Revista do Brasil nº 094

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MUNDO ESPECULATIVO Agências de risco: ‘bom’ é o México. Brasil é ‘mau’

nº 94

OUTRA DITADURA O mercado pisoteia os cravos de Portugal

abril/2014 www.redebrasilatual.com.br

PÁTRIA SEM CHUTEIRAS A alegria do futebol e a luta por um país menos desigual cabem no mesmo espaço

Menino exibe seus truques com a bola em Teresina


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ÍNDICE

EDITORIAL

6. Na Rede

Crianças jogam futebol na recéminaugurada BrasÌlia

Notas que foram destaque da RBA no mês que passou

10. Brasil

Copa: o Brasil ganha com ela, ou ganhará quem aposta contra?

18. Trabalho

Centrais cobram mais atenção do governo, mas atentas a outubro

22. Tecnologia

O encontro global em São Paulo e seu legado para o futuro da web

24. América Latina

Para agências de risco: o Brasil é o errado, e certo é o México Portugal: 40 anos depois, praga do mercado ameaça os Cravos

A gente não quer só Copa

32. Entrevista

BIRA CARVALHO/IMAGENS DO POVO

Como os trabalhadores dão vida aos livros de Luiz Ruffato

Meninos correm para pegar a pipa na Maré, Rio de Janeiro

36. Cidadania

Fotógrafos populares revelam um outro Rio de Janeiro

42. Cultura

Iara: filme desmonta tese de suicídio de musa da guerrilha

Seções Mauro Santayana

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Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Conto: B.Kucinski

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ARQUIVO/AE/1960

28. Mundo

T

em gente que adora futebol. Tem gente que não suporta. Tem os indiferentes ao jogo da bola, e também aqueles que só se ligam no assunto de quatro em quatro anos. Em tempo de Copa do Mundo, como agora. De uns tempos para cá, repetiu-se a expressão “não vai ter Copa”. Mas vai ter. De 12 de junho a 13 de julho, aqui no Brasil. Possivelmente com manifestações, que fazem parte do jogo. O jogo da democracia, que não começou em junho de 2013, nem terminará em outubro de 2014, quando o país escolherá seus novos governantes. Porque, apesar dos desperdícios, da desorganização e da incômoda presença da Fifa, não é a Copa a pedra no caminho do desenvolvimento. A Copa vai passar, a seleção pode ser hexacampeã – ou não. Os movimentos sociais, os sindicatos, a população, todos querem um país melhor para viver, quer segurança, oportunidades, emprego, educação. Essa pauta está na mesa há muito tempo. O país teve avanços, mas com ou sem Copa continua sendo um dos mais desiguais do mundo. Futebol se identifica com alegria, embora alguns só enxerguem o esporte como negócio – business, dirão outros. Para seus devotos, é uma arte encantadora e integradora como nenhum outro esporte, na maioria dos países em que é mais ou menos bem jogado. Na origem, no Brasil, embora de raiz europeia, o futebol logo se espalhou como opção popular de lazer. E também se mostrou como um espelho da sociedade em suas contradições e preconceitos, como deixaram claro alguns recentes episódios de racismo em estádios. Um problema que existia lá atrás, como demonstrava, por exemplo, o livro O Negro no Futebol Brasileiro, escrito por Mário Filho em 1947. Era jogo de bacana. Aliás, o país foi modelado durante muito tempo para ser dos bacanas. O cinquentenário do golpe, motivo para reflexão (e reedição farsesca de certas marchas), lembra também que o projeto de país forjado naquele momento excluiu a maioria e suprimiu liberdades que gradualmente foram reconquistadas nas três últimas décadas. O Brasil ainda é injusto e não consertou todos os estragos – e se vai ter Copa, que ela ajude a consertar alguns. Mas hoje pode gritar, apontar suas mazelas e fazer – como escreveu, também 50 anos atrás, o poeta Thiago de Mello – com que a liberdade seja “algo vivo e transparente, como um fogo ou um rio”. REVISTA DO BRASIL

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RÁDIOBRASILATUAL 93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio

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História a passar a limpo Para coordenador da Comissão da Verdade, Forças Armadas precisam se livrar de “uma carga” incompatível com seu papel no Estado

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coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Pedro Dallari, diz que as Forças Armadas são a única instituição do Estado brasileiro que ainda não assumiram responsabilidades pelos crimes contra os direitos humanos praticados durante a ditadura. Em entrevista a Oswaldo Colibri Vitta, na Rádio Brasil Atual, ele observa que a estrutura atual das Forças Armadas não tem nada a ver com a que participou desse processo. “Quanto antes passar a limpo essa história, antes se livrarão dessa carga. Não tem sentido essa omissão, pois sugere uma cumplicidade que não deveria haver.” O relatório da CNV será apresentado em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. A expectativa do atual coordenador é que o documento possa esclarecer as graves violações dos direitos humanos ocorridas não só durante a ditadura, mas entre 1946, com o início do governo de Eurico Gaspar Dutra, e 1988, ano em que foi promulgada a Constituição. A distância dos acontecimentos e a dificuldade de se obter provas da participação de militares e empresá-

Pedro Dallari: omissão

rios nos crimes cometidos obstruem a reconstrução da história do Brasil. E grande parte dos documentos do período da ditadura está concentrada nos arquivos das Forças Armadas. No entanto, Dallari conta que Exército, Marinha e Aeronáutica se recusam a enviar à comissão informações importantes sobre a entrada e a morte de presos políticos nas dependências do DOI-Codi. Segundo as instituições, os arquivos se perderam ou foram destruídos durante o regime. “As Forças Armadas no Brasil sempre se pautaram por um padrão de organização muito bom e de muita qualidade. Eu não consigo acreditar no argumento de que documentos teriam sido destruídos”, afirma. Para Dallari, não há mais espaço para argumentos de que as violações só foram causadas por excessos e ações clandestinas de alguns, sustentados pela instituição. “A tortura não ocorreu sem que os superiores soubessem. As estruturas de repressão foram montadas administrativamente, com recursos públicos e funcionários públicos.” Ouça a íntegra da entrevista em bit.ly/radio_dallari

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.

ANTONIO CRUZ/ABR

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MAURO SANTAYANA

O Brasil e a distorção econômica Encaminhar-nos para o modelo de subordinação e espoliação é o verdadeiro objetivo da campanha de contrainformação

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rescem, a cada dia, as evidências de que o Brasil está sofrendo solerte campanha de descrédito econômico, movida por interesses que envolvem de países estrangeiros a especuladores que vivem da manipulação da bolsa e da exploração predatória de juros no mercado nacional. Uma coisa é a “expectativa” dos “analistas” e “agentes econômicos”, os editoriais da The Economist, as matérias do El Pais, e os textos engendrados, pela imprensa mexicana, contra o Brasil, e dirigidas a outros países da América Latina, no contexto da defesa de um factoide, o da Aliança do Pacífico, que está fazendo água a olhos vistos. Outra é a realidade dos números, que desmente, a cada dia, o canto das cassandras que proclamavam a iminência de uma “tempestade perfeita”, que nos levaria, irremediavelmente, para o fundo do abismo em 2014. Recebemos, no ano passado, US$ 63 bilhões em Investimento Estrangeiro Direto. A economia cresceu “surpreendentemente” 2,3%, enquanto alguns vaticinavam que ficaria em cerca de 1%. A produção industrial aumentou 2,9% em janeiro, e foram criados mais de 260 mil empregos formais líquidos em fevereiro. As vendas no varejo continuam se expandindo, e a inadimplência está em retração. Segundo estudo publicado pelo Valor Econômico, na terceira semana de março, baseado em balanços de companhias de capital aberto, a maioria das empresas planeja manter ou aumentar seus investimentos este ano. Dos 15 grandes grupos analisados, nove, entre eles Pão de Açúcar, Ambev, Natura, Alpargatas e Magazine Luiza, pretendem investir o mesmo montante de 2013, e três vão aumentá-los. O conjunto das empresas de varejo e de consumo investiu quase R$ 13 bilhões no ano passado. É claro que não estamos isentos de problemas. O incentivo dado à fabricação e venda de automóveis, nos últimos anos, sem que se assegurassem fontes nacionais de energia – por meio de maior oferta de gás, liberação total da produção de etanol e biodiesel para

autoconsumo, estímulo ao uso de modelos híbridos e elétricos –, acoplado à diminuição da produção de petróleo devido à interrupção para a modernização e troca de plataformas, fez explodir a importação de combustíveis, afetando a balança comercial. A intensificação do processo de desnacionalização da economia, com a entrada de capital estrangeiro para a compra de empresas brasileiras – e nem sempre a construção de novas fábricas – tem nos levado, também, a aumentar, na mesma proporção, o envio de remessas de lucro para outros países da ordem de dezenas de bilhões de dólares, impactando fortemente o resultado de nossas transações correntes com o exterior. O consumo cresceu, nos últimos anos, com a entrada de milhões de pessoas para a nova classe média. Mas foi atendido, em parte, com o brutal avanço das importações de eletrônicos e eletrodomésticos, sem que se tenha negociado, nesse processo, com os fornecedores estrangeiros, o aumento do nível de conteúdo local. Alguns problemas, como a importação de combustíveis, tendem a ser solucionados, com a entrada em operação das novas refinarias e plataformas de petróleo que estão em construção e que deverão ficar prontas em 2015. As outras questões, de caráter estrutural e estratégico, têm de ser decididamente enfrentadas, sob a pena de se transformar em uma bola de neve nos próximos anos. O que não podemos é permitir que certas mentiras, à base de serem permanentemente repetidas, sem resposta eficaz por parte do país, acabem se transformando em incontestáveis verdades, para ponderáveis parcelas da sociedade brasileira e da opinião pública internacional. Estudo publicado pela OCDE mostra que, no México, apontado como a quintessência da Aliança do Pacífico, a renda está em queda acelerada e quatro em cada dez cidadãos estão passando fome. (Leia mais sobre o México à página 24) Encaminhar-nos para esse modelo, de espoliação econômica e total subordinação aos interesses de outras nações, é a meta – e o verdadeiro objetivo – de quem está por trás dessa campanha de contrainformação. REVISTA DO BRASIL

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redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

O mundo é meu

Em uma tarde de quarta-feira, o cantor, compositor, cineasta e artista plástico Sérgio Ricardo foi ao Cine São Luiz, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Era a estreia de seu primeiro longametragem, Esse Mundo é Meu, que tinha no elenco Antonio Pitanga, Léa Bulcão e Ziraldo, além do próprio diretor. “Foi o meu primeiro fracasso de bilheteria”, lembra Sérgio Ricardo. “Estávamos eu e dois amigos. Ninguém queria sair à rua.” Era 1º de abril de 1964. Sérgio Ricardo se tornou um autor de cinema mais conhecido fora do país, onde ganhou prêmios e participou de festivais. “Sou praticamente inédito no Brasil.” Esse Mundo é Meu conta duas histórias em paralelo: a de um metalúrgico branco (Sérgio), às voltas com sua mulher grávida, e a de um jovem engraxate negro (Pitanga, com 24 anos), que quer comprar uma bicicleta e conquistar a menina dos sonhos. bit.ly/rdb94_sergio

FOTOS REPRODUÇÃO

Pitanga tinha 24 anos na época do filme

Ziraldo, de padre, e Antônio Pitanga

A central de abastecimento está no Programa Nacional de Desestatização desde 1999

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LALO DE ALMEIDA/FOLHAPRESS

Tensão na Ceagesp O clima de tensão na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) continua após os episódios de 14 de março, quando um grupo de 10 a 20 homens incendiou prédios administrativos, danificou câmeras de segurança e destruiu equipamentos de cobrança de estacionamento e controle de entrada e saída. Os conflitos marcam nova etapa de uma disputa entre público e privado que ocorre desde 1997, quando a estatal foi entregue pelo então governador Mario Covas (PSDB)

ao governo federal para renegociar a dívida do estado e dar início a sua privatização, que não andou. Hoje, a central só depende de um decreto da presidenta Dilma Rousseff para deixar o Programa Nacional de Desestatização, no qual está incluída desde 1999. Caso contrário, não pode receber investimento direto da União nem tomar empréstimos, o que fragiliza o poder de gestão. O setor jurídico do entreposto espera estar fora da lista de “privatizáveis” até julho. bit.ly/rdb94_ceagesp


DOUGLAS MANSUR/CELEIRO MEMÓRIA

Tiradentes e a anistia Três horas bastaram para que um “tribunal” instalado no Tuca, da PUC de São Paulo, reunisse cinco décadas de luta pela memória, verdade e justiça no país. E condenasse politicamente a Lei da Anistia. Aprovada pelo Congresso Nacional em 1979, ainda durante a ditadura, ela restabeleceu direitos políticos de quem foi perseguido pelo regime. E, de acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) proferido em 2010, também exime de punição agentes do Estado que torturaram, mataram, estupraram e desapareceram com os corpos de membros

da dissidência durante os anos de chumbo. O jornalista Juca Kfouri, presidente desta terceira edição do Tribunal Tiradentes (duas anteriores já haviam condenado a Lei de Segurança Nacional e o Colégio Eleitoral, no início dos anos 1980) entregou cópias da sentença ao padre Julio Lancelotti, que a fará chegar ao papa Francisco, e à psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, da Comissão Nacional da Verdade, com o compromisso de incluir a decisão no relatório do grupo, a ser apresentado no final do ano. bit.ly/rdb94_tiradentes

Montadora de caminhões do Polo Automotivo de Resende, RJ

SALVADOR SCOFANO/DIVULGAÇÃO

Emprego cresce, mas roda

O Brasil tem tido alta do nível de emprego com carteira assinada e registrou, em fevereiro, o segundo melhor desempenho para o mês desde 1992, com saldo de 260 mil vagas. Mas a rotatividade ainda trava o desenvolvimento e aperta o caixa do segurodesemprego. O setor que mais cria problema é o da construção civil. Uma das alternativas propostas durante seminário realizado no Ministério do Trabalho e Emprego foi de as construtoras passarem a ser obrigadas a efetuar pagamento de salários entre uma obra e outra, com a manutenção dos quadros. O salário substituiria o seguro e garantiria estabilidade para os empregados. Outra alternativa seria a regulamentação do artigo 239 da Constituição, que prevê a criação de uma contribuição adicional para as empresas cujo índice de rotatividade superar a média do setor. bit.ly/rdb94_emprego REVISTA DO BRASIL

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TVT

Canal 2 NET Digital: São Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

Desvendando o agressor Elaine Cristina Cavalcante

Maria Amélia Rocha

“F

oi só um tapinha. Nem doeu.” “Bati porque ela merecia apanhar.” “Bati. E daí? A mulher é minha. Se eu quiser, bato de novo.” Essas são algumas das frases ouvidas por quem “mete a colher” em situações de violência doméstica contra a mulher. Elas revelam características típicas dos agressores, como a ausência de senso de vida a dois ou em sociedade (a dor alheia não importa) e a autoatribuição de uma autoridade sobre a parceira. Daí para a violência é um pulo. Não é à toa que a cada hora e meia uma mulher é morta no Brasil, vítima de violência masculina. E quatro em cada dez mulheres assassinadas no mundo foram mortas por seus maridos ou namorados, revela um estudo da Organização Mundial de Saúde. Esses traços de personalidade não fazem parte da natureza humana. São noções de conduta desenvolvidas de acordo com a formação, o ambiente cultural e social, a predisposição do indivíduo, entre outros fatores. E não são inevitáveis nem irreversíveis. Mas é preciso agir. Uma das formas é a denúncia. Em vigor desde 2006, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 2006) faz que o Estado se meta nesse drama. Para a juíza Elaine Cristina 8

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Episódio do programa Bom para Todos mostra experiências bem sucedidas contra a violência doméstica

quem comete qualquer crime, que está longe de promover um trabalho de educação. “Homens que passaram pelo sistema prisional chegam aqui precisando de outro tipo de atendimento. Mais terapêutico do que socioeducativo. Muitos são réus primários, e quando passam pelos presídios saem traumatizados”, afirma Andrade.

Cavalcante, em entrevista ao programa Bom Para Todos, da TVT, essa a lei tem um diferencial: para que funcione, todos os atores do cenário têm de trabalhar de maneira articulada – sistema de segurança, de Justiça e políticas públicas que promovam redes de apoio. A ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que há 30 anos atua em direitos das mulheres, trabalha com homens agressores. “Aqui eles vão refletir o que é ser homem na sociedade contemporânea e o que como solucionar situações de conflito sem violência”, ressalta o psicólogo Leandro Andrade. Pela casa já passaram 173 homens. Apenas três voltaram a cometer o mesmo crime de violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha já mandou e continua mandando muitos homens para a prisão. Um lugar, por mais que seja necessário para reprimir e punir

Missão: cidadania

Experiências como a recuperação de homens agressores e o passo a passo para encontrar caminhos para mudar essa triste realidade podem ser vistos no novo Bom Para Todos. Apresentado pela jornalista Maria Amélia Rocha, o programa é totalmente dedicado à prestação de serviços e mostra meios de transformar realidades sobre as quais costuma-se dizer que “não tem jeito”. Para quase tudo tem, mas é preciso informação, saber a quem recorrer, atitudes das pessoas envolvidas, dos órgãos públicos. O programa traz sempre ao cidadão serviços e experiências que funcionam. E explica direitos e caminhos que o espectador muitas vezes desconhece. O Bom para Todos pode ser visto às segundas-feiras às 19h30, no canal 2 da NET, no canal 46 UHF e também pelo portal tvt.org.br.


