Revista do Brasil nº 093

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O CÉU É PARA TODOS Os homossexuais e seu direito à fé e à religiosidade

CELEIRO MUSICAL As centenas de bandas que dão o tom em Brasília

nº 93 março/2014 www.redebrasilatual.com.br

Polícia persegue estudante durante protesto no Rio, 1968

GOLPE NUNCA MAIS ■ ‘Meu pai acertou ao não reagir’, diz João Vicente, filho de Jango

■ Educação violentada: a ditadura não foi só militar, foi de classe ■ Santayana: não se pode voltar no tempo, então que ele não se repita



ÍNDICE

EDITORIAL

10. Mauro Santayana Não se pode apagar 1964. Mas podemos evitar que se repita

12. Entrevista

João Vicente, filho de Jango: meu pai acertou ao não resistir

18. Educação

Sucateamento e privatização do ensino, legados da ditadura

24. Economia

PAOLO AGUILAR/EFE

Os caças suecos e seu impacto na indústria e na pesquisa

28. Mundo

Luta por ensino público não é jabuticaba; Londres também tem

30. Comportamento

Manifestantes vão às ruas na Venezuela: conquistas da Revolução Bolivariana em xeque

Respeitarás as formas de amor e não discriminarás os gays

Liberdade e vigilância

34. Perfil

Caymmi não era preguiçoso. Era apenas perfeccionista

E

36. Música

A capital federal ainda faz jus à fama de celeiro musical

40. Literatura

CAROLINA CONTI

Mistério: a leitura mais popular do planeta

44. Viagem

Em Itaúnas, no Espírito Santo, não faltam areia e padroeiros

Seções Cartas 4 Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica 50

nquanto esta edição era concluída, em 26 de fevereiro, a Rede Brasil ­Atual acompanhava a tensão na Venezuela. A efervescência das ruas desautorizava trazer o assunto, sujeito a envelhecer em algumas horas, a esta páginas mensais. Trata-se de um país dividido. Como relatava o enviado da RBA a Caracas, João Peres, eram perceptíveis correntes distintas de opinião. No lado revoltoso, uma ala pregava a saída imediata do presidente Nicolás Maduro; outra admitia seguir as regras do jogo. Pelos lados chavistas, uma parte apoiava a busca do diálogo; outra defendia rigor contra os “fascistas” que engendravam um golpe. No ambiente pré-golpe civil-militar no Brasil de 50 anos atrás, uma parcela marchava contra o presidente legítimo, João Goulart, bradando contra a inflação, a “amea­ça comunista”, a “desordem”. Essa marcha da minoria culminou com a derrubada de Jango – sob uma conspiração erguida nos pilares dos meios de comunicação, do dinheiro de grupos empresariais, da força bruta dos militares e do apoio dos Estados Unidos. A cena venezuelana tinha algo em comum com outra situação pré-golpe, a do Chile de Salvador Allende, em 1973. Na ocasião, escasseavam produtos básicos nas prateleiras dos supermercados. Parte dessa ausência decorria de boicotes que rendiam a lojistas e fornecedores um duplo retorno: especulando com a falta de produtos faturavam mais – como na Venezuela de Maduro –, e alimentavam iras contra o governo. Lá também a força do donos do dinheiro, dos tanques e de Washington derrubaram Allende. Só não se pode pode chamar de “coincidência” a compulsão das elites econômicas por violar regras democráticas quando lhes convêm. Os resultados dessa compulsão – os regimes violentos que marcam o último meio século de história da América Latina – sentem-se nas vidas perdidas na reação à barbárie. E no grave déficit de cidadania do qual se ressente o continente. O século 21 representa para a região, Brasil incluído, uma era de reconstrução da demo­cracia. Fortalecê-la significa dar às maiorias mais poder de interferência nos des­ tinos de seu país. Cabe, sobretudo aos mais jovens, ter os olhos abertos para esse desafio. Um olho na luta cotidiana de superação de injustiças e desigualdades. E outro em eventuais e sorrateiras tentações autoritárias ávidas pelo retrocesso, refúgio das minorias. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS Gabriel Priolli Que bom alguém que tem conhecimento dizer tudo o que sentimos mas não temos autoridade para fazê-lo (“A campanha mais podre de todos os tempos”, edição nº 92). O massacre da comunicação, como diz Chomsky, deixa cicatrizes no cérebro. Rosana Stockler Clímaco

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Peres, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa Fotos de Evandro Teixeira, Gerardo Lazzari (religião) e Ariel Martini (banda) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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Lenta, gradual e frágil Ainda é cedo para dizer que a democracia brasileira está consolidada (Editorial “Lenta, gradual e frágil”, edição nº 92). Durante a maior parte da história do país como república por quantos anos houve eleições diretas e governo eleito pelo povo? Muito pouco. E ainda que eleito pelo povo há pouca informação fidedigna circulando. Pode-se pôr sob suspeita nossas instituições democráticas, sendo estas as últimas salvaguardadoras da liberdade civil no país, onde heróis anônimos agem em favor da nossa pátria. Alberto Braschi É fora de dúvida que a democratização do acesso e da criação da semiosfera (tudo que diz respeito a produção de sentido) é o principal desafio de nossos dias. No Brasil, assistimos a uma encarniçada defesa do controle dos meios de “comunicação” – vale dizer, de produção e difusão de conteúdos simbólicos – por parte da corporação midiática oligárquica. O artigo ilustra bem esse desafio. Alberto Magno Filgueiras Boa recomendação. Temos de manter os olhos bem abertos. Veja a pesquisa que a Folha andou fazendo recentemente e também veja o que está ocorrendo na Venezuela. Mas aqui no Brasil, talvez, o retrocesso se passe pacificamente, quando se tem o STF a serviço. Alexandre Coelho

Lalo Leal Estudo da FGV calcula o impacto da Copa na economia (“O ano promete”, de Lalo Leal, edição nº 92). Os R$ 25 bilhões investidos pelo poder público estão desencadeando R$ 192 bilhões de investimento privado, gerando mais 3,6 milhões de empregos e R$ 18 bilhões em impostos, o que paga o investimento, considerando que a maior parte do valor investido nos estádios privados voltará para o tesouro. Felipe Magalhães Não fui a favor da realização da Copa no Brasil. Entretanto, uma vez que o evento está agendado, e o país despendeu bilhões de reais para viabilizá-lo, então o correto é trabalhar e apostar no sucesso do mesmo. Quando me opus à realização da Copa, não utilizei entre os meus argumentos que ela representa prejuízo para os cofres públicos e a economia. Meu argumento é que os recursos demandados poderiam ser utilizados de forma mais eficiente, menos pressionados por concepções externas a propósito das obras infraestruturais. Darcy Brasil Rodrigues da Silva

Mauro Santayana Pura lucidez que precisa ser difundida aos quatro cantos (“Ano quatorze”, sobre o Brasil ser alvo de cobiças e sabotagens em ano eleitoral, edição n° 92). Pela internet temos a possibilidade de encontrar respaldo, contra a agonia de ver e ouvir notícias maliciosas da nossa mídia subalterna. Já foi subtraída do Brasil muita riqueza e ainda querem mais e mais. Carlos Morelli

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


ROBERTO PARIZOTTI/CUT

redebrasilatual.com.br

Ecos de 1964 1º de Maio, Dia do Trabalho. Cinco são militares, sendo três generais. Todos envolvidos em uma ação que, segundo o Ministério Público, pretendia provocar pânico e justificar “um novo endurecimento da ditadura”. Era o momento da chamada abertura política, que provocava inconformismo na linha dura militar. bit.ly/rdb93_riocentro No começo do mês passado, as centrais sindicais que participam da CNV promoveram um ato conjunto, no qual homenagearam centenas de vítimas da ditadura e cobraram investigação e responsabilização de empresas que apoiaram e financiaram o golpe. Segundo um ex-dirigente, empresas em São Bernardo, na região do ABC paulista, por exemplo, transformaramse em “quartéis” durante a ditadura, com

JOSÉ CRUZ/ABR

À medida que se aproxima o cinquentenário do golpe, surgem informações e aparecem reações. A penúltima semana de fevereiro foi particularmente agitada, por iniciativas da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e do Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro. No primeiro caso, o colegiado apresentou um relatório sobre sete unidades militares onde havia prática de tortura. O documento, parcial, foi entregue ao Ministério da Defesa, com um pedido: que as próprias Forças Armadas instaurem comissões de sindicância para apurar o que aconteceu nesses locais. bit.ly/rdb93_tortura Segundo observou o coordenador da CNV, Pedro Dallari, as violações a direitos humanos em instalações militares não foram uma prática eventual de gente desvairada, mas uma situação rotineira, presente na rotina administrativa. “A tortura se converteu numa política pública.” Ele se disse confiante no apoio das Forças Armadas. Já o MPF fluminense, com base em novas informações e depoimentos, denunciou seis pessoas pelo atentado a bomba do Riocentro, em 30 de abril de 1981, quando milhares de pessoas assistiam a um show relativo ao

Dallari, da Comissão da Verdade: “A tortura se converteu numa política pública”

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

MEMÓRIA Centrais sindicais, em ato conjunto, homenagearam centenas de vítimas da ditadura e cobraram investigação e responsabilização de empresas que apoiaram e financiaram o golpe

agentes da Polícia Federal infiltrados. bit.ly/rdb93_centrais1 Também chamou a atenção o depoimento de um coronel reformado à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, denunciando que um dos generais apoiadores do golpe teria sido subornado para mudar de posição – até então, defendia a manutenção do presidente João Goulart. bit.ly/rdb93_kruel Do lado de lá, também despontam manifestações de louvor ao movimento de 1964 – e até um pedido de ajuda. O banco Itaú, por exemplo, mandou recolher agendas distribuídas a clientes em que tratava o 31 de março como “aniversário da revolução de 1964”. Em 19 de fevereiro, o general Rômulo Bini Pereira, ex-chefe do Estado-Maior de Defesa, publicou artigo no jornal O Estado de S. Paulo e afirmou: “Mesmo sendo vilipendiada, devemos saudar a Revolução Democrática”. Três dias antes, o publicitário Ênio Mainardi, pai do colunista Diogo, foi explícito, ao pedir em rede social a “atuação decisiva das nossas Forças Armadas” para arrumar a casa brasileira. Leia mais sobre os 50 anos do golpe às páginas 10 a 23 REVISTA DO BRASIL

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Desalento latino A taxa de desemprego entre jovens de 15 a 24 anos na América Latina recuou de 16,4%, em 2005, para 13,9% em 2011, mas ainda atinge 7,8 milhões, 43% dos desempregados da região. E mais da metade (55,6%) dos que trabalham só conseguem ocupações informais. Os dados constam de relatório divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Não é casual que os jovens sejam defensores dos protestos de rua quando suas vidas estão marcadas pelo desalento e a frustração por alta de 6

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Sem banho de loja

“O debate público está muito contaminado pela mesquinharia, pela falta de visão de longo prazo e pela falta de grandeza de horizonte que São Paulo sempre teve”, afirmou o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, em entrevista exclusiva à Rede Brasil Atual e à TVT, no dia 4 de fevereiro. Para quem espera pequenos ajustes capazes de melhorar brevemente a vida, Haddad responde que não dará um “banho de loja” na cidade simplesmente para agradar aos cidadãos, sem promover transformações estruturais. “Eu não fui eleito para deixar as coisas como estavam. Independentemente do desgaste que todo prefeito mudancista passa, eu assumi essa missão”, justifica. bit.ly/rdb93_haddad1

Jovens na Argentina em manifestação

oportunidades”, diz a diretora da OIT para América Latina e Caribe, Elizabeth Tinoco. Segundo ela, o crescimento econômico dos últimos anos foi insuficiente para melhorar o cenário, “que demanda políticas inovadoras”. A taxa de desemprego de 13,9% representa o dobro da média geral e o triplo da dos adultos. Outro fator de preocupação é o chamado universo dos “nem-nem”, aqueles jovens que não estudam nem trabalham. São 21,8 milhões de jovens nessa situação na América Latina. bit.ly/rdb93_oit

DAVID FERNANDEZ/EFE

JAILTON GARCIA/RBA

Haddad: “Não fui eleito para deixar as coisas como estavam”


DANILO RAMOS/RBA (JUNHO,/2013)

De volta às ruas foco” das mobilizações contra a Copa do Mundo ponha a perder a “grande oportunidade” de lançar o país sob os holofotes da opinião pública mundial. “Seria importante aos movimentos sociais elencar as pautas e aproveitar o momento.” Os surtos de violência durante os protestos, opina Hotimsky, desvirtuam as pautas. http://bit.ly/rdb93_passe_livre

REPRODUÇÃO TV DOS BANCÁRIOS

É apenas questão de tempo para que o Movimento Passe Livre (MPL) volte às ruas. Novas mobilizações estão sendo planejadas para 2014, em conjunto com outros movimentos sociais, organizações populares e grupos políticos. “É uma questão de trabalho e organização”, diz Marcelo Hotimsky, 20 anos, membro do MPL. O movimento teme, porém, que uma possível “falta de

Fora do cercadinho “O Brasil se tornou grande demais para ficar preso no cercadinho do oligopólio da comunicação.” A opinião é do jornalista Franklin Martins, ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, para quem uma nova regulamentação da comunicação eletrônica do país – rádio, TV, internet – é irreversível. Franklin deu destaque ao tema durante entrevista ao Contraponto – programa mensal de webtv, parceria entre Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé e Sindicato dos Bancários de São Paulo. “Acho que em jornal, revista, o que é impresso, não cabe nenhum tipo de regulação, cada um escreve o que quiser e responde pelo que escreve. No caso da radiodifusão, tratam-se de concessões do Estado. Trata-se de assegurar o equilíbrio, a pluralidade, tem de respeitar o menor, não pode haver racismo, preconceito, tem de respeitar a cultura local, não pode haver propriedade cruzada”, afirmou. bit.ly/rdb93_franklin

O desafio da educação A desigualdade é um dos aspectos centrais do especial sobre os desafios da educação que a RBA publicou no início do mês passado. Entre Norte e Sul, entre o campo e as áreas urbanas, entre negros e brancos, entre pobres e ricos, começa na primeira infância um jogo que tem alta probabilidade de marcar o destino de toda uma vida. E desigualdade na educação é também de oportunidades. Há estatísticas em abundância para demonstrar a tese, e todas podem ser encontradas nas quatro reportagens da série, que estão agrupadas neste atalho: bit.ly/rdb93_desafios_educacao. Para se ter uma ideia, entre as crianças de famílias com renda per capita de até um quarto do salário mínimo, seis em cada dez terminam a escola com a idade defasada para a série; nas famílias com renda superior a dois salários mínimos por pessoa, a defasagem atinge uma em cada dez. REVISTA DO BRASIL

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MAXIM SHIPENKOV/EFE/EPA

Passeata em Kiev, ao fundo cartaz com a foto de Yulia Tymoshenko

O que se passa na Ucrânia Na Ucrânia houve de tudo, menos uma revolução popular. Tudo começou com uma série de manifestações empilhadas umas sobre as outras: uma juventude ansiosa por se identificar com a União Europeia, uma classe média cansada pelas sucessivas vagas de corrupção dos sucessivos governos, uma insatisfação com o autoritarismo e o fechamento do governo de Viktor Yanukovitch, o desejo de maior ascendência de grupos do oeste do país em detrimento de grupos do leste do país. A repressão que o governo desencadeou abriu caminho para uma intensificação do descontentamento. No pano de fundo dessas confrontações estão as desigualdades do país. O leste e o sul – mais próximos da Rússia – são mais 8

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desenvolvidos e industrializados do que o oeste – mais pobre e mais voltado para a Europa. No centro da capital, Kiev, o conflito tornou-se agudo, com armas de fogo de parte a parte. O resultado foi de centenas de feridos e dezenas de mortos, possivelmente mais 70. A certa altura, o noticiário chegou a informar que 70 policiais tinham sido “sequestrados” pelos “manifestantes”. Houve um movimento constante por parte da mídia do Ocidente de idealizar o que ocorria, apresentando os acontecimentos como um confronto desproporcional entre a brutal repressão do governo e os “amantes da liberdade”. Logo começaram a

vazar as informações de que estes últimos eram na maioria e na realidade gangues neofascistas que não aceitavam nenhuma negociação Em 23 de fevereiro, um dia depois do discurso de Yulia Tymoshenko (a ex-primeira-ministra que fora fora libertada da prisão na véspera), a embaixada de Israel na Ucrânia emitira um comunicado pedindo que todos os judeus se abstivessem de sair às ruas de Kiev ou até mesmo deixassem a capital, se pudessem, diante dos ataques que vêm se sucedendo e intensificando nas ruas, com espancamentos e perseguições. Como em velhos e nada bons tempos, brinca-se com fogo. bit.ly/rdb93_ucrania


TVT

Canal 13 NET Digital: Grande S. Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

O SUS que dá certo

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Parceria entre a TVT e a Política Nacional de Humanização envolverá rede de comunicação mantida pelos trabalhadores na difusão de ações bem-sucedidas em saúde pública o trabalho colaborativo entre profissionais de comunicação e gestores e apoiadores da PNH, com reportagens em todo o país sobre experiências bem-sucedidas em atenção básica à saúde e também em gestão do sistema público e gratuito. “O objetivo é trabalhar o conceito de humanização em saúde na perspectiva da realidade dos profissionais de saúde e usuários e também da realidade das comunidades, mostrando que as soluções sociais criadas por eles são potentes para melhorar o SUS e a saúde dos brasileiros”,

diz Parise. Segundo ele, a ideia é mostrar algumas das qualidades do SUS, o que geralmente não é veiculado pela imprensa em geral. “Não vamos encobrir os problemas e desafios do sistema de saúde brasileiro. Ter um jornalismo crítico tanto em relação aos serviços públicos como à medicina privada é nosso dever. Mas demonstrar que há caminhos para superar os problemas e valorizar o SUS como estratégico – segundo a concepção de saúde, é direito de todos e dever do Estado – também é.” O Programa Nacional de Humanização do Atendimento Hospitalar (PNHAH) foi criado em 2001 para melhorar a qualidade do atendimento por meio de ações com ênfase na melhora da assistência voltadas às relações entre usuários e profissionais da área. Em 2003, foi transformado em Política Nacional de Humanização (PNH). Mais do que ampliar suas ações para as demais instâncias da saúde, aperfeiçoou os modelos de atenção e gestão à saúde. Atualmente, o PNH conta com apoio da Rede Humaniza SUS, uma rede social formada por pessoas já envolvidas em processos de humanização da gestão e dos cuidados no SUS.

