Revista do Brasil nº 092

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O DEDO DOS EUA Bastidores do golpe que completa 50 anos

DJ DOLORES Cores e sons que ganharam o mundo

PARANAPIACABA O charme da vila inglesa será revigorado

nº 92 fevereiro/2014 www.redebrasilatual.com.br

Em ano de Copa e de eleição, não faltarão consultores, especialistas, corneteiros e provocadores nas redes desinformando e pondo em risco a imagem do Brasil


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ÍNDICE

EDITORIAL

8. Na Rede

Notas que foram destaque na RBA no mês que passou

14. Capa

Baixarias de 2010 podem ser “café pequeno” este ano

20. História

A presença norte-americana no golpe que derrubou Jango

26. Nicarágua

Novo canal: força ao comércio, desafios para o ambiente

28. Entrevista

DJ Dolores espalha seus sons, ritmos e opiniões firmes ARQUIVO/AE

32. Cultura

Pesquisador reúne 150 mil itens em acervo e pede apoio A elite paulistana aplaude a derrubada de Jango: meios de comunicação aderiram em peso

34. Cidadania

Projeto em Rondônia leva teatro e terapia a presos

Lenta, gradual e frágil

38. Esporte

A

JUCA MARTINS

Longe do mundo das estrelas, jogadores penam campos afora

44. Viagem

Vila inglesa na Serra do Mar, Paranapiacaba se renova

Seções Cartas

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Destaques do mês

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Mauro Santayana

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica

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passagem dos 50 anos do golpe civil-militar é uma oportunidade de discutir não só as circunstâncias, mas os efeitos para o Brasil, em termos de interrupção de projetos – de vidas, de esperanças. A história oficial, lida nos bancos escolares e divulgada nos meios de informação, tratava o movimento como “revolução”. E o pretexto, uma suposta sanha comunista. Até hoje, há quem alardeie um “perigo vermelho” em qualquer ação considerada mais avançada ou progressista. Consumado, o golpe teve apoio quase unânime dos principais meios de comunicação. No ano passado, um desses jornalões chegou a fazer uma espécie de mea-culpa por tal postura. Outros se surpreenderam com a face violenta que logo emergiu. Das escolas e redações, estudantes e cidadãos foram privados de conhecimento e de informação, ferramentas básicas contra tentações autoritárias. O avanço gradual da abertura democrática foi trazendo à luz algumas verdades. Soube-se que os comandos militares não foram os únicos executores e mandantes do golpe. Forças econômicas e civis moveram e financiaram a “revolução”, e empresas e o governo norte-americano participaram de todas as articulações para derrubar João Goulart. Vieram a “abertura” gradual, a contestada Lei da Anistia, a resistência da linhadura do regime, a campanha das Diretas Já (que completa 30 anos) e, finalmente, a volta das eleições. Foi difícil e doloroso, mas a democracia, com problemas e entraves, se consolidou. Neste ano, o país terá sua sétima eleição presidencial seguida, uma sequência inédita. Mas há quem se infiltre e tente jogar areia na engrenagem, o que reforça ainda mais o papel da comunicação transparente e livre, com diversidade de opiniões. O problema é que o poder econômico e suas “assessorias de imprensa” estão sempre à espreita. E embora hoje dispensem a necessidade de se recorrer aos quartéis, são sempre uma ameaça à democracia. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS tal’, os governantes de plantão e a oposição acabam fazendo campanha do tipo ‘venda casada’. O eleitor não percebe que, ao votar no mesmo parlamentar de seu candidato majoritário, fica impossível a fiscalização de forma isenta. Édi Marcelo de Oliveira

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa The Picture Desk/Kobal/Other Images (cena de We Want Our Mummy, com os Três Patetas), divulgação/Pequi (golpe), Marcelo Lyra/Olhonu (DJ Dolores) e Juca Martins (Paranapiacaba) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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José Graziano Graziano, conhecemos sua fibra e sabemos do seus conhecimentos e compromissos para erradicar a fome da face da terra (“O mercado e a fome”, edição 91). Você é o sucessor de Josué de Castro, e sabe que a fome no muno não é por falta de alimento nem pela capacidade de aumentar a produção. A especulação nas bolsas de valores, os especuladores que mantêm estoques de alimento forçando a aumento de preços, e também quando transformam milho em combustível, até mesmo quando forçam os preços dos alimentos para auferir mais lucros, e quando destroem uma agricultura diversificada de um país para impor monoculturas. Graziano, vá em frente. O mundo precisa de gente como você e representa o Brasil, que quer um mundo sem fome. Perly Cipriano Reforma política Penso que o Brasil ganharia muito se as eleições para o poder Legislativo fossem desvinculadas das do Executivo. São dois poderes distintos e a população se confunde toda quando vota, no mesmo dia, para presidente (ou governador, ou prefeito) e para os membros do Legislativo. A reforma política deveria discutir algum projeto em que fossem separadas as eleições para esses dois cargos. Da forma como está, além do poder econômico, que já desequilibra as forças políticas, despejando dinheiro nos candidatos ‘do capi-

O Brasil na TV Há pouco, quando assisti ao episódio “Brasil”, do programa da Daisy Donovan, cheguei a uma única conclusão: somos obrigados a assistir àquilo calados. Não temos a menor capacidade de nos defender, já que, no final das contas, somos o país das mulheres com “big butt”. Pior ainda é que, questionados sobre a baixa qualidade ou sobre o conteúdo dos programas, apresentadores e produtores justificam que, por sermos um país de terceiro mundo, é isso que nos entretém: mulheres seminuas que se fazem de burras, violência gratuita na hora do almoço e campeonato de miss bumbum. Temos sequer moral para nos defender diante tamanha ignorância dos próprios brasileiros? Se não nos valorizamos, por que os “gringos” devem fazê-lo? Nathália Moraes Joaquim Barbosa Com respeito à reportagem “A justiça e o homem mau”, na edição número 90, de dezembro/2013, permitam-me discordar totalmente dos brilhantes acadêmicos do nosso moroso Judiciário, onde a figura do grande Joaquim Barbosa é colocada em xeque. Os criadores do mensalão ficaram anos e anos rindo das nossas caras, metendo a mão no erário, vivendo do bom e do melhor às nossas custas, e nada acontecendo justamente devido a essa morosidade e aos diversos caminhos por onde escorrem as nossas dúbias leis. Agora que apareceu alguém com “aquilo roxo”, os senhores do direito se acham no direito de criticar o “mocinho” do filme. Francisco de Almeida Filho

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


Sem vergonha de amar a profissão

HISTÓRIA SEM FIM Sérgio no local onde levou o tiro: “Voltei para a rua onde a história começou. Recordei a dor, a agonia e o medo”

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horei as últimas lágrimas da tristeza ao ler sua história. Na verdade, a nossa história, que foi escrita sobre o meu corpo. Voltei para a rua onde a história começou. Recordei a dor, a agonia e o medo. As horas de sofrimento e os momentos de esperança no hospital. Nas lágrimas que derramei e nos sorrisos da família ao meu lado dentro de casa, empurrando-me para frente. Lembrei-me de tudo, até do receio com a entrevista, cercada de tanto cuidado por quem me solicitava. Daquela voz ao telefone com um sotaque do interior. O nome, de costume antigo, mostra respeito e remete a um senhor de mais idade.” A mensagem do repórter fotográfico Sérgio Silva, 33 anos, foi enviada ao jornalista Tadeu Breda depois de ver publicada na Rede Brasil Atual, em 13 de janeiro, a reportagem “Cego de olho, fotógrafo vive história sem fim enquanto espera justiça” (http://bit.ly/rba_bala_de_borracha). Na reportagem, Tadeu – que tem “sotaque” de Botucatu, no interior paulista, e 29 anos – faz um perfil do profissional que foi atingido por uma bala de borracha. O projétil foi disparado por uma policial militar durante a repressão à manifestação de junho do ano passado – marcada pela violência ostensiva da PM contra todo e qualquer sinal de protesto e que acabou inflamando as manifestações seguintes. O trabalho de Tadeu, tendo como fio condutor a vida do repórter depois de ter um

FELIPE CABELLO

GERARDO LAZZARI/RBA

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BASTA Tiro que atingiu Sérgiu saiu de escopeta como esta. No dia 22 de janeiro, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo recebeu das mãos do fotógrafo documento com 45 mil assinaturas pedindo o fim do uso de balas de borracha

olho mutilado, faz também um “perfil” da bala. E alcança o debate sobre o uso indiscriminado de armas não letais contra civis desarmados, a criminalização dos movimentos e a conduta autoritária dos sistemas de segurança – uma das graves sequelas das ditaduras a que o pais foi submetido ao longo da história, sobretudo a iniciada em 1964. Na mensagem, Sérgio Silva prossegue: “Naquela altura, eu REVISTA DO BRASIL

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FOTOS GERARDO LAZZARI/RBA

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TESTEMUNHOS O advogado Paulo Fernandes, que representa Sérgio na Justiça: “Casos desse tipo sobrevivem aos advogados.” Ao lado o professor Honorato, que socorreu o fotógrafo: “Nunca vi repressão tão violenta”

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tinha medo de tudo e, ao mesmo tempo, de nada. Conversar era a terapia que eu precisava, e poucos conseguiram entender. Caminhar e voltar para a rua, principalmente. Comer, beber e sentir o cheiro da vida, atividades banais do nosso cotidiano, transformaram-se em necessidade. Nada além da verdade. Descobri que a sinceridade pode ser um gesto em que a palavra ganha mais força... As coisas mais simples da vida, aquelas que fazemos juízo de valor e damos a elas o adjetivo diminutivo, com apenas um olho aberto, tornam-se mais importantes”. O fotógrafo destaca ainda o acerto do repórter da RBA, mesmo sob o risco de um texto longo, raro no jornalismo de hoje. “Você acertou. Sempre com os dois pés no chão. Somos seres desenvolvidos e precisamos do equilíbrio para manter-nos de pé. Não sou diferente. Nem pretendo ser... A leitura da história que vivo sem fim trouxe-me ainda mais ânimo. Dedico esta minha tentativa de ser tão genial e verdadeiro com as palavras, como foi o jovem camarada Tadeu Breda, ao contar um pedaço da minha história, da nossa história, ao restante deste imenso país.” É possível que a mensagem de Sérgio permanecesse escondida no “fale conosco” da RBA. Tadeu só a colocou para circular na redação – não sem antes confessar que o gesto de seu personagem o fez chorar, foi impresso e foi parar na parede de sua sala, como um troféu – em meio a uma troca de mensagens desencadeada pela repórter Gisele Brito, 28 Anos. E também tendo como inspiração a reação de um personagem de uma de suas reportágens a respeito da operação Braços Abertos, conduzida pela prefeitura de São Paulo na região da “cracolândia”.

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O texto de Gisele começa com um “Caros sem-vergonhas”. O termo virou piada na redação desde que o candidato à Presidência da República José Serra disparou o adjetivo a um repórter da RBA, o próprio Tadeu, depois de se recusar a responder-lhe perguntas durante a campanha de 2010. “Hoje ganhei um caderno na cracolândia”, continua Gisele. “O presente veio graças ao trabalho que toda a equipe desempenha e por isso gostaria de compartilhar com vocês. Na segunda estive com o (repórter fotográfico) Danilo Ramos lá e conversamos com várias pessoas, entre elas o Tim e sua mulher, a Vanda. Hoje os reencontramos, e mostramos a ele o texto. Eles leram, e perguntaram espantados se aquilo – exatamente o que tinham dito – estava sendo lido por todo mundo. Em agradecimento, me deu o caderno. Não sei se era o item mais importante ou mais dispensável de sua maloca, mas esse regalo vale mais que qualquer coisa.” A reportagem da RBA havia falado com o morador da região num dia em que visitou o “muquifinho” em que vivem. Entrou, como diz, pela porta da frente, não sub-repticiamente pela janela, como fizeram os profissionais de alguns veículos. “Falamos com o Tim ontem graças à ajuda do Aguiar, aquele vendedor da revista Ocas que nos visita constantemente. O Aguiar é nosso fã. No pouco espaço de seu quarto, tem vários adesivos da RBA, da Rádio e da TVT grudados em um quadro, com uma foto sua no centro. Orgulhoso e crente no nosso trabalho, ele nos apresentou a muita gente. A RBA entrou sempre pela porta da frente, como convidada do ocupante. Esse tipo de coisa faz todo os perrengues e frustrações que passamos com as assessorias oficiais serem irre-


levantes. Estamos com os assessores certos”, conclui a repórter. (http://bit.ly/rba_na_cracolandia) De pronto, seu e-mail despertou a reação da colega Sarah Fernandes, 27 anos. “Nesta semana, tentando levantar dados sobre um hospital psiquiátrico esquecido pelo governo estadual, conversei na terça-feira (14) com o ex-advogado do Champinha, um dos internos. É uma pessoa bem articulada, membro de alguns movimentos de defesa dos direitos humanos. Mas teve uma experiência muito negativa com a imprensa na época do julgamento do caso e se negou a passar qualquer informação... No dia seguinte ele me procurou. Disse que não falaria sobre o assunto com nenhum outro veículo, mas por se tratar da RBA abriria a exceção. Contou também que é nosso leitor frequente e que ele e a rede de juristas da qual faz parte admiram muito nosso trabalho e nossa linha editorial. Parabéns, companheiros!” A comoção tomou conta da equipe. Para um ambiente ainda de ressaca de final de ano, e na iminência de um período tenso previsto para os próximos meses – assunto de capa desta edição – esse diálogo serviu como uma mensagem de “feliz 2014”. O pró-

prio redator destas inconfidências (o editor Paulo Donizetti de Souza) admitiu: “Esta mensagem vale por uma carga de bateria. E este caderno (ganho pela Gisele), por um prêmio de jornalismo”. O editor João Peres observou que as três histórias simbolizam uma felicitação ao trabalho de todos os repórteres. “E ter sido no começo do ano é ainda melhor: faz lembrar que 2013 foi excelente do ponto de vista da qualidade de nossa produção. A máquina azeitou, diriam os antigos. E isso que citou o Vitor, o gosto pela profissão, é a nossa maneira de seguir em frente e de tentar fazer do jornalismo aquilo que romanticamente deveria ser: a garantia do interesse público.” Peres se referia a uma mensagem anterior de Vitor Nuzzi, um dos mais experientes da redação, uma referência em cobertura do mundo do trabalho, e que pouco antes havia registrado: “Gostar da profissão já é um desafio, porque ela constantemente nos provoca a ‘desgostá-la’. Emocionar-se com ela é para poucos”. Fica aí, compartilhada, uma intimidade da chamada “rádio peão”, pare que os leitores saibam de que tipo de “sem-vergonhas” é composta a redação desta revista e da Rede Brasil Atual.

GISELE BRITO

DANILO RAMOS/RBA

TRABALHO

CADERNO DE PRESENTE Vanda e Tim, no alto o cachorro Sansão: na “cracolândia” pela porta da frente

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

RAONI MADDALLENA/RBA

Terra estrangeira

Pela primeira vez com apoio público, a comunidade boliviana de São Paulo realizou sua festa tradicional, no último 24 de janeiro, a Alasita, em três locais: Memorial da América Latina, Jardim Brasil e parque Dom Pedro II, com venda de artesanato, música e comida. O nome da festa, uma das celebrações mais tradicionais nas regiões com domínio da cultura aimara, significa “compreme”. Nela, miniaturas que representam aquilo que se deseja obter são vendidas e depois abençoadas por uma espécie de sacerdote andino, os yatiri. Para a festa do parque Dom Pedro II, a prefeitura cedeu espaço, montou o palco e ofereceu banheiros químicos. bit.ly/rdb92_festa O evento é apenas um dos muitos reflexos das novas identidades incorporadas à sociedade e à cultura da cidade pelos fluxos migratórios contemporâneos. Latinos, africanos e asiáticos começam a forjar mudanças na cara paulistana. Seus sabores e suas cores já são notáveis pelas ruas e praças. O Brasil é um país de migrantes e São Paulo, uma Babilônia. Hoje, europeus voltaram a buscar no país uma alternativa para a crise em seu continente. Mas levas de estrangeiros de países que não participaram daquele primeiro momento têm vindo para cá, trazendo consigo seus modos de viver. As ondas mais recentes têm trazido para a cidade senegaleses, nigerianos, camaroneses, angolanos, caboverdianos, quenianos, moçambicanos, peruanos, paraguaios, colombianos e chineses. bit.ly/rdb92_fluxos

As campanhas e os programas de combate ao trabalho escravo no Brasil trouxeram à tona uma realidade pouco conhecida até recentemente. A última atualização da chamada “lista suja” do trabalho escravo, divulgada no fim de 2013 pelo Ministério do Trabalho, mostra 29 empresas localizadas em áreas urbanas. Na lista anterior, de julho, apenas 14 apareciam na relação. Foram flagradas usando mão de obra em condições análogas à escravidão confecções, empreiteiras, locadoras de máquinas, uma boate e um hotel. O número, pequeno em comparação com o total de empresas da lista, representa um aumento significativo do perfil dos empregadores que submetem seus empregados a esse tipo de situação. E tem despertado a preocupação de técnicos, procuradores, fiscais e do Ministério Público do Trabalho. bit.ly/rdb92_lista 8

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GERARDO LAZZARI/RBA

Escravos urbanos

Oficina de costura com mão de obra boliviana em São Paulo


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Jardim da União: 514 moradias

A ocupação Jardim da União, na zona sul de São Paulo, foi iniciada em 12 de outubro do ano passado. Boa parte dos moradores é remanescente da ocupação em um terreno no Jardim Itajaí, iniciada em julho, a cinco quilômetros da nova área. Após seis despejos, sendo o último cheio de relatos de truculência, sumiço de pertences, uso de força excessiva pela PM e a Guarda Civil Metropolitana, as famílias decidiram mudar de local. À época do despejo, a subprefeita da Capela do Socorro, Cleide Pandolfi, afirmou que não iria permitir uma nova favela na região. Porém, essa ocupação passa ao largo do estereótipo. Uma série de regras de organização é para evitar que a área se torne um amontoado de gente. Hoje não entra mais ninguém.