LALO LEAL

O rádio, uma força esquecida

Se tecnologicamente o rádio evoluiu, o mesmo não se pode dizer de seu conteúdo. Entregue ao controle de empresas comerciais, acaba prestando reduzidos serviços à população

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á um ator importante pouco lembrado nas campanhas eleitorais. Ele integra o conjunto de meios de comunicação com capacidade para influir no voto de muita gente. E é o segundo meio de comunicação mais utilizado pela população (61% fazem isso), como mostra pesquisa do Ibope, realizada a pedido da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Só perde para a TV, que é vista regularmente por 97% dos brasileiros. A atenção e as críticas feitas à TV são justas, proporcionais a sua abrangência. Com relação ao rádio, no entanto, a força é subestimada. Como o gato, que dizem ter sete vidas, a resiliência do rádio é histórica. Com transistores e FMs contornou, no passado, a concorrência da TV e, mais recentemente diante da internet, incorporou-se a ela ganhando alcance global, sem os velhos chiados das ondas curtas. Se tecnologicamente o rádio evoluiu, o mesmo não se pode dizer em relação ao seu conteúdo. Entregue ao controle de empresas comerciais, acaba prestando reduzidos serviços à população. Ao corrermos o dial em qualquer cidade brasileira, temos raras opções de qualidade. Ouvimos pregações, músicas de gosto duvidoso, noticiários que misturam jornalismo com propaganda política disfarçada, ressalvando-se as exceções de praxe representadas, quase sempre, pelas emissoras públicas. Nem sempre foi assim. Sem TV, o rádio reinou soberano com as grandes orquestras, os programas musicais, as coberturas esportivas e as notícias em tempo real. As ondas curtas traziam as informações da guerra através de emissoras estrangeiras, as mesmas que durante a ditadura (1964-1985) eram as únicas fontes de informação confiáveis sobre o que ocorria em nosso pais. Sem dúvida esse poder encolheu, mas não desapareceu. Continua forte, sem despertar muita atenção. Os chamados comunicadores populares falam para milhões de pessoas todas as manhãs (o horá-

rio nobre do rádio) em várias cidades brasileiras. Em linguagem coloquial, decodificam para o seu público os textos dos jornais impressos, geralmente acompanhando e enaltecendo as opiniões invariavelmente conservadoras neles publicadas. O subproduto dos engarrafamentos de trânsito, rotineiros nas cidades brasileiras, é o aumento da audiência do rádio. Em busca de notícias, o motorista, quando as encontra, é obrigado a ouvir também comentários sobre variados assuntos, com destaque para aqueles frequentes nos quais o país é sempre apresentado como se estivesse à beira do abismo. Mas a importância do rádio num país como o nosso não fica por ai. Em época de tablets e facebooks, as velhas cartinhas escritas à mão ainda chegam, por exemplo, pelo correio, aos estúdios da Rádio Nacional da Amazônia, em Brasília. Solicitam músicas, mas também pedem que sejam dadas notícias sobre a chegada de parentes, remédios ou de outras encomendas pelos barcos que circulam na região. A abrangência territorial e cultural do rádio evidencia o poder do seu papel político-eleitoral. Seus controladores fazem política todos os dias, a todas as horas, só existindo dois momentos de trégua. Um diário, ocupado pela Voz do Brasil, e outro sazonal, representado pelo horário eleitoral obrigatório que antecede as eleições. Neste ano, começa em 19 de agosto. São momentos de equilíbrio político, conquistas da sociedade brasileira, mesmo com deficiên­cias na sua distribuição e controle. Para aprofundar a democracia, é fundamental que esses espaços se ampliem. O caminho mais eficaz para isso é a existência de uma legislação – semelhante à da Argentina – que abra espaço no rádio (e também na TV) para as mais variadas correntes políticas existentes na sociedade. Para que elas possam se expressar todos os dias e não apenas às vésperas das eleições, como ocorre hoje. REVISTA DO BRASIL

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A hora da

COPA Projeções de instituições privadas e oficiais falam em saldo positivo para o país. Mas atrasos, comunidades afetadas e desperdício reduzem aprovação Por Hylda Cavalcanti

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alta pouco para a bola começar a rolar. Às 17h do próximo 12 de junho, quando soar o apito e abrirem-se as cortinas de Brasil x Croácia, o país estará apreensivo, como em todo jogo da seleção em Copa do Mundo. Desta vez, porém, depois de 31 dias, quando tudo acabar, as histórias das 12 cidades brasileiras que receberão os jogos da competição, e as de outras em seu entorno, poderão nunca mais ser as mesmas. O governo rebate críticas à organização do evento e sustenta que haverá legado à população. A oposição, por motivos óbvios, desconfia, mas há também preocupação por parte de movimentos sociais. No bairro de Itaquera, zona leste de São Paulo, onde fica o estádio que será o palco da abertura, já se notam mudanças. A região, que tem um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital paulista, dá sinais de renovação, sobretudo por conta de uma série de obras viárias e intervenções privadas e públicas. A decisão de levar para lá uma das sedes do Mundial – da qual participaram um presidente da República do PT, um governador do PSDB e um prefeito então do DEM – selou de vez expectativas de moradores e investidores.

O crescimento do poder de compra da numerosa população do bairro chama a atenção dos empreendedores há alguns anos. O Shopping Metrô Itaquera cresce desde 2007, quando foi inaugurado. Há 40 lojas em lista de espera por um lugar. E comemora a cada ano faturamento sempre acima de dois dígitos mais gordo. “Nunca vi fluxo de gente tão grande quanto aqui”, diz o diretor de marketing da Handbook Fashion (HbF), Felix Mifune, que possui loja no local desde 2011. Mas de acordo com o secretário adjunto da Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo de São Paulo, José Alexandre Sanches, o shopping não é o principal indicador das transformações. Ele cita o trecho leste do Rodoanel Mario Covas, obras de infraestrutura da Operação Urbana Rio Verde-Jacu, melhorias no transporte coletivo e iniciativas de ampliação dos serviços, como o Polo Institucional Itaquera, que inclui a Faculdade de Tecnologia (Fatec), erguida com recursos da União, do estado e do município. Se a zona leste de São Paulo fosse um município, Itaquera, com 230 mil habitantes, seria o seu centro geográfico. E se a perspectiva de que a população possa encontrar mais perto de casa empregos e os

DELFIM MARTINS/ME/PORTAL DA COPA/JANEIRO, 2014

RODRIGO COCA/FOTOARENA/AE/JULHO 2010

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INTERVENÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS Obras viárias no entorno do Itaquerão: a zona leste paulistana ganha novo fôlego e a sua população, mais perspectivas REVISTA DO BRASIL

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Reação em cadeia

Segundo os organizadores, essas promessas de efeito Copa se estendem a todas as cidades-sede e seus entornos. Um estudo feito pela empresa de consultoria Ernst & Young e a Fundação Getúlio Vargas, calcula que pelo menos uma dezena de setores econômicos desfrutarão impactos positivos diretos, entre eles construção civil, serviços prestados a empresas, serviços imobiliários, produção e comércio de alimentos e bebidas, serviços de informação e de hotelaria. O trabalho projeta uma injeção de R$ 142 bilhões adicionais na economia brasileira ao longo da temporada de preparação, de 2010 e 2014, e a criação de 3,6 milhões de empregos, proporcionando renda adicional de R$ 63 bilhões e acréscimo de R$ 18 bilhões na arrecadação de impostos – tudo decorrente dos impactos do evento, sempre segundo o estudo. O Ministério do Esporte, em balanço divulgado no início do ano, tendo como referência o mês de setembro, informa que os investimentos públicos e privados já alcançam R$ 25,6 bilhões. E solta números. Desse total, R$ 8 bilhões estão sendo aplicados em obras de mobilidade urbana; R$ 8 bilhões em construção e reformas de estádios; R$ 6,3 bilhões em aeroportos; R$ 1,9 bilhão em segurança; R$ 600 milhões em portos; R$ 400 milhões em telecomunicações; R$ 200 milhões em infraestrutura turística e R$ 200 milhões em instalações complementares. No fechamento das contas, o gasto total deve chegar a R$ 30 bilhões, em despesas de municípios, estados, da União e do setor privado. O ministro Aldo Rebelo disse em entrevista ao portal da CUT, em março, que para cada R$ 1 de gasto público na Copa há outros R$ 3,6 em investimentos privados. Rebelo desaprova argumentos dos setores contrários à realização da Copa, de que o país precisa de mais investimentos 12

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Manaus

CHICO BATATA/AGECOM-AM

serviços se confirmar, já seria um grande trunfo para a engarrafada cidade de São Paulo, que demanda a redução urgente do volume de deslocamentos das pessoas para o centro, a 20 quilômetros dali, e entre extremos.

Escolha criticada pelo clima, localização e ausência de tradição no futebol, A Arena da Amazônia custou R$ 669,5 milhões., 30% mais que o previsto. Três operários morreram em acidentes na obra

Cuiabá A Arena Pantanal, polêmica pela ausência de tradição de futebol, aposta na função multiuso e projeto sustentável. Saiu por R$ 454 milhões a serem pagos pelo estado ao BNDES

MITOS

MENTIRAS E VERDADES SOBRE A COPA

GASTO DE QUASE RS 30 BILHÕES Dos R$ 29,6 bilhões de gastos previstos, R$ 8 bilhões vão para estádios e R$ 9 bilhões para obras de mobilidade urbana, que ficarão como legado DESPESAS COM COPA TIRAM RECURSOS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE Uma coisa não tem a ver com outra. Foram destinados R$ 311,6 bilhões em educação entre 2007 e 2013. Já os investimentos na saúde ficaram em R$ 447 bilhões no mesmo período e têm apresentado crescimento no Orçamento Geral da União POUCOS VOOS E BAGUNÇA EM VÁRIOS AEROPORTOS A situação dos aeroportos em termos de organização ainda causa grandes preocupações no setor. Mas na programação de voos, a Anac autorizou a criação de 1.973 deles. A operacionalização envolverá 25 aeroportos, dos quais 12 ficam nas cidades-sede dos jogos e outros 13, localizados a até 200 quilômetros de distância

Porto Alegre O Beira-Rio recebeu financiamentos, em valores iguais – de R$ 87 milhões – do BNDES, Banrisul e Banco do Brasil e recursos da iniciativa privada (que espera retorno ao explorar a concessão do espaço multiuso do estádio)


BRASIL Fortaleza

Arena Castelão foi a única a ficar pronta com custo menor que o previsto: R$ 518 milhões – quase R$ 100 milhões a menos Obras do VLT ameaçaram com remoção 5 mil famílias de 22 comunidades

RECORDE DE INGRESSOS Já foram pedidos 10 milhões de ingressos, maior número visto em uma Copa. A Fifa prevê a maior arrecadação da sua história: US$ 5 bilhões – valor 36% superior à da Copa da África do Sul (US$ 3,6 bilhões) e maior que o dobro da Copa da Alemanha (USS 2,3 bilhões)

Natal O Estado recebeu R$ 35 milhões em expansão hoteleira, corredor viário e acesso ao aeroporto – em parte linhas do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e Caixa Econômica Federal A Arena das Dunas custou R$ 400 milhões, 14% a mais que o previsto

Recife Com 19 obras, fora o estádio, Pernmbuco é um dos estados que mais se beneficiou com projetos de mobilidade urbana e hotelaria

IMPACTO NA ECONOMIA A expectativa é de o evento ter impacto em 11 setores da economia – de comerciantes informais a microempresários e indústria

Financiamentos do BNDES e BNB. A Arena, criticada pela localização, custou R$ 532,6 milhões

Salvador

Brasília Principal obra da capital, a Arena Brasília teve custo de R$ 1,05 bilhão, 88% a mais que o previsto. A cidade também teve problemas para montar infraestrutura hoteleira por conta do plano urbanístico

São Paulo A Arena Itaquera custará R$ 820 milhões, com recursos da iniciativa privada. O BNDES está investindo R$ 32,5 milhões na região de Aparecida para favorecer o deslocamento de turistas

Curitiba Dez obras de mobilidade urbana estão sendo executadas A Arena da Baixada sofreu vários atrasos e será concluída só em abril. Em fevereiro, corria o risco de não ficar pronta a tempo. Com orçamento em R$ 184,5 milhões, terá custo de R$ 326,7 milhões

16 empreendimentos foram realizados na Bahia, sobretudo em rede hoteleira

Belo Horizonte Minas recebeu financiamentos para 7 obras de mobilidade urbana, que totalizam R$ 725 milhões

Com recursos do BNDES, BNB e da iniciativa privada, a Fonte Nova custou R$ 1,6 bilhão e foi um dos projetos mais caros do país, 172% maior acima do previsto

Mineirão, orçado em R$ 426 milhões, custou R$ 695 milhões (R$ 269 milhões bancados pelo estado)

Rio de Janeiro Oito projetos de mobilidade e infraestrutura estão sendo executados Orçado em R$ 600 milhões, o Maracanã terminou reformado por R$ 1,05 bilhão, em financiamento do BNDES ao RJ e iniciativa privada

GOLS CONTRA E A FAVOR PIB Estudo da Ernst&Young e FGV estima que o impacto do evento no PIB será de R$ 64,5 bilhões (0,4% ao ano) VULNERABILIDADES Há problemas na organização de aeroportos; no acesso a algumas arenas; na baixa qualidade de serviços; e nos preços abusivis cobrados do consumidor BENS, SERVIÇOS, RENDA E EMPREGOS Na produção de bens e serviços, o impacto previsto é de R$ 112 bilhões. Sobre a renda dos brasileiros, de R$ 63 bilhões. A criação de 3,6 milhões de empregos ao ano de 2010 a 2104 não se concretizou (a média tem sidi 1,2 milhão) INFRAESTRUTURA Estão sendo tocadas 96 obras no país. Muitas não ficarão prontas antes da Copa, embora venham a trazer benefícios futuros para os moradores CONTA PARA O CONTRIBUINTE A parte que é custeada pelo poder público sairá do bolso do contribuinte, porque ou é liberada pelo Orçamento da União ou por linhas de financiamento do BNDES, BB e Caixa e BNB que serão pagas pelos estados. REVISTA DO BRASIL

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Perspectivas

Os serviços em torno do turismo estão entre os que mais devem crescer – em número de ocupações e em programas de qualificação. A Embratur estima uma movimentação de 3 milhões de turistas brasileiros durante o Mundial, além de 600 mil estrangeiros. “Se olharmos bem, percebemos transformações tanto no cidadão que estava desempregado e fazia bicos na venda de sulanca em Toritama (interior de Pernambuco) como no ex-presidiário que encontrou uma oportunidade de voltar à vida laboral na construção do estádio

MARCOS DE PAULA/AGÊNCIA ESTADO/ RIO DE JANEIRO, 28/06/2010

em saúde e educação, em vez de estádios e obras. “Os recursos da União em educação quase triplicaram. Os destinos à saúde mais que dobraram”, afirma, ao acrescentar que entre 2007 e 2013 a educação recebeu R$ 311 bilhões e a saúde, R$ 447 bilhões. E afirma que a preocupação com desperdícios e superfaturamentos existe desde que se decidiu que a Copa seria no Brasil. “O presidente Lula pediu à Controladoria-Geral da União que o dinheiro aplicado fosse o mais fiscalizado do país. O Tribunal de Contas da União destinou um ministro para cuidar exclusivamente da Copa”, observa. FESTA E INVESTIMENTO Há torcedores fanáticos esperando a bola rolar e há também empresários que já estão comemorando os ganhos com a realização do torneio no Brasil

Mané Garrincha”, destacou Roberto Vilar, doutor em políticas sociais pela Universidade de Brasília (UnB) e economista da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). “Posso dizer que a Copa salvou minha vida”, diz o pedreiro Hugo Aleixo, morador de Samambaia, no Distrito Federal, que trabalhou nas obras do Mané Garrincha. Aleixo tinha acabado de sair da

prisão, onde cumpriu pena em regime fechado durante mais de quatro anos por tentativa de homicídio e lesão corporal. Ele foi indicado a trabalhar na construção do estádio por meio do programa Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Somente no Mané Garrincha, 640 egressos do sistema prisional foram incluídos no programa. A técnica em secretariado Inácia Men-

Remoções e reações Há três anos, organizações populares das 12 cidadessede vêm denunciando remoções de comunidades, questionando obras e reivindicando o direito ao trabalho em áreas sujeitas a exigências da Fifa. Protestos, abaixo-assinados e ações judiciais trouxeram algumas vitórias que, talvez, sejam o principal legado que a Copa deixará a essa população organizada. A agência Pública registrou essas histórias, cuja íntegra pode ser lida neste atalho: bit.ly/publica_copa Em Natal, um projeto alternativo de tráfego foi revisto após pressão popular e evitou despejos. “O que eu aprendi? Aprendi que temos direitos”, resume a professora de Geografia Eloísa Varela, que morava – e ainda mora – ao 14

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longo da Avenida Capitão-Mor Gouveia, zona oeste da capital potiguar. Em agosto de 2011, ela recebeu uma notificação da prefeitura avisando que seria removida da casa onde vive há 21 anos.“De início a pessoa se aperreia”, lembra. Cerca de 250 famílias residentes ao longo da via que liga o aeroporto ao estádio Arena das Dunas receberam o mesmo papel. “Tinha gente que vivia lá há 40 anos.” Eloísa começou a participar dos encontros do Comitê Popular da Copa, que reuniam moradores, arquitetos, urbanistas, advogados.“Estudando o projeto, começamos a ver que a obra em si estava irregular: não atendia aos parâmetros do plano diretor, não houve audiência pública,

licença ambiental.” Criaram a Associação Potiguar dos Atingidos pela Copa (Apac), a princípio para tocar ações judiciais, e depois foi organizado um projeto alternativo. Depois de realizar seminários e workshops para propor um novo traçado, com a ajuda de arquitetos e urbanistas, o grupo chegou a um modelo em que vias paralelas à avenida também seriam utilizadas para o deslocamento, sem necessidade de alargá-la. O projeto foi entregue à prefeitura, em 2012, mas em ano de eleição seria difícil sair do papel. Os moradores passaram a pressionar os candidatos. Ao tomar posse, o eleito prefeito Carlos Eduardo Alves (PDT) revogou os

decretos de desapropriação. “Nenhuma remoção foi realizada”, comemora Eloísa. “O cidadão tem o direito de discutir a cidade.” Em Salvador, em 5 de abril de 2013 cerca de 100 baianas paramentadas tomaram a entrada do estádio Fonte Nova, durante a cerimônia de inauguração, com a presença da presidenta Dilma Rousseff, do governador Jaques Wagner e do prefeito ACM Neto. “Levamos tabuleiro, distribuímos acarajé de graça, 200 camisas do Vitória e do Bahia, e outras falando ‘A Fifa não quer acarajé na Copa’”, conta Rita Santos, presidenta da Associação das Baianas de Acarajé. Normas da Fifa impediam que as baianas vendessem o quitute. Elas levaram um


FERNANDO FRAZÃO/ABR/ RIO DE JANEIRO, 25/02/2014

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DÍVIDAS Especialistas apontam o lucro certo da Fifa e as operações de crédito a serem pagas durante anos ao BNDES e à Caixa Econômica Federal por empresas e setor público

abaixo-assinado com mais de 17 mil adesões. A carioca Rita Santos, mãe do goleiro Felipe, do Flamengo, gosta de contar a história que terminou com a vitória das baianas. “A Dona Norma, a Solange, a Meirejane trabalham em todos os jogos. A Dona Norma trabalha lá há mais de 50 anos”, explica Rita. “Por causa dessas três eu comecei a brigar.” As baianas acabaram autorizadas a trabalhar na arena na Copa das Confederações. Outra tradição sob ameaça, a tradicional Feira de Artesanato do Mineirinho, em Belo Horizonte, só foi reaberta após uma série de protestos. Entre 2011 e abril de 2013, a feira de todas as quintasfeiras e domingos foi fechada para dar lugar às estruturas temporárias da Copa das

Segundo Prudenciano Gomes, presidente da Associação de Lojistas do Parque das Feiras, em Toritama, as indústrias de confecção existentes na região devem aumentar o número de funcionários em 6% de março até julho. No trecho do município e adjacências, isso corresponde a 12 mil pessoas em novas vagas, conforme cálculos do governo estadual. “Estamos localizados na rota onde vão passar os turistas a caminho dos jogos e também no percurso entre os jogos e pontos his-

Confederações. Rumores de que esse fechamento seria permanente ameaçavam expositores e cerca de 4 mil empregos. “Tentamos diálogo várias vezes”, diz a presidenta da associação dos feirantes, Thereza Marques. Mas a solução foi ir às ruas. “A gente continuou indo ao Mineirinho no horário da feira, pedindo a nossa volta. Tinha umas 100 pessoas a cada dia com faixas, cartazes, panfletos.” A convite do Comitê Popular dos Atingidos Pela Copa (Coapc), os feirantes ampliaram a presença nas ruas, durante a Copa das Confederações. “No dia 17 de junho, seguimos da Praça 7 ao Mineirão. Firmes em trazer a feira de volta”, relata Thereza. Hoje, os feirantes ocupam o primeiro andar do estádio.