FOTOS ARQUIVO HUMANIZASUS

ela primeira vez, um canal de TV no Brasil vai abrir espaço para mostrar que o maior sistema público de saúde do mundo, destinado a atender gratuitamente uma população de 202 milhões de pessoas em ações de promoção, vigilância, assistência farmacêutica, urgência, emergência e alta complexidade é um sistema que, sim, funciona. E bem. Esse lado ainda pouco conhecido, principalmente por causa do lobby do setor de saúde privada, vai ser mostrado a partir da terceira semana deste mês de março pela TVT. Parceria entre a emissora e a Política Nacional de Humanização (PNH), vinculada ao Ministério da Saúde, prevê uma série de 12 debates que irão ao ar uma vez por mês e a produção de 52 programas especiais, a serem veiculados semanalmente pela Rádio Brasil Atual, além de duas pautas semanais para imprensa escrita e internet. De acordo com o diretor de Jornalismo da TVT, Luiz Parise, os debates serão rea­­ lizados nos moldes do programa semanal Melhor e Mais Justo, levando ao estúdio usuários, trabalhadores, especialistas e gestores. As mesas-redondas trarão ainda

Pré-natal do homem e direito a acompanhante durante o parto: algumas das conquistas da Política Nacional de Humanização REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

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Reflexões sobre um golpe em nossa história Não podemos voltar no tempo e apagar o erro de 50 anos atrás. Mas podemos evitar que ele se repita. A defesa do regime democrático deve estar em primeiro lugar na lista das prioridades nacionais

arquitetura das pirâmides e os guerreiros de terracota do primeiro imperador da China são evidências de que, desde a antiguidade, a ideia de vencer a morte – e se deslocar no tempo – sempre fascinou o espírito humano. Seria ótimo se pudéssemos – como descrito no livro The Time Machine, de H.G. Wells (de 1895) – também voltar ao passado e corrigir nossos erros, para garantir uma vida melhor no presente ou no mais remoto futuro. A ciência moderna tem desmentido essa possibilidade. Há, no entanto, outras maneiras de estabelecer pontes entre antes e agora, sem o recurso a outras dimensões, como hipotéticos “buracos de minhoca” ou “dobras” no espaço-tempo einsteiniano. A História, por exemplo, mescla, com naturalidade e ironia, o passado e o presente, e, bruxa ou fada, surpreende e enfeitiça, burlando-se dos sonhos, esperanças, desventuras, dos indivíduos, povos e nações, que participam da caminhada desta nossa pobre espécie em sua ingente jornada para o futuro. Completam-se, neste mês, os primeiros 50 anos do golpe militar de 1964. Pela forma como foi engendrado e deflagrado, com a participação de uma potência estrangeira – a cada dia crescem as provas e evidências do envolvimento norte-americano –, o golpe já deveria, há muito, ter sido condenado. Pelos abusos cometidos desde o primeiro momento, e que se multiplicaram depois com o fortalecimento do radicalismo antidemocrático e da repressão mais sanguinária, era para se tratar de um episódio já execrado pela sociedade brasileira. A geração que levou o povo às ruas nas memoráveis campanhas das Diretas Já e na eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República não soube, no entanto, se dedicar como deveria a manter viva, no coração do povo, a chama da liberdade e da democracia. A aliança que possibilitou a redemocratização se esfacelou com o tempo. Muitos movimentos, sindicatos e partidos se enfraqueceram, ou foram cooptados ou absorvidos pelo sistema. As sucessivas crises econômicas e o abandono da população à própria sorte do ponto de vista da cultura e da cidadania – inclusive por parte da mídia que havia participado da luta pela redemocratização – aprofundaram o processo de “breguização” do 10

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país e abriram as portas para o ressurgimento de um conservadorismo visceral, subjacente, que sempre viveu da ignorância e despolitização do povo brasileiro. O voto, no Congresso e fora dele, tornou-se majoritariamente fisiológico. Passou a ganhar a eleição quem oferecesse mais à população, isolando-se, ou deixando-se para segundo plano, nas campanhas políticas, questões como o fortalecimento do país ou a defesa e a preservação do Estado de Direito. O Brasil mudou sua política externa, houve avanços econômicos e sociais, ­como o combate à fome e à exclusão, e a incorporação de milhões de pessoas ao consumo. Mas com relação a questões como a forma de se enxergar o combate à violência, a criminalização da política e a descaracterização dos partidos – com a sua transformação em meras frentes de defesa de interesses – a sociedade brasileira, depois do retorno da democracia, evoluiu muito pouco. Voltamos a 1964, com o aparecimento de dezenas de “institutos” de diferentes tipos – financiados com dinheiro estrangeiro – dedicados a defender o neoliberalismo e a colonização do país. E a combater o nacionalismo como algo anacrônico e estéril, em uma época que todas as evidências demonstram que os países mais bem-sucedidos são justamente os que não têm vergonha de defender claramente sua posição e interesses em um mundo cada vez mais competitivo. Como há 50 anos, “forças ocultas”, que já não se importam em não parecer ocultas, querem pintar o Brasil como se estivéssemos à beira do abismo, para defender velhos e perigosos caminhos de salvamento da Pátria. “Analistas”, locais e estrangeiros, movem permanente campanha de desestabilização da economia, por meio da distorção dos fatos e da manipulação de dados, voltada para o enfraquecimento da imagem do país no exterior. Pela internet desferem-se ataques à democracia e crescem as pregações golpistas, com a defesa do recurso à violência e à tortura, crescem no mesmo meio em que vicejava nos anos 1960. Como ocorria às vésperas de março de 1964, multiplicam-se publicações, “filósofos” e “comentaristas” que professam um anticomunismo esquizofrênico e patológico – já que claramente psicótico e desprovido de qualquer contato com a realidade –, como se estivéssemos em plena Guerra Fria, e se sustentam pela distorção da história e da verdade, como se vivêssemos


MAURICIO SIMONETTI/PULSAR IMAGENS

MAURO SANTAYANA

Comício pelas Diretas Já na Praça da Sé, em São Paulo, 25 de janeiro de 1984: a aliança que permitiu a redemocratização se esfacelou

em outro planeta, situado em hipotético universo paralelo. Mistura-se o comunismo com o fascismo, quando foram as tropas soviéticas que destroçaram os nazistas na batalha de ­Berlim em 1945. Atribui-se qualquer suposto ataque ao conservadorismo ocidental a uma fantasia denominada “marxismo cultural”. Atacam-se as bases filosóficas da modernidade, para propor a volta a um obscurantismo tosco e medieval. Dessa fantástica doutrina, faz parte a defesa, na internet – como cláusula pétrea de uma Igreja agora governada por um papa que prega a conciliação – a excomunhão de pessoas por suas convicções políticas. Grupelhos voltam a desfilar, na frente dos quartéis – como aconteceu em junho –, com as mesmas faixas e bandeiras usadas daqueles anos sombrios. Esse meio século de triste história deveria representar um marco e uma oportunidade de reflexão sobre o Brasil que queremos e para onde estamos indo como sociedade. É preciso voltar a colocar a defesa do regime democrático em primeiro lugar na lista das prioridades nacionais. Chegamos a um ponto em que até mesmo pessoas que luta-

ram pela volta do Estado de Direito, pressionadas pela maré conservadora, estão defendendo a adoção de leis “antiterroristas” no Brasil. “Terrorista” era o termo usado contra os que foram perseguidos pela ditadura. Seus rostos, que podiam ser vistos em cartazes infames que se espalhavam pelos bares e colunas das estações rodoviárias nos anos mais duros da repressão, eram encimados por esse termo, seguido do apelo à delação. As mesmas fotos que ilustravam os cartazes de procurados são, às vezes, a única forma de lembrar os que foram torturados, assassinados ou desapareceram naquela época. Hitlernautas e apresentadores de programas sensacionalistas propagam a aceitação normal do retorno desse conceito – “Guerra Contra o Terror” é a base da doutrina de segurança norte-americana e de seus sabujos pelo mundo. Deixar de raciocinar com base em princípios e convicções políticas, para se deixar pautar pelo clamor fascista que estiver em voga, é o caminho mais curto para vir a justificar – dependendo do governo de turno – a impressão de novos cartazes como aqueles. Ou de acabar, eventualmente, aparecendo com o próprio rosto em um deles. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Histórias

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Cinquenta anos depois do golpe, João Goulart ainda representa um enigma político. E sua morte no exílio alimentou mistérios. Para João Vicente, filho de Jango, investigar é uma obrigação do país Por Vitor Nuzzi

“P

ode entrar que o João está te esperando”, diz Maria Thereza, que em seguida passa pelo portão e vai para a rua. O cenário é um apartamento num antigo edifício em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde passeiam os gatos Elvis e Pato e as paredes contam histórias. Maria Thereza é a ex-primeira-dama, viúva do presidente João Goulart, deposto em 1964. E o João que aguardava a reportagem é João Vicente Fontella Goulart, 57 anos, filho mais velho de Jango, que tinha 7 quando o pai deixou a Presidência da República. O menino achou estranho e perguntou, segundo está na biografia escrita por Jorge Ferreira: “Pai, você foi expulso do Brasil? (…) Você me disse que só saía da Presidência quando eu tivesse 9 anos, e eu ainda não tenho nem 8”. E Jango: “Você se lembra daquela casa grande do Congresso, onde ficava o presidente Mazzilli? Pois foi feito lá um decreto novo, dizendo que eu podia sair do país antes”. “Naquele momento, ele não teve como explicar toda a tragédia política no nosso país e optou por dizer isso. Eu também não iria entender o processo político, né?”, diz João Vicente, que ainda cobra investigações sobre uma possível operação, com presença de agentes norte-americanos, para assassinar Goulart. O ex-presidente morreu em 6 de dezembro de 1976, em Mercedes, Argentina. Teria morrido do coração. Mas há desconfiança de que uma pílula foi posta entre os remédios que usava, levando-o à morte.

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ENTREVISTA

No quadro, João Vicente e sua irmã Denize com Jango

região e teriam participado do plano contra o ex-presidente brasileiro, o único a morrer no exílio. A base é um depoimento do ex-agente uruguaio Mario Neira Barreiro, além de documentos obtidos pela família. O pedido foi feito em 2007 ao Ministério Público e reforçado em 2013, em documento à Comissão Nacional da Verdade. Recentemente, João esteve com o novo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e alimenta a esperança de que a investigação possa realmente avançar. O filho mais velho de Jango (Denize tem um ano a menos) defende a decisão do pai de não resistir ao golpe. Um movimento que ele, criança, teria ajudado a retardar, como Jango brincou certa vez no exílio. O historiador relata reunião

LUCIANA WHITAKER/RBA

das

É fato que Jango tinha problemas cardíacos. Mas não foi feita autópsia – o governo tentou até impedir o enterro em São Borja, terra de Jango e Getúlio Vargas. E a sucessão de mortes entre 1976 e 1977 de políticos que se reconciliavam e faziam oposição à ditadura – Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda – chama a atenção. Principalmente quando se lembra da Operação Condor, de auxílio entre regimes autoritários na América do Sul. João Vicente sabe que a exumação feita no final de 2013 pode ser inconclusiva – os resultados podem demorar até um ano. Por isso, defende a abertura de uma ação que permita ouvir, especialmente, agentes norte-americanos que atuavam na


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de 1963, quando Jango tentava explicar aos militares o porquê da retirada do pedido de estado de sítio. O encontro tenso foi quebrado pela aparição do pequeno João Vicente: “Pai, o puto do cozinheiro não quer me dar pastel!” A indignação infantil fez todos rirem, e o clima se amainou. Enquanto se completam os 50 anos do golpe, João Vicente escreve um livro sobre a experiência da família no exílio. Um livro de histórias, não de historiador, a ser lançado no segundo semestre. Deve mostrar que, mesmo deprimido por não poder retornar a seu país, Jango conseguia manter o humor. Como em um encontro com o ex-desafeto Carlos Lacerda: “Mandou trazer meus livros e disse: ‘Ele está estudando espanhol por sua causa, governador’”. Ou um jantar com Celso Furtado, seu ex-ministro do Planejamento, em Paris. “Celso, tu escolhe o vinho”, disse Jango. Na hora de pagar, espanto com o preço. “Celso, vê se essa conta tá certa.” E emendou: “Mas nós tínhamos de cair com um planejamento desses...” Quando você foi ter a dimensão de que seu pai era o presidente da República?

Em 1961, com toda aquela dificuldade, ele nos deixou na Espanha, pela crise institucional instalada pelos três ministros militares do Jânio (eram contra a posse de Jango, então vice-presidente). Quando ele tomou posse, em 7 de setembro de 1961, eu ia fazer 5 anos. De 1961 a 1963, a gente se criou dentro do palácio, e muitas vezes ele, para estar mais presente, me levava a vários encontros e agendas presidenciais. E essa da crise de 1963, no exílio ele diz: acho que tu até, em certo momento, prorrogou a situação militar do desfecho do golpe. Ele estava numa situação tensa com os militares, foi na época do estado de sítio, ele queria ter um instrumento que inclusive setores do próprio PTB se posicionaram contra, já era uma situação de instabilidade. É como o Jorge Ferreira muito bem levanta: Jango se propõe a fazer uma reforma política em que a esquerda quer acelerar e a direita o tacha de comunista. Chegou em 1964 e não tinha apoio da direita nem da esquerda, que se dizia forte e se mostrou tão fraca quanto o sistema militar que Jango pensava ter. Ele até brincava no exílio... “O puto do cozinheiro...” (risos) Ele levantou, foi lá falar com o cozinheiro, e quando voltou já tinha havido uma distensão. Você está escrevendo um livro...

Não um livro histórico como o do Jorge, que levanta todos os dados técnicos, de acervos, mas sobre o nosso dia a dia no exílio. É um relato. Quando chegamos no Uruguai, eu perguntei para minha mãe: de que cor é o Uruguai? Ela olhou o céu e disse que era azul. Então, um dos capítulos é isso aí. A gente crescia num primeiro momento num país democrático, e aí que eu conheci o problema de por que nós estávamos no Uruguai. Ele dizia que íamos ter mais tempo para pescar, a gente sempre pescava, ele gostava muito... Naquele momento, ele não teve como explicar toda a tragédia política no nosso país e optou por dizer isso. Eu também não iria entender o processo político, né? Fui entender à medida que eu cresci e no Uruguai fui encontrando as opções 14

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Às vezes, ele (Jango) ia lá no Liberty tomar um uísque, onde quando a gente estaciona o porteiro normalmente vai abrir a porta do carro. Quando nós chegávamos, o porteiro saía disparando, porque o carro podia explodir políticas, no grupo de estudantes. E fomos crescendo num país que no começo era livre, respeitava a democracia e depois foi vítima da própria ditadura brasileira. Aí fomos entendendo o processo da queda da democracia brasileira e como ela produz aquele efeito dominó em toda a América Latina. A Operação Condor...

A Operação Condor foi uma segunda etapa, já em 1975, 1976. Não se conhecia ainda, mas a gente sentia, pelo tipo de perseguição aos exilados políticos, que havia uma operação em conjunto. Fomos morar na Argentina em 1973, na volta do Perón, e já se denotava lá essa inter-relação policial. Fomos morar primeiro no hotel Liberty, antes de alugar apartamento, tínhamos alguns amigos. O senador (Zelmar) Miquelini, o deputado (Héctor) Gutiérrez Ruiz, que foram sequestrados e mortos (em 1976, em Buenos Aires), se reuniam com o pai lá. A gente já sabia que havia agentes... Você disse que ele tinha muito receio pela segurança pessoal.

Em Buenos Aires, depois da morte de Perón, em 1974... Lembro que ele retorna à Argentina cercado por um grupo que não eram os amigos autênticos dele. E a gente nota que o próprio


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(José) López Vega, que foi o grande artífice e o construtor da Triple A, a aliança contra os comunistas, que aquilo era um braço para atacar os opositores. Mataram o Padre Mugica (Carlos Mugica, morto em 1974), por exemplo, um peronista de muito tempo. Existia aquele terrorismo de Estado dentro da Argentina, já tinham matado o general Prats, em 1974 (o militar chileno Carlos Prats, do governo Allende, assassinado em Buenos Aires). Às vezes, ele (Jango) ia lá no Liberty tomar um uísque, e quando a gente estaciona o porteiro normalmente vai lá abrir a porta do carro. Quando nós chegávamos, o porteiro saía disparando, porque o carro podia explodir. Era para o Liberty que iam os remédios para Jango?

Quando o pai foi para a Europa – ele se tratava na clínica de cardiologia de Lyon –, tinha lá em Paris os amigos que mandavam essas remessas de remédios, de nova geração. Mandavam por via área para o hotel Liberty. Ali que ele se reunia. Ele conhecia todo mundo. O endereço de contato era ali. As reuniões com exilados muitas vezes também eram realizadas no hall desse hotel. E foi aí que, segundo o Neira Barreiro, eles trocaram um comprimido. É no depoimento do Neira que vocês se baseiam (para pedir a investigação)?

O depoimento do Neira foi a gota d´água. Já tínhamos vários indícios. Por exemplo, tinha as fotos que foram tiradas por um agente no aniversário de Jango, 1º de março de 1975, no Uruguai. Tínhamos o documento do SNI, em que o agente B de forma clandestina subtraiu as cartas (para Jango) do general Perón, do deputado Ulysses Guimarães... Um processo que eu tinha sido preso no Uruguai, alguns dados pessoais de negócios do pai, uma carta do general Serafim Vargas, que era um homem de contato entre os militares brasileiros e o meu pai, que também era de São Borja. Diz claramente: “Subtraímos de forma clandestina das gavetas do ex-presidente os seguintes documentos...” No momento em que nós temos esse depoimento, do agente Mário Neira Barreiro... Ele poderia ter lido, mas tem detalhes que não estão nos livros. Números de telefone, uma batida que eu dei num carro em Montevidéu, que não teve boletim de ocorrência. Só alguém que estivesse lá dentro, permanentemente, podia saber. Então, existem indícios. E entendemos que isso é um dever da história do nosso país. Afinal, a história de Jango é a história do Brasil, e o que aconteceu com ele tem de ser passado às novas gerações brasileiras de maneira clara e inequívoca. Elaboramos um pedido de ação civil pública em nome do Instituto Presidente

João Goulart, até porque não queríamos fazer isso em nome da família, porque temos um Código Penal que não foi revisto, e aqui o crime de assassinato é prescrito em 20 anos. Isso foi em 2007?

