede já existente. Diz estar prestando desde 2003 assessoria técnica para atendimento à população exposta a metais pesados, com repasse de R$ 30,5 milhões ao município e ao estado.

Protocolo

Entre essas ações, o ministério destaca um protocolo firmado em parceria com os três níveis do Executivo que estabelece procedimentos para acompanhamento da saúde da população, baseado em princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). “É um assunto que incomoda, é como se fosse um calo. O desafio é tornar esse protocolo uma prática dos profissionais de saúde do município, com toda a supervisão das autoridades do estado e federais”, diz Maiza Andrade. Desarquivado há dois anos e meio, um projeto de lei estadual de 2007 (nº 16.622) tramita na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa baiana. A proposta é de criação de um fundo de assistência às vítimas da contaminação. O relator, deputado Zé Raimundo (PT), deu parecer contrário. “É uma lei que cria fundos, mexe em orçamento. É uma matéria que só pode ser normatizada pelo Executivo”, argumenta o parlamentar. “Mas todos nós concordamos com a iniciativa, que é louvável, porque visa restaurar um direito.” Adailson Pereira Moura é o presidente 28

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DOR EM DOBRO Maria Boa Morte, Dilma Celia Ferreira Santos, Maria Laura dos Santos e Gildete Mesquita Mendes cuidaram dos maridos até a morte sofrendo os mesmos sintomas

ASSOCIAÇÃO Adailson Pereira: “Existem coisas na Justiça que a gente não entende”


SAÚDE

Samba e candomblé

da Avicca e articulador de movimentos sociais na região. Morava a 50 metros da fábrica, mas diz que relutou até onde pôde para trabalhar lá, só aceitando por estar desempregado. “Sabia que estava assinando a minha sentença”, afirma. Ficou apenas alguns meses na Plumbum, de maio a dezembro de 1993, quando a unidade fechou. Ele lembra data e hora: 14h30 de 27 de dezembro. “Reuniram todo mundo da produção e disseram: vocês podem descer e pegar tudo que está no armário, porque a empresa está fechada. Tinha mais de 100 homens da segurança”. Pelé, como é chamado na cidade, gosta de pintura. A parte de cima da sua casa, que por um tempo abrigou reuniões da associação, tem vários quadros, a maioria abstratos. É a terapia do mecânico de manutenção, que conta ter pouca força na mão esquerda e dores crônicas nos joelhos. À noite, diz se mexer como se tomasse choques. “A empresa formou um

centro médico para que a saúde pública não soubesse o que acontecia lá dentro. Esses empresários nunca sofreram nenhuma penalização do governo, que foi conivente.” Exibe algumas centenas de atestados de óbito de ex-trabalhadores: grande parte traz como causa da morte insuficiência respiratória ou cardiorrespiratória e AVC. No total, quase mil morreram, segundo ele. “Existem coisas na Justiça que a gente não entende.” Coordenador de Meio Ambiente da Secretaria Municipal, Augusto César Lago Machado também é ex-funcionário da Cobrac/Plumbum – de 1971 a 1990. Aposentado por tempo de serviço, conta que está perdendo os movimentos da face. Para ele, falta comprometimento e vontade política. “Parece que há uma orquestração. Laudos médicos reconhecem (os problemas), mas as instituições não.” Ele chama o caso de genocídio. “Por que nunca acionaram o grupo Penarroya?”

Santo Amaro também é terra do samba de roda, característica do Recôncavo. É terra de Assis Valente, Mano Décio da Viola e Tia Ciata. E tem o chamado Bembé do Mercado, uma manifestação de candomblé em praça pública com origem no século 19, para celebrar a abolição da escravatura – um decreto do governo estadual, de setembro do ano passado, tornou a cerimônia Patrimônio Imaterial da Bahia. Do lado da secretaria fica o Teatro Dona Canô, onde em maio se realizou um simpósio para discutir possíveis soluções para Santo Amaro. O nome homenageia a mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, entre outros filhos, que morreu em dezembro de 2012, aos 105 anos. No início dos anos 1980, Caetano compôs Purificar o Subaé, em que fala da poluição na cidade. “Eu ouvia falar que a ‘fábrica de chumbo’, que ficava lá para os lados da estrada velha, acima do (Rio) Sergi-Mirim, matava a vegetação em volta. Mas naquela altura fiquei sabendo, por Violeta Arraes Gervaiseau, que os danos eram muito mais sérios e abrangentes”, conta Caetano, referindo-se à socióloga irmã de Miguel Arraes, a “Rosa de Paris”, que apoiava exilados brasileiros durante a ditadura. Violeta morreu em 2008. “O samba é um protesto e uma oração”, define Caetano. “Fala dos rios que cortam a cidade e das invocações de Nossa Senhora que denominam as paróquias – Purificação, Amparo e Rosário – e brada ‘mandar os malditos embora’. É chocante que os donos de empresas e os políticos que lhes concedem licenças sejam tão desumanos quando se trata de ganhar dinheiro. Mas é assim. Minha cidade natal é um dos pontos mais contaminados do globo terrestre. Precisamos lutar permanentemente contra isso e contra o que produz esse tipo de situação. Como?” A poucos metros da secretaria e do teatro, um senhor pesca no Rio Subaé. Tilápia, robalo... “Para comer e para vender”, conta. Perguntam se ele não tem receio da contaminação, e a resposta mistura desdém e realismo: “Se pensar em contaminação, a gente não veve. Hoje em dia tá tudo contaminado”. REVISTA DO BRASIL

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QUEM VAI Os movimentos tradicionais devem se nas manifestações e avaliar se DESENHAR inspirar estão investindo o bastante na formação

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Por Isaías Dalle

DOUGLAS MANSUR/DIVULGAÇÃO

O MUNDO e renovação de lideranças

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ISAAC GERIBERT/DIVULGAÇÃO

J

uventude nas ruas e instituições políticas tradicionais chamadas de caducas. Tudo ocorrendo num país que atrai a atenção do mundo pelo êxito em suas políticas sociais, no combate à pobreza, no alcance do pleno emprego em algumas regiões e na elevação da renda. O Brasil acaba de apresentar melhora significativa em seu Índice de Desenvolvimento Humano, segundo a Organização das Nações Unidas, inclusive no quesito educação, que registrou salto próximo a 130%, frente a 47% na média geral dos demais indicadores. Mesmo assim, pesquisas de opinião registram apoio superior a 80% às manifestações desencadeadas de junho para cá por melhoria nos serviços públicos e por insatisfação com a classe política.

APRENDIZADO TRANSFORMADOR Escola de Formação Florestan Fernandes, do MST


ARQUIVO PESSOAL

EDUCAÇÃO

FOTOS ROBERTO PARIZOTTI/CUT

POSTURA CRÍTICA Guanamar veio do Tocantins para fazer o curso de extensão universitária Políticas e Sindicalismo Internacionai na Unicamp (ao lado): “Hoje percebo como os analistas distorcem fatos”

Um dos principais personagens da evolução do país nos últimos 35 anos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva observa, em conversas com pessoas próximas: “Desde 1975 estivemos sempre à frente ou ao lado dos grandes movimentos. Agora ficamos para trás”. Lula admite que a geração que não conviveu com problemas históricos em fase de superação ou já superados tem razão em protestar. E que os atuais níveis de ativismo deveriam servir para setores dos movimentos passarem a se incomodar com o “cheiro de naftalina” de suas reuniões. Para o ex-presidente, a formação de novas lideranças e a renovação da classe dirigente estão em descompasso com as novas demandas sociais. Que tipo de novas lideranças está surgindo e como fará a “disputa” com a tradicional elite econômica – em torno de um projeto de país? Qualquer resposta a essa questão passa pela educação. E não somente aquela dos bancos escolares, mas também por projetos de formação preparados por organizações que não têm na educação sua atividade-fim. Nesse aspecto, a classe empresarial está na dianteira. O economista Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu

Abramo, ligada ao PT, costuma chamar atenção para os investimentos de grandes grupos brasileiros em educação corporativa, universidades e cursos técnicos em programas como Universidade do Hambúrguer do McDonald’s ou Siemens Management Learning. Segundo ele, o equivalente a um quarto de tudo o que é aplicado em educação no país, nos três níveis, é bancado por empresas. Movida por valores como competitividade, margens de lucro ou ocupação de nichos de mercado, é improvável que essa prática educacional cultive e dissemine solidariedade, justiça social e responsabilidade social. Trata-se de valores que, salvo exceções, são entendidos como importantes para melhorar a marca e a imagem das corporações, mas não como indispensáveis à sustentabilidade do planeta.