Tempo de reciclar

A camareira Gerusa Silva, que trabalha há sete anos em hotel na Paraíba, foi se reforçar. Funcionária da rede Accor, em João Pessoa, ela iniciou em agosto um curso de inglês e conta que já se vira bem. “Consigo interagir com os hóspedes e entender o que pedem. Apesar de a cidade não sediar jogos da Copa, nossos gerentes têm feito várias reuniões e passado orientações sobre o aumento do número de hóspedes. Somos o país da Copa e não podemos fazer feio”, enfatiza. No Paraná, o maître executivo João Barbosa, com 24 anos de profissão, admite que mesmo se considerando experiente fez cursos de reciclagem em Curitiba. “A receita para atender bem é gostar do que se faz e tentar melhorar sempre”, ressalta ele, que hoje trabalha na rede de hotéis Bourbon, em Londrina. Estudo do Ministério do Turismo calcula que os visitantes, durante Copas do Mundo, gastam em média R$ 11.400 nos países que sediam esses eventos. Suas viagens costu-

LUCIO TAVORA/AG.A TARDE/FOLHAPRESS

donça também comemora a realização da Copa. Ela trabalhava num escritório de contabilidade em Recife até ficar desempregada, em 2010. No ano passado, com o crescimento das confecções de camisetas e bandeiras pelas pequenas fábricas de Toritama, conseguiu vaga na área administrativa. Toritama, com 37 mil habitantes, é sua cidade natal. “Meu emprego tinha previsão de ser temporário, até o começo de janeiro. Mas terminei sendo contratada e vou ficar.”

tóricos do interior, como Fazenda Nova” – onde fica o maior teatro ao ar livre do mundo. “Todos estão se preparando, fábricas e lojas, restaurantes, pontos de artesanato e alimentação”, afirma Gomes.

LEI ACIMA DA LEI Em frente ao estádio Fonte Nova, baianas pedem a liberação do acarajé: pelas regras da Fifa, o quitute brasileiro deveria ficar longe dos estádios REVISTA DO BRASIL

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mam durar de 15 a 20 dias e vão além das cidades-sede. Entre os jogos da Copa das Confederações, em junho passado, até o final do ano, 740 mil turistas estrangeiros visitaram 132 cidades brasileiras. A rede hoteleira teve expansão de 22 mil unidades entre 2010 e 2013. O setor não teme haver um déficit de hospedagem – mesmo havendo de hotéis. Tem crescido a procura por acomodações alternativas, como hostels, imóveis alugados e casas de família. De acordo com o Ministério do Turismo, já são 4.200 os imóveis oferecidos para aluguel a turistas nas 12 cidades-sede, não incluídos outros municípios. Dois grandes gargalos que perturbavam governo e investidores – abastecimento de energia e capacidade dos aeroportos – também não preocupam as autoridades. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) informou ter concluídas 77 obras de reforço nas redes elétricas nas cidades sede da Copa e que estão em fase de conclusão outros 33 projetos. No setor aéreo, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) autorizou em janeiro 1.973 novos voos no período da Copa. A operação da Anac envolve 25 aeroportos, 12 ficam nas cidades-sede e 13 a até 200 quilômetros delas. Há de se torcer para que a infraestrutura acompanhe esse incremento de voos. “A Copa se paga, dá lucro e gera rique-

zas que ajudarão a resolver problemas seculares e estruturais da sociedade brasileira. Deixa como utilidade pública aeroportos, portos, viadutos, vias de trânsito, melhoria da segurança e novidades em telecomunicação”, defende o ministro Aldo Rebelo.

Contradições em campo

Pesquisas mais recentes, entretanto, apontam queda na taxa de aprovação da realização da Copa do Mundo no Brasil. No final de fevereiro, o instituto Datafolha detectou que 52% dos entrevistados se diziam favoráveis, ante 38% contrários. Na primeira pesquisa, em 2008, o placar era de 79% a 10%. O Ibope, no mesmo mês, observou que 58% defendem o evento no país e 38%, não. O instituto verificou ainda que o percentual dos que preveem que a Copa trará mais benefícios que prejuízos ao país é apertado: 43% a 40%. Vistos como flancos por onde podem prosperar críticas ao governo na presidenta Dilma Rousseff, os aspectos negativos da competição devem ser explorados, à esquerda e à direita; faz parte de um outro jogo, em que as chances de algum oponente superar Dilma nas eleições de outubro andam escassas, segundo as mesmas pesquisas. Mas em detrimento do peso político do tema, há críticas consistentes de quem não vai deixar de

fazê-las só porque é ano eleitoral. O site Contas Abertas, dedicado a observar e analisar gastos públicos, apontou logo na primeira parte dos preparativos cerca de R$ 600 milhões em gastos considerados “excessivos”. Na conta do desgaste político, entram ainda mobilizações de comunidades e coletivos que se organizaram em torno de bandeiras concretas, como a revolta contra a remoção de famílias ou o veto ao tra-

Não pode ter medo Em meados de 2010, os moradores da comunidade Caminho das Flores, no bairro de Parangaba, Fortaleza, foram visitados por técnicos contratados pelo governo do Ceará para fazer o cadastro das 45 famílias residentes na única rua da comunidade. A 18 metros dali passaria o primeiro trecho do Veículo Leve sobre Trilhos, que ligaria o oeste da capital cearense ao porto de Mucuripe. A cessão de uma faixa de terreno para o novo VLT significava que boa parte das casas seria desapropriada. “No meu caso, por exemplo, meu terreno 16

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tem 135 metros. Eles queriam desapropriar 35”, lembra Thiago de Souza, morador e integrante do Comitê Popular da Copa na capital do Ceará. A comunidade se juntou a outras 21. “As 22 comunidades existem há mais de 50, 60 anos. E o governo num passe de mágica quer acabar com elas”, resume Thiago. O movimento conseguiu com que a Defensoria Pública entrasse com uma ação. Houve três audiências e a Defensoria mediou as negociações com o governo. O terreno da Caminho das Flores foi reduzido, e os moradores

conseguiram reconstruir suas casas no próprio terreno, com maior recuo. “Na comunidade Lauro Vieira Chaves iam ser 200 famílias removidas e conseguimos reduzir para 50. Na Alcir Barbosa também”, comemora Thiago. O Comitê Popular contabiliza em 5 mil o número de famílias inicialmente em risco. Atualmente, há 2.185 residências em processo de remoção. “O governo diz que foi ele que reduziu esse número, mas isso nada mais é que fruto da luta das comunidades. Se ninguém tivesse resistido, hoje estaria

todo mundo na rua.” O Rio de Janeiro também foi palco de mudanças de planos por conta de mobilização popular contra a destruição do complexo Júlio Delamare, da sede do ex-Museu do Índio, do estádio de atletismo Célio Barros e da Escola Municipal Friedenreich (o Pelé do início do século passado). A revolta contra a descaracterização do local unia os cariocas antes dos protestos de junho: “O Maracanã resumia o que estava acontecendo na cidade: privatização, autoritarismo, falta de interlocução com a sociedade, expulsão dos


VITRINE Dilma com operários na inauguração da Arena das Dunas, em Natal, em janeiro: os aspectos negativos da Copa serão explorados, faz parte do jogo

pobres. Mas a partir de 2012 virou um símbolo de luta”, explica Gustavo Mehl, membro do Comitê Popular. Aos protestos puxados pelo comitê uniram-se indígenas, pais de alunos da escola Friedenreich, 10ª melhor do país no índice do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), atletas que treinavam no Célio de Barros e no Delamare. “Se o governo tivesse sensibilidade, teria visto que aquilo era um caldo que estava começando a entornar”, avalia Gustavo. O prédio do Museu do Índio está em reformas e será trans-

bilhões usados para a construção e reforma, tirando R$ 820 milhões que saem do caixa da iniciativa privada, outros R$ 4 bilhões são operações de crédito e portanto deverão retornar para instituições como BNDES e Caixa Econômica Federal, principais financiadoras dos governos estaduais, empreiteiras e clubes que herdarão estádios construídos e reformados. O ministro Aldo Rebelo enfatiza que a Copa é um “evento privado”. Segundo ele, as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de mobilidade urba-

formado em um Museu Vivo da Cultura Indígena. A escola continua e uma reforma está prevista. O parque aquático voltou a funcionar. Mas o estádio Célio de Barros segue como estava antes do recuo de Cabral. O governo do estado deve, ainda, apresentar projeto de reforma à Caixa, responsável por acompanhar a execução. “Estão empurrando”, critica o velocista Nelson Rocha dos Santos, o Nelsinho, campeão estadual, brasileiro, sul-americano e mundial. Mesmo assim, ele não se decepciona. “Aprendi o seguinte: a gente não pode ter medo.”

na, já previstas antes da competição, “não serão levadas” por nenhuma seleção de futebol. “Nenhum viaduto, nem universidades, nem aeroportos”, brinca. O ministro diz ainda que os estádios são arenas multiuso, que se destinam a jogos, feiras, congressos e eventos, e, numa comparação questionável, cita Wembley, maior estádio da Inglaterra, que recebe oito jogos por ano e sobrevive de eventos. “Na Arena de Natal, o espaço destinado a lojas é negociado pelo melhor preço da cidade.” De acordo com Rebelo, esse destino vale para todas as arenas, inclusive as de Cuiabá, Brasília e Manaus. Em relação aos cuidados com o mundo do trabalho, a diretora do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Laís Abramo, alerta que existem riscos embutidos na realização de um evento deste porte, como aumento da ocorrência de práticas inaceitáveis, a exemplo do trabalho infantil, forçado, tráfico de pessoas e aumento dos casos de exploração sexual de crianças e adolescentes. Laís acentua que é preciso fiscalização rígida: “Como diminuir os riscos e aumentar as potencialidades? Dialogando, somando esforços, integrando ações e iniciativas”. O jogo já começou, com muitas dúvidas – não sobre a capacidade de Neymar e companhia, mas dos gestores. Mais do que o time dentro de campo, a torcida é para que a Copa realmente tenha os brasileiros como vencedores. O tempo mostrará.

TÂNIA RÊGO/ABR/ 12/01/2013

balho a alguns atores econômicos nos espaços controlados pela Federação Internacional de Futebol (Fifa), organizadora da Copa. Muitas dessas bandeiras foram acompanhadas de movimentos tanto de contestação como de elaboração de propostas alternativas de soluções urbanas. “Trata-se de uma Copa que vai render lucros imensos para a Fifa, mas vai deixar recursos a serem pagos aos bancos estatais”, afirmou o especialista em contas públicas Arnaldo Nóbrega. Para ele, no caso específico dos estádios, dos R$ 8

ROBERTO STUCKERT FILHO/PR

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JUSTIÇA E CORAGEM Batalhão de Choque da Polícia Militar cerca o prédio do antigo Museu do Índio, no entorno do Maracanã, em 2013 REVISTA DO BRASIL

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Com olhos em 2015 Mais do que reivindicar do atual governo atendimento da pauta trabalhista, centrais já discutem de quem preferem cobrar a partir do ano que vem Por Vitor Nuzzi uando cinco centrais sindicais se reuniram em 2010, no estádio do Pacaembu, em São Paulo, o país mostrava bom desempenho na economia, o que seria confirmado com o anúncio do maior Produto Interno Bruto (PIB) em 25 anos, recorde na criação de empregos com carteira assinada e reduzidas taxas de desemprego. Naquele momento, as entidades aprovaram uma pauta, chamada de agenda trabalhista, para ser entregue aos então candidatos ao Palácio do Planalto. Quatro anos depois, as centrais têm avaliações diferentes do cenário econômico e político, mas coincidem ao afirmar, externa ou reservadamente, que faltou articulação ao governo Dilma Rousseff. Os sindicalistas reclamam que o Executivo ouviu pouco os representantes dos trabalhadores. Com a economia em ritmo mais lento – mas não tão ruim quanto querem fazer crer alguns comentaristas –, e candidaturas de oposição tentando crescer, a postura das entidades sindicais mudou. Quatro anos atrás houve praticamente unanimidade em torno do apoio a Dilma na sucessão de Lula, e a proximidade de nova eleição presidencial move cada passo das centrais. Mas se é verdade que todas criticam um certo distanciamento entre o governo e os movimentos sociais, também é fato que, 18

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para uma parcela do movimento sindical, mais importante que o atendimento de algumas reivindicações é o projeto de governo e de país que estará em discussão até outubro. Os destaques mais visíveis da agenda trabalhista são a redução da jornada legal de 44 para 40 horas semanais, o fim do fator previdenciário e o combate ao projeto sobre terceirização (PL 4.330). A pauta se compõe ainda da ratificação, pelo Brasil, de duas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT): a 151 (sobre negociação coletiva e direito de greve no setor público) e a 158 (que coíbe demissões imotivadas). A bancada empresarial, três vezes maior que a dos trabalhadores no Congresso, é contra. E a Confederação Nacional da Indústria (CNI) tem ainda uma lista de 100 itens na qual defende a “modernização” das relações de trabalho. Para as centrais, isso é sinônimo de “flexibilização” e “precarização”. Diante do confronto de agendas, as centrais programaram para este 9 de abril uma nova “marcha”, a exemplo da que fizeram em março do ano passado, quando também reclamavam atenção do governo (ou “Que a Dilma nos ouça”, como chamava a capa da edição nº 82). A diferença é que, agora, há posicionamentos mais distantes. Uma central chegou a defender o cancelamento do evento, por receio que se tornasse um ato mais de protesto de vi-

ESTÁDIO DO PACAEMBU, 2010 As centrais sindicais jogavam juntas. Hoje, em posições diferentes, concordam ao menos que faltou atenção do governo Dilma

és eleitoral do que de reivindicação. Para um dirigente sindical, falta à gestão Dilma um “cabeça de área”, aquele jogador que no futebol tem a função de proteger a defesa e iniciar as jogadas. O jornalista Ricardo Kotscho, em artigo publicado no mês passado, fez outra metáfora futebolística. “Ao comprar uma briga que não precisava, levando a reforma ministerial em


GERARDO LAZZARI/RBA

TRABALHO

banho-maria até secar a água, os articuladores do governo pareciam até o zagueiro artilheiro Antônio Carlos, que marcou dois gols contra o São Paulo no jogo de domingo contra o Corinthians”, afirmou, referindo-se a uma partida disputada (no mesmo Pacaembu) em 16 de março, quando o tricolor venceu o alvinegro por 3 a 2, mas antes de marcar, no final, o gol da vitória, viu seu defensor jogar a bola duas vezes para as próprias redes.

Data de validade

Em entrevista no início de março à

Rede Brasil Atual, o presidente da CUT, Vagner Freitas, disse que faltou diálogo por parte do governo, que também deveria ter apoiado com mais intensidade reivindicações das centrais como a redução da jornada e o fim do fator previdenciário. “Seriam as grandes marcas que este governo poderia deixar”, afirmou Freitas. E que tornariam menos espinhosa no meio sindical a discussão da sucessão presidencial, como ele admitiu. Mesmo assim, Freitas adiantou que se lançará “de corpo e alma” na campanha pela reeleição de Dilma: “Não é questão

de nome ou de partido, mas de projeto”. O cutista considera que há dois em disputa em 2014. No primeiro, está a possibilidade de avançar na agenda trabalhista, talvez com menos dificuldades na interlocução. O outro projeto apontaria para um retrocesso: “Que conquista os trabalhadores têm para lembrar daqueles oito anos?”, questiona, referindo-se à gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), em que a interlocução inexistia. “Nós apostamos num projeto de mudança”, diz o presidente da CTB, Adilson Araújo. “A política de valorização do salário mínimo, combinada com programas sociais, colocou o Brasil em outro patamar. Mas a nossa pauta (trabalhista) está contingenciada”, acrescenta. “Achamos que o governo não tem dado a devida atenção a essa base eleitoral importante. A retomada do diálogo seria uma boa sinalização.” Além de tentar incrementar direitos, os sindicalistas se preocupam com a permanência dos atuais. Um se refere ao salário minimo, cuja politica de valorização é considerada uma das principais conquistas obtidas pelas centrais com o governo. Mas o acordo tem prazo determinado: vai até 2015, e já se ouvem vozes no chamado “mercado” pedindo o fim dos aumentos automáticos – baseados na variação da inflação acrescida do resultado do PIB. Outra questão considerada importante, a correção automática da tabela do Imposto de Renda, já não está mais garantida. O presidente da CTB diz que a militância da central está “liberada” para apoiar quem quiser. Mas ele considera que a reeleição de Dilma representaria “a quarta vitória do povo brasileiro”, considerando nessa conta as duas eleições de Lula. E cobra mais celeridade no investimento em infraestrutura – cita “gargalos” em questões como segurança pública, saúde, mobilidade urbana e moradias populares. E aponta a necessidade de aumentar a bancada de representantes dos trabalhadores no Parlamento, que é onde a pauta trabalhista fica parada: “A correlação de forças no Congresso Nacional ainda não nos é favorável. As centrais precisam ter essa visão”. REVISTA DO BRASIL

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Em março, as centrais se reuniram com o procurador-geral do Trabalho, Luis Camargo, e combinaram atuar em conjunto pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 231, que reduz a jornada semanal de 44 para 40 horas. Essa PEC tramita desde 1995 e está pronta para ir a plenário na Câmara, assim como o Projeto de Lei 3.299, de 2008, que propõe o fim do fator previdenciário. O presidente da UGT, Ricardo Patah, diz que ele não pode “impor à base” a candidatura que defende. No caso, Dilma, que regulamentou a categoria de comerciário, da qual ele é originário. “Reconhecemos a importância do trabalho que ela desenvolveu. Tem tudo a ver com o DNA da UGT, que está na base da pirâmide”, comenta. Mas também ele considera que “falta conversa”, dizendo-se “muito decepcionado” com a manutenção do fator previdenciário. A fórmula, que leva em conta a distância entre a idade com que a pessoa se aposenta e sua expectativa de vida estimada pelo IBGE, foi criada no final dos anos 1990: quanto mais precoce é a aposentadoria, menor o valor do benefício.