Em 2007, e a Comissão da Verdade veio a ser instalada bem depois, o que ajudou a acelerar um dos meios para chegar mais perto da verdade, que era a exumação. Eu sempre digo o seguinte: esse era um dos meios. Também pedimos as seguintes providências: ouçam-se os agentes americanos fulano, fulano e fulano, abra-se um pedido para as autoridades não só do Brasil, e até hoje isso ainda não foi feito. E você acha que isso não acontece por quê?

Olha, é uma pergunta que deveria ser feita.... Levei essa preocupação, inclusive fui com dois senadores, Pedro Simon (PMDB-RS) e Randolfe Rodrigues (Psol-AP), ao atual procurador-geral, o doutor Rodrigo Janot, e ele nos prometeu que iria estudar toda a documentação. A família cumpriu com a parte que lhe cabia, mas sabemos e temos a convicção de que pode ser muito difícil, dependendo da substância que teria sido usada, 37 anos depois, termos algum resquício. Queremos que se cumpram os outros pedidos. Quais? A investigação, inquerir esses agentes que teriam participado. Eu mesmo denunciei um deles, o Frederick Latrash (chefe da CIA no Uruguai), que na época da primeira eleição do Obama era assessor do McCain (senador John McCain, candidato do Partido Republicano). Queremos que o Brasil cumpra o seu dever de soberania. Está ali um pedido da própria Procuradoria. Indicamos o nome dos agentes e a Procuradoria ratificou. O Ministério até hoje a única coisa que fez foi acompanhar a exumação feita pela Comissão Nacional da Verdade. A ponto de, até hoje, não ter aberto a ação cautelar para que um juiz possa pedir a oitiva desses agentes, que tem de ser feita oficialmente pelo Ministério de Relações Exteriores. Seriam o Frederick e quem mais?

Michael Townley, que inclusive montou junto com Berríos (o químico Hermes Berríos) o laboratório de venenos no Chile onde se processou o Projeto Andrea, um projeto de dez venenos altamente tóxicos para eliminar, dependendo das circunstâncias, os inimigos da ditadura chilena e também daquelas que participavam da Operação Condor, que se unificam em 1975, quando o próprio Contreras (coronel Manuel Contreras, chefe da Dina, a polícia secreta chilena) manda correspondência ao Figueiredo (João Figueiredo, presidente brasileiro de 1979 a 1985), que

O STF referendou a Lei da Anistia, mas o STF muda. Isso tem de ser revisto. Até para que o sentimento de não punição não se transfira para as polícias e outros órgãos de segurança, que se sentem impunes no ato de prender uma pessoa, torturar. Estão aí os Amarildos da vida

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Quando o seu pai morreu, houve também aquele problema de fazer o enterro. Não queriam deixar vir para São Borja, depois queriam que fosse às pressas...

Eu estava em Londres... Fazia mais de um ano que morava lá, porque realmente, não existia mais espaço, segurança para nós. O pai dormia no máximo duas noites em cada lugar. Tanto é que a última viagem que ele fez – ele tinha um aviãozinho, um Cessna, monomotor –, ele poderia ter ido para a fazenda na Argentina. Ele sai de Montevidéu, vai para a fazenda dele no Uruguai (em Taquarembó), pega o avião, em vez de fazer alfândega, porque não queria dar pista, vai até Salto, no Uruguai, desce, passa de barco, manda um carro argentino esperá-lo no outro lado, dali ele troca de carro, vai até Passo de los Libres, almoça e vai para Mercedes. Veja a ginástica que ele fazia. Claro que é para despistar alguém. Na Argentina, ele tinha carteira de identidade, como residente legal, entrava e saía sem problema. Mas quando entrava e saía do Uruguai, tinha de pedir licença... Ele renuncia ao asilo político e solicita ao governo uruguaio a permanência legal no Uruguai, a residência, e lhe é negada. Não só é negada, como o Ministério do Interior, que é tudo milico, manda um ofício exigindo que ele fosse depor. Ele não deu bola. Essa quase proibição de fazer um enterro, depois de 12 anos fora do país...

Veja só, até morto a ditadura tinha medo dele. Nós temos um depoimento do Sylvio Frota (general e ministro do Exército), de novembro de 1976, colocando as unidades militares de fronteira em alerta para que assim que o ex-presidente João Goulart pisasse em território brasileiro fosse preso e tornado incomunicável. Ele pretendia, planejava voltar?

Ele foi para a Argentina para liquidar um gado que tinha lá... Pretendia voltar para a Europa, onde já tinha estado em outubro, no nascimento do meu filho (Christopher), teve um encontro grande com todos os exilados brasileiros em Paris, esteve com 16

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na época era presidente do SNI, externando preocupação com a abertura nos Estados Unidos, se o (Jimmy) Carter fosse vitorioso na eleição norte-americana, dizendo que eles tinham de se autoproteger. Esse Michael Townley matou o Letelier (o diplomata chileno Orlando Letelier, morto em atentado em Washington, em 1976) depois, participou do assassinato do Prats em Buenos Aires, e se supõe que teria sido um dos agentes que trouxe esse composto e entregou à embaixada americana em Montevidéu, para que fosse transferido ao médico, que tinha o codinome “Capitán Adonis”, o Carlos Milles. Depois mataram ele também, diz que caiu da sacada da casa e quebrou a cabeça... São coisas que vão se interligando, e acho necessário a gente percorrer esses caminhos. Casualmente também o Hermes ­Berríos estava escondido e foi morto no Uruguai. Foi encontrado cinco anos depois (do desaparecimento), enterrado de bruços numa praia. Tudo isso está relatado no nosso pedido de inquérito, que não caminha. Acredito que o novo procurador tenha uma posição mais soberana, mais brasileira.

Foi só Jango que não quis resistir? Por que o Partido Comunista, os sindicatos, os outros partidos não resistiram? Era tudo um balaio de esperança que não tinha estrutura de resistência, e Jango sabia disso. Uma ordem de resistência seria uma ordem fratricida Arraes, que veio da Argélia, se encontraram em Genebra, com Celso Furtado... Ia passar o Natal e o ano novo ali... Ele só queria voltar com autorização de todos. E se isso fosse acelerar o processo de abertura. Ele iria a Roma, queria ter um encontro com o papa, viajaria aos Estados Unidos, para mostrar à ditadura que nem os Estados Unidos tinha mais nenhum receio de João Goulart, e desembarcaria no Brasil, no Galeão. Era mais ou menos essa a situação política da época. Lógico, num sistema militar nada é claro. Tinha aquela situação divergente do grupo do Geisel (o presidente Ernesto Geisel) e do grupo do Frota, que depois foi afastado da sucessão. Na época do golpe, muito se falou que ele deveria ficar no Brasil e resistir, e foi criticado por isso. Outros acham que ele fez o certo, porque se ficasse haveria uma guerra civil. Como você vê isso hoje?

Isso é uma das coisas que ele mais tinha de responder no exílio. Mas ele tinha uma personalidade que já em 1961 tinha aceitado a imposição do Congresso (sobre o parlamentarismo), depois veio a lutar pelo plebiscito (que restabeleceu o presidencialismo). Ou se aceitava a emenda ou se marchava com o 3º Exército, como fez o Getúlio em 1930, para fechar o Congresso. Em 1964, a crise tinha se acelerado de tal forma que o próprio


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PSD, que num momento apoiava, estava fora já do jogo democrático. A UDN já sabíamos, o Lacerda batendo todos os dias... O próprio Juscelino disse que já não estava mais com o Jango. A ânsia do poder em 1965 (quando haveria eleições) conduziu o presidente Juscelino a cometer um erro político. Jango, antes de mais nada, era um democrata. As forças de esquerda, algumas irresponsáveis, exigiam de tal forma a aceleração das reformas de base, que não poderiam ser feitas por decreto, e sim por modificações constitucionais, inclusive a reforma agrária. A esquerda exigia de Jango o que o Congresso não fazia. Reforma agrária na lei ou na marra, cunhado não é parente, Brizola presidente, o Partido Comunista já rompendo com Jango... Foi o último, aliás, porque uma das pessoas que mais esteve do lado de Jango foi o Prestes, inclusive foi visitar o pai lá no exílio. Ficou politicamente insustentável. A direita dizendo que ele era comunista e os comunistas dizendo que ele era um frouxo. No momento em que Santiago Dantas comunica que a 4ª Frota Americana está na costa brasileira para desembarcar em Vitória, ele sente que o problema é muito mais grave. E já tinha a “República de Minas”. Caso houvesse resistência, enquanto houvesse, Minas seria a nova república. Os Estados Unidos desembarcariam a 4ª Frota, declarariam Minas como capital da República, enquanto o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, estivessem tentando confrontar as forças golpistas. Esse que era o jogo. Não era pela manutenção do seu poder e de seu mandato que ele colocaria o Brasil nessa fogueira. E agora eu pergunto: foi só Jango que não quis resistir? Por que o Partido Comunista, os sindicatos, os outros partidos não resistiram, se estavam tão fortes? Não estavam. Era tudo um balaio de esperança que não tinha estrutura de resistência, e Jango sabia disso. Uma ordem de resistência seria uma ordem fratricida. E a alegação de que se tratou de um golpe preventivo, porque havia uma “república sindicalista” em formação, Jango poderia dar um golpe?

Isso eles aprenderam com o Departamento de Estado americano. Era o pretexto para derrubar a democracia. Hoje já temos gravações liberadas da Casa Branca, do Kennedy, com o embaixador Lincoln Gordon, dizendo que o Jango estava dando muita força aos comunistas... Ou seja, isso é o reflexo da própria Casa Branca. Qual é a força que tinha o Partido Comunista no Brasil? Essa história de contragolpe é uma história que as elites brasileiras assumiram junto com o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Por isso quando a gente diz hoje que tem de democratizar as empresas de comunicação, temos de pensar mui-

to. A liberdade de imprensa é sagrada na democracia, mas você não pode botar isso na mão de um grupo só, ou de dois. Em nome da livre iniciativa, você leva a pecha de autoritário, quando foram eles que trabalharam pelo golpe. E o pior, descobrimos agora do Ibope (pesquisa feita em 1964 que demonstrava popularidade do presidente João Goulart). Em 2013, o Congresso fez uma devolução simbólica do mandato do presidente João Goulart, houve a exumação. Para a família, isso traz algum tipo de alívio pelo reconhecimento do papel histórico de Jango?

Não só um reconhecimento. Era um compromisso do Congresso Nacional, que muitas vezes foi perseguido pela ditadura, mas em outras foi serviçal. Como no dia que aceita a vacância da Presidência da República, num ato extremamente ilegal. É uma coisa que mostra para as novas gerações que aquilo foi um golpe dado contra a Constituição. Não derrubaram Jango, rasgaram a Constituição brasileira. Até hoje, numa reforma educacional, temos de rever esse período. A democracia pode ter todas as suas falhas, mas ainda é o sistema que responde mais eficazmente pela vontade de maioria. E sobre a Comissão Nacional da Verdade, que fará seu relatório no final do ano?

A nossa Comissão da Verdade foi instalada depois de muita negociação. Tivemos essa anistia autoproclamada pelos militares. Não existe a prescrição de crimes de lesa-humanidade... Uma coisa é ser preso pelo Estado, outra coisa é ser preso e, sob a tutela do Estado, desaparecer, ser torturado. A Argentina, o Uruguai, o Chile começaram também anistiando ambos os lados, e posteriormente, em novas alterações constitucionais, inclusive com consultas populares, entenderam que os crimes de lesa-humanidade não podem ser anistiados, não pode haver prescrição. O Uruguai prendeu dois ex-presidentes, a Argentina prendeu três, o Chile também evoluiu nisso. Para nós, a instalação da comissão foi um grande passo. Ela vai ser extinta, mas vai deixar outras comissões pelo Brasil afora. E esse debate vai continuar. Acredito piamente que o relatório final vai indicar à sociedade brasileira a necessidade da revisão da Lei da Anistia. O STF referendou a Lei da Anistia, mas o STF muda, a pressão da sociedade muda. Mesmo que os presidentes, os agentes já estejam mortos, isso tem de ser revisto. Até para que essas reminiscências de não punição não se transfiram para as polícias militares, para outros órgãos de segurança, que se sentem impunes no ato de prender uma pessoa, torturar. Estão aí os Amarildos da vida.

A liberdade de imprensa é sagrada na democracia, mas você não pode botar isso na mão de um grupo só, ou de dois. Em nome da livre iniciativa, você leva a pecha de autoritário, quando foram eles que trabalharam pelo golpe. E o pior, descobrimos agora do Ibope: em 1964, Jango tinha aprovação popular

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(RJ 28/08/1968)

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Fern liveira e Sarah Por Cida de O

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m meio a um emaranhado de fusões de escolas e concentração de conglomerados universitários, o ensino superior privado brasileiro segue de vento em popa. Um levantamento da consultoria Hoper Educação, com base em dados de 2013, constatou crescimento de faturamento de 30% entre 2011 e 2013, de R$ 24,7 bilhões para R$ 32 bilhões. Conforme a consultoria, estão matriculados hoje no ensino superior privado 5 milhões de alunos. Os números do setor têm reflexo no Censo Escolar do Ministério da Educação. Os dados de 2011, divulgados em 2013, indicam que das 2.365 instituições que participaram do levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 88% são particulares – percentual que praticamente repete o do censo anterior. Entre as dez maiores instituições de ensino superior em números de matrículas de graduação, nove são privadas. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, mostra que em 2012 estavam na rede privada 74,6% dos estudantes, percentual que aumentou em relação ao ano anterior, que era de 73,2%. O crescimento da educação como negócio é inversamente proporcional à queda na qualidade dessa modalidade ensino, pouco fiscalizado. A maioria dos cursos é noturna e alunos dessas faculdades dedica menos tempo aos estudos fora da sala de aula do que os das faculdades públicas. Justamente porque precisam trabalhar, não chegam a estudar mais do que cinco horas por semana em casa. E é na universidade pública, onde a qualidade do ensino é historicamente melhor, que estão os alunos com mais tempo para estudar. O dado revela mais um traço de desigualdade, já que ali estão os estudantes com melhor situação socioeconômica. Em 2013, dos mais de 10 mil estudantes aprovados no vestibular da Universidade de São Paulo – a mais procurada do Brasil –, apenas 28,5% estudaram em escola pública em algum momento da vida. O número é pouco maior que em 2008, quando era de 26,5%, conforme dados da Fundação para o Vestibular (Fuvest). Esse cenário decorre do conceito de que a educação é um negócio, cuja missão é forjar cidadãos para atender às demandas do mercado. E é cria de um processo que ganhou grande impulso há 50 anos.

/1968) PRESS (RJ 12/07 NAL/JCOM/D.A

JB

A educação que convém

ARQUIVO O JOR

KAORU/CPDOC

CORRERIA E PRISÕES Enquanto perseguia e prendia estudantes e professores, a ditadura rapidamente mudou o modelo de ensino no Brasil

À noite, à luz de lampião, 300 trabalhadores rurais da pequena Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, aprenderam a ler, escrever, fazer contas e a se enxergar como cidadãos. Bastaram 40 aulas. O êxito da experiência levou a reunir, em seu encerramento, em março de 1964, o então presidente João Goulart e o general Humberto de Alencar Castelo Branco. Comandante da III Região Militar em Recife na época, ele já via no método pedagógico do educador Paulo Freire uma forma de “engordar cascáveis” naqueles sertões. No mês seguinte, houve a primeira greve no município, atribuída à “praga comunista” trazida pelas aulas e, REVISTA DO BRASIL

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MINISTRO DO PLANEJAMENTO Jango dá posse a Celso Furtado em 1962. O economista fez parte da primeira lista de brasileiros cassados pelo regime militar

ILEGAL A União Nacional dos Estudantes era uma das grandes pedras no coturno dos militares. Imediatamente após o golpe, sua sede, no Rio, foi depredada e incendiada. Decretada ilegal, passou a organizar os estudantes na clandestinidade

logo em seguida, o cancelamento, pelos militares, da adoção do programa em todo o país que tinha então taxa de analfabetismo superior a 30%. Freire foi preso e exilado. Não se sabe se o país teria erradicado o analfabetismo se a experiência de Angicos fosse ampliada para todo o território. Ou se ainda teria os mesmos 13 milhões de analfabetos. A certeza é que o golpe, que em 1964 brecou o processo de democratização em curso no país desde a década de 1940, fez da educação instrumento de legitimidade, alvo de seus órgãos de repressão e deu cheque em branco ao empresariado amigo. Tanto que as diretrizes da política educacional dos governos militares, marcada pela transferência de recursos públicos para o setor privado – sangria que acabou colocando o ensino público brasileiro entre os piores do mundo –, foram traçadas no Rio de Janeiro, em 1964, num seminário do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), organização que ajudou a criar o clima e a dar sustentação ao golpe. O tema do evento: “A educação que nos convém”. Dali saíram as bases da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, aprovada duas semanas antes de ser baixado o Ato Institucional nº 5, o AI-5. A lei reorganizou o ensino superior numa concepção au-

toritária, segundo a qual mercado, e as instituições ao seu dispor, adequam as pessoas às suas necessidades. Criaram-se ainda mecanismos que justificaram abusos, intervenções, perseguição e cassação de professores e estudantes, censura à pesquisa e a subordinação direta dos reitores ao presidente da República. E, claro, a lei permitiu também a abertura de vagas em faculdades particulares para atender anseios do empresariado, que dependiam de mais profissionais capacitados. Nos primeiros anos do golpe, enquanto a Argentina tinha 36% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos na faculdade, o Brasil não chegava a 12%. Para chegar perto, portanto, era preciso triplicar as vagas. “Até aquela época eram poucas as instituições privadas, geralmente tradicionais, religiosas, como a presbiteriana Mackenzie e a Pontifícia Universidade Católica. O ensino superior era oferecido majoritariamente pelo Estado, que nos anos 1940 encampou faculdades privadas. Mas desde então a proporção se inverteu. Hoje, as vagas públicas não chegam a 25% do total”, aponta o professor Dermeval Saviani, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Dois meses após o AI-5, o presiden-

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te Arthur da Costa e Silva baixou o Decreto-lei nº 477, o AI-5 das universidades. Escrito sob a batuta de tecnocratas da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês), punia sumariamente professores, alunos e funcionários considerados culpados de subversão e os proibia de trabalhar ou estudar em outras instituições. Era a criminalização do movimento estudantil e de toda forma de contestação. Na época foram presos, processados e mandados para o exílio professores como Celso Furtado, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Leite Lopes e Mário Schemberg. As forças militares invadiram universidades, incendiaram a sede a União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, fecharam escolas e destruíram bibliotecas. “O argumento era colocar o país em ordem numa perspectiva estratégica de progresso conforme as convicções do regime, calando as insatisfações sociais e políticas que brotavam sobretudo nesses espaços”, lembra o professor José Willington­Germano, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), autor do livro Estado Militar e a Educação no Brasil 1964-1985.