Tudo pela causa

De acordo com o site Política Aberta, com base em dados comparativos sobre financiamentos feitos pela iniciativa privada a partidos e candidatos em 2012, a maioria das empresas beneficiou em média três partidos ao mesmo tempo. De um total de 55.744 empresas que fizeram contribuições eleitorais, 53.454 doaram para três partidos, 913 preferiram destinar recursos para quatro agremiações e 519, a cinco. Mas houve quem extrapolou: 294 empresas se destacaram por doar para seis legendas e 119 chegaram a financiar oito numa mesma eleição. A conduta é uma evidência de que as empresas não investem em programas de governo em sintonia com suas crenças e negócios, mas apostam em futuros contratos. bit.ly/rdb92_partidos

MARCIA MINILLO/RBA

Bairro planejado Arquitetos que apoiam os moradores dizem que há espaço para 514 moradias. Todos são cadastrados em uma lista de controle. Cada grupo tem um coordenador, que é escolhido pelos vizinhos e fica dois meses na função. A Rede de Comunidades do Extremo Sul de São Paulo, que organiza a ocupação, está negociando com a prefeitura de São Paulo e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) para estabelecer um empreendimento de habitação popular na área – que vai tomando contornos de novo bairro planejado, com ruas largas, numeração nas moradias e zelo com instalacões elétricas e sanitárias. bit.ly/rdb92_ocupasp

Melhor que remediar

A primeira campanha de vacinação gratuita contra o vírus do HPV começa em 10 de março e vai contar com o apoio de escolas públicas e privadas de todo o país. Além de participar de estratégias de esclarecimento sobre a importância da imunização contra uma família de vírus responsável por mais de 70% dos casos de câncer de colo de útero, as unidades de ensino vão receber equipes das secretarias municipais de Saúde responsáveis pela vacinação. “A mobilização das escolas é importante para aumentar a cobertura vacinal. Adiantamos o calendário para o começo do ano letivo para que haja tempo para a sensibilização da comunidade e dos pais, que devem autorizar a aplicação da vacina”, disse o ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Desde o final dos anos 1970 as escolas não eram incluídas em campanhas como essa. bit.ly/rdb92_hpv REVISTA DO BRASIL

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Ensino domiciliar em São André

JAILTON GARCIA/RBA

Lição em casa Mais de mil famílias em todo o país já praticam a chamada homeschooling, a educação domiciliar. A estimativa é da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), com base no cadastro daquelas que contatam a entidade com frequência. Embora não seja proibida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, essa modalidade de ensino não é reconhecida nem regulamentada por lei no Brasil. A prática está regulamentada em 64 países. Para o sociólogo André de Holanda, que pesquisou o tema na Universidade de Brasília (UnB), educar os filhos em casa configura um fenômeno recente na América do Sul. Os primeiros casos começaram a vir a público a partir de meados de 1990, quando famílias adeptas passaram a ser denunciadas por abandono intelectual. “Os conselhos tutelares passaram a

visitar diversas famílias e hoje centenas de pais aguardam a regularização da prática pela lei.” Segundo Holanda, motivações religiosas e/ou morais e ambiente nocivo nas escolas foram manifestadas por todos os pais entrevistados. Para a filósofa Branca Jurema Ponce, professora da pós-graduação em Educação e Currículo da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, a educação domiciliar segue uma tendência norte-americana segundo a qual o Estado não deve se meter na vida do indivíduo. E defende que a escola, além de educar, tem uma função social ao proporcionar a convivência, a construção de cultura. “Tem de ir para a escola sim, sou radical quanto a isso. É preciso conviver coletivamente, formar conceitos coletivos.” bit.ly/rdb92_educa

A inflação e a política “Não temos inflação alta, temos uma inflação moderada e controlada”, diz o professor João Sicsú, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para ele, hoje há uma discussão “mais política do que técnica” em torno do tema. Ele lembra que o país está completando uma década de inflação dentro da meta, que vai até 6,5%. bit.ly/rdb92_sicsú 10

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O economista Jorge Mattoso alerta que o país vive um período em que “importa muito mais” a campanha eleitoral. “O governo estará sob crítica cerrada. Espero que tome o cuidado necessário e saiba dar a resposta necessária, o que nem sempre ocorre”, afirma, lembrando que os críticos deixarão questões técnicas e os indicadores sociais de lado. “Falarão em ‘pibinho’ e farão terror com a inflação. E não há motivo”. bit.ly/rdb92_mattoso


RÁDIOBRASILATUAL 93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio

Refugiado da Condor Acusado pelo desaparecimento de quatro militantes de seu pais, em 1976, o coronel uruguaio Pedro Antônio Mato Narbondo tem cidadania brasileira e foi localizado morando na região Sul – a denúncia foi feita por um jornalista do país vizinho. Ele responde por crimes de sequestro, tortura e assassinato no Uruguai. Também foi denunciado pela Justiça italiana em 2007, pela morte e desaparecimento de 23 cidadãos latino-americanos de origem italiana. Todos os crimes ocorreram durante a chamada Operação Condor, que consistia na colaboração entre ditaduras da região. Em entrevista à Rádio Brasil Atual, o presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, afirmou que o ex-militar não pode ser extraditado. Ele consegue escapar do julgamento em seu país pelo fato de ter cidadania brasileira, adquirida em 2003. Não é um caso isolado, acrescenta. “Não se pode abrigar a impunidade”, critica. bit.ly/rdb92_radio1

Bilhões a menos Na primeira reunião de 2014, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central aumentou a taxa básica de juros pela sétima vez seguida – a alta foi de meio ponto percentual, para 10,5% ao ano. Isso deve significar perda de aproximadamente R$ 6,5 bilhões em investimentos públicos, valor que reverterá a donos de títulos no mercado financeiro. Consideradas as altas dos juros desde abril do ano passado, são R$ 42 bilhões a menos. “O Brasil vive uma contradição, uma vez que com o crescimento global ainda lento, incerteza, um dos únicos caminhos possíveis para o país crescer seria o aumento do investimento público, que puxaria também o investimento privado”, afirma a economista Patrícia Pelatieri, do Dieese. Para ela, pode ter pesado na decisão do Copom a tensão causada pelo fato de o país entrar em ano eleitoral. “O que estamos vendo é que o governo vem convergindo com o mercado financeiro numa posição mais conservadora”, observa. “Nosso temor, olhando os trabalhadores e a população de maneira geral, é que além da eficácia duvidosa dessa medida, uma desaceleração ainda maior da economia brasileira vai, em alguma medida, afetar negativamente o mercado de trabalho e pode colocar em risco todos os ganhos sociais obtidos desde 2003.” Ela lembra ainda que as elevações da Selic no ano passado provocaram redução na atividade econômica justamente em um momento de necessidade de estimular a economia. “Nos parece que, mais do que uma necessidade técnica, foi uma tentativa do governo de eliminar qualquer onda de pessimismo no mercado e apostar, talvez, numa retomada só em 2015.” bit.ly/rdb92_juros

TVT Canal 13 NET Digital: Grande S. Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

Compreender e não esquecer A TVT exibirá, ao longo de 2014, uma série de documentários que abordarão, sob vários aspectos, os 50 anos do golpe civil-militar no Brasil. Toda sexta-feira, às 19h30, logo após o Seu Jornal, espectadores e internautas terão acesso a diferentes abordagens que ajudam a compreender esse triste período da nossa história e seus impactos ainda presentes na vida brasileira. A emissora fez uma pré-seleção e abriu também espaço para aberta para receber trabalhos ainda desconhecidos com a temática para exibição. É só entrar em contato com programacao@tvt.org.br. A série começa em 21 de fevereiro, com o documentário Família Carvalho, sobre a luta de cinco irmãos operários, que participam da resistência à ditadura. Confira a relação dos documentários já programados: 21/2 – Família Carvalho – parte 1 (Produção TVT, 2013) 28/2 – Família Carvalho – parte 2 7/3 – Mulheres no Front – A luta contra a ditadura (Produção TVT, 2013) 14/3 – 1964: um golpe contra o Brasil – parte 1 21/3 – 1964: um golpe contra o Brasil – parte 2 28/3 – 1964: um golpe contra o Brasil – parte 3 4/4 – 1964: um golpe contra o Brasil – parte 4 11/4 – 1964: um golpe contra o Brasil – parte 5 18/4 – Contos da Resistência (Produção TV Câmara, 2005) Episódio 1: Estudantes e Igreja. 25/4 – Contos da Resistência Episódio 2: Congresso 5/5 – Contos da Resistência Episódio 3: Movimento Sindical 2/5 – Contos da Resistência Episódio 4: Artes e Imprensa 9/5 – Heleny Guariba Militância na Arte (Produção TVT, 2013)

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MAURO SANTAYANA

Ano quator

O Brasil entra em temporada de Copa e eleições sob a cobiça de blocos, nações e empresas do mundo. E tem como adversários internos o complexo de vira-lata de setores da imprensa e da sociedade

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esde a criação do calendário, pelos sumérios, há 4 mil anos, o desenrolar dos acontecimentos deixou de depender exclusivamente do acaso, para incluir feriados e eventos religiosos e políticos que passaram a datar e servir de palco para a história. O Brasil, neste 14º ano do milênio, contará com dois grandes marcos desse tipo: a Copa do Mundo e as eleições. Eles contribuirão para chamar ainda mais a atenção da população mundial para um país que já é importante, por si só, globalmente. Com todos os nossos problemas, e o complexo de vira-lata de amplos setores da sociedade, somos o quinto maior país em território e população, o segundo maior exportador de alimentos, a sétima economia e o terceiro maior credor individual externo dos Estados Unidos. Tudo isso obriga não apenas a que o Brasil não possa ser ­ignorado, mas faz, também, com que nosso país seja cobiçado, e esteja sendo ferrenhamente disputado, nos mais variados aspectos da economia e da geopolítica, pelos principais blocos, nações e empresas do mundo. O crescimento da dimensão política e econômica da Nação, nestes primeiros anos do século 21, transformou o Brasil na bola da vez de uma permanente batalha, entre espoliação e independência, entre o modelo dos últimos 200 anos e a busca de caminhos alternativos para a construção do desenvolvimento econômico e social da humanidade. As antigas potências coloniais e neocoloniais, que lutam para manter nosso país, ou amplos setores dele, sob sua influência, sabem que esse embate se dará, na economia, na política, na comunicação, e têm plena consciência do que está em jogo. Na economia, é de se esperar que elas reforcem, nos próximos meses – sempre com a dedicada ajuda da grande mídia –, o discurso de esvaziamento da importância econômica do Mercosul; de valorização de mitos neoliberais como o da Aliança do Pacífico; de fragilidade dos fundamentos de nossa macroeco12

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nomia; da existência de um suposto protecionismo brasileiro, teoricamente responsável pela diminuição de nosso percentual de participação no comércio mundial – para o qual só haveria um remédio, o de estabelecer rapidamente acordos de livre comércio com os países mais ricos. Assim, enquanto setores da imprensa nacional e internacional distraem determinadas parcelas da opinião publica, com alertas sobre a Argentina de Cristina Kirchner, a Venezuela de Nicolás Maduro e a “bolivarianização” do Brasil e do Mercosul, os Estados Unidos e a Europa aproveitam para avançar sobre nosso mercado interno, aumentando, como fizeram em 2013, seus superávits em 50% e 1.000%, respectivamente. Às potencias ocidentais e aos seus prepostos não interessa divulgar que elasdiminuíram quase que na mesma proporção suas importações de produtos brasileiros no ano passado. Como não é conveniente ressaltar, também, o fato de que, no comércio com países “bolivarianos”, como a Venezuela e a Argentina, tivemos um superávit somado de mais de US$ 10 bilhões em 2013, sem o qual teríamos tido um enorme déficit comercial. O mesmo esforço, de distorção e manipulação, continuará


MAURO SANTAYANA

AGÊNCIA BRASIL

rze

ocorrendo, neste ano, com a “glamourização” da Aliança do Pacífico, pseudo-organização fomentada pelo México com a ajuda de Estados Unidos e Espanha, como a última limonada do deserto em termos de associação comercial. A situação real da AP é tão boa que seu maior expoente – justamente o país de Zapata –teve crescimento de 1,2% no ano passado, menos da metade dos 2,5% estimados, no mesmo período, para o Brasil. Obedecendo à mesma estratégia, os meios de comunicação europeus e norte-americanos, secundados pela mídia conservadora brasileira e latino-americana, subirão o tom de sua campanha contra os Brics, aproveitando momento em que o Brasil ocupa a presidência de turno, e organiza, como anfitrião, a cúpula que reunirá em junho, em Brasília, os lideres de Brasil, Índia, China e África do Sul. Naturalmente, como ocorre com o nosso comércio com países como a Venezuela, a grande mídia devera ocultar ou relativizar a informação de que, nos últimos 12 meses, além do Mercosul, foi também para a China, e não para os países ocidentais, que aumentamos fortemente nossas exportações, em 10,4%, e nosso superávit, para quase US$ 9 bilhões.

Considerando-se o que estão ganhando por aqui, é natural que aumentem as pressões favoráveis a uma rápida assinatura de um acordo comercial entre o Brasil – com ou sem Mercosul – e a União Europeia, o que abriria as portas para futuro entendimento desse tipo com os próprios Estados Unidos. Essa é uma hipótese que o Brasil terá de analisar sem pressa e com todo o cuidado. Somadas as remessas de lucro, estimadas em US$ 24 bilhões em 2013, e o déficit de US$ 26 bilhões no comércio exterior, apenas com a Europa e os Estados Unidos, já estamos contribuindo com uma sangria de meia centena de bilhões de dólares por ano para ajudar as potências ocidentais a enfrentar a crise em que se encontram. Se compararmos esses US$ 50 bilhões com um ganho quase equivalente obtido pelo Brasil no comércio com países emergentes – principalmente América Latina, Caribe, Brics e Mercosul – fica fácil perceber quem está nos espoliando, e com que tipo de parceiros é interessante nos associarmos, prioritariamente, no futuro. Como está ficando difícil para quem não abdica de continuar explorando, do jeito que puder, nossos recursos e mercado, colocar no poder governos de direta e assumidamente alinhados com seus interesses, o objetivo, em 2014, continuará sendo sabotar institucionalmente o Brasil, mesmo que ele esteja proporcionando extraordinários ganhos. A estratégia, nesse caso, passa não apenas pelo desmantelamento da imagem da nação do ponto de vista econômico, mas também pela promoção do caos, para dificultar a governabilidade, e colocar em questão, dentro e fora de território brasileiro, nossa capacidade de gestão e de realização. É essa linha de ação que alimenta a tese de que não estamos preparados para organizar grande eventos, como a Copa e as Olimpíadas, mesmo que, para fazer a omelete, quebrem-se alguns ovos, prejudicando também a imagem e a situação político-administrativa de estados e municípios governados pela oposição também envolvidos com a Copa. Não será de estranhar, portanto, se houver, nos próximos meses, infiltração, aproveitamento ou criação de novos “movimentos”, passíveis de se espraiar para as ruas, e eventuais ações voltadas para a intimidação do público turístico que nos visitará este ano, como a sabotagem dos sistemas de transporte e de hospedagem, o cerco a estádios, incêndios e fechamentos de ruas etc. A tudo isso se soma a percepção, pelo cidadão comum, da ausência de um debate político de melhor nível, que possa levar à discussão de propostas para a formatação de um novo projeto nacional. Até que ponto isso poderá influenciar a posição do eleitorado? O governo tem realizado avanços, mas decide cada vez mais sob pressão das circunstâncias, dos meios de comunicação, do Congresso, da aproximação das eleições e de uma base aliada fragmentada, mais preocupada com seus próprios interesses do que com a situação do pais. E a criminalização da política – tema preferencial da grande mídia – ajuda a distorcer ainda mais esse quadro, aos olhos do eleitor, nivelando todos os homens públicos por baixo e facilitando o trabalho de uma minoria radical, cada vez mais atuante­, que odeia a democracia e sonha com a volta da ditadura e a derrocada do Estado de Direito. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

A campanha mais

podre

de todos os tempos

Para o jornalista Gabriel Priolli, preconceitos de classe estão aflorados e os meios de comunicação têm grande responsabilidade na radicalização do ambiente político Por Vander Fornazieri

É

difícil encontrar uma redação onde Gabriel Priolli não tenha trabalhado. TV, jornal, revista, ele passou pelas mais importantes, exercendo variadas funções, inclusive a de editor do Jornal Nacional, da Globo. Atuou na imprensa alternativa e foi peça importante na criação de campanhas e programas de TV históricos para o PT de mais de duas décadas atrás e, desde então, acumula experiência em 17 campanhas políticas para diversos partidos e candidatos. Hoje está à frente do blog Apriolli, no qual escreve sobre temas políticos e culturais do país. Priolli começou como estagiário da TV Cultura, onde ficou até 1980, quando houve demissão em massa de jornalistas promovida pelo governador Paulo Maluf, empossado pelos militares em 1979. Amargou uns tempos de geladeira, às voltas com o preconceito dentro do meio jornalístico contra os profissionais de TV – “acusados” de não saber escrever. Meses depois conseguiu uma cobertura de férias na Folha de S. Paulo, e foi bem. Desmontou o preconceito e emplacou matéria de capa. Começou a fazer cobertura de TV para o caderno Ilustrada, que ninguém gostava de fazer. Mas era tudo o que ele queria. Era a possibilidade de se firmar escrevendo e refletindo sobre uma mídia que não tinha interlocução. Aliás, segundo Priolli, o grosso do que se escreve sobre televisão, ainda hoje, é de um grau de estupidez abissal. “Você fica pasmo de ver a ignorância das pessoas em relação ao que é televisão. Existe a presunção de achar que ela é uma máquina de estupidificar feita por gente estúpida.” 14

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Quais programas você mais acompanhava como crítico?

Cobria tudo. Assistia muito ao Chacrinha e vi o surgimento do Gugu, na época cotado para ser sucessor do Silvio Santos. Falei do papel de renovação e do debate de temas tabus das séries que a Globo começou a produzir, como Malu Mulher, Carga Pesada, Plantão de Polícia. Acompanhei a última novela da Janete Clair (1925-1983), Eu Prometo, que teve texto finalizado por Glória Perez. Peguei também toda a emergência do vídeo independente, um movimento importante para a televisão e para mim. Eram meus amigos na TVTudo, Olhar Eletrônico, TViva, Vídeo Verso. Como aconteceu seu trabalho dentro do PT?