Candidaturas

Os seis meses que separam abril das eleições tendem a ser “encurtados” por causa dos 32 dias de Copa do Mundo. Mas o ambiente político pegou fogo lo-

ANTONIO COTRIM/EFE

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SAIU DA CRISE Paul Krugman: o Brasil deixou de ser vulnerável há muito tempo

go depois do carnaval, com crise entre o governo e a bancada do PMDB na Câmara. A relação sofreu um arranhão mais ardido com a saída do PT do governo do Rio de Janeiro. O presidente da CGTB, Antônio Neto, membro do diretório nacional do PMDB, defende sua legenda na crise, critica os aliados, mas mesmo assim acredita que a aliança com o PT se manterá para a disputa por mais quatro anos no quarto andar do Planalto.

Neto avalia que o país segue em bom caminho. “Há um trabalho da mídia contra os resultados do governo Dilma, que não são pífios. O Brasil está dentro da média internacional. Mas a gente sabe que é uma preparação eleitoral.” Para Neto, só existe risco de recuo na politica de valorização do salário mínimo em um caso: “Se a direita ganhar”. O sindicalista elogia a “história de luta” de Dilma, mas critica a postura do governo, “de cintura dura”,

Evolução do salário mínimo O salário mínimo teve reajuste acumulado de 262%, para uma inflação (INPC) de 110,05%. Aumento real de 72,31%

VALORES Valor médio em 1995 R$ 318,26 Valor médio em 2013 R$ 690,34

REGRA ATUAL Variação da inflação do ano anterior acrescida do percentual de crescimento do PIB de dois anos antes

ALCANCE População beneficiada pelo salário mínimo, segundo o Dieese: 48 milhões de pessoas

IMPACTO Recursos injetados na economia em 2014: R$ 28 bilhões

FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/ABR

2003 A 2014

Valor atual R$ 724 (01/01/14) Salário maior impulciona consumo

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Vagner Freitas: o governo deveria ter apoiado a redução da jornada e o fim do fator previdenciário

Miguel Torres: Dilma perdeu muito apoio. O que ela faz para o movimento sindical é traição

com dificuldade para conversar com movimentos sociais. Quem se define desde já como um não eleitor de Dilma é o presidente da Força Sindical, Miguel Torres. “Ela só teve todo apoio (em 2010) porque o movimento sindical acreditava que ela daria continuidade (ao governo Lula). Acho que ela perdeu muito apoio. Na base da Força, perdeu 90%. O que ela fez para o movimento sindical foi traição. Ela fechou portas. A pauta praticamente não andou nestes quatro anos”, critica. Torres também identifica uma “ofensiva” para acabar com direitos sociais ou dificultar o acesso a eles, citando itens como auxílio previdenciário e seguro-desemprego. Como os demais, ele destaca a importância de se manter a política de reajustes do salário mínimo. Em 2010, o então presidente da Força, o deputado federal Paulo Pereira da Silva, apoiou Dilma. O dirigente, que saiu do PDT para criar o Solidariedade (SDD), começou a manifestar contrariedade de forma sistemática justamente na marcha que as centrais promoveram em março do ano passado. Mas Torres afirma que não é a totalidade da Força que acompanha a posição de ruptura com o governo. Isso se repete em outras centrais: o pre-

Antônio Neto: Dilma tem história de luta, mas o governo tem cintura dura para conversar com movimentos sociais

Ricardo Patah: faltou conversa e a manutenção do fator previdenciário foi uma decepção

sidente da UGT, por exemplo, é filiado ao PSD do ex-prefeito paulistano Gilberto Kassab. Mas a central tem entre seus diretores Francisco Pereira de Sousa Filho, o Chiquinho, do PPS, que faz frontal oposição a Dilma. A própria CTB, majoritariamente composta por gente do PCdoB, que apoia Dilma, tem também nos seus quadros militantes do PSB, do presidenciável Eduardo Campos.

Marcha

Mesmo mais fraca, a economia joga a favor de Dilma. Os primeiros resultados sobre a indústria permitiram, ao menos, acreditar em uma recuperação. A inflação anualizada se mantém abaixo dos 6% e a taxa de desemprego continua em seus menores níveis históricos. A criação de empregos formais em fevereiro foi a segunda maior para o mês desde 1992. Em março, a gestão Dilma estava próxima de alcançar o saldo de 5 milhões de vagas com carteira assinada. Em debate promovido em março pela revista CartaCapital, o norte-americano Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia em 2008, afirmou: “O Brasil saiu da crise mundial muito bem e não se justificam preocupações com sua economia”. Para ele, o país deixou de ser vulnerável

ACERVO CTB

ACERVO UGT

CLÁUDIA MIFANO/CGTB

ROBERTO PARIZOTTI/CUT

MAURICIO GARCIA DE SOUZA/AL.SP.GOV.BR

TRABALHO

Adilson Araújo: reeleição de Dilma representaria a quarta vitória do povo brasileiro; mas falta diálogo

há muito tempo. No mesmo evento, a empresária Luiza Trajano, da rede de lojas Magazine Luiza, atribuiu uma suposta imagem de incerteza no Brasil à má comunicação por parte do governo. Parar tirar dúvidas, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, pega carona na efeméride de 50 anos do golpe e, em artigo no site Carta Maior, sugere ao governo fazer seu próprio comício da Central do Brasil – realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, quando o presidente João Goulart afirmou compromisso com as chamadas reformas de base. “De dentro do Legislativo para todos os brasileiros. O que mudou no Brasil e é incontroverso, e o que é necessário que se continue a fazer para mudar o Brasil de país de miseráveis para país sem miseráveis”, propõe. “Nenhum lugar mais apropriado do que uma das Casas do Congresso como sede e palanque para um grande comício democrático, de prestação de contas, de esclarecimentos de dúvidas e, também indispensável, a declaração de compromissos inquebrantáveis com os rumos traçados tendo o povo brasileiro como norte, dispensando a tecnocracia dos manuais financiados pelos rentistas das dificuldades alheias.” REVISTA DO BRASIL

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TECNOLOGIA

O centro do mundo Encontro em São Paulo terá gente de 150 países discutindo propostas, capitaneadas pelo Brasil, por uma nova gestão global da internet Por Tadeu Breda

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ão começou, mas se consolidou com um discurso brasileiro nas Nações Unidas. Em setembro de 2013, a presidenta Dilma Rousseff usou os microfones da 68ª Assembleia Geral da ONU para criticar duramente a espionagem realizada pelos Estados Unidos sobre a internet em todo o mundo. Muitas articulações políticas e diplomáticas depois, o país receberá em abril a NetMundial, cujo nome oficial já explica a que veio. Será uma Conferência Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança na Internet. Para entender a relação entre o discurso de Dilma na ONU e o encontro internacional que ocorrerá em São Paulo, é preciso lembrar que, em agosto do ano passado, o jornalista norte-americano Glenn Greenwald havia revelado que a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) bisbilhotara arquivos da estatal Petrobras e comunicações confidenciais da presidenta da República. Mais que isso, as denúncias mostravam que o Brasil tem sido o país mais vigiado pelos órgãos de inteligência do Big Brother. Dilma não gostou de saber de tamanho escândalo pela imprensa. Primeiro, exigiu desculpas públicas do presidente Barack Obama pela interceptação, que é ilegal, e garantias fiáveis de que tais monitoramentos não voltariam a acontecer. Como nem as retratações nem os compromissos vieram, ela cancelou a viagem oficial que faria a Washington em outubro. E aproveitou a mais importante reunião de chefes de Estado que ocorre anualmente em Nova York para denunciar a espionagem e propor uma ação global contra os riscos do monitoramento da internet. “É o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países”, discursou Dilma, lançando as bases de uma proposta para transformar a governança da rede mundial de computadores. “Precisamos estabelecer mecanismos capazes de garantir princípios como: 1) liberdade de expressão, privacidade do indivíduo e respeito aos direitos humanos; 2) governança democrática, multilateral e aberta, exercida com transparência, estimulando a criação coletiva e a participação da sociedade, dos governos e do setor pri-

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Arena paralela

A NetMundial reunirá nos dias 23 e 24 deste mês de abril representantes de governos, empresas de tecnologia, sociedade civil, universidades e grupos técnicos de aproximadamente 150 países. O objetivo é construir acordos globais para transformar em realidade os princípios defendidos pela presidenta na ONU. O principal deles, como já fica subentendido pelo nome da conferência, é descentralizar a administração da internet. A rede tem sido controlada pelos Estados Unidos desde sua criação: apesar de administrar todo o funcionamento da rede, o Icann é subordinado ao Departamento de Comércio norte-americano. Além disso, está sediado na Califórnia, submetendo-se à legislação do país. Mas isso pode mudar depois do NetMundial. Aliás, já começou a mudar. Em março, os Estados Unidos comunicaram oficialmente que poderiam abrir mão do controle exclusivo do Icann e repassá-lo para uma entidade multissetorial internacional. Como constituir, organizar e formatar essa entidade deverá ser um dos pontos principais das discussões em São Paulo. Até porque Washington já alertou que não aceitará passar a administração da internet para outro governo ou grupo de governos. A pluralidade que pode democratizar a administração da internet em todo o mundo já é uma rea-

lidade no Brasil. Aqui, a rede é gerida pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br), que reúne representantes do governo, empresas, sociedade civil, academia e grupos técnicos. “O CGI.br passou a ser um modelo para a gestão global da internet por abrir espaço à participação de todos os setores”, avalia o ativista digital gaúcho Marcelo Branco. “Mas ainda não se sabe como será encaminhada essa transição. É exatamente isso que será discutido na NetMundial.” O país ainda pode servir de modelo para um novo sistema de administração da internet caso consiga aprovar no Congresso, antes da conferência, o Projeto de Lei 2.126, de 2011, conhecido como Marco Civil da Internet. Em 25 de março, o texto passou na Câmara e seguiu para o Senado. “Inspirado na proposta brasileira, o próprio criador da web, Tim Berners-Lee, sugeriu que fosse elaborado um marco civil global, que ele chamou de carta magna da internet”, continua Branco. “O sucesso da NetMundial será uma vitória diplomática para o Brasil.” O ativista lembra, porém, que a liderança do país no tema não começou com o discurso de Dilma Rousseff. A intervenção presidencial na ONU teria sido apenas a ofensiva final. “Em 2003, na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em Genebra, a delegação brasileira já havia defendido que a internet não podia mais ser governada unilateralmente”, argumenta Branco, que compareceu ao encontro. “Nossa posição foi apoiada pela Argentina, pelos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e pela União Europeia, que concordavam em que os Estados Unidos não tinham direito de controlar sozinhos a internet.” Washington, porém, bloquearia qualquer discussão sobre a governança global da rede. Até agora. “As denúncias de espionagem, as reações internacionais e as críticas de Dilma nas Nações Unidas aumentaram a pressão e construíram uma conjuntura favorável às mudanças.” Cerca de 800 pessoas terão acesso ao Grand Hyatt Hotel para as atividades do NetMundial. Mas há muito mais gente disposta a participar, sobretudo na sociedade civil. Para arrebanhar a contribuição de mais gente e enraizar as discussões, o governo brasileiro realizará a Arena NetMundial, evento paralelo ao encontro oficial, aberto ao público. “A conferência tem potencial para se tornar o evento político mais importante do ano”, avalia Ricardo Poppi, coordenador-geral de Novas Mídias e Outras Linguagens de Participação da Secretaria-Geral da Presidência da República. “Vamos debater temas como direitos humanos, apropriação da rede, espionagem e segurança. Algumas propostas serão posteriormente apresentadas à NetMundial.”

Fadi Chehadé: o Brasil assumiu a liderança global no tema da governança da internet

CLAUDIO ONORATI/EFE

vado; 3) universalidade, que assegure o desenvolvimento social e humano e a construção de sociedades inclusivas e não discriminatórias; 4) diversidade cultural, sem imposição de crenças, costumes e valores; e 5) neutralidade da rede, ao respeitar apenas critérios técnicos e éticos, tornando inadmissível restrições por motivos políticos, comerciais, religiosos ou de qualquer outra natureza.” Algumas semanas depois, o governo brasileiro seria procurado por executivos que administram a rede para conversar sobre a realização de uma conferência que discutisse globalmente essas cinco diretrizes. No início de outubro, Dilma recebeu em Brasília Fadi Chehadé, chefe da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Icann), entidade responsável pela concessão de domínios e endereços na rede, uma espécie de zelador da internet. Na conversa, Chehadé disse que o Brasil havia assumido liderança global no tema da governança da internet, e que o modelo atual, centralizador demais, precisava evoluir. O executivo pediu empenho do governo brasileiro na busca por soluções práticas para recuperar a confiança das pessoas na segurança da rede. O discurso de Dilma e sua receptividade pelos grupos que administram o sistema foram os últimos tijolos do alicerce que viabilizaria a conferência.

ROBERTO STUCKERT FILHO/PR

TECNOLOGIA

Tim Berners-Lee: a internet deveria ter um marco civil global

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AMÉRICA LATINA

Teria o México lições a dar ao Brasil? As agências de classificação de risco diziam que estava tudo bem com os bancos que causaram a crise de 2008. Agora, dizem que os mexicanos estão “certos”. E o Brasil, “errado” Por Giorgio Romano Schutte

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epois do colapso do Lehman Brothers, uma questão que ficou no ar foi a (ir)responsabilidade das agências de avaliação de risco. Afinal, classificaram um conjunto de ativos financeiros como sendo “sem risco” pouco antes de se descobrir que derrubariam a economia norte-americana. Convocadas pelo Congresso dos Estados Unidos, a resposta mágica das três empresas – Moody´s, Standard & Poor´s e Fitch: “It was just an opinion”, ou seja, “foi só uma opinião”. A União Europeia chegou a considerar, inclusive, uma regulação mais rígida a respeito das operações das agências, dado o estrago que fizeram. No comunicado oficial da primeira reunião do G20, no final de 2008, falou-se na necessidade de virar a página de uma era de irresponsabilidades do setor financeiro. Hoje, isso tudo parece distante. 24

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As agências de avaliação de risco voltaram a dominar as percepções sobre as economias do mundo, dando mostras do que o intelectual norte-americano Noam Chomsky chamou de “senador virtual”. Chomsky referiu-se à necessidade de os governos submeterem suas políticas e prestar contas não só aos representantes eleitos, mas também aos setores financeiros, que têm uma capacidade de “votar” contra essas políticas ao movimentar (ou ameaçar) suas aplicações, pressionando os governos a se ajustar ao que eles consideram que devam ser as políticas econômicas corretas. O cardápio dessas políticas não inclui a defesa da garantia de poder de compra das camadas mais pobres, da criação de empregos e da diminuição de desigualdades sociais. No clima de tentar voltar à lógica do neolibera-


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ta (1994), o acordo de livre comércio com Estados Unidos e Canadá, que intensificou a dependência mexicana ao vizinho do norte. O excesso de liberalização provocou, logo no primeiro ano do Nafta, uma grave crise financeira (a crise tequila), e o México levou outro ainda maior com o impacto da crise em 2008. É claro, porém, que qualquer perspectiva de melhora na economia norte-americana anima, por tabela, a mexicana. É o que justifica o atual otimismo do “Senado virtual”.

MARIO GUZMAN/EFE/2008

Remessas

“VENDEMOS A PRODUÇÃO BARATO PARA PAGAR A CONTA DE LUZ” Tratoristas mexicanos protestam contra o tratado de livre comércio com EUA e Canadá durante a crise de 2008: a economia mexicana mantém grau máximo de dependência em relação aos seus parceiros do norte

lismo – a que determina que as vozes dos mercados financeiros falam mais alto –, os governos que optaram por outros caminhos estão sendo atacados. Estariam implementando as políticas que escolheram o “lado errado”. Segundo essa lógica, Venezuela e Argentina são os piores alunos e merecem notas baixas. Mas o Brasil também precisaria ser enquadrado. A ameaça de rebaixamento de sua nota de avaliação de risco obrigou o governo a explicar que faz o dever de casa. Esse foi o sentido da participação da presidenta Dilma Rousseff no fórum econômico de Davos, em janeiro, ponto de encontro anual do “Senado virtual”­de Chomsky. Na América Latina, aluno exemplar seria o México, do presidente Enrique Peña Nieto. É curioso observar, ao longo dos últimos tempos, a euforia com opções liberalizantes, como a entrada do país no Naf-

São três os principais motores daquela economia: a exportação de petróleo, a remessa de recursos dos migrantes mexicanos e o setor de maquiladoras, manufatura voltada para a exportação, em sua maioria para os Estados Unidos, onde hoje moram 33,5 milhões de pessoas declaradas mexicanas. Muitos desses trabalhadores enviam periodicamente dinheiro para as suas famílias. Essas remessas são a segunda maior entrada bruta de dólares na economia do país. Chegaram a US$ 30 bilhões por ano antes da crise de 2008 e caíram para US$ 22 bilhões no ano passado. Aumento do desemprego dos imigrantes significou queda automática da capacidade de mandar dinheiro para casa e do interesse em cruzar a fronteira para tentar a sorte. Agora, com os sinais de recuperação da economia, vive-se a expectativa de que o fluxo migratório, que caiu para 100 mil pessoas em 2010, volte aos patamares “normais” de 300 mil ano. Ou seja, o México volta a almejar um crescimento da entrada de dólares em seu caixa por meio das remessas. Não se trata exatamente de um modelo a ser seguido pelo Brasil. No que diz respeito às maquiladoras, a queda nos últimos anos deve-se a dois motivos. A concorrência chinesa e o impacto da crise de 2008. Agora, três acontecimentos justificam a previsão de recuperação desse setor. Existe um processo de encarecimento da produção na China que devolve parte da competitividade da manufatura mexicana, devido aos baixos salários nas maquiladoras e às vantagens de sua posição geográfica. A isso se junta o duplo impacto do crescimento da produção de gás de xisto dos Estados Unidos, que baixou o custo de energia para a indústria local e alimenta a demanda por produtos intermediários das maquiladoras do México em cadeias produtivas integradas com os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o México importa gás norte-americano, o que faz o preço do seu gás seguir o do vizinho – possibilitando uma redução providencial de custos diante da concorrência chinesa. REVISTA DO BRASIL

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E, terceiro, a própria recuperação da economia dos Estados Unidos permite prever uma tendência de aumento da demanda por produtos mexicanos. Novamente, trata-se de uma situação específica e não de um modelo a se contrapor à política econômica brasileira.