VITOR/CB/D.A PRESS

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AINDA PIOR Repressão na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1968; em dezembro, viria o AI-5

PASSEATA DOS 100 MIL Em 1968, no Rio, as famílias se juntaram aos estudantes nas ruas. Artistas, como Isabel Ribeiro e Paulinho da Viola, tomaram a frente dos protestos

Obviamente, nenhuma medida se impõe exclusivamente pelo retrocesso. Ali se implementava também a pós-graduação no país, proporcionando a pesquisa universitária – ainda que de forma mutiladora, de universidade operacional, voltada à técnica e ciência instrumental, burocratizada, orientada pelo mercado, longe do ideal autônomo, pluralista e crítico, como observa Willington. A novidade, porém, acabou sendo um tiro pela culatra ao aglutinar professores e pesquisadores contrários à repressão. “Houve uma produção importante nas ciências sociais, humanas e da educação que despertou o senso crítico e levou à desconstrução do discurso hegemônico”, observa Saviani, da Unicamp. Os movimentos de educação e cultura popular também foram duramente reprimidos, entre elas as escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base (MEB), da Arquidiocese de Natal. O rádio que alfabetizava também incentivava a participação sindical dos trabalhadores rurais e a defesa da reforma agrária como enfrentamento à miséria. Ao discurso reformista democratizante foi contraposto o da Doutrina de Segurança Nacional, com disciplina e ordem enaltecidas, por exemplo, no ensino de Educação Moral e Cívica ministrado em todos os níveis, inclusive na pós-graduação.

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ENQUADRAMENTO Hasteamento da bandeira em Gama (DF), em 1975. Nas escolas públicas, a disciplina e a ordem eram enaltecidas. O ensino de Educação Moral e Cívica, em todos os níveis, se tornou obrigatório

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DANILO RAMOS/RBA

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FRUTOS Em fevereiro, alunos, professores e funcionários das Etecs e Fetecs, em São Paulo, se uniram num protesto contra os baixos salários e condições de trabalho

Promessa não cumprida

Inspirada na teoria do capital humano com apelos de correção das desigualdades sociais defendida pelo empresariado do Ipes, a Lei nº 5.692, de 1971, ampliou de quatro para oito anos a escolaridade obrigatória no então ensino de primeiro grau. Teoricamente, todas as crianças brasileiras entrariam no primeiro grau e no quinto ano seriam sondadas quanto a aptidões para o mercado de trabalho, sem ter de mais passar pelo exame da ­admissão para subir do primário para o ginasial. E no segundo grau já seguiriam para um curso profissionalizante, com a justificativa de que o ensino profissional deveria ser destinado a todos, garantindo a todos uma profissão de nível médio. De certo modo, seria uma conquista comparada à escolaridade obrigatória anterior, de quatro anos, mas que na prática não se sustentou. Primeiro, porque o próprio primeiro grau não foi universalizado até hoje em algumas regiões periféricas. E, segundo, porque não foram feitos investimentos proporcionais ao crescimento. “Com o novo ensino de primeiro grau, com oito anos, e abolido o exame de admissão, mais alunos puderam continuar 22

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estudando”, reconhece a professora Alzira Batalha Alcântara, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Porém, sem a injeção de mais recursos, não havia como construir mais escolas para atender à demanda, faltavam laboratórios em escolas profissionalizantes de segundo grau, o currículo foi enxugado para reduzir a necessidade de mais professores, não havia concursos, os salários foram sendo achatados e a qualidade caiu”, completa. Pelas contas do professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Nicholas Davies, houve mesmo redução nos investimentos. Pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1961, cabia à União investir no mínimo 12%, o que a Constituição de 1967 suprimiu. Em 1969, pela Emenda Constitucional n° 1, os municípios continuaram obrigados a investir 20% da receita no ensino primário. Porém, estados e União ficaram livres de um percentual mínimo. Entre 1960 e 1965, o Ministério da Educação (MEC) investia entre 8,5% e 10,6%, percentuais que foram reduzidos para 4,4% e 5,4% no período de 1970 a 1975, do chamado “milagre” econômico.

Só em 1983, com a Emenda Constitucional n° 24, do senador João Calmon, foi fixado mínimo de 13% para a União e 25% para estados, Distrito Federal e municípios. O dinheiro que faltava para o ensino público seguia para o setor privado, via isenções fiscais e incentivos. Um dos mecanismos era o salário-educação, criado em 1964 para financiar a educação primária. No entanto, permitia às empresas abrir escolas para filhos de funcionários ou pagar bolsas em escolas particulares em troca da isenção do recolhimento. Estudos mostram que em meados da década de 1980 metade de toda a rede particular que oferecia educação fundamental era mantida com o salário-educação. As escolas particulares proliferaram, sempre contando com a isenção de impostos sobre patrimônio, de renda e sobre serviços e financiamentos com juros negativos. O perfil privado, sem a representação democrática de todas as parcelas da sociedade, é, aliás um traço do período da ditadura que se mantém nos dias de hoje no estado de São Paulo, por exemplo. A combinação de um regime que inibia as possibilidades de contestação social com a deterioração da qualidade do ensino público criou mais um alicerce para a edificação do ensino privado. Em vez de contestar e exigir ensino estatal de qualidade, a classe média passou a incluir a escola particular cada vez mais em sua cultura e em seu orçamento. Passados 50 anos do golpe, os estudiosos não sabem dizer também se as medidas tomadas pelos governos autoritários teriam sido adotadas num eventual ­regime de alternância regular de poder civil. Mas quase 30 anos depois de iniciada a redemocratização, o que se sabe é que ainda são sentidos os efeitos do pós1964 no ensino. E a luta por mais recursos para a educação pública é uma das principais bandeiras da sociedade que hoje pode e vai às ruas. “O mais perverso e injusto é o elemento ideológico resultante de todo esse processo que ainda persiste: que o público é ruim e o particular é bom”, diz o professor Luiz Antônio Cunha, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Colaboraram: Malú Damázio e Patricia Iglecio


LALO LEAL

O Brasil da mídia e o país real

Há 50 anos, como agora, existiam dois Brasis: o real e o inventado pela mídia. Pesquisa do Ibope, feita à época, e só agora revelada, mostra que 72% da população brasileira apoiava o governo

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oje, quando abrimos jornais, ouvimos o rádio e vemos as TVs comerciais, o retrato é de um país à beira do abismo, tudo vai mal. Situação de quase pleno emprego, milhões de pessoas retiradas da miséria pelo Bolsa Família, pacientes atendidos em cidades que nunca haviam visto um médico antes são apenas alguns exemplos do Brasil ignorado pelo jornalismo “independente”. Em março de 1964, o quadro era semelhante, embora houvesse um fantasma a mais, além do descalabro administrativo: o “perigo vermelho” representado pelo comunismo. Para a mídia, ele estava às nossas portas. A televisão e demais meios de comunicação se prestavam a esse serviço de doutrinação diária azeitados por fartos recursos vindos de grandes grupos empresariais canalizados por meio do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), em estreita colaboração com a agência de inteligência dos Estados Unidos, a CIA. O principal mensageiro televisivo dos alertas sobre a “manipulação comunista” do governo Goulart era o jornalista Carlos Lacerda. Apesar de afinados ideologicamente com os golpistas, os veículos de comunicação não faziam isso de graça. Segundo o economista Glycon de Paiva, um dos diretores do Ipes, de 1962 a 1964 foram gastos nesse trabalho de desinformação US$ 300 mil a cada ano, em valores não corrigidos. Os dados estão no livro O Governo João Goulart, As Lutas Sociais no Brasil 1961-1964, do historiador Moniz Bandeira. “O Ipes conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública, através do seu relacionamento especial com os mais importantes jornais, rádios e televisões nacionais, como: os Diários Associados (poderosa rede de jornais, rádio e TV de Assis Cha-

teaubriand, por intermédio de Edmundo Monteiro, seu diretor-geral e líder do Ipes), a Folha de S.Paulo (do grupo de Octavio Frias, associado do Ipes), o Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde (do Grupo Mesquita, ligado ao Ipes, que também possuía a prestigiosa Rádio Eldorado de São Paulo)”, relata René Armand Dreifuss, no clássico 1964: A Conquista do Estado. Foi um período longo de preparação do golpe, e quando ele se concretizou a mídia ficou exultante. O Globo estampou manchetes do tipo “Ressurge a democracia”, “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”. Sob o título “Bravos Militares”, o jornal da família Marinho, no dia 2 de abril de 1964, dizia que não se tratava de um movimento partidário: “Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira”. O Estadão seguia na mesma toada, enfatizando “o aprofundamento do divórcio entre o governo da República e a opinião pública nacional”. Foram necessários 50 anos para termos a confirmação que o tal divórcio não existia. Pesquisa do Ibope, feita à época, e só agora revelada graças ao trabalho do historiador Luiz Antonio Dias, da PUC de São Paulo, mostra que 72% da população brasileira apoiava o governo. Entre os mais pobres, o ­índice ia para 86%. E se Jango pudesse se candidatar nas eleições seguintes, previstas para 1965, tinha tudo para ser eleito. Pesquisa de março de 1964 dava a ele a maioria das intenções de voto em quase todas as capitais brasileiras. Em São Paulo, a aprovação do seu governo (68%) era superior à do governador Adhemar de Barros (59%) e à do então prefeito da capital, Prestes Maia (38%). Dados que a mídia nunca mostrou. Para ela, interessava apenas construir um imaginário capaz de impulsionar o golpe final contra as instituições ­democráticas. REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

Eo Gripen voou Caça sueco supera rivais norte-americanos e franceses para desembarcar no Brasil. Acordo prevê parte da produção na região do ABC Por Flávio Aguiar 24

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uando fui para a Suécia, em abril de 2010, a pedido da revista Inova ABCD, jamais me passou pela cabeça que estaria documentando a abertura de uma nova página na aviação brasileira. Para mim, tratava-se de documentar a existência de um avião militar, o Gripen da Saab-Scania – existência que fora posta em dúvida por uma afirmação do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, de que ele nunca sairia do papel. É verdade que uma parte do projeto ainda estava no papel, mas sua realização dependia também da decisão do governo brasileiro sobre a compra de 36

caças para a FAB. Os concorrentes eram o F18-Super Hornet, da Boeing norte-americana, e o Rafale, da Dassault francesa, a preferida de Jobim. O projeto Gripen não era apenas o de importação de um tipo de avião. A parte mais importante seria a da transferência imediata de tecnologia, inclusive mediante a fabricação de parte das peças da fuselagem do avião no Brasil, para o fornecimento em escala mundial – o Gripen já era o preferido em países como a África do Sul, República Tcheca, Hungria, além, é claro, da própria Suécia. Sei que pensar em aviões militares e transferência de tecnologia nessa área pode não


CASPER HEDBERG/BLOOMBERG VIA GETTY IMAGES

ECONOMIA

STEFAN KALM/SAAB AB

INTERCÂMBIO Técnicos da Saab, na Suécia, trabalham na montagem do Gripen: tecnologia será repassada

parecer muito bonito. Ainda mais para quem participou de marchas pacifistas desde os tempos da Guerra do Vietnã. Mas sei também que não vivemos num mundo paradisíaco onde o lobo vai beber água tranquilamente ao lado do cordeiro. E o Brasil – esperemos que jamais se torne um país imperialista ou agressivo do ponto de vista militar – tem de se defender e tem o que defender. Além das nossas gigantescas fronteiras, há o “território” do pré-sal, o que significa nosso “território” virtual no futuro, por meio do controle soberano dos investimentos e rendimentos. E – esperemos também que isso se concretize – da reversão destes para educação e saúde. Desde aquela visita de 2010, muito chão passou

Concorrência

O americano F-18 Hornet, da Boeing: preço final mais alto

O francês Rafale, da Dassault: o Brasil já tem outros acordos com a França, e é preciso diversificar

debaixo do Gripen. Dizem os especialistas na área que quando a presidenta Dilma Rousseff assumiu, sua preferência iria para o avião da Boeing, na linha de maior aproximação com os Estados Unidos. Dizem os mesmos especialistas que o que congelou e reorientou essa preferência foi o episódio Snowden/ NSA (envolvendo Edward Snowden, ex-técnico da Agência Nacional de Segurança norte-americana, e denúncias de espionagens contra cidadãos brasileiros, inclusive a presidenta). Se tal aconteceu, a reconversão foi rápida como um avião a jato. Contra o Rafale da Dassault havia um argumento de peso, até para um leigo na matéria. O Brasil já negociava submarinos nucleares com a França (e negociou). E recomendam os sacerdotes, bispos e cardeais da área que no caso de um país como o Brasil, que não é autônomo em matéria de tecnologia militar, deve-se diversificar o universo dos fornecedores. De modo que também dessa perspectiva o voo do Gripen se encaixava. Definida a escolha pelo Gripen, levantaram-se alguns argumentos contrários, sem muita base lógica nem real. Como o de que a escolha brasileira se dera por “razões ideológicas”, contra os Estados Unidos, preferindo a opção vinda de um país “socialista”, a Suécia. É argumento coirmão daquele que acusa a diplomacia dos governos Lula e Dilma de ser “ideológica”, em contraposição à tradição “técnica e pragmática” de nossas diplomacias anteriores. A tese fura em dois aspectos: em primeiro lugar, a Suécia está REVISTA DO BRASIL

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RUBENS CHAVES/PULSAR IMAGEM

ECONOMIA

INVESTIMENTO A opção pelo Gripen teve apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da Confederação Nacional dos Metalúrgicos. Calcula-se que a região do ABC deverá criar cerca de 5 mil empregos diretos

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longe de ser “socialista”. Em segundo, não há razão para criar um laço de dependência tão estreito com a águia norte-americana. Um argumento colateral a esse é o de que haveria uma diferença aviltante nos preços, que o Brasil, “por razões ideológicas”, estaria pagando mais caro pelo Gripen do que pagaria pelo F-18 Hornet. O Brasil vai gastar US$ 4,5 bilhões, quando o preço unitário do Hornet é de US$ 55 milhões. Ou seja, o gasto total seria de US$ 1,98 bilhão, menos da metade. Esse argumento também não se sustenta. O custo unitário de um Hornet, hoje, é de US$ 66,9 milhões. Em 2009, já era US$ 57 milhões. Em segundo lugar este é o custo chamado de fly away. Ou seja, é o preço para tirar o avião do hangar e pô-lo na pista pronto para decolar. Se a este custo acrescermos a munição, mísseis, metralhadoras etc., o custo já sobe para US$ 80,4 milhões. E ainda não falamos de combustível, manutenção, contratos colaterais etc. Ou seja, é um argumento baseado ou na ignorância, ou na má-fé. Já pela esquerda, apareceu a crítica de que o Brasil­

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deveria ter escolhido um modelo russo ou chinês. Citava-se inclusive a Venezuela como exemplo, uma vez que este país tem vultosos contratos de cooperação militar com a Rússia. Só que as perspectivas brasileiras são bem outras. Dita o bom senso que não nos tornemos dependentes dos Estados Unidos. Mas também dita o bom senso que o Brasil não crie um clima de guerra com o vizinho. Já basta a China ser nosso principal parceiro comercial. Uma queixa colateral a essa é o de que o Gripen nos tornaria tão dependentes dos Estados Unidos quanto do Super Hornet, pois aquele usa peças de fabricação norte-americana. Bom, os especialistas consultados na fábrica sueca garantiram que os três modelos, o Hornet, o Rafale e o Gripen, são verdadeiros híbridos, usando peças de várias procedências tecnológicas, ainda que de fabricação própria, o mesmo ocorrendo com os protótipos da Rússia e da China. Mas há ainda as ponderações de “centro”, daqueles que se querem “imparciais”. Por que não aplicar as verbas gastas nos Gripen em saúde e educação? É um argumento parecido com os que se manipula


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para dizer que o dinheiro “gasto” nos estádios para a Copa do Mundo deveria ser revertido para saúde e educação. Quem assim raciocina demonstra ­ignorar conceitos de elaboração e de natureza de um orçamento público. E dribla a verdadeira questão, para gáudio dos capitais rentistas: o que vai garantir mais verbas para educação e saúde é cortar os juros da dívida pública, cortar no superávit primário, domar a especulação financeira, combater a sonegação, introduzir melhores medidas para tornar o nosso sistema de impostos mais progressivo do que regressivo. Além disso, existem repercussões imediatas da fabricação de peças do Gripen no Brasil na criação de empregos diretos e indiretos, pela cadeia produtiva que isso implica. Esse legado – palavra que está na crista da onda – vem do compromisso da Saab-Scania de investir em instalações em São Bernardo do

Campo. O projeto é implementar no ABC um polo de incubação tecnológica, nos moldes do que existe em Linköping, cidade sueca onde está o Centro de Pesquisa Tecnológica da companhia. Autônomo, mas anexo à empresa. A Saab-Scania, em cooperação com as áreas governamentais da educação e da pesquisa, também financia outros projetos independentes, inclusive para estudantes em formação. Conversei com um jovem brasileiro que, na época, desenvolvia algo na área de pesquisa de mercado na internet, visando a otimizar a possibilidade de maior informação e poder de decisão de quem usa esse tipo de ferramenta. Seu projeto envolvia a abertura para que internautas pudessem “passear” e “ir às compras” coletivamente. Embarquemos no Gripen, portanto. E não é demais repetir: torcendo para que jamais tenha de ser usado pra valer.