Lembro bem da primeira campanha do partido, em 1982, quando ele entrou com aquela linha obreira: “Trabalhador vota em trabalhador”. E em 1984 me aproximei da área de comunicação. Um grupo de colegas fez um programa muito criativo para a TV. Escrevi comentário na Folha, o que era incomum para a época. Acharam o texto pertinente e me convidaram para trabalhar. De repente, estava fazendo a campanha do Eduardo Suplicy para a prefeitura de São Paulo, em 1985, com o Carlito Maia e o Chico Malfitani. Foi aquela do “experimente Suplicy”. Em 1986 esse grupo rachou. Acabei ficando para fazer a campanha do Suplicy para o governo do estado. Foi horrorosa. As campanhas do PT sempre foram conturbadas. Eu acreditava numa linha mais orgânica, de afinidade entre a política e a comunicação. Mas

A partir de 2003, todos os preconceitos de classe possíveis e imagináveis afloraram e se solidificaram contra o Lula. É porque é pobre. É porque é operário. É porque é nordestino. É porque não tem dedo…


ENTREVISTA

VANDER FORNAZIERI/RBA

acabou descolando completamente a ponto de botarem as campanhas nas mãos de publicitários. Depois de ter trabalhado os anos 1980 inteiros para o PT, como militante, vendo o partido admitir o ingresso de profissionais de linhas políticas até opostas para fazer suas campanhas, eu peguei minha experiência acumulada e fui trabalhar com comunicação política. Aprendi nesses 30 anos que a decisão de voto é essencialmente emocional. As propagandas eleitorais estão niveladas?

Hoje todo mundo faz a mesma coisa, com diferenças de estilo aqui ou ali. Propaganda de direita no sentido clássico: escondem-se defeitos, mostram-se virtudes. Há basicamente um apelo emocional ao eleitor no sentido de sensibilizá-lo, de tocá-lo, para depois municiá-lo com argumentos racionais para sustentar, no debate político, a opção feita pelo coração. A propaganda não faz o eleitor concordar com as posições do candidato, mas gostar dele. Para onde vai o belicismo que se vê no cenário político?

Acho que este ano teremos a campanha mais podre de todos

os tempos. O ano de 2010 bateu recordes de baixaria, mas vai ser café pequeno comparado ao que nos espera. É lamentável o que acontece e a responsabilidade da mídia é muito grande. Até o governo Lula (2003-2010), a imprensa mantinha uma vigilância crítica, mesmo porque, do ponto de vista de classe, os governos anteriores eram seus, defendiam seus interesses, inclusive os da ditadura. As críticas eram pontuais, na forma. Mas a partir do governo do PT, houve uma mudança total. Por mais que o governo fosse moderado, muito mais tendendo ao centro do que à esquerda, sempre disposto a flexibilizar e a fazer concessões, ainda assim há uma reação radical de não aceitá-lo. Todos os preconceitos de classe possíveis e imagináveis afloraram e se s­ olidificaram contra o Lula. É porque é pobre. É porque é operário. É porque é nordestino. É porque não tem dedo… Isso contaminou a visão que se tinha do presidente?

Sim, e também a leitura do governo que se fazia. A mídia embarcou na onda neoconservadora internacional. Nos Estados Unidos, os veículos de direita, tipo Fox News, sustentaram REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

que Barack Obama era socialista, marxista. Uma loucura sob qualquer aspecto. Imagina se um dia eles realmente tiverem um presidente de esquerda o que vão falar.

Houve favorecimento e incentivo a esse tipo de gente e a essa conversão de comportamento. Todos os que fizeram, e continuam fazendo comentários de direita, foram e seguem sendo premiados. No lado oposto, o daqueles profissionais que tinham posições contrárias, houve repressão. Aconteceu um expurgo da esquerda nas redações e triagem ideológica nas novas contratações. Os jovens que foram ingressando têm majoritariamente pensamento conservador. Montou-se uma uniformidade ideo­ lógica nas redações. Se existia uma coisa rica na imprensa nos anos 1970, era exatamente a diversidade ideológica. Tinha a “direitaça”, gente ligada aos órgãos de repressão, e tinha gente que participou dos grupos armados de esquerda. Era um saco de gatos. Correntes democráticas, correntes revolucionárias. Isso era muito rico. Nunca tive, até o governo Lula, qualquer constrangimento dentro de qualquer redação por causa de posição política. Nunca dei atestado ideológico para quem quer que fosse. E ninguém queria saber se você era ou não petista ou tucano. Hoje está tudo mudado. Cheguei a ser censurado em artigos que me convidaram a escrever, ou porque não batiam com a posição patronal ou porque tocavam em assuntos tabu, como a regulação da mídia. Você acredita que exista alguma chance de acontecer no Brasil o que se fez na Argentina, com a Lei de Meios?

Chance sim, mas depende de a presidenta querer levar esse debate adiante, de entender que não é possível fazer a reforma política que ela diz querer fazer sem antes enfrentar a regulação da mídia. Como é possível realizar um debate sério sobre reforma política sem tocar nos monopólios da comunicação? Que diabo de reforma política há de ser essa que não venha acompanhada, quem sabe precedida, de uma pactuação de regras para o setor? A gente vai levar adiante esse despudor completo de grupos econômicos utilizarem veículos de comunicação em campanhas descaradas? Para voltar a ter um mínimo de paz social e política, a gente deve ter padrões de moderação e ética. Isso tem de ser regulado e tem um projeto lá na gaveta da presidenta. Houve ingenuidade do Lula em relação à mídia?

O Lula sempre teve a crença de que é possível ter debate, diálogo, negociar. Isso baseado na própria experiência dele. Antes de ser presidente, ele virou uma estrela mundial graças à forte exposição na imprensa. Pilotava rebeliões sindicais, era peça importante no xadrez político. Isso era do interesse da elite. E teve relações com os donos da mídia. Ele tinha uma visão, não posso dizer que era ingênua, mas equivocada, de que a partir de certo ponto as contradições de classe não seriam tão fortes a ponto de obstruir seu governo. Acho que hoje ele tem uma vi16

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FERNANDO FRAZÃO/ABR

Foi nesse momento que se soltaram as rédeas dos analistas sem pudor nem limites, que no passado eram moderados?

O eleitor vota nos seus interesses e a mídia dialoga com o eleitor de uma forma muito estúpida. Não conversa com a mentalidade da grande massa. Ela dialoga consigo mesma, com seus pares, com seu ideário de classe média e de elite são mais dura sobre essa possibilidade de diálogo franco e convivência democrática com a imprensa. A imprensa abdicou da postura democrática e conscientemente se partidarizou. Virou defensora de agremiações que defendem um ideário específico de classe. À medida que essas agremiações foram se desidratando politicamente em sucessivas derrotas eleitorais, ela passou a ter protagonismo e controle político da oposição. Hoje quem formula as políticas de oposição e as críticas é a imprensa. Os partidos apenas as sustentam e repercutem. Mesmo assim as vitórias eleitorais, com exceção do estado de São Paulo, não acontecem. O povão não ­ acompanha a grande imprensa?

Exatamente. Ao contrário do que pensa a elite brasileira, o povo vota sempre em quem acredita que defende seus interesses mais diretos e objetivos. Se há uma crítica que ainda se possa fazer ao voto popular é que é um voto pouco político. Mas a ideia do eleitor manipulado vai ficando para a história. O eleitor vota nos seus interesses e a mídia dialoga com o eleitor de uma forma muito estúpida. Não conversa com a mentalidade da grande massa. Ela dialoga consigo mesma, com seus pares, com seu ideário de classe média e de elite. São temas limitados, cheios de preconceito e que não ecoam. Há 60 anos eles acham que o tema da corrupção é central no debate político do país e que isso define eleição.


ENTREVISTA

Corrupção da qual eles fazem parte…

(risos) Nem vou entrar nessa discussão. É a ideia de que o mar de lama possa ter rentabilidade eleitoral. Porque eles ganharam com esse discurso com o Jânio Quadros (eleito presidente em 1960, renunciou no ano seguinte) e depois com o Collor (Fernando Collor de Mello, eleito em 1989, sofreu impeachment em 1992) acham que sempre funciona quando lhes interessa. Mas de repente temos uma situação política nova, com expansão de programas sociais, que o cidadão olha e pensa “antes não tinha, agora tem”. Foi o Lula. Aí entra a subjetividade do voto e o Lula tem identificação imediata com o povão. Há, então, fragilidade na imprensa?

Não, essa é uma análise equivocada de esquerda. A mídia tem muita força. Tem capacidade de difusão, de diálogo, de atingir toda a população que a mídia alternativa não tem. Ela tem capacidade de influir numa série de temas, mas não tem controle nem comando. A mídia leva ideias para reflexão das pessoas­. Umas são admitidas, outras não. O descarte da maioria das ideias explica as derrotas que vem sofrendo. E porque não ganha nas urnas mantém posições radicais permanentes, o que provoca insatisfação progressiva em setores da elite, que vão se fascinando com saídas como a judicialização da política. Já que não conseguem ganhar o governo, desqualificam a política como um todo e tentam levar todos para a cadeia. Da primeira eleição do Lula para cá, a internet cresceu e está no celular de todo mundo. Você acredita que ainda há espaço para o jornalismo impresso?

Se o jornal está impresso ou disponibilizado num portal tanto faz, é o mesmo jornal. O impresso está perdendo espaço, mas a instituição jornal está sólida na sua capacidade de influir no debate nacional. As empresas jornalísticas ainda não conseguiram se recuperar financeiramente da perda que tiveram com a mudança do seu modelo de negócio. Mas é questão de tempo. Pesquisas indicam que cerca de 90% do conteúdo que circula nas redes e é recirculado pelos usuários ainda é gerado pela imprensa tradicional. Como se resolvem as limitações de conteúdo e alcance da mídia alternativa?

Não se resolve dentro do atual modelo. Reportagem precisa de duas coisas: acesso e dinheiro. Custa caro, é preciso que as pessoas se desloquem. O modelo atual de financiamento historicamente se apoia na publicidade. O conceito de mídia técnica, em que o dinheiro vai para os veículos de maior circulação porque o anunciante está interessado em ter exposição a mais gente, é baseado numa ideia falsa. O governo é um dos anunciantes que se iludem com esse argumento. O modelo não resiste a uma análise mínima. Há muito investimento publicitário que tem clara natureza política. Durante o governo Fernando Henrique, foi feito um estudo que classificou a Veja como “grande partido neoliberal” tamanho o fluxo de dinheiro carreado pa-

ra a revista sustentar e difundir o ideário neoliberal. Havia um claro descolamento entre a quantidade de verbas publicitárias e a circulação do veículo. A mídia alternativa, de esquerda, que critica o capitalismo, não cabe nesse modelo. O capital vai financiar esse tipo de debate público? Não vai mesmo. É um círculo cínico...

É hipócrita o argumento que de que a imprensa de esquerda é incompetente porque não consegue circular e falar com a massa, só fala com o guetinho, então não consegue financiamento publicitário privado e fica pedindo dinheiro para o governo. Nunca ela vai conseguir esse financiamento. A Revista do Brasil, por exemplo, tem uma circulação magnífica comparada à imprensa comercial, e certamente não tem por trás alguma grande empreiteira, não tem fila de anunciante pedindo espaço. Ainda assim, o governo é hesitante em investir na mídia alternativa.

O governo não tem política clara de comunicação, pensada à luz do que significam esses três últimos governos dentro da experiência histórica brasileira, quais são seus alinhamentos, suas metas e sua efetiva base de sustentação. Também não há política de comunicação pactuada com os segmentos da sociedade, dentro ou fora do PT, que lutam pela democratização da comunicação. Então, que tipo de comunicação o governo deve ter e quais as relações que ele deve estabelecer com o mercado de comunicação instituído? Está se seguindo uma visão conservadora, atrasada, com base nos critérios da chamada mídia técnica, que eu reitero não serem sustentáveis. Há uma impossibilidade em termo, não há mídia puramente técnica. Toda mídia é política. Mas houve alguns avanços.

Houve esforços durante o período Lula que levaram à fragmentação de parte da verba publicitária entre veículos menores. O que é classificado pela grande mídia como cooptação. Quer dizer, se você põe grana num grande veículo você está fazendo mídia técnica, se você põe num pequeno, está comprando. Como está a TV pública no Brasil?

Essa só apanha. É agredida, prostituída e violentada o tempo todo. No Brasil há uma inversão de valores. Aqui o público não é aquilo que é de todos. Aqui o público é o que não é de ninguém. Isso vale tanto para o posto de saúde como para a TV. Mas como as pessoas precisam mais de posto de saúde do que de televisão, a TV pública sofre. Embora esteja definido constitucionalmente um modelo de TV tripartite (comercial, pública e estatal), ele não é implementado. Existe um lobby privado que encontrou um discurso confortável que associa qualquer iniciativa a favor da mídia pública à ideia de censura. O governo simplesmente não enfrenta essa discussão. A TV Cultura tem sido um caso à parte?

A mídia pública, financiada com dinheiro público, estatal REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

inclusive, pertence a todos e não é simplesmente o contraditório da mídia privada. É a mídia de toda a sociedade. Seu compromisso é com a pluralidade. Tem de ter todo mundo, para que eles debatam e você tenha uma visão mais enriquecida. A mídia estatal também deveria ter esse compromisso, embora seja natural que ela tenha a mentalidade do grupo que está à frente do Estado. A gente tem algumas tentativas de fazer TV de qualidade, equilibrada, que pena com a falta de recursos. Por outro lado, temos a instrumentalização descarada de meios públicos para fins políticos partidários. Isso fica mais clamoroso aqui em São Paulo com a TV Cultura, principalmente se a compararmos com o que ela foi há alguns anos. O governante olha para a televisão pública e pensa: “Se eu tenho de pôr dinheiro eu quero usar”.

Acho que nem precisou. Estava tão disseminada a ideia de que a Cultura é instrumento de governo, que veicula apenas o que lhe interessa, que a reação a uma pauta sobre aumento do preço dos pedágios veio da Secretaria dos Transportes, da assessoria de comunicação: “Como vocês pautam um assunto desses?”. Pra mim, argumentaram que houve quebra de confiança. Eu havia pautado um assunto sensível sem comunicar à direção da fundação. Como diretor de Jornalismo eu ignorava que pauta sobre pedágio fosse sensível à direção da casa. Poderia o ser ao governo do estado e particularmente ao seu candidato. Posso afirmar que minha demissão foi um ato de censura. Tem assuntos que não podem ser tratados na TV Cultura. Isso eu acho inaceitável. A TV pública não pertence ao governo. O governo tem de pagar a conta e não pertence a ele. Quem manda é a sociedade, por meio de um conselho. Mas qual é a pluralidade que esse conselho tem se é composto por pessoas invariavelmente ligadas à linha de pensamento do grupo que governa o estado? Então vale somente a vontade do governador. Só é presidente da TV Cultura quem o governador admite que seja. Tanto que, em 50 anos de existência da emissora, nunca houve uma disputa de chapa para a direção. Como é no governo federal?

Na Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) está se tentando, a duras penas, um processo mais democrático, com um conselho mais plural, que tem participação mais crítica. O presidente ainda é indicado pelo governo, mas ele já avança no caminho de uma democratização maior. Mas estamos muito longe de um modelo de TV pública onde a sociedade, de fato, dê as regras. Mas esse debate não existe.

Não, não existe. Na mídia privada ele é vetado. Nas vezes em que aparece é enviesado. Se a TV é de um governo amigo, é um debate de cultura, educação. Se é de um governo inimigo, é tentativa de fazer propaganda. 18

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TOMAZ SILVA/ABR

Você voltou a trabalhar na TV Cultura, por alguns dias, em 2010. Sua saída foi pedido do Serra?

A cobertura do que acontece nas manifestações de rua vem da própria rua. Os relatos, fotos e vídeos colocados na internet dão uma leitura muito mais rica do que a representação da imprensa formal. A grande imprensa não fala mais sozinha O que você assiste na TV aberta?

Assisto futebol e novela. Às vezes assisto ao telejornal para saber como estão desinformando um assunto específico. Existe uma partidarização evidente do noticiário. Não dá para dizer que seja uma coisa nova, mas nunca se fez isso nessa escala e desfaçatez. A cobertura do que acontece na rua é justa?

A tecnologia empoderou o cidadão de meios técnicos para fazer a circulação de informação. A cobertura do que acontece nas manifestações de rua vem da própria rua. Se você pegar os relatos, fotos e vídeos colocados na internet você tem uma leitura muito mais rica do que a representação fornecida pela imprensa formal. A possibilidade de equilíbrio informativo hoje é dada pela internet. A grande imprensa não fala mais sozinha. Tudo que ela diz é contraditado num grau inédito. A mídia tenta pautar os movimentos?

Sim, mas quando ela não tentou, ainda mais agora que ela tem um partido? A política é um terreno em constante disputa. Não há espaço vazio. Em junho foi todo mundo para rua, os organizados e os desorganizados, direita e esquerda. A única coisa unitária entre esses grupos é que eles estavam no mesmo lugar na mesma hora. A mídia constrói o discurso para justificar ou combater alguma política ou ação.