Ideologizar

Em geral, o estímulo à participação política como forma de melhorar sua cidade ou seu país tampouco consta das propostas curriculares em que só a boa gestão e a competência pessoal levam à riqueza e ao crescimento. Esse conceito já foi ilustrado com precisão em programas do ti-

po O Aprendiz, do empresário Roberto Justus, cujo prêmio era vaga numa grande corporação e promessa de sucesso. Numa das edições, o apresentador pediu aos competidores, pós-graduandos em administração ou marketing em escolas de prestígio, que comentassem o legado de uma mulher cujo retrato era projetado num telão instalado no estúdio de TV. Era Margaret Thatcher, a Dama de Ferro britânica, guru dos conceitos liberais nos quais o mercado, no atacado, e os indivíduos, no varejo, devem ditar as regras de como a vida deve funcionar. “Para se contrapor a essa desideologização, os movimentos populares e os partidos de esquerda devem buscar justamente a ideologização”, defende a educadora Djacira Maria de Oliveira Araújo, uma das coordenadoras da Escola Florestan Fernandes, do MST. Construída em regime de mutirão a partir de 1997, na cidade paulista de Guararema, a instituição já formou milhares de militantes, em diversas modalidades de curso. O principal critério de admissão da escola, que tem como premissas da educação a tríade “luta, trabalho e organização”, é o vínculo com a terra. REVISTA DO BRASIL

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EDUCAÇÃO

acordos coletivos específicos, e já recebeu 4.100 trabalhadores desde sua criação, há três anos. A primeira companhia a acolher a proposta foi a Mercedes-Benz. O curso é estruturado em dois módulos – negociação entre empresa e trabalhadores e saúde e segurança no trabalho. Está sendo gestado um terceiro, sobre cláusulas afirmativas, para promover a igualdade de oportunidades e coibir a discriminação por raça, gênero ou de pessoas com deficiência. “Nosso objetivo é avançar na elaboração das pautas de nossas campanhas salariais e, portanto, na qualidade de nossos acordos e das relações de trabalho”, afirma o coordenador do programa, Walter Souza, diretor do sindicato e empregado da Mercedes. Funcionária da montadora há nove anos, Cintia da Silva Freire da Cruz, 27 anos, fala com entusiasmo: “Opero as

O “aluno” tem de comprovar que é assentado e trabalha em sua comunidade. A formação parte da realidade vivida pelos estudantes, para assim produzir o aprendizado “transformador”, como preconizava o educador Paulo Freire. Além dos cursos de curta duração e dos seminários da Escola Florestan Fernandes, o movimento tem apoio do governo federal por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). O programa oferece cursos superiores em áreas como Geografia, Estudos Latino-Americanos ou Linguagens do Campo – este criado no ano passado pela Universidade de Brasília –, ministrados por 38 universidades federais, que formam em média 3.200 alunos a cada ciclo, de três anos. Não deixa de ser uma semente de conhecimento, num universo de 350 mil famílias assentadas no campo. A CUT também mantém uma linha de formação desde sua criação, há três décadas. Pelas duas mais recorrentes modali32

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Walter Souza: qualidade das relações de trabalho

duas melhores máquinas da minha seção, estou cercada de pessoas maravilhosas e me sinto realizada”. Cintia é operadora de CNC, um dos mais avançados equipamentos na fábrica. Começou no setor de expedição e fez os cursos que pôde – “pegava no pé do encarregado porque eu queria muito fazer os cursos que a empresa oferecia”, lembra. Com cinco anos de empresa, ficou impressionada ao ouvir de

DIVULGAÇÃO

O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC tem na base de sua organização comitês sindicais de empresa. Os comitês são formados por funcionários eleitos para atuar dentro das fábricas, com mandato para debater problemas e negociar soluções – sempre com respaldo do sindicato. A atuação desses comitês funciona como uma modalidade de formação política, na medida em que permite aos empregados conviver com a atividade sindical e checar resultados. Além dessa forma de estar presente no dia a dia das empresas, a entidade investe também para levar os associados a conhecê-la por dentro. Funcionários de oito grandes empresas da região têm direito a abonar um dia de trabalho por ano para participar de um curso de formação. O programa, chamado Trabalho e Cidadania, é ministrado na sede do sindicato, garantido em

PAULO DE SOUZA/SMABC

Trabalho e cidadania

DO LADO DE LÁ Empresas investem no sucesso individual e busca da riqueza

dades de curso oferecidas, Formação de Formadores e Organização e Representação Sindical de Base, passaram 8 mil pessoas nos últimos três anos. O conteúdo aborda de temas do cotidiano ao sistema político nacional, passando por técnicas de negociação. Essa política é complementada por programas elaborados por sindicatos filiados e seções estaduais da central.

uma colega uma história de solidariedade entre trabalhadores de diferentes empresas, organizada pelo sindicato, para impedir o fechamento de uma indústria de ferramentas na região. “Descobri que sindicato, diferentemente do que eu pensava, não é só pra ajudar em nossos problemas diretos. E que a gente pode ajudar a comunidade, a sociedade.” Cintia se inscreveu no primeiro módulo do curso Trabalho e Cidadania. Segundo afirma, compreendeu melhor como sua atividade profissional se encaixa na cadeia produtiva e no contexto econômico. “Passei também a ter plena consciência de que as condições de vida e de trabalho que temos hoje vieram de longa luta, de muitas pessoas, algumas que até morreram por isso”, diz. “E quero fazer parte disso que chamam militância.”

Na busca de acompanhar as tendências do momento, a entidade prepara programas específicos em assuntos de comunicação e da juventude. “Uma das dificuldades permanentes para ampliar o raio de ação é o financiamento”, afirma o secretário nacional de Formação, José Celestino Lourenço, o Tino. A CUT vai aplicar ao longo de 2013 pouco menos de R$ 1,9 milhão em formação de novas lideranças, sem aporte externo. Para efeito de comparação, os investimentos do mundo empresarial em cursos, especializações e atividades “formadoras”, segundo estimativas de Marcio Pochmann, teriam consumido R$ 57 bilhões em 2012.

Participar e compreender

Mas a luta continua. A central é uma das mantenedoras do curso de extensão universitária Políticas e Sindicalismo Internacionais, que neste ano entra em sua terceira edição. Elaborado em conjunto com o Centro de Estudos Sindicais e de Econo-


EDUCAÇÃO

ROBERTO PARIZOTTI/RBA

CONSCIÊNCIA Cintia trabalha na Mercedes, onde opera as duas melhores máquinas de sua seção. Realizada na profissão, não esqueceu de cuidar do lado cidadão e fez curso no sindicato: “Passei a ter plena consciência de que as condições de vida e de trabalho que temos hoje vieram de longa luta”

mia do Trabalho (Cesit), do Instituto de Economia da Unicamp, o curso é voltado a dirigentes sindicais de todos os setores de atividade. O conteúdo é denso em macroeconomia e relações internacionais, exige farta leitura de produção acadêmica e sete semanas de período integral em sala de aula – com intervalos mensais entre uma e outra. A única exigência acadêmica para admissão é ter o ensino médio completo. Uma das estudantes da turma formada em abril deste ano é Guanamar Soares, trabalhadora rural e moradora em um assentamento próximo aos municípios de Araguatins e Esperantina, no Tocantins. Ela tem 31 anos e conheceu energia elétrica aos 25, quando o programa Luz para Todos chegou a sua região. “Quando eu ouvia falar no Jornal Nacional coisas como PIB, desaceleração da economia, eu achava que era tomação de tempo. Hoje, consigo compreender melhor e percebo como os analistas distorcem fatos”, garante ela, que é dirigente da CUT em seu estado.

O professor Hélder Nogueira Andrade, doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, participou da mesma turma. “Ampliei meus horizontes. Compreendo a relação da economia com questões que muitas vezes vemos apenas como políticas”, conta. Essas diferenças de perfis são a maior riqueza do curso, na opinião do professor do Cesit Dari Krein, um dos coordenadores do projeto. “Pela exigência de sua própria atividade, de sua práxis, esses dirigentes sindicais têm profunda capacidade de abstração, de reflexão. Paulo Freire ensinou isso”, comenta o pesquisador. A formação de novas lideranças passa também pelos partidos e por suas fundações, responsáveis pela produção de pesquisas, estudos, cursos e publicações. A Fundação Perseu Abramo tem planos para investir em projetos de qualificação nas áreas de comunicação e gestão pública. Pretende adicionar à sua linha de publicações uma de volumes de textos bre-

ves, de caráter introdutório, sobre temas do universo político, econômico e social, compreensíveis às novas gerações que ingressam nesse universo. Com o mesmo objetivo, quer produzir conteúdo digital – filmes de curta duração e esquetes – para fazer contraponto ao noticiário comercial. Para Pochmann, as mudanças sociais iniciadas no Brasil nos últimos anos podem se perder no tempo se as pessoas que delas se beneficiam, ou os dirigentes que devem ajudar na continuidade e aprofundamento delas, não relacionarem o processo à luta política e à constante mobilização social. Crítico da terminologia “nova classe média” usada para classificar os brasileiros incluídos no mercado de trabalho, ele alerta que é constante o desafio de confrontar a tese de que a competição e a competência individual são a chave para algum progresso. “É hora de dialogar com esse contingente de cidadãos para não deixá-los cair nesse engodo.” REVISTA DO BRASIL