A costura política para a escolha dos caças que seriam comprados pelo Brasil demorou mais de uma década, com muitas reviravoltas. A definição saiu em 18 de dezembro passado, quando o governo brasileiro anunciou a compra de 36 Gripen NG suecos, da Saab, vencedora da concorrência do Ministério da Defesa que era disputada ainda pela norte-americana Boeing e pela francesa Dassault. O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, afirmou durante o anúncio que a escolha foi feita com base apenas em detalhes técnicos, sem considerar, por exemplo, denúncias de espionagem da inteligência dos Estados Unidos no Brasil. E destacou o fato de o acordo garantir propriedade intelectual ao país, além de domínio da tecnologia. Em janeiro, durante visita de executivos da Saab à prefeitura de São Bernardo do Campo, foi feito o anúncio de investimentos iniciais de US$ 150 milhões em uma fábrica naquele município do ABC paulista. A unidade deve começar a sair do papel ainda este ano, e a expectativa é de que nela trabalhem aproximadamente mil pessoas.

Em torno de 80% da estrutura do Gripen será produzida no Brasil. O secretário de Desenvolvimento Tecnológico, Trabalho e Turismo de São Bernardo, Jefferson José da Conceição, estimou em aproximadamente 5 mil o número total de empregos diretos, entre montagem e desenvolvimento. “Empregos qualificados, com muita tecnologia envolvida”, observou, em entrevista à TVT, em dezembro. Ele destacou a possibilidade de envolver instituições de ensino da região, como a Universidade Federal do ABC, a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e o Instituto Mauá de Tecnologia, entre outras. O modelo sueco tinha preferência do prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, que viajou para conhecer todos os concorrentes. Em 2011, ele articulou a criação de um Centro de Pesquisa e Inovação Sueco-Brasileiro, para desenvolvimento de projetos. A escolha final do governo também contava com apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ainda em 2010, o sindicato

SAAB AB/DIVULGAÇÃO

Acordo prevê investimento e fábrica

Marinho: centro de pesquisa e inovação no ABC

assinou uma declaração conjunta de apoio ao projeto da Saab, juntamente com a Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNMCUT) e o sindicato nacional da categoria na Suécia, o IF Metall. Em fevereiro, essas entidades voltaram a se reunir, para trocar informações sobre a indústria e as relações de trabalho no Brasil e no país europeu. Segundo os sindicalistas, o modelo de relações de trabalho praticado

pela empresa também pesou na decisão de apoiar o projeto por fim escolhido. O presidente do IF Metall, Anders Ferbe, afirmou que o papel da fábrica é garantir, tanto do Brasil como da Suécia, condições e relações de trabalho dignas. Segundo o presidente da CNM-CUT, Paulo Cayres, a expectativa é de que a transferência de tecnologia possibilite também a qualificação dos trabalhadores brasileiros. (Vitor Nuzzi) REVISTA DO BRASIL

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EDDIE KEOGH/REUTERS/LATINSTOCK

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COMPREENSIVA Aluno de escola pública inglesa: currículo adequado para as classes populares

A batalha pelo ensino público, lá como cá Em Londres, uma das cidades pioneiras do bem-estar social, o favorecimento ao ensino privado e à competitividade deterioram o sentido e a qualidade da educação Por Renato Pompeu 28

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á quem veja os problemas brasileiros como jabuticabas: só existem aqui. Mas a jornalista e ativista inglesa Melissa Benn publicou um livro pela editora Verso em que narra a luta encarniçada de setores da população britânica contra a progressiva deterioração do ensino público e contra o favorecimento governamental ao ensino privado. Trata-se de School Wars – The Battle for Britain’s Education, título que em tradução livre seria Guerras na escola – A batalha pela educação na Grã-Bretanha. Diz a apresentação: “Desde os anos 1960, os políticos britânicos têm prometido oportunidades educacionais iguais para todos e fracassado. O governo de coalizão está intensificando a fragmentação e privatização do sistema escolar da nação, tornando zombaria suas proclamações de promover a mobilidade social”. O sistema educacional britânico é cheio de contradições. A melhor escola estatal da Inglaterra, a Mossbourne Community Academy, no bairro pobre de Hackney, é uma ilha de excelência – porém para poucos. Instalada em 2004, atende com merendas gratuitas apenas metade dos alunos inscritos na antiga escola estatal do bairro. Melissa assim descreve a Mossbourne, uma parceria público-privada: “No recreio, um homem que parece um agente do serviço ­secreto dos Estados Unidos, vestindo um paletó bem cortado e portando óculos escuros, vigia uma massa de adolescentes londrinos vestindo a marca registrada da escola, blazers cinza com fímbrias vermelhas”.


MUNDO

Enquanto isso, no ensino “compreensivo” a escola aceita como alunos todos os candidatos, independentemente de renda familiar ou desempenho em provas. Além disso, a escola tem um currículo mais adequado para as classes populares. A primeira escola compreensiva foi instalada em 1949, mas o auge do sistema ocorreu a partir dos anos 1960, quando chegou a atingir 90% dos alunos do país. Apesar da penúria do pós-guerra, não foram abolidas, como Melissa postula que era necessário, as escolas privadas, num país então sem dinheiro, nem as escolas religiosas, num país já então crescentemente secularizado. Mas ela considera como que uma idade de ouro os tempos, nos anos 1970, em que foi escolarizada, segundo os valores de igualdade e de solidariedade das escolas compreensivas que frequentou. Desde meados dos anos 1980, entretanto, governos tanto conservadores como trabalhistas têm movido uma verdadeira guerra contra as escolas compreensivas, sob a argumentação de que não se adaptam aos requisitos pragmáticos de produtivismo, competitividade, individualismo­e exaltação ao lucro, inerentes ao neoliberalismo. Segundo os neoliberais, as escolas compreensivas, em vez de estimularem os mais talentosos, criam uma “massa cinzenta de mediocridades”. Para desgosto de Melissa Benn, desde os anos 1980 têm sido introduzidas diversas medidas para tornar mais “competitivo” o ensino. Uma dessas medidas envolvia o seguinte: antigamente, no auge do sistema compreensivo, os alunos de cada bairro eram automaticamente encaminhados para a escola daquele bairro. Segundo a nova medida, os pais podiam escolher onde seus filhos seriam matriculados. Isso implicou uma concorrência acirrada entre as escolas compreensivas, agora, como as particulares e as religiosas, classificadas como “melhores” e “piores”, perdido o ideal­progressista de igualdade. Melissa, entretanto, reconhece que mesmo no auge das escolas compreensivas, quando elas tinham de concorrer no mesmo bairro, as privadas perdiam os alunos de melhor desempenho. Assim, a batalha a que ela se refere nunca foi ganha. Apenas prossegue hoje em piores condições.

A despedida de um mestre Este artigo é o de despedida do jornalista Renato Pompeu da Revista do Brasil. Ele morreu no último dia 9 de fevereiro, aos 72 anos, pegando de surpresa amigos e familiares. Até a véspera abastecia regularmente seu blog. E poucos dias antes havia pedido a seguidores no Facebok ajuda para conseguir frilas – do alto de seus 50 anos de vivência no jornalismo. Participou da criação do Jornal da Tarde, em 1966, da revista Veja, em 1968, do projeto de renovação da Folha de S. Paulo liderado por Cláudio Abramo, no final dos anos 1970, e trabalhou no Estadão, nos anos 1990. Escreveu 22 livros, com muitas incursões filosóficas por diversas áreas, sempre que possível com olhar marxista sobre as coisas – da sociologia à economia, passando pelo futebol e a loucura. Com a loucura passou a conviver desde o dia em que foi parar numa sala de tortura por uma semana, no início dos anos 1970. Foi internado pela primeira vez, entre janeiro de 1974 e agosto de 1975, no manicômio do Juqueri. E voltaria a passar por processos de internação outras vezes. Deu grande contribuição à luta antimanicomial. “Saiba você, que leu alguma das minhas reportagens dos tempos de Veja ou de Folha ou JT, inclusive premiadas, que pode ter lido uma reportagem feita por um louco”, provocava. Recentemente, Pompeu participou de um encontro de jornalistas e intelectuais promovido pela Carta Maior. Apresentou-se aos demais como um colaborador das revistas Caros Amigos, Carta Capital, Retratos do Brasil, Revista do Brasil e do Diário do Comércio. Dizia que não via mais sentido na dita “grande mídia” e que seu conceito de jornalismo deixou de ser possível na imprensa de hoje.

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JAILTON GARCIA/RBA

Segundo ela, o auditório é impressionante e as salas de aula são cheias de luz, mas essas excelências só atingem parte da população em idade escolar do bairro, tornando uma piada a “igualdade de oportunidades”. Andy Beckett, resenhista do jornal The Guardian, comentou que Melissa Benn mostr­a como o sistema escolar britânico moderno pode ser uma fonte de perplexidades: “Ao mesmo tempo inspirador e deprimente, público e privado, igualitário e elitista, seletivo e não seletivo, secular e religioso, multicultural e monocultural, centralizado e anárquico, politizado e apolítico, sem verba e perdulário, deteriorado e brilhante de tão novo”. A autora constata que a maioria das escolas estatais ocupa um espaço desconfortável entre o público e o privado. “Elas não são nem empresas de negócios, nem um serviço público robusto (…) Uma boa escola local é uma mistura de interesse próprio e de interesse partilhado, que transcende e anula os valores do lucro e do consumo, do comércio e do cliente”. Melissa Benn não culpa apenas os governos conservadores e o “novo trabalhismo” do ex-primeiro-ministro Tony Blair, rival de seu pai, o esquerdista Tony Benn, pelo estado precário de grande parte do ensino britânico. Ela defende a tese de que os antigos governos trabalhistas, desde os anos 1940, nunca conseguiram dar ao ensino estatal os padrões de excelência e a respeitabilidade de que gozou durante muito tempo a saúde pública britânica. Desde o início da instauração do Estado­ do Bem-Estar Social pelos governos trabalhistas a partir de meados dos anos 1940, a educação foi uma espécie de prima pobre do novo sistema. Na verdade, no pós-Segunda Guerra Mundial não teria havido um esforço verdadeiro para instaurar o chamado ensino “compreensivo”, postulado pelos educadores progressistas, no lugar do ensino “seletivo” tradicional. Para o leitor brasileiro, é preciso explicar que, em termos britânicos, o ensino “seletivo” é aquele em que a escola aceita como alunos apenas os que disponham de verbas para pagar altas mensalidades e, na melhor das hipóteses, aceita apenas os que tenham recebido notas altas em exames especiais de admissão.

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Direito à fé e ao amor A peleja dos homossexuais que querem exercer sua religiosidade sem ser discriminados Por Marcelo Santos Fotos Gerardo Lazzari

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á algo muito caro ao advogado carioca Ricardo Pinheiro, 40 anos. Trata-se de sua espiritualidade. Ele diz que a sua vida seria impraticável sem a fé. E que assim pavimentou o caminho na carreira em defesa dos direitos humanos e no ativismo como líder comunitário. Nascido e criado em família protestante, Ricardo abraçou valores do cristianismo e fez deles sua bandeira. Chegou a estudar Teologia e liderou jovens, discutindo textos bíblicos em praças públicas. A chegada da maioridade, porém, assim como nos anos seguintes o dilema da orientação sexual passaram a ocupar espaço importante: fugir da realidade ou assumir a homossexualidade. Ele decidiu que não se tratava de enfrentar a si mesmo e seu dilema, mas o preconceito. Na época, Ricardo frequentava uma igreja presbiteriana no Rio de Janeiro, e começou a colecionar as antipatias dos pastores da região, que o viam como um semeador de “confusões”. Recebeu ameaças, mas foi adiante no propósito de seguir anunciando o que acreditava ser a mensagem cristã “que liberta verdadeiramente o ser de um homem, de uma mulher”. Aos 32 anos, 30

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deixou para trás sua antiga igreja por não querer mais conviver com preconceitos e intolerâncias pregadas e ensinadas de púlpito. Mas ressentia-se de se afastar das atividades mais banais, como os cultos e os estudos bíblicos. Foi assim que se aproximou da Igreja Episcopal Anglicana, que tem causado polêmica por sua posição mais respeitosa às uniões homoafetivas. A institu ição foi a primeira a se pronunciar oficialmente em apoio à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que equiparou, em 2011, as uniões homoafetivas às demais uniões estáveis, o que culminou nas mudanças feitas por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça (175/2013), autorizando o casamento civil com base nos princípios constitucionais de igualdade e de não-discriminação. “Fui vendo que, ao contrário do que a Igreja pensa e vê, por não querer enxergar, a sexualidade faz parte de uma individuação que não é e não pode ser formatada. Faz parte da beleza da diversidade criada.” Hoje, Ricardo diz estar de bem consigo mesmo. “Abracei a fé que não teme o diferente de mim, nem o demoniza.” Tornou-se líder do movimento Episcopaz, pastoral de direitos humanos liga-


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da à paróquia da Santíssima Trindade, na Diocese Anglicana do Rio. “Defendemos a inclusão numa perspectiva ligada à diversidade”, resume. Assim como ele, não são poucos os homossexuais que desejam vivenciar sua espiritualidade. Ao contrário do que faz parecer o truculento discurso de alguns líderes religiosos, para boa parte da comunidade de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros a fé é fundamental.

Igrejas inclusivas

CAMINHO DA TOLERÂNCIA “No atual pensamento da Igreja, os homossexuais devem viver em castidade. Porém isso não é um dogma, ou seja, uma verdade absoluta. Quer dizer, é um campo em que as coisas podem mudar”

A Igreja Evangélica possui curiosidades. Se entre os cristãos os evangélicos são os mais radicais no que chamam de “defesa da família tradicional” – nos parlamentos ou nas telas da TV –, foi justamente entre os protestantes que nasceu o fenômeno das igrejas inclusivas, comunidades lideradas por homossexuais e que carregam as mesmas características de outras denominações pentecostais. Com reuniões espontâneas, músicas e orações idênticas a qualquer outra igreja evangélica, estima-se que 10 mil fiéis, entre héteros e gays, frequentem os cerca de 40 templos pelo país. O movimento nasceu em 1968, em Los Angeles. Coube ao reverendo Troy Perry, um ex-pastor batista norte-americano, descasado e com dois filhos, reunir 12 pessoas para o primeiro culto da Metropolitan Community Churches, as Igrejas Metropolitanas que atualmente reúnem 43 mil pessoas em 37 países. No Brasil, há oito templos da denominação evangélica, com aproximadamente 500 pessoas. Entre os fiéis católicos há também esperança de que o discurso mais contemporizador do argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Franscisco, possa aproximar a comunidade LGBTT (de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros) das paróquias.

Em julho passado, após a Jornada Mundial da Juventude, realizada no Rio de Janeiro, Francisco disse: “Se alguém é gay e busca o Senhor com sinceridade, quem sou eu para julgá-lo?”. Apesar da repercussão, o papa apenas seguiu o catecismo. A Igreja Católica não vê a homossexualidade como uma aberração ou possessão demoníaca e prevê ainda que as pessoas devem ser acolhidas com respeito, compaixão e delicadeza. Evitando todo sinal de discriminação injusta. “No atual pensamento da Igreja, os homossexuais devem viver em castidade. Porém isso não é um dogma, ou seja, uma verdade absoluta. Quer dizer, é um campo em que as coisas podem mudar. Assim como mudou e vêm mudando temas como a escravidão, o papel da mulher, além de outros, como o celibato dos padres, que são frequentemente questionados”, explica Lucas Paiva, 28, um dos líderes do Diversidade Católica, um grupo que acredita ser possível viver duas identidades aparentemente antagônicas: ser católico e ser gay. O IBGE ajuda a confirmar isso. Entre os casais homoafetivos contados no Censo de 2010, 47,4% se declararam católicos, enquanto 20,4% diziam não possuir nenhuma religião. O Vaticano tem percebido esse rebanho e incluiu perguntas sobre famílias homoafetivas no questionário enviado às Conferências Episcopais para o documento preparatório da Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo de Bispos, que será realizada em outubro. “Apesar de não acreditar em uma alteração doutrinal agora, creio que a mudança no tom e um aprofundamento da ação pastoral para acolhida de gays, divorciados, mães e pais solteiros poderá trazer bons frutos e derrubar os argumentos dos

AJUDA “Ainda há pais que dizem que o filho tem o demônio no corpo, como se dizia na Idade Média”

LUCAS PAIVA

EDITH MODESTO

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COMPORTAMENTO

HOMOFOBIA NÃO ESTÁ NA BÍBLIA “A comunidade de Jesus de Nazaré é a do amor. Não tenho dúvidas de que homoafetivos ou qualquer outra pessoa pode ter acesso a Deus”

preconceituosos­que agem em nome de Deus. Isso de condenar os outros se apoiando em Deus é para mim o mais grave problema. Um grande pecado”, diz Lucas. De família religiosa, ele viveu por um tempo recluso de sua relação com a igreja. Em 2009, no entanto, sentiu o que chama de “reflorescimento da fé”. A experiência levou o jovem gerente de call center a procurar as reuniões do Diversidade Católica, que em São Paulo acontecem na Casa de Clara, um centro franciscano localizado no bairro da Bela Vista, na região central. “Existem muitas pessoas que vivem escondidas, infelizes, porque se sentem rejeitadas. Nosso grupo, além de ser um espaço para encontro e expressão, é também um lugar de acolhida. Sobretudo para pessoas machucadas e com dificuldade de aceitação.” Paralelamente, representantes de religiões, especialmente as cristãs, e movimentos gays, vivem em clima de tensão. Em 2011, a organização da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, em uma resposta aos constantes ataques que vinha recebendo de religiosos e, sobretudo, a ação de fundamentalistas que bloqueavam uma legislação mais inclusiva e igualitária, saiu às ruas com imagens erotizadas de santos de devoção católica. Sob o tema “Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia!”, a parada cobrava bom senso e respeito aos direitos humanos. A estratégia levou à fúria personalidades controversas, como o pastor televisivo

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Silas Malafaia, líder das Assembleias de Deus Vitória em Cristo: “Os caras na Parada Gay ridicularizaram símbolos da Igreja Católica e ninguém fala nada. É pra Igreja Católica ‘entrar de pau’ em cima desses caras, sabe? ‘Baixar o porrete’ em cima pra esses caras aprender”, vociferou em seu programa de TV. Mais comedido, o cardeal dom Odilo Scherer publicou no jornal da Arquidiocese de São Paulo um artigo dizendo-se entristecido com o que considerou “deboche”. Lucas Paiva também desaprovou a ação: “Apenas serviu para reforçar um clima de rivalidade entre os gays e as religiões”.