LALO LEAL

O ano promete

Desenha-se um cenário de Copa no qual, se o Brasil vencer, o bônus será dos jogadores. Se perder, o ônus ficará com o governo

E

ncerrei o artigo publicado na edição de janeiro da Revista do Brasil com a expressão “2014 promete”. Escrito em dezembro, chamava a atenção para o desespero da oposição, representada pela mídia, na busca de um candidato para as eleições presidenciais deste ano, alertando sobre o previsível “vale-tudo”. A previsão, infelizmente, começou a se confirmar antes mesmo do fim do ano, com o jornalista Elio Gaspari pedindo na Folha de S.Paulo a volta das manifestações de rua, seguido na mesma linha por vários outros comunicadores, até pelo Faustão, na Globo. Passadas as festas, a carga prosseguiu com a GloboNews mostrando um gráfico sobre inflação que irá para os anais da manipulação jornalística brasileira. Por ele ficamos sabendo que a inflação de 2013, de 5,91%, é maior que as de 2010 (5,92%) e 2011 (6,50%). Disseram depois que foi “erro”, para mim só comparável ao célebre “boimate” da Veja de tempos atrás, quando a revista da Abril publicou uma nota científica sobre a descoberta da criação de um híbrido formado por boi e tomate. A diferença entre os dois “erros” está em seus objetivos. O da Veja antiga era mero sensacionalismo. Já o da GloboNews faz parte de ação política orquestrada, tendo como referência ideológica o Instituto Millenium, articulador da mídia brasileira em torno do pensamento único de raiz reacionária. Curiosa, no entanto, é a esquizofrenia diante da Copa do Mundo. Ao mesmo tempo que a defende de acordo com os seus interesses mercadológicos, procura incentivar manifestações populares em torno dela, contra o governo, por interesses políticos. Mas pede que sejam feitos de forma “pacífica”, repetindo os chavões de junho passado. Creio até que gestores e mentores dessa mídia torçam contra a seleção brasileira, na esperança de que a derrota crie algum alento à oposição. Ainda que custem um período de relativas baixas nas receitas publicitárias advindas do ufanismo futebolístico.

Se for assim, será mesmo o derradeiro ato de desespero. Foi-se o tempo em que política e futebol contaminavam-se reciprocamente. Não estamos mais em 1950, quando candidatos aos mais diferentes cargos circulavam entre os jogadores da seleção, invencível até começar o jogo final, tentando tirar uma casquinha do prestígio por eles conquistado nos gramados até minutos antes da tragédia do Maracanã diante do Uruguai. Ou da ditadura, em seu momento mais sinistro, durante a Copa de 1970, tentando sufocar os gritos das masmorras com marchinhas do tipo “pra frente, Brasil”. De lá para cá, o país mudou muito. Foi campeão do mundo mais duas vezes, passou dos “90 milhões em ação” para mais de 200 milhões e, na última década, tornou-se uma das mais importantes economias do mundo. Não há futebol que possa contaminar as conquistas populares como o aumento das redes de proteção social, a universalização do acesso ao ensino fundamental, a expansão do ensino superior e, principalmente, a redução do desemprego. O “complexo de vira-lata” pregado na testa dos brasileiros pelo escritor Nelson Rodrigues, logo após a derrota de 1950, e que se aplicava não só ao futebol, mas a toda a autoestima do país, desapareceu. Mesmo as mazelas que persistem na insegurança das ruas, no trânsito caótico, na prisões medievais, nas habitações precárias deixaram de ser consideradas destinos manifestos da gente brasileira. Ao contrário, mostram-se como desafios a serem enfrentados e superados pela ação política, institucionalizada ou não. A mídia tentará, uma vez mais, instrumentalizar essas lutas, juntando-as ao futebol, tanto em caso de vitória como de derrota na Copa. Se vencermos, o mérito será da seleção, se perdermos o ônus ficará com o governo. Serão as últimas cartadas oferecidas por ela ao seus candidatos numa tentativa de utilizar esses temas, neste ano, da mesma forma irresponsável como pôs em debate o aborto nas eleições de 2010. Como disse no artigo anterior, “2014 promete”... REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

. l a g e l i o f e u Parece q

L O G I O MAS F ILEGAL A presidência foi considerada vaga com Jango ainda no Brasil

I

nício de abril de 1964. O presidente constitucional, João Goulart, já foi derrubado e substituído pelo marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Na Casa Branca, um assessor (McGeorge Bundy) fala com o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, sobre o tom da mensagem de apoio ao recém-instalado governo brasileiro. O assessor lembra que o embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, prefere um texto amistoso, mas sugere um tom mais cauteloso, porque os novos donos do poder já estavam prendendo civis. “Acho que algumas pessoas precisam ir para a cadeia. Aqui nos Estados Unidos e no Brasil também. Não estou numa cruzada contra eles, mas gostaria que muitas pessoas tivessem sido presas, antes de perder Cuba”, responde o presidente. O assessor insiste em uma mensagem padrão. “Prefiro enviar uma mensagem bem calorosa”, diz Johnson, fechando a questão. O diálogo acima, documentado em áudio, é um trecho significativo do filme O Dia que durou 21 Anos, de Camilo Tavares, lançado no ano passado e

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FOTOS DIVULGAÇÃO/PEQ

Por Vitor Nuzzi

UI FILMES

Filme detalha atividades norteamericanas no país antes e durante o golpe que vai completar 50 anos

agora disponível em DVD e blu-ray. A obra traz documentos e áudios e expõe com clareza um assunto que durante muito tempo foi negado, omitido ou pouco falado na historiografia sobre o golpe que está completando 50 anos: a participação norte-americana no movimento que depôs Jango, sob o pretexto básico de influência comunista no Brasil. Assessor do embaixador, Robert Bentley, um dos entrevistados no filme, estava no gabinete presidencial quando o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República – mesmo com João Goulart ainda em solo brasileiro. Lyndon Johnson quer saber se a operação foi feita legalmente, e Bentley recorda ter dito: “Parece que foi legal”. Não foi. Jango ainda era presidente. A ilegalidade foi observada pelo próprio Lincoln Gordon, em livro publicado no Brasil em 2002: “Embora sem a sanção constitucional apropriada, o presidente do Senado declarou vaga a Presidência e acompanhou o sucessor constitucional – Ranieri Mazzilli, presi-


O PRIMEIRO PRESIDENTE Castelo Branco assumiu o cargo em 15 de abril de 1964

LPE

dente da Câmara dos Deputados – a uma cerimônia improvisada no prédio do Supremo Tribunal Federal, onde Mazzilli foi empossado como presidente em exercício”. Em 15 de abril, assume o primeiro dos presidentes militares do período 19641985, Castelo Branco.

Surpresa

Em seu A Segunda Chance do Brasil – A Caminho do Primeiro Mundo, o embaixador também admite surpresa pelo que viria logo depois: “Naquele momento ninguém podia prever o que aconteceria, embora ninguém imaginasse que o governo militar duraria 21 anos”. Ele dizia acreditar que a “ordem constitucional civil” fosse restaurada já em 1965, com a eleição de um novo presidente, “provavelmente Juscelino Kubitschek”. Isso aconteceria apenas em 1985, com uma eleição presidencial ainda indireta. E em 18 de dezembro do ano passado, o Congresso “devolveu”, simbolicamente, o mandato a João Goulart. Com a presença de Dilma Rousseff, de chefes das Forças Armadas e de João Vicente­, filho de Jango, o Parlamento anulou a sessão de 2 de abril de 1964, que declarou a vacância do cargo. A preocupação norte-americana com os rumos do Brasil não surgiu de uma hora para outra. Outra gravação incluída no filme mostra um diálogo, em abril de 1962, entre o presidente John Kennedy (assassinado no ano seguinte) e Gordon. “PoREVISTA DO BRASIL

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Brother Sam

A ação norte-americana sempre foi contestada pelos militares e pelo próprio Lincoln Gordon, ao escrever em seu li22

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APOIO POLÍTICO Depois de comparar a situação à de Cuba anos antes, e contrariando o conselho do assessor, o presidente americano Lyndon Johnson fecha a questão sobre a posição dos EUA em relação ao golpe: “Prefiro enviar uma mensagem bem calorosa”

APOIO MILITAR O porta-aviões americano Forrestal posicionou-se no Atlântico Sul para uma eventual interferência militar no Brasil

FOTOS DIVULGAÇÃO/PEQUI FILMES

demos fazer algo contra Goulart?”, pergunta o presidente. “Sim, acho que podemos”, responde o embaixador. “Os Estados Unidos, depois da Revolução Cubana, voltaram suas atenções para a América Latina, com a decisão de impedir a qualquer custo o que eles chamavam de segunda Cuba”, diz o pesquisador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos entrevistados para o filme de Tavares. As ações norte-americanas incluíam financiamento de campanhas para as eleições de 1962 e “um serviço de informações muito antenado em relação ao que acontecia aqui”. Segundo ele, Lincoln Gordon tornou-se personagem de nossa história política, ao convencer o governo norte-americano de que haveria um “risco comunista” no Brasil. Um risco improvável. “Que havia apoio da esquerda (a Jango), inclusive dos comunistas, é fato. Agora, que Goulart pretendia dar um golpe não há nenhuma evidência empírica. Foi uma iniciativa pautada pelo equívoco.” Estudioso de assuntos brasileiros, Gordon foi embaixador de 1961 a 1966. Morreu em 2009, aos 96 anos. Em relato ao Departamento de Estado, Gordon também cita o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola: “Minha conclusão é que as recentes ações de Goulart e Brizola para reforma agrária levarão o Brasil a um governo comunista similar ao de Fidel Castro em Cuba”. O historiador norte-americano Peter Kornbluh, analista-sênior do National Security Archive, organização não governamental criada em 1985 por jornalistas e estudiosos, observa no filme: “Os Estados Unidos queriam apresentar Goulart como um presidente de extrema-esquerda. A reforma agrária pela qual Goulart realmente lutava era mais um pretexto para apoiar esse argumento”. Ele fala em um “plano de contingência” prevendo inclusive ação armada, em caso de resistência – que não houve.

LBJ LIBRARY/USA

HISTÓRIA


HISTÓRIA

o general José Pinheiro de Ulhoa Cintra, homem de confiança de Castelo Branco, como contato brasileiro com os norte-americanos. Em depoimento prestado para uma coleção intitulada História Oral do Exército – 1964/31 de Março, o coronel, ex-ministro e ex-senador Jarbas Passarinho é um dos que contestam a versão de ­auxílio externo para o golpe. “Trata-se de uma velha mentira. Não chamo calúnia, porque não é crime, mas é uma injúria que o grupo comunista jamais abriu mão, tentar transformar em verdade à força de repetir”, afirma, em livro de 2003. “Não houve, em nenhum momento, a atuação dos Estados Unidos, em termos militares, de apoio à derrubada de Goulart. Havia preocupação com João Goulart, mas a maior preocupação era com Allende, como comprovaram mais tarde”, acrescentou, referindo-se ao presidente do Chile

Salvador Allende, deposto pelos militares em 1973. Passarinho admite, no entanto, possíveis conversações entre Gordon e o então governador de Minas Gerais, o banqueiro Magalhães Pinto. “É provável que o Magalhães Pinto tenha mantido algum entendimento com o próprio embaixador Lincoln Gordon para o caso de a nossa ação militar durar muito tempo. Não teríamos porto para receber suprimentos para as tropas de Minas, a fim de prosseguir numa luta que assumisse contornos de guerra civil. Isso então, sim, teria explicado o famoso Brother Sam: embarcações americanas preparadas para vir ao Brasil, trazendo combustíveis para que as forças revolucionárias contra o Goulart não minguassem sem esse suprimento. É a única coisa em que acredito, e que pode ter ocorrido.” Para Camilo Tavares, a descoberta da

CECIL STOUGHTON/WHITE HOUSE, JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LIBRARY AND MUSEUM

vro que “a derrubada de Goulart foi obra dos militares brasileiros, sem assistência ou aconselhamento dos Estados Unidos”. Ele admite a existência da Operação Brother Sam, que consistia no envio de uma frota armada para a costa brasileira em março de 1964. “Nenhum brasileiro, militar ou civil, teve conhecimento dessa força-tarefa naquele momento”, assegura Gordon. Segundo o embaixador, um dos objetivos era “exercer pressão psicológica a favor do grupo que se opunha a Goulart”. Quaisquer que fossem os motivos, não houve necessidade de usar as forças armadas, porque o golpe foi consumado sem maior resistência. “Ninguém admitiria (a presença dos Estados Unidos), porque seria um crime de traição à pátria. Mas os documentos disponíveis hoje mostram que os militares estavam acompanhando a Operação Brother Sam”, diz Carlos Fico, que aponta

DEMOCRACIA AO ESTILO NORTE-AMERICANO Kennedy e Lincoln Gordon na Casa Branca: articulação pelo golpe no Brasil foi gravada

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HISTÓRIA

participação de Kennedy na “conspiração civil-militar” contra Jango é a “grande revelação” do filme, que consumiu cinco anos de pesquisa e um trabalho de garimpo que incluiu ouvir fitas do ex-presidente norte-americano ainda sem transcrição. Em circuito comercial, o longa de 77 minutos foi assistido por 30 mil pessoas em dez estados, o que ele considera bom resultado para um documentário. A preo­cupação, agora, é organizar um circuito de exibições em escolas e universidades, inclusive nos Estados Unidos.

Público jovem

Em novembro, o filme foi visto em Harvard, com a presença do diretor do filme e do historiador brasileiro Nicolau Sevcenko, que lecionava naquela universi-

dade. “Pelo fato de o filme não ser maniqueísta, acho que provocou um debate interessante lá”, diz Camilo. “O desafio é chegar no circuito educativo. O filme tem essa característica de falar com o jovem.” Por enquanto, exibições estão previstas nas universidades Brown e de Columbia, além do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, na sigla em inglês). Prestes a lançar um livro sobre o período, o jornalista Flávio Tavares, pai de Camilo, era colunista político do jornal Última Hora, “o único que apoiava as reformas de base”. Mesmo acompanhando Jango desde o período da chamada Cadeia da Legalidade (movimento liderado por Brizola no Rio Grande do Sul para garantir a posse de Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961), ele disse

ter se surpreendido com informações divulgadas no filme, embora a ação norte-americana fosse conhecida. “Eu estava em Brasília e não conhecia a dimensão do golpe. Para mim, que estava no olho do furacão, foi mais surpresa ainda.” A professora e historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo (USP), cita uma obra de Moniz Bandeira (Governo João Goulart – As Lutas Sociais no Brasil) para lembrar que a questão da presença norte-americana vem sendo estudada pelo menos desde a década de 1970, mostrando com clareza “a intenção de agir” dos Estados Unidos em relação ao Brasil. “E temos também uma participação muito forte através de duas instituições de fachada, o Ipes e o Ibad, que tinham como exclusiva propos-

Encontro com ex-carcereiro

Uma das passagens curiosas do filme é o diálogo entre Flávio Tavares e Newton Cruz. O general fala sobre a situação pré-golpe, com presença de bandeiras comunistas nas ruas, do CGT (entidade sindical), da UNE. Ao que o jornalista contrapõe: mas isso não é normal em uma democracia? E ouve um enfático “não”, não é normal. Mas o militar também comenta que ninguém leva 20 anos para “arrumar a casa”, referindo-se ao período autoritário. “Foi um encontro cordial, muito franco”, afirma Flávio 24

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Tavares. Também foram assim as conversas com o almirante Júlio de Sá Bierrenbach e o coronel Jarbas Passarinho. Com algumas recordações. “Bierrenbach foi meu carcereiro na Marinha. Só que esse homem se portou muito bem comigo já na ocasião. Foi o único (nas prisões) a se portar com dignidade”, conta. Torturado em outros locais, Tavares diz ter recebido – pelo menos naquela ocasião – tratamento rígido, mas correto. O jornalista foi um dos presos políticos libertados em troca do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969.

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Bierrenbach: desarquivamento do inquérito do Riocentro

Camilo nasceu durante o exílio do pai, em 1971, no México. Com Robert Bentley, o jornalista fala sobre tortura e deixa o ex-assessor de Lincoln Gordon constrangido. “Isso é difícil de justificar oficialmente. Mas lamento, lamento, de qualquer maneira”, reagiu. No final do encontro com Passarinho (“Grande articulador político, não é um homem bronco”) para a gravação do depoimento, Tavares recorda que o militar foi quem assinou o decreto suspendendo seus direitos políticos. Ele já não se lembrava.

O jornalista cita outro detalhe histórico: já na condição de ministro do Superior Tribunal Militar, Bierrenbach votou pelo desarquivamento do inquérito do Riocentro. Em 1981, uma bomba estourou dentro de um carro no estacionamento do centro de eventos, matando um sargento e ferindo um capitão – seria mais uma operação para minar o processo de abertura política. O almirante foi voto vencido, mas chamou o caso – que seria tentativa de atentado a um show de 1º de Maio – de “crime nefasto”.

PAULO NICOLELLA/AG GLOBO

DIVULGAÇÃO/PEQUI FILMES

Camilo e Flavio Tavares durante as filmagens, em Brasília


JIMMY CARTER LIBRARY

HISTÓRIA

POLÍTICA DE DIREITOS HUMANOS Foi apenas com a posse de Jimmy Carter que as relações entre o governo norte-americanos e os militares brasileiros começaram a mudar

ta desestabilizar o governo João Goulart”, acrescenta. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) foi criado em 1962 e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), em 1959. No filme, a jornalista e escritora Denise Assis afirma que o Ipes foi montado “para ser o ovo da serpente do golpe”. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) chegou a ser criada em 1963 para investigar as atividades dos institutos, suspeitos de financiar deputados contrários a Jango com recursos vindos do exterior. O vice-presidente da CPI era Rubens Paiva, que seria sequestrado e morto durante a ditadura. Também no filme, Plínio de Arruda Sampaio, à época eleito deputado e relator do projeto sobre reforma agrária, conta ter sido procurado por uma pessoa que lhe ofereceu dinheiro para a campanha eleitoral de 1962. Segundo Sampaio, seu interlocutor explicou: “Só queremos que o senhor defenda a democracia”. “Para isso não preciso de dinheiro”, replicou Plínio. Em depoimento para o documentário,

o historiador James Green, da Brown University, chega a comparar: “Imagine se o governo brasileiro tivesse financiado Barack Obama (…) Imagine o escândalo”. Maria Aparecida observa que a política norte-americana em relação ao Brasil só começaria a mudar de fato com a posse do presidente Jimmy Carter, em 1977. “Vai causar um mal-estar muito grande nos militares, porque vem com uma política de direitos humanos. Portanto, uma mudança de inclinação só acontece no final da década de 70”, diz a professora. Pouco antes disso, estava em curso a chamada Operação Condor, de colaboração entre governos autoritários na América Latina. O diplomata chileno Orlando Letelier, por exemplo, foi assassinado em Washington, em 1976. E há suspeitas sobre as circunstâncias que envolvem as mortes de Carlos Lacerda, João Goulart e Juscelino Kubitschek entre 1976 e 1977. Estavam em questão, também, interesses de empresas norte-americanas no Brasil. Camilo Tavares lembra que o então governador Leonel Brizola já havia

irritado os Estados Unidos ao encampar duas empresas, subsidiárias da ITT (telefonia) e da Amforp (energia elétrica). Outro episódio considerado “inaceitável”, desse ponto de vista, foi a regulamentação, sob a gestão João Goulart, da lei de remessa de lucros. “A legislação é totalmente justa, dá garantia de que parte do capital não vá para a matriz. Procura regulamentar os lucros das multinacionais”, diz Maria Aparecida de Aquino. “Isso não é ser contra os Estados Unidos, mas a favor dos interesses do Brasil. É uma lei de proteção que qualquer país precisa ter. Os Estados Unidos têm uma lei protecionista violenta.” Para Carlos Fico, a “a equação da época” já é conhecida pela historiografia. “O que vai acontecer é a divulgação de nomes e detalhes, se trata da incorporação de detalhes e responsabilidades.” Ele vê um certo aspecto “perverso” na divulgação paulatina de documentação sigilosa. “Já se passaram muitos anos, e qualquer possibilidade de justiça ou responsabilização cai por terra.”