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MUNDO

O Egito, o Thermidor e a Restauração

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hermidor era o nome do segundo mês do verão do Calendário da Revolução Francesa, instituído pelos reformadores que sucederam a monarquia derrubada em 1789. O nome, pelos eventos que levaram à destituição e execução de Maximilien Robespierre, em julho de 1794, ficou associado à ideia do fim de um processo revolucionário e do começo de um processo de recuo e restauração. De certo modo, isso de fato aconteceu na França pós-revolucionária, pois em seguida à queda de Robespierre houve uma razzia contra os partidários de esquerda que sobreviveram à primeira leva de execuções. Depois, veio o processo que levou ao império napoleônico. Provavelmente estamos assistindo, neste terceiro mês de verão do hemisfério norte, em 2013, a algo parecido no Egito, um Thermidor do ímpeto de avanço democrático que se seguiu à queda do ditador Hosni Mubarak. Sinal destes tempos, hoje, quando escrevo estas notas, em 22 de agosto de 2013, noticia-se a libertação do ex-ditador. Mas não se espera que ela represente um risco de sua recondução ao poder. O que se espera, na verdade, é algo pior: um “mubarakismo” sem Mubarak. O atual general no poder, responsável pela deposição do presidente eleito Morsi, da Irmandade Muçulmana, era o chefe do setor de inteligência do antigo regime. O presidente que ele nomeou pertencia ao sistema judiciário “mubarakiano”. O vice El Baradei, nomeado para agradar aos liberais de centro e de centro-esquerda, renunciou e está, no momento, na Áustria, devido à hostilização que passou a sofrer por parte dos partidários desse nouveau-ancien-régime. Para tentar entender a crise egípcia para além da confusa situação cotidiana, é necessário levar em conta pelo menos cinco fatores. O primeiro deles é o papel das Forças Armadas egípcias. Desde que decapitadas de seu impulso nacional-transformador nasserista, as FFAA do Egito 34

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se enredaram numa complicada rede de ligações entre o setor público, que dominam, e o setor privado, que muitos de seus próceres, frequentemente reformados, administram. Há um conluio de interesses estatais e privados de que os líderes das FFAA não querem nem vão abrir mão no curto nem no médio prazo. Morsi, com sua (canhestra, é verdade) tentativa de reformular a Constituição do país, aproximando-a de valores da Irmandade Muçulmana, afrontou os poderes desse conglomerado. Em seguida, a inépcia e a fragilidade de Morsi e da Irmandade Muçulmana. Morsi tentou levar a cabo um governo voltado apenas para seu partido. Num país rachado, para dizer o mínimo, com uma classe média em vias de empobrecimento, um setor corporativo das FFAA e do Estado egípcio percebendo seus privilégios em perigo, uma massa pobre dividida entre diferentes apelos, quis impor uma racionalidade de perfil único. Perdeu mais apoios do que ganhou, e passou a girar em falso, sem poder de constranger a oposição liberal e de esquerda nas ruas nem a palaciana, em grande parte herdeira dos tempos de Mubarak, nos corredores e labirintos do poder. Perdeu: foi deposto sem um único tiro contra ele – embora isso tenha levado ao massacre de seus partidários inconformados com a derrota institucional depois da vitória eleitoral, ainda que apertada. Pesa também na conjuntura egípcia a barafunda do cenário internacional. Os países do Ocidente, embora mantendo a faca e o queijo nas mãos, estão relativamente paralisados no Oriente Médio, limitando-se a manter as coisas como estão: desconfiança e aperto em relação ao Irã, sustentação e tolerância em relação aos falcões israelenses, perplexidade diante da situação síria, desejando a queda de Bashar Al-Assad, mas perdendo controle progressivamente sobre a oposição ao governo de Damasco, cada vez mais tomada por grupos radicais anti-Ocidente, antitudo, alegadamente (inclusive pelos mesmos) islâmicos. Nesse

EMAN HELAL/EFE

Depois de uma primavera da qual vertem mais espinhos do que flores, o país arrisca-se à beira de um outro tenebroso inverno de autoritarismo Por Flávio Aguiar

MASSACRE Seguidores do presidente deposto Mohamed Morsi elevam o símbolo de uma mão com quatro dedos em referência à mesquita de Rabaa al Adauiya, onde centenas de pessoas foram mortas pelas tropas do governo golpista no último dia 15 de agosto


MUNDO

vazio quem está crescendo é o que de pior existe no Oriente Médio: a reacionária monarquia saudita. A Arábia Saudita vem ocupando o espaço deixado em aberto pela queda de Mubarak. Forçou o congelamento de ajuda financeira ao governo de Morsi, e agora a escancarou para o novo governo chefiado “de facto”, como gostam de dizer os conservadores, por Al-Sisi. Bilhões de dólares estão fluindo para os cofres egípcios, bilhões que antes foram negados a Morsi, que tinha o apoio menos eficiente do Qatar. Um quarto elemento a compor a análise é a fragmentação, sob aparência de união, da oposição laica ao governo de Morsi, liberal e de esquerda. Essa oposição, cujos líderes também são ávidos pelo poder, acreditou na ilusão de que derrubaria Morsi sem o concurso das FFAA. Preferiu a via do “Fora Morsi” à via mais lenta da reconstrução democrática do país. Morsi, afinal, ganhara a eleição. Enveredara pela via da autorreferência, isolando-se, é verdade. Mas, em vez de propiciar ao governo uma oposição que lhe servisse também de baliza, os descontentes tentaram o viés da derrubada pelo poder das ruas, o que desembocou nesse retorno do poder à sombra das casernas. Por fim, não há a menor simpatia pela Irmandade Muçulmana no Ocidente. Há, ao contrário, um temor infuso e difuso do seu crescimento institucional e dos reflexos que isso poderia

ter, por exemplo, na Europa, que já se vê pressionada pelas posições de governos como os da Tunísia e da Turquia. Isso tem levado a declarações vagas de “repúdio à violência”, em vez de a uma condenação mais clara dos massacres perpetrados pelas FFAA egípcias, polícia e grupos paramilitares evidentemente herdeiros das hostes, transformadas em hordas, mubarakianas, que hoje patrulham as ruas lado a lado a soldados e policiais. A continuar esse quadro, não haverá sequer um Napoleão egípcio, levando adiante mesmo que à força de baioneta uma revolução burguesa na Europa que minou de vez o poder do Ancien Régime, mesmo depois da restauração, a partir de 1815. Haverá apenas uma dinastia disfarçada de generais e quadros corporativos herdeiros dos tempos de Mubarak, sem Mubarak. O que pode mudar isso? Durante dois anos, o Egito viveu uma grande expectativa democrática, emoldurada pelo desejo de melhoras sociais profundas. Se isso levar a novas pressões políticas que não caibam no escopo da renascente restauração, esta poderá se romper novamente. Mas será necessário também que a oposição, de centro, de esquerda, laicas, considere a possibilidade de se unir a forças menos sectárias da Irmandade, numa frente comum, que leve o país a uma nova rotação democrática. Difícil, não? Mas não impossível. REVISTA DO BRASIL

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PERFIL

Vida, paixão e tortura de

Bradley Manning Disse o alemão Bertolt Brecht, o famoso autor de teatro: “Infeliz é o país que precisa de heróis”. Mas talvez mais infeliz seja o país que persegue os seus heróis Por Renato Pompeu

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lgumas das personalidades mais destacadas do passado dos Estados Unidos foram assassinadas em público, como Abraham Lincoln, John e Robert Kennedy e Martin Luther King. Hoje em dia os heróis americanos não são mais “justiçados”: são perseguidos pela Justiça. É o que acontece com jovens como Bradley Manning, o que transmitiu ao Wikileaks os documentos confidenciais da diplomacia americana e os vídeos das atrocidades americanas no Oriente Médio. Ou Edward Snowden, o que revelou ao mundo a rede global de espionagem internética e telefônica pelo governo dos Estados Unidos. Enquanto Snowden se abriga temporariamente na Rússia, Manning, a cumprir todas as penas por seus “crimes”, passará o resto da vida preso. Sobre ele acaba de sair em inglês, pela editora Verso, o livro The Passion of Bradley Manning – The Story Behind the Wikileaks Whistleblower, do advogado especializado em direitos civis Chase Madar, baseado em Nova York e tão isento na defesa dos direitos individuais que é colaborador da publicação esquerdista francesa Le Monde Diplomatique e da revista direitista americana The American Conservative. O título do livro pode ser traduzido para “A paixão de Bradley Manning – A história por trás do denunciante do Wikileaks”. Whistleblower, literalmente “o que sopra o apito”, tem sido traduzido em português por “delator”, mas não tem em inglês o sentido pejorativo dessa palavra portuguesa; “denunciante” fica melhor. 36