Tolerância

Na opinião do teólogo Carlos Bregantim, 58, líder do Caminho da Graça, grupo protestante alternativo, a homofobia nada tem a ver com os escritos da Bíblia. “A comunidade de Jesus de Nazaré é a do amor. Não tenho dúvidas de que homoafetivos ou qualquer outra pessoa pode ter acesso a Deus.” Para ele, vozes como a de Malafaia ou de parlamentares como o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) não representam a comunidade cristã. Pastor há 30 anos, ele conta que em sua congregação há homoafetivos que cooperam na organização dos cultos. “Há pessoas nessa condição em muitas igrejas. Mas, geralmente, elas não têm coragem ou não são encorajadas a se assumir.”


COMPORTAMENTO

Se entre os cristãos há ainda resistência à homossexualidade, o mesmo não ocorre em religiões como o budismo, espiritismo ou mesmo as religiões afro-brasileiras. “Claro que são pessoas diferentes e não existe um cânone na umbanda ou candomblé. Mas nunca presenciei nenhum ato discriminatório nos terreiros, e já vi pai-de-santo incorporar entidades homossexuais”, relata a professora Maria Elise Rivas, da Faculdade de Teologia Umbandista, em São Paulo. Segundo ela, as religiões afro-brasileiras possuem diversas entidades bissexuais, conhecidas como Edês. “Há uma perspectiva diferente da ocidental e cristã, que polariza homens e mulheres.”

Pais religiosos, filhos gays

No consultório da terapeuta Edith Modesto, 77, dia sim, dia não, pais a procuram desesperados após descobrir que seus filhos são homoafetivos. “De modo geral, os evangélicos são os pais com maior dificuldade e os que mais sofrem quando descobrem que tem um filho ou filha homossexual. Mas também há católicos ortodoxos que ainda sentem muita dificuldade. Ainda há pais que dizem que o filho tem o demônio no corpo, como se dizia na Idade Média”, relata. A terapeuta coordena o Grupo de Pais de Homossexuais, iniciativa que começou a partir de sua pró-

pria experiência ao descobrir que o caçula de seus sete filhos é gay. Hoje, ela se reúne com cerca de 30 pais no seu consultório e conversa com outras centenas pela internet sobre preconceito e aceitação. Entre relatos, gente aflita como a psicóloga evangélica de 54 anos que pensou em suicídio, quando soube que o filho é gay. “Foi como uma punhalada no peito”, conta a mãe, que não quis se identificar. Edith afirma que, assim como os pais conservadores, filhos homossexuais religiosos geralmente também pensam numa saída definitiva aos seus dramas. “Atendo muitos jovens que pensam em se suicidar. Já fui socorrer um garoto que estava prestes a pular de um viaduto. Ser religioso pode facilitar a auto-homofobia”. Mesmo que o processo de aceitação em ambiente religioso seja mais penoso, ela não aconselha pais nem filhos a abandonar suas comunidades de fé. “A culpa pode ser pior. Acompanhamos a família, tentamos mostrar que a homossexualidade não é escolha, não é doença, nem é um pecado. É uma condição”, argumenta. E, se mesmo assim pais e filhos ficarem reticentes, ela orienta: “Conversem diretamente com Deus. Deus é amor, pai de todos nós. Independentemente da orientação sexual que tenhamos. O amor vence”.

OUTRAS PERSPECTIVAS “Nunca presenciei nenhum ato discriminatório nos terreiros, e já vi pai-desanto incorporar entidades homossexuais” MARIA ELISE RIVAS

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PERFIL

O homem do mar não sabia nadar Acontece que Dorival Caymmi era baiano e, como ele mesmo disse, saía “para ver as coisas” Por Vitor Nuzzi 34

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ompositor e cantor das coisas do mar, do mundo dos pescadores, Dorival Caymmi não sabia nadar. O autor de Suíte dos Pescadores, Noite de Temporal, É Doce Morrer no Mar, O Vento, A Jangada voltou Só, Promessa de Pescador, Dois de Fevereiro preferia manter os pés em terra firme. A revelação causou surpresa ao jornalista e pesquisador Ayrton Mugnaini, que o entrevistava, nos anos 1990. A neta Stella Caymmi também escreveu a respeito em livro de 2001 e que será relançado este ano pela Editora 34. Caymmi admitiu a Stella: “É verdade, não sei nadar nem pescar (risos). Mas isso não tem muita importância. Eu busco o mar fora do mar. Aí entram a imaginação, e também a observação. Eu tive amigos pescadores. Nasci na classe média e recebi boa instrução. Sou um homem urbano, sempre fui. Acontece que eu saía e via as coisas”. A partir das cenas reais, corriqueiras, o compositor explicava que era preciso ter “uns olhos especiais” para ver a música, abstrata. “Assim eu primeiro vejo a música. Depois a absorvo e logo após a transformo em canção.” Ele completaria 100 anos em 30 de abril – nasceu em Salvador, às 22h50. Foi até os 94, espalhando melodias sobre o amor, compondo o universo de sua Bahia e derramando sambas-canção. Também são de Dorival Dora, Marina, Não tem Solução e Sábado em Copacabana.


PERFIL

Foi em Copacabana, no apartamento onde morava, que ele morreu, em 16 de agosto de 2008 (11 dias depois, morreria Stella Maris, sua companheira por quase sete décadas). Setenta anos antes, o baiano havia pegado “um Ita no Norte”, conforme conta em uma de suas canções, e do Rio de Janeiro não saiu mais. As primeiras andanças pelo Rio – instalou-se em uma pensão no centro – ajudaram a completar músicas iniciadas na Bahia, como O Mar, A Lenda do Abaeté e aquela que o tornaria famoso, O que é que a Baiana tem?, pela voz, mãos e gestual de Carmen Miranda. A música apareceu no filme Banana da Terra, de 1939. Foi a primeira vez que a Pequena Notável surgiu vestida de baiana, em uma escassa imagem que sobreviveu ao tempo. E não era para aparecer, já que a canção escolhida seria Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso – não entrou porque houve desacordo quanto a valores. Ary bufou, atacou Caymmi e pediu desculpas tempos depois. Em 1958, curiosamente, foi lançado o disco Ary Caymmi/Dorival Barroso: um interpreta o outro, com os dois na capa como se fossem pescadores.

ARQUIVO/AGÊNCIA A TARDE/AE

Travessia

Ele completaria 100 anos em 30 de abril. Foi até os 94, espalhando melodias sobre o amor, compondo o universo de sua Bahia e derramando sambas-canção

Em livro de memórias publicado em 1982, o músico­, cantor e produtor Aloysio de Oliveira conta: “Esse incidente mudou definitivamente o destino de três pessoas: o de Caymmi, o da Carmen e o meu. O Caymmi conheceu o seu primeiro sucesso. A Carmen se apresentou pela primeira vez de baiana no Cassino da Urca e foi contratada para a Broadway. E eu, com o Bando da Lua, que se apresentou pela primeira vez junto com a Carmen no Brasil, também parti para os Estados Unidos. (...) Graças ao Ary Barroso”. “Foi um confluência marcante: a letra altamente pic­tó­rica de O que é que a baiana tem? vivida pela persona certa, a cantora cinematográfica Carmen ­Miranda, que com seus trejeitos difundiria internacionalmente o tipo e a composição, arremessando a arte de Caymmi praticamente em sua estreia, em 1938, em um turbilhão multimídia”, diz, em texto, o pesquisador Tárik de Souza. Para ele, o compositor baiano participou ativamente de uma transição na música brasileira. “Dorival Caymmi colocou-se no epicentro da travessia de uma canção de extração folclórica que ele tão bem lapidou para o sincopado buliçoso das ruas com ecos de samba de roda e o samba-canção já urbanizado, modernista, pré-bossa nova.” Em seu primeiro disco, de 1959, João Gilberto incluiu Rosa Morena, de Caymmi. Em entrevista ao próprio Tárik, ele chegou a afirmar: “Meu sonho é chegar a essa perfeição de ser o autor de uma ciranda cirandinha, uma coisa que se perca no meio do povo”.

A possível busca da perfeição deu a Caymmi uma injusta fama de preguiçoso, pela demora ao compor músicas. “Essa calma dele fez criar um método de compor que levava anos”, observa o pesquisador Jairo Severiano. Assim, acrescenta, Dorival Caymmi tornou-se o dono de menor repertório entre os grandes compositores brasileiros. A musicografia reunida por Stella Caymmi aponta 120 obras. Compositor do primeiro time, como Pixinguinha, Noel Rosa e Tom Jobim. E autor de uma escola única, sem antecessores nem sucessores. “Caymmi não tem filhos musicais. Os três filhos (Nana, Dori e Danilo) são dedicados à música, mas não são caymmianos. Dori, por exemplo, é mais jobiniano.” Ele destaca ainda a atemporalidade da obra de Caymmi, pela qual se apaixonou desde que o ouviu em uma temporada na Ceará Rádio Clube, em 1941. E lembra que, apesar se ter como marca as chamadas canções praieiras, o compositor também criou os sambas “corridos”, como Acontece que Eu sou Baiano, e vários sambas-canção urbanos. “Ele não era apenas um cantor regionalista fora do comum. Fez sambas absolutamente modernos, e de certa forma eu o considero um dos precursores da Bossa Nova”, diz Severiano, que se tornou amigo de Caymmi e produziu um de seus discos, o de 70 anos de idade do compositor. Define o amigo com três palavras: “absoluta tranquilidade” e “simplicidade”. No livro de Stella, ele conta sobre a gravação de Marina, em 11 de julho de 1947. Caymmi não quis regional com flauta, como era comum. Pediu dois violões, cavaquinho, bandolim e pandeiro – e a participação de um “instrumentista solitário”, que trabalhava numa vara judicial. Um tal de Jacob do Bandolim. Uma das canções mais conhecidas de Caymmi, Saudade da Bahia, ficou escondida durante mais de dez anos, desde 1947, quando foi composta em uma tarde, em um bar do Leblon. “Sua melodia melan­ cólica e sua letra confessional o desnudavam. Talvez seja a música que mais o revele, daí sua resistência em mostrá-la”, escreveu Stella. Mas não teve jeito: Aloysio­ de Oliveira, que já conhecia a canção, precisava de uma música forte para lançar depois do sucesso de Maracangalha. Insistiu e convenceu Caymmi. O poeta e antropólogo Antonio Risério, em ensaio de 1993, reeditado em 2011, acrescenta outras definições ao compositor: “Um mulato ensolarado, em vista de coqueiros e gaivotas, poetizando quase sempre do ponto de vista da praia, quase nunca da proa”. O que trata da beleza feminina misturando malícia e delicadeza. “Um cantor dos prazeres da comida, do corpo feminino e da natureza litorânea.” O poeta do remelexo. E que não se descola do chão, nem busca ser transcendental. “É o cantor das aparências, da expe­ riência imediata, numa poesia a olho nu.” REVISTA DO BRASIL

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MÚSICA

Pelas bandas do

Planalt Pop, eletrônico, ska, jazz, hip hop, samba e choro. E, claro, muito rock. Duas centenas de grupos mandam ver na capital federal. E o celeiro cultural só não produz mais por falta de espaço Por Hylda Cavalcanti 36

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m Brasília, o cotidiano do produtor Luiz Eduardo Alf chama a atenção de muita gente. Alf é um dos criadores do festival Porão do Rock, cuja missão é garimpar novas bandas e apresentá-las ao mercado fonográfico. Como ele, o ex-estudante de Física Ricardo Silva, o Frango, tem por rotina a falta de rotina: ora viaja o país trabalhando como engenheiro de som para artistas diversos, ora se apresenta como vocalista da banda Galinha Preta. Alf, 40 anos, e Frango, 36, representam uma personalidade diferente para quem só vê a capital como centro de órgãos públicos, habitado por servidores e frequentado por interessados nos três poderes.

São pessoas que incrementam o cenário musical com novidades que, constantemente, viram sucesso no restante do país. E cada dia maior, mais difundido e de um público muito diversificado, inclusive pessoas que dividem as obrigações dos gabinetes de dia com apresentações na noite. O jornalista Luiz Gustavo Rabelo, o Luizinho, sai de casa todo dia para dar expediente na assessoria de imprensa do Ministério da Defesa. Depois, dá lugar ao roqueiro, vocalista das bandas Geriatric Blues Band e a Cloning Stones. Concursado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e cedido ao Executivo, Luizinho faz shows desde os 15 anos. E não abre mão dessa segunda atividade. “É minha cachaça.”


MÚSICA

mina ainda é o rock, mas estilos como o pop, eletrônico, ska, jazz, hip hop e até samba e grupos de choro também fazem sucesso. Com nomes curiosos, exóticos e engraçados, os grupos proliferam em bares e eventos da região central e das 31 regiões administrativas do Distrito Federal, como Taguatinga, Ceilândia, Santa Maria, Samambaia e Águas Claras. Uma onda de festivais, que exigem preparação, ensaios, criatividade autoral e pegada profissional, contribuiu para essa fertilidade. Um dos mais importantes, o Porão do Rock, é realizado há 14 anos e reuniu público estimado em mais de 40 mil pessoas no ano passado. “O momento voltou a ser bom. Prova disso é que a cada edição do festival encontramos bandas boas que não conhecíamos. O problema ainda é o mesmo observado em outros locais: o pessoal se destaca e acaba saindo para o Rio de Janeiro e São Paulo, mas

Bandas surgidas na última década usaram meios criativos para se formar e tocar a vida, apoiadas na internet e das redes sociais. A Móveis Coloniais de Acaju foi formada em 1998 por dez artistas. O

grande número de integrantes contribui para a pluralidade do som e das referências musicais do grupo, que tem em comum o amor por Brasília. “Nosso vocalista André costuma dizer que a cidade é a grande inspiradora da banda”, diz o produtor Ofuji.

Alf, Frango e Luizinho possuem em comum ser crias de uma marca registrada da capital, quando surgiu o boom das bandas de rock e grupos como Legião Urbana, Plebe Rude ou Paralamas do Sucesso estouraram nacionalmente. O Paralamas surgiu no Rio, mas tem o DNA de Brasília, onde Herbert Vianna, filho de militar, e Bi Ribeiro, filho de diplomata, arranharam seus primeiros acordes. O movimento atravessou com menos intensidade os anos 1990, e nos últimos dez anos tem dado sinais de crescimento,. Conforme números registrados por produtores da cidade – e alterados constantemente –, existem quase 200 bandas no Distrito Federal. O ritmo que predo-

PEDRO FRANÇA/DIVULGAÇÃO

FOTOS GERDAN/PORÃO DO ROCK

to

Modelos alternativos

MARCELO DISCHINGER

DNA Alf, do Porão do Rock: “O problema ainda é o mesmo: o pessoal se destaca e acaba saindo para o Rio de Janeiro e São Paulo, mas o início continua sendo o Distrito Federal”

o início continua sendo o Distrito Federal”, diz Alf, que integrou o Raimundos na década de 1990. A baiana Pitty despontou nacionalmente a partir de apresentação em Brasília, em uma das edições do festival. Assim como a banda brasiliense Móveis Coloniais de Acaju, hoje projetada nacionalmente.

CRÍTICA SOCIAL Frango, da Galinha Preta: músicas de um minuto

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MÚSICA

DIEGO BRESANI/ESTUDIO CALIFORNIA/DIVULGAÇÃO

CROWDFUNDING A vocalista Camila Zamith no clipe do Sexy Fi: vaquinha eletrônica

Com 15 anos de estrada, um DVD e três CDs lançados, a banda alia instrumentos como sax, gaita, flauta e trombone a guitarra, baixo, teclado e bateria. “É para quem gosta de música e quer se divertir”, define o saxofonista Paulo Rogério. Já a Galinha Preta, do vocalista ­Frango, criada em 2003, tem no som e nas letras uma pesada crítica social. As canções costumam ter duração de um minuto e, sempre, uma história inusitada. Esse tempo remete ao início da formação do ­grupo, quando seus integrantes divulgavam suas crias por e-mail – que só suportava anexos de até 1 megabit. “Era o que o Hotmail (provedor mais utilizado em 2003) conseguia suportar”, lembra Frango, que se prepara para lançar CD comemorativo dos dez anos. A capacidade de downloads­ e uploads já aumentou bastante, mas parece que tanto a banda como o público já se apegaram ao formato curto e grosso. Também conhecido entre os brasilienses, o grupo Sexy Fi tem estilo mais voltado para o indie-eletro, sem se desgarrar das raízes do rock. O primeiro CD foi gravado em Chicago, nos Estados Unidos, produção independente dos integrantes, e está disponível na internet desde 2012. A banda tenta buscar, até hoje, meios de resistir em cena sem uma gravadora. 38

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CIDADE NA VEIA Móveis Coloniais de Acaju: pluralidade do som e a cidade como inspiração

O CD foi lançado num evento dançante intitulado Festa na Casa dos Amigos. Outra iniciativa foi o clipe Pequeno Dicionário das Ruas, bancado pelo sistema crowdfunding, por meio do qual os fãs financiam os ídolos em troca de benefícios previamente combinados. A Geriatric Blues Band completa este ano 18 de estrada. Como sugere o nome, possui integrantes mais velhos e é especializada em blues. E faz sucesso na cidade mesmo sem contar com rotina profissional: todos ganham a vida com seus outros empregos. Luizinho conta que embora a atividade não seja a primeira ocupação dos integrantes, há dez anos o grupo faz apresentações autossustentáveis. “Costumo dizer que não pagamos mais para tocar. E não nos dedicamos mais porque temos as outras atividades”, salienta. “Foi uma forma de nos divertirmos que permaneceu e agora está atingindo a maioridade”, brinca o saxofonista Paulo Coelho, administrador de empresas. Aos 63 anos, com dois netos, Coelho reconhece que existe muita gente talentosa no meio, mas acha que, apesar do crescimento dos grupos, Brasília ainda não possui casas noturnas suficientes para que as pessoas façam uma carreira consolidada na cidade.