ANDREW GOMBERT/EFE

A questão do petróleo

“FOI SÓ UMA OPINIÃO” Standard & Poor´s foi uma das agências que avaliaram bem as ações dos bancos que provocaram a crise econômica de 2008. Passado o furacão, as mesmas agências voltam a ter crédito na classificação do “risco” de se investir nesse ou naquele país

Na ideologia neoliberal das agências de rating e seus clientes, o que justificaria o otimismo em relação ao México seria uma recente alteração na Constituição que põe fim ao monopólio estatal da exploração e produção do petróleo. Não está claro como será a legislação para regulamentar esse dispositivo. Mas quando o México embarcou em políticas liberais no início, há mais de duas décadas, não havia clima político e social para mexer com o petróleo. Partiu-se, então, para um processo de sucateamento que levasse a uma situação que “incriminasse” a manutenção do monopólio. Ao mesmo tempo em que os recursos proporcionados pela estatal Pemex eram utilizados para financiar o governo federal, este deixava de fazer os necessários investimentos na produtividade petrolífera. Atualmente, um terço do orçamento do governo depende da renda de petróleo. O problema é que a produção caiu de 3,83 milhões

A Argentina e os problemas de Cristina Ao falar da economia argentina atual, devemos antes lembrar que o país tinha sido o mais fiel seguidor das doutrinas neoliberais nos anos 1990, elogiado tanto pelos organismos internacionais como pelas publicações especializadas e não especializadas. Como consequência dessas políticas, o país atravessou no final de 2001 e começo de 2002 a maior crise da sua história. Chegou a ter cinco presidentes em 11 dias, e precisou deixar de pagar sua dívida por absoluta falta de recursos. Em meados de 2002, a pobreza afetava mais de 50% da população e o desemprego chegava a 25%. A sair desse buraco, a economia recuperou-se rapidamente, crescendo a um ritmo intenso. Inicialmente movida à retomada da 26

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indústria e da agricultura, favorecidas ambas pela desvalorização do peso frente ao dólar, e pelo aumento dos preços internacionais. De 2003 a 2011, o crescimento do PIB esteve acima de 7% em todos os anos, exceto na crise de 2009. Nesse período, houve forte redução das desigualdades de renda e na taxa de desemprego. O consumo estourou, batendo recordes de compra de eletrodomésticos e de carros, de turismo interno etc. Políticas como os planos Trabalhar e Chefes e Chefas, bem como a Contribuição Universal por Filho proporcionaram emprego e renda para os mais pobres ao longo dos governos de Néstor (2003-2007) e Cristina Kirchner (de 2007 até hoje). Superado esse impulso inicial, foi necessária

a reestatização das aposentadorias, que tinham sido privatizadas. Também se concedeu aposentadoria a todas as mulheres de mais de 60 anos, e aos homens de mais de 65, mesmo que não tivessem pago suas contribuições; houve também reajustes importantes nos benefícios. As negociações coletivas de trabalho foram valorizadas e contribuíram para aumentar os salários reais. Nos últimos dois anos, no meio do agravamento da crise internacional, a economia enfrenta problemas. A inflação, ressurgida em 2007, se manteve elevada porém constante, por volta de 25% ao ano. O crescimento do PIB caiu para perto de 2% ao ano. Ao mesmo tempo, surgiram problemas com o câmbio: desde 2002, e apesar de ter

feito uma ótima renegociação da dívida externa, o país não consegue novos empréstimos; portanto, depende muito das exportações e das reservas. Essas exportações em boa parte são agrícolas; o governo tem aplicado um imposto à exportação desses produtos, o que levou a um forte conflito com os produtores rurais em 2008, e a situação com eles continua tensa. Em 2013, eles retardaram as exportações, num movimento especulativo em compasso com a alta do dólar. Por sua vez, o governo tentou nos últimos anos segurar a cotação do dólar para controlar a inflação, restringindo sua venda. Surgiu então um mercado paralelo, no qual o preço da moeda americana se descolou do valor oficial, provocando uma corrida contra as reservas.


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de BOE (barril de petróleo equivalente), em 2004, para 2,91 milhões em 2012. Com a falta de investimento em capacidade de refino, o país ficou extremamente dependente da importação de derivados dos Estados Unidos. Consumiu o equivalentes a US$ 27 bilhões em 2012, enquanto exportou US$ 48 bilhões em óleo cru. Assim, a conta líquida de petróleo ficou abaixo das remessas dos migrantes. No mesmo período, 2004-2012, a produção no Brasil aumentou de 1,5 milhão para 2,1 milhões de BOE. Enquanto o Brasil está construindo quatro refinarias para ampliar sua capacidade e acabar com a dependência de importação de derivados, o México não tem um projeto sequer em andamento. E a falta de capacidade de refino, de exploração de gás e de tecnologia para exploração de petróleo em alto mar não é porque a Pemex foi estatal, mas porque os sucessivos governos de orientação liberal tomaram a decisão política de enfraquecer a empresa, levando a uma situação insustentável. E a disputa pelo novo marco regulatório do petróleo e gás no México ainda está longe de estar resolvida. A economia mexicana cresceu 1,1%, em 2013, metade do crescimento do Brasil. A balança comercial em 2013 ficou negativa (ao contrário da brasileira, que ficou positiva). E o mais curioso é verificar que as entradas de investimentos externos diretos, que registram os investimentos das empresas e não do setor financeiro, tiveram no México um valor acumulado no triênio 2011-2013 de US$ 75 bilhões, ante US$ 196 bilhões no caso do Brasil (161% a mais, sendo a economia brasileira apenas 80% maior que a mexicana). Se alguma coisa pode dar inveja aos brasileiros é o fato de a

Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC)

sociais, e recentemente criou um plano que dá uma bolsa para os jovens de 18 a 24 anos que não estudam nem trabalham, desde que voltem a frequentar escolar regular ou profissionalizante. A convulsão causada pela corrida contra o peso parece ter sido contida, e acordos de controle de preços têm evitado uma disparada da inflação. Nos próximos meses se verá se o governo conseguiu acalmar a situação e retomar o caminho do crescimento em meio à crise internacional, ou se as previsões céticas da oposição se confirmam. Esse embate será crucial para os rumos das eleições presidenciais de 2015, a qual a presidenta Cristina Kirchner já não poderá concorrer (Ramón García Fernández, professor titular de Economia da UFABC)

LEO LA VALLE/EFE/2012

Como resposta a essas dificuldades, o governo fez recentemente algumas mudanças, especialmente por meio de uma desvalorização que conseguiu trazer o dólar para um valor mais realista, reduzindo em parte a especulação. Apesar das dificuldades, o governo continua defendendo que o setor público recupere o comando das principais alavancas da economia. Um exemplo foi a expropriação, em 2012, da companhia de petróleo YPF, estatal desde sua criação em 1922 e que fora privatizada em 1993. A produção de petróleo, de gás e os investimentos, estagnados na época da privatização, aumentaram sob controle público. O governo também se mantém firme na sustentação de políticas

taxa básica de juros mexicana, em termos reais, descontada a inflação, estar em padrões civilizados de 3,5% ao ano. Com isso, o peso dos juros sobre PIB é bem menor que no Brasil, onde os juros reais estão na casa dos 5%. Mas se é correto admitir uma aposta na recuperação da economia mexicana, nada justifica que contraponham políticas suas, ditas “corretas”, às supostamente “erradas” do Brasil, como argumentam as agências de classificação. Em fevereiro, a Moody’s subiu o rating (o que significa dizer reduziu o “risco México”) do país. Já outra agência, a Standard & Poor’s, rebaixou o rating do Brasil. Claro, podem argumentar que trata-se “apenas de uma opinião”, tão consistente como a que não previu a podridão dos mercados que desembocou na crise de 2008. Mas nada mais que uma opinião ideológica.

CONTROLE Governo argentino defende o setor público REVISTA DO BRASIL

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País relembra 40 anos do movimento que interrompeu décadas de autoritarismo, mas ainda enfrenta dilemas Por Vitor Nuzzi

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ESTÊNCIL “REVOLUÇÃO DOS CRAVOS”. LISBOA, PORTUGAL. FOTO SARAH SEBASTIÃO

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Outra canção, esta da nova geração portuguesa, também demonstra suas inquietações. O grupo Deolinda lançou em 2011 o hit instantâneo Parva que eu Sou: “Sou da geração sem remuneração/ E nem me incomoda esta condição/ Que parva que eu sou!/ Porque isto está mal e vai continuar/ Já é uma sorte eu poder estagiar”. Os ares da revolução de 1974 também chegaram ao Brasil, ainda na forma musical. Na empolgação daqueles primeiros momentos, Chico Buarque compôs Tanto Mar para homenagear o movimento iniciado em Portugal – e evidentemente teve mais essa obra censurada. Os 40 anos da chamada Revolução dos Cravos, que se completam neste abril, serão motivo para uma série de eventos. O nome entrou para a história devido a flores que eram oferecidas a soldados, em apoio popular ao movimento. Mas enquanto discute seu passado, Portugal se incomoda com o presente.

O operário eletricista Manuel Carvalho da Silva lembra-se de onde estava naquele 25 de abril, quando tinha 25 anos. “Estava a trabalhar numa empresa multinacional do setor eletrônico (Preh), no Porto. Começávamos a trabalhar às 7h30. Passamos quase todo o dia, eu e outros colegas, a conversar sobre o que poderia acontecer”, lembra o ex-sindicalista e hoje sociólogo e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Para ele, do ponto de vista de ideais, como liberdade e soberania, muita coisa permaneceu daquele movimento. “A sociedade sofreu uma transformação profunda. Uma transformação extraordinariamente positiva na saúde, no ensino, nas comunicações. Hoje, há um retrocesso. Portugal está mais pobre, há mais imigração”, afirma Silva. Manuel é um dos 74 signatários de manifesto pela renegociação da dívida pública portuguesa divulgado em março pelo jornal Público. O documento, que reuniu

HENRI BUREAU/SYGMA/CORBIS/LATINSTOCK

a madrugada de 25 de abril de 1974, canções tocadas no rádio serviram de senha para o movimento que derrubaria o governo de Portugal e poria fim a décadas de autoritarismo, representadas pelo ditador António Salazar (1889-1970), sucedido pelo general Marcello Caetano. Uma música era Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, tocada nos primeiros minutos do dia 25. E seria ouvida em 2013 pelo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, durante uma reunião quinzenal com os deputados, em protesto vindo das galerias. O país avançou para a democracia, mas cinco anos depois do estouro da crise do sistema bancário que espirrou na Europa, vê cada vez mais gente contestar as ações de “ajuste”, por causar empobrecimento e perdas sociais. Na ocasião, Coelho teve de esperar para iniciar sua fala e, ao menos, fez menção ao “bom gosto” do protesto.

ATUAL COMO HÁ 40 ANOS Mário Soares desembarca em Lisboa: “A riqueza deve ser para os que trabalham, não para os parasitas e os banqueiros” REVISTA DO BRASIL

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NUNO GALVEIAS/WC

Deolinda: “Sou da geração sem remuneração”

expoentes de diferentes espectros ideológicos, sustenta que sem a reestruturação a situação do país só irá piorar, com “níveis inaceitáveis” de desemprego, precariedade do trabalho, emigração de jovens qualificados. Enfim, “crescerão os elevados custos humanos da crise”. Passos Coelho classificou o manifesto de “irrealista”, ao que Silva reage: “Irrealista é continuar a submeter os portugueses a uma dívida que é cada vez maior. Essa política não pode continuar. Objetivamente, é uma política de empobrecimento da sociedade”.

Transformação

Mário Soares era dirigente do Partido Socialista e estava exilado quando veio a Revolução dos Cravos. Seu desembarque de trem em Lisboa, em 28 de abril, foi um acontecimento. Estava lá para recebê-lo o general António de Spínola, do Movimento das Forças Armadas (MFA), que assumiria a chamada Junta de Salvação Nacional e seria o primeiro presidente pós 25 de abril – mas que renunciou quatro meses depois, em meio a desentendimentos entre as forças que participaram do movimento. Uma frase pronunciada por Mário Soares no retorno parece preservar atualidade: “A riqueza deve ser para os que trabalham e não para os parasitas e os banqueiros”. Quarenta anos depois, em artigo no Diário de Notícias, o ex-presidente português (1986-1996) atacou o atual mandatário, Cavaco Silva – que nunca usou cravos na lapela “talvez para mostrar à direita, a que pertence, que gosta mais do 28 de Maio de 1926, que abriu portas à ditadura, do que do 25 de abril de 1974”. Além da crítica política, Soares repete, com outras palavras, o comentário de 40 anos antes, ao se referir ao “estado desgraçado” a que Portugal chegou nos 30

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REBELDIA LUSA Manifestantes vão às ruas contra o sistema financeiro, que impõe austeridade, desemprego e cortes nos investimentos sociais

tempos atuais. “Só pensa (o presidente) nos mercados e ignora as pessoas.” Portugal acumula três PIBs negativos consecutivos (-1,4% em 2013, -3,2% em 2012 e -1,3% em 2011). A taxa de desemprego segue alta, em torno de 15% a 16%, o equivalente a mais de 800 mil pessoas à procura de trabalho, em um universo de 5 milhões de pessoas no mercado. Grande parte das críticas recai sobre a chamada Troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e União Europeia) e às condições de austeridade impostas ao país para equilibrar as finanças. Até um movimento foi criado nas redes sociais com o nome de “Que se lixe a Troika”. Ao falar das comemorações pelos 40 anos, a Associação 25 de Abril apresentou um logotipo com um ponto de interroga-

ção, para simbolizar a incerteza dos tempos atuais. E também uma canção. Com o título Resistir de Novo, de José Jorge Letria e Carlos Alberto Moniz: “Como foi que nos deixámos/ Arrastar para o vazio/ De tanto sonho traído/ Pelo que não se cumpriu”. E com ataques aos principais centros de decisões políticas e econômicas do continente: “Somos ficha de cassino/ em Bruxelas e Berlim/ Neste jogo de pilhagem/ Que parece não ter fim”. O presidente da associação, Vasco Lourenço, diz que o povo português “não pode continuar a aguentar a sela que lhe colocaram em cima”. Veterano de 1974, ele pertencia ao MFA, que estava à frente da revolução. Para Manuel Silva, a adesão de Portugal ao euro não foi bem discutida. “Hoje está provado que entramos na moeda única


MUNDO

PEDRO BENAVENTE/IMAGO/KEYSTONE BRASIL

sem avaliar as consequências. A sobrevalorização da moeda levou a uma ilusão de riqueza e a déficits muito profundos”, diz. “O euro, enquanto moeda única, transformou-se num instrumento de uma Europa dicotômica, dividida. Alguns se beneficiam e outros pagam por isso.” O economista e professor Francisco Louçã, ex-líder do partido Bloco de Esquerda e cotado para a sucessão de Cavaco Silva, diz que o euro “acentua as recessões em vez de as combater” e que sair da moeda única pode ser uma solução. “Mas tem um preço social importante. É, no entanto, evidente que as autoridades europeias, com Merkel (a primeira-ministra alemã, Angela Merkel) à cabeça, estão a deixar muito poucas alternativas aos paí­ ses mais sacrificados pela austeridade e pela diminuição dos rendimentos.”