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Como bom advogado, Madar escreveu o livro em grande parte para provar que as condenações a Manning foram altamente exageradas. Das 250 mil mensagens diplomáticas que ele deu a público, nenhuma era “altamente secreta”. Menos de 16 mil eram “secretas” e mais da metade eram públicas. O próprio governo americano elaborou um documento que diz que as revelações de Manning “não comprometeram a segurança nacional”, mas esse próprio documento foi classificado como “altamente secreto”, e inicialmente não foi possível ter acesso a ele durante o julgamento. Mas quem é Bradley Manning? É um típico rapagão do interiorzão americano que só vai fazer 26 anos em dezembro próximo e que nasceu no vilarejo de Crescent, mil habitantes, no estado de Oklahoma. Madar, para descrever o lugar, usa a frase da poeta Gertrude Stein “lá não existe lá”. Nem mesmo Manning é o primeiro gay de Crescent a se tornar um denunciante de fama. Em 1974 morreu num misterioso desastre de carro a sindicalista Karen Silkwood, que havia denunciado vazamentos numa usina de plutônio na área rural da região. Manning passou grande parte de sua vida na casa de dois andares de seu pai, antigo soldado da Marinha que serviu no País de Gales e casou com uma galesa. Cumpre notar que seu pai não está autorizado a revelar o que fazia na Marinha. A casa tinha no quintal dois cavalos, uma vaca, porcos e galinhas. Bradley herdou as habilidades do pai. Desde criança sabia fazer complicadas operações no computador. Descobriu-se gay aos 13 anos


LEXEY SWALL/GETTY IMAGES

PERFIL

APOIO DENTRO DOS ESTADOS UNIDOS Marcha civil realizada em junho em Fort Meade, onde está sediada a NSA (agência de segurança norte-americana), pede a libertação de Bradley Manning

e seu patriotismo já arraigado se intensificou com os atentados de setembro de 2001, quando tinha 14 anos. Sua mãe era alcoólatra e se divorciou; o adolescente foi morar com ela em Gales.

Corrigir um grande mal

Baixinho, gay e estrangeiro, Bradley sofreu bullying – chegou a ser semienterrado entre estacas. Levava tudo a sério e costumava dizer: “Ainda vou corrigir um grande mal”. Logo seu pai arrumou-lhe um emprego numa firma de software, em Tulsa, também em Oklahoma, e ele voltou para os Estados Unidos. Mas foi expulso de casa pelo pai e pela madrasta por ser gay, e se tornou trabalhador itinerante em empregos de salário mínimo, até se estabelecer em 2006, aos 19 anos, na casa de uma tia na capital, Washington. Em fins de 2007, aos 20 anos, alistou-se no Exército. Acabou indo servir na Base de Operações Avançadas Hammer, no Iraque, a 60 quilômetros de Bagdá, no meio do deserto. “Operações avançadas” é eufemismo para inteligência. Bradley Manning, entretanto, levava a sério a lição deixada por um dos autores da Constituição americana e quarto presidente dos Estados Unidos, James Madison (1751-1836): “Um governo popular sem informação popular é um prelúdio a uma tragédia ou a uma farsa”.

Como analista de inteligência da 10ª Divisão de Montanha do Exército, confinado no meio do deserto, Manning teve acesso a todo tipo de informação. Milhares de textos e imagens referentes às guerras do Afeganistão e do Iraque, dos arquivos da prisão de Guantánamo, de mensagens de diplomatas americanos estabelecidos no mundo inteiro. Espantou-se como tantas coisas importantes eram sonegadas ao público. Segundo Chase Madar, o Escritório de Supervisão da Segurança da Informação, órgão federal americano, calculou em 77 milhões os documentos declarados secretos em 2010 e 92 milhões em 2011. Em contato internético com outro jovem altamente qualificado em informática, o australiano Julian Assange, fundador do Wikileaks, Manning passou-lhe a partir de 2010 arquivos secretos, incluindo o famoso, ou infame, vídeo Assassínio Colateral, em que dois helicópteros-canhoneiras americanos aparecem metralhando do alto civis, inclusive crianças, num bairro de Bagdá, a 17 de julho de 2007. Em meio a suas trocas de informações, ele revelou ao famoso hacker Adrian Lamo que tinha sido ele, Bradley Manning, o autor da divulgação do Assassínio Colateral. Lamo era informante secreto das autoridades militares. Manning logo foi preso e ficou nove meses seguidos confinado a uma solitária. Em seu capítulo 5, intitulado “A tortura de Bradley Manning”, o advogado conta que Manning ficava 23 horas por dia sozinho na solitária, era proibido de fazer flexões e mesmo de ficar sentando e levantando para fazer algum exercício, não podia usar óculos, era obrigado a dormir nu. Ficar vestido quando estava acordado não melhorava as coisas: a cada cinco minutos algum guarda lhe perguntava: “Você está bem?”, e Manning era obrigado a responder a cada vez. Nove meses assim, e Madar pergunta: “Se isso fosse feito a um soldado dos Estados Unidos mantido prisioneiro na Coreia do Norte ou no Irã, nenhum figurão americano hesitaria em chamar isso de tortura. Como é que esse tratamento não pode levar qualquer um à loucura?” E pergunta ainda mais: “É certamente tentador ver a tortura do isolamento de Bradley Manning como um resultado tóxico da Guerra Global contra o Terror. O que mais poderia explicar esse abuso, por parte de uma democracia industrial avançada, contra um de seus próprios cidadãos?” Afinal, comandantes americanos administraram tratamento muito pior a presos em Abu Ghraib, Bagram e Guantánamo. O autor ainda adverte: “Muitos de nós gostaríamos de pensar que tudo isso é uma exceção colossal e vergonhosa em relação a nossas leis e costumes. Mas as atrocidades sensacionais da Guerra Global contra o Terror que escandalizaram o mundo durante a última década são basicamente uma simples extensão de nosso modo ‘normal’ cotidiano de fazer justiça criminal. Com certeza, o uso de tortura pela Guerra Global contra o Terror tem sido mais programático. De Guantánamo a B ­ radley Manning, a maior parte da nossa suposta resposta desmedida a setembro de 2001 tem de fato sido menos a exceção do que a regra. Em geral, a Guerra Global contra o Terror tem sido tipicamente americana”. Infeliz o país que precisa tratar assim os seus presos. REVISTA DO BRASIL

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Seu Manuel e o quadro com esqueletos de Hiroshima: protesto contra a construção de usinas nucleares

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ENTREVISTA

A poesia visual de

Araquém Alcântara Mais de 100 viagens à Amazônia, milhares de quilômetros percorridos mata adentro, registros de belezas e tristezas de um país diverso e gigantesco. Disso é composto o olhar do fotógrafo Por Xandra Stefanel

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esmo sendo analfabeto, seu Manuel escolheu para o filho nome inspirado na literatura de José de Alencar. Araquém – “grande ave” em tupi – é pai da índia Iracema, no romance homônimo do escritor cearense. A inspiração do pai talvez explique a do fotógrafo Araquém Alcântara, ao registrar as belezas naturais brasileiras, os povos e os animais da floresta. Na adolescência, sonhava ser jornalista até assistir ao filme A Ilha Nua, do japonês Kaneto Shindô, em 1970. O encanto apresentado em preto e branco atordoou o jovem, que no dia seguinte pediu uma câmera emprestada a uma amiga e foi para um cabaré no porto de Santos (SP), onde costumava ver shows de rock. Saiu de lá sem uma foto. Enquanto esperava o ônibus, com o sol já dando as caras, uma moça o provocou: “Quer fotografar? Fotografa aqui”, e ergueu a saia. “Fui para a zona de Santos com uma câmera e nunca mais fui o mesmo.” Aos 62 anos, o autor de Terra Brasil, seu livro mais famoso, ainda está cheio de projetos.

Biguatinga, Jureia, SP

Como você se tornou fotógrafo de natureza?

Minha fotografia teve um encaixe perfeito, fomos nos transformando em farinha do mesmo saco, Araquém e fotografia. A fotografia é sempre a fonte, como a Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, como o tiro ao alvo, a cerimônia do chá, uma luta marcial. De uns 20 e tantos anos para cá, ficou claro que a dedicação integral a fotografar talvez a principal coisa do mundo, que é a floresta e a biodiversidade, que é a fotografia mais difícil de ser feita, se resumiu numa coisa assim: o meu modelo de universo é o Brasil, a Mata Atlântica, a Amazônia sobretudo. A minha matriz criativa é o andar. Sem andar, sem ser um fotógrafo andarilho, eu não desenvolveria essa minha obra. Como quem diz assim: “Olhem os lírios do campo!” ou “percebam o horror que é um tamanduá-mirim pegando fogo no meio da Transamazônica”. Flagrando paisagem poética e política.