“No nosso caso, não temos preocupação com o mercado, mas sabemos que há talentos despontando”, acentua. Ele credita essa boa safra ao fato de a capital ter boas escolas, como o Clube do Blues ou a Escola de Música de Brasília. “Temos músicos que se formaram aqui e hoje tocam com as melhores bandas do país, como os guitarristas Celso Salim e Dillo Daraújo.”

Capital da música

Em meio a esse caldeirão cultural, há quem considere impróprio o apelido de capital do rock dado à cidade. “Brasília, hoje em dia, está mais para capital das bandas, da formação de grupos de jovens de vários estilos. Prefiro dizer que, por congregarmos pessoas de todos os estados brasileiros, vivemos uma efervescência musical, mesmo ainda tendo o rock como a primeira coisa que vem à cabeça da maioria”, observa o produtor cultural Carlos Moreira, que hoje agencia cinco bandas de Taguatinga. “Essa coisa de definir a cidade como capital de um determinado estilo musical depende muito do que está na moda. Inclusive porque temos também muitos talentos artísticos individuais”, diz o musico Eduardo Rangel. Ele foi vencedor do 7º Prêmio Sharp de Música (atual prêmio da


FOTOS SARA APAZA

MÚSICA

Música Brasileira), teve músicas gravadas por vozes do naipe de Edson Cordeiro e Renata Arruda e está lançando um álbum com participação de Leo Gandelman, Kiko Pereira e Torcuato Mariano. O boom dos anos 1980 serviu para estimular a criação dos grupos, mas não os atrapalha, nem leva a comparações com a época, em que o país vivia seu processo de redemocratização e as próprias bandas compunham um ambiente de transformações. “O pessoal dos Paralamas e da Legião são referência para nós, mas sabemos que o tempo era outro”, afirma Frango. Os mais antigos, por outro lado, não escondem uma ponta de orgulho com as novas gerações. “Festivais como o Porão do Rock ajudam a criar uma integração entre as antigas e novas gerações de roqueiros. A forma como nesses eventos o pessoal se aproxima de nós, sempre respeitosa e bacana, para falar sobre como se espelharam nos Paralamas para começar a tocar já diz tudo”, revela João Barone, baterista do Paralamas, que tem parentes e frequenta bastante a cidade, onde se iniciou musicalmente. O festival reúne todos os anos jovens do país inteiro, a partir de uma iniciativa conjunta das produtoras For Rock Promoções e G4 Produções e de 15 bandas de Brasília.

SEGUNDO EMPREGO Paulo coelho e o Geriatric Blues Band: prazer de tocar sem a pressão do cachê

Sediado na área comercial da Quadra 207 Norte, no Plano Piloto, o local conhecido como Porão do Rock oferece várias salas de ensaio para bandas, desde 1994. Ali interagem artistas de várias idades e estilos. “À medida que crescia a presença de músicos no espaço, era inevitável que a troca de ideias fosse dar origem a algo maior e mais representativo e assim, nasceu o festival”, conta o músico Murilo Santos, que acompanha os trabalhos desde o início. Segundo ele, o festival é importante para a cidade por mostrar-se como um movimento que desenvolve a cena musical independente. “Durante os dias em que são realizados os shows, a galera se ­reúne para criar estratégias, de forma a criar condições profissionais e de desenvolvimento de toda uma cadeia produtiva da música independente e de revelação de novas bandas e artistas.” Um sucesso recente, até porque já tocou com várias dessas bandas, é a vencedora da edição de 2012 do programa The Voice Brasil, da TV Globo, Ellen Oléria. Brasiliense, ela conhece bem os percursos pelos quais é preciso passar para se chegar ao estrelato. “Temos aqui músicos de qualidade. Acredito que por não possuirmos o atrativo do mar, os adolescentes desde cedo se enfurnam em estú-

dios. É uma pena que sempre vão embora porque ainda não conseguem projetar-se nacionalmente”, reclama a cantora, para quem isso acontece por que a produção de eventos na capital não dá conta da demanda: “Falo de eventos contínuos, que criem um espaço permanente de exposição da boa e variada música brasiliense”. E porque tudo em Brasília começa e acaba muito rápido, sem dar tempo e chance para o público e para os artistas. O secretário de Cultura do Distrito Federal, Hamilton Pereira, garante que o governo local tenta fazer sua parte, mas reconhece que o trabalho ainda está no início: “Esses grupos despontam como reflexo da própria cidade, que é espelho cultural do país. O governo apoia, mas sabemos que é preciso bem mais. Temos pautada uma política de diálogo com a sociedade que venha a permitir uma ação cultural mais ampla, com ampliação dos espaços, apoio a artistas e, sobretudo, para propiciar leque maior de opções ao público”, argumenta. Para Frango, do Galinha Preta, o governo local até estimula os eventos, mas falta uma mudança de cultura também por parte dos próprios músicos. “Banda é estrada, é luta, é correria. E a galera precisa ter mais consciência disso.” REVISTA DO BRASIL

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LITERATURA

O creme do

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THE NATIONAL TRUST

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or falar em detetive e Deus, Agatha Christie­só vendeu menos que a Bíblia. Daí que ignorar o assunto seja... um crime. Investiguemos as pistas dessa coqueluche. O arroz com feijão é um assassinato, a escrotice suprema que suscita uma reação atávica de repugnância e fascinação. Eis a pergunta crucial: quem matou o morto? Uma implicação traiçoeira é o risco de se folhear distraidamente um romance policial de trás para frente na livraria: o nome do assassino aparece sempre na última página. A polícia parece ter sempre existido, mas, na acepção contemporânea do termo, só surgiu no século 19 – e os romances policiais no cangote dela. Durante a maior parte da história humana, o crime foi considerado uma questão entre indivíduos, que podia ser negociado e resolvido entre as partes. Por vezes, rolando um “olho por olho, dente por dente”. Com o advento do Poder Judiciário e de entidades como promotor e procurador, se consolida a ideia de crime como uma infração às leis do Estado – e do criminoso como um inimigo público. Em 1800, os investigadores franceses eram recrutados entre ex-condenados. Um dos primeiros criminalistas foi um dos criminosos mais maledettos de todos os tempos – Vidocq. Uma espécie de Bin Laden daquela época, se regenerou e fundou a Sûreté Nationale (Segurança Nacional, uma força institucional) e uma pioneira agência de detetives particulares. Os escritores Balzac e Victor Hugo falaram dele, e o cinema calcificou-o sob as banhas de Gerard Depardieu.

BESTSTARPHOTO.COM

Há quem diga que tudo começou quando Caim matou Abel e acabou apanhado em flagrante – uma covardia, pois o detetive era Deus. E as histórias policiais viraram a literatura mais popular do planeta Por Paulo Nogueira Dashiell Hammett: seco e direto

Agatha Christie só vendeu menos que a Bíblia


LITERATURA

Outra circunstância decisiva: a aparição da imprensa de massa, na Inglaterra e Estados Unidos, com jornais populares de grande tiragem. Eles satisfaziam o apetite dos leitores pelo suspense e o prazer mórbido da desgraça alheia. Por outro lado, as histórias policiais tranquilizavam o público com o fato de que os maus eram sempre descobertos e punidos.

Arthur Conan Doyle é o pai de Sherlock Homes

FOTOSIMAGENES.ORG/C.1930

Edgar Allan Poe viveu pobre. Hoje é ícone midiático

CHARLES SMELDON

Antes e depois de Poe

Revistas especializadas – como a britânica Strand e a norte-americana Black Mask – emplacaram a chamada pulp fiction, com folhetins que faziam os leitores salivar. Aí estrearam os contos de Sherlock Holmes. Depois, as histórias se expandiram em romances. Como disse o intelectual britânico Gilbert Keith Chesterton (1874-1936): “A história longa é mais eficaz, sob um aspecto nada insignificante: torna possível perceber que um homem está vivo antes de morrer”. Parece uma justiça poética que o pai do romance policial seja o norte-americano Edgar Allan Poe. Ele passou seus 40 anos de vida mais morto do que vivo e numa pindaíba só. Hoje, é ícone midiático. Tem a série The Following (no canal Warner), sobre uma seita de carniceiros inspirados em Poe. Tem Contos de Edgar (dirigida por Fernando Meirelles). Tem a homenagem de Tim Burton ao poema O Corvo, de Poe (traduzido por Machado de Assis e Fernando Pessoa), no desenho animado Frankweenie. Acreditem se quiser: até Zé do Caixão babou por ele. Arthur Conan Doyle reconheceu a paternidade biológica de Poe. Doyle era um clínico geral recém-casado que resolveu dar um rolezinho na literatura – afinal, de médico e de louco ele tinha bastante. Baseou seu investigador num cirurgião escocês chamado Joseph Bell, célebre por diagnósticos infalíveis. Hoje, o lar de Sherlock em Londres – Baker Street, 21-B – é museu do personagem e atração mais visitada do que o Big Ben. A popularidade de Holmes e Watson (por sinal, em nenhum dos quatro romances e 56 contos aparece a frase “elementar, meu caro Watson”) era tanta que, depois de matar Sherlock numa aventura, o autor se viu obrigado a ressuscitá-lo, para deixar de ser besta. Em 2008, uma sondagem indicou que mais da metade dos britânicos (58%) pensa que Holmes era uma pessoa real, e não um personagem de ficção. E aí floresceu a era dourada do policial. Estatisticamente, as mulheres não são grandes tietes do gênero. Contudo, alguns dos melhores autores policiais são do sexo feminino. Agatha Christie vendeu até outro dia 2 bilhões de exemplares, em 103 idiomas. OK: o estilo dela é tão rudimentar que até aquele tradutor do funeral de Mandela conseguiria vertê-la. Aliás, a

ILUSTRES TRADUTORES O Corvo, de Edgar Allan Poe, ganhou versão em português de Machado de Assis e Fernando Pessoa

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LITERATURA

Marcos Palmeira deu vida nas telas a Mandrake, personagem de Rubem Fonseca

Ed Mort, de Luis Fernando Verissimo, virou filme estrelado por Paulo Betti

própria Agatha se definiu como “uma fábrica de salsichas”. Os críticos metidos que me perdoem: a verdade é que ninguém jamais gostou das obras dela – exceto os zilhões de leitores. Uma peça da chamada Duquesa da Morte, A ­Ratoeira, está em cena desde 10 de outubro de 1952 (o elenco já vai na terceira geração). O Sherlock dela é Hercule Poirot, um belga cheio de truques e triques: “Tenho uma atitude burguesa em relação ao assassinato: desaprovo-o”. A vida de Agatha Christie­ incluiu um mistério: em 1926, já mais colunável do que a rainha, ela simplesmente sumiu. Centenas de agentes e 15 mil voluntários (sem falar em cães adestrados) passaram o país a pente fino – e nadica de nada. Depois de 11 dias, foi encontrada num hotel jeca. Aparentemente amnésica, se registrara sob o nome de Tessa Neele – nome da amante de seu marido, que lhe pedira o divórcio duas semanas antes. Agatha nunca deu um pio sobre o assunto. O jornalista Luís Antônio Giron é apreciador de romances policiais tanto pelo que trazem de lazer como pelo jogo narrativo, fonte de um prazer que faz do estilo “a verdadeira literatura de autoajuda”. O romance policial, segundo Giron, é recomendável como estímulo à leitura e também estimula a escrita. “Nada melhor que um romance desse tipo para fazer um escritor... escrever.” Ainda que gênero se valha de fórmulas que levam, com frequência, a estereótipos. “Os romances policiais que subvertem o estereótipo são os mais interessantes. Autores ­atuais como Michael Connelly, James Ellroy e Dennis Lehane conseguem surpreender o leitor com temas atuais e a capacidade de explorar a violência do ser humano”, diz.

Nunca me esquecerei de você

Enquanto isso, nos Estados Unidos, um saído da agência de detetives Pinkerton se preparava para dar um peteleco na bolha de sabão do policial inglês, que descambara numa caricatura de si mesmo. O assassino podia não ser sempre o mordomo, mas quase. A vítima era um oficial reformado da Marinha, rechonchudo e gagá. O detetive era um esnobe que fumava cachimbo, jogava bridge e tomava chá com o mindinho empinado. O crime acontecia numa casa de campo, geralmente na biblioteca e o facínora, ao escapulir pela janela, espezinhava os canteiros e imprimia suas pegadas com tal veemência que até Mister Magoo poderia segui-las – o criminoso usava uma perna de pau e, no outro pé, calçava um ­coturno número 48. Dashiell Hammett fez uma lipoaspiração naquilo tudo. Levou o crime para o meio da rua, que era seu hábitat. Para ele, o assassinato não era uma espécie de filatelia, mas uma profissão, praticado com um 42

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motivo concreto, nunca para combinar com a gravata. E nada de enxugar gelo: carros explodiam com passageiros dentro, balas esfacelavam miolos e inocentes morriam de morte matada. Tudo num estilo seco como o seu dry martini. Por sinal, o detetive de Hammett, Sam Spade, não dava colher de chá nem para as mocinhas mais ergonômicas. No final de O Falcão Maltês, decide entregar a periguete prevaricadora à polícia. “Mas você me ama!” “Talvez, mas e daí? Não vou bancar o otário por sua causa. Com sorte, sairá da prisão com vida, daqui a 20 anos. Estarei esperando. E, se a enforcarem, nunca me esquecerei de você.” Raymond Chandler, por sua vez, estudou em colégios finos da Inglaterra. Voltou para Los Angeles com 25 anos, e teve um chilique com a mania norte-americana de cuspir no chão. Ao contrário de ­Hammett, não entendia bulhufas do submundo, mas devorou tratados sobre direito penal, armas e venenos. Só estreou aos 45 anos, mas aí já era um ás no assunto. Ironicamente, desprezava o leitor típico do gênero: “Não sabem nada, não querem aprender e o que leem lhes entra por um ouvido, atravessa o vácuo e sai pelo outro”. O detetive dele, Philip Marlowe, não é um cético cínico como Sam Spade. É uma espécie de santo cuja auréola consiste num três-oitão. Convive com a escória, mas sai sempre impoluto: neste mundo imundo, alguém tem de permanecer puro e duro. Ou seja: Marlowe tinha tudo para ser um chato de galocha, mas é um quixotesco pragmático – sabe que o mundo não lhe dá pelota. Ficava assim evidente a dimensão moral que o policial podia alcançar. E, por mais diferentes que fossem, no cinema um mesmo ator imortalizou Sam Spade e Philip Marlowe: Humphrey Bogart (cuja primeira providência foi transformar os dois em... Humphrey Bogart). Herdeiro da dupla americana é o belga Georges Simenon, criador do inspetor Maigret. Simenon enxugava três garrafas de vinho por dia, além de um aperitivo antes de cada refeição e de um conhaque para começar o trabalho. Escreveu 192 romances, 158 novelas, memórias e dezenas de contos – sem mencionar uma vasta obra com 27 pseudônimos diferentes. E arrumou tempo para transar com cerca de 10 mil mulheres (devidamente catalogadas). Terminava um livro a cada oito dias. E Maigret parece mais interessado em seu cachimbo do que no universo. De sua escrita tipo torpedo, volta e meia brotam sacadas avassaladoras sobre a alma humana – raramente flor que se cheire. Ficou para trás o tempo em que o gênero policial era o sem-teto no panteão da literatura universal. O


LITERATURA

melhor exemplo foi a adesão de um acadêmico pimpão como Umberto Eco. Com 50 anos, o semiólogo italiano publicou um policial situado na Idade Média: O Nome da Rosa. Foi um gol de placa, que vendeu até agora 20 milhões de exemplares. Contém um tributo explícito a Conan Doyle, na figura do franciscano detetive Guilherme de Baskerville (alusão ao Sherlock de O Cão dos Baskerville). No século 21, o gênero globalizou-se. Despontou, por exemplo, o nordic noir, ou o policial escandinavo. Puxando a fila, Stieg Larsson causou, passando o rodo em 60 milhões de exemplares da trilogia Millennium, estrelada por uma hacker com um dragão tatuado nas costas. Larsson morreu prematuramente, aos 49 anos, mas deixou uma prole do balacobaco, com nomes impronunciáveis e atravancados de consoantes: Camilla Lackberg, Nibs Jakkebtif, Klas Ostren, Lars Kepler. No Brasil, autores apaparicados como Luis Fernando Verissimo e Rubem Fonseca deitam e rolam nos policiais. O primeiro talhou o detetive Ed Mort, um matusquela que divide seu escritório em Copacabana (tão minúsculo que ele chama só de “escri”) com 117 baratas e um rato albino, Voltaire. Já ­Rubem Fonseca entende do riscado: foi comissário numa delegacia carioca. Seu protagonista é Mandrake, um

advogado criminalista chegado a um vinho português no capricho. Ed e Mandrake fuçaram tanto no cinema como na TV, confirmando uma tendência que não vem de hoje: desde a invenção da câmera de filmar, um em cada três de todos os filmes e séries de TV já rodados são policiais. E ninguém explicou melhor o assunto do que o mestre do suspense, Alfred Hitchcock: “Não sei se aprovo a atual onda de violência cinematográfica. Sempre achei que o crime precisava ser tratado com delicadeza. E que, com a ajuda da TV, deveria ser levado para dentro do lar, que é o lugar dele. Alguns dos crimes mais lindos foram domésticos – cometidos com doçura, em locais simples e acolhedores como a mesa da cozinha ou o banheiro. Nada me revolta mais que o assassino de rua, capaz de matar até pessoas a quem não foi formalmente apresentado. Ora, o crime deveria ser uma experiência agradável, inclusive para a vítima”.