Campanha deslavada A pesquisadora Maria Aparecida de Aquino não vê consistência nem paranoia nos argumentos que justificaram a ação contra o governo João Goulart, classificada como “golpe preventivo” por muitos militares. “É má-fé”, reage, para então comentar o papel da imprensa. “Excetuandose o Última Hora, de Samuel Wainer, todos os jornais faziam a campanha mais deslavada possível contra a autoridade presidencial.” O caso do Correio da Manhã, “o mais prestigiado jornal da época, fundado em 1901”, também é lembrado. “Foi um dos mais virulentos contra Goulart”, diz Maria Aparecida, citando os editoriais “Basta!”, publicado em 31 de março de 1964, e “Fora!”, de 2 de abril. Mas praticamente em seguida o Correio já se posiciona contra os rumos do novo governo, “e por conta disso vai pagar muito caro”. O jornal vai mudar de mãos, definhar e fechar em 1975. REVISTA DO BRASIL

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AMÉRICA LATINA

O grande canal Localizada na Nicarágua, nova ligação entre o Atlântico e o Pacífico pode sair do papel em 2014 e reposicionar o continente no comércio mundial. Mas com risco de altos custos ambientais Por Talita Pires 26

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U

ma megaobra de US$ 40 bilhões bancada por investidores chineses na Nicarágua, segundo país mais pobre da América Latina, pode mudar a dinâmica do comércio mundial. O país pretende construir um canal, financiado, ligando os oceanos Atlântico e Pacífico, nos moldes do Canal do Panamá. Ainda sem percurso definido, o canal, que vem povoando o imaginário local desde antes da construção do vizinho panamenho, é a aposta nicaraguense para aumentar drasticamente seu Produto Interno Bruto (PIB) e a renda da população. Em termos de comércio, o sucesso dessa empreitada pode diminuir o custo do transporte em importantes rotas marítimas. A Nicarágua pretende aproveitar o fato de o Canal do Panamá não ter espaço para um novo tipo de navio, o Triplo E, que comporta cerca de 18 mil contêineres de carga. A passagem panamenha está em expansão, mas mesmo depois do final dessa obra os maiores navios comportados serão os New Panamax, que carregam 12,5 mil contêineres. Os Triplo E ainda são raros, mas sua participação no comércio mun-

REVISTA DO BRASIL

dial deve aumentar nos próximos anos, já que derruba entre 20% a 30% o custo da tonelada transportada. “Quanto maior o navio, menor o custo relativo do transporte. Assim, a participação dos Triplo E deve aumentar no comércio. Várias empresas já encomendaram esses navios para os estaleiros”, afirma o professor José Vitor Mamede, do curso de Comércio Exterior da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), de São Paulo. Apesar do otimismo do governo local, a obra ainda não está confirmada. Até o final do ano passado, não estava sequer definido trajeto do canal. Foram analisadas seis possibilidades – estudos de viabilidade ainda estão em curso e devem ficar prontos até julho. Se tudo correr como planeja o governo, a construção, prevista para durar cinco anos, começaria em dezembro. Para o ministro Paul Oquist, da Secretaria para Políticas Nacionais da Nicarágua, os estudos deixaram governo e investidores confiantes. “O volume de investimentos feitos pelas consultorias é muito alto para ser gasto em um projeto que tem chances duvidosas de acontecer”, afirma. Até agora, esses estudos consumiram

ADAM WARZAWA/POLAND OUT/EFE

DESAFIO PARA OS CHINESES Navio Triplo E (Economy of Scale, Energy Efficiency, Environmentallyimproved, do termo em inglês) deixa o porto de Gdansk, na Polônia: muito largo para o Panamá


AMÉRICA LATINA

US$ 900 milhões e mobilizaram 4 mil profissionais. O projeto completo não fica apenas na construção do canal. O país pretende pôr em operação um ambicioso plano de logística, integrado por dois portos, uma linha de trem paralela ao canal, um oleoduto, duas zonas de livre comércio e um ou dois novos aeroportos internacionais. O grupo investidor no canal estima que o comércio mundial vai aumentar 42% entre 2011 e 2025. As exportações mundiais cresceram de US$ 6,5 trilhões em 2000 para US$ 18,3 trilhões em 2012. Esse número deve aumentar para US$ 35 trilhões em 2020. Não é apenas o aumento do volume de negócios que justifica o investimento na obra. Algumas rotas comerciais que seriam beneficiadas com aumentarão de importância nos próximos anos. Em breve, os Estados Unidos deixarão de ser importadores e passarão a exportar petróleo pelo Golfo do México. Hoje, os petroleiros de maior porte não passam pelo Canal do Panamá para atingir a costa oeste americana e a Ásia, mas poderão passar pelo novo caminho. O comércio entre os países latinos banhados pelo Atlântico e Ásia também seria facilitado, assim como entre os países andinos e a Europa. “Essa obra, apesar de ser iniciativa de um investidor chinês, deve ser benéfica para o comércio como um todo. A China ganha, mas os Estados Unidos

também serão beneficiados, assim como a América Latina”, acredita Mamede.

Impacto na renda

Com 6 milhões de habitantes e PIB de US$ 10 bilhões, a Nicarágua busca com esse megaprojeto mudar o perfil econômico do país e aumentar a renda da população. Embora a economia venha crescendo a uma taxa média de 5% ao ano, uma das mais altas da América Latina, e apresentando avanços na redução da desigualdade, o país continua a apresentar alta taxa de pobreza. Em 2012, 42% dos nicaraguenses podiam ser considerados pobres. Outro problema interno é a informalidade. Dos 3 milhões de pessoas empregadas no país, 640 mil estão inscritas na previdência social. O governo espera ter um resultado semelhante ao do Panamá na economia. Desde o anúncio do projeto de expansão do canal, o país, de 3,8 milhões de habitantes, cresce quase 9% ao ano em média, mesmo com a crise mundial de 2009. O PIB saltou de US$ 17 bilhões em 2006 para US$ 42 bilhões em 2012, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). “O modelo do Panamá pode ser considerado um sucesso. Desde que o país passou a controlar o canal, em 1999, a economia melhorou”, afirma Mamede. A Nicarágua espera crescer a taxas acima de 10% ao ano a partir do Canal do Panamá

HONDURAS NICARÁGUA

Possível rota do Canal da Nicarágua

Manágua MAR DO CARIBE

COSTA RICA

OCEANO PACÍFICO

PANAMÁ

Cidade do Panamá

COLÔMBIA

ARTE SOBRE IMAGEM DO GOOGLE

São José

início da construção do canal. Até 2018, o país espera triplicar para 1,9 milhão o volume de empregos formais. Para que os nicaraguenses possam aproveitar os empregos criados pelas obras e operação do canal, o governo promete realizar parcerias com as universidades. “Não adiantaria nada realizar todo esse investimento para criar empregos para estrangeiros”, diz Paul Oquist.

Riscos sociais e ambientais

A construção do canal maior do que o do Panamá e o sucesso de sua operação são possíveis porque a Nicarágua conta com recursos hídricos em abundância. O lago Nicarágua, que faz parte de todas as possibilidades de trajeto do canal, é o maior da América Central. O uso do lago e dos aquíferos que o alimentam para o canal causou polêmica no país. Victor Campoe, diretor do grupo ambiental Humboldt, afirmou em junho passado que o projeto põe em risco a bacia hidrográfica que fornece água para a maior parte da população mais pobre do país. A reserva ambiental de Punta Gorda, que abriga 120 espécies de pássaros, mamíferos, répteis e outros animais, também pode ser afetada. Oquist afirma que, de maneira geral, o país deve sair ganhando ambientalmente. “Haverá impacto na área de construção, mas ao mesmo tempo há um trabalho para conter o desflorestamento, reflorestar áreas degradadas e deter a sedimentação do lago Nicarágua”, afirma. Essas ações seriam necessárias para a operação do canal, que depende do suprimento de água para funcionar. O HKND, grupo parceiro do governo nicaraguense no projeto, contratou a consultoria ambiental britânica ERC para auditar os possíveis impactos ambientais. Da mesma forma, os impactos sociais da obra ainda são desconhecidos, uma vez que até o início de janeiro o trajeto do canal ainda não estava definido. Não é possível, ainda, saber se e quais comunidades no caminho do canal serão afetadas. O discurso do governo afirma que todas as comunidades que tenham de ser removidas serão ouvidas no processo e realocadas da melhor maneira possível. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

DJ Dolores mergulhou na música e conquistou o mundo. O artista multidisciplinar une influências regionais e universais, gosta de aprender com o diferente e não se omite na política

Mangueb Por Fábio Jammal

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ENTREVISTA

Q

mundo

MARCELO LYRA/OLHONU

beat para o

uando aquele garoto de 18 anos deixou Sergipe para tentar a vida em Recife não tinha a menor ideia de como sobreviveria na capital pernambucana. Helder Aragão deixou e a vida o levou até um grupo de amigos que, anos mais tarde, encabeçariam um dos maiores movimentos de contracultura do Brasil na década de 1990: o Manguebeat. “Foi tudo acontecendo meio que sem querer”, diz. Helder virou DJ Dolores, um artista que passou a atuar em diversas áreas, da criação de capas de discos à composição de trilhas sonoras para alguns dos principais filmes do cinema nacional. Teve papel fundamental na elaboração da identidade visual do Manguebeat ao criar as capas dos primeiros discos e videoclipes de Mundo Livre S/A, Chico Science & Nação Zumbi, Eddie e Mestre Ambrósio. No caso do disco do Mestre Ambrósio, DJ Dolores foi pioneiro num estilo que é bastante reproduzido hoje em dia, ao usar computadores para simular xilogravuras inspiradas na literatura de cordel. Foi um dos responsáveis pela gravação da primeira música composta por Otto, antes do início de sua carreira musical profissional. Os caranguejos com cérebros que decoram o primeiro lançamento do movimento Manguebeat também foram criados por ele. Do trabalho como designer gráfico para a música foi um passo. E do Brasil para o mundo, outro. Transformou-se no DJ brasileiro mais celebrado no exterior, já tocou ao lado de Björk, Moby e Coldplay e mantém agenda cheia no exterior. Costuma lançar seus discos quase simultaneamente no Brasil e Europa. “Fui adotado por vários selos no exterior e o público gostou de mim, principalmente o europeu. Minha carreira no exterior, assim como no Brasil, também não foi planejada. Tudo foi acontecendo...”. Em 1997, fez seu primeiro trabalho no cinema, ao compor a trilha para o curta Enjaulado, de Kleber Mendonça Filho. Não parou mais de compor música para os principais filmes do cinema nacional. São deles, por exemplo, as trilhas de O Som ao Redor, A Máquina, Narradores de Javé e Estradeiros. Também compõe músicas originais para teatro e espetáculos de dança. Seu último trabalho, para o longa Tatuagem, foi premiado com o Kikito de Melhor Trilha Sonora, no Festival de Gramado de 2013. Na ativa há mais de 20 anos, DJ Dolores é um artista multidisciplinar, que junta influências regionais e universais, oxigenando a MPB. Sua obra, sempre, tem um cunho político. “A gente faz política o tempo todo. E eu me interesso muito por essa política que pode transformar a vida de homens e mulheres. A política partidária não me interessa em nada”, afirma. Na conversa com a Revista do Brasil, ele falou sobre cultura brasileira, política, sociedade, sobre a vida. E prende fácil o interlocutor com histórias interessantes e posições firmes. Você é eclético. É DJ, compõe trilhas para filmes, teatro e balé, é artista gráfico e criador de várias capas de discos. Como se define?

Eu me considero um artista multidisciplinar, é assim que me defino. Sempre tive talento para criação. Se você pedir para eu trocar uma lâmpada, não vai dar certo (risos). Sempre vivi disso, REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

dessa minha criação, nunca trabalhei com outra coisa. Não atuo em várias áreas por vaidade. Trabalho por prazer, mas também por necessidade. Entre as muitas coisas que você faz, tem alguma área de preferência?

Acho que tenho mais jeito para designer gráfico. Mas nada na minha vida profissional foi planejado, tudo foi acontecendo... Vim para o Recife aos 18 anos, sozinho, e tive de sobreviver. Meu primeiro emprego foi como cartunista do Jornal do Commercio. Depois, fui trabalhar numa produtora de vídeo, acabei escrevendo roteiros, dirigindo e trabalhando com música. Foi tudo acontecendo meio que sem querer.

Hoje, seu nome está muito ligado à trilha sonora de importantes filmes nacionais. Como é produzir música para o cinema? Compor sob encomenda limita a criação?

De jeito nenhum, pelo contrário. Produzir por encomenda é a coisa mais maravilhosa do mundo, é muito fácil. O chefe dá o mote e você tem toda a direção a seguir. Difícil é trabalhar sozinho, começando do zero. É iluminador quando você vê o filme, o trabalho dos atores, da direção, a história... E ter um chefe, dizendo o que ele quer, facilita todo o seu trabalho (risos).

O Manguebeat definiu o foco da cultura brasileira da década de 90. Sem ele, hoje não existiriam Marcelo D2, O Rappa, Seu Jorge...

Uma das principais características do Manguebeat é a crítica social. E você mantém isso no seu trabalho até hoje. Dá para fazer política com a música?

Mas a gente faz política o tempo todo. A gente acorda fazendo política, pega um táxi e faz política com o motorista... Eu me interesso muito por essa política que pode transformar a vida de homens e mulheres. Ao contrário da política partidária, que não me interessa em nada.

Você já participou de uma eleição no Recife, em 1992, quando muitos artistas se envolveram na campanha de Humberto Costa (PT) para prefeito. Como você vê a política nacional hoje, a cobertura da imprensa, as manifestações de junho... Enfim, a arena política?

Esses são temas complexos, a gente poderia passar a tarde inteira conversando (risos). Acho que o Brasil é um país conservador. E a imprensa brasileira é a cara desse conservadorismo, assim como os políticos e os eleitores. As manifestações de junho, sem liderança nenhuma, ainda não foram compreendidas. E é difícil. Tinha gente protestando pelas mais variadas pautas, não tinha nenhuma identidade ideológica. Vi gente de direita fazendo discurso de esquerda e gente de esquerda fazendo 30

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Mas a gente faz política o tempo todo. A gente acorda fazendo política, pega um táxi e faz política com o motorista... Eu me interesso muito por essa política que pode transformar a vida de homens e mulheres. Ao contrário da política partidária, que nao me interessa em nada

discurso de direita. Aliás, é difícil estabelecer o que é direita e o que é esquerda hoje. Quando eu era criança, ouvia que a esquerda era o bem e a direita era o mal. Nossos inimigos eram bem definidos na época da ditadura. Depois, na democracia, o PT se transformou no modelo de esquerda para o Brasil. Mas hoje, no governo, é um partido de direita. Por que, para mim, quem está junto com o Sarney, por exemplo, é de direita. Acho que isso gerou uma descrença e as pessoas estão meio perdidas ideologicamente hoje. Você já contou que sua música Proletariado foi composta na semana em que o Brasil se comoveu com um as-

MARCELO LYRA/OLHONU

Você é um dos criadores do Manguebeat, um dos principais movimentos de contracultura do Brasil. Como você avalia o movimento hoje, 20 anos depois, e qual a sua importância para a música e a cultura brasileira?


ENTREVISTA

sassinato praticado por um menor. Na época, parte da sociedade voltou a tocar na tecla de reduzir a maioridade penal. As pessoas estão mais reacionárias hoje?

Aliás, nesta letra tem uma adaptação que fiz de um manifesto de Marx e Engels... Olha, reacionário, inclusive, é um termo que voltou à moda recentemente (risos). Como eu disse, as linhas que dividiam a esquerda da direita, o bem do mal, estão muito tênues hoje. As pessoas estão confusas até pela quantidade de informações que estão circulando. E aí, coisas que parecem contraditórias, ganham discursos com aparente coerência. Hoje temos partido de nazistas gays, vai entender... (risos) Sua obra tem bastante influência de Gilberto Freyre. Eu assisti a uma entrevista sua em que você comentava sobre Casa Grande & Senzala, em que discorre sobre a colonização da América Latina e classifica a aristocracia como “magníficos e inúteis”. Quem são os magníficos e inúteis hoje?

Continua sendo aquela aristocracia que vive de não produzir nada, que faz dinheiro através da especulação financeira, como os banqueiros. Vivem de fantasia. O sistema bancário, por exemplo, é hoje um dos grandes males da humanidade. Os bancos são piores que os senhores feudais na Idade Média. O futuro vai mostrar como eles fazem mal para a sociedade hoje. Mas as pessoas se sentem confortáveis em deixar seu dinheiro no banco. O ser humano aceita ser subjugado. Quantos países, ainda hoje, têm reis e rainhas? As pessoas aceitam ser submissas. E dentro desse modelo de mercado e de economia que a gente vive hoje, ainda temos um monte de magníficos e inúteis... Você diz que a MPB é muito classe média, e que falta ao Brasil reconhecer a música que vem de baixo para cima. O que você acha dos rótulos que as pessoas colocam nas músicas e nos músicos, classificando o que é brega e o que é de bom gosto?