Seu Dipirona, coletor de piaçava, Rio Aracá, AM

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ENTREVISTA

Desde o início foi assim?

É impressionante como foi. Olhe como esse olhar se manteve puro apesar de 40 e tantos anos vendo tantos contrastes. Tudo isso tem uma tarefa: espalhar e repartir belezas. E o outro lado é o lado horror, a indignação diante de tantos crimes de lesa-humanidade. A primeira vez que você registrou esse horror foi em 1973, na exposição Urubus da Sociedade?

Trabalhador rural, Mococa, São Paulo

Sim, tudo começou ali. Eu era um jornalista hippão, com aquelas bolsinhas de lado, calça de pano solto, traduzindo as primeiras coisas de Bob Dylan, curtindo Jimi Hendrix e entrando no cinema para ver Glauber Rocha. O que eu já andei é muito além do que as pessoas possam imaginar. A minha fotografia se faz ao andar. E eu me dedico integralmente a isso. Eu não faço estúdio, não faço mulher nua. A dedicação integral aos bichos me fez amigo deles. A dedicação integral às florestas me fez hóspede. Quando eu entro na floresta, sinto uma energia xamânica tão forte! Isso foi sendo preparado pelo meu pai desde que eu era pequeno. Até no nome Araquém. Disseram para ele que esse nome era o do pai de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Ele estava desempregado no Recife, leram para ele um trecho – ele era analfabeto, cozinheiro de navio da Marinha mercante –, e ele disse que esse seria o nome do filho dele. Você sempre sentiu essa energia ao entrar na mata, desde sua primeira pauta, quando foi chamado por um vereador para fazer uma reportagem na Jureia?

Raiz de sumaúma na Comunidade Caicubi, AM

Eu já fui preparado pelo meu pai muito antes. Acredito muito no Encontro com Homens Notáveis, esse livro do iluminado (George Ivanovich) Gurdjieff. Já fui muito mais exotérico, espiritualista... Mas sou integralmente isto: desobediente, pan, holístico. O meu pai, na sua intuição rude, primitiva, ou talvez na sua clarividência extraordinária – que eu não soube perceber –, foi a primeira grande pessoa notável na minha vida, o cara que sacou que o filho tinha alguma coisa de diferente. Isso já foi uma maravilha. Eu tenho uma foto com ele, no dia do meu aniversário de 20 anos. Estamos nus numa pedra no meio da Mata Atlântica, os dois muito parecidos, cabeludos. Desde pequeno ele me protegia, queria que eu seguisse a religião dele, o candomblé, que eu fosse talvez um pai de santo. Fui várias vezes com ele, mas nunca rolou, apesar de eu ser muito bem recebido. E ele sempre dizia: “Aqui está todo o mistério, aqui está toda a unidade, aqui estás em casa, meu filho. Todas as árvores são tuas, todos os peixes, pedras, flores são teus”. Você já sabia o que significava seu nome?

Onça-pintada no Parque Nacional da Amazônia, AM

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Eu nem sequer imaginava. Estou com 62 anos. Depois que completei uns 45, aconteceu meu interesse em saber o que significava. Do tronco Tupi, ara quer dizer ave. Tanto é que o Guimarães Rosa chamava a mulher dele, a Aracy, de Ave Ara. Segundo o filólogo que me deu a letra, Araquém quer dizer a grande ave. Quem diria que eu iria me dedicar a fotografar todas as aves, inclusive a grande ave, que é a harpia? Perguntei aos índios Zoés,


ENTREVISTA

que são uma tribo feliz do norte do Pará, qual era o maior desafio de um guerreiro. O maior desafio é caçar uma harpia porque ela enxerga a quilômetros de distância, então vê primeiro o índio. A mira e o alvo. O zen. O fotógrafo, o observador e o observado. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, atirar só sabendo, sem pensar. A criação é um ato do amor. É por essa fenda que meu pai me levou intuitivamente. Então, quando entrei na mata, eu estava mais ou menos preparado para aceitar aquela missão em que vi aquelas caras de caiçaras reunidas na chuva, em 1979. Qual foi sua primeira foto profissional?

Minha primeira foto profissional foi uma puta me mostrando o sexo. Eu senti que lutei por essa foto, que aconteceu no dia seguinte em que eu, totalmente apaixonado pela cultura brasileira, tomei um tapa de um filme japonês chamado A Ilha Nua. De fotografia eu não sabia nada. Eu estava começando nos grandes livros, como O Apanhador nos Campos de Centeio. Esse filme me fez pegar uma máquina emprestada e ir fotografar o povo. Fui para a zona de Santos com uma câmera, e nunca mais fui o mesmo. O que o filme me passou muito profundamente foi “essa é uma bela maneira de dizer o que eu penso”. Eu, muito radical, nos anos seguintes comecei a tropeçar nas palavras. O meu texto foi ficando horroroso, sintético demais, camuflado... A fotografia estava nascendo. Como faz para a natureza “permitir” a sua presença?

A primeira grande dificuldade é você andar na natureza, porque ela está do outro lado. A natureza é o insólito, o perigoso. O apocalipse começou quando nós começamos a nos afastar da natureza, quando passamos a cortar um cedro de 400 anos de idade em dez minutos. O Brasil não tem política de meio ambiente. O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) está às moscas. De 69 parques nacionais brasileiros, só 18 têm a mínima condição de receber turistas. Nesses mais de 40 anos de andanças, quais foram as mudanças mais drásticas que você viu acontecer na natureza?

Eu vi o país se desertificando. A mata de araucária foi passando e agora 99% já se foi; a Mata Atlântica, 93%, desde 1500; o cerrado já tem 55% de terra arrasada; a caatinga, 45%; a Mata Amazônica, 17% a 20%. Nesse contexto todo, centenas de milhares de bichos ainda estão vivos, mas estão extintos biologicamente porque tiveram surrupiados os corredores ecológicos. Então temos bichos e mais bichos estudados que estão fadados ao desaparecimento. Não há mais retrocesso. Nós já deveríamos ter parado há mais de 15 anos o desmatamento da Amazônia e o desmatamento em geral. Mas não há política para isso. Talvez a melhor coisa que tenha acontecido foi no governo Lula, quando o Banco Central e o BNDES impediram que quem estivesse na lista de devastadores contumazes tivesse aceso a crédito para ampliar suas áreas; isso, junto com o aumento da fiscalização. O problema é que é tudo muito lento. Está surgindo uma nova consciência entre os meninos, mas ela também é muito lenta.

Como são suas expedições?

Eu sou duas pessoas. Se mostro uma foto em um acampamento, no mato, parece alguém das Farc, uma coisa meio guerra. Carregar pesos, equipamentos, mudanças climáticas rápidas, animais peçonhentos. Tem também os acidentes, os cortes, a malária. Já caí de avião, sofri sequestro de índios, uma canoa desgovernada de um cara irresponsável que quase nos matou em uma cachoeira... Você está em uma situação em que de repente pode acontecer um grave acidente. Isso é a coisa mais complexa dessa fotografia. Imagina isso no tempo do filme! Mas como eu sei qual é a minha na Terra, aguento qualquer negócio. Quais são seus próximos projetos?

Eu estou envolvido com um projeto em parceria com o governo brasileiro que não está viabilizado ainda. Eles estão me dando, através do Ibama e do ICMBio, condições de chegar a lugares que eu gastaria três ou quatro vezes mais. Eu propus esse projeto de municiar todas as escolas públicas brasileiras com uma coleção chamada Chico Mendes. O Brasil tem áreas vastas e o conhecimento não circula. Como fazia para viajar no começo da carreira?

Era tudo muito mais difícil... Mas, curiosamente, eu viajava mais, porque tinha menos compromissos. Hoje tenho dois netos, três funcionários etc. Apesar de toda a dificuldade, estou conseguindo um reconhecimento. Por exemplo, dia 27 de novembro vão lançar um livro meu, Amazônia, na França, com textos de um cara chamado Thierry Piantanida. Tem algo a ver com o Amazônia – Planeta Verde, filme em 3D que guia o espectador pela floresta amazônica a partir do ponto de vista de um macaco-prego?

É o livro que acompanha o filme. Sou consultor do filme.

Você vai lançar também um livro sobre a onça-pintada?