Como foi que nos deixámos Arrastar para o vazio De tanto sonho traído Pelo que não se cumpriu

PATRÍCIA DE MELO MOREIRA/AFP/GETTY IMAGES

Resistir de Novo, de José Jorge Letria e Carlos Alberto Moniz

Modernidade

Louçã também foi signatário do manifesto, que para ele aponta uma prioridade evidente: reestruturar a dívida e acabar com as políticas de austeridade, na direção de medidas econômicas para o investimento e o emprego. “Não existe outra solução, essa é a primeira condição para a recuperação.” Ele defende a democracia construída a partir de 1974, e alerta que a injustiça não pode se constituir num regime de poder. “Mas essa é uma disputa da modernidade, quando o capital financeiro e os seus profetas liberais impõem a redução dos salários e das pensões, ou o aumento do desemprego para níveis históricos”, observa. Com 17 anos à época da revolução, Louçã lembra que integrava uma organização antifascista que, já a par do que aconteceria, organizava a resposta popular para o que chama de “explosão de democracia”. “Concentrávamos muito na ideia de terminar a guerra colonial (Portugal tinha colônias na África, que foram conquistando sua independência), o que veio a ser o principal conflito político dos primeiros dias da revolução – e a guerra acabou.” Também para ele, a data marcou definitivamente. “Tenho uma memória muito presente desses dias magníficos. O povo encheu as ruas e Portugal chegou ao século 20.” REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Quando escrever é

COMPROMISSO De origem pobre no interior de Minas, o escritor Luiz Ruffato faz de trabalhadores urbanos e subempregados seus protagonistas. Para ele, a democracia só será plena com educação Por Vitor Nuzzi e Sônia Oddi

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om tranquilidade, Luiz Ruffato dribla a provocação: como pode alguém nascido em Minas Gerais e morador de São Paulo ser torcedor do Flamengo? Se ainda fosse o Botafogo do Paraíso, bairro de Cataguases, onde ele nasceu, em 1961... Mas também tinha o Flamenguinho cataguasense, que teve como goleiro Humberto Mauro, referência dos primórdios do cinema brasileiro. Um mito do cinema, aliás, anda solto pelo apartamento: Federico Felino, o gato mais velho, parceiro de Sky. Antes de se tornar escritor, talvez mais conhecido fora do país do que aqui, Luiz foi ajudante de pipoqueiro (o pai, Sebastião), balconista de armarinho, operário de indústria têxtil, gerente de lanchonete, vendedor de livros, torneiro-mecânico e jornalista. Aos poucos, como poderia dizer o também mineiro Carlos Drummond de Andrade, foi penetrando surdamente no reino das palavras. Luiz conta que sabia que seria escritor. Algo muito distante de sua realidade pobre na pequena Cataguases, uma cidade com divisões sociais bem definidas: burguesia, classe média, operariado, lúmpen. Fazer o curso de tornearia mecânica no Senai significava um grande passo. “Algo como sair da pobreza extrema para a pobreza.” Por isso, entende-se o susto de dona Geni quando o filho adolescente viu uma novela, O Feijão e o Sonho (1976), e disse que seria escritor. Como o protagonista (Cláudio Cavalcanti), que sonhava em se dedicar apenas à poesia, mas que tem uma mulher pragmática (Nívea Maria) e precisa trabalhar para sustentar a família. Para construir o sonho, Luiz foi atrás do feijão. E tornou-se, talvez, o primeiro a pôr em primeiro plano o garçom, o faxineiro, a balco32

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nista – trilhando o caminho aberto por Roniwalter Jatobá –, preocupado em não idealizar o trabalhador. Para ele, esse mundo não aparece mais na literatura brasileira porque o país, e não só os autores, despreza o trabalho. O livro Eles eram muitos Cavalos, de 2001, tornou o escritor, então com 40 anos, conhecido fora do Brasil, premiado e com traduções em alemão, espanhol, francês, inglês e italiano. Ele vê melhoras no país nos últimos anos, mas diz que trocaria qualquer programa por uma política de educação de qualidade para todos. E observa certa esquizofrenia. Por um lado, ensino público e privado muito ruim. De outro, iniciativas como a de Otávio Júnior, o chamado “livreiro do Alemão”, criador de um projeto de bibliotecas no complexo de favelas carioca. “Um moleque carregando um monte de livro pra criança numa caixa de plástico, no meio do tiroteio. E sem receber nada, porque gosta. Como ele, conheci vários. Este país é esquizofrênico.” Quando se lembra de 1964, costuma-se falar das prisões, torturas, mas e a educação? O golpe interrompeu um projeto?

A história do Brasil é uma história de exclusão. O que a ditadura fez não foi destruir um projeto em andamento, mas o que tinha de educação pública. As pessoas dizem que antigamente a educação pública era boa, hoje é uma porcaria. Mentira. Era para meia dúzia de pessoas. Em Cataguases, quem tinha acesso à educação era a elite. A classe média baixa não tinha sequer acesso à educação, o nível de analfabetismo era altíssimo. O que a ditadura fez foi pegar esse restinho de educação e também destruir. A ditadura de 1964 não é um evento isolado. A história

Os meus personagens, não são contra o sistema. Eles querem comer bem, ter carro, boa educação. Para mim, isso é mais revolucionário do que qualquer outra coisa


REGINA DE GRAMMONT/RBA

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política do Brasil é uma história de golpes. Esses 29 anos de democracia, que não é nada, são o maior período de democracia de toda a história do Brasil. Com tantos problemas, por onde começar?

Antigamente eu achava que eram várias frentes. Hoje eu acho que é uma frente só: a educação. Saúde, por exemplo, é uma questão que se você quiser, resolve em cinco anos. Educação, não. Se você começar hoje, vai ver daqui a 20, 30 anos. Educação é a longo prazo. Mas tem de começar. Eu abriria mão até de qualquer outra coisa, de uma reforma no sentido de ampliar a renda... Nem precisa. Vamos ter educação. Educar é você ter contato, experimentar. Tem uma frase de um escritor (sérvio) chamado Danilo Kis que eu acho fantástica: quem lê vários livros, busca o conhecimento, quem lê só um livro busca a igno-

rância. Isso serve para tudo. Se você ouve uma música, está na ignorância. Se ouve outras, está pelo menos tentando conhecer. Como foi o processo de criação do livro Eles eram muitos Cavalos, de imersão nas histórias de personagens tão diversos?

Parece conversa de mineiro, tudo tem de ter uma história... Minha mãe falava do meu pai: “Eu não aguento, ele dá umas voltas...” (risos). Mas ele amarrava bem. Então, vou retomar um pouco o que estávamos falando, de escrever sobre esse mundo operário, esse mundo do trabalho. Quando eu estava na faculdade, comecei a ler e achei estranhíssimo que não houvesse literatura a respeito. Eu queria muito escrever sobre isso e não sabia como. Não é que eu tentava e não dava certo. Eu nunca escrevia. Faltava uma forma para escrever. Eu achava REVISTA DO BRASIL

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absurdo escrever sobre esse mundo, sobre essas pessoas que eu conhecia, usando aquela fórmula de começo, meio e fim, uma invenção da burguesia, pra criar identidades mesmo. Só que os meus personagens não tinham nome e sobrenome. Eu tinha de fazer um exercício formal para entender como é que eu escreveria sobre esse mundo. Um dia estava saindo de uma bienal de artes plásticas e vi uma exposição que era na verdade um monte de calçados amontoa­dos num canto. Tudo usado, sapato, tênis, chinelo de dedos. Era uma instalação estranhíssima. Acho que fiquei tanto tempo lá pensando que o meu cérebro disse “vou dar uma explicação pra você ir embora”. A explicação que eu tive naquele momento, que até hoje eu acho melhor pra mim, é que aqueles calçados todos tinham sido usados por alguém. E, portanto, alguém tinha imprimido uma história neles. Uns tinham andado de avião, outros na periferia da cidade, nos shoppings, cada calçado representava uma história. Quando saí dali, tive esse insight. Não tenho de escrever uma história, eu só tenho de expor, e as pessoas que criem as histórias. Então fui fazer um exercício. Sentei e escrevi Eles eram muitos Cavalos. Foi um exercício para entender isso: como eu posso escrever uma história que não tem história, que o leitor é que é importante? O livro acabou tendo uma repercussão, e eu pensei: é exatamente o que eu preciso, escrever as histórias que eu queria, usando essa forma. E quatro anos depois comecei a publicar o Inferno Provisório. A ideia estruturalmente é a mesma. As histórias não têm uma sequência lógica... Eu me empenhei muito mais no Inferno Provisório do que no Eles eram muitos Cavalos. São mil páginas, um monte de personagens, e teve pouca repercussão. Foi um pouco frustrante. As histórias vão e voltam, né? São vários tempos ali, é um tipo de construção difícil.

Esses anos todos eu passei tentando entender o “como”... Para mim, tinha uma questão muito séria, que era romper o romance burguês, de começo, meio e fim. Tinha uma questão que me incomodava: todas as poucas vezes em que na literatura brasileira alguém – tirando Roniwalter Jatobá – tentava construir personagens trabalhadores, incorria em dois erros. Primeiro, era linguagem. Porque é um personagem pobre e você tem de construir romances naturalistas; uma pessoa pobre só pode desenvolver uma história pobre. Por exemplo, vou pegar um Jorge Amado, que fez algumas coisas, incursionou mais. Os romances dele são escritos de maneira naturalista, linguagem pobre, os personagens têm psicologia pobre. Tudo simples. É demagogo. É como se você pensasse o seguinte: um leitor qualificado pode ler o Joyce, um leitor desqualificado, não. Então, você tem de rebaixar a linguagem, rebaixar a psicologia. E eu acho isso um absurdo. Desse ponto de vista, gosto muito do Oswald de Andrade. Ele entrou para o Partido Comunista e o pessoal começou a pressionar para escrever uns livros mais “fáceis”, e ele escreveu: “O meu sonho é que um dia todas as pessoas vão poder usufruir do biscoito fino que eu produzo. E não o contrário”. Genial. 34

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REGINA DE GRAMMONT/RBA

Uma instalação...

A história do Brasil é de exclusão. O que a ditadura fez não foi destruir um projeto em andamento, mas o que tinha de educação pública. As pessoas dizem que antigamente a educação pública era boa. Era para meia dúzia de pessoas E o outro erro...

E a outra coisa era sempre, quando aparecia um personagem trabalhador, era um revolucionário. Idealização?

Completa. Os meus personagens, por exemplo, não são contra o sistema. Eles querem comer bem, querem ter carro, boa educação, como todo mundo, ter geladeira, casa, água encanada. Para mim, isso é mais revolucionário do que qualquer outra coisa. É o cara que quer mudar o mundo para usufruir das coisas que todo mundo usufrui. As pessoas não querem mudar o mundo, querem mudar o seu mundo?

Não, mas veja bem, não é uma coisa individualista, aí é que está. Vamos imaginar o seguinte. Para mim, tudo se passa no âmbito do acesso. Você tem uma família de cinco irmãos. Se você dá a eles acesso às mesmíssimas coisas, o que vai acontecer? Todos vão ser os mesmos? Não. Vamos criá-los dando funk, música clássica, música popular brasileira, rock e jazz. Isso significa que todos vão gostar de tudo? Não. Mas eles todos tiveram acesso e, portanto, podem escolher. Por isso eu acho que não é uma questão individualista nesse sentido. Para mim, revolucionário é o cara que luta para que todos saiam do mesmo lugar.


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Condições iguais.

É o mínimo. Educação igual pra todo mundo, boa educação, mesmo. O moleque que mora lá no Morro do Alemão e o cara de Perdizes. Isso tem a ver também com o que você quer da sua vida. Para quem ainda não descobriu o prazer da literatura, quais livros você recomendaria?

Ontem, na minha crônica do El País, contei como eu descobri a literatura. Aí você vai ver que não há uma resposta para isso. Um dia, eu estava vendendo pipoca, chegou um senhor e perguntou: “Você está estudando, menino? Onde você estuda? No Antônio Amaro? É muito ruim! Por que você não estuda no Cataguases?” Meu pai disse: “Eu vou todo ano lá e não consigo vaga”. “Fala comigo, eu consigo uma vaga pro seu filho.” E fui estudar lá. Eu entrava na sala de aula e todas as crianças sabiam que eu era pobre. Eu era discriminado. E não tinha coragem de contar pro meu pai, custou tanto para arrumar uma vaga... Aí o que eu fiz? Comecei a querer ficar invisível. Comecei a procurar um lugar em que ninguém me visse. Descobri um lugar fantástico. Até que um dia a bibliotecária pensou: “Esse menino deve ser meio maluco. De repente, quer pegar um livro emprestado e está tímido”. Ela me chamou: “Aí, pega esse livro e leva pra casa”. Fez minha ficha. “Devolve daqui a quatro dias.” Quando cheguei o meu pai, que era muito severo, perguntou: “Mas por que você trouxe pra casa?” “A mulher da escola mandou eu trazer, ler e levar de volta.” “Então devolve.” Eu li, devolvi, ela me deu outro. Cheguei em casa, de novo o meu pai: “Mas você não devolveu?” “Devolvi, ela deu outro...” “Então lê e devolve, não é nosso!” Li e pensei: “Agora acabou...” Bom. Eu li todos os livros que aquela mulher me mandou. Chegou o final do ano e eu saí do colégio, falei pro meu pai que não queria, porque os meninos me enchiam o saco. Sabe qual foi o primeiro livro que ela me deu? O que vocês imaginam? Monteiro Lobato?

Com 12 anos, era o que tinha...

Ela me deu um livro chamado Babi Yar, de um ucraniano chamado Anatoly Kuznetsov. Sabe sobre o que é? Sobre o massacre de 100 mil judeus em uma guerra mundial. Por que ela deu esse livro pra mim? Não sei, ela também não devia saber. Era uma pessoa que estava lá por acaso, deu o primeiro livro que encontrou. Passei mal lendo. Você quer que eu recomende uma coisa pros seus leitores? (gargalhadas)

Você falou que em Cataguases era tudo estanque: proletariado, burguesia, lúmpen, classe média. Por que o mundo do trabalho não apareceu na literatura?

O primeiro ponto de explicação é que realmente,

as artes, em geral, e a literatura, particularmente, se constroem a partir de sua experiência pessoal. E não é muito comum autores nascidos do trabalho pensado dessa maneira mais operária terem a sofisticação da linguagem para escrever literatura. Tem de ter, não adianta, a literatura é linguagem. Agora, mesmo os poucos autores que nasceram de famílias pobres, de alguma maneira ligados ao trabalho, que conseguiram ser escritores, também não escreveram sobre o mundo do trabalho por uma razão muito simples: nós, no Brasil, temos um profundo desprezo pelo trabalho. Esse desprezo acaba contaminando o trabalho nas artes, por exemplo. E o novo livro?

Vai ter uma reedição do De Mim Já Nem se Lembra, junto com o romance novo, que vai se chamar Flores Artificiais. Vou tentar explicar... Tem um consultor do Banco Mundial que trabalhava há 25 anos fazendo consultoria para diversas coisas, na área de engenharia. Na passagem de 1999 para 2000, ele tem um apartamento ali na rua Paissandu, no Flamengo, e se vê sozinho, sem amigos. Já tem 60 e poucos anos. Entra numa depressão e vai procurar uma psiquiatra. Ele mora em Washington, fica meses sem voltar pra lá. Ela dá alta, mas eles continuam conversando. E as histórias que ele conta pra ela não são da vida dele, mas de gente que ele conheceu durante as viagens que fez. E sempre são pessoas que estão deslocadas. Por exemplo, um menina portuguesa no Timor Leste que começou a ter problemas por ser muito bonita. Acaba conhecendo aqueles crocodilos de água salgada, uns bichos de sete metros, e ela se joga no mar para eles a comerem. Quem está contando isso pra ele é um timorense. Tem uma outra um uruguaio que conta pra ele que o pai sumiu durante a ditadura, e ele sempre dizia que o pai tinha sumido por problemas políticos. E um dia descobre que ele tinha vindo morar em São Paulo, e que na verdade fugiu por causa de um mulher e o largou quando ele era criança. Tudo isso pra contar o seguinte: esse consultor, o Dório Finetto, é de Rodeiro, que é a colônia da minha mãe, e ele nunca tinha lido os meus livros. Falam pra ele mandar as histórias pro Luiz Ruffato. Aí eu li as histórias, achei muito ruins, e as reescrevo. O livro dele chama Histórias da Vida Alheia, e está dentro de Flores Artificiais. Mas é tudo mentira. No final eu faço uma pequena biografia dele. Mas eu criei de brincadeira. A Biblioteca que Virou Pó (crônica no El País sobre um local que deixou de funcionar por pressão de traficantes) é verdade?

Essa é verdade, é real (risos).

Quando eu estava na faculdade, comecei a ler e achei estranhíssimo que não houvesse literatura a respeito do mundo do trabalho. Eu queria muito escrever sobre isso e não sabia como

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CIDADANIA

O outro ângulo do cartãopostal Sensibilidade, qualidade técnica, profissionalismo e inclusão. O encontro de jovens da Maré com a fotografia revela novas possibilidades para a paisagem e a vida na favela

AF RODRIGUES/IMAGENS DO POVO

Por Renata Silver

Crianças se refrescam com picolé enquanto Rejane Desidério toma sol (Parque Maré, 2007)

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Complexo de Favelas da Maré é famoso por sua extensão, seus problemas e, principalmente, pela violência. A comunidade, encravada entre a poluída Baía de Guanabara e a Avenida Brasil, lembra tudo, menos beleza. Mas um projeto pioneiro de fotografia mostra que nem só de praias e montanhas famosas é feita a paisagem do Rio de Janeiro. O projeto Imagens do Povo começou em maio de 2004 com o fotógrafo João Roberto Ripper, conhecido pela extensa documentação do trabalho escravo e autor de alguns dos mais importantes registros dos excluídos do país. Prestes a completar dez anos, a agência-escola é a única a oferecer ensino, prestação de serviços fotográficos e acervo para comercialização. O programa conta ainda com um espaço para expor os trabalhos dos fotógrafos da casa, a Galeria 535. Atualmente está em cartaz a mostra Folia de Imagens, com registros do carnaval de várias cidades brasileiras feitos por 22 profissionais. O curso, que já formou mais de 200 fotógrafos, é gratuito e muito disputado. O interessado não precisa morar na Maré, há até alunos da classe média, moradores do “asfalto”. Mas o projeto é de interesse social, e ser morador da periferia é critério de desempate. Alunos e funcionários ressaltam que o trabalho se baseia no respeito e na promoção dos direitos humanos. As imagens denunciam o sofrimento, mas também reverenciam o povo e suas festas, costumes, sacrifícios, alegrias. Além da técnica, os fotógrafos aprimoram a sensibilidade, adquirem paixão pelo ofício e capacidade de enxergar além de rostos e paisagens. “Fotografo pensando no retorno que o trabalho poderá ter para as pessoas que fotografei. Não importa o que os críticos de arte falam das imagens. Se o fotografado se vê representado, se ele se reconhece, considero um ganho”, relata Ratão Diniz, nascido e criado na Maré, aluno da primeira turma e um dos expoentes da agência-escola.

VALDA NOGUEIRA/IMAGENS DO POVO

Jovem soltando pipa (Jacarezinho, 2009)

LÉO LIMA/IMAGENS DO POVO

CIDADANIA

Maria Severina da Silva, 70 anos, e Eduardo na cozinha de uma pequena propriedade do sítio da Boa Vista (Barra de Santa Rosa, município do Cariri paraibano, 2013)

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Alexandre Silva, coordenador de comunicação do projeto e curador da Galeria 535, não é fotógrafo, começou como estagiário e hoje se identifica profundamente com o trabalho. “Sou da Baixada Fluminense e o que vejo aqui são lutas que sempre vivenciei, embora não tivesse consciência de que também era um ator nesse processo. Compreendi a importância do trabalho que se faz aqui e fico muito satisfeito por fazer parte disso”, explica. O Rio de Janeiro dos cartões-postais é o da área nobre da cidade, com suas praias e monumentos. As periferias aparecem como regiões tristes, feias, violentas e cheias de mazelas. Aos olhos dos moradores de áreas nobres, os habitantes da favela exprimem desesperança, medo e desejo de deixar o local. “Há pouco material fotográfico que mostre além da zona sul, talvez porque essa região concentre os cursos e os fotógrafos. Isso distorce a representação da cidade”, avalia Erika Tambke, gerente de atendimento e relações comerciais da agência. O Imagens do Povo coloca as câmeras nas mãos dos alunos e os instiga a buscar material em sua vizinhança. Os aprendizes descobrem que há valor nos saberes e espaços de suas comunidades. “Da primeira vez que disse a uma turma que sairíamos para fotografar, os alunos pensaram que iríamos à praia, ao Pão de Açúcar. Nem passava pela cabeça deles que poderia haver coisas interessantes para fotografar aqui mesmo, na Maré”, relata Rovena Rosa, uma ex-aluna que se tornou professora e coordenadora do programa.