O rótulo é uma invenção do comércio. E também dos jornalistas, que precisam explicar em um ou dois parágrafos o que é o disco, quem é o artista. O mercado precisa fazer com que o público entenda a obra ou o artista de forma fácil. Não sei que rótulo me caberia... (risos). É incrível como a gente que está aqui no Nordeste precisa do aval da Folha de S.Paulo, de O Globo, das revistas Bizz e Rolling Stone... E quando a gente vai fazer show no exterior, queremos críticas positivas do The Guardian, do Le Monde... É o famoso complexo de vira-latas... Mas acho que isso está mudando. Há blogs e sites independentes mais importantes que qualquer crítico tradicional. Quando a Mallu Magalhães surgiu, por exemplo, os jornais tradicionais a elogiavam e destacavam o fato de que ela tinha mais de 200 mil acessos no My Space. Mas aqui no Nordeste tem uma banda chamada Arrocha que tinha mais de 5 milhões de acessos e ninguém falava nada. Essas bandas e artistas que fazem música para as classes mais baixas sabem usar muito bem a internet. Eles vão fazer show numa determinada cidade e o crítico do jornal local não

dá uma linha sobre o evento. Mas os shows são lotados. Com o advento da internet, me dá a impressão de que os críticos hoje não servem para muita coisa... Os blogs e sites independentes desarticularam o sistema indústria-crítico-distribuição. É por isso que Sony, Warner e as grandes gravadoras estão falando em crise da indústria fonográfica. Por falar nisso, o seu trabalho é bem independente. É difícil conciliar essa independência artística com o lado comercial?

Eu percebi que não preciso de uma grande gravadora por trás de mim. Não preciso ficar preso ao sistema de lançar um disco, passar um tempo na estrada, prestar contas para o selo... Tenho produzido como nunca de forma independente e garanto meu dinheiro para pagar as contas. Estou na melhor fase da minha vida profissional. Estou com vários projetos e várias parcerias, com Yuri Queiroga, com Naná Vasconcelos... Estou fazendo uns trabalhos mais pop, outros mais experimentais. Estou livre para trabalhar, há um mercado imenso que não depende das gravadoras. Ainda faz sentido lançar um CD no formato físico?

Essa é uma discussão que está colocada já faz algum tempo. Em tese, não há necessidade de lançar um CD no formato físico. Mas a questão é que o CD acaba funcionando como um cartão de visitas. Eu, particularmente, gosto do vinil, acho que tem mais sentido lançar um vinil. Ele atinge as pessoas que gostam de curtir a música e todo o álbum, que tem uma sequência que foi pensada e que dá a cara do trabalho. Além disso, o vinil vai na contramão deste mundo cada vez mais rápido e sedento por informações. Você já assinou várias capas de disco como designer gráfico. As capas perderam o impacto com a criação do CD?

Perderam bastante. O CD é pequeno, sem graça, a escala de visualização da capa é bem menor. Até as letras das músicas são pequenas, não é a mesma coisa que o vinil.

Você é hoje o DJ brasileiro mais celebrado fora do país. Já ganhou prêmios internacionais e vive fazendo turnê no exterior. É mais conhecido lá fora que no Brasil?

Sim, desde o início da minha carreira eu sempre circulei no exterior. No último ano fiz sete shows no exterior e tenho mais três programados para 2014. Como sempre, isso também não foi planejado. Acontece que fui adotado por vários selos no exterior e o público gostou de mim, principalmente o europeu.

E qual a importância dessa troca com outras culturas nas suas composições?

É muito bom sair da sua cultura e ver como as outras pessoas fazem as coisas. Ver outras maneiras de produzir cultura, outras técnicas, outras éticas profissionais. A gente sempre aprende com o diferente e quando você se distancia da sua cultura, da sua música, e conhece outras, só cresce. REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

Cultura guardada e c Pesquisador mantém em seu apartamento um acervo com mais de 150 mil itens sobre cultura popular, que para ele segue maltratada Por Vitor Nuzzi

A

o entrar na casa de Assis Ângelo, na região central de São Paulo, percebe-se que ali fica um reduto de cultura popular. Quadros com desenhos, pinturas, fotografias, imagens de artesanato, ilustrações, discos, livros, tudo remete ao assunto. No toca-discos, um antigo bolachão toca Preto e Branco, com o grupo Quatro Ases e um Coringa, com ironias sobre a democracia racial brasileira. É apenas um dos 150 mil itens do acervo do jornalista e pesquisador, que em 2011 criou o Instituto Memória Brasil, com o objetivo declarado de preservar a cultura do país. Estão com ele pessoas como o compositor Theo de Barros (coautor, com Geraldo Vandré, da clássica Disparada), Roberto Marino (filho de Alberto Marino Júnior, autor da letra da valsa Rapaziada do Brás), o escritor Roniwalter Jatobá (“Acabou de ganhar o Jabuti, está todo feliz”, conta Assis, referindo-se ao prêmio recebido em 2013), o percussionista Papete, os músicos Oswaldinho do Acordeon e Osvaldinho da Cuíca, o violonista Jorge Ribbas, entre tanta gente que se reúne esporadicamente no apartamento do jornalista, no bairro de Santa Cecília, para confraternizar. E o arquivo está todo ali, disponível aos interessados. “A nossa ideia é sair daqui, ter um espaço próprio’, diz Assis, que aguarda parcerias para cuidar do acervo. 32

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Tranquilo na fala, Assis Ângelo se exalta ao falar do que ele considera ser o tratamento dado à cultura no Brasil. “A música brasileira está se acabando, está em processo de destruição. Não existe mais a canção. Acabaram com o baião, o xaxado, a marchinha junina, a marcha de carnaval. Acabaram com o maxixe, o lundu. Quer mais prova? Ligue o rádio”, afirma, ressaltando não ser um nacionalista “no sentido lamentável do termo, que leva à xenofobia”. A lista tem ainda a moda de viola e o cateretê. “Acabou, principalmente aos olhos e ouvidos do grande público.” E acrescenta: “Também estão acabando com os pesquisadores. Ainda somos uma

nação de vira-latas”. Como exemplo, cita Luís da Câmara Cascudo (1898-1986): “Pesquisador independente, deixou uma obra de 180 volumes, e você não vê os livros dele por aí. Frequentei bastante a casa dele, que disse: ‘Pode anotar. Quando eu morrer, vou virar uma notinha de dinheiro’”. E virou mesmo: uma nota de 50 mil cruzeiros, no início dos anos 1990. A Virada Cultural paulistana não o convence. “Gasta-se muito em 24 horas e no resto do ano... A Inezita Barroso não é chamada, o Oswaldinho do Acordeon há muito tempo não é chamado para nada. Aí morre o Dominguinhos, há uma comoção, mas passa uma semana e se


compartilhada

FOTO E REPRODUÇÕES JAILTON GARCIA/RBA

PARA TODOS Assis: “A nossa ideia é sair daqui, ter um espaço próprio”

esquece. É como se os nossos governos, os nossos políticos, não acreditassem no Brasil e na sua gente.” Paraibano, Assis chegou a São Paulo em 22 de agosto de 1976 – Dia Internacional do Folclore, lembra o jornalista, com passagens pela TV Cultura e pelos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e Diário Popular, entre outros. “Encontrei aqui o terreno firme para minhas experiências nesta vida movediça.” E as andanças incluíram, claro, o garimpo de raridades. “Quando viajo, procuro sebos. Adoro os alfarrábios”, diz. Em Paris, achou um disco made in France dos Demônios da Garoa – Assis é autor de bio-

grafia sobre o grupo, Pascalingundum!, lançada em 2009 e atualmente fora de catálogo, além de obras sobre Luiz Gonzaga e Inezita Barroso. Algumas obras já levam o selo do IMB, casos do CD O Samba do Rei do Baião e do livro Lua Estrela Baião, a História de um Rei. Entre os discos 78 RPM, estão gravações de Cornélio Pires, Almirante, um discurso do Barão do Rio Branco, o maestro Pattápio Silva, duplas, trios, quartetos, quintetos, sextetos, além de um estojo com 20 discos, lançado em 1932, para coletar recursos para a Revolução Constitucionalista. O acervo inclui LPs de 10 e 12 polegadas (um deles, por exemplo,

tem canções de Dorival Caymmi gravadas em hebraico), compactos simples e duplos. “Por baixo, 20 mil fotos de artistas de todas as épocas”, acrescenta Assis, que registra ainda mais de 10 mil partituras. E mais de mil horas de entrevistas gravadas, mais DVDs, fitas em VHS, videocassetes, revistas (Fon-Fon, Cigarra, Ilustração Brasileira, Revista de Teatro, Radiolândia, entre outras) e cordéis – o mais antigo, impresso em Lisboa, é de 1917 (A Encomenda do Gallêgo, do português Ávila Fernandes). Literatura de cordel está na raiz da educação artística do paraibano, que completará 62 anos em 2014. “O cantador e o cordelista eu acompanhava nas feiras livres. Faz parte da minha cultura popular, que é a digital de um povo. A educação passa pela cultura.” Eventualmente, Assis recebe doações. Caso de algumas mandadas recentemente pelo produtor Braz Baccarin, da extinta gravadora Continental – por exemplo, um livro italiano sobre as origens da música brasileira até 1921. Ao falar sobre isso, o jornalista lembra que Baccarin, de certa forma, foi o responsável pelo clássico paulistano Trem das Onze, de Adoniran Barbosa. “O Arnaldo Rosa (um dos fundadores do Demônios da Garoa) estava sem gravadora e procurou o Braz Baccarin, que disse: tudo bem, desde que tivesse uma inédita do Adoniran”, lembra Assis. Mas a relação entre o grupo e o compositor era conflituosa, e eles estavam brigados. Foi quando Rosa lembrou de uma letra esquecida por anos em uma gaveta. “Mas a letra era enorme. Numa madrugada, eles resumiram e gravaram.” Eram meados de 1964. A história do filho único que não pode perder o trem foi o único samba de São Paulo a ganhar prêmio no carnaval do Rio de Janeiro, e justamente no 4º Centenário da cidade, em 1965.

Saber nunca é demais

Textos, histórias e vídeos podem ser vistos no site www.institutomemoriabrasil.org.br REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

O sucesso de iniciativas terapêuticas no sistema prisional de Rondônia demonstra que a recuperação de um detento passa pelo reconhecimento do crime como patologia social. E requer vontade política Por Ana Mendes, texto e fotos

Buscar o topo,

COM OS PÉS NO O que levou São Luís às manchetes dos jornais no último mês foi um genocídio anunciado. Detentos vivendo em uma penitenciária superlotada no Maranhão e completamente abandonada pelo poder público eclodiram uma guerra que não tem fim. Após a divulgação de relatório produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dando conta de 60 pessoas mortas no Complexo de Pedrinhas em 2013, a reação foi óbvia: a Justiça maranhense exigiu a construção de novos presídios e fixou prazos para a nomeação de mais agentes penitenciários. Essas e outras medidas paliativas fazem parte também de um plano de emergência apresentado pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e pela governadora do Maranhão, Roseana Sarney. No país que tem a quarta maior população carcerária do mundo, a tomada de medidas em caráter de urgência só reitera a falta 34

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de estratégias para aplicar mudanças concretas no sistema penitenciário. Algumas raras iniciativas de humanização partem de organizações não governamentais, mas sem incentivo deixam de existir rapidamente ou simplesmente não tomam grandes proporções. Em 2002, o presídio Urso Branco, em Porto Velho, foi o Pedrinhas da vez. Em uma sucessão de brigas entre facções rivais, somada à ação violenta da Polícia Militar, foram registrados 27 assassinatos. A chacina de Rondônia foi considerada a maior do país, só perdendo em proporções para o massacre do Carandiru, em São Paulo, dez anos antes. Depois dos episódios de Urso Branco, o trabalho realizado, já há alguns anos, pelo dramaturgo mineiro Marcelo Felice ganhou importância e transformou-se em um projeto sem precedentes no país. Ele ministrava pequenas oficinas de teatro com o intuito de discutir questões relacionadas aos direitos huma-


CIDADANIA

CHÃO

O Topo do Mundo é mais do que um relato verídico dos acontecimentos que resultaram em crimes, mas traz processos psicológicos de dor, medo, vaidade e vingança contra si e contra os outros

nos entre os detentos. Hoje, seu projeto é vinculado à Secretaria de Justiça de Rondônia e monitorado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tamanha a importância que representa. O projeto rondoniense Reabilitando pela Arte tem quase duas décadas. O primeiro espetáculo montado com atores apenados ficou 15 anos em cartaz e circulou por todo o país, atingido a marca de 100 mil espectadores. Nos moldes do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, Bizarrus revelava histórias que tinham vínculo direto com as trajetórias pessoais de cada ator. Todas em torno de um destino comum: o cárcere. No novo espetáculo, O Topo do Mundo, a trama conta mais do que um relato verídico dos acontecimentos que desencadea-

GLÁUCIO DETTMAR/ AGÊNCIA CNJ

Chão e determinação

Reabilitação: 65% dos que passaram pelo projeto não voltam para a criminalidade REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

ram em crimes, mas traz processos psicológicos de dor, medo, vaidade e vingança contra si e contra os outros. “Quando usam a palavra ‘ressocialização’, eu fico muito atento. Porque ressocializar significa voltar à sociedade. Mas aí eu pergunto: de que forma? De uma forma analítica e crítica? Sabendo que a sociedade e o sistema capitalista nos impulsionam todos os dias a sermos ilícitos? Temos exemplos de políticos que ocupam o topo da pirâmide social e tornam-se mitos impunes. Então, no teatro, nós questionamos esses indivíduos com perguntas, tais como ‘quem eu sou?’, ‘por que repito certos padrões?’, ‘quem são meus pais?’, ‘quem eu era quando criança?’”, conta o diretor. Felice denomina o trabalho que faz como teatro terapêutico, porque o roteiro é resultado de um profundo processo de autoconhecimento. A técnica elaborada por ele e sua equipe envolve uma ampla busca espiritual: semanalmente, o elenco faz

A atriz Maria Geovana é a única mulher do elenco

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Patologia social

O cenário da peça, montado em um galpão emprestado pelo Sistema Social do Transporte – Serviço Nacional de Aprendizado do Transporte (Sest-Senat), foi feito de areia e de um robusto tronco de árvore com um tambor em cima. O desenho no instrumento percussivo faz alusão aos egos de cada personalidade estudados no eneagrama. E a areia faz analogia ao deserto existencial que temos de enfrentar para, quiçá, chegar ao topo do mundo. A psicóloga Maria Hercília Rodrigues Junqueira, professora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), acompanhou o projeto nos últimos anos e

Ensaio de coreografia com o assistente de direção Reginaldo Vieira

sessões de massagem e meditação, e pela técnica oriental do eneagrama são classificados os tipos de personalidade e as patologias correspondentes a cada ator. Nos ensaios, entoam cantos indígenas e dançam ao ritmo de tambores para aquecer o corpo e o espírito. Em situações mais esporádicas experimentam outras técnicas terapêuticas, como banhos de argila, elaboração de mandalas, temascal (sauna indígena feita com ervas e pedras aquecidas em uma fogueira). Além disso, já participaram em rituais do Santo Daime, no qual se bebe o chá ayahuasca. Para Felice, há diferenças inquestionáveis entre um ator comum e um que vive em um presídio, por isso essa “miscelânea” de terapias é estrategicamente 36

aplicada para respaldar os atores em cena. “Porque quando ele entra pelo portão da unidade prisional, depara com um universo completamente diferente do que ele trabalha aqui. Então é preciso muito chão, muita determinação.”

afirma que pessoas cometem crimes como um mecanismo de defesa que desenvolveram em meio às circunstâncias de uma sociedade desigual. Alguns presos são, por assim dizer, o reflexo de uma patologia social. Assim como outros profissionais, ela preferiu não ler o processo criminal dos apenados antes de atendê-los porque não queria se apegar ao delito cometido e sim às pessoas. “A primeira vez que fiz o exercício da música indígena com eles, pedindo que pisassem forte no chão e dançassem, fiquei muito surpresa. Eles não pisavam. E eu dizia ‘força, força!’ Eles pisavam leve. Sabe o que acontece? Quando eles vão pra uma prisão tiram o chão deles, quando eles voltam pra casa também.” Em 18 anos de trabalho, somente duas pessoas­


CIDADANIA

rapia, reiki, meditação, ioga, movimento de corpo, dança. E isso foi me transformando, foi mudando a concepção que eu tinha de teatro e da vida. Na verdade eu nem vi o tempo passar”, descreve. Porto Velho tem oito presídios e, em quase duas décadas, cerca de 2 mil pessoas passaram por essa experiência terapêutica. De uma maneira geral, ex-detentos alcançados por ela tornam-se difusores da ideia entre seus familiares e amigos. E são certamente as pessoas mais capacitadas para tocar novos grupos terapêuticos como o de Felice, dando a conotação e o tratamento correto às pessoas que vivem em presídios. É uma intrincada combinação pedagógica e terapêutica, que associa o lúdico, o científico e a energia interior de cada ser humano a um objetivo. Para tanto, requer antes de tudo vontade política. Em termos de resultados efetivos em unidades prisionais brasileiras, a iniciativa pode ser compa-

O diretor Marcelo Felice ensaia grupo de O Topo do Mundo

fugiram do grupo, aproveitando a oportunidade de estar em uma atividade fora do presídio. Os saldos de reabilitação por parte dos que passaram pelo projeto são muito positivos: pelo menos 65% deles não voltam para a criminalidade. Rogério Araújo é um exemplo. O ex-detento atuou no espetáculo Bizarrus e hoje é o diretor geral da ONG Acuda (de Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso), que lida com presidiários a partir das mesmas técnicas terapêuticas. Ele conta que se interessou pelo projeto, pois viu ali uma chance, justamente, de fugir dos 15 anos de pena que teria de cumprir por tráfico de drogas. “Mas aí fui me envolvendo. Fui conhecendo coisas que nunca tinha experimentado. Massote-

Fernando Gonzáles interpreta o diabo e Ailton Caetano é o cavalo

rada ao que fez o médico Drauzio Varella no Carandiru ou ao projeto Cela Forte Mulher, do jornalista Antonio Prado, que estimulava detentas de São Paulo a redigir notícias e elaborá-las em edições impressas. Essas práticas têm em comum o potencial de criar condições de dignidade dentro desses espaços esquecidos pelo poder. E também o fato de, embora acolhidas pelas autoridades dos sistemas penitenciários em que se situam, terem sido conduzidas de fora para dentro – ou seja, são exceções, num universo que tem como regra o déficit de vagas e a insuficiência de políticas públicas, como consequência da situação de abandono e como ápice, de quando em quando, as tragédias já conhecidas. REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE

BOIAS-FRI DO FUTEBOL A realidade para milhares de jogadores brasileiros é bem diferente da que se vê na milionária, porém desorganizada, elite do esporte no país Por Ciro Barros, Giulia Afiune e Renato, da Agência Pública 38

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Jogo do Humildade, da várzea de São Paulo: fora da divisão principal, pouca estrutura e nenhuma badalação

AS T

erça-feira de céu nublado, “chove-não-chove” no ar. A reportagem da Pública está em Mauá, Grande São Paulo, para acompanhar um jogo sem torcida, estrelado pelo Grêmio Esportivo Mauaense. O time está na Série B do Campeonato Paulista – abaixo das séries A3, A2 e A1, portanto, na quarta divisão. Com o objetivo de montar uma equipe para o próximo campeonato, o Grêmio enfrenta um time ainda mais frágil: o dos desempregados, montado pelo Sindicato de Atletas Profissionais do Estado de São Paulo (Sapesp) para que possam manter a forma.