Sim, estou trabalhando nisso com muito afinco. Mas o que entra na frente é o livro para a Copa, em quatro línguas, que deve se chamar “Brasil”. Ainda preciso de um subtítulo para não confundi-lo com tantos livros de ocasião. É um livro de arte que está previsto para ser lançado em maio do ano que vem. O da onça vai se chamar “Iauaretê, o Livro da Onça”. Também estou fazendo um livro sobre Santos, minha terra, com o melhor que eu produzi lá, todo em preto e branco. Mas foi na mata da Jureia que comecei a compreender os mistérios e vivenciar o que a minha alma precisava vivenciar e desenvolver, que era a união do ideológico com o místico. E isso foi um tremendo elixir da juventude. O tomar vento e tirar poeira dos olhos é extremamente rejuvenescedor. Mesmo ficando doente e passando perrengues?

Mesmo. Porque, na verdade, o desconforto e a dor têm um código extremamente revelador. Se você só tem uma atitude confortável e não assume riscos, as coisas ficam muito comuns. A rotina criativa mata as pessoas. REVISTA DO BRASIL

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A VIDA e seus reveses

Com pelo menos 500 composições gravadas, Wilson Baptista ganha biografia para mostrar que foi muito além da polêmica com Noel. De quem, aliás, foi parceiro Por Vitor Nuzzi

a época. Exemplo é Boca de Siri, em que uma delas cai na farra no carnaval e depois diz: Quem encontrar o meu moreno por aí/ Faça-me o obséquio, boca de siri. Outra característica que chamou a atenção do biógrafo foi o lado “filósofo” do compositor de origem simples, nascido em Campos, no Norte Fluminense, e que ainda criança foi com a família para o Rio de Janeiro. “Assim como tinha fascínio pela malandragem, ele gostava de literatura, filósofos. No Café Nice, conhecido ponto de encontro da boemia carioca, vivia muito em torno de jornalistas e intelectuais. Então, tem muito samba brincando com isso.” Foi assim que entrou Freud no samba, em Complexo, gravada em 1950 por Elizeth Cardoso: Eu não tinha recalque, eu não tinha complexo/ Minha vida era bela e calma/ Até que você entrou pela porta do meu coração/ E hoje não sou dona de minha alma.

ARQUIVO O CRUZEIRO/EM/D.A PRESS

W

ilson Baptista de Oliveira não tocava nenhum instrumento. Era bamba na caixa de fósforos. Não era do morro, nem de escola de samba. Nunca teve um trabalho formal, mas produziu centenas de composições – pelo menos 500 foram gravadas. Um dos mais criativos compositores brasileiros, teria completado 100 anos em 3 de julho, e morreu pouco lembrado, em 1968. Em breve, ganhará uma biografia, preparada pelo pesquisador, produtor e músico carioca Rodrigo Alzuguir, que questiona a fama de malandro colada em Wilson. “Foi um dos caras que mais trabalhou na geração dele. Existia um preconceito, entre os próprios músicos, contra quem se dedicava só à música.” O que mais encantou o biógrafo, inicialmente, foi a presença de personagens. “Tem sambas que são praticamente minioperetas”, diz. Em Oh, Seu Oscar, por exemplo, são três personagens em uma só estrofe: Oscar, a vizinha e a mulher que foi embora. Também tem a Etelvina de Acertei no Milhar e outras canções. E Cabo Laurindo, que leva o pesquisador a desconfiar de certa simpatia de Wilson Baptista pelo comunismo: Amigo da verdade/ Defensor da igualdade/ Dizem que lá no morro/ Vai haver transformação/ Camarada Laurindo,/ Estamos à sua disposição. “Mas ele não era de se comprometer com uma ideologia, a não ser o Flamengo”, brinca Rodrigo. Comunista ou não, o compositor deixava explícita a crítica social em canções como Pedreiro Valdemar, de 1948, que falava do operário construtor de tantas casas, mas sem casa pra morar. Curiosamente, o presidente Getúlio Vargas declarou que gostava muito dessa marchinha, também citada tempos depois por seu principal opositor, o governador da Guanabara Carlos Lacerda. Nesse sentido, brinca, Emília (Quero uma mulher/ Que saiba lavar e cozinhar/ E de manhã cedo/ Me acorde na hora de trabalhar) poderia ser casada com o operário que pega o bonde São Januário. Mas era mais comum encontrar mulheres de certa forma “liberadas”, ainda mais para


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verdadeiramente foi a “burrice do brasileiro, que não tem memória”. Ele comenta que aos 40 o compositor já era tido como “velha-guarda”. Rodrigo também acredita que o fato de Wilson ter morrido em 1968, quatro dias depois de completar 55 anos, fez com que não participasse de um movimento de resgate do samba, que começava a acontecer naquele período, trazendo à luz nomes como Cartola, Nélson Cavaquinho, Adoniran e Ismael Silva. A versão que se consolidou ao longo do tempo tem um viés politicamente correto. Wilson fez Lenço no Pescoço, lançada em 1933, em que o narrador diz ter orgulho “em ser tão vadio”. “Não é um autorretrato do Wilson”, observa Rodrigo, “mas uma homenagem àqueles malandros de uma geração anterior, advindos da capoeiragem”. Noel teria ficado incomodado com a apologia à malandragem e respondido a Wilson com Rapaz Folgado. O compositor e pesquisador Almirante foi quem consolidou essa versão de que a “briga” musical se deu entre um malandro e um rapaz comportado. O que também não era bem assim, já que Noel era amigo dos malandros. Nos anos 1950, Almirante apresentou uma série radiofô-

Abraço na humanidade Flamenguista roxo, Cyro Monteiro não resistiu à provocação. Quando nasceu Sílvia, primeira filha de Chico Buarque e Marieta Severo, em 1969, ele mandou uma roupinha do rubro-negro para Chico, torcedor do rival Fluminense. A gentileza rendeu música, Ilmo. Sr. Cyro Monteiro ou Receita pra Virar Casaca de Neném, que conta: Minha petiz/ Agradece a camisa/ Que lhe deste à guisa/ De gentil presente/ Mas caro nego/ Um pano rubro-negro/ É presente de grego/ Não de um bom irmão). Cyro não chegou a mandar a camisa, apenas ameaçou, como contou Chico em entrevista a O Pasquim, em 1970. “(Ele) Disse que é uma coisa que ele sempre faz quando nasce filho de amigo, mas acho que ele não encontrou portador e acabou não mandando a camisa. Aí eu fiz a música de resposta, dizendo que ela recebeu a camisa, trocou as cores e teve a sabedoria de se tornar tricolor desde tenra idade.” Carioca do subúrbio (Rocha, na zona norte), Cyro completaria 100 anos em 2013. Morreu aos 60, em julho de 1973. Vinícius de Moraes, outro centenário, disse considerá-lo o maior cantor popular brasileiro de todos os tempos, e “um abraço em toda a humanidade”, pela simpatia – que, segundo todos os relatos, era uma de suas principais características. O poeta tem até lugar para Cyro, no Samba da Benção que fez com Baden Powell: A bênção, meu bom Cyro Monteiro/ Você, sobrinho de Nonô... O primeiro sucesso, de 1937, foi um “samba gaúcho”: Se Acaso Você Chegasse (Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins). Do

nica que acabaria consolidando, segundo Rodrigo, “uma versão politicamente correta da polêmica”. Na origem, a briga ficou restrita ao ambiente musical – só virou polêmica mesmo duas décadas depois. Mas faltou um elemento importante. O que aconteceu foi que Noel Rosa e Wilson Batista se interessaram pela mesma mulher, uma dançarina de cabaré da Lapa, e Wilson levou a melhor – e aí Noel resolveu cutucá-lo com Rapaz Folgado. E veio uma sequência de músicas, que entraram para a história: Mocinho da Vila (Wilson, 1934), Feitiço da Vila (Noel, 1934), Conversa Fiada (Wilson, 1935), Palpite Infeliz (Noel, 1935), Frankenstein da Vila e Terra de Cego (Wilson, 1936). Inimigos para sempre? Que nada. A tal “briga” terminou em parceria – em uma mesa de bar, claro. “Eles se encontraram por acaso num botequim e aí o Noel pediu para o Wilson cantar Terra de Cego. Ali mesmo, Noel fez uma nova letra. Eles fizeram uma parceria e mudaram o foco da polêmica”, conta Rodrigo. Sobrou para a moça pivô do triângulo: Deixa de ser convencida/ Todos sabem qual é/ Teu velho modo de vida.