RATÃO DINIZ/IMAGENS DO POVO

CIDADANIA

Mayara Souza de Assis durante o 2º Sarau do Alemão, evento que reúne diversas atividades culturais e de lazer (2011)

O Imagens do Povo surgiu de maneira despretensiosa. Convidado pelo Observatório de Favelas, João Ripper foi à Maré para produzir imagens da comunidade. O interesse dos moradores, principalmente os mais jovens, pelo trabalho daquele homem de fala mansa, com uma câmera na mão, provocou a montagem de uma oficina de fotografia. Em seguida, Ripper organizou um curso de quatro meses, com aulas diárias, num total de 320 horas/aula, para ensinar segredos da fotografia aos adolescentes e jovens da comunidade. Iniciada em maio 38

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Meninos brincando de pião (Conjunto de Favelas do Alemão, 2009)

FRANCISCO CÉSAR/IMAGENS DO POVO

Histórico


LÉO LIMA/IMAGENS DO POVO

CIDADANIA

Ratão Diniz, Valda Nogueira, Dante Gastaldoni e Rovena Rosa

Família Espírito Santo da Silva em casa (Baixa do Sapateiro, Maré, 2004)

EDMILSON DE LIMA/IMAGENS DO POVO

FÁBIO CAFFÉ/IMAGENS DO POVO

Meninas brincando de pular corda (Jacarezinho, 2010)

de 2004, a primeira turma formou 22 fotógrafos populares, sob a coordenação de Ripper e do colega Ricardo Funari. O curso como existe hoje foi montado em 2006. A carga horária passou para 540 horas, e Ripper convidou para a coordenação acadêmica da escola Dante Gastaldoni, professor de Fotojornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade Federal Fluminense (UFF). “Naquele ano eu estava completando 30 anos de magistério e o curso foi um presente. Fiquei encantado com a receptividade”, recorda Dante. O nível das aulas da escola não é inferior ao de outros profissionalizantes disponíveis no mercado do Rio de Janeiro, nem ao das faculdades de Jornalismo. A carga horária é extensa. Além das aulas expositivas, a cargo de Dante, Ripper e mais três professores, há palestras regulares com profissionais renomados. Mas não há cerceamento à espontaneidade. “Aqui há uma desorganização criativa, uma liberdade, que não se encaixa nos cânones do sistema de créditos. O projeto tem pulsação própria, a sensação de pertencimento que há aqui não existe na universidade”, compara Dante. A qualidade do curso passou a ser reconhecida. O certificado foi emitido pela UFF, por meio de um convênio, de 2007 a 2009. Hoje, é pela UFRJ. “Mesmo com essa desorganização criativa, temos critérios firmes. Ao final do curso, cada aluno apresenta um projeto e é avaliado por uma banca. Se o processo avaliativo não fosse sério, não teria a chancela de universidades federais”, destaca o coordenador acadêmico. Segundo ele, a banca é rigorosa. Avalia se o aluno foi bem no curso, se participou intensamente das atividades, se tem competência técnica para se tornar fotógrafo da agência e se produziu fotos com qualidade para integrar o acervo do banco de imagens. A preocupação com a qualidade técnica e teórica estimula os alunos a buscar formação superior.

Dedicação

O que mais emociona Dante e Ripper é a postura dos alunos. “Eles fazem da fotografia sua vida. Cada fotógrafo leva anos fotografando o mesmo tema, cada REVISTA DO BRASIL

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Legado

A relação entre os professores, gestores, alunos e ex-alunos do projeto é marcada pela afetividade e o companheirismo. “Aqui temos um sentido de 40

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Vinicius Ferreira no Clube Festa do Gol (Maria da Graça, 2010)

Seu João Bolinha, vendedor ambulante que encanta as crianças com suas bolinhas de sabão (Nova Holanda, Maré, 2008)

AF RODRIGUES/IMAGENS DO POVO

um escolhe aquilo que o interessa”, explica Dante. O maior exemplo disso é a obra de Ratão Diniz. O grafite foi assunto de seu projeto de final de curso e ainda rende muitas fotografias. Seu tema mais recente – o Bloco da Lama, tradição do carnaval de Paraty – já é documentado há cinco anos. “O que me move é contar as histórias das pessoas, me interesso pelos temas da realidade. Quero vivenciá-los e me manter sempre em movimento”, define. Com seu primeiro livro individual previsto para este ano, ele não se considera pronto e sempre busca a companhia e a troca de ideias com os colegas. A fotógrafa Valda Nogueira também demonstra esse companheirismo. Formada em julho de 2013, Valda fotografa profissionalmente, expõe, adquiriu equipamento próprio e produz uma obra autoral elogiada. Seu olhar afiado percebeu, por exemplo, que há uma diferença entre os olhares feminino e masculino. “A mulher tende a abordar outras leituras dentro do mesmo tema. As fotógrafas que conheço costumam enxergar e registrar melhor as questões de gênero. A maioria se envolve com este assunto porque ele está presente em suas vidas, a fotografia é uma forma de expressar a necessidade de discuti-lo”, acredita. Valda deixou a faculdade de Biologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) quando entrou para a Escola de Fotógrafos Populares. Formada, voltou para a universidade, onde acaba de iniciar o curso de Artes Visuais. “Virei fotógrafa para sempre. Mas também posso buscar outras expressões, cinema, talvez, e outras referências das artes visuais”, diz. Ratão, que começou a fotografar os grafiteiros por conta da frustração de não desenhar bem, também se sente à vontade com a multiplicidade de expressões artísticas. “Não só as artes visuais, mas também a música, a poesia, outras formas de arte complementam a linguagem da fotografia”, defende.


RATÃO DINIZ/IMAGENS DO POVO

CIDADANIA

FÁBIO CAFFÉ/IMAGENS DO POVO

LÉO LIMA/IMAGENS DO POVO

Torcedores do Flamengo assistindo pela TV ao jogo em que o time rubro-negro derrotou o Grêmio por 2 a 1 e conquistou o sexto título brasileiro (Nova Holanda, Maré, 2009)

Folia de Reis (Duque de Caxias, Baixada Fluminense, 2009)

RATÃO DINIZ/IMAGENS DO POVO

Maria da Silva no Morro do Cavalão (Niterói, 2007)

coletivo. Claro que há tensões, mas há muita fraternidade. Mesmo depois de formados, os alunos se encontram aqui, saem juntos para fotografar, estão sempre em contato, discutindo fotografia”, relata Dante, orgulhoso dos pupilos. A competição dá lugar à colaboração, seguindo o exemplo do desprendimento de Ripper. O fundador do projeto é frequentemente alertado por alguns de seus colegas, contrários à formação de fotógrafos populares, de que está criando a própria concorrência. Mas o relato de Ratão Diniz mostra que o modo de pensar do mestre é o oposto. “Da primeira vez que me candidatei a um edital, pedi ajuda a ele para preencher o formulário. Ele me ajudou com a maior generosidade. Depois, eu soube que ele estava sem dinheiro e fiquei constrangido, disse que ele deveria pegar o trabalho no meu lugar. Dias depois nos encontramos aqui na escola, ele segurou minha mão com as duas mãos dele, me olhou e disse: ‘Esse edital é seu. Não se preocupe comigo. Meu maior pagamento é ver que o fotógrafo que eu formei está trabalhando’. É assim que ele pensa.” Alunos formados na escola passaram a ser convidados a ministrar oficinas. Daí surgiu o curso de Formação de Educadores em Fotografia, que se tornou mais uma ferramenta de multiplicação. E além da profissão, ex-alunos aprenderam a estimular a popularização da fotografia. Ratão Diniz é um dos que valorizam este caráter de formação de consciências. “Tem a ver com democracia, com o direito à comunicação, a mudança do olhar. Por isso, não gosto de dar aulas se perceber que o trabalho não vai ter continuidade. Tenho planos de fazer uma viagem pelo interior do Nordeste fotografando, mas também ensinando a fotografar. E planejo deixar a câmera quando for embora de cada cidade”, avisa. O pano de fundo para o desenvolvimento artístico e profissional desses cidadãos é o Complexo de Favelas da Maré. E o mais belo retrato tirado desse cenário não é a glamourização da pobreza e ou da estética das desigualdades. Mas a transformação de cidadãos em protagonistas, ponto de partida para se revelar uma nova realidade. REVISTA DO BRASIL

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CULTURA CAIXÃO LACRADO Iara foi morta na Operação Pajuçara, sob comando do delegado Fleury

Iara amava demais

A fé e a vibração de Iara Iavelberg – pelas pessoas, seus sonhos e sua luta – eram intensas. E sua sobrinha Mariana Pamplona reuniu num documentário impecável novos elementos a desautorizar a versão de suicídio Por Paulo Donizetti de Souza

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bancária Nilda Cunha tinha 17 anos, era estudante secundarista em Salvador e dividia com o namorado Jaileno Sampaio um apartamento na praia da Pituba. Militavam no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Por orientação do comando, hospedavam uma companheira de São Paulo, a psicóloga Iara Iavelberg. Naquele 20 de agosto de 1971, os três estavam entre os que cairiam perante a Operação Pajuçara. A ofensiva da repressão tinha como alvo 42

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o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, comandante daquele agrupamento guerrilheiro e companheiro de Iara. O efetivo da operação contava com mais de 200 homens das Forças Armadas, policiais federais, do Dops e da PM da Bahia. Segundo escreveu o jornalista Elio Gaspari, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que saiu de São Paulo para acompanhar a operação, passou a mão em seu rosto e disse: “Vou acabar com essa sua beleza”. Nilda teve os olhos desvendados apenas quando foi levada para diante do cor-

po de Iara, já baleada e morta. Nas dependências da Base Aérea de Salvador, passou por sessões intensas de tortura. Solta semanas depois, debilitada, cega e enlouquecida, morreu em novembro daquele ano, com seu laudo de óbito atestando “edema cerebral a esclarecer”. Dona Esmeraldina, mãe de Nilda, passou o resto de seus dias bradando aos quatro cantos que a filha fora violentada, torturada e envenenada. Em outubro do ano seguinte, foi encontrada morta com um fio enrolado no pescoço. “Suicidara-se”. A versão policial oficial lembra a da morte do jornalista Vladimir Herzog, três anos adiante. Iara também teve anotado em seu óbito o termo suicídio. Teria atirado contra o próprio peito, segundo o laudo do legista Charles Pittex. A morte só foi divulgada um mês depois, quando a operação eliminou Lamarca no interior da Bahia. A família foi proibida de abrir o caixão lacrado em que lhe entregaram o cor-


CULTURA

po. Por ordem da tradição judaica, foi segregada na ala dos suicidas do Cemitério ­Israelita do Butantã, em São Paulo. Daquele dia em diante, parte da vida dos pais, ­irmãos e amigos seria dedicada a encontrar provas de que na vida apaixonada, vibrante e dedicada ao triunfo de Iara Iavelberg não havia espaço para acreditar que atirasse contra si mesma, aos 27 anos.

Reconstituição

O documentário Em Busca de Iara, que estreou em 27 de março, na passagem dos 50 anos do golpe, faz parte dessa missão. O filme é dirigido por Flavio Frederico, com produção e roteiro de sua mulher, Mariana Pamplona. A mãe de Mariana, Rosa Iavelberg, estava grávida de três meses quando sua irmã Iara morreu. Por precaução, não deu à filha o sobrenome. Mariana tinha 21 anos quando, em 2003, a família conseguiu na Justiça a exumação dos restos mortais da tia junto ao contrariado Cemitério Israelita. O ato, registrado em vídeo, foi embrião do documentário. A ideia passou a virar desejo depois que um novo e minucioso laudo assinado pelo legista Daniel Munhoz derrubava possibilidades de que Iara tivesse disparado o tiro que a matou. E tornou-se projeto após 2006, quando seus restos mortais puderam ser sepultados junto aos dos familiares, momento também transformado em ato político pelo direito à memória e à verdade e igualmente registrado pelas câmeras de Flavio e Mariana. O diretor já havia filmado ficção (Boca, 2010) e documentários. Caparaó (2006), sobre a primeira tentativa de resistência armada ao golpe, premiado no É Tudo Verdade de 2006, também tive parceria com Mariana. Ele já conhecia a importância mítica de Iara. “Mas não sabia ainda que nascia ali um filme – ‘O’ filme – sobre ela. As ficções eu escolho, mas o documentário me escolhe. Não era só Iara, era a história do Brasil, da Mariana, da família dela”, diz. Depois de tomar aquelas primeiras imagens, planejar e colher pessoalmente os depoimentos para o filme – ao longo de quase oito anos –, Mariana tornou-se ela própria “personagem” e fio condutor. “Não estava planejado, mas o filme

foi feito assim, e acabei sendo convencida pelo diretor de que esse formato foi coe­ rente com a lógica da construção de um documentário”, explica. O fascínio pela história da tia vinha desde a infância, sobretudo da convivência intensa com a avó Eva Iavelberg. Mariana era codinome da ativista em sua clandestinidade. Aos 15 anos, a sobrinha leu na íntegra os diários de Lamarca, em que o ex-capitão revelava a grande influência intelectual de Iara sobre suas decisões e uma paixão extrema e incondicional. Os textos publicados num jornal foram mostrados pela mãe. A arte-educadora Rosa não era ativista como os irmãos Samuel, Raul e Iara. Apenas ajudava nos dias de clandestinidade em encontros para levar comida, roupas e afeto. Nos anos 1970, mantinha uma instituição privada de ensino, Criarte, com proposta pedagógica humanista, que viria a se chamar Escola da Vila. Seus depoimentos no filme, assim como dos tios Samuel, Raul e Evelise, situam a narradora num ambiente familiar em que é descrita a personalidade, o caráter e a energia de Iara Iavelberg, sua beleza e seus cuidados com a aparência, feminilidade e a inteligência aguçada. As entrevistas testemunham uma militante influente, que não era simples “amante” de Lamarca, como desqualificavam seus perseguidores. Ela apresentava ao capitão base teórica do marxismo e do socialismo. Tinha ascendência intelectual e política sobre suas decisões. E os relatos seguem desenvolvendo sua dedicação ao movimento, dos treinamentos no Vale do Paraíba em 1969 à fuga para a Bahia em 1971. O documentário é também cuidadoso com a ambientação histórica. Uma cena de apenas um minuto, por exemplo, traz uma propaganda das Olimpíadas do Exército em meio a imagens de programas musicais festivos da Rede Globo e um texto ufanista que mais imbeciliza do que promove a “juventude”. Mas o trecho mais importante é a incursão em Salvador, a descrição de co-

mo e por que o grupo caiu sob a Operação Pajuçara e a reconstituição do cerco ao apartamento. Uma vizinha e a ex-proprietária do imóvel detalham as cenas em que o apartamento é tomado pelo gás lacrimogêneo e esvaziado com militantes presos. Contam como Iara grita “não atirem, eu me rendo”. Ela havia conseguido se esconder, mas acabou descoberta por um menino que voltou para abrir as janelas para saída do gás e a delatou. Mariana e Flavio reconstituem o exame de balística feito após a exumação, que descarta a hipótese de Iara ter disparado contra si mesma. E o confrontam com o depoimento do médico Lamartine Lima, legista do Instituto Nina Rodrigues e integrante da Junta de Saúde da Base Naval, que mantém a tese do suicídio. Foi preciso ter sangue frio: “Tive vontade de dizer muitas coisas a ele, mas não podia pôr a perder a entrevista”. O menino que volta à cena e vê Iara também é localizado pelo casal. É José Arthur Bagatine, que fez por telefone relatos que ajudariam a desconstruir a versão, mas desistiu de gravar. Para Mariana, as evidências tornam inconcebível que muitos tenham acolhido a versão do suicídio como verdadeira. “Mesmo porque, de toda versão dada pela ditadura isentando-se da autoria de crimes, é preciso desconfiar.” Estão aí para dar-lhe razão Rubens Paiva, Herzog, ­Stuart Angel, Virgílio Gomes da Silva e tantos outros casos que vêm sendo desvendados desde a produção do documento Brasil Nunca Mais, pela Comissão Justiça e Paz da ­Arquidiocese de São Paulo nos anos 1980, até os recentes testemunhos recolhidos pelas comissões da verdade. E a verdade precisa vir à tona, como dizia dona Eva, mãe de Iara, em cena gravada em 2003. “Para que todas as gerações futuras fiquem a par do que aconteceu naquela época. Você acha que uma mãe esquece quando perde uma filha. Isso vai me doer enquanto eu viver.” Eva Iavelbeg morreria ainda naquele ano. Iara, retirada da ala dos suicidas, repousa ao seu lado. REVISTA DO BRASIL

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Cachos de prosperidade Foi-se o tempo em que produção de vinho era precedida de uma boa pisada nas uvas. Mas a Serra Gaúcha ainda abre espaço para quem quer lambuzar os pés e saborear o passado Por José Paulo Borges Fotos de Jesus Carlos/Imagemglobal 44

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s irmãos Daniel, de 42 anos, e Márcio Longo, 38, ficaram aliviados. Os ventos fortes e a chuva que caiu na primeira quinzena de fevereiro não causaram grandes danos nos cerca de seis hectares de parreirais plantados em sua pequena propriedade, com as variedades de uvas niágara, bordô e isabel prontas para a colheita. Os comentários que corriam entre os produtores de São Miguel, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, não eram animadores. Em apenas um hectare numa comunidade


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TRADIÇÃO Nei pilota o “tuc-tuc” e, com e Rosimery, pisa uvas recém colhidas. No almoço, pão, queijo, salame, e vinho: tudo feito em casa

vizinha, mais de 25 mil quilos de uva foram parar no chão por causa da tempestade. Além dos cachos perdidos, a qualidade das uvas que resistiram à tormenta pode ter ficado comprometida. Em plena vindima (colheita da uva), que acontece entre janeiro e março, foi um estrago e tanto. “A gente luta, trabalha o ano inteiro e de uma hora para outra, em questão de minutos, fica tudo perdido”, lamenta Daniel. No dia seguinte ao temporal, dezenas de agricultores foram espontaneamente às