“SE A ENFORCAREM, NUNCA ME ESQUECEREI DE VOCÊ” Humphrey Bogart interpreta o detetive Sam Spade na versão de Hollywood para O Falcão Maltês, de 1941

É crime não ler

Uma Certa Justiça, PD James O Assassino Dentro de Mim, Jim Thompson O Longo Adeus, Raymond Chandler A Chave de Vidro, Dashiell Hammett O Talentoso Ripley, Patricia Highsmith REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

BRANQUEAMENTO Em Itaúnas Velha, o padroeiro era São Benedito. Com a chegada de descendentes de europeus e de padres italianos, foi mudado para São Sebastião

Será o Benedito 44

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á muitas formas de se contar uma história. Diz ­ a sabedoria popular que quem conta um conto aumenta sempre um ponto e, depois de um tempo, o que se tem é uma versão lapidada pela imaginação valendo como oficial. Verdade. Em Itaúnas, no litoral norte do Espírito Santo, já quase na Bahia, são três as versões verdadeiras sobre o soterramento da vila, nos anos 1970, que levou os moradores a migrar para a outra margem do rio. O fato é relembrado todos os anos, em uma festa de devoção e alegria, redesenhando com delicadeza um Brasil remanescente da época colonial, que se fez pela via da escravidão, quando era preciso cantar no tronco para não sucumbir à tristeza. A ponte suspensa acima do rio I­ taúnas está enfeitada de flores e gente. O cur-

to caminho de ligação entre a vila e as dunas, em janeiro, é mais que trajeto de passeio. Debruçadas sobre os corrimões, as pessoas fitam o céu e esperam a chegada dos barcos com os santos. O som dos rojões faz tremer a base de concreto e atiça a ansiedade das crianças. Uma embarcação a despontar no horizonte é um ponto colorido em meio às águas escuras. Itaúnas, em tupi-guarani, significa “pedras pretas” – e são elas que compõem aquele chão de rio. O grupo de Ticumbi (dança ou brincadeira típica da região, herança dos escravos) ocupa as canoas, vestido a caráter para o festejo tradicional do lugar. “Venho por devoção. A minha festa mesmo é no dia 1º de janeiro, mas apareço por aqui todo ano pra participar com o meu Ticumbi.” Tertolino B ­ albino, 80 anos, é de Conceição da Barra – municí-

CAROLINA CONTI

RICARDO TELES/PULSAR IMAGENS

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São Benedito foi resgatado e convive em paz com São Sebastião

Na Festa dos Padroeiros em Itaúnas, no litoral capixaba, os santos se entendem. E o acordo é celebrado por ritos e ritmos. Um registro do sincretismo religioso nacional Por Carolina Conti

ou o Sebastião? REVISTA DO BRASIL

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FESTA Os santos chegam à vila de Itaúnas numa embarcação enfeitada

PAULO SILVA

pio a que pertence o distrito de Itaúnas. Mestre da brincadeira na cidade natal, no mês de janeiro seu Terto atravessa os 25 quilômetros de estrada de terra para acompanhar de perto a chegada de São Benedito e São Sebastião. A fala contida acompanha os gestos. O olhar é aguado feito o rio, vai para além desse tempo e só aquieta no presente quando alguém o traz de volta, num abraço, pedindo a bênção. O percurso dos santos completa-se com os pés na terra. Depois de ancorar na margem oposta à cidade, a que faz menção ao passado, o grupo se soma às pessoas e segue em procissão até a Igreja de São Benedito. Itaúnas Velha, como a chamam, era uma vila de pescadores entre o mar e o rio, rodeada de dunas. Um forte vendaval, cuja primeira explicação se justifica pelo desmatamento, ocasionou a mudança para o atual espaço. Em determinadas épocas do ano, é possível encontrar os resquícios da cidade antiga, como o mastro de São Sebastião, em meio à vasta extensão de areia. Se para um visitante a paisagem é uma só, ao nativo é natural reconstruir a história e apontar com firmeza o antigo cemitério, onde hoje só se vê a vegetação rasteira. O padre mineiro Dário Ferreira da ­Silva é o convocado para celebrar a missa de São Benedito, na rua que margeia a igreja do santo. Sob o sol escaldante capixaba, de túnica colorida, estampa étnica, fala – por quase uma hora – sobre a simplicidade de São Benedito e de Jesus. Depois discorre: “Celebro a missa há dez anos, fui chamado por um professor amigo. O padre daqui não faz porque diz que o espaço é condenado, não foi abençoado e a seu lado funciona uma lanchonete”. Mas o povo de Itaúnas acata o vigário, negro como o santo. E a lanchonete... Bem, a lanchonete é providencial: “São Benedito não chegou a ser padre. Por conta do preconceito, trabalhava na cozinha do mosteiro. É conhecido por ser o padroeiro das cozinhas”. No altar, figura também como destaque um retrato de Antero dos Santos, que levantou a igreja, devoto, morador de Itaúnas Velha e fundador do Ticumbi em Itaúnas Nova. Ao completar 70 anos,

Antero delegou ao filho, João de Deus, a organização do grupo. Desde então, cabe a ele a escolha dos integrantes, a convocação para os ensaios gerais na roça e para eventos fora da cidade. “A gente canta e dança em devoção ao santo, mas tem também teatro. O mestre de bamba desafia o outro, na espada, e depois, arrependidos, eles se ajoelham diante de São ­Benedito e pedem perdão”, diverte-se. Todos os anos Itaúnas se fabula, fazendo emergir da terra o tesouro de uma história calcada em lendas, mistérios antigos e fé. Durante os festejos, a paisagem se transmuta. Naqueles dias, quem por ali circula é visitado pela fantasia. ­Wanderléia Campos da Paixão, a Dekinha, é uma das pessoas que contribuem para o encantamento. Dona de camping, em dia de São Sebastião ela se veste de

“Benedita de Catita” e remonta a segunda versão da história do soterramento. “Em Itaúnas Velha, o padroeiro da cidade era São Benedito. Mas com a chegada de descendentes de europeus e a vinda, inclusive, de padres italianos, o padroeiro foi mudado para São Sebastião. Não havia concordância no fato de o padroeiro ser um negro. Do dia para a noite, o santo foi tirado do lugar, jogado no rio, e substituído por São Sebastião”, denuncia. “O povo, crente em São Benedito, ficou fulo e resolveu pregar uma peça: substituíram o vinho sagrado, sangue de Cristo, por cachaça e alcoolizaram o padre, que fez a missa bêbado. Passado o pileque, ele disse que nunca mais apareceria naquela cidade, rogou uma praga e o resto já se sabe.” A personagem Benedita, na verdade, faz menção a uma mulher que viveu em


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Itaúnas Velha e era devota de São Benedito. Conhecida pela alegria e por um traço característico – um único dente na boca. Aconteceu de, um dia, durante a produção de farinha, quebrá-lo. Benedita resolveu juntar dinheiro e comprar um dente de ouro. Não exatamente porque fosse feliz, ria porque decidira não ficar triste, reinventou-se, e é ela quem se faz presente, na representação de Dekinha, para contar a história do padroeiro. A atriz se descobriu em um curso de teatro e acabou por criar alguns personagens. Tia Verdinha e Ser da Mata tratam de reciclagem e meio ambiente, principalmente em oficinas a céu aberto, realizadas na escola municipal Ciranda Cirandinha. A terceira versão da história que culminou na cidade submersa quem conta é a também Wanderléia: “Ducatório era

AFRO CATÓLICO O Ticumbi, dança ou brincadeira típica da região, é herança dos escravos

uma espécie de Chico Xavier da região. Curandeiro, bom aconselhador, muita gente procurava por ele. Um dia, o filho arrumou uma confusão no bar e o policial matou ele. O outro filho, por vingança, pôs fim à vida do policial. Depois da desgraça na família, Ducatório disse que nunca mais ajudaria ninguém de Itaúnas e também iria embora da cidade. Rogou uma praga e, tempos depois, aconteceu de a vila ser invadida pela areia.” Imaginário popular ou fatos consumados, por via das dúvidas Itaúnas repousa sob a vigília de São Benedito e São ­Sebastião. Embora o dia do santo negro seja 5 de outubro, o povo aproveita o ensejo da festa em janeiro, e reverencia os dois. A procissão canta “São Benedito/ que é tão simples como nós/ sabe quem somos/ vai ouvir a nossa voz”, e é a mesma

que roga diante do soldado romano morto por se negar a abandonar a fé cristã. O “alarde”, representação teatral na praça, remonta o caso do roubo de São Benedito e, depois, à reposição – em paz – que o devolveu ao posto de destaque. Faz-se noite quando as pequenas casas acendem suas luzes. Finda a missa, a praça pulsa no ritmo do congo, do jongo, do ticumbi, do caxambu. Todos se reúnem para celebrar a vida, experimentando o sincretismo, traço do Brasil, como numa fotografia em branco e preto. No dia seguinte, feito poeira vítima de um sopro, a realidade toma a vez: os lixeiros recolhem o crepom dos enfeites, as crianças inundam as ruas e torcem para que o próximo ano chegue depressa. E não chega. Na vila de pescadores, viver de enquantos é o que se faz de fevereiro a dezembro. REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Que filmes estavam em cartaz em 1964? Que livros foram lançados? E os discos? Quantas músicas foram proibidas pela censura na década de 1960? A exposição Em 1964 – Arte e Cultura no Ano do Golpe, em cartaz até 23 de novembro no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, propõe uma imersão nesse período da história do Brasil. A mostra, parte da programação anual do instituto, discute,

ACERVO MILLÔR FERNANDES/INSTITUTO MOREIRA SALLES

1964 e seus efeitos

FRANCISCO ALBUQUERQUE/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES

Campanha para a Kombi

por meio de obras marcantes da literatura, da fotografia, da música e do cinema, os 50 anos do golpe que instalou a ditadura no país e seus efeitos na produção artística e intelectual. Estarão expostas fotografias que o cineasta Jorge Bodanzky fez em Brasília no momento do golpe; imagens da vida cotidiana feitas por Chico Albuquerque e Henri Ghilherme Lobo e Tess Amorim

Descobertas Leonardo

(Ghilherme Lobo) é um adolescente cego em busca de sua independência. Ele quer se libertar da supervisão permanente dos pais, quer fazer intercâmbio e quer, enfim, se descobrir. Mas sua melhor amiga, Giovana (Tess Amorim), só quer continuar ao seu lado, ditando a lição que o professor passa na lousa e levando o garoto para casa. Mas a chegada de um novo aluno na classe muda definitivamente a vida deles. Gabriel (Fabio Audi), chama a atenção de Léo de uma 48

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forma diferente. A história do filme Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que acaba de ser premiado no Festival de Berlim, encanta pela simplicidade e delicadeza que trata sobre a descoberta da sexualidade nesta fase tão conturbada da vida. A obra, ingênua na medida certa, não explora o sexo, mas os conflitos comuns a essa fase. O diretor Daniel Ribeiro também fez os roteiros e dirigiu os curtas Café com Leite (2008) e Eu Não Quero Voltar Sozinho (2010), além criar, em 2011, o Projeto Eu Sou Gay, contra atos homofóbicos ocorridos no início daquele ano. O longa estreia em abril.


Passeata de calouros da Universidade de Brasília, em 1965

Alunos da UnB ao receberem a notícia do golpe militar através do rádio. Em primeiro plano, Mario Balaban; mais atrás, Jorge Bodanzky

Ballot; e um ensaio que Maureen Bisilliat fez sobre Iemanjá. O destaque da área de fotografia fica por conta da Caravana Farkas, projeto em que Thomas Farkas reuniu jovens cineastas para documentar a cultura brasileira na década de 1960. Fotos de bastidores e o documentário Viramundo, de Geraldo Sarno, também serão exibidos. O público vai conferir músicas de Tom Jobim, Baden

JORGE BODANZKY/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES

FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO COLEÇÃO JOSÉ RAMOS TINHORÃO ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES COLEÇÃO JORGE BODANZKY/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES

Cartola e Nelson Cavaquinho

Powell, Nara Leão, Radamés Gnattali e conhecer os originais dos livros A Paixão Segundo G.H. e A Legião Estrangeira, de Clarice Lispector, além das capas da revista PifPaf, de Millôr Fernandes, entrevistas e shows. De terça a domingo, das 11h às 20h. Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea. Programação completa em www.em1964.com.br

Efervescência musical

Objetivo: salvar o mundo

O ano de 1973 deixou marcas profundas na música popular brasileira. Foi quando o país viu Ney Matogrosso rebolar ao som de O Vira e Odair José cantar o então polêmico refrão “pare de tomar a pílula”, de Uma Vida Só. Também foi quando Gonzaguinha, Francis Hime, João Bosco, Luiz Melodia, Sérgio Sampaio e Raul Seixas lançaram seus primeiros LPs. O livro 1973 – O Ano que Reinventou a MPB (Sonora Editora, 432 pág.), organizado pelo jornalista Célio Albuquerque, traça um panorama desse ano tão frutífero para a música nacional. São cerca de ­ 50 discos resenhados por cronistas musicais, como Tavito, Rildo Hora, Antônio Carlos Miguel, Silvio Essinger e José Teles, entre outros. R$ 59,90.

Aquecimento global é assunto muito sério e, por isso mesmo, precisa ser discutido com as crianças. Planeta Quente (Ed. Cosac Naify, 36 pág.), da francesa Sandrine Dumas Roy, trata o tema de forma leve e divertida. Quando percebem os riscos que estão correndo, os animais decidem se unir para combater as causas do problema. Com a Terra esquentando tão rápido, na Austrália o canguru não tem mais onde se esconder porque o mato parou de crescer e um lobo do Polo Norte ficou preso em uma calota polar. Eles acabam descobrindo que um dos culpados são as vacas, que soltam gases à beça e contribuem para o aquecimento global. O livro, bem-humorado e com 16 ilustrações de Emmanuelle Houssais, mostra como eles vão resolver a questão. R$ 35. REVISTA DO BRASIL

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MARIA ANGÉLICA FERRASOLI

Peixe Grande

Eduardo Coutinho andou por muitos caminhos da memória. Seu cinema não privilegiou a ficção, apenas o real. Um real que revelou meu pai, “personagem” de Peões, um homem romântico

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ivo de entrevistar pessoas e depois escrever suas histórias, como repórter e, mais recentemente, pesquisadora e memorialista. Por isso nunca me senti personagem, e foi com muita surpresa – e alguma estranheza, confesso – que ouvi: “Esta é a primeira vez que um personagem de filme meu se manifesta!” A frase foi dita pelo cineasta Eduardo Coutinho, no lançamento do filme Peões, em São Bernardo, em 2004. Não trazia crítica nem elogio, mas, também, surpresa, e se referia a um comentário que enviei para a Folha de S.Paulo lembrando a um articulista que nem toda herança pode ser medida pela conta bancária, como queria fazer supor no caso dos metalúrgicos do ABC retratados pelo documentário de Coutinho. Na verdade, entrei nessa história por acaso, porque o “personagem”, de fato, era meu pai, Antônio Ferrasoli, um homem apaixonado por política e sindicalismo e obstinado em sua luta pelos direitos dos trabalhadores. Eu já sabia, então, que a herança que ele me deixaria seria imensa, e sua morte, menos de dois meses depois do lançamento do filme, só veio confirmar essa certeza. Naquele dia terrível em que meu pai foi enterrado, Coutinho telefonou para mim. Não me lembro das palavras, mas disse que tinha acabado de receber a notícia e demonstrava tristeza. Devo a ele a sensibilidade de ter eternizado num documentário o grande amor que sentia, e sinto, pelo meu velho Tom. Uma relação de afeto tão grande que até hoje, quase dez anos depois, ainda não me deixa rever o filme. Por isso, quando soube da morte do cineasta, de forma tão trágica e envolvendo seu filho, fiquei sem saber o que pensar. Triste, claro. Mas de novo com aquela incômoda sensação de estranheza. Durante a gravação final de Peões da qual meu pai participou, Coutinho pediu que ele se reconhecesse no livro Imagens da Luta, no qual estão as maravilhosas fotos das assembleias na Vila Euclides. Lá estava ele, quase na beira do palanque. Ao se ajeitar na cozinha do velho sobrado em que meu pai vivia, os técnicos da equipe ficaram fascinados com a mesa, sobre 50

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a qual descansavam sempre moedas, papéis, dicionário, selos, boletins. Em algum momento meu pai mostrou a eles um tal Hino do Metalúrgico, que pelo jeito só ele e o autor conheciam... Um texto cifrado com nomes de antigos filmes famosos, transformado em carta de amor. Coutinho não perdeu a deixa: o senhor então é um homem romântico... E falaram sobre minha mãe, já falecida, o medo dela quando o marido participava das greves. Eu, mais uma vez surpresa: e não é que meu pai, aquele ativista-hiperrealista-petista-quasecomunista era mesmo um adorável romântico? Eduardo Coutinho andou por muitos caminhos da memória. Seu cinema não privilegiou a ficção, apenas o real. Mas o real recontado já não é matéria bruta, porque entra em cena o presente. Num encontro realizado no Sesc há alguns anos sobre História Falada, ele declarou: “Às vezes ouço falar que a busca das histórias de vida dos outros é uma forma de nos conhecermos. Eu, retrospectivamente como sempre, sinto que o que me ajuda a falar com as pessoas é que eu não tenho certeza de quem eu sou. Para o filme é bom, para a vida não sei. Justamente, acho que eu vou buscar um pouco da minha identidade no outro”. Considerada a porção generosa que sempre deixou ao “outro” como protagonista e a produção intensa a que se entregava nos últimos anos, dá para imaginar que essa busca não teria se encerrado não fosse a chegada da morte. Cruzar a ponte entre o eu e o outro é sempre um caminho sem volta, e Eduardo Coutinho deu voz a muita gente, sem concessão ao julgamento ou ao panfletário – gente anônima, que faz a história, mas nela não é reconhecida. Talvez por isso, em seu velório, tantos “personagens” tenham ido se despedir. Pessoas que abriram seus corações para lhe contar suas vidas e podem ter visto nele o olhar compreensivo do outro. Como no filme Peixe Grande, só que pelos curiosos caminhos da memória – que não é nem real nem imaginária, mas pulsação e reconhecimento.


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