Cyro e Vinícius: simpatia

PEDRO MORAES

Em outra canção conhecida, Chico Brito, lançada por Dircinha Batista em 1949 e gravada 30 anos depois por Paulinho da Viola, haveria traços do filósofo Jean-Jacques Rousseau. Mas a vida tem os seus reveses/ Diz sempre Chico, defendendo teses/ Se o homem nasceu bom/ E bom não se conservou/ A culpa é da sociedade que o transformou. Para Rodrigo, Wilson Baptista era uma figura avançada para seu tempo e “muito mais rica que o clichê” do sambista, por não ser ligado a nenhuma escola, nem ser originário do morro carioca. Sua marca registrada é mesmo o humor, como observa o pesquisador, que se aprofundou na obra de Wilson a partir de 2000, quando fez o encarte do disco Ganha-se Pouco, mas é Divertido, de Cristina Buarque. E tem, é claro, a famosa polêmica com Noel Rosa, que pode ter contribuído para um menor conhecimento da obra de Wilson Baptista. Nos anos 1970, Paulinho da Viola chegou a lamentar que as pessoas só se lembrassem de Wilson – “o maior sambista brasileiro de todos os tempos” – por causa da polêmica, que na obra dele “é apenas um detalhe”. Para o biógrafo, o que ofuscou Wilson

seu repertório também fazem parte Ó, Seu Oscar e O Bonde de São Januário, de Wilson Batista. O cantor foi ainda um dos descobridores de Nélson Cavaquinho e “padrinho” musical de Geraldo Pereira. No show Telecoteco Opus nº 1, com o parceiro Dilermando Pinheiro, Cyro conta que, durante o velório de Geraldo, em 1955, um desconhecido o abraçou e disse, constrito: “Seu Cyro, que coincidência!” Ele ficou esperando, até que descobriu que não havia coincidência alguma: o sujeito queria dizer mesmo “que tragédia”. REVISTA DO BRASIL

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Berço do Velho Chico

Serra da Canastra, no sudoeste mineiro, é um lugarzim bem bom e fica logo ali Por Ana Paula Carvalhais Fotos de João Marcos Rosa/Nitro

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ranquilidade, contemplação e um sabor inigualável. Da estrada de terra que dá acesso ao Parque Nacional da Serra da Canastra, a partir da cidade de São Roque de Minas, já é possível desfrutar o majestoso cenário: o imenso baú rochoso que dá nome à serra e guarda verdadeiros tesouros naturais e da cultura do sudoeste de Minas Gerais. Adiante, o que se terá é uma saborosa sequência de descobertas – tanto das paisagens como da tradição da gente que mora nas redondezas da reserva. Após a entrada, uma das primeiras paradas obrigatórias é a nascente histórica

do Rio São Francisco. Mesmo que posteriormente se tenha constatado que a nascente geográfica está a alguns metros dali, vale conhecer e registrar o pequeno filete d’água próximo à imagem do santo homenageado. Foi justamente para proteger o berço do Velho Chico – que pouco a pouco ganha corpo e força para percorrer boa parte do país – que a região se tornou parque nacional, em 1972. Mas apenas 70 mil hectares dos 200 mil previstos no decreto de origem foram, de fato, indenizados e constituem a área real do parque, atualmente administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada


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Casca d’Anta

ao Ministério do Meio Ambiente. Se à distância o que impressiona é o grande baú, mais de perto a serra acolhe como uma muralha a proteger a vida silvestre que habita a região. Ao sabor dos ventos que sopram em altitudes que variam entre 900 e quase 1.500 metros, o capim dourado camufla tamanduás-bandeira, emas, lobos-guará e veados-campeiros. Para flagrar alguns desses ilustres moradores é preciso olhar atento e muita paciência. Os carcarás parecem menos refratários a lentes fotográficas. Aproximam-se em voos rasantes, cruzam as estradas caminhando ou mesmo pousam – e posam – calmamente sobre placas e cupinzeiros.

Além da estrada que corta o parque de fora a fora, há os caminhos secundários e trilhas que levam às cachoeiras. Destas, algumas passam de 90 metros de altura, como a famosa Casca d’Anta, o principal cartão-postal, que devido à força das águas pode apenas ser contemplada à distância – tanto da parte baixa, pela estrada que liga os municípios de Vargem Bonita a São José do Barreiro, quanto pela parte alta, seguindo a estrada principal do parque, com todo o acesso sinalizado. A melhor época para visitação é de abril a outubro, quando há menor incidência de chuvas. Já as temperaturas são bem amenas, com média de 19 graus no

inverno e 23 no verão. E essa combinação especial de clima, relevo e altitude não só cria condições ideais para belos cenários como também ajuda a perpetuar uma tradição: a produção de queijos artesanais. Nos sete municípios que circundam o parque, com seus pequenos distritos e lugarejos, vivem cerca de 1.500 produtores artesanais do queijo canastra. Os mais antigos acreditam que o clima do pé da serra faz toda a diferença para a qualidade do leite. E a tradição vem desde a época em que a Canastra era caminho de tropeiros. São famílias que há pelo menos quatro gerações se dedicam à produção REVISTA DO BRASIL

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do queijo produzido a partir do leite cru. Levemente ácido, o queijo canastra é o ingrediente principal do delicioso pão de queijo mineiro e de outras iguarias, como o “joão-deitado”, feito à base de mandioca e queijo ralado e assado em folhas de bananeira. Encontrado em três principais pontos de maturação, o canastra pode ser consumido fresco (com até quatro dias), meia cura (entre cinco e 14 dias) ou curado (a partir de duas semanas) e é a combinação perfeita para as diversas compotas e outros doces que também dão fama à culinária de Minas Gerais. Além de sabor e tradição, o queijo hoje coleciona certificações. Desde 2008 leva o título nacional de Patrimônio Cultural Imaterial e no ano passado, após o incentivo e o intercâmbio cultural com produtores franceses do queijo camembert, conquistou a Certificação de Identificação Geográfica pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) – o que delimita a região produtora e considera canastra apenas o queijo produzido a partir do mesmo processo nos municípios de Bambuí, Delfinópolis, Medeiros, Piumhi, São Roque de Minas, Tapiraí e Vargem Bonita. A titulação de origem, ainda pouco

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Tamanduá-bandeira

Para visitar

Maturação de queijo canastra em Medeiros

utilizada no Brasil, já é realidade em muitos outros países para identificar produtos e processos específicos, como dos vinhos italianos, charutos cubanos e queijos de regiões da França, Holanda e Suíça. Agora, a mais recente conquista dos produtores da Serra da Canastra foi a instalação de um centro de maturação dos queijos, localizado no município de Medeiros. Com isso, além de valor e re-

putação especiais, o queijo tem ambiente adequado às regras sanitárias de embalagem e distribuição, sem perder no quesito tradição. Assim, o queijo canastra, em breve, poderá ser comercializado em todo o Brasil e até mesmo exportado. Mas, de todo modo, o melhor mesmo é conhecê-lo e saboreá-lo na sua origem, desfrutando o belo cenário e a boa prosa da gente da Canastra.

Uma distância de 320 quilômetros separa a capital mineira do local. Para chegar por avião, a opção é o aeroporto de Araxá, a 160 quilômetros do parque. Se a escolha for por terra, o trajeto é feito pela BR-381 sentido São Paulo, seguindo depois pela MG-050, que é pavimentada até São Roque de Minas. A partir daí, os poucos quilômetros restantes são em estrada de terra já na companhia da bela Canastra. Para os visitantes que partem de São Paulo ou do sul das Gerais, a opção é chegar por Passos, São Sebastião do Paraíso e então pegar o acesso à MG-050. Aberto para visitação das 8h às 18h, o parque nacional cobra uma taxa de entrada de R$ 13 – turistas brasileiros pagam metade do valor. Como em toda reserva ambiental, são observadas diversas regras. É proibido, por exemplo, o uso de equipamento coletivo de som e o transporte ou consumo de bebidas alcoólicas na área, o que ajuda a evitar confusão e acidentes nas proximidades das diversas cachoeiras. A presença de pedras e a erosão pelos caminhos sugerem o uso de veículos com tração nas quatro rodas. REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Os quadros explicam

FOTOS DAVID DAWSON/DIVULGAÇÃO

A mostra Lucian Freud: Corpos e Rostos, que fica em cartaz até 13 de outubro no Museu de Arte de São Paulo (Masp), apresenta gravuras, pinturas e fotos do artista alemão naturalizado inglês e neto do “pai da psicanálise”, Sigmund Freud. A exposição traz obras de dois períodos marcantes de sua carreira: as gravuras experimentais que fez na década de 1940; e a partir da década de 1980, quando produziu, com águaforte, uma sequência de retratos considerada extraordinária, que o projetou como um dos grandes nomes da arte do pós-Guerra. Podem ser vistas ainda 28 fotos de David Dawson, assistente, amigo e fotógrafo de Lucian, que apresentam uma visão única da vida e do artista em seu ateliê. Na Avenida Paulista, 1.578, de terça a domingo e nos feriados, das 10h às 18h; e até 20h às quintas. R$ 15, R$ 7 (meia) e grátis às terças-feiras.

Lucian Freud, com David Hockney (acima) Jovem com rosas (ao lado) Lucian trabalhando à noite (esq.)