áreas afetadas e realizaram um mutirão para colocar novamente em pé os parreirais derrubados. “Aqui na roça é assim, somos unidos. Nas boas e nas más horas”, diz. De janeiro até a metade de março, quando termina a safra, a rotina dos pequenos agricultores é de trabalho pesado. Daniel e Márcio, descendentes das primeiras levas de imigrantes italianos que chegaram à região serrana do nordeste do Rio Grande do Sul, em 1875, pulam da cama antes das 6h. A mãe, Gema

UM BOM ANO A perspectiva do Instituto Brasileiro do Vinho é de uma colheita entre 600 e 700 milhões de quilos da fruta no Rio Grande do Sul

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Longo, 67 anos, quando o sol desponta atrás da serra já está na cozinha, preparando café e pão colonial quentinhos, queijo fresco, salame, polenta, suco de uva e doces feitos de frutas do pé. “Praticamente, só o café e o açúcar a gente compra no mercado, o restante vem daqui mesmo, na roça”, afirma Gema, sem tirar os olhos do fogão a lenha. A mesa está posta. Num instante chegam Daniel e Márcio, juntamente com Otávio, Matias e Leonardo, vizinhos da comunidade de São Miguel, que vêm ajudar na colheita. “Quando terminar a nossa colheita, vamos ajudar os vizinhos com as uvas deles”, conta Márcio. Depois do café, com muita conversa num dialeto italiano incompreensível, os homens ajeitam-se na carroceria de um tratorzinho e rumam aos parreirais, na encosta dos morros ao redor. Impressiona a agilidade e o cuidado dos agricultores. As uvas são frágeis – se forem colhidas de qualquer jeito, os cachos estragam. Também é preciso cuidado ao colocar nas caixas de plásticos que serão levadas de caminhão às vinícolas, onde serão processadas. Como acontece na maioria das pequenas propriedades produtoras de uva na Serra Gaúcha, o sistema utilizado por Márcio e Daniel é o de “latada”. Uma tipo de caramanchão é erguido a cerca de 1,8 metro do solo, feito de arames trançados que dão suporte às videiras. Segundo eles, a principal vantagem do sistema é a quantidade de cachos produzidos e, consequentemente, a garantia de boa renda no final da safra. Mas como a uva precisa de bastante sol, as folhagens podem impedir que os cachos recebam o calor necessário para amadurecer, daí a necessidade de muito cuidado durante as podas. “A gente enfrenta o frio e a geada no inverno, esperando que tudo dê certo na safra. Um pouco de sossego só mesmo depois da colheita, pois durante boa parte do ano o que não falta é trabalho”, contam. No entanto, o que esses pequenos agricultores mais temem, sem dúvida, é contrair dívida no banco. “Sai pra lá, é pior que praga.”

A hora da pisa

Mas a vindima na serra não é só trabalho, ao contrário, haja festa. No distrito de Tuiuty, em Bento Gonçalves, durante o carnaval, em vez de máscaras os visitantes colocam chapéus de palha na cabeça, e no lugar de blocos e marchas, os visitantes chacoalham até as videiras de “tuc-tuc” – uma geringonça motorizada que vai sacolejando os passageiros em cadeiras de plástico ou bancos de madeira. Dependendo das curvas, subidas e descidas, o passeio equivale a turismo de aventura. Mas sem riscos. Afinal, um dos “pilotos” é Nei Antônio Tomasi. Bem-humorado, sempre com uma piada na ponta da língua, Nei dirige o tuc-tuc devagar enquanto canta Merica, Merica, da canção que virou, por lei de 2005, tema da colônia italiana do Rio Grande do Sul. No parreiral, ele convida as pessoas a colher os cachos e colocar em vasilhames iguaizinhos aos usados pelos imigrantes, quando chegaram à serra. Como ninguém é de ferro, após o “trabalho” é a vez do “merendim”: uma fartura de salames, queijos, pães da colônia, do46

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PROSPERIDADE O vinho produzido na região vem de uvas colhidas...

ces, polenta, suco e vinho, servidos sob o parreiral em cima de toalhas quadriculadas. E para muitos o melhor vem em seguida. Depois de lavar os pés (providência indispensável), basta subir numa enorme tina e esmagar as uvas ao som da tarantela. A pisa das uvas, hoje em dia, é apenas um ritual folclórico para lembrar esse método primitivo de se elaborar vinhos. Os produtores da Serra Gaúcha estão otimistas. A expectativa entre eles é a de que o clima quente e seco que fez nas primeiras semanas da colheita favoreça a produção de frutas mais doces, com maior teor de açúcar, e com bom potencial para vinhos e sucos. O tempo frio de agosto e setembro do ano passado atrasou em alguns dias o início da safra, mas isso não deve afetar a perspectiva do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) de uma colheita entre 600 e 700 milhões de quilos da fruta no Rio Grande do Sul em 2014. A safra de 2013 foi de 611 milhões de quilos. Enfim, a expectativa de quem visita a Serra Gaúcha é encontrar festa e colheita farta, mas nem sempre foi assim. Em 1875, a chegada dos primeiros imigrantes italianos era marcada por sentimento de medo e incerteza. Na Itália, a quase totalidade dos imigrantes que rumavam para a aventura no Brasil se constituía de trabalhadores rurais, gente sem um teto próprio que vivia precariamente, em terras arrendadas. Poucos tinham um título de propriedade. Pelas estimativas, mais de 70% eram analfabetos, muitos estavam subnutridos e grande parte sobrevivia na Itália em condições miseráveis. Também não foi


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...principalmente em pequenas propriedades AO AR LIVRE Gema maneja com habilidade o fogo a lenha no preparo do doce de figo

DESDE 1875 Daniel é descendente das primeiras levas de imigrantes italianos que chegaram à região serrana do Rio Grande do Sul

nada fácil para aquela gente embarcar no sonho da terra prometida, alardeada pela propaganda do governo brasileiro, que buscava braços para substituir a mão de obra escrava. Durante a travessia do Atlântico, há relatos sempre repetidos de tempestades, falta de higiene e alimentação precária, além de mortes e corpos ao mar. Já no Brasil, a viagem até as colônias de Conde d’Eu e Dona Isabel, no nordeste do Rio Grande do Sul onde atualmente estão localizados os municípios de Garibaldi e Bento Gonçalves, demorava até oito dias. Nas colônias, os imigrantes eram alojados em barracões até se instalar em seus lotes. Só então iniciavam uma agricultura de subsistência, cultivando milho, trigo e alguns pés de uva trazidos na bagagem. No começo, o vinho era fabricado apenas para consumo familiar. Aos poucos, porém, o negócio foi prosperando. Passadas as primeiras safras, que garantiam a subsistência dos colonos, começaram a surgir os excedentes. Em 1883, o cônsul italiano em Porto Alegre relatou: “A videira cresce de modo surpreendente. Já no segundo ano dá uva e no terceiro a colheita é abundante”. Era a concretização do sonho de fazer a América. Na atualidade, 139 anos após a chegada dos primeiros colonos italianos na serra, o Rio Grande do Sul se destaca como o maior produtor de uvas para processamento no país. A produção é feita principalmente em milhares de pequenas propriedades, com média de 15 hectares, com pouco mais de 10% dessa área ocupada por vinhedos. REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Vida de sanfoneiro Aos 6 anos, José Domingos de Morais ganhou a primeira sanfona do pai, o mestre Chicão. Aos 8, já se apresentava com dois dos 15 irmãos, Morais e Valdomiro, em feiras livres e portas de hotel de Garanhuns (PE), onde nasceu em fevereiro de 1941. Um dia, Os Três Pinguins foram convidados para tocar dentro do hotel onde estava Luiz Gonzaga. O Rei do Baião, impressionado, convidou o menino para ir ao Rio de Janeiro. Em 1954, depois de 11 horas em um pau de arara, o então Neném do Acordeon ficava pela segunda vez frente a frente com Gonzagão. Não demorou para começar a se apresentar em bares e casas noturnas cariocas, até se tornar Dominguinhos, nome dado por Luiz Gonzaga, com quem gravou, em 1957, Moça de Feira. “O menino chegou de um ambiente diferente e começou a viver num mundo glamourizado. Mas foi sempre na dele, sempre com esse jeitão sertanejo”, diz Gilberto Gil no primeiro episódio da web série +Dominguinhos, exibida semanalmente, às quartas-feiras, de 26 de fevereiro a 16 de abril, no canal youtube.com/dominguinhos e no facebook. com/dominguinhomais. A riqueza dessa história levou os músicos Mariana Aydar, Duani e Eduardo Nazarian a se associar à produtora bigBonsai para pesquisar e promover encontros entre o sanfoneiro e parceiros, antigos e jovens. Dos encontros gravados nos últimos três anos nasceram a web série e o

documentário Dominguinhos. Cada um dos oito episódios de +Dominguinhos tem cerca de cinco minutos, em que parceiros como Gil, João Donato, Elba Ramalho, Hermeto Pascoal, Djavan, Lenine, entre outros, tocam e contam histórias vividas nos palcos da vida. Em uma delas, Gil lembra do tour do álbum Refazenda (1975), em que viajaram juntos mais de 20 mil quilômetros. Em certo momento, Dominguinhos pergunta: “Isso é reggae, é?”. Quando o amigo responde que sim, ele rebate: “Que reggae nada, isso aí é um xotezinho sem-vergonha”. Os minidocs serão acompanhados de apresentações de 16 canções interpretadas por ele e seus parceiros. Já o documentário Dominguinhos traz o músico narrando sua trajetória por meio de imagens de arquivo. O início da carreira, a viagem e a chegada ao Rio de Janeiro, a primeira sanfona, seus casamentos e suas parcerias são alguns dos assuntos revividos no longa-metragem dirigido por Eduardo Nazarian, Mariana Aydar e Joaquim Castro, com cenas e relatos que não estarão na série, com estreia em circuito nacional agora em abril. Os diretores se aprofundaram nos arquivos e encontraram fonogramas raros e imagens inéditas que, sob a narração serena de Dominguinhos, resgatam sua vida e a sua importância na música popular brasileira. Mariana Aydar resume: “Assim era Dominguinhos. Grande, muito grande. Simples, muito simples”.

Azul é a Cor Mais Quente

Flores Raras

Entre mulheres

Dois filmes com lentes em relação entre mulheres e perda amorosa estão chegando às locadoras. O brasileiro Flores Raras, de Bruno Barreto, baseado no livro Flores Raras e Banalíssimas (de Carmem L. de Oliveira), traz o affair entre a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires). Azul é a Cor Mais Quente, produção francesa dirigida pelo tunisiano Abdellatif 48

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Kechiche, mostra o despertar sexual de Adèle (Adèle Exarchopoulos), garota de 17 anos que descobre sua primeira paixão na cor dos cabelos de Emma (Léa Seydoux). Enquanto o brasileiro tem classificação de 14 anos, o francês é indicado para acima de 18, devido às (longas) cenas de sexo. O filme de Kechiche é de descobertas da juventude e o sexo é apenas o pano de fundo para algo bem mais complexo. Em DVD.


Juçara Marçal

Navalha na carne Juçara Marçal tem mais de 20 anos de carreira. Começou com o grupo vocal Vésper, passou por A Barca, fez uma incursão pelas tradições afro com Kiko Dinucci, com quem integra o Metá-Metá, ao lado de Thiago França. O álbum independente Encarnado, sua estreia solo, surpreende pela contundência com que trata a aspereza do tema morte. Entre as 12 faixas, Juçara reúne inéditas e regravações de compositores como Dinucci, Campos França, Romulo Fróes, Douglas Germano, Siba, Tom Zé e Itamar Assumpção. Destaque para Damião, em que incita a vingança pela morte do cearense, em 1999, por espancamento numa casa de repouso. Enquanto o CD não chega, o álbum pode ser baixado de graça no site jucaramarcal.com.

Gravação com Gilberto Gil

ALEXANDRE NÓBREGA/DIVULGAÇÃO

Ariano Suassuna tem presença confirmada

Bienal em Brasília

Onde jacaré é rei

A 2ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, de 12 a 21 de abril, debate a crise em âmbito político, econômico e cultural no mundo, as mulheres na literatura e traz seminários e mostra de cinema sobre os 50 anos do golpe. Essa edição homenageia o uruguaio Eduardo Galeano, autor de As Veias Abertas da América Latina e da trilogia Memória do Fogo, e Ariano Suassuna, de O Auto da Compadecida e A Pedra do Reino, ambos com presença confirmada no evento. Uma estrutura de quase 17 mil metros quadrados será montada na Esplanada dos Ministérios e ficará aberta das 10h às 22h. Grátis.

O Sesc Interlagos, em São Paulo, virou um reino mágico, um cenário fantástico que apresenta o imaginário de 156 contos escritos pelos irmãos Grimm entre 1812 e 1815. A exposição Grimm Agreste mistura o universo alemão e a brasilidade ao desbravar os Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos dos irmãos Jacob e Wilhelm. O percurso se espalha por áreas internas e externas da unidade, com instalações interativas. Na parte interna estão expostas matrizes de xilogravuras criadas pelo artista nordestino José Francisco Borges. De quarta a domingo e feriados, das 10h às 16h30. Avenida Manuel Alves Soares, 1.100, Parque Colonial, (11) 5662-9500. A mostra também pode ser visitada virtualmente, em sescsp.org.br/grimmagreste. REVISTA DO BRASIL

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JOSÉ DE HOLANDA/DIVULGAÇÃO

CURTA ESSA DICA

Dominguinhos com Hermeto Pascoal


SILVIO BERENGANI

Adeus, caipiras

Esta noite eu tive um sonho Acordei muito assustado Sonhei que o mundo moderno No sertão tinha chegado O verde da minha roça eu vi tudo arrasado O ribeirão poluído Carreador tudo asfaltado

(Trecho de Pesadelo de Caboclo, de Adauto Santos)

O

sítio acabou. Não tem mais porco no chiqueiro, pomar, nem galinha no terreiro. Cambuquira no meio das ruas do cafezal, então... Também quase não tem cafezal. Nem mais gente na roça. No horizonte se veem os johns deeres e masseys e suas possantes carpideiras, plantadeiras, envenenadeiras, colhedeiras e desempregadeiras. Bois e vacas na invernada são tão raros quantos lambaris nos riachos. No lugar da enxada, o randapi, aquele veneno de matar mato que a Monsanto inventou para não matar planta transgênica. O sítio da vó, da madrinha, do primo... ficou na memória. Quem viu e viveu, guarde as boas lembranças. Quem não viu e não viveu, dificilmente verá. Se a gente fosse traçar o mapa da divisão agrícola do estado de São Paulo, teríamos poucas categorias. Lá, hoje estão desertos verdes onde nem passarinho voa. A monocultura impera que nem quiçaça em beira de lote abandonado. A partir do leste temos o litoral. Em terra, a pequena mancha, a escassa Mata Atlântica. A seguir, as manchas das regiões metropolitanas. Em torno delas, cinturões verdes, teimosia da agricultura familiar. Dali em diante quase nenhum resquício do mundo rural dos caipiras, violeiros, jecas, boiadeiros, benzedeiros, doceiras e tantos outros personagens de nossa remota identidade. Só cana, eucalipto e laranja. Mais adiante, tanto faz se a oeste ou norte, cana, laranja e eucalipto. No centro, e muitos quilômetros à frente, laranja, cana e eucalípto. No final, já perto de Minas ou de Mato Grosso do Sul, cana, com sorte, algum eucalipto, às vezes milho ou soja, grãos que há muito deixaram de ser alimentos para se tornar moeda nas bolsas. Comódites. Não é exagero. Quer mais? Ganha um copo de puro leite longa vida quem trouxer à redação desta revista uma paçoquinha, 50

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uma pamonha ou rapadura comprada num daqueles esquecidos ranchos à beira de estrada. Parada de viagem, hoje, é naqueles quase shopping centers de nomes americanos. Não tem um torresmo. A nova música do interior joga a pá de cal na cova pr’onde desce uma parte das velhas identidades. Trabalho, natureza e paixões (perdidas ou conquistadas) forneciam matéria-prima e inspiração à música caipira. Hoje, são, em ordem: a banalização da mulher, a dor de corno e o enaltecimento da manguaça. Parece até uma combinação entre indústria cultural, agronegócio e agências de modelos a despejar diariamente duplas e mais duplas de sertanejos universitários. Se esses universitários aprendem, pensam e agem como cantam nessas canções, pouco futuro resta ao Brasil. Temo até a formação nas pequenas cidades interioranas de uma geração de jovens a acreditar que o leite vem mesmo é da caixinha. Não é o caso de defender uma volta aos velhos tempos. Talvez o esquecimento seja proposital, os tempos antigos eram duros, o trabalho era penoso, e renda das massas de boias-frias, meeiros e outros tipos de trabalhadores rurais era grão. É certo que os jovens queiram mais. Apenas a necessidade extremada da sobrevivência justifica os suplícios de uma roça. Os descendentes dos antigos caipiras têm direito a uma vida digna e confortável como qualquer morador de centro urbano. O que choca é a velocidade e a forma violenta pela qual nos são tirados recursos tão preciosos, como os simbolismos de nossa existência, da memória dos antepassados, costumes, a cultura sábia, a natureza viva, essas coisas que davam à vida mais s­ entido e sabor.


Das 7h às 9h, notícias que as outras não dão

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MUITA COISA FAZ PARTE DA VIDA DE UMA MENINA. A VACINA CONTRA O HPV deve ser UMA DELAS.

PROCURE, ATÉ 10/04, UMA ESCOLA PÚBLICA OU PARTICULAR E VACINE-SE. A vacina é importante porque protege contra o Papiloma Vírus Humano, um vírus transmitido pelo contato com a pele ou a mucosa infectada, que pode viver anos no organismo e evoluir para cânceres como o do colo do útero. A primeira das 3 doses deverá ser feita nas escolas públicas e particulares até 10 de abril. Após a campanha, as vacinas estarão disponíveis até o fim do ano em qualquer unidade de saúde de Osasco. Para quem tem uma vida toda pela frente, não custa nada se proteger desde já.

MINISTÉRIO DA SAÚDE


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