RAFAEL PIERONI

ESPORTE

Não há fotógrafos, jornalistas, placas de publicidade. Ninguém está nas arquibancadas para vibrar pelas jogadas no campo deteriorado, cheio de entulho. Dois cachorrinhos brincam no fundo do “campo” do Estádio Pedro Benedetti, municipal. Mas não falta emoção em um jogo em em que cada um luta por um lugar ao sol, pela remota chance de realizar o sonho de se tornar, ou continuar a ser, um jogador profissional. A reportagem acompanhou a partida, vencida por 3 a 2 pelo Mauaense, do lugar do quarto árbitro – privilegiadíssima posição. O objetivo não era fazer uma crônica do jogo, mas da realidade dos jogadores da base da pirâmide do negócio futebol. E o que esperam os que não ganham salários milionários, não saem em capas de revista, nem vendem milhões de camisas com seus nomes estampados. A maioria dos garotos tem por volta de 20, 21 anos, “velhos” para iniciar a carreira, e longe de obter um contrato em um clube da elite. Mas ninguém desiste, como diz o meia-atacante Eddy Rocha, da equipe do Sapesp: “Me indicaram pro time do sindicato aí e eu tô aqui agora, mantendo a forma pra me empregar”, diz. Antes de chegar ali, o morador do bairro da Plataforma, na periferia de Salvador, passou pelas categorias de base de Vitória e Bahia. Depois foi jogar no Ferroviário do Cabo, da segunda divisão pernambucana, uma experiência que ilustra o que passam os aspirantes ao futebol profissional. “A gente não tinha cozinheiro, ia um rapaz entregar marmita pra gente: feijoada, saladinha e um suco, quando vinha. A gente dormia num tatame. Todo mundo ganhava um salário mínimo, que chegou a atrasar uns três meses. Só consegui me manter com a ajuda de um amigo de infância, de Salvador”, lembra. Eddy recebeu proposta de um empresário para participar de testes de dois times da A2 paulista, Audax e Grêmio Osasco, que pretendiam disputar o torneio estadual da categoria sub-21. ­Última chance para Eddy, já com 21 anos. Despediu-se da mulher e do filho de um ano em Recife e embarcou para São Paulo. Porém, era uma “barca furada”. Quando chegou, o período de testes tinha acabado. Ele ficou sem chance e passou aperto até ser acolhido por um amigo. Não voltou para Recife, “lá ainda é mais difícil”, e aceitou as desculpas do tal empresário, que ainda tenta convencê-lo a assinar um contrato. “Ele disse que quer fazer um DVD meu pra mandar pra uns clubes, dar uma ajuda de custo. Mas é coisa só de boca, né, aí fica difícil.” Se nada der certo, Eddy, que estudou até a 8ª série, diz que vai virar professor de Educação Física.

O craque da partida

Do lado do Mauaense, a coisa não está muito melhor. O atacante Jorge de Araújo, de 26 anos fez um gol de cobertura, deu trabalho ao time adversário e é destaque da equipe. Mas não conseguiu ir além no futebol profissional, e agora o que o aguarda parece ser mais uma vez a Série B, a qual jogou pelo ­Mauaense em 2013 por um contrato de 90 dias e R$ 800 mensais. Mas Jorge não desanima: “É aquela coisa. Três meses, mas nesses três meses você tem a chance de mostrar alguma coisa. É precário, uma divisão difícil. Quem sabe não aparece alguma coisa, a­ lguém me vê jogar e eu posso ir pra um clube melhor?” REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE CASSIMANO

O último dos três salários está atrasado, assim como o dos colegas de clube, que ganharam R$ 678, o salário mínimo (até dezembro). “Temos a promessa do nosso presidente, que falou que tá vindo o dinheiro, a gente continua esperando”, diz. Para se manter Jorge arrumou um bico: “Hoje eu tô trabalhando numa escolinha de futebol, dando aula pras crianças. Sou técnico de um time infantil também, fiz uns cursos aí. E tem a várzea, né?”, conta. “Não gostaria de jogar na várzea, mas lá termina o jogo e tá lá o seu dinheirinho dentro do envelope. Aqui no profissional às vezes o mês tem 60, 80 dias, a gente não pode contar com o salário.” Hoje há campeonatos de várzea bem estruturados. “Na várzea, eu já peguei R$ 5 mil pra assinar e R$ 250 por jogo. Jorge foi campeão da Copa Kaiser de 2013 pelo Leões da Geolândia, da Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. O principal campeo­ nato amador da capital paulista teve 192 equipes e jogos disputados de março a outubro. Como as premiações são pagas em dinheiro vivo, fica sempre a dúvida sobre suas origens. Mas fato é que a várzea funciona como alternativa ao vácuo de organização das divisões menores do futebol profissional. Jogadores que chegaram à seleção brasileira, como o atacante Leandro ­Damião, agora no Santos, o volante Elias, que disputou o Brasileiro pelo Flamengo, e o meia-atacante Denílson, pentacampeão com o Brasil em 2002, jogaram a Copa Kaiser. A falta de alternativas para quem busca ser profissional de futebol é tão grande para que os que ficaram fora das categorias de base dos times profissionais que alguns chegam a pagar – literalmente – para jogar, como conta Jorge, que já recebeu a indecente proposta. “Eu estava em Santa Catarina e um cara me pediu R$ 10 mil pra me colocar num time da segunda divisão do Catarinense. Fui pra lá, estava com dinheiro, mas vi que era uma barca furada e desisti”, diz. “Tenho amigos, por exemplo, que pagaram 10 mil por um contrato de seis meses num clube. Só que aí eles vão lá, jogam, e acabam recebendo esses 10 mil de volta nesses seis meses. Depois você vai embora, não é aproveitado. Fica tipo uma bagagem. Aí o cara fala: ‘Ah, eu joguei no clube tal…’ Jogou porque pagou”, afirma. O Mauaense sofreu um fracasso retumbante. Em dez jogos da primeira fase, perdeu oito, empatou dois e ficou em último lugar do grupo. O público foi de 96 pagantes por partida em casa, com renda média de R$ 859. “O Mauaense precisaria de uns R$ 70 mil por mês para bancar atletas, comissão técnica, médico, material esportivo, viagem, essas coisas. Gastei R$ 20 mil, que consegui emprestado de um amigo, de última hora. Relutei esse ano para não entregar o time na mão de um empresário”, conta o presidente Marco Antonio Capuano, o Quinho. Diante da fragilidade de muitos clubes profissionais e das cifras que giram em torno do negócio futebol, muitos investidores se aproximam de equipes menores. “Chega um empresário com dinheiro, sonhando com uma transação milionária, e começa a arcar com as despesas. Às vezes vende o jogador, o clube não leva nada, e depois de um tempo vai embora, geralmente deixando dívida pro clube pagar, como já fizeram com o Mauaense, principalmente trabalhista, porque os contratos são firmados com o clube e não com ele”, resume o dirigente. 40

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A várzea funciona como alternativa ao vácuo de organização das divisões menores do futebol profissional


ESPORTE

RENATO SILVESTRE/FOLHAPRESS

Copa Kaiser: os fortes sobrevivem

Para ele, falta visibilidade. “Quando as pessoas não enxergam aquilo que você faz, fica difícil. Como vou chegar numa empresa de Mauá se eles dizem ‘ah, você não dá retorno’? É isso que a gente precisa: retorno. Precisa a prefeitura nos ajudar, abraçar o time da cidade, e a mídia local e a própria federação paulista fazer um esforço maior de divulgação”, opina. “A falta de público é falta de iniciativa”, diz. De quem? “De todos, mas principalmente da mídia, do poder público e da federação paulista”, resume.

Treino do River de Sergipe: pé no chão

JORGE HENRIQUE/FUTURA PRESS

Mais longe, mais difícil

Em estados distantes dos grandes centros, os jogadores precisam se virar ainda mais para atuar o ano inteiro. “Quando termina o campeonato paraense em Belém, se a gente não consegue renovar o contrato, tem de ir para Macapá jogar os outros três meses”, conta José Romeu Tavares, de 28 anos. O campeonato paraense foi de janeiro a junho e o amapaense, de julho a outubro. “Em dezembro começa a pré-temporada para o paraense e aí os jogadores voltam para não ficar parados.” Isso significa que muitos não têm férias. Romeu se machucou no fim de 2012 e teve de passar por cirurgia no joelho. Ele jogou apenas o segundo semestre, pelo Ypiranga, de Macapá. “Graças a Deus tive ajuda de amigos, da família, e sempre deixo um dinheiro guardado, porque a gente nunca sabe...” No final do ano, ele retornou a Belém para a pré-temporada. REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE

FOTOS RENATO LEITE RIBEIRO/PÚBLICA

MAUAENSE VENCEU POR 3 A 2

A bola rolou sem ninguém na arquibancada. Mesmo assim, não falta emoção em um jogo em em que cada um luta por um lugar ao sol

O zagueiro Bruno Oliveira de Andrade, colega de Romeu no Ypiranga, não conseguiu time para jogar no primeiro semestre. “Temos de economizar para sobreviver esses meses. Trabalhei como motorista e de ajudante de pedreiro.” Muitos amigos desistiram do futebol porque precisavam sustentar suas famílias, mas Bruno não quer esse caminho. “Quando você fica três, quatro meses parado, passam várias coisas na cabeça. Já pensei várias vezes em parar por causa da mulher, do filho. Continuo porque tenho condições de chegar em um lugar melhor. No futebol, do dia para a noite podem acontecer coisas melhores. Meu sonho é ser campeão por uma equipe grande do Rio, de São Paulo, até de fora.” Em 2013, o Ypiranga jogou três partidas amistosas e 20 oficiais – 14 no estadual e seis na Série D do Brasileiro. O time sobrevive com R$ 8 mil a R$ 10 mil mensais que recebe da loteria Timemania, e R$ 50 mil anuais vindos do governo do Amapá. “Muita coisa o presidente tem de tirar do bolso”, diz o diretor administrativo do clube, Claudio Celio Góes Conrado. “Se não tem campeonato, não tem como manter o time. A gente monta a equipe para jogar três meses se for só o estadual, e cinco meses se tiver a Série D do Brasileiro”. Os contratos de jogadores e patrocinadores vigoram apenas durante os campeonatos. “É complicado conseguir patrocinadores pela questão da credibilidade que a gente foi perdendo ao longo dos anos”, conta o dirigente. O time, fundado em 1963, possui sete títulos do campeonato amapaense, mas não ganha desde 2004. Na segunda divisão de Sergipe, a situação é semelhante. “Nossos campeonatos não são rentáveis, não temos patrocínios, não temos público nem boas equipes”, descreve o diretor do departamento técnico da Federação Sergipana de Futebol, Diogo Andrade. A média de público para jogos da primeira divisão varia entre 800 e 1.000 pagantes e na segunda, de 150 a 200 pessoas. Fundado há quase 97 anos em Maruim, no interior de Sergipe, o Maruinense teve oito jogos em 2013. Com R$ 50 mil reais de 42

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Vestiário do Mauaense: sem tietagem, sem imprensa. Mas ninguém desiste, mesmo com contrato curto e salário atrasado

patrocínio para todo o ano, o clube tenta diversificar sua receita fazendo parcerias. “Estamos firmando um projeto de clube-escola, em que vamos receber jogadores franceses, treinar e mandar pra fora. Além disso, estamos negociando com amigos meus na Ponte Preta, na Portuguesa e no Palmeiras para mandarem jogadores que não estão sendo usados nos times de base”, relata o presidente Manoel Rodrigues Neto. Ele conta que o time já revelou jogadores conhecidos como o atacante Oséas, que atuou no Atlético Paranaense, no Cruzeiro e no Palmeiras. “Meu sonho é colocar o Maruinense na Série B do Brasileiro”, conta o dirigente do time que hoje disputa a segunda divisão do sergipano. Para Diogo Andrade, o maior problema é administrativo. “Os clubes precisam ir atrás de patrocínio e trabalhar dentro do que arrecadaram, fazendo um orçamento. Aqui, primeiro se forma a equipe, pra depois pensar em uma forma de pagar.” Ele acredita que os campeonatos deveriam ter menos equipes, que deveriam passar por um filtro das federações exigindo profissionalismo, para que não acumulem dívidas com os funcionários. “Eu já vi clube lamentando porque ir para a decisão da segunda divisão ia significar mais 15 dias de despesas”, relata, inconformado. E cita como bom exemplo de administração o caso do River Plate de Sergipe, que diante da possibilidade de disputar o estadual, a Copa do Nordeste e a Copa do Brasil, desistiu dos campeonatos oficiais por falta de condições financeiras. Em termos financeiros, explica Diogo, vale mais a pena disputar o campeonato sergipano do que o nacional. “O estadual dá vaga para duas competições nacionais: Copa do Nordeste e do Brasil. Jogando dentro do estado a despesa é menor, por isso o lucro é maior. E você tem certeza que o campeonato dura de janeiro a maio, pode contratar um atleta sabendo que vai cobrir todas as etapas do contrato. Já no Brasileiro, a primeira fase tem dois meses. Você contrata um jogador por três meses (mínimo exigido pela lei). Nesse mês extra os atletas querem receber, mas o clube está inativo.”


ESPORTE

Eddy estava em Recife quando acreditou na promessa de um empresário Enquanto as equipes se aquecem no estádio do Mauaense, para atuar em São Paulo. Agora joga apenas para manter a forma o gramado, que já está quase para matagal, é livre

Para ele, compensaria aumentar o número de times na série D ou criar uma série E do Brasileiro, se a CBF colaborasse. “Teríamos equipes com condições de ingressar em competição nacional, se a CBF se comprometesse a cobrir despesas com transporte, alimentação e hospedagem”, diz. Diogo defende os campeonatos estaduais e regionais e elogia a Copa do Nordeste, bancada pela CBF, em que os 16 clubes recebem cota fixa em torno de R$ 345 mil pela participação, mais a renda das partidas: “Um clube de Sergipe não ganha menos do que R$ 500 mil em uma competição como essa. Ela serve para engrandecer os times da região”, afirma. O campeão tem vaga na Sul-Americana. “É um caminho curto para uma equipe de menor porte chegar a uma competição internacional.” De acordo com o site Esporte Nordeste, o campeão receberá cerca de R$ 1,5 milhão, incluindo a cota de participação, a classificação até a final e premiação. Em novembro, a CBF divulgou a tabela da Copa Verde, que terá seis clubes das regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste. O vencedor da competição, disputada entre fevereiro e abril, também ganha vaga na Sul-Americana.

Bom Senso

“Eu morava num sítio que ficava a quatro quilômetros da cidade, dormia num galpão com outros 30 sonhadores. A nossa alimentação era precária: arroz, feijão e salsicha todo dia. A estrutura de treino era qualquer pedaço de grama na cidade. Nas viagens longas que se faziam pelo interior, o ônibus quebrava e a gente chegava em cima da hora, atrasado pra jogar. Ganhava um salário mínimo, que era de 180 reais, e atrasava”, conta o zagueiro do Corinthians Paulo André, um dos líderes do Bom Senso FC. A realidade vivida 11 anos atrás, quando ele defendia as cores do Águas de Lindoia Esporte Clube, não mudou para os clubes menores, que ainda sofrem com esse vácuo de atuação de quem

organiza o futebol. “Isso não é fomentar futebol e sua prática, isso é expor trabalhadores a condições de risco. É vender uma ilusão de ser jogador a milhares de pessoas, milhares de atletas, que vivem como verdadeiros boias-frias do futebol, vivendo do futebol três, quatro meses no ano”, reflete. “Queremos a redução de jogos dos times da Série A e aumento do número de jogos de todos os outros times brasileiros”, defende Paulo André, que vê os jogadores dos grandes times sobrecarregados de jogos e os dos pequenos sem calendário. “A gente acredita que os clubes têm de jogar no mínimo 36 e no máximo 72 partidas no ano. Qualquer modelo que consiga inserir essas duas premissas já é muito melhor do que o que está aí. O que a CBF e as federações têm feito é um assassinato contra os clubes do interior.” “Não é verdade que para que o pequeno exista deva jogar contra o grande. Hoje, no estado de São Paulo tem 105 clubes. Desses, 85 não jogam contra os grandes porque fazem parte das Séries A2, A3 e da B. E continuam sobrevivendo”, enfatiza. “Assim como os sete clubes que jogam a A1 e não disputam competições nacionais. O que a gente pergunta para as pessoas que defendem esse modelo é: qual é a diferença estrutural e financeira dos sete clubes que jogam a A1 para os 85 clubes que não jogam? Não existe. Todos estão se matando para tentar sobreviver.” Por meio do Bom Senso, Paulo André e um grupo crescente de jogadores da elite aproveitam sua visibilidade para denunciar os baixos salários e o atraso nos pagamentos que atingem a maior parte dos jogadores. De acordo com dados da CBF, de 2010, 60% dos atletas profissionais registrados ganhavam até um salário mínimo. Apenas 4,3% ganhavam acima de 20 mínimos.