Eu quero ser ‘musgueiro’ Foi o que Gilberto Passos Gil Moreira disse à mãe quando tinha pouco mais de 2 anos. Aos 10, quando ela perguntou se ele ainda queria ser ‘musgueiro’ e ele respondeu que sim, veio logo a resposta: “Então você vai para a escola, você vai estudar. O que você quer? Você quer uma sanfona? Você gosta de Luiz Gonzaga?” Histórias como essa fazem parte do livro que Gilberto Gil e a jornalista Regina Zappa acabam de lançar pela Editora Nova Fronteira. O nome Gilberto Bem Perto (400 pág., R$ 59) é uma referência à música Giló, que Rita Lee canta no álbum Refestança, gravada ao vivo em 1977. A infância no sertão da Bahia, a prisão, o exílio, os festivais, a política, o bisavô escravo, quatro casamentos, oito filhos. Da época no Ministério da Cultura, conta sua rotina e as polêmicas, como a questão dos direitos autorais e o apoio ao Creative Commons. Enfim, a razão e o coração de Gil estão no livro, assim como muitas fotos de seu arquivo pessoal e depoimentos de amigos como Hermano Vianna, Fernanda Torres, José Miguel Wisnik, Jorge Mautner e a própria Rita. 48

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Palavra animada A dupla dinâmica Sandra Peres e Paulo Tatit, mais conhecida pela criançada como Palavra Cantada, lançou o DVD Pauleco e Sandreca, com dez clipes feitos com animação. Tem inéditas – como Músicos e Dançarinos – e famosas como Rato, que ganhou uma nova versão em que Maria Gadú é a Lua; Ana Cañas, a Nuvem; Wanderléa é a Brisa; Zélia Duncan, a Parede; e Paulo e Sandra, o Rato e a Rata. Releituras deram outra cara para O Leãozinho, de Caetano Veloso, e O Vira, dos Secos e Molhados. Também fazem parte do DVD Ciranda dos Bichos, Eu Sou um Bebezinho, Menina Moleca, Bicicleta, Pomar e Quando Eu Era um Peixinho. R$ 30, em média.

Um detetive nada convencional

Simone e Clarice Com mais de 20 anos de carreira, indicação ao Grammy e parcerias com nomes de peso da MPB, a cantora, compositora, instrumentista e arranjadora Simone Guimarães lançou seu décimo disco. Clarice tem participação especial de Miúcha, Paulo Jobim, Danilo Caymmi e Ana de Hollanda e é uma homenagem à escritora Clarice Lispector. Entre as 14 faixas, além de composições próprias, há músicas de Milton Nascimento – padrinho musical de Simone – e Márcio Borges (Vera Cruz), Guilherme Arantes (Muito Diferente) e do trio Bia Paes Leme, Bena Lobo e Dudu Falcão (Raio de Luar). Vendas pelo e-mail cafeepupunha@gmail.com. R$ 20.

“Well, well, well...” Os casos emblemáticos do detetive Bill Ferrer estão de volta em mais um livro da eslovena Saphira Mind, com tradução e adaptação de Mouzar Benedito. O Detector de Mentiras e outras Histórias é o quarto volume da série do detetive gringófilo que tem uma agência em um prédio decadente na Baixada do Glicério, em São Paulo. Seu assistente, Aderbal Vasconcelos, está sempre com o salário atrasado, adora jurubeba e há tempos está a fim da prima Creodete. Nada de Sherlock Holmes ou Agatha Christie. O que o leitor encontra no livro são os métodos controversos de um detetive heterodoxo, diante de casos complexos e bizarros. O livro (Editora Limiar, 192 pág., R$ 29) tem quatro capítulos: em O detector de mentiras, Ferrer tem de descobrir quem assassinou o contador em sua própria sala; “Na hora H” é uma trama que envolve policiais corruptos suspeitos de queima de arquivo; “A morte de um brega” é sobre o assassinato do dono de uma loja de sapatos no Brás; e “Maldita escritora” narra a investigação que Aderbal decidiu fazer sobre a própria Saphira. Nesse episódio, a relação do tradutor com a autora é posta em xeque. Mouzar (supostamente) e ela se conheceram em uma editora que publicava revistas femininas para as quais ela fazia horóscopos bem diferentes dos que se veem por aí. Eram previsões da pesada. Um dia ela enjoou de tudo e se mudou para uma cabana na Serra da Mantiqueira. Como ela cresceu no Brasil, seu português é perfeito e, teoricamente, não precisaria de tradutor. O próprio Ferrer tem lá suas desconfianças sobre essa parceria que rendeu outros três livros: Ferrer, Bill Ferrer (Boitempo Editorial), Os Tentáculos do Polvo e outras Histórias e Chuchu com Machadadas e outras Histórias (Editora Limiar). Todos de Saphira Mind, com Mouzar de tradutor. E alguém já viu Mouzar falando esloveno pelos bares da Vila Madalena? REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

Maquiavel não era maquiavélico

“Niccollò Machiavelli morreu ontem, deixando-nos na mais profunda miséria”, escreveram ao papa Leão X os filhos do autor de O Príncipe, que há 500 anos influencia a torto e a direito, ditadores e libertários, estrategistas e publicitários

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eem uma alavanca a um homem e ele moverá o mundo, dizia Arquimedes. Deem a ele uma caneta, e ele mudará o mundo. Ao longo do tempo, houve homens que escreveram em defesa de seus ideais e suas convicções, outros que o fizeram para que não lhes quebrassem os dedos e outros, ainda, para arrumar um dinheirinho a fim de cuidar de sua sobrevivência e de sua família, alugando sua pena a senhores a quem outros alugavam a espada. A história, no entanto, não pergunta as motivações de quem escreve um livro ou conta uma estória. Ela absorve os livros, e é mudada por eles. O número de pessoas que já morreram em defesa da Bíblia deve ultrapassar o número de letras do livro mais famoso do mundo, e, embora não se possa medir cientificamente a influência da Odisseia na descoberta da América, sabemos que as aventuras de Ulisses povoaram os corações e mentes de muitos dos marujos portugueses e espanhóis que participaram da Grande Travessia, e que Homero poderia ter cantado suas glórias, ou estado entre seus repórteres e cronistas, como Pero Vaz de Caminha e Luís de Camões. Este mês o mundo está comemorando 500 anos de um grande livro e os cinco séculos que nos separam da época de um escriba singular, que nem sempre assinaria embaixo do que escreveu e acabou virando adjetivo. Se você, prezado leitor, já foi chamado de astuto, manipulador, maquiavélico, já sabe mais ou menos de quem estamos falando. Embora o termo maquiavélico lembre o vocábulo “maquiar”, ele vem de Nicolau Maquiavel e de seu livro O Príncipe, que escreveu para Lourenço de Médicis, em uma época em que ter amigos poderosos garantia a sobrevivência de artistas, sábios e escritores, e lhes protegia os dentes e o pescoço. Não vamos nos deter no próprio livro. O escrito é revolucionário para aqueles tempos e mudou radicalmente a forma 50

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de ver e de fazer política nos séculos seguintes, influenciando a torto e a direito, à esquerda e à direita, ditadores e libertários, fascistas e nazistas, estrategistas e publicitários. Todavia, como uma obra de encomenda, não corresponde precisamente às ideias do autor, expressas em outras que poucos conhecem e sobreviveram a O Príncipe, como prédios mais baixos se escondem do olhar de quem chega a uma cidade com um grande edifício a marcar seu horizonte. Mesmo assim, se toda a Renascença fosse uma galeria, poderíamos dizer que O Príncipe, para a filosofia política, corresponderia a um Davi de Michelangelo – não necessariamente a uma Pietá –, ou a uma Santa Ceia de Da Vinci, ou ao que representou, para a astronomia, o aprimoramento do telescópio por Galileu. O importante a dizer é que Nicolau Maquiavel não era maquiavélico, no sentido que se criou para falar de sua obra ou da filosofia contida em seu livro mais conhecido. Em O Príncipe, Maquiavel examina a conduta de César Bórgia, duque da Emiglia Romanna, filho natural do papa Alexandre VI. Nicolau Maquiavel foi chanceler, ou seja, administrador do Estado florentino, durante a maior parte de sua vida e amigo de Giovanni de Médicis, um papa com nome de Leão, que não perdoava ninguém, nem mesmo no sentido bíblico. Tendo caído em desgraça, por ter jogado mal, para sobreviver Maquiavel foi obrigado a cuidar de encargo modesto, o de negociador, em nome de empresários de Florença, com os devedores de Pisa. Apesar de tudo isso, do convívio com os poderosos e de relativa fama em seu tempo, Maquiavel morreu pobre e sem ter ideia de como seu livro O Príncipe e A Arte da Guerra influenciaria o futuro. “Niccollò Machiavelli morreu ontem, deixando-nos na mais profunda miséria”, escreveram os filhos de Maquiavel ao papa Leão X.


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