Conteúdo compartilhado

Reportagem originalmente publicada pela Agência Pública (www. apublica.org/2013/12/os-boias-frias-futebol) REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

BELA

PARANAPIACABA Vila faz parte da história ferroviária do país, é porta para um raro cantinho de Mata Atlântica e está perto de um processo de restauração que deve valorizar o seu charme Por Carlos Mercuri Fotos de Juca Martins 44

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rguida no alto da Serra do Mar, a Vila de Paranapiacaba­ tem como “quintal” um cenário natural cada vez mais raro no país: a Mata Atlântica. E em seu miolo, um sabor bucólico de história. No início um acampamento para abrigar trabalhadores da ferrovia que liga o interior de São Paulo a Santos, para escoar o café consumido pelo mundo, o lugarejo se tornou mais tarde uma autêntica comunidade ferroviária. Ali, os ingleses da São Paulo Railway Company, que construíram a estrada de ferro, fixaram os profissionais responsáveis pela sua manutenção. E o que ficou foi a única

típica vila inglesa, planejada de acordo com os padrões britânicos. Pertencente a Santo André, no ABC paulista, Paranapiacaba está próxima de dar preciosos passos com vistas a reforçar a longevidade de seu charme. Para tanto, a prefeitura deve encaminhar neste fevereiro um amplo projeto de restauração ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). É o primeiro ato para fazer jus a uma receita de R$ 42 milhões do governo federal, provenientes de uma linha do Programa de Aceleração do Crescimento voltada para o financiamento de programas de revitalização de localidades desse naipe, o PAC Cidades Históricas.


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VISTA PRIVILEGIADA O Castelinho é uma das principais construções da vila. No alto de um morro, com vista privilegiada de todos os arredores, serviu de residência ao engenheirochefe da companhia

MERGULHO NO PASSADO Uma das atrações é a Maria Fumaça, composta por uma locomotiva de 1867 e um carro de passageiros de madeira fabricada em 1914, que leva para um passeio de um quilômetro na área do Museu Ferroviário

O projeto prevê intervenções em 242 casas com objetivo de resgatar as suas características originais, buscando o máximo reaproveitamento dos materiais existentes, como o madeiramento. Também faz parte dos planos reativar uma cooperativa de marceneiros para, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), qualificar a mão de obra local. De acordo com o secretário municipal de Gestão de Recursos Naturais, Ricardo Di Giorgio, nos últimos 20 anos projetos são alternadamente iniciados e abandonados. “A descontinuidade prejudica a preservação. Agora, queremos tornar

a vila um dos principais polos turísticos de São Paulo”, afirma, ao destacar a importância de se preservar a vila, tombada pelo patrimônio histórico. “São Paulo é o que é hoje por causa da ferrovia. E Paranapiacaba, além de seu valor histórico, também é importante pelo lado ambiental, porque no local há várias nascentes que abastecem a represa Billings.” Paranapiacaba atrai de moradores da região metropolitana a visitantes de fora de São Paulo. O ecoturista, por exemplo, aventura-se por trilhas, encontra espécies únicas de árvore e animais, nascentes e cachoeiras, não raras vezes envolto por uma neblina que fez os ingleses da

companhia se sentirem em casa. Interessados em arquitetura apreciam o cenário autenticamente voltado à atividade econômica ao seu redor: a ferrovia. Curiosos por tecnologia aprendem como, no fim do século 19, os engenheiros venceram um obstáculo de 800 metros entre a serra e o nível do mar. E os sem apetite definido, mas que buscam estar apenas um dia, ou algumas horas, cercado de verde, longe da poluição, fazer caminhadas lentas e silenciosas, tomar um café ou uma cerveja, almoçar sem pressa, pisar na terra. A atriz Lize Nascimento, moradora na capital paulista e visitante de “vários carnavais”, descobriu recentemente uma triREVISTA DO BRASIL

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ARQUIVO PESSOAL/LIZE NASCIMENTO

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TERAPIA Lize e a família pegaram uma trilha leve, com sombra e água fresca

lha leve, que pode ser feita sem monitor, na Vila Taquarussu. “O caminho foi bem agradável, uma estrada que não é nem de terra, nem asfaltada, coberta de pedregulhos. Apesar dos carros e motos eventuais, é calma, com bela paisagem, som de pássaros e de animaizinhos da mata. Com meia hora de caminhada encontramos uma corredeira com água fresquinha onde pudemos repor a água da garrafa e curtir a sombra”, relata Lize, que viajou com a família. “Funciona como terapia para enfrentar a semana cheia de obrigações.”

MAIS ATRATIVOS PARA O TURISMO O PAC Cidades Históricas prevê intervenções em 242 casas da vila com objetivo de resgatar as suas características originais

Expresso turístico

Uma maneira especial de chegar a Paranapiacaba é o Expresso Turístico, operado pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Sai aos domingos (exceto o segundo de cada mês) da estação da Luz às 8h30 ou às 9h da estação Prefeito Celso Daniel, no centro de Santo André. Custa R$ 34 se for individual na Luz e R$ 31 na Celso Daniel – há tarifas com desconto de até 50%, conforme o tamanho do grupo. A composição, com espaço para ciclistas, é formada por dois carros de aço inoxidável da década de 1960, tracionados por uma locomotiva a diesel. O trajeto de 48 quilômetros desde a Luz dura 90 minutos. A volta é às 16h30. De carro, a viagem começa na Via Anchieta, a vai até o km 29, quando se pega a Estrada Velha de Santos até o km 33 e, depois, a rodovia Índio Tibiriçá até o 46

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VISITA MONITORADA O Castelinho abriga um museu que guarda peças da ferrovia, fotos da época da construção da estrada de ferro, móveis, quadros, relógios e outros objetos

km 45,5. De lá, placas indicam a rodovia SP 122, que conduz até a vila. Quem vai de ônibus, toma o que sai do Terminal Rodoviário de Santo André, na estação Prefeito Saladino, ou o que sai da estação de Rio Grande da Serra de hora em hora. A integração trem-ônibus custa R$ 4,65, para quem sai da Luz.

A dica é ir direto à parte baixa, onde estão a Vila Velha e a Vila Martin Smith­. Uma das atrações é a Maria Fumaça, composta por uma locomotiva de 1867 e um carro de passageiros de madeira fabricada em 1914, que leva para um passeio de um quilômetro na área do Museu Ferroviário. Custa R$ 5 por pessoa e fun-


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DIVERSÃO O Antigo Mercado, hoje um centro multicultural, oferece diversas atividades

ciona aos sábados, domingos e feriados. Uma das principais construções é o Castelinho – que serviu de residência ao engenheiro-chefe da companhia. No ­alto de um morro, com vista privilegiada de todos os arredores, a casa foi erguida em 1897 e restaurada em 2005. Abriga um museu e guarda peças da ferrovia, fotos de pessoas que viveram a época da construção da estrada de ferro, móveis, quadros, relógios e outros objetos. A cada meia hora, monitores contam a história e lendas do local. A entrada custa R$ 3. O Museu Tecnológico Ferroviário expõe vagões, máquinas e peças usadas para manutenção de trens. O Clube União Lyra Serrano é outra edificação que vale a visita. Construído em 1936 e restaurado em 2005, era no passado o espaço cultural e social da vila, com cinema, salões de baile e de jogos e quadras de esportes. Atualmente, guarda uma exposição permanente de troféus e painéis fotográficos com cenas de várias épocas. Abre de terça a sexta das 9h às 16h, e sábados, domingos e feriados das 9h à 17h, com entrada franca. Merecem ainda uma olhada o Antigo Mercado, hoje um centro multicultural, onde diversas atividades são realizadas; o Centro de Documentação em Arquitetu-

ra e Urbanismo, com acervo que reconta a formação urbana da vila; e a Casa da Memória, do começo do século 20, que abriga a memória coletiva dos antigos habitantes.

Festas e sabores

O desfrute da natureza começa pelo Parque Natural Municipal Nascentes de Paranapiacaba. Criado em 2003 pela prefeitura, o parque conserva área remanescente de Mata Atlântica, nascentes do Rio Grande – o que abastece a Billings – e é destinado aos que gostam de esportes da natureza e caminhar nas trilhas. Há cinco delas que, de variados graus de dificuldades, requerem a companhia de monitores cadastrados, contratados na própria vila. Abre de terça a domingo, das 9h às 16h. Entre uma parada e outra, passeia-se pelas suas ruas íngremes em meio às casas de madeira, muitas delas instalações comerciais. São várias opções de restaurantes, bares, cafés e lanchonetes, com preços justos. Há ainda quiosques que servem lanches e porções. Se o visitante quiser passar a noite, pode escolher entre os vários cama-e-café ou uma das pousadas, em um total de 200 leitos. Convém reservar com antecedência: www.guiaparanapiacaba.com.br

A vila também tem um calendário de eventos, que vem sendo retomado em sua concepção original. Em abril, tem o Festival do Cambuci, fruto típico da região e usado em várias receitas, além de aromatizar e dar sabor à cachaça. Em julho, é realizado o Festival de Inverno, com apresentações artísticas. A prefeitura planeja ainda retomar atividades como o Arraiá da Vila, a Convenção de Bruxas e Magos, o Encontro Internacional de Magias e Terapias Alternativas e o Encontro de Ferromodelismo, ainda com calendários por definir. Com a verba do PAC Cidades Históricas, a administração projeta ainda o restauro de outros imóveis considerados representativos do modo de vida inglês e do patrimônio ferroviário, como os galpões das oficinas de manutenção, o almoxarifado da antiga SPR, a sede da Associação Recreativa Lyra da Serra e os galpões da garagem das locomotivas, que abrigarão a estação definitiva do Expresso Turístico. Também serão contempladas a recuperação do campo de futebol do Serrano Athletic Club, de 1903, um dos primeiros com medidas oficiais em todo o Brasil, e a reconstrução de um imóvel incendiado na região do Hospital Velho. REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Sem título, de Alex Carvalho

App para não esquecer

Alunos do nono ano do ensino fundamental do Colégio I. L. Peretz, na zona sul de São Paulo, desenvolveram o aplicativo Ditadura na Memória para tablet e smartphones. Além de textos sobre o regime autoritário no Brasil a partir de 1964, o programa tem glossário, jogo de perguntas e respostas, trechos de músicas e um roteiro dos locais que guardam a memória da época, como o Memorial da Resistência, em São Paulo, por exemplo. O app, que pode ser baixado gratuitamente no link http://app.vc/ditadura_na_memoria1, também propõe atividades para aulas de Português, Artes, História e Geografia. 48

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De volta a 1950 A cantora Blubell tem voz delicada e marcante. Depois dos discos Slow Motion Ballet (2006), Eu Sou do Tempo em que a Gente Telefonava (que lançou em 2011 com o quarteto À Deriva) e o recente Blubell & Black Tie (2013), a cantora paulista lança o álbum solo Diva é a Mãe. Nas 13 faixas, todas de autoria própria e bem autobiográficas, Blubell manteve sua habitual influência do jazz e adicionou pitadas de balada, pop e doo-wop, um estilo musical típico dos anos 1950. R$ 30.


Capa da revista Vista, de Dea Lellis

Surfe de trem em Soweto, de James Oatway

Surfe e skates no MAR Fotografias, pinturas, desenhos, videoinstalações e objetos ligados ao universo do surfe e do skate tomam conta do Museu de Arte do Rio (MAR) até 27 de abril. A exposição Deslize <Surfe Skate> traz 120 obras que fazem um panorama histórico dos dois esportes desde 1778, quando surgem os primeiros desenhos de havaianos surfando. Expõe também parte da coleção de pranchas de Rico Souza e objetos do skatista e colecionador Eduardo Yndyo, além trabalhos do australiano Shaun Gladwell e do paulistano Fabiano Rodrigues. Terça, das 10h às 19h, e de quarta a domingo, das 10h às 17h, na Praça Mauá, 5, no centro do Rio de Janeiro. Mais informações: (11) 3031-2741. R$ 8, R$ 4 e grátis às terças-feiras.

Fala, Ney

Cidade-luz em S. Paulo

Nos palcos, a delicadeza de um furacão. Fora, timidez e discrição. Mais que uma cinebiografia, o documentário Olho Nu, de Joel Pizzini, é uma espécie de ensaio que sintetiza o rico (e coerente) universo de Ney Matogrosso. Entrevistas e performances antigas e recentes evocam a trajetória artística e pessoal do músico. Além de material do acervo do próprio artista desde a época de Secos & Molhados, Pizzini filmou Ney em seu sítio em Saquarema, no apartamento no Leblon e na cidade onde nasceu, Bela Vista, em Mato Grosso do Sul. Entre as (muitas) canções, destaque para Rosa de Hiroshima e para o dueto com Caetano Veloso em Fala. Para sair do cinema cantando. Estreia em fevereiro.

Cézanne, Degas, Manet, Van Gogh, Renoir, Picasso, ToulouseLautrec, Modigliani, Matisse, Portinari e outros artistas que viveram, produziram e/ou passaram pela capital francesa compõem a exposição Paris, Capital do Século 19, em cartaz por tempo indeterminado no Museu de Arte de São Paulo, o Masp. A mostra, que apresenta 51 obras sob curadoria de Teixeira Coelho e Denis Molino, propõe um “passeio” pela Paris dos séculos 19 e 20, onde e quando o academicismo deu lugar ao contemporâneo e ao abstrato. De terça a domingo, das 10h às 18h, e às quintas-feiras, das 10h às 20h. Avenida Paulista, 1.578. R$ 15, R$ 7 e grátis às terças.

Edgar Degas, Bailarina de 14 Anos

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VITOR NUZZI

Angenor e João

Com sua voz rouca, o paulista de Valinhos conversa com o carioca do bairro do Catete. E vão lembrando de outros carnavais

M

ais um carnaval. À mezza notte o’clock, Angenor de Oliveira e João Rubinato se encontram, como de hábito, no alto do Morro do Bamba. Madrugada lá no morro, que beleza. – É, João. Mais um carnaval vem aí. Lembra do seu primeiro? Faz tempo, hein, compadre? – Vila Esperança, foi lá que eu passei o meu primeiro carnaval. Vila Esperança, foi lá que eu conheci Maria Rosa, meu primeiro amor. Como fui feliz naquele fevereiro, pois tudo para mim era primeiro... Olha, tive a alegria que tem todo Pierrô ao ver que descobriu sua Colombina. Com sua voz rouca, o paulista de Valinhos devolve a pergunta ao carioca do Catete, que vai recordando. – É com tristeza que relembro coisas remotas que não vêm mais... Uma escola na Praça Onze, testemunha ocular. E perto dela uma balança onde os malandros iam sambar. – Mudou muito, né, parceiro? Mas teve coisa boa também. – Depois, aos poucos, o nosso samba, sem sentirmos, se aprimorou. Pelos salões da sociedade, sem cerimônia, ele entrou. Já não pertence mais à praça, já não é samba de terreiro. Vitorioso, ele partiu para o estrangeiro. Tempo em que sambista tocar para gringo ainda era novidade. – E muito bem representado por inspiração de geniais artistas, o nosso samba, humilde samba, foi de conquistas em conquistas. Conseguiu penetrar no Municipal depois de percorrer todo o universo! Mas João lembra que depois vieram outros ritmos. – Eu também um dia fui uma brasa, e acendi muita lenha no fogão. E hoje o que é que eu sou? Quem sabe de mim é meu violão. Mas lembro que o rádio que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro tocava Saudosa Maloca. Mesmo assim, ele gosta “dos meninos desse tal de iê-iê-iê”, garante. Por falar em gostar, João pega o violão e lembra de um grande amor. – Com a corda mi do meu cavaquinho fiz uma aliança pra ela, prova de carinho... Quantas serenatas eu tive de perder, pois meu cavaquinho já não pode mais gemer... Quanto sacrifício eu tive de fazer pra dar a prova pra ela do meu bem-querer.

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E como a conversa vai parar no instrumento, Angenor suspira. – Ah, estas cordas de aço, este minúsculo braço... Do violão que os dedos meus acariciam. Ah, este bojo perfeito, que trago junto ao meu peito. Solte o teu som da madeira, eu, você e a companheira. Na madrugada iremos pra casa cantando... – Para com isso, Angenor. Assim você me lembra daquela ingrata: Pafunça, Pafunça, que pena, Pafunça, que nossa amizade virou bagunça. O teu coração sem amor se esfriou, se desligou. Inté parece, Pafunça, aqueles alevador que está escrito “não fununça”, e a gente sobe a pé! E pra me judiar, Pafunça, nem meu nome tu pronunça. Eles se olham, e sabem que, como diz o amigo Paulinho, que está lá embaixo tocando para quem quiser ouvir, a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. – Finda a tempestade, o sol nascerá. Finda esta saudade, hei de ter outro alguém para amar. – É isso aí, Angenor! Não seja bobo, não se escracha. Mulher, patrão e cachaça em qualquer canto se acha. O sol, que já nasceu, agora baixa no morro. Mathilde e Zica começam a chamar. Os parceiros se levantam e trocam afagos. – Deixe-me ir, preciso andar... – Não posso ficar nem mais um minuto com você...


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o i d á r u e s o n o d a i m e r p o m s i l Jorna Anelize Moreira e Marilu Cabañas são as duas repórteres da Rádio Brasil Atual que levaram o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2013. Isso é reconhecimento ao talento das jornalistas e à presença da rádio no noticiário humanista.

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